D Enunciar a Autonomia Contributos Para a Compreensao Da Genese e Da Construcao Da Autonomia Na...

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  [ P RT FP E F CULD DE DE PSICOLOGIA E DE C I ~ N C I S D EDUCA<; AO UNIVERSIDADE O PORTO Elisabete Maria Soares Ferreira D)Enunciar a Autonomia Contributes para a Compreensao da Genese e da Construgao da Autonomia na Escola Secundaria TESE DE DOUTORAMENTO Sob a orientagao do Professor Doutor Carlos Alberto Vilar Estevao e da Professora Doutora Maria Amelia da Costa Lopes 2007 )

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    [I PORTO FPCE FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CI~NCIAS DA EDUCA

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    RESUMO

    Partimos do desejo de uma maior humanizao das relaes humanas em todos os contextos de vida e de Educao e particularmente nas escolas. No quadro disciplinar das Cincias da Educao, potenciamos o pensar e o interrogar o campo educativo, atravessado por discursos hbridos e paradoxais, com o intuito de restituir educao uma cientificidade em torno de racionalidades emocionais, comunicacionais, crticas e emancipatrias.

    Com o estudo dos discursos de autonomia, que nos levou a (D)enunciar a autonomia escolar, perseguimos o objectivo principal de compreender a gnese, a implementao e o desenvolvimento da autonomia, no microcosmos escolar, decorrente da aplicao do modelo de autonomia na escola pblica (o Decreto-lei n 115-A/98). Este trabalho, construdo em torno da anlise crtica e compreensiva da gnese da autonomia escolar enquanto modo de governao da escola portuguesa, e especificamente da escola secundria portuguesa, aborda, fundamentalmente, as concepes e as representaes da autonomia e as tenses, conflitos, paradoxos gerados no universo escolar, que (d)enunciam as possibilidades e as exigncias para uma agncia humana capaz e mobilizada em ambiente poltico adequado. Parte-se das premissas de que a autonomia moderna, de que as pessoas tm sobre o conceito um entendimento sujeito sua prpria experincia subjectiva de seres autnomos e que o desenvolvimento da autonomia escolar se processa numa modernidade tardia e crsica, o que nos leva a defender a simultnea gnese e crise da autonomia escolar e a definir um lugar central para uma agncia humana no desenvolvimento da autonomia.

    Do ponto de vista terico, e numa perspectiva interaccionista, trata-se, a propsito da autonomia, de dar conta de uma fenomenologia da mudana. A partir da anlise e do enquadramento da escola enquanto organizao complexa e especfica e enquanto espao relacional e afectivo por excelncia, pretende-se discutir a organizao educativa, convocando os contributos das teorias organizacionais e comunicacionais e perspectivando as questes da autonomia atravs do desenvolvimento de vises que potenciem a comunicao e o esprito crtico e tico dos actores educativos, em direco a

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    um srio compromisso da escola com a formao das pessoas e a democratizao da democracia, numa acepo de organizao comunicativa autnoma.

    Na prtica, tratou-se de observar e analisar as ambiguidades presentes nas interaces humanas complexas aquando da implementao, a partir de 1998, do governo autnomo da escola. Ao admitirmos no estudo da gnese uma autonomia crsica, anunciamos a autonomia como uma soluo exigente de possibilidades caleidoscpicas que revelam diferentes recombinaes de aces dos sujeitos (actores escolares) e entendimentos polticos de pendores reguladores e emancipadores. Para a agncia humana identificamos um conjunto de exigncias e uma recombinao de aces responsabilidade, vontade, conhecimento informado e liberdade desenvolvidas em interaces: comunicativa (Habermas), dialgica (Freire), sensata (Hameline) e crtica ou transformadora (Giroux). Deste olhar, resultou a defesa de uma autonomia sensata que reivindica uma tica do afecto e da relao estruturada na livre subjectivao e no respeito solidrio pela pessoa humana.

    Nesta perspectiva de recomposio paradigmtica ou reconciliao social, sabemos ser necessrio, para aqueles que aceitam o governo da escola, uma liderana corajosa e cvica, capaz de envolver e mobilizar os diversos actores escolares, para que o aprofundamento da autonomia escolar, ao servio da comunidade educativa, seja possvel e desejvel.

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    RSUM

    Nous souhaitons une plus grande humanisation des relations humaines dans tous les contextes, de vie et dducation, mais en particulier lcole.

    Au niveau des Sciences de lducation, on donne plus dimportance la pense, linterrogation et lapprentissage transperc de discours hybrides et paradoxales, avec le but de restituer lducation un scientisme autour de rationalits motionnelles, communicatives, critiques et mancipatrices.

    partir des recherches sur les discours au niveau de lautonomie, qui nous ont men (D)noncer lautonomie scolaire, nous avons poursuivi le principal objectif de comprendre la gense, limplantation et le dveloppement de lautonomie, dans le micro cosmos scolaire, advenant de lapplication du modle dautonomie lcole publique (Dcret-loi n 115-A/98). Le prsent travail est une analyse critique et comprhensive de la gense de lautonomie scolaire, en ce qui concerne le gouvernement de lcole portugaise, particulirement du lyce portugais. Le travail aborde fondamentalement, les conceptions et les reprsentations de lautonomie, mais aussi, les tensions, les conflits et les paradoxes engendrs au sein de lunivers scolaire, qui (d)noncent les possibilits et les exigences pour construire une agence humaine adroite et mobilise dans un environnement politique adapt. On suppose que lautonomie est moderne, et que les individus comprennent ce concept travers leur propre exprience mais aussi, part la modernit tardive et critique, selon laquelle, lautonomie se dploie lcole. Cette supposition nous mne dfendre la simultane gense et crise de lautonomie scolaire et dfinir un point central, pour le dveloppement de lautonomie.

    Du point de vue thorique, et partir dune perspective inter actionnaire, il sagit, propos de lautonomie, dun phnomne en changement. partir de lanalyse et de lencadrement de lcole, comme une organisation complexe et spcifique, mais aussi, comme un espace relationnel et affectif, part excellence, nous prtendons discuter lorganisation ducative, en appelant aux contributions des thories organisationnelles et communicationnelles, en tenant compte les questions de lautonomie, travers le dveloppement des visions qui dploient la communication et lesprit critique et ethnique des ducateurs

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    (acteurs ducatifs). Il sagit donc, dun srieux compromis de lcole envers la formation des individus et la dmocratisation de la dmocratie, en tant quune organisation communicative autonome.

    Ce travail sagit dobserver et danalyser les ambiguts qui existent au sein des interactions humaines complexes, durant limplantation, aprs 1998, du gouvernement autonome de lcole. Quand nous avons tudi la gense de lautonomie, nous lavons proclame comme une solution exigeante de possibilits kalidoscopiques qui rvlent plusieurs engagements entre les ducateurs et les entendements politiques du genre rgulateur et mancipateur. Pour lagence humaine, il sagit didentifier en ensemble dexigences et dengagements au niveau de la responsabilit, de la volont, du savoir et de la libert. Ces engagements devraient se dvelopper selon des actions rciproques: communicative (Habermas), dialogistique (Giroux).

    Nous dfendons, donc, une autonomie sense, qui vise une thique daffection et de libre relationnement, fonde sur la subjectivit et le respect solidaire entre les tres humains.

    Selon cette perspective de recomposition paradigmatique ou rconciliation sociale, nous savons quil est extrmement urgent, que ceux qui acceptent le gouvernement de lcole, occupent une position plus courageuse et civique, tant capables de sengager et de mobiliser les ducateurs, pour que lautonomie scolaire soit possible et dsirable.

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    ABSTRACT

    It is our wish to humanize the relationship among people in every context of life and Education, and particularly in school.

    In the Science of Education, major importance is given to the thinking and questioning and the learning, supported by hybrid and paradoxical speeches, in order to bring back to education a scientific, critical and emancipated method of emotional rationalism and communication. By studying what has been said about autonomy, it took us to think about the school autonomy. We want mainly to understand the genesis, the fulfilment and the development of autonomy in schools, brought forth by the implementation of the model of autonomy in public schools (Decree-law n 115-A/98). The present study is about the critical and understanding analysis of the genesis of school autonomy how it is used as a way of working in Portuguese schools, especially in secondary schools. Mainly, the research approaches the concept and the presentation of autonomy versus tension, conflict and paradox happening in the school universe, thus enunciating the possibility of a human agency in a suitable political environment. It is supposed that autonomy is modern, that people understand the concept through their own personal experience and also that school autonomy is being carried out in a late and critical modernism. That supposition takes us to sustain the simultaneous genesis and crisis of the school autonomy and also to point out a central place of a human agency for the development of autonomy.

    From a theoretical point of view, and from an interaction perspective, it is, concerning autonomy, a change phenomenon. Subjecting to analysis the organization of a school which is complex and specific as well as a place of relationship and affection, we aim to discuss the educational organization, calling to the analysis for help in organization and communication theories. We intend to preview the autonomic issues through a development of vision in order to strengthen the communication, critical and ethical mind of educators, moving to a serious compromise of the school towards the students to create a democratic autonomous organization.

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    Our research was also to observe and analyse the ambiguities which exist in human interaction which were difficult at the time the school direction was implemented, from 1998 onward. When we studied the genesis and accepted autonomy as a crisis, we identified the autonomy as a demanding solution with many possibilities, with plenty of compromises among educators and politic understandings towards regulation and emancipation. To the human agency we make a series of simultaneous demands and work such as responsibility, will, knowledge and freedom. These demands should be carried out inter-acting: should be communicative (Habermas), dialogistical (Freire), wise (Hameline) and critical or changeable (Giroux). So, we advise a wise autonomy with an ethic of affection combined with free relationships based on subjectivity and respect for human beings.

    Under this perspective of paradigmatic organization or social reconciliation, those who accept the leadership of school need to undertake it with civic courage and be able to mobilise and engage the different persons to turn the school autonomy into a possible and desirable solution.

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    AGRADECIMENTOS

    Aos meus professores, por terem instigado e incentivado a minha curiosidade cientfica e capacidade de aprender de forma crtica e, hoje, na sua maioria, meus colegas do grupo de Cincias da Educao (FPCE-UP), a todas/os sou grata pela oportunidade estimulante de investigao e de trabalho conjunto.

    Em particular, e em especial, ao Agostinho, eterno professor, sbio, exigente e humano, que me inspira e me faz falta e que guardo amorosamente.

