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Vanessa Marina Bagarrão Valente Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito na área de Ciências Jurídicas Forenses Orientador: Professor Doutor Frederico de Lacerda da Costa Pinto Janeiro de 2015

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Vanessa Marina Bagarrão Valente

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas

por Particulares no Processo Penal

Dissertação com vista à obtenção do grau de

Mestre em Direito na área de Ciências Jurídicas Forenses

Orientador:

Professor Doutor Frederico de Lacerda da Costa Pinto

Janeiro de 2015

Vanessa Marina Bagarrão Valente

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas

por Particulares no Processo Penal

Dissertação com vista à obtenção do grau de

Mestre em Direito na área de Ciências Jurídicas Forenses

Orientador:

Professor Doutor Frederico de Lacerda da Costa Pinto

Janeiro de 2015

À minha Mãe:

Pela tua fortaleza de espírito,

pela bondade dos teus sacrifícios,

pelo teu amor incondicional.

À memória dos meus avós. Eterna saudade.

Declaração de Compromisso Antiplágio

Declaro, por minha honra, e em cumprimento do disposto no artigo 20º-A do

Regulamento do 2.º Ciclo de Estudos Conducente ao Grau de Mestre em Direito, que o

trabalho que apresento é original, de minha exclusiva autoria, e que todas as citações estão

corretamente identificadas. Tenho consciência de que a utilização de elementos alheios não

identificados constitui uma grave falta ética e disciplinar.

IV

Agradecimentos

Fernando Pessoa dizia que viver não é necessário; necessário é criar. E nenhuma criação,

apesar de todo o trabalho solitário que implica, se faz sozinha.

Assim os meus agradecimentos vão para todos aqueles que fizeram parte da minha

formação pessoal e académica e que contribuíram para aquilo em que me tornei e para o que

construí, construo e quero continuar a construir.

À minha Mãe e ao meu Pai pelos sacríficios feitos para me proporcionarem a melhor

educação possível, dando-me os valores humanos e intelectuais necessários à prossecução

dos meus objetivos académicos.

Ao meu irmão pela generosidade, pelos bons exemplos e pela inspiração.

À minha família, infelizmente separada por um vasto oceano de saudade, pela alegria de

viver e pela valorização da união.

Aos meus grandes amigos de infância pela lealdade absoluta e por me fazerem

compreender todos os dias a importância da amizade verdadeira.

Aos meus colegas e professores pela partilha de dificuldades e de desafios.

Ao meu Orientador, pelo brilhantismo, pelos conselhos e pela constante disponibilidade

demonstrada.

Ao meu curso que me ensinou a cultivar a humildade e o espírito crítico.

V

Modo de citar e outros esclarecimentos

Na primeira citação feita, as monografias são identificadas pelo nome do autor, seguido

do título da obra, tomo ou volume, local de edição, editora, ano de publicação e respetiva(s)

página(s). Os artigos escritos em publicações periódicas são identificados pelo nome do

autor, seguido do título do artigo, nome da publicação, volume ou número, ano e

respetiva(s) página(s).

Nas citações seguintes, as obras são apenas referenciadas pelo nome do autor e pelas

primeiras palavras do título da monografia ou do artigo e pela(s) respetiva(s) página(s).

Quando a obra em causa esteja dividida em tomos ou volumes, far-se-á também a sua

referência.

A referência de jurisprudência é feita através da indicação (abreviada) do tribunal que

proferiu a sentença, seguida da respetiva data. A indicação dos relatores, do número do

processo e do sítio da Internet ou da publicação onde a respetiva decisão se encontra

disponível encontra-se na Lista de Jurisprudência colocada no final da dissertação. A mesma

faz uma referência completa a todas as decisões mencionadas (tanto no texto principal,

como em notas de rodapé) e está dividida de acordo com a organização dos tribunais que as

proferiram e, dentro destes, da decisão mais recente para a mais antiga.

A data da consulta de decisões jurisprudenciais, quando efetuada através do sítio da

Internet, não se encontra mencionada na lista uma vez que a autora procedeu a uma

reconsulta das fontes durante a revisão da dissertação, a 7 de janeiro de 2015.

As citações de autores estrangeiros são preferencialmente feitas na língua original.

Eventuais traduções da autora serão sempre acompanhadas do texto original.

VI

Lista de Abreviaturas e Siglas

AAFDL – Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa

AA. VV. – Autores Vários

Ac. – Acórdão

Acs. – Acórdãos

Al. – alínea

Als. – alíneas

Art. – artigo

Arts. – artigos

BFDUC – Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

BGH – Bundesgerichtshoff

BverG – Bundesverfassungsgericht

Cap. – capítulo

CC – Código Civil

CEJ – Centro de Estudos Judiciários

CNPD – Comissão Nacional de Proteção de Dados

Coord. – coordenação

CPP – Código de Processo Penal

CRP – Constituição da República Portuguesa

CT – Código do Trabalho

Delib. – Deliberação

Ed. – edição

Fasc. – Fascículo

JIC – Juiz de Instrução Criminal

KUG – Kunsturheberrechtsgesetz

MP – Ministério Público

OPC – Órgãos de Polícia Criminal

PGR – Procuradoria Geral da Repíblica

VII

Reimp. – reimpressão

ROA – Revista da Ordem dos Advogados

RPCC – Revista Portuguesa de Ciência Criminal

STJ – Supremo Tribunal de Justiça

StPO – Strafprozeßordnung

TC – Tribunal Constitucional

TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

TRC – Tribunal da Relação de Coimbra

TRG – Tribunal da Relação de Guimarães

TRL – Tribunal da Relação de Lisboa

TRP – Tribunal da Relação de Lisboa

Vol. – volume

VIII

Resumo

As gravações e fotografias obtidas por particulares podem assumir-se como provas

especialmente relevantes na descoberta da verdade, podendo no entanto conflituar com os

direitos fundamentais à privacidade, à palavra ou à imagem dos visados. Não é suficiente

que se afaste apenas a violação do seu direito á privacidade, uma vez que os direitos à

palavra e à imagem, independentes do primeiro, aparecem como os direitos primordialmente

violados e penalmente tutelados no art. 199º do Código Penal. A sua admissibilidade como

prova está num primeiro momento dependente da licitude na obtenção e utilização das

mesmas, tal como prevê o art. 167º do Código de Processo Penal.

De forma a defender a sua licitude e admitir a sua valoração no processo, os tribunais

superiores têm vindo a invocar construções baseadas essencialmente em causas de

justificação legalmente previstas para afastar a falta de consentimento do visado pelas

gravações ou fotografias. Embora concordando com uma posição mais flexível e de maior

ponderação dos interesses em jogo ao invés de negar a sua utilização como prova, cremos

no entanto que algumas dessas soluções sofrem de alguns equívocos e não devem ser isentas

de críticas.

Por fim, mesmo que se chegue a uma conclusão positiva acerca da licitude da recolha e

utilização das gravações e imagens obtidas por particulares, as mesmas não devem ser

automaticamente admitidas como prova, sendo ainda necessário proceder-se a uma

ponderação autónoma, dentro do próprio processo e atendendo às suas normas legais

específicas, sobre as suas reais finalidades no caso concreto.

IX

Abstract

Recordings and photographs obtained by private individuals can be two of the most

relevant evidences in helping finding the truth; however, they can also conflict with

fundamental rights such as privacy, spoken word or image of the targets. It is not enough

that only the violation of the right to privacy is withdrawn because rights to spoken word or

image, unattached from the first one, show up independently as the main violated rights and

are criminally protected in article 199º of the criminal code. Its use as evidence is, on a first

moment, dependent on the private's conduct lawfulness, as it is stated in article 167º of the

criminal procedure code.

In order to consider its lawfulness, and accept its use as evidence, portuguese higher

courts have been defending constructions mostly based on legal causes of defense. Although

agreeing with a more flexible position of weighing all the interests at stake instead of

denying its use as evidence, we believe notwithstanding that some of these solutions are

misleading and shall not be spared from critics.

Lastly, even if we reach a positive conclusion about the lawfulness of obtaining and

using recordings and photogtaphs carried out to court by private individuals, they must not

be however automatically admitted as evidence, still being necessary to proceed to a

separate weighting, within the criminal procedure and its own legal rules, about their real

purposes in the case.

X

Declaração do Número de Caracteres da Dissertação

Em cumprimento do n.º 2 do art. 31º do Regulamento do 2.º Ciclo de estudos

conducente à obtenção do grau de Mestre, declaro que o corpo da dissertação, incluindo

espaços e notas, ocupa um total de 191.518 caracteres.

XI

Introdução

Uma das melhores formas de se medir a evolução e o nível de

desenvolvimento de uma sociedade é a de observar o modo como o processo

penal foi sendo e é arquitetado e aplicado. E isto porque se trata de uma área em

que por excelência a inevitável tensão valorativa que está sempre presente dentro

de todos os campos jurídicos se agudiza e exige respostas firmes e necessárias à

concretização de uma sociedade idealmente livre e justa. Se de um lado temos o

progresso técnico e científico que nos dotou de forma extraordinária de

capacidades que para os mais desatentos apenas podem ser encontradas no mundo

da ficção científica, do outro temos também a progressiva consciencialização de

colocação do Homem no centro do pensamento filosófico, político e científico,

reconhecendo-se que as diversas instituições por ele criadas se encontram ao seu

serviço e não o contrário. Mas o mesmo progresso que nos permitiu uma evolução

astronómica tanto a nível técnico-científico, como a nível humano trouxe também

consigo as armas capazes de aniquilar a conservação desse estádio de

desenvolvimento, podendo mesmo potenciar uma evolução em sentido negativo de

recuo ético.

É nesta dualidade interessante que o Direito, e especificamente o processo

penal, lutam por buscar equilíbrios e soluções, sendo certo que a sua evolução

muitas vezes não consegue acompanhar o rápido desenvolvimento tecnológico.

Essa falta de acompanhamento leva a que uns proclamem a constante

desatualização das soluções jurídicas que resultam posteriormente em perdas para

a eficácia da justiça e do próprio desenvolvimento social, mas leva a que outros

defendam um maior rigor na proteção dos direitos fundamentais afetados,

invocando uma espécie de escudo contra o qual hão de esbarrar todas as atividades

potencialmente lesivas desses direitos. Sendo certo que as duas pretensões não são

incompatíveis, a verdade é que a harmonização entre ambas tem sido uma tarefa

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

complexa e cujas soluções finais se afiguram ainda hoje como longínquas.

Se é certo que atualmente os meios tecnológicos se configuram como um

precioso auxílio para todos os intervenientes no mundo jurídico, também não é

menos certo que o seu âmbito de devassa pode colocar graves questões éticas a

exigirem respostas conformes com as constantes proclamações de proteção dos

direitos essenciais de cada Homem. Confessamos que esse conflito sempre nos

fascinou, principalmente pela fertilidade argumentativa que nele podemos

encontrar, não existindo à partida uma posição que possamos ver ter uma clara

vantagem sólida sobre a outra.

O progressivo desenvolvimento científico trouxe também uma certa

democratização tecnológica, colocando à disposição de cada um de nós variados

meios de captação e controlo do outro. Assim se através da câmara de um

dispostivo celular procedermos à gravação de um determinado ilícito que esteja a

ser cometido por A, podemos apresentar tal produto como prova? A perseguição

criminal e a comprovação da verdade dos factos têm um valor de tal forma

superior que permitam passar por cima de eventuais condutas ilícitas praticadas

por quem recolheu a prova? Por outro lado, existindo a prova em concreto, e sendo

irremediável a reparação dos direitos fundamentais já afetados, não seria uma

espécie de mal menor permitir que o Direito considerasse e admitisse esses meios

de prova?

Com esta investigação pretendemos sobretudo responder à forma concreta

como esta questão tem sido ponderada e resolvida à luz da jurisprudência

nacional. É que apesar de a ciência jurídica doutrinária ter um desenvolvimento

relativamente lento, os responsáveis pela sua aplicação, pela natureza e

funcionamento das coisas, encontram-se mais permeáveis a um processo de

desenvolvimento tendencialmente mais vanguardista. O objetivo da nossa

investigação prende-se com a análise crítica das respostas que a jurisprudência tem

dado sobre a valoração destes meios de prova.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

Motivações e objetivos enunciados, cabe finalmente proceder a uma breve

delimitação do tema que nos propomos tratar de modo a tornar compreensível a

extensão e limites da nossa investigação.

Assim iremos tratar apenas de provas recolhidas por particulares. Queremos

com isto dizer que o responsável pela recolha terá de ser um sujeito que se

encontre excluído de qualquer tarefa investigativa legalmente determinada – como

os OPC ou o MP – e que não tenha qualquer relação com nenhuma das

mencionadas entidades – assim, também excluímos deste tratamento a figura geral

dos chamados “homens de confiança”, de todos aqueles que atuem sob a direção

de instâncias formais de controlo. Queremos com esta expressão reportar-nos

especificamente a cidadãos comuns, sem qualquer relação com o poder punitivo

do Estado, e portanto sem qualquer tipo de incumbência legal ao nível da

investigação, que, pelas mais variadas razões, possam ter a pretensão de apresentar

ao processo provas por si autonomamente recolhidas (tendo ou não por base uma

prévia e específica intenção de fazê-lo).

Depois, não trataremos de qualquer meio de prova recolhido por um particular,

mas apenas de gravações de voz ou imagem ou de fotografias e registos fílmicos –

assim estão excluídos do nosso objeto casos em que particulares tenham obtido

outro tipo de provas como v. g., diários ou outros documentos escritos. Por fim

note-se que não têm aplicabilidade as normas do CPP relativas a meios de

obtenção de prova, como o art. 187º relativo a escutas telefónicas ou o art. 6º da

Lei n.º 6/2002.

Iremos começar por enquadrar o tratamento destes processos técnicos de uma

forma breve e geral de equacionação do problema ao nível dos vários fins e

interesses promovidos pelo processo penal e depois de uma forma concreta quanto

ao regime legal que seguem. Depois iremos averiguar acerca das respostas

específicas e das tendências da jurisprudência dos tribunais superiores, incluíndo

as justificações, condições e critérios que de forma mais comum têm sido

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

invocados para permitir a sua utilização probatória, refletindo sobre a sua

pertinência. Finalmente, a última parte da nossa investigação será reservada para

um tratamento crítico acerca da aparentemente inevitável ligação que é feita entre

o critério da (i)licitude da conduta do particular exigido pelo art. 167º, nº 1 do CPP

e o consequente e equivalente juízo de valoração da respetiva prova assim obtida.

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1. Os processos técnicos de gravação de voz e registo de imagem como meio deprova

1.1. Fins do processo penal e (proibições de) prova

O processo penal é por excelência o instrumento adequado a concretizar a

aplicação do direito penal1. Contudo, esta afirmação neutra2 e descomprometida

não nos dá nenhum alicerce sobre o qual se possa construir e descobrir as reais

valorações perseguidas pelo processo.

De uma forma generalizada, a doutrina e a jurisprudência têm apontado a

descoberta da verdade, a realização da justiça, o restabelecimento da paz jurídica e

a proteção dos direitos fundamentais dos envolvidos como as suas verdadeiras

finalidades3. Não se tratará aqui de alcançar uma verdade objetiva nem a todo o

custo. Para já porque pela própria natureza do decorrer do processo4 e também da

ideia de relatividade e falibilidade das teorias absolutas do conhecimento5, seria

uma utopia pensar-se que essa verdade limpa e pura se apresentaria como o

resultado final da atividade dos sujeitos processuais envolvidos. Depois, porque o

Estado no exercício do seu jus puniendi não se encontra legitimado a recorrer a

todo e qualquer meio para buscar essa verdade – com efeito, impõem-se-lhe

limitações éticas e legais6 intransponíveis que, a não existirem, poderiam

1 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, volume I, 5ª ed., Lisboa: Editorial Verbo, p. 23; MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE, Processo Penal, Tomo I, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 2010, p. 24; FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Reimp. da ed. 1974, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 24.

2 FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual..., p. 40. 3 FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual..., pp. 43 e 44; GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso...,

vol. I, p. 24; FERNANDA PALMA, “O Problema Penal do Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord.: Fernanda Palma, Coimbra: Almedina, 2004, pp. 41 e 42; RAUL SOARES DA VEIGA, “O Juiz de Instrução e a Tutela de Direitos Fundamentais”, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord.: Fernanda Palma, Coimbra: Almedina, 2004, p. 185; Ac. Uniformizador do STJ n.º 7/2008.

4 CLARA CALHEIROS, “Prova e verdade no processo judicial. Aspetos epistemológicos e metodológicos”, in Revista do MP, Ano 29, nº 144, abr/jun 2008, p. 73.

5 MARINA GASCÓN ABELLÁN, Los Hechos en el Derecho, 2ª edição, Barcelona: Marcial Pons, pp. 7 e 8.

6 CLARA CALHEIROS, “Prova e verdade...”, p. 84.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

desvirtuar as suas instituições e a sua autoridade7. Nesses termos, estando a busca

da verdade orientada para a realização da justiça, podemos concluir que este

último fim não poderá ser sacralizado a um objetivo primordial e absoluto8. No

entanto também se compreende que a demonstração do funcionamento eficaz do

processo e dos seus mecanismos punitivos, contribuindo para o aumento da

confiança dos cidadãos no funcionamento da justiça, pode resultar numa maior

vontade de cumprir as normas. Só que essa exigência terá sempre de ser

compatibilizada com os direitos fundamentais de quem entra em contacto e é

individualmente afetado pelo processo.

A eficácia e a realização da justiça só terão real valor na medida em que

tenham sido estruturadas num caminho legalmente conforme com as imposições

derivadas da afirmação do princípio da dignidade humana9 e do Estado de Direito

democrático como valores essenciais do ordenamento jurídico.

Para que estas finalidades processuais se concretizem torna-se necessário

recorrer à prova, que se assume como uma condição essencial para se chegar à

verdade material, ao restabelecimento da paz jurídica e à realização da justiça.

Mas a prova no âmbito do processo penal não tem só por objetivo a demonstração

da realidade dos factos. Antes assume-se como uma importante garantia de

realização de um processo justo, de eliminação do arbítrio, quer enquanto a

demonstração da realidade dos factos não há-de procurar-se a qualquer preço,

mas apenas através de meios lícitos10. Estando aqui concretizada a função de

proteção dos direitos fundamentais dos envolvidos, justifica-se a existência de

variadas regras de limitação à sua obtenção e utilização – as chamadas proibições

de prova11. A base legal fundamental do regime encontra-se consagrada no nº 8 do

7 JORGE MIRANDA, “Processo penal e direito à palavra”, in Direito e Justiça, Vol. XI, tomo 2, Universidade Católica Editora, 1997, pp. 45-61, p. 52.

8 Cfr. Ac. Uniformizador do STJ nº 7/2008. 9 CAPELO SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 97 e JORGE

MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora,2005, p. 53.

10 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso..., vol. II, pp. 110 e 111.11 Consideradas por COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, reimp. ed.

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art. 32º da CRP e é igualmente desenvolvida no art. 126º do CPP.

As gravações e fotografias podem constituir meios de prova assaz valiosos na

descoberta da verdade material, na concretização da justiça e na eficácia da

perseguição criminal, aumentando a crença no funcionamento do sistema por parte

da sociedade, mas também na garantia de realização dos próprios direitos de

defesa do arguido e dos interesses legítimos das vítimas. No entanto, a sua recolha

e utilização pode ter como base um atentado aos direitos tutelados, especialmente

no caso em que sejam obtidas por particulares. Com efeito, uma coisa será pensar-

se na admissão destes meios de prova quando sejam recolhidos por autoridades

devidamente investidas em poderes de investigação e cuja atuação se encontra

disciplinada e balizada por um regime normalmente apertado, em que a legalidade

da sua atuação se encontra sujeita à fiscalização do JIC. Outra coisa será pensar no

caso de particulares que, desligados de qualquer fiscalização prévia desse tipo, se

arroguem à função de investigação e perseguição criminal. No entanto, também os

particulares no âmbito do processo têm um direito à prova, fornecendo às

autoridades responsáveis pela investigação elementos importantes – seja porque,

muitas vezes, através de gravações ou fotografias dão conhecimento da notitia

criminis ou porque, sendo eles próprios os sujeitos prejudicados pelo crime, têm

um maior conhecimento de causa e um interesse que pode não ser encontrado da

mesma forma por parte de quem investiga.

Podemos compreender que o enquadramento do problema a tratar é complexo

na medida em que toca e joga com as várias finalidades fundamentais do processo

penal, implicando contradições e necessárias compatibilizações entre elas e

decorrendo num espaço de regulamentação muito menos densificado do que

aquele que é estabelecido para a atuação das instâncias formais de controlo. Se

isso significa uma tendência de abertura à atividade probatória e investigativa dos

particulares ou, por outro lado, do seu afastamento dessas tarefas, é uma questão

1992, Coimbra: Coimbra Editora, 2006 p. 11, “como uma das construções basilares da dogmática processual penal”.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

que deixamos como pano de fundo e que estará sempre presente nas reflexões que

formos fazendo ao longo da dissertação.

1.2. Os processos técnicos de gravação de voz e registo de imagem como provadocumental

Importa, de forma breve, averiguar onde poderemos enquadrar estes meios de

prova de forma a delimitar as suas fontes normativas.

Tendo indicado previamente que não encontramos qualquer fonte legal com

relevância para a nossa temática nos meios de obtenção de prova previstos na lei,

temos de verificar se o mesmo ocorre quanto aos meios de prova.

A resposta aqui já será diferente uma vez que podemos classificá-los como

prova documental (arts. 164º a 170º do CPP), tratando-se de uma prova típica.

Uma rápida leitura pelas normas que fazem parte da regulação da prova

documental leva-nos até ao art. 167º – que nos fala precisamente em reproduções

fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo eletrónico.

Por outro lado, facilmente verificamos que as gravações e/ou fotografias podem

ser incorporadas na definição de documento que nos é dada no art. 164º, nº 1 do

CPP.

Consideramos importante referir, ainda que a título breve, alguns aspetos do

seu regime legal que podem influir com o tema da nossa investigação. Mencione-

se o nº 2 do art. 164º, que estabelece que a junção da prova documental pode ser

feita oficiosamente ou a requerimento, não sendo admissível documento que

contenha declaração anónima12 (isto é, onde o autor não possa ser identificado13).

Se for apresentada uma gravação contendo declarações anónimas e onde por

nenhuma forma se consiga identificar o seu autor, fica precludida a sua utilização

12 Salvo se esse documento for, ele mesmo, objeto ou elemento do crime. GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso..., vol. II, p. 224.

13 PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do CPP à luz da CRP e da CEDH, 4ª ed., Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011, p. 459.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

como meio de prova14.

Por fim, uma questão que também nos parece importante é a possibilidade de

oficiosamente ou a requerimento, um documento junto aos autos poder ser

declarado como falso, de acordo com o art. 170º, nº 1. Nesse caso, e até se o

tribunal ficar com fundada suspeita da falsidade do documento, cópia deste deve

ser transmitida ao MP para que abra um inquérito de forma a determinar eventuais

responsabilidades criminais (nº 2 do art. 170º). Certo é que se o tribunal declarar

na sentença a sua convicção de falsidade do documento como meio de prova, este

perde o seu valor probatório. A importância desta questão justifica-se, a nosso

entender, por um simples motivo. É comum que estes meios de prova sejam

considerados como altamente fidedignos devido não só à sua própria natureza de

representação objetivável da realidade, como também à evolução técnica que tem

permitido gravações e imagens cada vez mais pormenorizadas, trazendo uma

relativa segurança, por exemplo, na questão da identificação dos suspeitos. No

entanto temos de considerar o reverso da medalha – é que essa mesma evolução

técnica também permite proceder a manobras de manipulação ou edição dos

instrumentos captados. Nesse sentido, torna-se importante, pelo menos, levantar a

possibilidade de se questionar a sua autenticidade em juízo15. Para além da

possibilidade da sua e manipulação intencional que nos poderá levar a questionar a

autenticidade do material em causa, refira-se ainda a possibilidade de existirem

defeitos técnicos nas gravações tais como imagens pouco nítidas, vozes

dificilmente identificáveis numa gravação, pouca iluminação que torne

praticamente impossível fazer-se um processo de reconhecimento, etc.16 Não se

tratando de um problema de autenticidade, trata-se de um problema de fiabilidade

14 PAOLO TONINI, Manuale di Procedura Penale, 5ª edizione, Milano: Giuffrè Editore, 2003, p. 276. 15 Impondo que a mesma seja atestada através da submissão ao princípio do contraditório em sede de

audiência de julgamento, MILENE MARTINS, A admissibilidade de valoração de imagens captadas por particulares como prova no processo penal, Lisboa: AAFDL, 2014, p. 145.

16 MUÑOZ CONDE, “Sobre el valor probatorio en un proceso penal de grabaciones de conversaciones obtenidas mediante vídeos y relevancia penal de las conversaciones grabadas en ellos”, in Revista Penal, nº 13, 2004, pp. 112 e 113.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

do material recolhido. Nos casos em que este problema possa ser levantado, parece

não existir na lei uma solução direta para o resolver, estando a sua valoração

dependente da entidade que avalia livremente a prova. Mas isso é um problema

geral e transversal a todos os meios de prova – como se sabe, até a própria prova

testemunhal, sujeita a processos psicológicos de perceção subjetiva ou de falsas

memórias, pode levantar o mesmo problema17. Assim para nós é essencial que

duas coisas fiquem escritas. Que cautela seja a palavra de ordem para o intérprete

e aplicador, tornando-se não só necessário afastar conceções que absolutizem a

eficácia e veracidade destes meios de prova, como também a apresentação de

outros meios de prova complementares. E que se exija a existência de um

procedimento pericial obrigatório de verificação do estado das gravações ou

fotografias de modo a garantir o seu nível de fiabilidade já não apenas com base

no bom senso do julgador, mas através da existência de um parecer técnico que

confira outro tipo de solidez no momento da tomada de decisão18.

Depois de identificarmos o enquadramento legal da matéria dentro da prova

documental, chegamos agora à nossa norma primordial que aparentemente nos dá

a resposta para o problema da utilização processual das gravações e fotografias

obtidas por particulares. Essa norma é o art. 167º, nº 1 – cabe agora, no ponto

seguinte do presente capítulo, precisar o significado desta norma.

1.3. A proibição de utilização de gravações de voz e registo de imagem quandoobtidas de forma ilícita

Um aspeto fundamental que carateriza o art. 167º do CPP e é reconhecido por

toda a doutrina e jurisprudência, é a escolha do critério da ilicitude penal para

determinar a possibilidade de utilização destes meios de prova19. Nos casos em que

17 PAOLO TONINI, Manuale..., pp. 833 e ss. 18 MUÑOZ CONDE, “Sobre el valor probatorio...”, p. 113. 19 COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições..., p. 238; GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso..., vol.

II, p. 224; LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, CPP Anotado, vol. I, 3ª edição, Lisboa: Rei dos

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

se conclua pela ilicitude, o artigo estabelece uma verdadeira proibição (de

valoração) de prova20, impedindo a sua utilização processual.

Em nosso entender, desta afirmação de princípio extraída da leitura do art.

167º, nº 1 resultam dois aspetos a analisar: 1) as normas que devem ser tidas em

conta para aferir a exigida ilicitude; 2) as consequências que podemos retirar da

escolha deste critério ao nível dos valores e das finalidades do processo que acima

identificámos.

Em relação à primeira questão, como refere COSTA ANDRADE, por expressa

remissão da lei processual, a disciplina da admissibilidade/inadmissibilidade

adjetiva destes meios de prova começa por ser um problema de licitude/ilicitude

material21. Nesse sentido, pelo menos num primeiro momento, torna-se imperioso

recorrer a normas penais para averiguar se uma determinada conduta levada a cabo

por um particular pode preencher a factualidade típica pertinente.

Uma primeira questão a colocar será a de saber se quando o art. 167º, nº 1 do

CPP fala em ilicitude nos termos da lei penal quer se reportar a todas as normas

penais previstas e espalhadas pelo ordenamento jurídico ou apenas às normas

constantes do CP. A resposta a esta questão pode ter relevância uma vez que, por

exemplo, a propósito da Lei n.º 67/98, o incumprimento da obrigação de

notificação ou de pedido de autorização prévia por parte da CNPD para o

tratamento de dados pessoais, especialmente relevante nos casos de

videovigilância (art. 4º, nº 4), pode consubstanciar um crime de acordo com o art.

43º, nº 1, al. a) do referido diploma. Consideramos que à partida não existe

qualquer motivo para excluir normas cujos bens jurídicos se manifestem como

relevantes, que não estejam previstas no CP22. Deixando aqui manifestada a nossa

orientação fundamental, remetemos as razões argumentativas para um momento

Livros, 2008, p. 1098. 20 PAULO DE SOUSA MENDES, “As proibições de prova no processo penal”, in Jornadas de Direito

Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. Fernanda Palma, Coimbra: Almedina, 2004, p. 145. 21 COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições..., p. 242. 22 Ao contrário de grande parte da jurisprudência, como iremos ver infra.

11

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

posterior, uma vez que esta questão será tratada a propósito da admissibilidade de

utilização de gravações provenientes de sistemas de videovigilância instalados por

particulares que não tenham cumprido os requisitos legalmente impostos. O que

por agora importa referir é que não defendemos uma interpretação restritiva do art.

167º, nº 1 do CPP, limitando a sua incidência apenas e só às normas do CP. Mas,

com exceção desta consideração que se pode aplicar ao caso específico da

utilização de sistemas de videovigilância por particulares, inevitavelmente, as

normas primordiais encontram-se no CP – os arts. 192º e 199º.

Nos termos do primeiro, se forem usados por particulares processos de

gravação de voz e registo de imagem que contendam com a vida privada de

outrém, tal conduta será considerada ilícita23. De acordo com o segundo,

estabelece-se a incriminação de gravações e fotografias obtidas ou utilizadas sem

consentimento ou contra vontade do visado – que não sejam obtidas em contextos

privados, pois aí a incriminação aplicável será a do art. 192º do CP. Apesar de à

partida poder configurar-se como difícil a compatibilização destas duas normas

por possuírem âmbitos de aplicação sobrepostos24, a verdade é que se trata de um

concurso aparente, uma vez que são duas normas que protegem bem jurídicos

distintos e que possuem uma relação de subsidiariedade25. Quer isto dizer que a

incriminação do art. 199º do CP só entra em jogo se concluírmos que, através da

utilização destes processos, não houve devassa da vida privada do visado.

A segunda questão a que nos propomos responder prende-se com a

determinação das necessárias consequências que podemos retirar da norma do nº 1

do art. 167º pelo facto de o legislador ter optado pelo critério da ilicitude penal

substantiva para determinar a proibição de prova em análise.

Em primeiro lugar, podemos dizer que torna óbvia a vontade do legislador em

23 Temos ainda os arts. 193º (devassa por meio de informática), 194º (violação de correspondência ou de telecomunicações) e 195º (violação de segredo), formas especiais de crimes de devassa.

24 COSTA ANDRADE, Comentário Conimbricense do Código Penal: parte especial, Tomo I (dirigido porFigueiredo Dias), 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, pp. 1065 e 1066. 25 PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do CP à luz da CRP e da CEDH, Lisboa: Universidade

Católica Editora, 2010, p. 538.

12

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

manter a unidade do sistema jurídico relativamente aos seus valores

fundamentais26. A possível utilização destes meios de prova estará sempre

dependende da sua licitude face à lei penal substantiva. Isto não quer dizer,

contudo, a nosso ver que uma gravação ou fotografia obtida de forma lícita tenha

de ser sempre necessariamente admitida como prova.

Mas será que com base nesta escolha do legislador podemos ir ainda um pouco

mais longe e retirar uma outra consequência, nomeadamente ao nível da

ponderação entre os valores de prossecução da verdade e justiça e a proteção dos

direitos à privacidade, imagem ou palavra, conferidos pelas normas penais acima

mencionadas? Sabemos que o direito penal assume-se como a ultima ratio de

proteção de bens jurídicos identificados como fundamentais numa determinada

sociedade. Nesse sentido, estabelecendo o legislador o recurso à lei penal como

condição de admissão da possibilidade de utilizar estes meios de prova poderemos

afirmar aqui uma prevalência da defesa desses bens jurídicos sobre as finalidades

tipicamente apontadas ao processo penal?

COSTA ANDRADE retira daqui precisamente esse conclusão – a escolha do

legislador significa que os valores principais perseguidos pelo processo penal são

subalternizados em relação aos bens jurídicos penalmente tutelados27. Assim,

independentemente de se invocarem possíveis causas de exclusão da ilicitude para

legitimar uma determinada conduta levada a cabo por um particular, essas causas

nunca podem ter como base a invocação dos interesses associados ao processo

penal. Ou seja, a invocação da realização da justiça, da descoberta da verdade, da

proteção dos direitos fundamentais dos ofendidos ou a restauração da paz jurídica

não têm força suficiente para permitir a produção ou utilização não consentidas de

gravações ou fotografias para fins de perseguição criminal. Daí que COSTA

ANDRADE tenha referido que o mero propósito de juntar, salvaguardar e carrear

provas para o processo penal não justifica o sacrifício do direito à palavra e do

26 JORGE MIRANDA, “Processo penal...”, p. 59. 27 COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições..., p. 238.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

direito à imagem em que invariavelmente redundam a produção ou utilização não

consentidas destas reproduções mecânicas28, formulação que foi seguida por

outros autores29, e alguma (minoritária) jurisprudência30.

Assim, à partida, interpretando o art. 167º, nº 1 do CPP no sentido de

consubstanciar uma escolha do legislador pela prevalência dos bens jurídicos

protegidos pelas normas penais sobre os fins típicos do processo31, parece que

encontramos a solução do nosso problema: as gravações e fotografias, porque

obtidas sem consentimento, nunca podem ser valoradas como prova. No entanto,

acrescente-se que essa impossibilidade de valoração só diz respeito a casos que se

identifiquem com o mero propósito de trazer prova para o processo. Como

esclarece COSTA ANDRADE, se estiverem em causa outras finalidades

transcendentes ao próprio processo, a sua utilização pode ser admitida32.

No entanto, a jusriprudência tem admitido uma resposta diferente para o

problema, propondo uma construção mais flexível de valoração deste tipo de

prova baseada também em finalidades tipicamente processuais. No próximo

capítulo iremos colocar a descoberto essa divergência, avançar com as razões

jurídicas que a fundam e por fim identificar e analisar criticamente os critérios

genericamente invocados para legitimar a sua utilização probatória.

28 COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições..., p. 239. 29 LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, Comentário..., p. 841, JORGE MIRANDA, “Processo

penal...”, pp. 51 e 52, BENJAMIM RODRIGUES, Da prova penal: Bruscamente... A(s) face(s) oculta(s) dos métodos ocultos de investigação criminal, tomo II, Editora Rei dos Livros, 2010, p. 562, MILENE MARTINS, A admissibilidade..., p. 66.

30 Ac. TRL de 03/05/2006; Ac. TRL de 30/10/2008 ou Ac. TRP de 23/04//2008. 31 COSTA ANDRADE, “Sobre a valoração, como meio de prova, em processo penal, das gravações

produzidas por particulares”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, vol. I, Boletim da FDUC, Coimbra, 1984 p. 615.

32 Que pode consistir em casos em que esteja em causa uma situação em que se imponha a salvaguarda de valores considerados superiores como a vida, a integridade física ou a liberdade do arguido. COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições..., p. 239 e MILENE MARTINS, A Admissibilidade..., p. 71.

14

2. A resposta flexível da jurisprudência nacional sobre a exclusão da ilicitude

2.1. As tendências atuais e as razões justificadoras

A impossibilidade de admitir a valoração destes meios de prova em processo

penal deriva da falta de consentimento dos gravados ou fotografados, por ser esse

o aspeto caraterizador das incriminações dos arts. 192º e 199º do CP. Ainda que se

pudesse invocar uma causa de justificação que excluísse a ilicitude da conduta,

entende-se que o mero propósito de utilizar processualmente essas gravações ou

fotografias como prova condenatória do visado, não seria suficiente para servir

como tal33.

No entanto, várias decisões jurisprudenciais de tribunais superiores têm vindo

a colocar em causa esse entendimento com base numa posição mais flexível de

admissão destes meios de prova. Ilustrativa dessa afirmação é a ideia vertida no

Ac. TRG de 30/09/2002 de que a repressão de crimes graves e a identificação

dos seus agentes, cada vez mais bem apetrechados de meios técnicos sofisticados,

deve permitir que na investigação criminal as autoridades possam utilizar

gravações ou filmagens ocultas, mesmo as efetuadas por particulares, sob pena

de um excesso de garantismo penal e processual comprometer seriamente a

defesa dos valores fundamentais da comunidade.

Da recolha e análise de jurisprudência que fizémos, conseguimos retirar uma

conclusão inicial – a de que a grande maioria das decisões dos tribunais superiores

em causa diz respeito à temática da videovigilância. De facto, a videovigilância

assume-se atualmente como uma espécie de “guardiã” dos direitos dos cidadãos,

sempre presente em quase todos os lugares por onde passamos, concedendo-nos a

pretensão de nos sentirmos mais seguros e protegidos34. Um aspeto que, tendo em

33 Ac. STJ de 14/01/99. 34 BENJAMIM RODRIGUES, A Monitorização dos Fluxos Informacionais e Comunicacionais, vol. I,

Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 448.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

conta a sociedade de risco em que vivemos e também considerando as novas

formas de criminalidade como o terrorismo ou a utilização de métodos cada vez

mais violentos na prática dos crimes, tem-se tornado cada vez mais central não só

nas preocupações da sociedade, como das próprias autoridades estatais,

contribuindo para a sua implementação e aceitação gerais35.