    Aos estudantes, aos (meus) jovens-alunas/os, sempre nicos e especiais, presenas de esperana na minha vida, a quem ofereo a minha rebeldia inquieta e com quem gosto de partilhar (provocar) e aprender os mais diversos saberes, com rigor, mas tambm com afecto, prazer e alegria. A todas e todos e a cada um em especial, uma sentida gratido pela oportunidade de com eles continuar a desejar a humanizao das relaes e, em especial, para a escola.

    Ao Rui, Amlia, Ftima, Carlinda e Preciosa, agradeo-lhes e expresso ternamente o meu reconhecimento pela capacidade com que generosamente acolheram trabalho acrescido, para que eu terminasse esta tarefa.

    Quero ainda destacar o meu agradecimento e reconhecimento aos meus orientadores, pelo rigor cientfico, pela inquietude e desassossego que me provocaram, mas tambm pela serenidade com que sempre me acolheram.

    Ao professor Estvo, pelas crticas, pelo rigor e exigncia que sempre me colocou no desenvolvimento do trabalho, mas tambm pela compreenso e ateno dispensada.

    Amlia, professora Amlia, orientadora sria, exigente e sensata, cuja sensibilidade e humanidade sempre me tocaram, agradeo especialmente

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    a amizade cmplice e secreta, vivida na esperana e na confiana que depositou em mim, apesar dos momentos pessoais, difceis, de crise e adversidade com que me debato e que atravessaram toda esta tese.

    escola estudada, nas pessoas dos docentes dos rgos de direco e de gesto pela sua disponibilidade e pacincia, e ainda pela coragem e notvel abertura para colaborarem comigo num momento de frgil arranque, bem como a todos os docentes, no docentes e discentes pela sua contribuio e participao no nosso estudo.

    Maria Jos S pela sua capacidade invulgar de trabalho e profissionalismo, que sempre ps ao meu dispor, pela preciosa ajuda ao nvel informtico, mas especialmente pela simples conivncia amiga.

    Um intenso obrigado a todas as Pessoas com quem conVivi nos ltimos anos, s amigas e aos amigos, que me permitiram aprender a Ser mais e a no querer ter nada sob controlo, e me ajudaram a aceitar o medo de estar a perder metodicamente e a assumir o risco louco de crescer para dentro.

    Ao meu acampamento de abrigo, esse grupo alargado e generoso de jovens e de pessoas carinhosas, que se mantiveram presentes e confiantes na concluso deste trabalho.

    s (minhas) trs Marias, mulheres, amigas, livres, inteligentes, emancipadas e crticas, com quem pude sempre contar, incondicionalmente, para discutir o trabalho, rir ou chorar, e s quais agradeo o jeito, as cumplicidades e as intimidades do quotidiano das mulheres.

    Por ltimo, e em especial, s urgncias, vividas com sentido e significado profundo com o Duarte, e, num reconhecido sentimento de afecto e de amizade, de intersubjectividades, tambm com o Teixeira, o Artur, o Pedro e o Camilo, com todos, numa genuinidade do riso e numa cumplicidade do mundo da vida e das pessoas bonitas (que sentem as emoes, o pulsar da

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    vida, a inquietude, e que no me deixaram esquecer, nem perder, essas sensibilidades).

    Angelina, a minha abelha-mestra, cujo entendimento dispensa palavras e vive de favos de mel de intimidade, de segredo e de ternura afectiva.

    minha famlia, pelo amor firme recproco e pela inspirao aos meus pais, aos meus filhos, aos meus sobrinhos, a quem dedico este trabalho, e ainda, de uma forma muito especial e particular, ao meu irmo e cunhada, companheiros de vrias duras e longas travessias, por razes e emoes (e)ternamente agradecida a todos eles, que nestes tempos difceis tiveram sempre uma presena amorosa e sincera, solidria e poderosa com contributos generosos para o desenvolvimento da minha pessoa.

    Finalmente (e porque sero sempre os primeiros), aos meus filhos, Nuno e Gonalo, por no pararem de crescer e de me surpreender, aguentamo-nos s horas tristes e de (im)pacincia e conseguimos juntos, viver de modo inteiro e crescer em Amor sem fim.

    A todas e a todos, de corao aberto, o meu sentido e emocionado obrigado.

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    memria de minhas Avs

    Rosa, Florinda e Ana

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    Aqui detesta-se a simetria. Aqui ama-se a harmonia suspensa por um fio que se pode, que ameaa, a qualquer instante romper. Tudo aqui se encontra em equilbrio instvel. A simetria uma forma pobre de harmonia. A assimetria em equilbrio instvel uma forma superior de harmonia. [] O simtrico est parado, no se move. O assimtrico est em movimento, vai a correr e, se parar, cai.

    (Paixo, 2004: 101)

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    LISTA DE ABREVIATURAS

    3/SEC 3 Ciclo do Ensino Bsico e Ensino Secundrio

    AC Administrao Central

    ACCE Actividades Cientficas, Culturais e Econmicas

    AE Assembleia de Escola

    AMB Antnio Manuel Baptista

    AP Associao de Pais

    APCC-UP Provas de Aptido Pedaggica e Capacidade Cientfica na Universidade do Porto

    BSS Boaventura de Sousa Santos

    CAA Conselho de Acompanhamento e Avaliao

    CAE Centro da rea Educativa CD Conselho Directivo

    CD Compact Disk

    CDT Coordenadora dos Directores de Turma

    CE Conselho Executivo

    CP Conselho Pedaggico

    CPA Chefe do Pessoal Auxiliar

    CRH Comunicao e Relao Humana

    CRSE Comisso de Reforma do Sistema Educativo

    CSA Chefe dos Servios Administrativos

    DE Direco Executiva

    DREN Direco Regional de Educao do Norte

    DT Director de Turma

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    EB 2/3 Ensino Bsico 2 e 3 Ciclo

    EF Elisabete Ferreira (Investigadora) FPCE-UP Faculdade de Psicologia e de Cincias da Educao

    Universidade do Porto

    GAL Grupo de Alunos

    IGE Inspeco Geral do Ensino

    IS Interaccionismo Simblico

    LBSE Lei de Bases do Sistema Educativo

    LP (Escola Secundria) Lurdes Pintassilgo MCE1 Membro do Conselho Executivo

    MCE2 Membro do Conselho Executivo

    PAE Presidente da Assembleia de Escola

    PAP Presidente da Associao de Pais

    PCE Presidente do Conselho Executivo

    PCP Presidente do Conselho Pedaggico

    PE Projecto Educativo RI Regulamento Interno

    SE Sistema Educativo

    UM Universidade do Minho

    UR Unidade de Registo

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    NDICE GERAL

    Resumos ............................................................................................................ 3 Agradecimentos ................................................................................................. 9 Lista de Abreviaturas........................................................................................ 17 ndice Geral ...................................................................................................... 19 ndice de Quadros ............................................................................................ 25 ndice de Figuras.............................................................................................. 27 ndice de Grficos ............................................................................................ 28 Lista de Apndices ........................................................................................... 29 Lista de Anexos................................................................................................ 30

    Introduo Geral............................................................................................... 33

    I PARTE O PRETEXTO

    Captulo I MODERNIDADE E AUTONOMIA(S)

    Introduo ........................................................................................................ 51

    1. Processos de Modernidade.......................................................................... 51 1.1. A Modernidade no Domnio da Histria, da Filosofia, da

    Cincia, da Teoria das Organizaes e da Educao........................... 53 1.2. A Metanarrativa da Modernidade......................................................... 82

    2. Autonomias e Momentos da Modernidade: a Andarilhagem do bvio ...... 88 2.1. A(s) Autonomia(s) ................................................................................ 90 2.2. Momentos da Modernidade: a Ideia da Mudana, o Encanto

    do Consumo e o Desejo da Utopia........................................................ 96

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    Captulo II AUTONOMIA, REGULAO E EMANCIPAO EM EDUCAO

    Introduo ...................................................................................................... 111

    1. Os Princpios de (Des)Regulao, de Emancipao e Autonomia em Educao e na Escola .............................................................................. 111

    2. Entre a Autonomia, a Regulao e a Emancipao: Tenses e Paradoxos................................................................................................. 128 2.1. A Autonomia e a Heteronomia ........................................................... 131 2.2. A Autonomia entre a Auto e a Hetero Regulao .............................. 132 2.3. A Autonomia e a Emancipao.......................................................... 134

    3. Gafes e Contragafes no Conceito de Autonomia..................................... 136 3.1. A Autonomia Requentada .................................................................. 141 3.2. A Quase Autonomia ........................................................................... 142 3.3. A Autonomia Redonda ....................................................................... 143 3.4. A Autonomia Crsica .......................................................................... 144 3.5. A Autonomia Sensata ........................................................................ 145

    4. Entre a Autonomia, a Regulao e a Emancipao: um Dilogo Conceptual................................................................................................ 151

    II PARTE O TEXTO

    Captulo III A ESCOLA COMO ORGANIZAO E OS PROCESSOS DE COMUNICAO E DE AUTONOMIA

    Introduo ...................................................................................................... 161

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    1. Administrao Educacional e Perspectivas Organizacionais ..................... 161 1.1. Administrao Educacional................................................................ 162 1.2. Perspectivas Organizacionais............................................................ 166 1.3. Anlise da Escola Pblica como Organizao................................... 173

    1.3.1. Modelos Organizacionais de Escola ....................................... 178

    2. Processos Comunicacionais nas Organizaes e Representaes de Autonomia................................................................................................. 193 2.1. Abordagens Relacionais e Comunicacionais ..................................... 199

    2.1.1. Condenao Comunicao.................................................. 204 2.1.2. Teorias da Comunicao ........................................................ 207 2.1.3. Percepo Social e Representaes de Autonomia na

    Escola .................................................................................... 211 2.2. A Escola como Organizao Comunicativa ..................................... 220

    3. A Agncia Humana e a Autonomia: o Agir Organizacional e Comunicacional ........................................................................................ 229

    Captulo IV POLTICAS EDUCATIVAS E AUTONOMIAS

    Introduo ...................................................................................................... 239

    1. Das Polticas das Dcadas de 80 e 90 s Polticas Actuais....................... 239 1.1. As Polticas Hbridas .......................................................................... 248 1.2. A Governao das Escolas................................................................ 254 1.3. Autonomia Decretada Decreto-lei n 115-A/98 ............................... 260