Só que o facto de a grande maioria das decisões favoráveis sobre a utilização

destes meios de prova dizer respeito à videovigilância impõe-nos desde logo uma

cautela inicial no que respeita à afirmação categórica da existência de uma

tendência de afastamento da jurisprudência das conceções mais rigorosas acerca

da inadmissibilidade destes meios de prova. Para já porque a videovigilância é

apenas um dos casos que pode dar origem a provas obtidas por particulares; depois

porque se trata de um caso específico cuja previsão, e mesmo até obrigatoriedade

de utilização, se encontra prevista na lei36 – sem prejuízo de não só podermos

criticar essa opção em abstrato, como também podermos refletir sobre os fins para

que ela deva servir em concreto37 – ao contrário de outros meios de prova obtidos

por particulares.

Assim, os tribunais admitirem o uso de gravações obtidas através de sistemas

de videovigilância não é necessariamente determinante para podermos falar numa

tendência completamente favorável a estes meios de prova em geral. No entanto,

tendemos a inclinar-nos para uma resposta positiva pelo nível dos argumentos

invocados nos acórdãos, que não falam só especificamente dos casos da

videovigilância, mas de todos os casos em que esteja em causa o confronto com a

35 PAULO OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, vol. I, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 642 e 643, fala mesmo numa certa anestesia sobre o alcance político do fenómeno e numa apatia social perante o mesmo.

36 Para uma consulta atualizada e exaustiva dos regimes jurídicos que prevêm a possibilidade de utilizaçãoda videovigilância, cfr. SÉRGIO PENA, “Os produtos da videovigilância como meio de prova em processo penal”, in Revista do CEJ, 2º semestre de 2013, nº 2, pp. 94 e 95, com especial relevância paraa recente Lei n.º 34/2013 ou o art. 20º do CT.

37 É que uma coisa é admitir o uso da videovigilância como medida meramente preventiva de salvaguardade pessoas e bens, no sentido em que possa servir como fator de dissuasão da prática de condutas criminosas. Outra coisa será considerar a possibilidade de utilizá-la como meio de obtenção de prova demodo a incriminar alguém sem que haja qualquer intervenção de uma autoridade judiciária no processo.Nesse sentido, BENJAMIM RODRIGUES, A Monitorização..., pp. 447 e 448.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

utilização processual de uma prova que contenda com a imagem/palavra do

visado.

Ficando ressalvada esta nota, pretendemos agora expor as razões que têm sido

invocadas para legitimar um entendimento de maior abertura do processo penal a

este tipo de provas, ponderando a sua pertinência.

É imprescindível invocar o Ac. do STJ de 28/09/2011, que começa por

explicar que as novas formas de criminalidade e também a própria forma como se

aborda o fenómeno da criminalidade hoje em dia38, colocam agora, e mais do que

nunca, a questão da liberdade e segurança e do delicado equilíbrio que lhe está

subjacente. Neste confronto, o STJ identifica a segurança como um elemento

essencial na vida dos cidadãos com enormes reflexos, diretos e indiretos, em

termos económicos ou psicológicos, não se tratando de um direito entendido

apenas como garantia de exercício seguro e tranquilo de outros direitos, mas sim

como um verdadeiro direito autónomo39. Embora o STJ tenha o cuidado, e bem na

nossa opinião, de não considerar o direito à segurança como um direito absoluto,

afirma no entanto a sua equiparação a outros direitos fundamentais, colocando-os

ao mesmo nível. Mas mais à frente, o Acórdão vai ainda mais longe quando segue

as conclusões do TEDH em que se afirma que numa sociedade democrática, os

interesses da segurança nacional prevalecem sobre os interesses individuais. Sem

prejuízo de reconhecer que existem limites que não podem ser ultrapassados em

nome da segurança.

O Acórdão propõe ainda uma imposição interessante em que considera que a

38 O Ac. STJ de 20/06/2001 já reconhecia que nesta batalha entre a autoridade e o delinquente vencerá jánão apenas quem é mais inteligente mas sobretudo o que estiver melhor equipado tecnicamente para obter ganho de causa. Ora, numa situação destas, grave, é mais plausível a opinião de que as normas constitucionais, a não serem interpretadas de uma forma atualizada e sensata, não serão um obstáculo ao crime mas uma oposição envergonhada aos delinquentes. Também o Ac. TRG de 30/09/2002: temoscomo certo que a repressão de crimes graves e a identificação dos seus agentes, cada vez mais bem apetrechados de meios técnicos sofisticados, deve permitir que na investigação criminal as autoridadespossam utilizar gravações ou filmagens ocultas, mesmo as efetuadas por particulares, sob pena de um excesso de garantismo penal e processual comprometer seriamente a defesa dos valores fundamentais da comunidade.

39 Manifestando-se contra a conceção que vê o direito à segurança como direito à segurança coletiva da comunidade ou dos cidadãos, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição..., tomo I, p. 301.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

efetivação dessa garantia cabe também aos próprios particulares, entendidos como

cidadãos ativos e dinâmicos cujo papel é fundamental na prossecução de espaços

físicos e cognitivos de segurança, antevendo a possibilidade de os mesmos

poderem recorrer a meios de efetivá-la.

Para além disso, a douta decisão menciona também a necessidade de defesa de

valores como a perseguição penal como um interesse justificativo a atender – o

que está em causa é saber até que ponto a protecção da intimidade da vida

privada prevalece quando, em contraposição, estão interesses igualmente

relevantes na prossecução dos valores do Estado os quais (...) podem incorporar

a realização de objectivos e propósitos sem os quais se torna utópica a vida em

sociedade, identificado que no cerne da temática está o conflito entre os

interesses individuais e o interesse da perseguição penal40.

Queremos deixar claro que não concordamos com o entendimento de que os

interesses de segurança nacional prevalecem sobre os interesses individuais. Numa

sociedade com traços totalitários, sim; nunca numa sociedade democrática. Uma

verdadeira sociedade democrática não pode considerar-se outra coisa que não um

espaço de liberdade de realização própria, fundada na dignidade da pessoa humana

individual e concreta41, e não na absolutização do valor da segurança42.

Para além disso, a afirmação de que a segurança também se impõe como um

verdadeiro dever para os cidadãos pode conduzir a uma situação em que todos nós

podemos passar a controlar os passos dos nossos iguais à margem de qualquer

consideração ética ou de respeito pelos limites impostos pela dignidade humana.

Pensamos que assiste razão a PAULO OTERO quando alerta para a possibilidade

de se assistir ao que chama de totalitarismo horizontal43, onde à semelhança do

40 No mesmo sentido, Ac. TRE de 13/11/2011.41 JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição..., tomo I, p. 299. 42 A este propósito, LORENA BACHMAIER WINTER, “Investigación criminal y protección de la

privacidad en la doctrina del Tribunal Europeo de Derechos Humanos” in 2.º Congresso de Investigação Criminal (coordenadores: Fernalda Palma, Augusto Silva Dias e Paulo de Sousa Mendes), Lisboa: Almedina, 2010, p. 162, fala numa sociedade que se encontra num estado, quanto a este tipo de questões, que pode qualificar-se como de stress emocial.

43 PAULO OTERO, Instituições..., tomo I, p. 644.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

poder repressivo do Estado conferido pelo recurso quase indiscriminado a estes

meios, os particulares também podem invadir o espaço de liberdade individual uns

dos outros44.

A nosso ver, estes dois aspetos – o da afirmação da prevalência da segurança

nacional sobre os interesses individuais e o entendimento de que a segurança pode

ser imposta como um dever para os particulares – enfraquecem não só a qualidade

do referido Ac. do STJ como também toda a argumentação invocada para justificar

a necessidade de se proceder a um entendimento mais flexível nesta área.

Bastante mais acertada parece-nos a aproximação à necessidade de conjugar a

segurança com outros direitos, ao contrário de conceder-lhe um princípio de

prevalência. E isto porque fazer-se com a segurança precisamente o que se critica

em relação ao entendimento de superioridade dos direitos à imagem, à palavra ou

à intimidade não nos parece o caminho mais acertado. A segurança deve ser

sempre posta ao serviço da pessoa humana e não ser entendida como meio de

instrumentalizá-la ou erodir o seu espaço de liberdade45.

2.2. A identificação dos critérios invocados para permitir a sua utilizaçãoprobatória

A rigidez da solução que prevê a impossibilidade de utilização processual de

gravações ou fotografias obtidas sem consentimento levou a que a maioria da

jurisprudência nacional, alicerçada na afirmação da necessidade de atender a

outros valores igualmente relevantes como os que são postos em causa por estes

meios de prova, tenha vindo a caminhar em sentido contrário.

Ora, uma das questões que mais nos motivou a apresentar esta temática à luz

de uma análise jurisprudencial foi a de tentar perceber quais os critérios invocados

44 FARIA DA COSTA, “As telecomunicações e a privacidade: o olhar (in)discreto de um penalista", in Direito Penal da Comunicação - Alguns escritos, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, pp. 162 e 163.

45 PAULO OTERO, Instituições..., tomo I, p. 643.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

para permitir tal utilização. A esse propósito, não podemos deixar de mencionar

como mais uma das nossas conclusões o facto de existir uma grande

homogeneidade relativamente aos critérios gerais invocados. Esta tendência mais

permissiva possui um relativo grau de sedimentação na nossa jurisprudência, na

medida em que se pode dizer que os critérios identificados são bastante repetidos e

podemos formulá-los, com relativa liberdade, nos seguintes termos:

Não constitui crime a obtenção de gravações/imagens, mesmo sem o

consentimento do visado, sempre que 1) exista justa causa para esse

procedimento, e 2) não diga respeito ao núcleo duro da vida privada do

mesmo46.

Foi com base nesta formulação, mencionada e repetida em vários Acórdãos,

que identificámos os dois grandes critérios utilizados para permitir a sua admissão

processual. Iremos tratar, dentro deste capítulo, cada um dos critérios

autonomamente, analisando a forma como são densificados e os problemas que

podem levantar.

2.2.1. O primeiro critério: "Não dizer respeito ao núcleo duro da vidaprivada"

A primeira questão com que nos devemos preocupar é a de perceber qual é a

perspetiva da jurisprudência maioritária acerca da determinação das situações que

possam cair dentro do conceito de núcleo duro da vida privada. É que o art. 192º

do CP fala em devassa da vida privada, parecendo aparentemente remeter para um

conceito mais geral do que aquele que a expressão núcleo duro da vida privada

nos pode apontar, pelo menos de forma literal. Note-se que esta diferenciação

46 Assim Ac. STJ de 28/09/2011; Ac. STJ de 20/06/2001; Ac. do STJ de 15/02/1995; Ac. do STJ de 09/02/1994; Ac. TRP de 23/10/2013; Ac. TRP de 23/01/2013; Ac. TRP de 23/11/2011; Ac. TRP de 14/10/2009; Ac. TRP de 26/03/2008; Ac. TRG de 26/04/2010; Ac. TRG de 29/03/2004; Ac. TRG de 19/05/2003; Ac. TRG de 30/09/2002; Ac. TRC de 10/10/2012; Ac. TRL de 04/03/2010; Ac. TRL de 28/05/2009; Ac. TRE de 24/04/2012; Ac.TRE de 28/06/2011.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

pode também ser encontrada no próprio art. 26º, nº 1 da CRP, que tutela a

privacidade e a elevou a um direito fundamental47, que nos fala em intimidade da

vida privada, parecendo reportar-se a um qualquer aspeto mais restrito dentro do

conceito de privacidade. Interessa-nos então tentar compreender com o que é que a

jurisprudência identifica e como é que concretiza esse tal núcleo duro da vida

privada e se essa aparente diferenciação nas normas tem alguma relevância no seu

âmbito de proteção.

O bem jurídico privacidade (em sentido material48), tutelado pelo art. 192º do

CP, encontra a sua fundamentação constitucional na previsão do direito à

intimidade da reserva da vida privada do art. 26º, nº 1 da CRP. Trata-se de um

direito relativamente recente e cuja progessiva necessidade de proteção foi

surgindo com o entrelaçamento entre o exponencial desenvolvimento tecnológico

e as formas cada vez maiores de devassa e agressão por ele potenciadas49. Face à

consagração da dignidade humana como valor fundamental de todo o ordenamento

jurídico, a afirmação e realização da personalidade humana só consegue ter lugar

na medida em que lhe seja garantida a existência de um espaço próprio e livre de

interferências50. Assim interessa-nos enquanto seres auto-determinativos que

factos, situações ou simples comunicações não sejam conhecidos por terceiros ou

sendo-o, que seja o próprio titular a controlar quem pode aceder a esse

conhecimento51. Essa dupla vertente encontra-se igualmente concretizada na

47 CONDE CORREIA, "Qual o significado de abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações?", in Revista do MP, Ano 20, nº 79, julho/setembro 1999, p. 47.

48 Isto significa que as ações descritas no art. 192º do CP só poderão ser consideradas como típicas na medida em que tenham por objeto factos, eventos ou dados concretamente pertinentes à área de reserva.COSTA ANDRADE, “A tutela penal da imagem na Alemanha e em Portugal”, in Revista de Legislaçãoe Jurisprudência, Ano 141, nº 3972, janeiro/fevereiro 2012, p. 154. Se isso não suceder, as ações podemcontinuar a ser puníveis, mas apenas dentro do contexto de outras infrações contra a vida privada em sentido formal, como por exemplo o art. 194º, ou cair no âmbito de tutela do art. 199º do CP. COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1058.

49 FARIA DA COSTA, "As telecomunicações e a privacidade: o olhar (in)discreto de um penalista", in Direito Penal da Comunicação - Alguns escritos, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 176. No mesmo sentido, MOTA PINTO, "O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada", in Boletim da FDUC,vol. LXIX, Coimbra: Coimbra Editora, 1983, p. 511.

50 MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Band I, C. H. Beck: München, 1996 p. 156. 51 GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição Anotada, vol. I, 4ª ed., Coimbra: Coimbra

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

incriminação do art. 192º, nº 1 que, por um lado, pune não só o ato de intromissão

nas alíneas a), b) e c), como também o de divulgação dos factos relativos à vida

privada nos termos da alínea d).

Alguns autores têm defendido a hipótese de aplicar na ordem jurídica

portuguesa a conhecida teoria das três esferas52, construída e desenvolvida pela

doutrina e jurisprudência alemãs de modo a determinar o conteúdo do conceito de

privacidade. De acordo com esta teoria, o âmbito (maior ou menor) de proteção

deste direito à privacidade é delimitado em função da pertença a cada uma das

esferas em que se pode dividir a nossa vida. Assim, existiria a

Öffentlichkeitsphäre, isto é, a esfera da vida pública onde se inserem as

informações suscetíveis de serem conhecidas por todos, estando arredada da

proteção garantida ao direito à reserva da vida privada53. Por oposição, existiria a

Intimsphäre, esta relativa à vida íntima e a todos os factos que devem ser

subtraídos ao conhecimento de qualquer pessoa, não admitindo compressões ou

restrições, quer por parte do Estado, quer por parte dos particulares, encontrando-

se fora de um eventual juízo de ponderação quando se colocassem hipóteses em

que se concluísse pela sua violação54. No meio destas duas estaria a Privatsphäre,

que englobaria os acontecimentos e as informações que o titular apenas partilha

com um número restrito de pessoas e cuja extensão seria influenciada pelo estatuto

concreto do titular do direito55. O seu nível de proteção não seria tão intenso como

o conferido à Intimsphäre, podendo os factos que nela caíssem ser submetidos a

um juízo de ponderação quando confrontados com razões de segurança pública ou

Editora, 2007 p. 467. No mesmo sentido, MOTA PINTO, "A proteção da vida privada e a Constituição",in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXVI, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 169

52 Fazem-no COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1047; PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário doCP..., p. 521; FARIA DA COSTA, “O direito penal...” p. 71; RITA AMARAL CABRAL, “O direito à intimidade e à vida privada”, in Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo Cunha, Lisboa: AAFDL, 1989, p. 398 e CAPELO DE SOUSA, O direito geral..., pp. 326 a 328.

53 MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz..., p. 164. 54 CLAUS ROXIN, Pasado, presente y futuro del Derecho Procesal Penal (trad.: Óscar Julían Guerrero

Peralta), 1ª ed., Santa Fe: Rubinzal Culzoni, 2007, p. 104. 55 MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz..., pp. 161 e 162.

22

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

de interesse público56. Tendo em conta a utilização da já mencionada expressão

núcleo duro da vida privada e a leitura imediata que dela podemos fazer, cabe

saber se a jurisprudência dos tribunais superiores tem seguido esta teoria das três

esferas como forma de concretizar o conceito.

Das decisões que lemos e analisámos, só uma o fez – e foi apenas ao nível da

1.ª instância. Esta posição vem referida no Ac. TRE de 13/11/2011 a propósito de

um caso em que se questionou a admissibilidade de fotografias que registavam a

prática de abusos sexuais do arguido com vários menores como prova desses

crimes. Apesar de as fotografias terem sido tiradas pelo próprio, a sua não

admissão como prova foi sufragada pelo Tribunal de 1.ª instância pelo facto de o

seu conteúdo dizer respeito à vida íntima (sexual) dos visados. A esse propósito, o

mesmo Tribunal escreveu que seguimos aqui Costa Andrade, quando se posiciona

no sentido de que o princípio da ponderação de interesses é imprestável para os

casos em que a fotografia ou o registo da imagem atingiu a esfera mais nuclear

da intimidade (e não apenas a esfera dos outros graus da privacidade), a qual

constitui uma área nuclear inviolável, mesmo para efeitos de justiça e de

perseguição criminal, nomeadamente para utilização como prova no processo

penal. No entanto, esta foi a singela referência que encontrámos relativamente à

aplicação da teoria, sendo certo que a restante jurisprudência não faz qualquer tipo

de distinção de esferas dentro do conceito de privacidade57.

Dentro dos defensores da aplicabilidade da teoria das três esferas existem

aqueles que defendem que a proteção conferida pela nossa ordem jurídica se limita

apenas à esfera íntima58. Por outro lado existem outros autores que rejeitam esta

separação entre uma esfera íntima e uma esfera privada. Estão neste campo MOTA

56 MANGOLDT e KLEIN, Das Bonner Grundgesetz – Kommentar, Band 1, München: Franz Vahlen, 1985, p. 159 e MAUNZ- DÜRIG, Grundgesetz..., p. 162.

57 Assim, Ac. TRL de 30/10/2008 ou o Ac. TRG de 29/03/2004 que considera, a propósito do conceito de reserva da vida privada que o que está constitucionalmente protegido é apenas a esfera privada e íntima do indivíduo.

58 RITA AMARAL CABRAL, “O direito à intimidade...”, p. 399.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

PINTO59, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA60 e também BENEDITA

MAC CRORIE61. Neste ponto podemos concluir que as tendências da

jurisprudência têm ido no mesmo sentido das considerações tecidas por estes

últimos autores que consideram que a teoria das três esferas pode não ser

suficientemente forte para resistir aos argumentos que contra ela podem ser

invocados62.

Uma critica inicial que se pode fazer é a de saber se existem mesmo as tais

áreas irredutíveis e intocáveis, sejam quais forem as circunstâncias e os casos

concretos. Parece-nos que não devemos aceitar acriticamente à partida a existência

de direitos que se afirmam de um modo tão radical e absoluto, desconsiderando

todo e qualquer circunstancialismo envolvente. Para além disso, as próprias

fronteiras entre as esferas da intimidade e da privacidade são de difícil definição63,

dependentes do caso concreto, diríamos até dependentes de uma certa

arbitrariedade, oscilando quanto ao seu conteúdo, não havendo consenso aparente

sobre o que pertence a uma e a outra64. Ora, não existindo um critério de

diferenciação relativamente seguro e estável, não parece ser razoável fazer dele

depender a redução ou a ampliação da proteção do direito à reserva da intimidade

da vida privada.

Assim apesar da expressão núcleo duro poder, à primeira vista, remeter-nos

para uma concretização particular em que apenas certos aspetos mais íntimos da

privacidade estariam protegidos, consideramos que a tutela não se deve limitar

exclusivamente a esses aspetos – a própria jurisprudência não o faz e a

incriminação do art. 192º do CP não tutela apenas a área mais restrita da

intimidade. No entanto, isto não significa que existam condições para se afirmar

59 MOTA PINTO, “A proteção...”, pp. 524 e 525.60 GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição..., p. 468. 61 BENEDITA MAC CRORIE, “O direito à reserva...", p. 57. 62 Mesmo a própria jurisprudência alemã mais recente tem vindo a colocar a aplicação da teoria em causa.

MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz..., p. 164. 63 MANGOLDT e KLEIN, Das Bonner Grundgesetz..., p. 159. 64 CONDE CORREIA, “Questões práticas relativas à utilização de diários íntimos como meio de prova

em processo penal”, in Revista do CEJ, nº 6, 1º semestre de 2007, p. 151.

24

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

que todos os factos e acontecimentos que possam ser levados ao conceito de

privacidade possuam o mesmo grau de proteção – tratando-se de um conceito tão

vasto, abrange uma miríade de situações que podem estar mais ou menos

próximas do seu núcleo fundamental. Relativamente a este aspeto, a teoria dos três

graus poder-se-á afirmar como útil, na medida em que pode guiar-nos no

estabelecimento de níveis de ofensa à privacidade. Contudo, perde a sua utilidade

a partir do momento em que possa servir de fundamento apenas para proteger em

exclusivo a esfera da intimidade.

2.2.1.1. A concretização do conceito de vida privada do art. 192º do CP

Quando o art. 192º do CP fala em vida privada tem como referencial a sua

oposição ao conceito de vida pública. A dificuldade de encontrar uma definição

concreta para cada um destes conceitos e a impossibilidade de se fazer uma

separação estanque entre eles tem sido um aspeto unanimemente considerado pela

doutrina65.

Poderia invocar-se o local onde ocorre a conduta. O art. 192º, nº 1 do CP fala

também em espaços íntimos e lugar privado, tornando-se essencial determinar a

relevância deste critério. PINTO DE ALBUQUERQUE esclarece que o espaço

íntimo ou lugar privado não equivale apenas à habitação, dizendo antes respeito a

espaços vedados ao público em que se desenvolva a vida privada66. Parece assim

identificar-se o âmbito da proteção da reserva da vida privada com o local onde o

comportamento ocorra. De facto, quando estamos num local público não é de se

esperar que pensemos estar a agir sob o manto da privacidade67, uma vez que

estamos em locais acessíveis à generalidade das pessoas, em que qualquer um

65 MOTA PINTO, “O direito à reserva...”, p. 504, BENEDITA MAC CRORIE, “O direito à reserva...”, p. 56 ou SÉRGIO PENA, “Os produtos da videovigilância...”, p. 90.

66 PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário..., p. 520. 67 FARIA DA COSTA, “As telecomunicações...”, pp. 157 e 158.

25

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

pode tomar conhecimento das nossas condutas68; já se estivermos num local

privado ou reservado, a expectativa de não intromissão é incomparavelmente mais

elevada.

Este critério é bastante utilizado em várias decisões jurisprudenciais, sobretudo

em casos respeitantes à admissibilidade de gravações de videovigilância. Alguns

Acórdãos fazem referência à circunstância de as imagens terem sido captadas num

local público de forma a concluir pela não violação da intimidade da vida privada69

e muitas vezes automaticamente admitir assim o meio de prova. Por exemplo, no

Ac. STJ de 20/06/2011, o Procurador do MP encarregue de se pronunciar sobre o

recurso considerou que, como as gravações captadas pela videovigilância, in casu,

foram recolhidas em local público (…) outra coisa não seria de esperar da parte

do arguido ou de qualquer outra pessoa que estivesse ao alcance das máquinas –

ser captada a sua imagem. Igualmente no mesmo sentido se pronunciam os Acs.

do TRP de 14/10/2009 (admitindo as gravações de videovigilância, captadas num

posto de combustível, como prova contra os assaltantes), de 03/02/2010 (também

admitindo as gravações de videovigilância que documentavam a intromissão

noturna do arguido num estabelecimento público que se encontrava encerrado) e

de 23/10/2013 que considerou que a imagem captada, em local público, por factos

ocorridos em via pública, do suposto autor do crime por um lado não constitui

nenhuma violação do núcleo duro da sua vida privada, nem do seu direito à

imagem, não sendo necessário o seu consentimento para essa gravação; no

mesmo sentido, os Acs. do TRG de 29/03/2004, referindo-se igualmente a um

caso de captação de imagens de um assalto a um posto de combustível, e de

19/05/2003, que concluiu que o arguido não foi filmado no contexto da sua esfera

privada porque as mesmas imagens foram captadas numa caixa multibanco.

Assim podemos concluir que o critério do local onde ocorre a conduta é, não

poucas vezes, utilizado para determinar se houve violação do direito à intimidade

68 RITA AMARAL CABRAL, “O direito à intimidade...”, p. 396. 69 E também, como iremos ver, do próprio direito à imagem por força do nº 2 do art. 79º do CC.

26

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

da vida privada do visado. Apesar de parecer uma solução relativamente líquida,

consideramos que as coisas nem sempre serão assim tao lineares. Isto porque para

nós não é totalmente descabido configurar possibilidades de agressão à

privacidade mesmo em sítios públicos70 71. Consideramos que o direito à

privacidade não se deve reportar exclusivamente à circunstância de um indivíduo

estar num determinado espaço físico. Por ser um direito pessoal, acompanha o seu

titular onde quer que vá e continua em princípio a merecer ponderação de tutela

mesmo em lugares públicos.

Face a estas dificuldades, na nossa perspetiva, não devemos considerar o local

como um critério determinante para distinguir os factos que pertencem à vida

privada dos que pertencem à vida pública, embora, como escreve MOTA PINTO,

este seja um elemento importante a ter em consideração72. Só que tê-lo em

consideração não equivale a elevá-lo a único critério decisivo – e parece-nos que é

isso que algumas decisões têm feito.

Não podendo usar para todos os casos o critério do local, poderemos operar a

distinção entre o que é a vida pública e privada com base na vontade subjetiva do

titular, pertencendo à última tudo aquilo que o indivíduo em questão considerasse

não dever ser partilhado? O Ac. do TC nº 263/97 menciona a possibilidade de a

própria noção de vida privada ser em certa medida dependente do indivíduo, no

entanto reconhecendo também que essa determinação deve ser feita recorrendo a

valorações sociais correntes sobre a questão. Vão no mesmo sentido as decisões

que referem que a proteção da vida privada das pessoas abrange os casos em que

as gravações ou imagens tomadas o foram em algum local privado, total ou

parcialmente restrito, no qual, segundo as conceções morais vigentes, uma pessoa

não deva ser retratada73.

A introdução deste elemento de variação em função da perspetiva do indivíduo

70 MOTA PINTO, “A proteção...”, pp. 165 e 166. Contra, FARIA DA COSTA, “O direito penal...", p. 70. 71 Defendendo esta posição, o Ac. TRL de 15/02/1989 e o Ac. TRL de 30/10/2008. 72 MOTA PINTO, “A proteção...”, p. 165. 73 Ac. STJ de 20/06/2011; Ac. TRP de 14/10/2009 ou Ac. TRP de 03/02/2010.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

e das próprias conceções sociais pode levar-nos por um caminho perigoso de

relativização do conceito, não devendo ser este também o caminho adequado, pois

de outro modo nunca teríamos forma de saber com alguma certeza o que é que

seria privado ou não por depender em última instância de considerações pessoais

do indivíduo.

Quanto ao seu conteúdo, a formulação do art. 192º do CP dá-nos uma

orientação definitiva na direção de que todos os aspetos relacionados com a

intimidade da vida familiar ou sexual são englobados dentro da vida privada. Só

que a lei refere através da utilização da expressão designadamente que a vida

privada pode englobar outros aspetos igualmente tutelados. A jurisprudência dos

Tribunais da Relação, quando chamados a pronunciar-se sobre a averiguação da

violação do direito à reserva da intimidade da vida privada nos casos da admissão

de gravações e fotografias como meio de prova, têm identificado o tal núcleo duro,

portanto a área de privacidade tutelada, como a intimidade, a sexualidade, a

saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora

do conhecimento das outras pessoas74.

O art. 192º do CP identifica duas formas a que se pode reconduzir a devassa –

por um lado, a obtenção de informação mediante intromissão na privacidade, que

pode ser concretizada por uma das condutas tipificadas nas als. a), b) e c) (e

apenas só por elas); por outro lado, a utilização, transmissão ou divulgação da

informação (quanto a esta última, a violação pode ser levada a cabo por qualquer

forma, uma vez que a al. d) não estabelece nenhuma modalidade específica de

conduta), isto é o alargamento do universo de pessoas a ter conhecimento das

coisas pertinentes à área de reserva75, independentemente de na sua origem ter

existido um acesso legítimo a essas informações. Isto permite-nos concluir que as

referidas modalidades não possuem uma relação de comunicabilidade automática

relativamente à licitude ou ilicitude do comportamento em que se manifestam.

74 Ac. TRP de 14/10/2009, o Ac. TRP de 11/07/2012, o Ac. TRL de 04/03/2010, o Ac. TRE de 28/06/2011 ou o Ac. TRE de 24/04/2012.

75 COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1057.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

Se concluirmos que não está em causa qualquer violação da vida privada do

visado, não existindo responsabilidade criminal subsumível ao art. 192º do CP,

podemos, automaticamente admitir gravações de voz ou registos de imagem como

prova?

É que o direito à reserva da intimidade da vida privada não é o único, nem tão

pouco o principal direito agredido neste tipo de situações. Com efeito, a própria

palavra e a imagem do visado podem ser igualmente afetadas. Assim sendo, cabe

avançar mais um passo na nossa análise e concluir se essa violação, não inserida

dentro de um contexto privado, pode ainda assim ter lugar, tentando também

averiguar se a jurisprudência dos tribunais superiores acolhe ou não este

entendimento.

2.2.2. A insuficiência do critério: a violação autónoma dos direitos à imagem eà palavra

Sendo inegável que as gravações e fotografias efetuados por particulares

podem afetar a vida privada dos indivíduos, a verdade é que estes meios técnicos

colocam em causa dois outros direitos fundamentais – o direito à imagem e o

direito à palavra – art. 26º, nº 1 da CRP; art. 79º do CC, para a imagem76e art. 199º

do CP. A tutela destes dois direitos garante que ninguém possa ver registadas ou

divulgadas palavras ou imagens suas sem o seu consentimento.

As violações ao direito à reserva da intimidade da vida privada podem andar

intimamente ligadas a violações aos direitos à palavra e à imagem dos atingidos77

– e isso é imediatamente percetível logo na incriminação do art. 192º, nº1, alíneas

a) e b). No entanto quando o art. 167º, nº 1 do CPP manda atender à ilicitude da

76 Apesar de na lei civil o direito à palavra não estar autonomizado, alguns autores têm entendido que o art. 79º do CC deve ser também a ele aplicado. Assim, JORGE MIRANDA, “Processo penal...”, p. 390 e NUNO LUMBRALES, “O direito à palavra...”, p. 211.

77 JOÃO CAIRES, “O registo de som e imagem e as escutas ambientais”, in Direito da Investigação Criminal e da Prova (coord.: Fernanda Palma, Augusto Silva Dias, Paulo de Sousa Mendes e Carlota Almeida), Coimbra: Almedina, 2014, p. 277.

29

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

conduta, não nos parece que esteja apenas e só a proteger a intimidade da vida

privada dos visados78, protegendo igualmente a sua própria imagem e a sua própria

palavra de forma independente, sobrando-lhes um espaço próprio de subsistência

materializado pelo art. 199º do CP.

Sendo à partida inegável a ligação entre estes três direitos79, cabe determinar se

essa mesma ligação é um requisito essencial para que possamos considerar a

ilicitude da conduta e, por essa via, excluir a admissibilidade de gravações de voz

e registo de imagem como meio de prova. Parece-nos que a resposta a dar não

pode deixar de ser negativa com base no entendimento de que os direitos à palavra

e à imagem se configuram como direitos autónomos e independentes e que podem

ser analisados em separado independentemente da sua afetação dizer respeito a um

contexto de violação da vida privada. Interessa-nos expor os argumentos que nos

permitem fazer tal caraterização.

Talvez não comecemos da melhor maneira ao dizer que historicamente os

direitos à palavra e à imagem foram descobertos no seio da privacidade80. Em

1976, a CRP previa apenas o direito à reserva da intimidade da vida privada, sendo

a imagem e a palavra protegidas apenas na medida em que atentados contra elas se

dirigissem também contra a vida privada81. Mais tarde com as revisões

constitucionais, em 1982, surge a referência expressa ao direito à imagem e em

1989 ao direito à palavra. A este propósito, o Ac. STJ de 28/09/2011,

considerando o direito à imagem como uma manifestação do direito ao segredo da

vida privada, conclui que a autonomização que é feita na lei constitucional é um

critério que não assume relevância prática82. Ora a nossa ver ocorre o contrário.

78 Como defende PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário..., p. 463.79 JORGE MIRANDA, “Processo penal...”, p. 389 e RITA AMARAL CABRAL, “O direito à

intimidade...”, p. 402.80 COSTA ANDRADE, “Sobre a reforma do Código Penal português”, in RPCC, Ano 3, Fasc. 2-4, abril-

dezembro 1993, p. 435.81 Mas é curioso notar que na lei civil tanto o direito à reserva da intimidade da vida privada, como o

direito à imagem já se encontravam autonomizados desde 1966.82 O mesmo Acórdão contraditoriamente mais à frente, reconhece a autonomia dos direitos à imagem e à

palavra.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

Precisamente (mas não só) porque a lei constitucional autonomiza estes direitos,

daqui podemos retirar a conclusão de que se pretendeu que eles tivessem

tratamentos autónomos83. Embora deva ficar notado que este não é um argumento

definitivo a favor da sua autonomização. E isto porque em outras legislações

europeias, apesar de tal como por cá existir um reconhecimento constitucional

autónomo destes direitos, a verdade é que, no que concerne especificamente ao

direito à imagem, a sua proteção em termos penais acaba por andar sempre

associada à existência de uma ofensa à privacidade. Por exemplo, a Constituição

espanhola reconhece o direito à imagem como um direito fundamental e consagra-

o autonomamente; no entanto ao nível da proteção penal no art. 197º do seu CP, a

incriminação diz respeito apenas a el que, para descubrir los secretos o vulnerar

la intimidad de outro, sin su consentimiento (…) utilice artifícios técnicos de

escucha, transmissión, grabación o reprodución del sonido o de la imagen . Da

mesma forma, a Grundgesetz alemã reconhece a existência autónoma do direito à

imagem, decantado de um direito geral de personalidade; no entanto, o § 201 a) do

StGB protege a imagem apenas na medida em que tenha havido uma violação da

esfera da vida pessoal – Verletzung des höchtspersönlichen Lebensbereichs durch

Bildaufnahme84. Cremos que isso pode estar relacionado com a própria função

subsidiária de ultima ratio reservada ao direito penal que acaba por operar

mudanças muito mais lentas quando comparado com os direitos fundamentais85,

que se caraterizam por ter uma maior velocidade no acompanhamento dos

progressos sociais, científicos e tecnológicos. Daí que essa associação que

continua a ser feita entre a imagem e a privacidade também não deva ser, da

mesma forma, um argumento definitivo no sentido de se defender a sua inevitável

ligação. Até porque apesar de podermos considerar que a nossa lei recebeu

83 Ac. TRL 15/02/1989. 84 E isto sem prejuízo de existir, no direito alemão, uma norma muito antiga, datada de 1907, na KUG, no

seu § 33, que pune a divulgação e exposição arbitrárias da fotografia de outrem (mas, note-se, não pune a produção arbitrária, revelando aqui uma tutela lacunosa).

85 COSTA ANDRADE, “A tutela penal...”, p. 139, utilizando, a este propósito, uma comparação curiosa: o direito penal marcha normalmente atrás, como os lictores romanos.

31

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

influências de outros ordenamentos jurídicos (especialmente o alemão), sobra-lhe

sempre um espaço próprio de autonomia e de consagração de soluções

inovadoras86.

A par da consagração constitucional do direito à imagem em 1982, o CP

passou a prever pela primeira vez o crime de gravações e fotografias ilícitas (no

antigo art. 179º), ao lado dos crimes de divulgação de factos referentes à

intimidade da vida privada (no art. 178º) e de intromissão na vida privada (art.

180º). Apesar da aparente intenção de lhe conferir a merecida autonomia, o

referido artigo encontrava-se sistematicamente inserido no Cap. VI, que dizia

respeito a crimes contra a reserva da vida privada. Para além disso, no caso

específico das fotografias ilícitas, a al. c) do nº 1 exigia que as mesmas dissessem

respeito ao registo de aspetos da vida particular de outrem, um regime claramente

influenciado pelas considerações que ditavam o direito à imagem como uma

concretização típica do direito à privacidade87. A sua desinserção sistemática

acabou por ocorrer em 1995, passando a deixá-lo sob a égide dos crimes contra

outros bens jurídicos pessoais88. Eliminou-se a referência, no caso das fotografias

ou filmes, aos aspetos da vida privada de outrem. Uma pista essencial e quase

definitiva no sentido da sua autonomização89.