    2. As Autonomias, Tendncias e (Re)politizao da Escola: o Peripatetismo ............................................................................................ 272 2.1. A Autonomia e os Poderes Reguladores ........................................... 277 2.2. A Autonomia e os Poderes Desreguladores ...................................... 278

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    2.3. A Autonomia e os Poderes Emancipadores....................................... 279

    III PARTE O CONTEXTO

    Captulo V O ESTUDO DA GNESE DA AUTONOMIA NUMA ESCOLA SECUNDRIA

    Introduo ...................................................................................................... 287

    1. Organizao e Percurso da Investigao................................................... 288

    2. Fundamentao Epistemolgica e Metodolgica ....................................... 291

    3. Recolha de Dados e Procedimentos de Anlise ........................................ 296 3.1. Observao........................................................................................ 297 3.2. Recolha Documental.......................................................................... 298 3.3. Inquritos por Questionrio................................................................ 301 3.4. Entrevista ........................................................................................... 304

    4. Anlise e Interpretao de Dados .............................................................. 309 4.1. Contexto: Por uma Escola Medida do Nosso Querer ................... 310

    4.1.1. Perspectiva Histrica ................................................................. 310 4.1.2. Equipa ....................................................................................... 313 4.1.3. Organizao Minuciosa ............................................................. 317 4.1.4. Tradio de Dinmica da Escola ............................................... 327 4.1.5. Por uma Escola Medida do Nosso Querer: Sinopse ............ 330

    4.2. Representaes dos Professores e dos Alunos sobre a Autonomia Escolar A Hipocrisia Organizada.................................. 331 4.2.1. Representaes dos Professores: A Burocratizao da

    Mente ......................................................................................... 332 4.2.1.1. Autonomia ...................................................................... 332

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    4.2.1.2. Ocupaes da Direco Executiva ................................. 336 4.2.1.3. Caractersticas da Assembleia de Escola....................... 340

    4.2.2. Representaes dos Alunos: A Hipocrisia Reina nas Escolas .................................................................................... 344

    4.2.2.1. Autonomia ...................................................................... 345 4.2.2.2. Ser Aluno num Contexto Autnomo ............................. 348

    4.2.3. Representaes dos Professores e dos Alunos sobre a Autonomia Escolar A Hipocrisia Organizada: Sinopse........... 352

    4.3. Escola com Projecto Educativo: Apostar na Qualidade do Ensino 356 4.3.1. A Escola j tinha Projecto ....................................................... 357 4.3.2. Alunizao............................................................................... 365 4.3.3. Comunicao na Escola ............................................................ 366 4.3.4. Discurso Emancipatrio .......................................................... 369 4.3.5. Escola com Projecto Educativo: Apostar na Qualidade do

    Ensino: Sinopse....................................................................... 372 4.4. O Direito e o Dever numa Autonomia Redonda ............................... 373

    4.4.1. Processo de Implementao Legal: o Direito ............................ 374 4.4.2. Esperana de Mudana: o Dever .............................................. 380 4.4.3. O Direito e o Dever numa Autonomia Redonda: Sinopse.......... 384

    4.5. A Centralidade de uma Agncia Humana nas Autonomias da Escola a Lenda da Esttua com Ps de Barro............................... 387

    4.5.1. Os Professores .......................................................................... 388 4.5.2. Os Alunos .................................................................................. 397 4.5.3. Os Pais e Encarregados de Educao ...................................... 405 4.5.4. Outros Membros da Comunidade.............................................. 410 4.5.5. A Centralidade de uma Agncia Humana nas Autonomias

    da Escola a Lenda da Esttua com Ps de Barro: Sinopse........................................................................................ 415

    5. Sntese Interpretativa ................................................................................. 420 5.1. Da Autonomia Crisca (s) Autonomia(s) Sensata(s) ....................... 421

    Consideraes Finais: Dilogos sobre Autonomias ....................................... 439

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    Referncias Bibliogrficas.............................................................................. 455

    Pesquisa e Consulta Bibliogrfica .................................................................. 481

    Apndices

    Anexos

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    NDICE DE QUADROS

    Captulo I Quadro I.1. Autonomias: dimenses e princpios ............................................. 95

    Captulo III Quadro III.1. Modelos organizacionais versus teorias comunicacionais ........ 199 Quadro III.2. Representao social: a autonomia na escola .......................... 219

    Captulo IV Quadro IV.1. A administrao educacional em Portugal (1980-2000)............ 242

    Captulo V Quadro V.1. Entrevistados, local de realizao e da durao das

    entrevistas ................................................................................ 307 Quadro V.2. Categorias de anlise das entrevistas ....................................... 309 Quadro V.3. Apresentao da evoluo do nmero de turmas de 87/88

    a 99/00...................................................................................... 313 Quadro V.4. Apresentao da populao escolar nos ltimos anos .............. 321 Quadro V.5. Apresentao da evoluo do nmero de turmas de 96/97

    a 02/03...................................................................................... 322 Quadro V.6. Caracterizao da escola LP, no ano lectivo 99/00, quanto

    ao nmero de professores, funcionrios e alunos e distribuio das turmas pelos nveis de ensino......................... 322

    Quadro V.7. Sentido das concordncias face s afirmaes de acordo com os professores respondentes ............................................ 334

    Quadro V.8. Demonstra as principais ocupaes da DE tendo em conta a maior votao dos professores respondentes ............................. 338

    Quadro V.9. Caractersticas mais valorizadas para os elementos que compem a AE aps somatrio dos resultados dos itens Relativamente importante e Importante....................................... 342

    Quadro V.10. Representaes sobre a autonomia (1) ................................... 347 Quadro V.11. Representaes sobre a autonomia (2) ................................... 348

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    Quadro V.12. Representaes sobre ser aluno num contexto de autonomia ................................................................................. 348

    Quadro V.13. Quadro resumo das possibilidades de autonomias na escola ....................................................................................... 427

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    NDICE DE FIGURAS

    Captulo V Figura V.1. Estrutura orgnica da Escola LP.................................................. 318 Figura V.2. Construo dinmica das autonomias escolares......................... 429

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    NDICE DE GRFICOS

    Captulo V Grfico V.1. Apresentao da distribuio das principais ocupaes da

    DE aps somatrio dos resultados dos itens Importante e Muito Importante ....................................................................... 337

    Grfico V.2. Apresentao da distribuio das caractersticas mais valorizadas pelos elementos da AE aps somatrio dos resultados dos itens Importante e Muito Importante ................. 341

    Grfico V.3. Distribuio das respostas dos alunos quanto ao conhecimento sobre os rgos que governam a escola........... 345

    Grfico V.4. Distribuio das respostas dos alunos quando inquiridos sobre o conhecimento da autonomia ........................................ 346

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    LISTA DE APNDICES

    Apndice I. Esquema: Momentos da Investigao

    Apndice II. Resumos das Actas das Reunies do Conselho Executivo, Conselho Pedaggico e Assembleia de Escola

    Apndice III. Inqurito aos Professores

    Apndice IV. Inqurito aos Alunos

    Apndice V. Anlise de Contedo das Entrevistas

    Apndice VI. Transcrio da Entrevista ao PAE

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    LISTA DE ANEXOS

    Anexo I. Esquema Grfico da Escola LP

    Anexo II. Estrutura Orgnica da Escola LP

    Anexo III. Programa / Efemride dos 25 Anos da Escola LP

    Anexo IV. Decreto-lei n 115-A/98 de 04 de Maio

  • INTRODUO GERAL

  • Introduo Geral

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    Neste trabalho, assumimos uma constante curiosidade e atraco pelos contextos de interaco, nomeadamente pela humanizao das relaes humanas. A vontade de proceder a uma abordagem da educao nestes moldes tambm devedora da preocupao de encontrar novos desafios e ideias para a escola actual, em que no se descure um sentido crtico interventivo e problematizador, capaz de promover na escola um sentido dialgico, reflexivo e de bom senso; capaz de proporcionar simultaneamente conhecimento rigoroso e bem-estar afectivo e emocional.

    Na alquimia da humanizao das relaes humanas seguimos os pensamentos de Ribeiro (1992), quando nos afirma que as relaes humanas so sistemas interaccionais em desenvolvimento dotados de dinmicas internas e externas (isto , so sujeitas a influncias prprias e dos contextos). E pensamos, de acordo com Lopes (1999), que as concepes modernas tm privilegiado uma viso da pessoa individualista e associal e que necessrio procurar desenvolver uma outra viso mais social e solidria da pessoa.

    Numa perspectiva global, este trabalho insere-se no quadro disciplinar das Cincias da Educao e reala a possibilidade de pensar o campo educativo atravessado por temas hbridos, questionando os diferentes discursos e a cientificidade em educao.

    Em nome da cincia e da capacidade de interrogar os discursos que se produzem e que assumem a incerteza, a hibridez e a conflitualidade contempornea, vale procurar a cincia tal qual se pensa, se sente e se faz e analisar o processo de educao enquanto projecto utpico, procurando deste modo, como sugere Correia (1998), substanciar as ambiguidades constituintes das cincias da educao no como perturbaes ou dfices epistemolgicos que as afasta de um ideal de cientificidade, mas considerando-as como riscos inerentes ao exerccio de uma actividade crtica e susceptveis de se tornarem numa vantagem acrescida (1998: 189). Nesta ptica, o mesmo autor caracteriza as Cincias da Educao como um espao de convergncia de uma pluralidade de matrizes disciplinares e, portanto, um espao potencialmente propenso interdisciplinaridade (ibidem: 19), cujo objecto

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    emprico se traduz num espao social apelante para a articulao metdica do individual com o social (ibidem). Contudo, como tambm nos evidencia Correia (ibidem), estes propsitos foram instrumentalizados, acabando por fragilizar uma certa promessa das Cincias da Educao de reconstruo do campo educativo em torno de racionalidades comunicacionais, crticas e emancipatrias.

    A possibilidade de (re)inventarmos a emancipao social enunciada a partir da prpria modernidade. O cenrio da modernidade tardia (Giddens, 1994a) envolve um quadro compsito de dimenses complexas e de tenses que exigem o abandono da crena no desenvolvimento harmonioso e dinmico do projecto da modernidade. As preocupaes em torno do desenvolvimento equilibrado, ou mesmo dos (des)equlibrios ou das rupturas, passam-se a acentuar e a intensificar o desenvolvimento, diferenciado das esferas sociais e em simultneo, dos princpios e racionalidades antes mais negligenciados, e agora vistos como mais capazes para encetar novos modelos de desenvolvimento. O desenvolvimento pretendido extremamente complexo e sujeito a contradies, percursos irregulares e desequilibrados, mas tambm capaz de infinitas possibilidades. Queremos com isto dizer que uma das virtualidades do nosso tempo a possibilidade de exigirmos e aceitarmos a presena simultnea de lgicas contraditrias, valorizando ou identificando o que de mais positivo ou negativo cada uma nos possa oferecer, ou seja, promovendo a simultaneidade das lgicas at agora em oposio. Vivemos a hibridez dos tempos, a incerteza e a crise, a influncia recproca da vida social e pessoal, a subjectivao. um tempo desafiador, um tempo radical que exige uma nova recombinao social.

    Sousa Santos (2000) considera que as sociedades e as culturas contemporneas esto em transio paradigmtica, isto , encontram-se em trnsito do paradigma da modernidade, cuja falncia parece evidente, e um outro paradigma emergente. Para o autor, esta transio tem uma dimenso epistemolgica e outra dimenso social. A primeira refere-se tenso entre o conhecimento regulao (o paradigma dominante da cincia moderna) e o conhecimento emancipao (que caracteriza sucintamente como um conhecimento prudente para uma vida decente). Na dimenso societal, a

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    transio realiza-se no abandono da sociedade patriarcal de produo e consumo capitalista e de uma democracia de desenvolvimento frgil que pouco participada e reproduz desigualdades.

    Correia (1998) reala a existncia de um consenso alargado sobre a extenso da crise aos vrios nveis societais e, particularmente e de modo profundo, ao nvel do mundo educativo. Contudo, alerta que esse consenso deixa de ser unnime quando se estende a crise ao modo de pensar cientificamente a educao. Acentuando a ideia de que a crise da modernidade educativa resulta de uma crise das modernas modalidades de se pensar e praticar a educao, partindo da crise, prope uma digresso sustentada numa epistemologia da controvrsia e da escuta.

    Por seu lado, tambm Dubar (1997; 2006)1 comea por definir a crise como fase difcil gerida por um grupo ou indivduos, constri a sua argumentao centrando-se na relao entre a crise das relaes sociais e as crises existenciais do sujeito e desenvolve uma viso antropolgica, sustentando que este tipo de crise afecta, em simultneo, os comportamentos econmicos, as relaes sociais e as subjectividades individuais. No prefcio da obra, Correia (2006) diz-nos que o autor, apoiado nas contradies e conflitos sociais da modernidade nos seus vrios domnios (econmico, social e poltico), analisa as relaes entre a crise da modernidade e a crise das identidades.

    Por sua vez, Lopes (1999) comea por constatar como as crises das relaes sociais modernas so o ncleo estruturante para analisar as crises de identidade, e para estudar e aprofundar as crises das identidades docentes.

    Com estes autores, fomos olhando e definindo os processos de crise instalados nas sociedades modernas essencialmente nestas ltimas duas dcadas. Referiremos os que foram mais estruturantes e organizadores do nosso pensamento. Em geral, sobre a crise (e de acordo com as leituras efectuadas), podemos afirmar e defender que a modernidade nos seus vrios domnios produziu contradies estruturais, incertezas e conflitos sociais, mas

    1 Neste ltimo trabalho demonstra a propsito da construo das identidades pessoais, sociais e profissionais a crise das identidades que entende como devedora das alteraes das sociedades nos diferentes campos: familiares, relaes de gnero, de trabalho, profisses, religioso, poltico e institucional.

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    tambm crises subjectivas e pessoais. Vivemos um tempo e um contexto de crise da modernidade cujos mitos fundadores j no nos satisfazem e em que no encontramos outros de substituio. Vivemos no paradoxo, na hibridez e nas realizaes contraditrias, incertas e flexveis. Esta dinmica da crise exacerba o carcter paradoxal da conjuntura social e pessoal: acentua, por um lado, o fim das metanarrativas e das certezas estruturantes e, por outro, abre um conjunto de questionamentos e novas interpretaes heursticas. A mesma dinmica tambm permite perceber o que se joga na crise e quais os mecanismos para a superar, pois todas as crises transportam possibilidades de superao (ainda que, por vezes, radicais).

    Em geral, a comunidade das Cincias da Educao vem afirmando que a crise da escola (a par de outras crises: a da modernidade, a das metanarrativas, a das sociedades, a da educao, a dos professores, a dos jovens) , antes de mais, a expresso de um desajustamento do seu modelo organizacional (que secular) s caractersticas do momento da modernidade em que nos encontramos. Baseando-nos na premissa de que a escola e a autonomia so invenes modernas, consideramos que estes desajustamentos se materializam em dois pontos fulcrais: os nossos tempos exigem uma escola para e de todos que seja capaz de respeitar, atender e ter sentido para cada um; a escola, em nome da igualdade, da justia e da expanso, seleccionou, estratificou e excluiu, e a emergncia da escola foi desenhada para ensinar a todos como se fossem um s.

    De facto, consideramos que, na crise da escola, se encontra essencialmente um sentido pedaggico e organizacional, na medida em que se mantm a forma escolar como um modo de organizao em que imperam a ordem e a burocracia, o que contribui para que a escola no satisfaa o mandato de democratizao de uma escola de massas. E apesar de reconhecermos a existncia de alguns esforos e reformas com intuitos generosos, o certo que se agravam as situaes de conflito e injustia, quer para professores, quer para alunos.

    A educao, e mais especificamente a escola, acompanham as mudanas e as controvrsias do mundo social moderno. A escola enfrenta a modernidade no seu espao institucional, ou seja, na sua dimenso

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    organizativa e na sua especificidade relacional, enquanto contexto de pessoas professores, alunos, funcionrios, comunidade que interagem individual e colectivamente e que espelham diferentes dimenses e tempos da modernidade.

    De certo modo, parte da crise da escola e do ensino reflecte a natureza anacrnica da escola e o tipo de solues preconizadas; segundo Hargreaves (1998: 27), As escolas e os professores ou se agarram a solues burocrticas de tipo modernista (mais sistemas, mais hierarquias, mais mudanas impostas, mais do mesmo), ou retrocedem nostalgicamente em direco a mitos pr-modernos de comunidade, de consenso e de colaborao [...]. As escolas espelham esta co-presena de lgicas, aparentemente contraditrias e ambivalentes, de registos pr-modernos, modernos e ps-modernos, acentuando, medida que o tempo passa, este hiato entre o mundo da escola e o que existe para alm dela [...] (ibidem).

    Na narrativa da modernidade, a autonomia concebe-se subjacente a ideais de liberdade, autoridade e respeito, e considera-se intimamente ligada democracia, no sentido da proximidade dos actores ao poder: no h autonomia da escola sem o reconhecimento da autonomia dos indivduos que a compem. Ela portanto resultado da aco concreta dos indivduos que a constituem, no uso das suas margens de autonomia relativa (Barroso, 1997: 20).

    Todavia, na anlise das organizaes modernas, a pertinncia e a singularidade do discurso da autonomia atinge uma maior centralidade, fazendo emergir os conceitos de liberdade, independncia, subjectividade e potencial humano. O conceito, por sua vez, tem um carcter, nas sociedades modernas, polissmico, atravessado por uma simultaneidade de lgicas contraditrias, ambguas e de difcil interpretao.

    Este trabalho, (D)Enunciar a Autonomia, centra-se nos discursos da autonomia e o seu principal objectivo estudar e perceber a gnese da autonomia no microcosmos escolar; trata-se, concretamente, de compreender o processo de gnese e de implementao do modelo de autonomia na escola pblica decorrente da aplicao do Decreto-lei n 115-A/98, indagando sobre as possibilidades de uma agncia humana capaz.

  • (D)Enunciar a Autonomia

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    No fim da dcada de 1990, instalou-se um discurso forte e retrico, emanado pela administrao central, sobre a autonomia e a governao da escola, que favoreceu um alargado debate na sociedade, na escola e nos professores, quer atravs dos rgos de comunicao social e dos sindicatos, quer da comunidade das Cincias da Educao, dos investigadores e dos professores em geral.

    Numa primeira fase, tentmos escutar as diversas ideias e perspectivas e vises e preocupaes paradoxais. Percebemos que, apesar da novidade que a autonomia poderia representar para a escola portuguesa de larga tradio centralista, as pessoas falavam da autonomia com muita proximidade e conhecimento, ainda que sobre ela apresentassem vises dspares e aplicaes contraditrias. Os discursos pautavam-se por vrios exageros e alertas ambguos, criando-se aos poucos um clima de progressiva instabilidade e desconfiana. A autonomia surgia com um carcter simultaneamente simples e complexo. Estas observaes levaram-nos a pensar que existia nas pessoas uma representao sobre a autonomia sujeita sua prpria experincia de desenvolvimento humano e, portanto, pessoal e subjectiva, representao essa que, aplicada escola, se traduziria num desenvolvimento crsico da autonomia. Deste ponto de vista tnhamos na prpria gnese da autonomia a sua crise. Esta passou a ser a nossa primeira base de indagao: a gnese e a crise da autonomia sero simultneas?

    A autonomia era representada de acordo com um certo conhecimento pessoal, representao aplicada realidade social e escolar. Estas intimidade e familiaridade geravam ento retricas em que se perdiam oportunidades de questionamento, e ao mesmo tempo, e paradoxalmente, acentuavam-se os sentimentos de incerteza e descontrolo nos diversos contextos de aco.

    A crise espreitava e fazia-nos tambm perguntar sobre as relaes da autonomia com o projecto da modernidade em crise, levando-nos s trs primeiras perguntas que nos conduziram na pesquisa: Ser a autonomia moderna? Ser simultnea a gnese e a crise da autonomia? A agncia humana assume um lugar central no desenvolvimento da autonomia?

    Enunciar o conceito de autonomia e compreend-lo permitiria avanar com as indagaes. Comemos (como j o dissemos) por orientar o nosso

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    estudo, perscrutando uma pliade de autores que referiam a crise nos seus trabalhos. Estas primeiras ideias levaram-nos pelos meandros da modernidade e pelas definies de crise aplicadas aos mais diversos sectores.

    O nosso propsito de partida foi ento, o de tentar compreender a dimenso do compromisso na autonomia, entendendo a autonomia enquanto processo, vivncia e poltica de vida. Nas palavras de Freire, a autonomia amadurecimento do ser para si, processo, vir a ser. No ocorre em data marcada. neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experincias estimuladas de deciso e de responsabilidade, vale dizer, em experincias respeitosas de liberdade. (Freire, 1997a: 121).