A propósito de encontrar mais argumentos para invocar a nossa posição refira-

se, ainda que a temática em causa não esteja enquadrada no âmbito das provas

obtidas por particulares, o problema de interpretação que se tem levantado a

propósito do art. 6º da Lei nº 5/2002, que prevê o registo de voz e imagem como

86 COSTA ANDRADE, “A tutela penal...”, p. 138. 87 É curioso notar que, do lado das gravações ilícitas, não existia qualquer menção ao facto de o seu

conteúdo ter de dizer respeito a aspetos da vida particular, o que, para nós, é sinal de duas coisas: em primeiro lugar, que o direito à palavra, por ser um direito que só conhece consagração autónoma na nossa Constituição, se desligou muito mais rapidamente do direito à privacidade por força da inexistência de construções doutrinárias sobre a sua concretização; em segundo lugar, que a relação entre o direito à imagem e à privacidade manteve-se muito por força precisamente desse labor doutrinário, que acabou por aprofundar mais os problemas relacionais entre os dois direitos, tornando mais difícil o processo da sua autonomização.

88 FIGUEIREDO DIAS, “O Código Penal português de 1982 e a sua reforma”, in RPCC, Ano 3, abril-dezembro de 1993, pp. 191 e 192.

89 PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário..., p. 536.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

meio de prova, estando a sua admissão pré-ordenada, entre outros critérios, à

existência de uma prévia autorização por parte do JIC. Tem-se questionado se esta

autorização deve ter lugar apenas quando através desse registo se possa ter acesso

a aspetos da vida privada do visado, defendendo-se a sua desnecessidade para os

restantes casos90. Ora, a resposta dada por MÁRIO FERREIRA MONTE parece-

nos a correta e os argumentos invocados por este autor, que responde que essa

autorização deve ter sempre lugar, independentemente de estar ou não em causa

aspetos da vida privada do vigiado, baseiam-se na afirmação da autonomia dos

direitos à imagem e à palavra91.

No entanto, não se pense que tal autonomização tem o sentido de separar em

absoluto estes direitos, permitindo a partir daqui defender-se uma posição de que

só um ou outro poderia ser violado num caso concreto. Com efeito, existem

situações de violação simultânea dos mesmos92, mas tal não significa que todos os

direitos em causa devam ser confundidos no seu tratamento, exigindo-se que o

mesmo se faça de forma autónoma para cada um deles. Cabe agora saber se a

jurisprudência dos tribunais superiores tem manifestado o mesmo entendimento.

O Ac. STJ de 20/06/2001, considera que as proibições de gravação de vídeo

estabelecidas no art. 167º, nº 1 do CPP se destinam a defender a vida, a atividade

privada das pessoas. Parece-nos que esta afirmação, com todo o devido respeito,

peca por incompleta e parcelar93. Pensamos que a defesa da privacidade não é o

90 Ac. TRC de 22/01/2002.91 MÁRIO FERREIRA MONTE, “O registo de voz e imagem no âmbito do combate à criminalidade

organizada e económico-financeira”, in Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira, CEJ, Coimbra Editora: Coimbra, 2004, pp. 87 e 88.

92 HUGO TAVARES, “A tutela penal do direito à imagem - entre a subsidiariedade do direito penal e a unidade do sistema jurídico no problema da construção da área de tutela típica", in Direito Penal Hoje (organizadores: Manuel da Costa Andrade e Rita Castanheira Neves), Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 191.

93 No mesmo sentido, Ac. TRL 04/03/2010 que identifica a presença de apenas dois direitos merecedores de tutela: direito à propriedade, segurança de pessoas e bens contra o direito à intimidade, esquecendo-se de referir o direito à imagem. No entanto, acaba por também analisar a sua violação autónoma mais àfrente. Igualmente, o Ac. TRC 10/10/2012 quando afirma que o uso das tecnologias de informação, dascomunicações e da videovigilância pode conflituar com o direito à intimidade e à vida privada, deixando fora de consideração direitos como a imagem ou a palavra.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

único nem mesmo o principal interesse subjacente à norma. A proibição de

utilização destes meios de prova destina-se sobretudo, e antes de mais, a tutelar os

bens jurídicos da imagem e da palavra, independentemente de estar em causa uma

violação (simultânea) da privacidade.

O referido Acórdão faz, a nosso ver, uma coisa criticável – identificando que a

proibição de utilização de vídeos (in casu, de videovigilância) se funda

primordialmente na não ofensa da vida privada, a douta decisão conclui que, tendo

sido as imagens captadas num local público, então a prova é imediatamente

admitida. Não parece ter havido qualquer consideração pela existência de outros

bens jurídicos igualmente violados. Igual caminho parece percorrer o Ac. TRG de

19/05/2003 que, decidindo sobre a legalidade de fotogramas obtidos através de um

sistema de videovigilância instalado numa caixa de multibanco, bastou-se com a

afirmação de que os mesmos eram admissíveis pois não colocavam em causa a

vida privada do arguido, esquecendo-se de que ainda assim a possibilidade de se

ter violado o direito à imagem do visado merecia uma análise autónoma (mesmo

que depois se concluísse que não tinha havido qualquer violação deste último).

Apesar do que aqui ficou dito, estes Acórdãos são casos pontuais e

minoritários, uma vez que a restante jurisprudência tem vindo a separar

corretamente a identificação e verificação da violação do direito à reserva da

privacidade, por um lado, e a identificação e verificação da violação do direito à

imagem ou à palavra, por outro94.

2.2.2.1. O art. 199º do CP e a sua área de tutela típica

A imagem e a palavra configuram-se como os bens jurídicos tutelados pela

incriminação do art. 199º do CP, cabendo então de uma forma breve identificar o

94 Assim Ac. TRP 23/11/2011, Ac. TRP 26/03/2008, Ac. TRE 28/06/2011 e Ac. TRL 28/05/2009; Ac. TRP14/10/2009; Ac. TRP 03/02/2010; Ac. TRP 23/04/2008; Ac. TRP 23/10/2013; Ac. TRL 03/05/2006; Ac. TRL 15/02/1989; Ac. TRL 30/10/2008; Ac. TRE 13/11/2011; Ac. TRG de 29/03/2004 e, por fim, Ac. TRE 24/04/2012.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

conteúdo dos respetivos direitos que estão na sua base.

O direito à palavra confere a possibilidade de dominar a quem pode chegar a

nossa comunicação (tanto na perspetiva de decidir quem pode gravá-la ou quem

pode, depois de dada essa autorização, utilizá-la). A comunicação por palavras

operada através da nossa voz assume-se como uma das principais formas de

desenvolvimento pessoal e social95, garantindo-nos que as mesmas se destinam

apenas a ser proferidas e ouvidas num determinado momento, atendendo a um

certo contexto96, sob pena de, em última instância, tudo o que por nós for dito

poder vir a ser utilizado em contextos diferentes, alterando a própria essência do

discurso originário. O uso arbitrário da palavra, fora de contexto em que foi

proferida, levaria a que houvesse uma diminuição da confiança entre as pessoas,

podendo em última análise estagnar o próprio processo comunicativo. A livre

disponibilidade sobre a palavra, materializada através da voz como atributo da

personalidade, e a garantia de que ela permanece apenas confinada a um

determinado tempo, espaço e contexto por nós idealizado constitui o seu conteúdo

típico97.

No que toca ao direito à imagem, o raciocínio será fundamentalmente o

mesmo. Tal como a palavra, a nossa imagem constitui mais uma das manifestações

da nossa personalidade, sobre a qual devemos ter todo o domínio possível98. Isto

significa que cada um de nós deve decidir sobre a possibilidade ou não da sua

própria exposição99.

Esta semelhança de tratamento não deve dar-nos a pista errada de que existe

uma total sobreposição em relação às suas respetivas zonas de proteção. E isto

porque no caso das gravações de voz a inexistência de consentimento implica logo

95 FARIA COSTA, “As telecomunicações...”, p. 147. 96 COSTA ANDRADE, “A tutela penal...”, p. 152, fala, no seguimento da doutrina e jurisprudência

germânicas, de um direito à transitoriedade da palavra: “a pretensão e a convicção de que a palavra seja,por princípio, apenas ouvida no momento e no contexto em que é proferida”.

97 GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição..., Vol. I, p. 467. 98 COSTA ANDRADE, “Sobre a reforma...”, p. 494. 99 GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição..., vol. I, p. 467.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

a ilicitude da conduta, enquanto que no caso das fotografias ou filmes que captem

a imagem de uma pessoa, basta apenas que não contrariem a sua vontade100, sendo

que a escolha das diferentes expressões pelo legislador não foi acidental nem

desprovida de significado101. Também neste contexto de descontinuidade entre as

áreas de tutela reservadas à palavra e à imagem assume especial relevância o art.

79º, nº 2 do CC para o caso da imagem102, que prevê causas específicas de

dispensa de consentimento da pessoa retratada que podem manifestar-se logo ao

nível do tipo. Assim por força da sua maior exposição exterior103, a imagem acaba

por ter um âmbito de tutela mais restrito do que aquele que é conferido à

palavra104.

Dentro desta limitação, a proteção assegurada à palavra e à imagem não se faz

de uma forma abrangente, no sentido de que visa toda e qualquer conduta lesiva

como típica. Tanto a tutela da palavra como a da imagem estão vinculadas ou à

utilização de gravadores para o primeiro caso, ou à utilização de processos

técnicos de captação ou divulgação105 para o segundo – uma manifestação da

descontinuidade e fragmentariedade típicas do Direito Penal.

As condutas típicas em que se podem manifestar as agressões a estes bens

jurídicos são essencialmente duas: o ato de gravar ou fotografar (art. 199º, nº 1,

al. a) e nº 2, al. a)) e a utilização dessas gravações ou fotografias (art. 199º, nº 1,

al. b) e nº 2 , al. b)). Assim, gravar ou fotografar consiste no registo técnico das

palavras ou da imagem num qualquer suporte (por exemplo, fita magnética, disco,

cassete, câmara de filmar, etc.) tornando possível a sua posterior audição ou

reprodução. A utilização consiste numa nova audição ou visualização das

gravações de voz ou das imagens, seja, por exemplo, através da sua publicação nos

100COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1185.101 PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário..., p. 536. 102 HUGO TAVARES, “A tutela penal... ”, p. 201. 103 COSTA ANDRADE, “Sobre a reforma...”, p. 496.104 HUGO TAVARES, “A tutela penal...”, p. 208. 105 COSTA ANDRADE, “A tutela penal...”, pronuncia-se, atualmente, pela extensão da proteção do direito

à imagem a outras formas de atentado que não pressuponham a mediação necessária da máquina fotográfica, defendendo, para este direito, um novo paradgima normativo de compreensão e de tutela.

36

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

órgãos de comunicação social ou na internet ou da sua utilização como prova em

processo. A propósito da utilização refira-se que a mesma continua a ser punida

mesmo que a obtenção (seja pela pessoa que a utiliza, seja por terceiro) tenha sido

atípica ou justificada (art. 199º, nº 1, al. b), parte final e nº 2, al. b), parte final).

Este é um aspeto que consideramos essencial mas que será abordado com maior

pormenor mais à frente. Por agora, interessa apenas reter que as duas condutas que

preenchem a previsão do art. 199º do CP devem ser analisadas autonomamente,

não se podendo dizer que se comunica a legitimidade na obtenção para a sua

posterior utilização.

Quanto ao objeto da ação do crime, do lado das fotografias ilícitas temos a

imagem física da pessoa (não abrangendo portanto espaços ou objetos, que de

resto se se reportarem a contextos privados gozam da proteção do art. 192º, nº 1,

al. b) do CP); do lado das gravações ilícitas temos a palavra falada por outra

pessoa (excluíndo-se todas as formas de comunicação não orais106) e não

destinada ao público. O conteúdo das palavras é irrelevante, isto é tanto faz se o

que foi gravado foi um diálogo completamente neutro ou banal ou se se trata de

uma conversação relativa a algum crime107. Refira-se que se pode colocar a

questão de sabermos que critério devemos utilizar para determinar se as palavras

eram ou não destinadas ao público – atendendo a um critério objetivo como por

exemplo o local onde as mesmas são proferidas ou apelando a um elemento

subjetivo baseado na vontade querida pelo do autor das palavras? Tanto COSTA

ANDRADE108 como PINTO DE ALBUQUERQUE109 consideram que a norma dá

prevalência ao elemento subjetivo através da expressão destinadas110. Assim,

palavras não destinadas ao públicos serão aquelas que segundo a vontade de quem

106 COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1203 e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário..., p. 536.

107 CONSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1204. 108 COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1205, referindo, embora, que o critério objetivo também deve

servir de complementação. 109 PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário..., p. 536. 110 Pelo contrário, o § 201, nº 1 do StGB refere nichtöffentlich gesprochene Wort, ou seja, palavras não

proferidas publicamente, parecendo estar aqui em causa a opção por um elemento mais objetivo.

37

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

as profere, se destinam a círculos de pessoas individualizadas ou numericamente

determinadas ou ligadas por vínculos recíprocos111.

Tanto do lado das gravações como das fotografias consideradas ilícitas, a

gravação ou captação tem de dizer respeito a outra pessoa (expressão utilizada

tanto no nº 1, al. a) como no nº 2, al. a) do art. 199º do CP), estando excluída da

sua área de tutela típica os casos em que as mesmas são feitas pelo próprio visado.

2.2.2.1.1. A atipicidade de gravações ou fotografias feitas pelo autor das mesmas

Se as palavras gravadas ou a imagem forem proferidas ou captadas pelo autor

das mesmas, a conduta perde a sua relevância típica. Tratam-se de hipóteses que já

foram tratadas pela jurisprudência112. No caso de gravações de voz, as hipóteses

diziam respeito a mensagens de voice mail deixadas no telefone do ofendido que

consubstanciavam um crime de ameaça (art. 153º CP), um crime de difamação

(art. 180º CP) ou um crime de injúria (art. 181º CP). Todas as decisões

mencionadas concluíram pela admissibilidade de o ofendido poder utilizar essas

mesmas gravações como prova do(s) crime(s) em causa. E isto porque referem

precisamente que o caráter voluntário da gravação não pode ser uma conduta

subsumível ao art. 199º CP – assim, o Ac. do TRL de 05/02/2003, identifica

corretamente que o registo não resultou de qualquer iniciativa heteronómica dos

poderes públicos ou de terceiros, mas de um ato da própria recorrente que,

voluntariamente, pretendeu que a sua voz ficasse registada no sistema de

gravação do telefone do marido da assistente; também o Ac. do TRP de

111 COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1206. São por via disso consideradas públicas as palavras proferidas em reuniões de órgãos abertos ao público, em comícios políticos, conferências de imprensa, entrevistas de rádio ou de televisão, etc.; pelo contrário, não serão destinadas ao público palavras proferidas em reuniões à porta fechada ou de acesso condicionado, numa sala de aula, numa conversa entre amigos ou entre um funcionário ou agente da Administração Pública e um cidadão, etc.

112 Ac. TRP de 19/06/2002; Ac. TRP de 17/12/1997; Ac. TRL de 05/02/2003; Ac. TRE de 4/12/2001.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

19/06/2002 ressalta o facto de a gravação não ter sido efetuada por iniciativa dos

assistentes ou de terceiros. Foi o próprio arguido que ligou para o telemóvel dos

assistentes e deixou aí gravadas, no voice mail, as mensagens que entendeu113;

igualmente o Ac. do TRE de 4/12/2001 afasta o argumento da falta de

consentimento de quem deixou as referidas mensagens, uma vez que foram

proferidas com base na sua livre e espontânea vontade e sem qualquer intervenção

do assistente, considerando que não houve intromissão do denunciante na vida

privada ou domicílio da arguida, indo mais longe até ao ponto de afirmar que

aconteceu exatamente o contrário – ou seja, as mensagens gravadas pela arguida

no atendedor de chamadas do denunciante é que poderiam ser consideradas uma

intromissão na sua vida privada ou nas suas telecomunicações. O Ac. do TRP de

17/12/1997, defendendo a mesma solução para um caso idêntico, faz uma analogia

interessante considerando que a gravação aqui funciona como uma mensagem

dirigida pelo arguido ao ofendido, tal como acontece nos casos de uma carta

escrita, sendo que, neste último caso, nunca se questionaria a sua

inadmissibilidade como meio de prova. Com efeito, quanto a estas situações

específicas, concordamos em geral com o entendimento proferido pelas doutas

decisões. É inquestionável a nosso ver que o art. 199º, nº 1 do CP não visa

proteger o autor das palavras nos casos em que foi ele próprio, de forma

consciente e voluntária, a proceder à gravação das mesmas, tendo a perfeita noção

de que elas estavam a ser gravadas. Ainda para mais, tendo em atenção que não

existe qualquer ato ou intenção por parte de quem recebe a mensagem de voz de

proceder à sua gravação, uma vez que a mesma ocorre de forma automática sem

qualquer intervenção do titular do telefone.

Da mesma forma, do lado das fotografias, encontrámos Ac. do TRE de

13/11/2011, que tratou de se pronunciar sobre a admissibilidade como prova de um

113 Apesar de neste Acórdão, a própria gravação em si não ter sido usada como meio de prova. Antesrecorreu-se ao depoimento de testemunhas que, a pedido dos assistentes, tomaram conhecimento dasmensagens gravadas e que transmitiram esse conhecimento ao tribunal.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

conjunto de fotografias em que dois arguidos eram retratados em cenas de

intimidade sexual com vários menores. A douta sentença contrariou a decisão do

JIC do tribunal a quo114 e admitiu o meio de prova em questão uma vez que as

fotografias eram da autoria dos próprios arguidos e por isso não poderiam ser

subsumíveis nem ao art. 192º nem ao art. 199º do CP.

A propósito desta questão nunca nos podemos esquecer que a incriminação em

causa também pune a utilização das gravações/imagens, hipótese que se deve

colocar autonomamente. No caso das gravações de voz, é verdade que os recetores

das mensagens ofensivas não tiveram qualquer intervenção na sua recolha, o

mesmo se passando para o caso das fotografias. No entanto, acontece que são

terceiros e não os próprios autores a reproduzir posteriormente as gravações ou as

imagens, apresentando-as como meios de prova, havendo que questionar se essa

conduta não poderá ser subsumível às als. b) dos nºs. 1 e 2 do art. 199º do CP. E

isso foi um raciocínio que não foi operado em nenhuma das decisões

mencionadas.

Apesar dessa falha, cremos que nestes casos a utilização das gravações ou

fotografias continua a não ser punida. E isto porque as als. b) dos nºs. 1 e 2

reportam-se às gravações ou fotografias referidas na alínea anterior. Ora, as ditas

alíneas não incluem as gravações e fotografias realizadas pelo autor das mesmas

na sua área de tutela típica e portanto não podem entrar em equacionação para se

punir a sua utilização115.