    Por isso, ns no nos baseamos tanto num olhar administrativo, financeiro ou cientfico sobre a autonomia, mas essencialmente nas dinmicas pessoal e intersubjectiva para que aponta o conceito. Consideramos, no entanto, e de acordo com Freire, que Ningum autnomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai-se constituindo na experincia de vrias inmeras decises, que vo sendo tomadas (1997a: 120). A ideia de co-responsabilizao dos grupos envolvidos tornou-se central ao aprofundamento do nosso trabalho. Queramos salientar a presena, o agir dos actores, ou seja, a agncia humana que, na sua busca inconclusiva e identitria, fosse capaz de nos levar pelos meandros da autonomia. A agncia humana que (tambm) salientada pelos professores, que frequentemente referem os recursos humanos as pessoas na organizao escola como fundamentais ao desenvolvimento de verdadeiras prticas de autonomia.

    Com este estudo, pretendemos captar o processo de gnese e construo social da autonomia na escola secundria, na tentativa de desocultar a presena simultnea de lgicas emancipatrias e regulatrias na forma como os actores (agentes) sociais percepcionam e desenvolvem o projecto de autonomia e como desenham o contexto autonmico e de identificar os princpios de aco, de agir individual ou social que nele se fazem sentir.

    Trs afirmaes assumiram o estatuto de hipteses:

  • (D)Enunciar a Autonomia

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    - No processo de implementao do projecto de autonomia em Portugal, as lgicas emancipatria e regulatria coexistem, como duas faces de uma mesma moeda;

    - A gnese da autonomia encerra a sua prpria crise; - O processo de construo social da autonomia desenvolve-se num

    contexto de interdependncias e de aco colectiva organizada em que a agncia humana assume um lugar central.

    De um modo especfico pretendamos:

    - Esclarecer e reflectir sobre o processo de implementao do Decreto-lei n 115-A/98 no contexto poltico da educao escolar portuguesa;

    - Estudar e conhecer, por dentro, o processo de (gnese e) construo da autonomia na escola secundria atravs de um estudo de caso (tipo observacional e descritivo) de uma escola 3/SEC, realizado a partir da observao do quotidiano escolar (durante o primeiro trinio da implementao da autonomia) e, essencialmente, dos momentos de deciso e de reunio dos rgos de direco e gesto da escola: Conselho Executivo (CE), Conselho Pedaggico (CP) e Assembleia de Escola (AE);

    - Identificar e reconhecer as lgicas que so ou no reforadas no processo de desenvolvimento e exerccio da autonomia das escolas;

    - Compreender o impacto do modelo de autonomia, a crise ou o fracasso, a limitao ou o aprofundamento.

    Ancorados num paradigma qualitativo e numa perspectiva fenomenolgica, procuramos com o nosso estudo dar conta da compreenso interpretativa que subjaz diversidade de interaces humanas no contexto escolar que se assume a implementar a autonomia. Convocmos por isso o interaccionismo simblico (IS), cujos principais percursores foram Mead (1962) e Blumer (1982), que focaliza a ideia de mediao da experincia humana atravs da interpretao.

    So trs as premissas do interaccionismo simblico: a primeira a de que as pessoas orientam os seus actos de acordo com o significado que lhes

  • Introduo Geral

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    atribuem; a segunda define a interaco social que cada um mantm consigo e com o outro ou outros como determinante do significado das coisas; a terceira expe que os significados mudam em funo do processo interpretativo desenvolvido pela pessoa e pela sua interaco com os outros e com as coisas.

    O interaccionismo simblico assume radicalmente a interaco humana, entendendo-a (como sociedade) como processo dinmico de construo social, em que as pessoas em aco interagem de modos imprevisveis e complexos, construindo e interpretando (percebendo) os seus mundos de vida e a sociedade. A abordagem valoriza o agir, o criar activamente da pessoa humana e os processos interaccionais realizados num determinado contexto, razo pela qual nos pareceu profundamente pertinente para os objectivos da nossa pesquisa.

    Este trabalho est estruturado em trs partes, o Pretexto, o Texto e o Contexto. A primeira, o Pretexto, pretende dar conta das motivaes e das preocupaes iniciais que nos moveram para esta problemtica e engloba os Captulos I e II da tese onde conceptualizamos os meandros da modernidade e da autonomia (desde quando, aonde e como), os princpios, a polissemia, a ambiguidade e os entendimentos sobre os conceitos. A segunda, o Texto, diz respeito essencialmente configurao de um quadro de referncia terico capaz de articular, integrar ou combinar o Pretexto e o Contexto. Trata-se da chegada a um olhar possvel e textualizado para a anlise de uma realidade especfica da escola, que conta com os contributos dos Captulos III e IV, em que contextualizamos a escola e a autonomia nas perspectivas organizacionais e da aco comunicacional e na poltica educativa. A ltima parte, o Contexto, constituda pelo Captulo V, relativa ao trabalho emprico realizado numa escola secundria e evidencia o processo de gnese e implementao das prticas inspiradas pelo projecto de autonomia.

    Se o pretexto e o texto enunciam olhares caleidoscpicos das autonomias, o contexto denuncia a autonomia crsica e permite encontrar um quadro poltico de anunciao de um novo agir autonmico que referimos como autonomia sensata.

  • (D)Enunciar a Autonomia

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    No Captulo I, partimos do pressuposto de que a autonomia se desenvolve a par dos ideais da modernidade, e portanto, como tal, de que a autonomia moderna. Percorremos o processo de modernidade nos pontos de vista histrico, filosfico, cientfico, organizacional e da educao, dando conta da metanarrativa da modernidade. Definimos a modernidade nos diversos domnios atravs de uma argumentao dialgica e poltica. Evidenciamos a perda das metanarrativas, assumindo a fragmentao e a pluralidade da modernidade. Consideramos a modernidade tardia no s como um tempo de transio paradigmtica mas tambm um tempo de recomposio ou recombinao paradigmtica. Quanto autonomia, anuncimo-la nas dimenses epistemolgica, pessoal, filosfica e social. Conclumos com um quadro sinptico das dimenses e dos princpios de autonomia que sustentam e justificam o uso neste trabalho do termo no plural: autonomias.

    Articulamos, ainda, os momentos da modernidade e as autonomias, reflectindo os ideais que lhes so subjacentes e identificando em cada um a representao de autonomia.

    No Captulo II, caracterizamos os princpios de autonomia, de regulao e de emancipao em sentido geral, na Educao, e especialmente na Escola. Damos conta das tenses paradoxais entre os conceitos e apresentamos uma leitura complexa que valoriza a presena simultnea de lgicas contraditrias, quer nos discursos, quer nas aces e decises. Por sua vez, apresentamos e reflectimos sobre os princpios de autonomia, de emancipao e de regulao para a escola, de acordo com a proposta regulamentar de governao da escola.

    Discutimos a autonomia em e por relao com estes conceitos e acabamos propondo um dilogo conceptual entre a Autonomia, a Auto e Hetero Regulao e a Emancipao. Por ltimo, analisamos as peripcias do conceito de autonomia propondo e articulando novas definies e perspectivas de autonomia: autonomia requentada, quase autonomia, autonomia redonda, autonomia crsica e autonomia sensata.

    No Captulo III, privilegiamos um olhar informado pelos contributos da investigao na perspectiva das Teorias da Organizao e da Comunicao. Sobre as primeiras, traamos o impacto dos estudos da administrao

  • Introduo Geral

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    educacional e de uma sociologia e de uma psicologia social das organizaes. Ser com o entendimento da escola enquanto organizao social (educativa) complexa e multifacetada mas especfica que estudaremos o processo de construo social do projecto de autonomia. Tentamos realar a panplia possvel de abordagens escola no domnio organizacional, reconhecendo que, consoante o enquadramento que faamos, obteremos para a escola um determinado modelo compreensivo (explicativo) e um tipo de metfora ou imagem diferente. Acentuamos, fundamentalmente, os contributos e as principais dimenses dos modelos: burocrtico, poltico, de ambiguidade e cultural.

    Desenvolvemos uma mesoabordagem escola como contexto organizacional, e de comunicao e interaco social. Definimos, ento, a escola como a oficina do Homem a fazer-se (Grcio, 1995) e analisamos a organizao escola no mbito sistmico e contextual da comunicao e da interaco social. Nesse mbito, importam-nos as pessoas e os seus processos comunicacionais e relacionais (quer organizacionais, quer interpessoais).

    Realamos, na escola, uma viso interaccional que se assume como possibilidade de humanizao das relaes humanas. Valorizamos um entendimento centrado nas aces dos indivduos, nos seus interesses, nos seus pontos de vista, nas suas estratgias, num dado sistema concreto de aco, com um sentido Freireano de praxis dialgica, de conflito e negociao seguindo Crozier e Friedberg (1977) ou, ainda, com Ribeiro (1991a, 1992), relacional e de poder social, onde se aprofunda o estudo sobre a agncia humana.

    Estudamos os paradoxos e a diversidade de lgicas de aco presentes na escola, bem como as representaes sociais de autonomia, e tratamos de (re)criar o autor em cooperao e solidrio numa escola mais democratizadora (Touraine, 1998).

    Neste mbito, evidenciamos a importncia, nas organizaes, das dinmicas de interaco, dos (micro) poderes e das influncias, da dependncia autonmica relativamente agncia humana, isto , realamos

  • (D)Enunciar a Autonomia

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    que, na escola, o recurso (agente) so as pessoas que diariamente so e fazem a escola e constroem a autonomia.

    No captulo IV, aps reconhecermos a importncia, em Portugal, dos avanos democrticos (do final da dcada de 60 e a dcada de 70) que originaram novas reformas na escola e na Educao, partimos da conjuntura poltica da educao de implementao do modelo de gesto e autonomia da escola pblica (Decreto-lei n 115-A/98 modelo de governao da escola) e tratamos de analisar, definir e compreender como se processa a emergncia do projecto de autonomia na escola (a gnese). Por um lado, enquadramos o desenvolvimento da gesto democrtica at ao regime de autonomia (analisando o prprio decreto e comparando-o com outros documentos). Por outro lado, clarificamos a polissemia do conceito de autonomia, identificando equvocos, representaes ou possibilidades de mudana, (re)politizao e acentuao de poderes (regulatrios ou emancipatrios) na escola na assuno do desenvolvimento de uma prtica educativa autnoma concretizada por sujeitos participativos (nas aces e nas decises individuais e colectivas). Concentramo-nos nos poderes da autonomia (reguladores, desreguladores e emancipadores) e nas lgicas presentes na escola. Estudamos a dimenso poltico-administrativa da autonomia, apresentando tendncias e possibilidades de (re)politizao da escola.

    No captulo V, atravs da oportunidade emprica, evidenciamos o (D)Enunciar da autonomia (Enunciar/Denunciar/Anunciar). Apresentamos o estudo emprico, situado no paradigma qualitativo e concernente a um estudo de caso. Fundamos o percurso e as opes, contextualizando e caracterizando a escola secundria e o discurso directo dos que governam a escola, enfatizando o olhar dos professores e as suas representaes sociais sobre a autonomia da escola pblica. Procuramos dar escola e aos actores a centralidade devida, apresentando os diferentes momentos da construo social da autonomia. Paradoxalmente, apresentamos a autonomia a (des)fazer-se, conta-se o fracasso, a alienao, a perda, assumindo o processo crsico e o dever de autonomia que se instalou na escola pblica como a implementao da autonomia crsica.

  • Introduo Geral

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    O entendimento que fazemos (e enunciamos) sobre a gnese do processo de autonomia faz-nos equacionar dimenses paradoxais que nos levam a (re)pensar a autonomia da escola pblica como a lenda da esttua com ps de barro. A nossa ideia, na utilizao desta imagem, prende-se com este estudo sobre a gnese da autonomia, em que estudamos (observamos) a presena simultnea e contraditria de diferentes lgicas no desenvolvimento do projecto, que geram, nos sujeitos de aco, uma ambiguidade de significado de difcil interpretao e de conotao problemtica. Da esse mito da oponncia categrica de conceitos que dependem e/ou de que depende a realizao de horizontes humanos.

    Realamos a centralidade de uma agncia humana, para finalmente apontarmos as foras que emanam do interior da escola e as exigncias do conceito de autonomia que, na sua realizao, exige conhecimento, liberdade, responsabilidade e vontade. Por ltimo, assumimos a centralidade de uma pedagogia da autonomia crsica.

    A construo desta pesquisa foi efectuada num constante vaivm entre a teoria e a empiria e atravessada por um longo perodo de estudo, de pesquisa e de reflexo. Para a execuo final deste trabalho tivemos que proceder a um esforo de organizao que se traduz na estruturao da problemtica em captulos. Assumimos, no entanto, a sua instabilidade e a possibilidade de outras combinatrias.

    Nas consideraes finais (e dado que o nosso estudo relativo a um tempo eleito de esperana), apresentamos uma viso caleidoscpica da autonomia em que se salienta a retrica inoponente do conceito de autonomia (demasiado forte e possvel) em contraste com o horizonte das suas prticas (humanas) difceis, controversas, polticas, imprecisas e tendencialmente frgeis , contraste que acentua a autonomia crsica da escola pblica ou a autonomia da escola pblica como a lenda da esttua com ps de barro (Ferreira, 2004).

    Neste estudo, tentamos, sem dvida, aprofundar a problemtica da autonomia. Este trabalho permitiu-nos desenvolver um conjunto de reflexes e de interrogaes que nos permitia comear por enunciar e em seguida

  • (D)Enunciar a Autonomia

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    denunciar a autonomia para que, a partir da compreenso e da reflexo da gnese da autonomia na escola pblica secundria, possamos discuti-la no mbito da consolidao simultnea da gnese crsica da autonomia. Ser este paradoxo que nos permitir anunciar outra(s) autonomia(s) sensata(s).

    Certamente, a reflexo demonstra a nossa implicao em construir uma escola tendencialmente mais democrtica e dos sujeitos (da agncia humana, isto , das pessoas, para as pessoas e com as pessoas) e, nesse sentido, exige-se a compreenso e o aprofundamento necessrio do compromisso das autonomias na escola, sintetizado no (D)Enunciar a Autonomia e no argumento da educao da autonomia crsica, pois a radica a autonomia da escola como um hbito que se adquire, se apre(e)nde, atravs do conhecimento, da liberdade, da responsabilidade e da vontade.

    Neste meandro, fazemos uma sntese interpretativa da autonomia crsica autonomia sensata, onde pretendemos discutir a autonomia como uma soluo e no como um problema. Alis, esta perspectiva possui algumas vantagens, inevitvel em muitas circunstncias, e ser um modelo a seu tempo obrigatrio na escola. No entanto, a autonomia sensata , desse ponto de vista, entendida como uma mudana radical. Logo, precisamos de questes radicais: para que serve a autonomia sensata? Em que difere da autonomia crsica ou de outras formas de autonomia? Qual a sua especificidade?

  • I PARTE O PRETEXTO

  • CAPTULO I

    MODERNIDADE E AUTONOMIA(S)

  • Captulo I. Modernidade e Autonomia(s)

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    Introduo

    A articulao entre a Autonomia e a Modernidade resulta da associao do desenvolvimento do conceito de autonomia com o nascimento da modernidade.

    Esta ideia de uma ligao entre a autonomia e a modernidade faz-nos levantar a questo: ser a autonomia moderna?

    Entre as promessas iniciais que contamos da modernidade revela-se o ideal de autonomia dos homens, ainda que, e em ltima anlise, se mantenha incapaz a sua realizao. Este modo de abordagem leva-nos a explicitar o que entendemos por modernidade e por autonomia e, para alm da articulao e das diferentes perspectivas encontradas, admitimos que este conceito atinge outra centralidade no desenvolvimento das sociedades modernas, espelhando novos constrangimentos e tenses medida que nestas sociedades se expandem as organizaes.

    Neste captulo, apresentamos o processo de modernidade nos domnios da histria, da filosofia, da cincia, da teoria das organizaes e da educao. Caracterizamos a metanarrativa da modernidade. Desenvolvemos a autonomia nas dimenses epistemolgica, pessoal, filosfica e social. Conclumos com um quadro sinptico de apresentao de dimenses e princpios de autonomia e com a articulao dos momentos de modernidade e as autonomias.

    1. Processos de Modernidade

    Recorrendo ao Dicionrio de Sociologia (1990), a modernidade designa, simultaneamente, um perodo da histria humana e um conjunto de fenmenos que a caracterizam, cujo lugar de aparecimento a Europa. Na definio dos seus traos decisivos e do momento do seu aparecimento encontramos algumas divergncias e diferentes perspectivas.

  • (D)Enunciar a Autonomia

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    Para uns, o seu incio ocorreu por volta do sculo XVI inaugurando uma nova era, a ps-antiguidade. Para outros, a sua ligao faz-se ao sculo XVII e deve-se ao aparecimento da cincia e da filosofia poltica contratual. Ainda para outros, a sua emergncia ocorre no sculo XVIII, com a Filosofia Iluminista, a par da industrializao e dos ideais revolucionrios que nos levam at princpios do sculo XIX, ao triunfo da cincia, da tcnica, do progresso e do capitalismo industrial.

    Quer no domnio poltico1, quer no religioso, a modernidade apresenta traos estveis respectivamente de instaurao de polticas de desenvolvimento europeu, de distino entre pblico e privado e do desenvolvimento de registos democrticos, a par de uma tendncia para a laicizao.

    Por sua vez, na economia moderna reconhece-se um crescimento exponencial de saber racional, inspirado pelo progresso, pelo esforo das tcnicas de produo e de distribuio, de grande eficcia. Economicamente, a modernidade prometeu a eficcia e a eficincia, a produtividade e a prosperidade.

    Estes traos tornam-se decisivos e de grandes repercusses sobre todos os aspectos da nossa condio social e humana. No entanto, quando se trata de atribuir isoladamente um ou diversos factores da modernidade, a unanimidade de opinies cessa. Para uns foi determinante a cincia (Comte), para outros a indstria ou o capitalismo (Marx), para outros ainda, a racionalizao (Weber). De facto, e de acordo com estes pontos de vista, vo-se desenvolvendo diferentes argumentos e teorias.

    Neste contexto, a modernidade sofre de contestao quer pela nomenclatura, quer pela periodizao, quer mesmo pela unicidade e traos dominantes. A modernidade muito mais que um novo olhar, uma nova etapa no desenvolvimento humano em geral.

    Na sua pluralidade de caractersticas dominantes, a modernidade reconhecida e assenta em ideais que remontam Histria e s crenas da Filosofia das Luzes.

    1 Politicamente, a modernidade prometeu um Estado forte e a consolidao de um Estado Nao militarizado e providencial.

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    Neste registo, comeamos por apresentar o processo de modernidade tendo em conta alguns dos contributos e articulaes provenientes dos domnios da Histria, da Filosofia, da Cincia, da Organizao e da Educao.

    1.1. A Modernidade no Domnio da Histria, da Filosofia, da Cincia, da Teoria das Organizaes e da Educao

    Atendendo ao domnio histrico, a referncia modernidade aparece-nos em expresses como: novos tempos, tempos modernos, mundo novo. Como refere Habermas2 (1998: 17), A descoberta do Novo Mundo bem como o Renascimento e a Reforma os trs grandes acontecimentos volta de 1500 constituem a transio epocal entre a Idade Moderna e a Idade Mdia.3

    Neste trabalho, e como base de reflexo, consideramos a Reforma, o Iluminismo e a Revoluo Francesa (1789) para o nascimento dos tempos modernos. No entanto, salientamos como motor da evoluo a revoluo intelectual, moral e todos os seus componentes demogrficos, sociais, econmicos, tcnicos e cientficos, pois s com esta complexidade e pluralidade de factores faz sentido o discurso em torno da modernidade. neste quadro compsito de conceitos dinmicos, que nos acompanham at hoje (de crise, de revoluo, de desenvolvimento, de progresso e de emancipao) que se inserem as novas realizaes da sociedade, emergentes da conquista de relaes sociais.

    De acordo com o pensamento de Giddens (1996: 1), [...] o termo modernidade refere-se a modos de vida e de organizao social que emergiram na Europa cerca do sculo XVII e que adquiriram subsequentemente, uma influncia mais ou menos universal. De facto, a

    2 Habermas apresenta-nos neste trabalho as origens filosficas da era moderna, apontando novos contornos para as tenses e os conflitos contemporneos.