114 O argumento utilizado pelo JIC para rejeitar a admissão foi o de que as fotografias consistiam naprática de um ilícito criminal, uma vez que não tinha havido qualquer consentimento de utilização dasmesmas no processo por parte das vítimas do abuso sexual (nem de quem tinha poder para o dar emnome delas). Ou seja, o indiferimento do pedido nem sequer teve por base a tutela dos direitos àprivacidade e à imagem dos suspeitos, mas sim dos menores visados – e precisamente por essa razão, anosso ver, o meretíssimo JIC deveria ter chegado à conclusão oposta. É que, mesmo tendo sidofotografados contra sua vontade, para além das fotografias reproduzirem materialmente o crime emcausa, não se deve presumir que a sua utilização em processo fosse contrária à sua vontade.

115 No mesmo sentido, MILENE MARTINS, A admissibilidade..., p. 63.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

2.2.2.1.2. A redução teleológica de sentido vitimodogmático

Ainda a propósito da análise da tipicidade cabe perguntar se a norma deve ou

não abranger a proteção da palavra ou imagem que materialize um crime. Isto é,

será legítimo invocar, por parte de quem tenha sido gravado ou fotografado sem

consentimento ou contra vontade, a proteção da incriminação nos casos em que o

próprio estava a praticar um outro crime e portanto a colocar-se numa posição de

desrepeito pela ordem jurídica, para depois vir beneficiar dessa proteção? É que os

direitos fundamentais não são absolutos e não podem cobrir todas as formas e

modos do seu exercício, possuíndo limites que definem o que está ou não

enquadrado dentro do seu âmbito de proteção – aquilo a que a doutrina chama de

limites imanentes dos direitos fundamentais116. Assim, por exemplo, quando a CRP

prevê o direito à palavra estará a querer estender essa sua proteção às situações em

que o titular desse direito a utilize por forma a injuriar alguém? Certamente que

não. É que se o objetivo da norma seria precisamente o de evitar a

instrumentalização da palavra por parte de terceiros, a mesma regra poderia valer

quando é o titular do direito a proceder ele próprio a essa mesma

instrumentalização?

Com base na fundamentação da referida teoria, alguma jurisprudência tem

defendido que a norma do art. 199º deve sofrer uma redução teleológica do tipo de

sentido vitimodogmático, não se aplicando aos casos em que o próprio titular da

palavra ou da imagem estaria a ter um comportamento ilícito ou, pelo menos,

censurável117. Basta pensar-se, por exemplo, nos crimes de ameaça, injúria,

extorsão, coação ou até mesmo corrupção em que a vítima dos mesmos procede à

sua gravação para se defender118. Nestes casos ressalta-nos estranheza em admitir

116 VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 267.

117 COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1219. 118 KLAUS ROGALL, “A nova regulamentação da vigilância das telecomunicações na Alemanha”, in 2.º

Congresso de Investigação Criminal (coord.: Fernanda Palma, Augusto Silva Dias e Paulo de Sousa Mendes), Lisboa: Almedina, 2010, p. 127.

41

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

que aquele que se coloca numa posição atentatória das normas jurídicas e contrária

ao Direito possa poder invocar posteriormente a sua proteção. Com base nestas

considerações, tem sido comum e consensual entre a doutrina e a jurisprudência119

defender que quem procedeu à gravação ou à fotografia não deva ver a sua

conduta criminalizada. Ora, não sendo a sua conduta criminalizada, portanto lícita

à luz do ordenamento jurídico, a jurisprudência admite estes meios de prova. A

este propósito, refira-se a posição de PINTO DE ALBUQUERQUE que considera

que podem ser valoradas como prova as reproduções da materialidade da palavra

criminosa, uma vez que o art. 26º, nº 1 da CRP não reconhece um direito à

palavra criminosa, e, portanto, o direito penal (...) não protege a palavra

criminosa, entendendo que pela mesma razão, o direito penal também não protege

a materialidade da imagem do crime120. No mesmo sentido, o Ac. STJ de

28/09/2011 considera que contrariamente ao defendido por alguma doutrina,

entendemos que o comportamento ilícito do titular do direito à palavra e imagem

no uso da mesma determina a perda da dignidade penal da ofensa do referido

direito (...). A protecção acaba quando aquilo que se protege constitui a prática

de um crime; apesar de o Ac. TRL de 03/05/2006 ter considerado nulas as provas

obtidas através de uma câmara de vídeo colocada no local de trabalho do arguido,

a mesma decisão tem uma declaração de voto vencido do Juiz Desembargador

Mário Morgado dizendo que a captação de imagem dirigida a provar factos

ilícitos em locais públicos ou no local de trabalho deve considerar-se desprovida

de tipicidade (aquele tipo criminal deve sofrer uma redução da área de tutela de

sentido vitimodogmático)...; igualmente o Ac. TRE de 13/11/2011 defende que no

que se reporta à atipicidade, é pela via da redução teleológica do tipo,

nomeadamente pela consideração que nos encontramos fora da área de proteção

da norma penal (...) que pensamos encontrar resposta mais sustentada.

Apesar de apelativa, esta tese não é livre de críticas. Denegar logo ao arguido a

119 COSTA ANDRADE, Sobre as proibições..., p. 255. 120 PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário..., p. 463.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

proteção primária conferida pela norma do art. 199º do CP – cuja ação típica se

basta apenas e só com a captação ou utilização da imagem física da pessoa,

inexistindo qualquer referencial axiológico para essa captura/utilização121 –

parece ser um raciocínio contrário não só à sua posição no processo, como

também aos fundamentos político-criminais do direito penal, sendo que foi este

último que os considerou como tendo a mais inequívoca dignidade122. Mas mesmo

que se trate de uma pessoa cuja conduta manifeste uma oposição ao Direito, não

seria defensável pensar que ela seja desmerecedora de todo e qualquer tipo de

tutela – a isso o obriga não só o valor da dignidade humana como espírito

interpretativo de todo o sistema, como a própria posição de superioridade ética do

Direito.

Não queremos com isto defender que quem seja confrontando com este tipo de

situações deva ser punido criminalmente. Se é verdade que temos bastantes

reservas em aceitar a operatividade da redução teleológica do tipo, também não

menos verdade é que a incriminação da conduta não se fica só pela análise dos

elementos do tipo. Sobrará sempre espaço – e um espaço relevante – para a

aplicação de causas de justificação que excluam a ilicitude, como a legítima defesa

ou o direito de necessidade e que a nosso ver podem ter a vantagem de considerar

outros circunstancialismos importantes que não têm lugar se se excluir logo a

relevância da conduta ao nível do tipo (por exemplo, a posição em que se

encontrava o particular que efetuou a gravação ou registou a imagem123 – estava a

defender-se de uma agressão ou, pelo contrário, estava simplesmente a arrogar-se

ao papel de órgão investigatório com o fim de perseguir criminalmente o visado?).

121 SÉRGIO PENA, “Os produtos da videovigilância...”, p. 114. 122 COSTA ANDRADE, Sobre as proibições..., p. 257. 123 MILENE MARTINS, A admissibilidade..., p. 144.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

2.2.2.1.3. A concordância e o acordo presumido

Por fim deve salientar-se que tratando-se de direitos cujos objetos concedem

ao seu titular o seu domínio exclusivo, a concordância – seja o consentimento no

caso das gravações, seja a vontade (presumida) nos casos das fotografias ou filmes

– deve valer como um acordo que exclui a tipicidade. Isto significa que havendo

acordo por parte do portador concreto124 na gravação das suas palavras ou na

captação da sua imagem e na sua utilização, a ilicitude deve ser excluída logo ao

nível do tipo.

Se o acordo for expresso, não existem dúvidas de que o mesmo exclui a

tipicidade da conduta; porém, aplica-se a mesma solução para o acordo presumido

ou este último é antes uma causa de justificação que não opera logo ao nível do

tipo? PINTO DE ALBUQUERQUE pronuncia-se pela primeira posição,

considerando que há acordo presumido quando o portador do bem jurídico sabe

que as suas palavras estão a ser gravadas e não se opõe à gravação, esclarecendo

que o mesmo vale para a fotografia ou filmagem125. Pelo contrário, COSTA

ANDRADE considera o acordo presumido como uma causa de justificação que

exclui a ilicitude, mas não a tipicidade126.

Alguma jurisprudência também se tem manifestado pela licitude da obtenção

de imagens de videovigilância por presumir a existência de consentimento nos

casos em que existam avisos sobre a presença das câmaras ou existam outros

comportamentos da parte do visado que permitam concluir que o mesmo sabia

dessa existência. O Ac. TRE de 28/06/2011, a propósito da valoração processual

de fotogramas provenientes de um sistema de videovigilância instalado por um

particular à porta da entrada da sua habitação com vista a determinar quem seriam

os autores do dano, decidiu da sua admissão uma vez que um dos filmados (a

124 Ou dos portadores concretos, nas hipóteses em que existam vários intervenientes na gravação. Neste último caso, consideramos que será necessária a existência de consentimento de todos eles para que se possa excluir a tipicidade. Contra, PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário..., p. 537.

125 PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário..., p. 537.126 COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1223.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

testemunha) deu a posteriori o seu consentimento para a utilização da imagem;

relativamente a outro dos filmados (o arguido), o tribunal entendeu que a recolha

da sua imagem também não poderia ser ilícita uma vez que dizem-nos as regras

da experiência que não desconhecia a existência da câmara visto que o mesmo

havia exteriorizado a preocupação de usar um capuz precisamente para não ser

reconhecido nas imagens; no mesmo sentido, Ac. TRL de 04/03/2010 que

argumenta que o arguido viu as câmaras de filmar e, mesmo assim, não se absteve

de praticar os factos (...) pelo que, pelo menos tacitamente, aceitou a captação

das suas imagens; também o Ac. TRP de 03/02/2010 considera que no caso em

apreço, não é possível afirmar que a gravação da imagem do arguido foi

efectuada contra a sua vontade, pois (...) no interior do estabelecimento em

causa, existe um aviso escrito advertindo o público da existência de sistema de

videovigilância.

É claro que nos casos em que tais gravações ou fotografias, mesmo que

licitamente obtidas, sejam posteriormente utilizadas como prova em processo

penal contra o visado, será lógica a conclusão de que dificilmente irá haver acordo

no sentido de permitir a sua utilização – porque obviamente isso irá esbarrar

contra os seus interesses processuais legítimos de defesa. Nesse sentido, teríamos

de ultrapassar à mesma o problema do impedimento da utilização das gravações

ou fotografias, independentemente de termos excluído a tipicidade ou a ilicitude

no momento da sua obtenção com base no acordo presumido.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

2.2.3. O segundo critério: "Haver justa causa na sua obtenção"

2.2.3.1. A via da ponderação de interesses conflituantes

Afirmando-se como direitos fundamentais, os direitos à privacidade, à imagem

e à palavra gozam do regime protetor do art. 18º da CRP. Por via disso, nos termos

do seu nº 2, as restrições a estes direitos só podem operar nos casos expressamente

previstos na Constituição. No entanto, tem sido o entendimento geral de que esta

norma não proíbe de forma absoluta a possibilidade de restrição legal a direitos

que não vêm na norma constitucional qualquer tipo de previsão a essa

possibilidade. Não faria sentido invocar outra posição uma vez que os direitos em

causa não existem isoladamente, mas antes num espaço de co-habitação com

outros direitos ou interesses que beneficiam desse mesmo estatuto e que se

afirmam como igualmente essenciais para a própria sobrevivência da comunidade

humana. Essa realidade de convivência traduz-se não só num inevitável processo

de modelação dos limites e do conteúdo que os direitos ou interesses em causa

operam uns sobre os outros.

Com base nisso, e atendendo às específicas necessidades decorrentes da

compatibilização de interesses que há de ocorrer ao nível da prova, alguma

jurisprudência tem recorrido a esta possibilidade de restrição conferida pelo nº 2

do art. 18 da CRP para, depois de identificar um conflito de interesses, resolver o

mesmo a favor da prevalência do direito à segurança ou dos interesses inerentes à

exigência coletiva de uma justiça eficaz127, com base na análise do princípio da

proporcionalidade.

Dando igualmente corpo a este entendimento, há muito que a jurisprudência e

os autores alemães se têm manifestado em sentido semelhante, optando por esta

via para resolver os problemas de utilização de gravações ou fotografias obtidas

127 FIGUEIREDO DIAS, “Para uma reforma global do processo penal português”, in Para uma Nova Justiça Penal (AA. VV.), Coimbra: Almedina, 1983, p. 206.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

por particulares. Assim, na determinação das provas que podem ser admitidas, a

resolução da questão é fundamentada com base num princípio de ponderação de

interesses, admitindo-se a desconsideração de direitos fundamentais afetados

quando confrontados com as necessidades inerentes ao combate à criminalidade

mais grave. No que concerne a provas trazidas ao processo penal por particulares,

a sua inadmissibilidade não se encontra à partida vedada se a mesma passar pelo

teste do princípio constitucional da proporcionalidade (Verhältnissmäßigkeit)128.

Ora, este princípio impõe que o julgador pondere a título casuístico e à luz das

circunstâncias do caso concreto entre o direito à privacidade do ofendido e a

importância da prova face à gravidade do crime em causa, por forma a concluir

sobre a sua admissibilidade129. A realização da justiça penal afirma-se como um

interesse primordial do Rechtsstaat, que em determinados casos concretos, pode

implicar um sacrifício dos direitos fundamentais afetados. Bem patentes desta

conclusão são as paradigmáticas decisões do BverG de 31/01/1973 (em que estava

em causa a análise da admissibilidade de uma gravação efetuada por um particular,

cujo conteúdo poderia provar um crime de fraude fiscal) e do BGH de 21/02/1964

(relativa à admissibilidade de um diário apreendido por um particular como meio

de prova). Na primeira decisão, o TC identificou a existência de um conflito entre

dois princípios constitucionais: por um lado, uma justiça eficaz (einer wirksamen

Rechtspflege), que se afirma nos imperativos da aplicação eficaz da lei, na luta

contra o crime, no interesse público da máxima determinação possível da verdade

e na exigência da manutenção de uma justiça que funcione; por outro, o direito à

palavra do visado. No caso, atendendo à pouca gravidade da incriminação, o TC

acabou por não admitir a gravação. Note-se que a sua inadmissibilidade não ficou

a dever-se à sua ilicitude face à lei penal, mas antes à valoração insuficiente do

128 Partindo do princípio de que não está em causa qualquer aspeto pertencente à esfera mais íntima do visado porque, em caso afirmativo, a jurisprudência e a doutrina alemãs não têm admitido qualquer tipode ingerência nessa esfera.

129 CRAIG BRADLEY, “The Exclusionary Rule in Germany”, in Harvard Law Review, Vol. 96, n.º 5, mar. 1983, p. 1041.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

interesse na investigação do crime. E o critério utilizado para aferir dessa

valoração seria o da gravidade do delito em causa130.

Na segunda decisão referida, o BGH identificou, ao lado da privacidade do

visado, o interesse do Estado na perseguição criminal (das Interesse des Staates

an der Strafverfolgung), considerando que o propósito de investigar e punir

infrações tem uma grande importância. No entanto, também neste caso apesar

dessa afirmação, o BGH não aceitou o diário como meio de prova porque a

gravidade da intromissão na esfera privada suplantava a menor gravidade do crime

em causa. Independentemente de as duas decisões não terem admitido os referidos

meios de prova, a verdade é que a afirmação do interesse punitivo do Estado, da

própria eficácia da justiça e da necessidade de reação contra a criminalidade grave

passaram a ser configurados como valores protegidos e cuja ponderação se tornou

essencial para decidir sobre a admissibilidade da prova, mesmo que esta tenha tido

por base a violação de uma norma penal ou de um direito fundamental

constitucionalmente consagrado.

Num outro caso datado de 1989 e tratado pelo BGH, a aplicação desta solução

também teve lugar utilizando especificamente o critério da gravidade do delito,

desta vez já não para excluir a admissibilidade do meio de prova, mas antes para

aceitá-lo. De forma sumária, o caso dizia respeito a uma conversa em que dois

homens de negócios falavam sobre a provocação de um incêndio, sendo que um

deles gravou, sem consentimento do outro, a referida conversa e apresentou a

gravação às autoridades. O BGH não considerou que uma conversa de negócios

pudesse pertencer à área mais nuclear e inviolável da esfera da intimidade. Por via

disso, invocou o princípio da ponderação de interesses, reconhecendo que no caso

concreto o interesse na investigação da verdade praveleceria sobre a vida privada

do visado por estar em causa um crime muito grave131.

130 MUÑOZ CONDE, “Prueba prohibida y valoración de las grabaciones audiovisuales en el proceso penal”, in Revista Penal, nº 14, 2004, p. 110.

131 CLAUS ROXIN, Pasado, presente y futuro..., pp. 107 e 108.

48

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

Antes de prosseguirmos para uma análise crítica sobre esta conceção,

queremos deixar uma nota comparatística relacionada com a forma como estes

casos seriam tratados de acordo com os princípios do direito norte-americano.

Com efeito, também este último reconhece por via do seu labor jurisprudencial a

existência da chamada exclusionary rule, que dá suporte à inadmissibilidade de

provas obtidas com violação de preceitos constitucionais. No entanto, esta norma

dirige-se unicamente aos órgãos policiais132. Como refere CRAIG BRADLEY, a

questão essencial a colocar em matéria de prova à luz do direito norte-americano é

a seguinte: Did the police break the rules?133. Em caso afirmativo a prova será

imediatamente afastada, não havendo espaço para a aplicação do princípio da

proporcionalidade de forma a que, por exemplo, se pudesse admitir a sua

utilização em casos onde ocorresse apenas uma mera irregularidade nas regras de

atuação exigidas à polícia, deixando aqui antever a ideia de alguma formalidade

excessiva134. Só que do lado das provas obtidas por particulares, não existe

qualquer tipo de limitação à sua obtenção. O que a solução norte-americana tem de

excessivamente restritiva em relação às provas ilegalmente obtidas pela polícia,

compensa num excesso permissivo de admissibilidade de todo o tipo de provas, e

seja por que forma for, por parte dos particulares. Assim, nas decisões referidas –

tanto quanto às gravações como quanto ao diário e bem assim em todas as

decisões da nossa jurisprudência que temos vindo a mencionar – porque as provas

em questão foram obtidas por particulares, as mesmas seriam imediatamente

admitidas. Segundo CRAIG BRADLEY, american courts (…) have applauded the

use of this type of evidence because of its unusually high probative value135.

Voltando à análise da aplicação do princípio da proporcionalidade como uma

solução possível para fundamentar e admitir estas provas, podemos concluir que o

132 Assim, Burdeau v. McDowell de 01/06/1921 julgado pelo U.S. Supreme Court. 133 CRAIG BRADLEY, “The exclusionary rule...”, p. 1036. 134 CRAIG BRADLEY, “The exclusionary rule...”, p. 1065, ao ponderar sobre a aplicação, nos Estados

Unidos, de um princípio semelhante ao que vigora na Alemanha, faz precisamente essa critica. 135 CRAIG BRADLEY, “The exclusionary rule...”, p. 1047.