    3 Segundo o mesmo autor, o filsofo Hegel utilizava nas suas aulas esta nomenclatura para referir os tempos no mundo. Hegel comeou por utilizar o conceito de modernidade em contextos histricos como conceito epocal: os novos tempos so os tempos modernos (in Habermas, 1998: 16). tambm com estas expresses que Hegel, nas suas lies de filosofia da histria, define os limites do mundo germano-cristo sado, por seu lado, da antiguidade greco-romana. (ibidem).

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    presena da temporalidade, do espao geogrfico esto presentes na definio.

    O incio do novo milnio (sculo XXI) traz consigo o desejo de novas realizaes e a nostalgia dos balanos e das anlises retrospectivas do nosso viver social. Alis, podem considerar-se os problemas humanos (ser, mudar e transformar as relaes pessoais e sociais e querer viver juntos) como um dos principais desafios actuais. No entanto, o desnimo, o pessimismo, a angstia so pressentidos face ao incumprimento das promessas consideradas relevantes para as nossas vidas, como o sublinha Fukuyama4 (1999: 27): o sculo XX, pode-se diz-lo, fez de todos ns profundos pessimistas histricos, na medida em que no nos possvel ignorar os dramticos acontecimentos do sculo, nomeadamente as duas guerras mundiais, a emergncia de Estados totalitrios e fascistas, e o desenvolvimento de uma cincia nefasta quer do ponto de vista ambiental quer sob a forma de armas nucleares. nesta conjuntura que assistimos desumanizao da sociedade, ao regresso do individualismo desenfreado, ao retorno do indivduo associal, competitivo, destruidor, perda de regalias sociais fundamentais e emergncia de um capitalismo desorganizado mas glorioso na sua lgica de mercado e na sua influncia na (re)estruturao social e econmica na base do consumo, reclamando prazer imediato e efmero, apontando no homem unicamente o seu aspecto econmico.

    Nesta perspectiva, Dalai-Lama (1999: 12) observa, na anlise da sociedade moderna e na demanda da felicidade, que aqueles que vivem em pases materialmente desenvolvidos apesar da industrializao, se sentem mais insatisfeitos. De facto, h no mundo ocidental, nos pases mais ricos, uma retrica de hipervalorizao da economia para o bem-estar geral. Mas Este paradoxo pelo qual o sofrimento interior podemos dizer o psicolgico e o emocional se encontra muitas vezes no seio da riqueza, est patente no Ocidente (ibidem: 13). A sociedade impe-nos o logro da felicidade humana na

    4 Fukuyama, neste trabalho, regressa a questes filosfico-histricas do passado: qual o sentido e a direco que segue a histria da humanidade?, apresentando como resposta duas lgicas poderosas, uma a lgica da cincia moderna e a outra a luta pelo reconhecimento. Esta segunda lgica assenta na ideia de Hegel e a sua filosofia social de que para ter valor para mim prprio tenho de ter valor para os outros (Blackburn, 1997: 200).

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    conquista do bem-estar material e no poder do conhecimento; no entanto, a felicidade nasce do desenvolvimento interior e no depende de factores exteriores (ibidem: 15).

    Se, por um lado, estas mudanas sociais evidenciam a competitividade e a economia capitalista, afectando o sistema mundial e influenciando o pensamento humano, por outro acentuam um desejo humano comum de se ser feliz e evitar o sofrimento. Como o refere o Grupo de Lisboa5 (1994: 17), O mercado concorrencial no tudo, no pode impor a sua lgica a outras dimenses humanas e sociais principalmente quando finge ignor-las. Nem todas as mercadorias esto disponveis no mercado concorrencial.

    Portanto, e apesar da evidncia e da fora da economia, impem-se limites estruturais aos desgnios humanos, s questes familiares, s relaes sociais, ao desenvolvimento ambiental, comunidade e democracia. O que em certa medida leva este Grupo a considerar possvel cumprir o desejo da partilha de uma experincia comum, deixando de lado as conquistas hegemnicas, tendo em vista uma lgica conciliadora de perspectivas de eficincia econmica, justia social e democracia poltica, fazendo-os afirmar como sua responsabilidade conjunta mobilizar o engenho humano para servir prioritariamente as necessidades bsicas e as aspiraes da populao mundial. (ibidem: 23).

    So de algum modo tambm estas ideias que levam Fukuyama (1999: 14) a questionar Se, no final do sculo XX, faz sentido para ns falar, uma vez mais, de uma histria da humanidade, coerente e direccionada, que eventualmente conduzir a maior parte da humanidade para a democracia liberal. Reacende-se ento o debate em torno do homem e da felicidade humana, demonstrando a incompletude de um olhar que se feche na perspectiva econmica. Deste modo, apresenta-nos uma considerao que procura recuperar a totalidade do homem, e no apenas o seu aspecto econmico (ibidem: 17). O que vem realar novamente as particularidades do

    5 Este ttulo Grupo de Lisboa um nome relevante para Portugal dado tratar-se de um grupo composto por membros do mundo tridico (Japo, Amrica do Norte, Europa Ocidental) que inicia os seus trabalhos conjuntos em Lisboa, em 1992. O seu nome possui, assim, o simbolismo de revelar Portugal pela sua histria: os 500 anos de Descoberta, isto , o 5 centenrio da Descoberta do Novo Mundo (Ptria da Era dos Descobrimentos).

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    ser humano, isto , a sua vontade de prestgio, de dignidade, de valor, de reconhecimento, fazendo-nos regressar a Hegel6 e ao no materialismo histrico ou ainda complexidade do ser humano, da sua personalidade, as suas atitudes e contradies, os seus desejos e as suas razes.

    Nas palavras de Lopes (2001: 33), De facto, a modernidade confecciona uma sociedade atravs de uma epistemologia hegemnica que, naturalizando o social como objectiva o natural, des-humaniza, des-naturaliza o humano, definindo todo o homem atravs de uma s das suas partes e apenas alguns homens (e raramente as mulheres) como homens.

    So estes tempos de crise e mudana e de contradies em que a vida social e a cincia procuram novas relaes, que se intensificam confrontos entre velhos e novos paradigmas; entre os velhos pressupostos das teorias clssicas e este perodo intervalar em que, parafraseando Sousa Santos (2000), admitimos a perspectiva de uma sociedade em transio7 paradigmtica; ou seja, atravessamos um tempo de transio entre a instabilidade, a ambiguidade, a complexidade do presente e a incerteza, a subjectividade e a esperana num tempo que se avizinha. Nas palavras de Sousa Santos (1998: 6), Tal como noutros perodos de transio, difceis de entender e de percorrer, necessrio voltar s coisas simples, capacidade de formular perguntas simples, perguntas que, como Einstein costumava dizer,

    6 Hegel, em 1807, iniciou os seus trabalhos de construo de um Sistema de Filosofia em que questionou a cincia, o sujeito e evidenciou o carcter sempre histrico e cientfico da filosofia, desenvolvendo assim a complexa obra de dois volumes, Fenomenologia do Esprito, procurando neste trabalho uma lgica que articulasse as figuras de sujeito, de conscincia, com o mundo objectivo, ou seja, o discurso cientfico; evidenciamos parte destas suas intenes e da sua complexidade nestes dois pequenos excertos (Hegel, 1997: 67): A srie de figuras que a conscincia percorre nesse caminho , a bem dizer, a histria detalhada da formao para a cincia da prpria conscincia, ou ainda mais especificamente, A razo apela para a conscincia-de-si de cada conscincia: Eu sou Eu; o Eu o meu objecto e a minha essncia, e nenhum lhe negar essa verdade. (ibidem: 154-155). Por sua vez, se atendermos a Althusser (1979: 133), ficamos a dever a Hegel a concepo da histria como processo; contrariando uma ideia antropolgica em Hegel da histria, este autor revela que Para Hegel, a Histria um processo de alienao, mas este processo no tem o homem por sujeito. Na Histria hegeliana no se trata do Homem, mas essencialmente do Esprito [...].

    7 Alis, a ideia de transio de variao em Hegel possibilitou a dialctica do Iluminismo e ao mesmo tempo colocou no nvel filosfico a histria contempornea. Como o refere Habermas, Hegel ps o eterno em contacto com o transitrio, o intemporal com o actual e, deste modo, transformou radicalmente o carcter da filosofia (1998: 57).

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    s uma criana pode fazer mas que depois de feitas, so capazes de trazer uma luz nova nossa perplexidade.

    Este apelo inquietante do autor ao levantamento de questes, este modo de analisar estes tempos incertos, de algum modo alarga e retoma a discusso do homem e a sua essncia e esta dimenso faz-nos associar outras leituras, como as de Heidegger8 (cf. 2000: 13, 14), que proferiu um discurso em meados da dcada de 50 em que apresentou uma reflexo em torno do pensamento e o nosso tempo, na qual afirmou a existncia de dois pensamentos no homem: o pensamento que calcula e o pensamento que medita9.

    Ao defini-los, teceu um emaranhado de considerandos e inquietaes que o levaram a concluir do perigo que seria se (ibidem: 26) [...] um dia, o pensamento que calcula viesse a ser o nico pensamento admitido e exercido [...] porque ento o Homem teria renegado e rejeitado aquilo que tem de mais prprio, ou seja, o facto de ser um ser que reflecte. Ora, possivelmente esta dimenso de reflexo, de intimidade, de proximidade de si prprio a maior liberdade das pessoas.

    Apesar de todos estes indicadores preocupantes, surgem outras direces diferentes e inesperadas que nos fazem esperar novos caminhos. De salientar que comea a ser reconhecido na comunidade cientfica o contributo dos estudos das mulheres e os movimentos histrico-sociais de emancipao da mulher podem referir-se como contributos para a mudana. O pensamento feminista caracteriza-se essencialmente por exibir as diferenas de poder dissimuladas no gnero. Parafraseando Beauvoir (1949), a mulher o outro, trata-se de contribuir para um outro sistema de definio, em que importa abolir aquele sistema em que a mulher definida como um tipo de pessoa, cujas idiossincrasias so descritas em oposio norma masculina.

    Nesse sentido, Sousa Santos (1991) tambm refere a importncia dos estudos feministas, principalmente nos ltimos vinte anos, pela evidenciao

    8 Reconhecemos neste pensador, questionador do homem e do seu tempo, filsofo do sculo XX, uma vida envolta em controvrsia.