49

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

mesmo, operando numa base casuística voltada para as especificidades de cada

caso em concreto, pondera qual o interesse específico que deve prevalecer – o

interesse na realização da justiça, um dos corolários fundamentais do Estado de

Direito, ou o interesse individual que necessite de uma proteção especial. Segundo

ROGALL, esse processo de ponderação deverá ter em conta o significado do

interesse punitivo, a gravidade da violação legal, a dignidade de tutela e a

carência de tutela do interesse lesado136. Quanto à invocação do critério da

gravidade do delito, pensamos que sobre ele podemos tecer desde logo alguns

questionamentos. É que a utilização do mesmo como critério definidor da

aceitação ou não destes meios de prova parece ser algo redutor. Assim como se

definem as fronteiras entre o que é um delito grave e o que é um delito menos

grave? Que limites da pena aplicável deveriam ser escolhidos – por exemplo,

seriam delitos graves os crimes cuja pena prevista seria superior a cinco anos? E

seria de considerar isoladamente a pena do crime em causa ou sempre num

processo de comparação com o próprio crime dos arts. 199º ou 192º do CP137?

Nenhuma destas respostas se encontra definida e inclusivamente podem-se

levantar hipóteses difíceis de resolver se se admitir a utilização única deste

critério. Assim basta pensarmos, por exemplo, nos crimes de difamação ou de

injúria que, em função da pena, não fazem parte da criminalidade grave e cuja

materialização é levada a cabo por palavras e onde a admissão de uma gravação

que os comprovasse poderia ser decisiva, tendo em conta que de outro modo se

tratam de crimes cuja prova seria mais difícil de se efetivar. Ora, as gravações não

seriam valoradas precisamente em relação a crimes cuja prova ficaria bastante

mais facilitada pela sua admissão.

Também é importante não aceitar imediatamente a elevação do interesse na

realização da justiça, materializado pela função de perseguição criminal como

merecedor de um lugar tão destacado e ao mesmo nível dos direitos fundamentais

136 Apud COSTA ANDRADE, Sobre as proibições..., p. 33. 137 MUÑOZ CONDE, “Prueba prohibida...”, p. 110.

50

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

dos visados. Isto é, com o que se disse não se pretende negar a sua existência, nem

muito menos a sua importância; contudo, na base deste entendimento encontra-se

o pressuposto de que o interesse do Estado na perseguição criminal se afirma

como um interesse constitucionalmente protegido, à semelhança dos direitos

fundamentais e isso encontra-se por demonstrar. Não seria de aplicar aqui a lógica

exatamente contrária? A imposição (e realização) de um Estado de Direito cuja

construção histórica pode, entre outros fatores, ter-se ficado a dever a atuações

excessivas e arbitrárias do poder público não implica precisamente uma certa

contraposição com os interesses da perseguição criminal? A este propósito,

GRÜNWALD escreve numa perspetiva bastante interessante que o princípio do

Estado de Direito representa um baluarte contra o qual esbarram os interesses da

perseguição penal. Agora vem (...) a inserir o interesse da perseguição penal na

própria muralha do princípio do Estado de Direito, sendo precisamente no

interior desta muralha que ele será levado à ponderação com os direitos dos

cidadãos arguidos138. Uma certa generalização deste princípio orientador de

ponderação poderia levar a uma mais fácil e normalizada aceitação de

relativização das ofensas a direitos fundamentais, acabando por subverter a lógica

do Estado de Direito.

Outra importante consideração a este respeito deve ser feita. É que a aplicação

do raciocínio da ponderação de interesses teria de ser feita pelo intérprete

aplicador da norma139. Ora, no caso destas matérias tão sensíveis poderíamos dizer

que seria de prever que fosse o próprio legislador a proceder a essa ponderação140.

Se assim não fosse, poderíamos defender que se estaria a deslocar (ou mesmo até a

retirar) o papel de ponderação que cabe ao legislador para as mãos do intérprete

aplicador141, correndo-se o risco de as soluções variarem ao sabor de conceções

próprias e casuísticas numa matéria tão fundamental em que não seria à partida

138 Apud COSTA ANDRADE, Sobre as proibições..., p. 35. 139 MILENE MARTINS, A admissibilidade..., p. 153. 140 CLAUS ROXIN, Pasado..., p. 87. 141 COSTA ANDRADE, Sobre as proibições..., p. 39.

51

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

possível admitir-se que não tenha havido uma prévia ponderação do legislador.

A propósito do princípio da ponderação de interesses poderíamos ser levados a

fazer uma equiparação mais ou menos idêntica à que é feita no âmbito do direito

de necessidade (art. 34º do CP) como causa de justificação, uma vez que o mesmo

também tem na sua base essa mesma exigência de ponderação de interesses142.

Cabe então perguntar se haveria alguma diferença na prática entre optar-se por

uma solução ou por outra. Estamos em crer que sim, principalmente porque a

atuação do direito de necessidade como causa de justificação também depende da

existência de outros requisitos e de outras valorações que podem escapar se

apelarmos apenas a uma simples ponderação de interesses. Raciocínio esse que

carregaria em cima de si todas as críticas que deixámos supra apontadas. Assim a

nosso ver, não podemos identificar imediatamente as duas coisas como sendo um

só processo – embora o direito de necessidade englobe necessariamente uma

ponderação de interesses conflituantes, não se restringe apenas a essa exigência,

acabando por ser qualquer coisa mais. E esse ser mais pode trazer maior segurança

ao intérprete aplicador. Daí que, à semelhança do que tem também acontecido com

a jurisprudência maioritária, pensemos ser mais acertado procurar eventuais

soluções de exclusão da ilicitude com base primariamente em causas de

justificação legalmente previstas – sem prejuízo de na concreta análise dessas

causas de justificação, ser sempre imprescíndivel recorrer ao princípio da

proporcionalidade e aos critérios que lhe dão corpo.

2.2.3.2. A via das causas de justificação

A maior parte da jurisprudência que tem admitido a valoração deste tipo de

provas tem fundamentado a exclusão da ilicitude das gravações ou fotografias com

142 MUÑOZ CONDE, “Prueba prohibida...”, p. 110.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

base na invocação de tipos justificadores ao invés de preferir soluções mais

radicais como a denegação da existência de um tipo incriminador. Naturalmente,

na determinação da ilicitude de uma conduta não é apenas suficiente subsumi-la a

um tipo incriminador; será necessário também averiguar sobre a existência de

causas gerais que permitam excluir a ilicitude para posteriormente se concluir em

definitivo sobre esse mesmo juízo143.

COSTA ANDRADE escreve que foram já invocadas praticamente todas as

causas clássicas de justificação, concluindo pela existência, no panorama

doutrinal, de um desencontro de linguagem, conceitos e construções

dogmáticas144, tornando-se difícil encontrar autores que coincidam na

categorização de casos típicos sob um mesmo instituto jurídico. Esta relativa

confusão doutrinária resulta da falta de consenso sobre a aplicação dos

pressupostos previstos para cada uma das causas de justificação e na dificuldade

sentida na sua aplicação a novas realidades, a novas incriminações, em suma a

novas expressões de comportamento penalmente relevante145. Isto levou a que

alguns autores fossem construíndo, ao lado das causas de justificação clássicas,

outras que permitissem ultrapassar algumas dificuldades quanto à verificação de

determinados pressupostos – como por exemplo, a chamada situação-de-quase-

legítima-defesa ou notwehrähnliche Lage, proposta por LARENZ em 1967

precisamente a propósito do tema das gravações146.

COSTA ANDRADE manifesta-se no sentido de afastar estas novas causas de

justificação, uma vez que se deve em primeiro lugar averiguar se estão esgotadas

todas as potencialidades das causas de justificação clássicas147. Do nosso lado,

concordamos com este entendimento fundamentalmente por razões de segurança

jurídica.

143 FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – Parte geral, tomo I, 2ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2007,p. 384.

144 COSTA ANDRADE, Sobre as proibições..., p. 258. 145 COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1222.146 COSTA ANDRADE, Sobre as proibições..., p. 258. 147 COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1222.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

Sem prejuízo do aparente desentendimento sobre a categorização de situações

concretas e da possibilidade da invocação de uma respetiva causa de justificação

que reúna unanimidade, a verdade é que em termos práticos o efeito acabará por

ser o mesmo. Justificando-se a ilicitude ou com base na legítima defesa ou no

direito de necessidade, o resulta será um e só um – a sua exclusão. Assim, não

vemos grande fertilidade argumentativa que se possa retirar de discussões deste

tipo porque o que a nosso ver é essencial é que a interpretação dos respetivos

pressupostos da causa de justificação escolhida seja legalmente adequada e

fundamentada.

Se do lado doutrinário se instalou uma diversidade de opiniões, construções e

tratamentos a dar a estas situações há que questionar se, da parte da jurisprudência

nacional, a tendência é a mesma. Apesar de existirem confusões inegáveis no

tratamento da matéria, quase todas as decisões acabam por invocar o art. 79º, nº 2

do CC como causa de exclusão da ilicitude (no caso do direito à imagem que é a

violação paradigmática tratada pela nossa jurisprudência). Encontrámos alguns

acórdãos que mencionaram a legítima defesa, o direito de necessidade ou as

autorizações legais, mas o seu uso foi pontual. Notámos também que em algumas

decisões houve a preocupação de explorar e demonstrar a possível aplicação de

causas de justificação simultâneas, o que a nosso ver revela a potencialidade dos

campos de intervenção destas causas de justificação (e a consequente diminuição

do âmbito de tutela típica das incriminações penais em causa), e a necessidade de

legitimar a todo o custo a aceitação destes meios de prova no processo.

De seguida iremos tecer algumas considerações sobre cada uma das causas de

justificação potencialmente invocáveis. De notar ainda que apesar de o

consentimento ser também uma das causas de exclusão da ilcitiude (arts. 31º, nº 1,

al. d) e art. 38º, ambos do CP), como já vimos a propósito da análise do âmbito de

tutela da norma do art. 199º, o mesmo deve ser tratado como um acordo que exclui

a tipicidade e portanto remetemos para aí as considerações que fizémos a

54

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

propósito dos problemas que se podem levantar quanto a esta causa específica.

A legítima defesa (art. 32º CP) é em abstrato uma causa de justificação cuja

utilidade pode ser bastante relevante para a temática das gravações de voz não

consentidas. Isto porque as mesmas podem afirmar-se como meios necessários

para repelir uma agressão atual e ilícita de um interesse juridicamente protegido.

Basta pensarmos no exemplo paradigmático dos crimes de coação (art. 154º CP)

ou de extorsão (art. 223º CP) – por forma a defender-se da ameaça, a vítima

procede à gravação do agente, seja com a finalidade de identificá-lo ou mesmo

para recolher prova.

No entanto, há que avançar com cautela e nunca esquecer os requisitos

específicos que possam fundamentar o recurso à legítima defesa. Logo à partida, o

meio (a gravação) tem de ser necessário, isto é idóneo a evitar ou pôr fim à

agressão. Assim se for possível à vítima recorrer à força pública, o requisito da

necessidade fica afastado. Por outro lado, dentro dos meios idóneos, o escolhido

deverá ser o menos gravoso para o agressor. Por fim, temos de estar perante uma

agressão atual148. Quanto a este último requisito, COSTA ANDRADE considera

que será de excluir a sua aplicação quando a comunicação esgota a agressão, como

por exemplo no crime de injúrias ou em que com a gravação apenas se pretende

prevenir um perigo futuro149. A este propósito coloca-se a questão de saber se se

poderá admitir a legítima defesa preventiva150. Assim, se A sabendo com toda a

certeza que B vai agredir C e se dirige ao local combinado com a câmara

preparada para filmar tudo, não se pode argumentar que tenha agido em legítima

defesa. E isto logo porque a ameaça pode ser evitada com o recurso às autoridades

públicas. Claro que podemos discutir se o recurso às autoridades seria eficaz no

148 Segundo PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário..., p. 146, a atualidade da agressão verifica-se quando ela está em curso ou está iminente. Iminente é a agressão que tenha alcançado o estádio dos atosde execução ou, sendo puníveis, dos atos preparatórios.

149 COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1224. 150 Admitindo que quando está em causa a preparação antecipada da defesa através de aparelhos

automáticos relativamente a uma agressão eventual, a defesa é legítima do ponto de vista da atualidade, desde que no momento da defesa a agressão seja atual, FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal..., p. 413.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

caso concreto de forma a afastar a agressão ilícita. É que se A se dirigisse à

esquadra da polícia mais próxima e relatasse os planos de B, dificilmente os

agentes da autoridade poderiam fazer alguma coisa visto que até onde soubessem

B não tinha praticado qualquer ilícito. Se, por outro lado, A esperasse pelo início

do confronto para chamar a polícia, aí a agressão já estaria a ser consumada,

podendo a chegada das autoridades tornar-se inútil. A nosso ver, A poderia, para

além de recorrer às autoridades públicas, ter à sua disposição outros meios idóneos

para prevenir a agressão – poderia, por exemplo, convencer C a não comparecer

no local ou intervir apenas na iminência do confronto, colocando-se em posição

defensiva de forma a impedir a agressão. É que a utilidade de filmar o crime seria

tão-só a de o poder provar posteriormente; não se vê como é que a filmagem

poderia ajudar no momento concreto a repelir a agressão à integridade física de C.

Seria mesmo até um pouco absurdo admitir-se que A estivesse por detrás da

câmara a assistir impavidamente ao que quis evitar que acontecesse, quando

poderia ao invés auxiliar C.

De todo o modo, a certeza sobre a inaplicabilidade da legítima defesa não

prejudica a possível aplicação de outras causas de justificação, como por exemplo

o direito de necessidade (defensivo151) - assim, o art. 34º do CP fala da

possibilidade de afastar um perigo atual e já não uma agressão atual. No entanto,

para além da óbvia adequação do meio utilizado, é ainda necessário que se

cumpram cumulativamente os restantes requisitos das als. a), b) e c) para

fundamentar a sua aplicação.

Especial atenção merece a al. b) que exige uma sensível superioridade do

interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado, sendo que se trata

de uma aplicação prevista na lei penal do princípio da ponderação de interesses

conflituantes e que pensamos ser nesta sede que o mesmo deva ser

preferencialmente equacionado. Uma vez que nos encontramos perante uma

151 PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário..., p. 159: o agente reage ao abrigo de um estado de necessidade defensivo, caraterizado pela reação do agente contra um interesse jurídico do agressor ou causador da situação de perigo, quando não se verifiquem todos os requisitos da legítima defesa.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

hipótese de conflito entre interesses jurídicos distintos, a questão lógica a colocar

será a de tentar perceber como deve ser o mesmo solucionado. A que critérios

então devemos recorrer para determinar se no caso concreto existe ou não uma

sensível superioridade do interesse a salvaguardar? À partida, poderíamos ser

imediatamente levados a pensar no critério quantitativo da moldura penal prevista

pela lei (o que nos remete para o critério da gravidade do delito da ponderação de

interesses e para a crítica que lhe fizémos anteriormente) ou na tendente

hieraquização entre bens jurídicos pessoais versus bens jurídicos patrimoniais, que

costuma dar prevalência aos primeiros, para encontrarmos uma solução

definitiva152. No entanto, temos de ter em atenção outros critérios complementares

e igualmente relevantes (como, por exemplo, a intensidade da lesão do bem

jurídico, o grau de perigo e a autonomia pessoal do sacrificado153), que resultem

já não de uma conclusão que possamos retirar exclusivamente apoiada na lei, mas

conexionando (...) os critérios estritamente legais com outros de natureza ético-

social, a que não se pode renunciar154.

A nosso ver, mesmo que se possam apontar à partida algumas limitações aos

casos em que a legítima defesa pode operar, e que por consequência possa deixar

de abranger situações relevantes como os casos de perigo de repetição da agressão

(em que falha o requisito da atualidade da agressão) ou de estado de necessidade

probatório155, consideramos que as mesmas falhas podem ser corrigidas ao nível

da aplicação do direito de necessidade, desde que cumpridos os seus requisitos.

Consideramos que esta é uma causa de justificação de inegáveis virtualidades,

com a capacidade de conceder soluções mais amplas, mas ainda dentro do sistema,

com critérios objetivamente melhor demarcados do que o apelo a um simples juízo

de ponderação de interesses, isolado de outras circunstâncias importantes que

devem ser tidas em conta.

152 PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário..., p. 159. 153 PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário..., p. 159. 154 EDUARDO CORREIA apud PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário..., p. 159. 155 COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1224.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

Também pode ser invocada como causa de justificação a existência de

autorizações legais, isto é, de casos expressamente contidos em leis onde estejam

previstas possibilidades de atentados permitidos aos bens jurídicos pertinentes.

Maior relevância para a nossa temática têm as autorizações legais que permitem o

recurso à videovigilância ou estabelecem mesmo até a sua obrigatoriedade de

utilização por entidades privadas. A principal finalidade que podemos encontrar na

base da utilização destes sistemas prende-se com a proteção de pessoas e bens e a

prevenção da prática de crimes156 157. Ora, essas finalidades não se identificam

necessariamente com a possibilidade de aproveitamento das gravações assim

obtidas158, precisamente porque a finalidade da instalação dos sistemas de

videovigilância não está fundada na perseguição criminal do visado nem na sua

posterior utilização como prova159 – até porque visando a proteção de pessoas e

bens e a prevenção da prática de crimes, os sistemas de videovigilância legalmente

autorizados não têm por destinatários quaisquer pessoas concretas, mas antes toda

e qualquer pessoa cuja imagem possa ser captada dentro do seu âmbito de

incidência espacial160.

O problema é que muitas vezes os sistemas de videovigilância instalados

156 Arts. 1º, nº 1 e 31º, nº 1 da Lei n.º 34/2013.157 Explique-se, ainda a este propósito, que de acordo com a Lei n.º 67/98, o fundamento de legitimidade

para o tratamento de dados pessoais pode se encontrar, em abstrato, ou numa disposição legal ou no consentimento (nº 2 do art. 7º), na proteção de interesses vitais (al. a) do nº 3 do art. 7º) ou ainda no exercício e defesa de um direito em processo judicial (al. d) do nº 3 do art. 7º). Fora desses casos, e umavez que, como refere a Deliberação n.º 61/2004 da CNPD, a grande maioria dos pedidos de notificação visam assegurar a proteção de pessoas e bens, há que encontrar, na referida lei, um outro fundamento legitimador. A CNPD tem encontrado esse fundamento na previsão do art. 8º, nº 2 da Lei n.º 67/98. Sendo que, nesse caso, e também nos casos em que o fundamento de legitimidade possa ser invocado com base no nº 2 do art, 7º, o art. 28º, nº 1, al. a) estabelece que esse tratamento carece sempre de autorização por parte da CNPN (e não de mera notificação). A este propósito, queremos deixar uma pequena nota de dúvida acerca da subsunção dos interesses de proteção de pessoas e bens e à prática de infrações criminais a esta norma. Com efeito, não conseguimos compreender muito bem o enquadramento que a CNPD parece querer fazer e não conseguimos ficar convencidos com a sua argumentação – vd. Delib. n.º 61/2004, concretamente pp. 12 e 13.