    9 curiosa a argumentao em torno da definio dos pensamentos e o poder da tcnica, da cincia contempornea e a relao do homem com o que existe. O que nos leva a referenciar (Heidegger, 2000: 13, 14) o pensamento que calcula corre de oportunidade em oportunidade. O pensamento que calcula nunca pra, nunca chega a meditar. [...] o pensamento que medita exige por vezes um grande esforo. Requer um treino demorado.

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    das concepes dominantes das diversas cincias. Alis, como afirma, no contributo feminista torna-se claro que a natureza um mundo de homens, organizada segundo princpios masculinos de guerra e luta, de individualismo, de competio, de agressividade, de descontinuidade com o meio ambiente. Enfim, um mundo capitalista e machista. (ibidem: 36)10

    Apesar de inegvel a visibilidade alcanada pelas mulheres nos diferentes domnios, as assimetrias mantm-se e o homem continua a usufruir dos lugares de poder maioritariamente em alguns sectores, como na administrao, na gesto e nos negcios. De salientar que as assimetrias no mundo e, basicamente, as conquistas em torno de um espao pblico e de direitos iguais entre homens e mulheres, referem-se ao mundo ocidental, porque a discriminao sobre as mulheres no planeta impera. Muitos so os pases China, Tailndia, Afeganisto, ndia, entre muitos outros em que nascer mulher pode ser determinante e fatal.

    Durante um longo perodo histrico os homens foram no espao pblico a fora de trabalho, os detentores de lugares de chefia, e as organizaes privilegiaram uma hierarquia empresarial em que imperava uma lgica racionalizadora.11

    10 A este propsito gostaramos de referir Condorcet (1743-1794) citado por Eliard (1993), entusiasta dos princpios revolucionrios da Revoluo Francesa, que acreditava na igualdade entre homens e mulheres e defendia o desaparecimento de todos os males sociais, valorizando as capacidades transformadoras do homem.

    11 Apesar de no dedicarmos a devida ateno, neste trabalho, aos movimentos libertrios da mulher, aos estudos e s relaes de gnero, no podemos deixar de assinalar que o impiedoso mundo dos negcios, de interesses rentveis, de uma racionalidade econmica, tentou manter as mulheres na esfera privada e contribuiu para uma construo hegemnica da masculinidade. Nessa construo, apelava-se s competncias de uma inteligncia racional desprovida de emoes, levando os homens a recear utilizar nos seus empregos outros atributos para alm da cabea, admitindo mesmo que relaes empticas com subordinados ou pares os levariam ao conflito dos objectivos com a organizao. A alterao dos tradicionais papeis atribudos ao homem e mulher, a entrada da mulher no mercado do trabalho, as conquistas em torno de uma esfera poltica e social, a diviso de tarefas, a partilha de espaos comuns e as lutas de poder, tero com certeza contribudo para a dissipao de fronteiras e de esteretipos entre homens e mulheres. Por outro lado, ainda deixamos estas reas de desenvolvimento pessoal e social demasiadamente ao acaso, no conseguindo uma verdadeira legitimao e aceitao no mundo das Pessoas. Poderemos dizer que ainda impera uma vergonha hipcrita, uma ironia desastrosa, que teima em no ver que a sensibilidade, a intuio, a sensatez, a paixo, a emoo, no um exclusivo das mulheres mas sim das pessoas. Entenda-se nesta perspectiva a razoabilidade mencionada em Ribeiro (2003a), no se est a pensar na razo fria, porque a razo mais razovel sabemo-lo hoje a razo emocional. No esquecer nestes domnios os contributos do neurocientista Antnio Damsio (2003) que pe fim oposio do paradigma da razo ao da emoo e que enaltece a discusso da cincia dos sentimentos (ibidem: 18); ou ainda nas

    (Continua na pgina seguinte)

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    Foi este o olhar poltico, poderoso e dominante na histria. Apesar de algumas propostas mais revolucionrias do conhecimento, mantm-se o predomnio de raciocnios conservadores e legitimados, sem conflitos, sem dificuldades, enquanto que qualquer outra proposta, mais progressista, carece imediatamente de legitimao.

    As verdadeiras revolues do conhecimento, com novas formas de descrever, analisar, explicar e interpretar a complexidade e ambiguidade do novo tecido social so trabalhosas e arriscadas. Os nossos esquemas mentais no mudam mesma velocidade com que evoluem as sociedades modernas. Da que muitas vezes assistamos permanncia em simultneo de vrias mentalidades durante o mesmo perodo histrico e o mesmo espao-tempo.

    No domnio da filosofia, e de um modo genrico, o enfoque das controvrsias sobre a modernidade encontra-se essencialmente em questes epistemolgicas e filosficas.

    O primeiro filsofo que desenvolveu o conceito de modernidade foi Hegel: Temos de nos certificar do conceito Hegeliano de modernidade para podermos avaliar a razo daqueles que fazem as suas anlises partindo de outras premissas (Habermas, 1998: 16).

    A importncia da histria na interpretao dos conceitos e da realidade foi, em Hegel, o seu ponto de partida e a sua filosofia da histria. Apercebeu-se de que com a histria ocorria desenvolvimento e, portanto, existia no processo histrico a noo de mudana dialctica capaz de levar liberdade humana. Como j o referimos, Hegel comeou por utilizar historicamente o conceito de modernidade (novos tempos, mundo moderno). No entanto, esta passa a problema filosfico na medida em que se coloca a questo de autocertificao da modernidade usando, portanto, uma abordagem filosfica e histrica da modernidade.

    Para Habermas (1998: 11), desde finais do sculo XVIII, a modernidade foi desenvolvida pela filosofia, O discurso filosfico da modernidade tem a ver com o discurso esttico, e intersecta-o at de mltiplas formas. O discurso da _________________________________

    palavras de Morin e Cyrulnik (2004: 51), O interessante isso: por razes irracionais que racionalizamos!.

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    modernidade que foi inaugurado por Hegel descobre-se nos princpios dos tempos modernos: a subjectividade (ibidem: 27). Ora, esta reflexo e esta necessidade de traduzir em palavras o seu prprio tempo reconhecendo as prioridades da liberdade, da autonomia, da filosofia e do direito leva Hegel a concluir a grandiosidade da sua poca no reconhecimento da liberdade da subjectividade. Nesse contexto referencia quatro conotaes expresso subjectividade (Habermas, 1998: 27): individualismo (pretenses particulares), direito crtica (legitimidade para o reconhecimento), autonomia do agir (responsabilizao pelas aces), filosofia idealista (apreenso da ideia de filosofia). Assim, e como salienta Habermas (ibidem: 28), Os conceitos morais dos tempos modernos esto adaptados ao conhecimento da liberdade subjectiva dos indivduos.

    Ou ainda, como nos diz Hargreaves (1998: 28), Na essncia, a modernidade assenta em crenas iluministas de que a natureza pode ser transformada e que o progresso social pode ser realizado atravs do desenvolvimento sistemtico do entendimento cientfico e tecnolgico e da sua aplicao racional vida social e econmica.

    As sociedades ocidentais contemporneas tipificaram o seu modo de vida social em torno de uma repetio acelerada do presente, capaz de estruturar toda a dinmica social em torno do trabalho, da mais valia, descurando o sentido, a subjectividade do ser humano.

    Por sua vez, Ricouer12 (1993: 71) afirma: J no vivemos num consenso global de valores que seriam como estrelas fixas. Isto constitui um aspecto da modernidade e um ponto de no retorno. Evolumos numa sociedade pluralista, tanto religiosamente, como poltica, moral e filosoficamente, onde cada um conta apenas com a fora da sua palavra. O nosso mundo j no encantado.

    12 Genericamente, salientamos em Ricouer a sua metodologia hermenutica em que toda a filosofia pode ser interpretada como a defesa da argumentao, da palavra em que nos mostra a insuficincia constitutiva de cada interpretao, deixando claro que s a convergncia de perspectivas opostas pode descrever os fenmenos sociais. Tambm considerado, por muitos, um autor de encruzilhada, entre a modernidade e a ps modernidade.

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    Tambm no discurso filosfico de Zambrano (2000)13 encontramos a crtica razo, ao imprio da racionalidade, ainda que captado por outras palavras; descobrem-se novas ideias, novas culturas que surpreendem pelas expresses: corao, intimidade, transparncia, felicidade. Na sua filosofia, o amor aparece como energia; h como que uma renncia a um carcter demasiado cienticifista e um apelo poesia, manifesto e expresso, numa razo apaixonada, a razo potica, nas suas palavras (Zambrano, 1971: 54): s paixo e razo unidas [] podem reconhecer sem menosprezar a verdade desnuda. H segredo e mistrio na vida humana: No s de po vive o homem, isto , no s de Cincia e Tcnica. Tambm poderia dizer-se que no s de Filosofia, mas tal coisa, ao falar-se das metforas, no tem sentido, porque a Filosofia mais pura desenvolveu-se no espao traado por uma metfora, a da viso e da luz inteligvel14 (Zambrano, 2000: 19).

    Na mesma linha de pensamento, (re)lembramos as palavras de Sousa Santos (2000: 23) na sua crtica razo indolente: A realidade, qualquer que seja o modo como concebida, considerada pela teoria crtica como um campo de possibilidades []. A anlise crtica do que existe assenta no pressuposto de que a existncia no esgota as possibilidades da existncia e que, portanto, h alternativas susceptveis de superar o que criticvel no que existe.

    Por ltimo, tendo presente o pensamento de Hegel, Habermas (1998: 58) refere: Neste sentido, a filosofia de Hegel a filosofia da revoluo [], at porque Do discurso da modernidade, que continuamos sem interrupo at aos nossos dias, tambm faz parte a conscincia de que a filosofia chegou

    13 Como afirma Jos Bento, na parte introdutria do livro, em Maria Zambrano se ausculta um poder to secreto e comunicante: acaso o que se diz ser inspirao [] (Zambrano, 2000: 12) ou ainda, a capacidade de iluminar com a palavra o que a sua capacidade de pensar vai descobrindo [] (ibidem).

    14 As ideias aqui expressas, quer por Ricouer quer por Zambrano (nomeadamente na obra A Metfora do Corao), salientam a importncia atribuda ao texto e metfora como quadros de possibilidades. A este propsito refere Zambrano: A metfora a funo de definir uma realidade inabarcvel pela razo, mas propcia a ser captada de outro modo. (2000: 19). Querendo com tudo isto salientar as caractersticas da cultura racionalista, questiona: Ser uma simples metfora a viso pelo corao? A metfora da viso intelectual tem sido ningum poder neg-lo a definio de uma forma at ago