158 Ao contrário do que parece afirmar a CNPD na sua Delib. n.º 61/2004, englobando a obtenção de meios de prova “numa estratégia integrada que visa a proteção de pessoas e bens”.

159 Em sentido contrário, JOÃO CAIRES, “O registo de som...”, pp. 286 e 287. 160 SÉRGIO PENA, “Os produtos da videovigilância...”, pp. 86 e 87, fala em videovigilância em sentido

próprio, excluindo do seu tratamento as situações em que este tipo de sistemas são utilizados intraprocessualmente e com imediata finalidade investigatória. No mesmo sentido, Ac. TC nº. 456/93.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

acabam por captar pessoas individuais e concretas na prática de crimes e, embora

não sendo essa a sua finalidade primordial, há que questionar acerca do seu

eventual aproveitamento para fins processuais.

Nos casos em que a videovigilância se encontra legalmente prevista, pensamos

ser muito difícil negar a sua admissibilidade como prova. E assim o é porque

fundamentalmente não só é a própria lei a impor ou autorizar a sua utilização, mas

porque tal permissão encerra à partida uma ponderação própria previamente

efetuada pelo legislador que considerou aceitáveis, dentro dos moldes por ele

permitidos, as restrições aos direitos potencialmente afetados. É que os ditos

regimes legais não prevêm simplesmente a videovigilância em abstrato. Antes

condicionam também a sua utilização a critérios de necessidade, adequação e

proporcionalidade – assim veja-se a redação do art. 31º, nº 1 da Lei n.º 34/2013 ou

a Deliberação n.º 61/2004, de 19 de abril, relativa aos princípios sobre o

tratamento de dados por videovigilância proferida pela CNPD, entidade

responsável por autorizar a instalação destes sitemas. Note-se que essa ponderação

é sempre feita em concreto e atendendo às especificidades do pedido para o qual a

videovigilância foi requerida.

Se no caso concreto esses critérios foram ponderados decidindo-se em sentido

favorável à sua utilização, é dificilmente defensável não aceitar os produtos assim

obtidos como meio de prova. Note-se que para além de os três critérios acima

referidos, existem ainda outras imposições legais a cumprir (tanto nos regimes

específicos, bem como no regime geral da Lei n.º 67/98). Refira-se por exemplo a

obrigatoriedade de informação sobre a presença dos sistemas de videovigilância161

(como concretização do art. 10º da Lei n.º 67/98, que prevê o direito à informação

do titular dos dados). Trata-se de uma importante imposição no sentido de à

partida poder considerar-se como um sinal legitimador para a invocação do acordo

presumido para excluir a ilicitude do facto, pelo menos no momento da recolha. Já

quanto ao momento da utilização, a exclusão da ilicitude pode igualmente

161 Art. 31º, n.º 5 da Lei n.º 34/2013.

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Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

fundamentar-se numa autorização legal na medida em que, na maior parte das

vezes, são os próprios regimes legais a estabelecerem a possibilidade (e as

condições) de transmissão das gravações para efeitos de utilização no processo

penal162 - assim o nº 4 do art. 31º da Lei n.º 34/2013 prevê a proibição de cessão ou

cópia das gravações obtidas, ressalvando que elas só podem ser utilizadas nos

termos da legislação processual penal. Isto é, aqui é a própria lei a admitir que as

gravações provenientes de sistemas de videovigilância que por ela tenham sido

previstos ou autorizados possam servir como prova. Por via da existência de

avisos informativos sobre a videovigilância, à partida ficam também arredadas

argumentações que invoquem o caráter oculto ou enganoso das gravações no

sentido da sua posterior inadmissibilidade como prova.

É claro que o grande problema coloca-se quando esses condicionalismos

legalmente impostos não são cumpridos pelos particulares. Aí dificilmente poder-

se-á invocar o fundamento da autorização legal como causa de exclusão da

ilicitude. No entanto, não se pense que o que se acabou de escrever possa levar-

nos à conclusão de que nesses casos as gravações obtidas não possam ser

consideradas lícitas. Na senda de uma posição mais flexível que temos vindo a

identificar, a jurisprudência maioritária tem admitido, ao contrário do que poderia

ser suposto, a admissibilidade das imagens captadas como prova mesmo com a

falta dessas condições. Fazem-no aqui já com base na invocação de outras causas

de justificação. Antes de prosseguirmos, queremos deixar um levantamento dessas

soluções bem como a forma argumentativa em que se concretizam.

Assim do lado da jurisprudência, o incumprimento dos requisitos legalmente

previstos nos regimes habilitantes da videovigilância não tem sido considerado

como um impedimento para admitir os produtos dela provenientes como meio de

prova163, tendo a jurisprudência maioritária encontrado forma de justificar a

162 SÉRGIO PENA, “Os produtos da videovigilância...”, p. 104. 163 Mas já não do lado da doutrina. Assim, por exemplo, CATARINA SARMENTO E CASTRO, Direito

da informática, privacidade e dados pessoais, Coimbra: Almedina, 2009, p. 143.

60

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

licitude da conduta do particular através de outras vias164.

Não verificámos existir uma uniformidade absoluta na argumentação – isto é,

as razões juridicamente atendíveis invocadas não foram sempre as mesmas –

embora haja uma tendência maioritária para uma certa via argumentativa. Assim

algumas decisões165 fundamentam a admissibilidade de captações de imagem com

base na inaplicabilidade do art. 43º, nº 1, al. a) da Lei n.º 67/98, que pune com

pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias quem omitir a notificação ou o

pedido de autorização legalmente imposto pelos arts. 27º e 28º do mesmo diploma.

E isto porque essa punição depende de um desrespeito intencional por parte de

quem teria essa obrigação a seu cargo – desrespeito esse que acabou por nunca

ficar provado nas decisões em causa. Tal incumprimento seria apenas uma conduta

negligente; negligência essa que, por força do art. 37º do referido diploma, traduz

a prática de uma mera contraordenação. Assim a conduta negligente não poderia

ser reconduzida à exigência de ilicitude pressuposta pelo art. 167º, nº 1 do CPP.

Em tendência maioritária e ainda defendendo a mesma solução final de

admissibilidade dos meios de prova, temos ainda outras decisões166 que

consideram que a ilicitude exigida pelo art. 167º, nº 1 do CPP deve reportar-se

exclusivamente à análise sobre a violação dos tipos criminais previstos no CP

reportados aos bens jurídicos privacidade, imagem ou palavra. Deste modo,

consideram irrelevante para a definição da (i)licitude da conduta o incumprimento

dos requisitos legalmente previstos nos diplomas pertinentes. A este propósito,

refere o Ac. TRL de 28/05/2009 que a verificação da existência, ou não, de

licença concedida pela CNPD para a colocação da(s) câmara(s) de

videovigilância no prédio do assistente (...) poderá, eventualmente, integrar o

desrespeito pela legislação de proteção de dados(...). Mas não define a licitude ou

ilicitude penal da recolha ou utilização das imagens. É o art. 199º do CP que

164 Em sentido contrário, Ac. TRP de 23/04/2008 ou o Ac. TRL de 30/10/2008. 165 Ac. TRP de 26/03/2008, Ac. TRP de 03/02/2010 ou Ac. TRL de 04/03/2010. 166 Assim: Ac. STJ de 28709/2011, Ac. TRC de 26/01/2011, Ac. TRC de 10/11/2012, Ac. TRL de

28/05/2009, Ac. TRE de 24/04/2012 ou Ac. TRE de 28/06/2011.

61

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

tipifica o crime de gravações ou fotografias ilícitas.

Assim a partir desta construção que atende apenas aos ilícitos previstos no CP,

e desconsiderando que nestes casos exista qualquer violação da privacidade, a

licitude da conduta é aferida tendo exclusivamente por base o art. 199º do CP. A

partir daí, o caminho a seguir será o de ou defender a atipicidade da conduta por

via da redução teleológica do tipo ou de fundamentar a exclusão da ilicitude numa

qualquer causa de justificação que possa ser invocada no caso.

Não nos parece de todo atendível excluir do âmbito de aplicação do art. 167º,

nº 1 do CPP as normas penais constantes da Lei n.º 67/98. Para já recorrendo ao

argumento literal – a referida norma processual fala em lei penal, não havendo à

partida qualquer razão atendível que permita restringi-la apenas aos crimes

previstos no CP. Tal restrição seria dificilmente aceitável tratando-se de um tema

tão sensível e complexo como é o da validade in casu de reproduções mecânicas

em que essa restrição resultaria num prejuízo para a defesa do arguido. Ao

diminuir o número de incriminações potencialmente atendíveis que poderiam

afastar a admissibilidade da prova (e, portanto, beneficiá-lo) estar-se-ia a aumentar

proporcionalmente a zona de desproteção dos seus direitos. Finalmente porque a

incriminação constante da Lei n.º 67/98, apesar de à partida não parecer, protege

um bem jurídico igualmente fundamental – a autodeterminação informacional do

art. 35º da CRP – e que a nosso ver possui a mesma dignidade de bens jurídicos

como a imagem, a palavra ou a privacidade. Em conclusão, consideramos que a

referida norma penal constante da Lei n.º 67/98 não devia, nem podia ter sido

desconsiderada automaticamente pelas decisões mencionadas167.

Finalmente ainda a propósito das causas de justificação, tendo em atenção o

princípio da unidade do ordenamento jurídico168 plasmado no art. 31º, nº 1 do CP,

167 Igual posição assume SÉRGIO PENA, “Os produtos da videovigilância...”, p. 113, referindo que o afastamento das disposições penais da Lei n.º 67/98 deve ter lugar quando não se reúnam indícios que permitam concluir pela existência de um comportamento doloso.

168 Esclarecendo o significado deste princípio, EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, vol. II, Reimp., Coimbra: Almedina, 2007, p. 7: “...sempre que uma conduta é, através de uma disposição do direito, imposta ou considerada como autorizada ou permitida, está excluída sem mais a possibilidade de, ao

62

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

assume grande importância o nº 2 do art. 79º do CC, uma norma que é

frequentemente invocada pela praxis jurisprudencial para justificar a não

punibilidade de quem procedeu à obtenção da imagem, admitindo assim a sua

valoração como meio de prova. Os casos de exceção ao consentimento previstos

no nº 2 do art. 79º do CC podem aparecer logo quer ao nível do tipo, quer só

depois ao nível das causas de justificação. Assim, COSTA ANDRADE explica que

nos casos em que a imagem venha enquadrada na de lugares públicos, ou na

de factos de interesse público ou que hajam ocorrido publicamente, e bem

assim nos casos em que o consentimento seja de dispensar pela notoriedade ou

cargo desempenhado, a norma manifesta-se logo em sede de tipicidade porque

reduz a área de tutela típica do direito à imagem.

A referência à captação de imagens enquadrada em lugares públicos, factos de

interesse público ou que hajam decorrido publicamente, merece uma atenção

especial. Com efeito, várias decisões da jurisprudência têm vindo a manifestar-se

pela ilicitude da conduta daquele que procede a gravações de imagem em lugares

públicos ou em relação a factos que hajam decorrido publicamente. Esta invocação

vem a maior parte das vezes associada aos casos de captação de imagens por

sistemas de videovigilância em que as devidas formalidades não tenham sido

cumpridas, mas pode ser também invocável para casos em que tenha apenas sido

usada pelo particular uma câmara de fotografar ou de filmar para registar um facto

ocorrido publicamente.

A este propósito, consideramos que não basta unicamente que a imagem do

visado seja captada num lugar público e ponto final – de resto, tal parece ser o

espírito interpretativo simplista de alguma jurisprudência. É que o nº 2 do art. 79º

do CC utiliza a expressão vier enquadrada, expressão que consideramos ser

elucidativa sobre aquilo a que o preceito realmente se quer reportar. E isso a nosso

ver diz respeito aos casos em que a imagem do retratado apareça integrada num

conjunto mais amplo do ambiente envolvente, isto é, nunca individualizada e

mesmo tempo e com base num preceito penal, ser tida como antijurídica e punível".

63

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

dificilmente individualizável – na expressão acertada de COSTA ANDRADE, que

a imagem do visado se dissolva169 nos espaços ou eventos retratados. Assim em

relação a casos em que se utilize uma câmara para filmar alguém em concreto,

mesmo que num local público onde estejam a passar outras pessoas, pensamos ser

muito difícil admitir logo a atipicidade da conduta. E ainda para mais quando a

utilização dessa câmara se reporta a adquirir material probatório porque aí será

acertada a conclusão de que a recolha da imagem se dirige a um sujeito individual.

Para melhor ilustrar o que dissémos, imagine-se o seguinte caso – A, desconfiado

que o seu vizinho B anda a riscar o seu carro, coloca-se de vigia na sua janela e

com recurso a uma câmara apontada para a rua onde o mesmo se encontra

estacionado começa a filmar B, por exemplo, a sair de casa, a ir ao lixo, a entrar

novamente em casa, etc., esperando "apanhá-lo" a cometer o dano. Ora, se é

verdade que a imagem de B se encontra reproduzida num lugar público ou diz

respeito a um facto que haja decorrido publicamente, não menos verdade é que a

mesma não se dissolve, não se mistura, não se integra nesse mesmo ambiente

público – pelo contrário, a captação da sua imagem constitui uma individualização

reportada à sua pessoa concreta. Naturalmente, isto não significa que não

possamos equacionar a aplicação a este caso de uma causa de justificação como o

direito de necessidade se os seus pressupostos estiverem reunidos; com o que fica

dito, queremos apenas tão-só alertar para o perigo de conclusões precipitadas.

Mas o nº 2 do art. 79º do CC faz ainda referência à desnecessidade do

consentimento quando assim o justifiquem exigências de polícia ou de justiça (e

aqui já se trata de uma causa de exclusão da ilicitude170). O grande interesse da

questão encontra-se na expressão exigências de justiça, que tem sido

constantemente invocada como justa causa na obtenção de imagens. Com efeito o

preceito parece querer reportar-se a casos em que as imagens captadas se destinem

a cumprir finalidades relacionadas com a justiça – de que seria paradigmática a

169 COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1215. 170 COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1227.

64

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

sua utilização como prova no processo penal. Para alguma doutrina (e

jurisprudência minoritária que segue essa posição e que já identificámos no início

da dissertação), uma vez que o art. 167º, nº 1 do CPP representa a consagração

positivada do legislador pela opção de não reconhecer à realização da justiça a

prevalência necessária para justificar atentados à imagem e à palavra fora das

normas previstas pelo próprio, torna-se imperioso clarificar como se faz a leitura

do nº 2 do art. 79º do CC. Ora, os defensores deste entendimento explicam que

deve ser feita uma interpretação restritiva da norma (apenas na parte que se reporta

às exigências de justiça, se bem entendemos) no sentido em que ela não se deve

aplicar no processo penal. E essa desaplicação seria motivada por duas razões:

pela afirmação de prevalência das normas do processo penal sobre as normas civis

e porque a resolução do conflito entre o direito afetado e o interesse na realização

da justiça já foi previamente ponderada em favor do primeiro pelo próprio

legislador, não cabendo essa tarefa ao intérprete aplicador. Isto significa que uma

vez que a utilização da imagem no processo penal serve, pela natureza das coisas,

para realizar fins a ele atinentes e subordinando o art. 167º, nº 1 do CPP a sua

admissibilidade ao critério da licitude, então o recurso às exigências de justiça não

seria um fundamento legítimo para tornar a imagem lícita. Esta referência às

exigências de justiça dirigir-se-ia primordialmente para o campo do processo

civil171, onde já seria possível admitir-se a produção e valoração não consentidas

de gravações ou fotografias.

Contra esta tese tem-se invocado grande parte da jurisprudência. E o

argumento essencial é o de que não se pode retirar nenhuma conclusão da norma

do nº 1 do art. 167º do CPP sobre o que é considerado (i)lícito. A norma apenas

manda atender à consideração genérica desse juízo para (eventualmente a nosso

ver) admitir a prova, mas não define as condições específicas sobre a

determinação da (i)licitude. Essa determinação só pode operar ao nível das normas

penais. Assim o art. 167º, nº 1 do CPP teria a função de estabelecer um princípio

171 COSTA ANDRADE, Comentário..., p. 1228.

65

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

de não utilização em processo de imagens ou gravações ilícitas; já a norma do nº 2

do art. 79º do CC operaria precisamente na delimitação dos casos e nas condições

de determinação dessa ilicitude.

A nosso ver ambas as teses são passíveis de críticas, tornando-se difícil optar-

se unitariamente por uma delas, uma vez que ambas têm pontos fracos e possuem

explicações deficientes. Assim quanto à primeira tese é de perguntar se não será

questionável a ideia de prevalência de uma ordem jurídica sobre a outra – e isto

tanto nos casos de confronto entre normas de processo penal versus normas civis,

como nos casos de confronto entre normas de processo penal e normas penais.

Depois porque a aplicação desta tese poderia levar-nos, em última instância, a

questionar sobre a verdadeira utilidade do art. 167º, nº 1 do CPP. Isto porque

mesmo que aplicássemos causas de exclusão do tipo ou da ilicitude para legitimar

a conduta ao nível da recolha, a sua valoração estaria sempre vedada porque a

utilização seria sempre ilícita, precisamente porque esse desvalor é retirado da

interpretação de prevalência dos direitos de personalidade do visado que é dada à

norma processual. Não podemos concordar com esta interpretação.

Mas não menos passível de crítica é a tese da jurisprudência. A invocação das

exigências de justiça como causa de justificação poderia, em última análise, levar

a que se considerasse sempre lícita a utilização das imagens no processo penal,

esvaziando o conteúdo do art. 167º, nº 1 do CPP. Bastaria ao tribunal invocar

exigências de justiça para aceitá-la em todos os casos.

A nosso ver uma pista essencial para encontrar a resolução do problema será a

de negar a aplicação automática desta causa de justificação. Da mesma forma que

para a aplicação da legítima defesa ou do direito de necessidade certos

pressupostos devem estar reunidos, o mesmo terá de ocorrer aqui. Terá de se fazer

necessariamente uma ponderação autónoma, a realizar pela instância judicial

responsável por receber a prova, em que se averigue se a utilização da imagem é

mesmo necessária ou indispensável à decisão do caso – atendendo a fatores como

66

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

a existência de outros meios de prova que possam igualmente comprovar o facto –

e demonstrando que a compressão da tutela dispensada aos direitos fundamentais

afetados se mostra como razoável e proporcional – atendendo, por exemplo, à

posição que estava o particular no momento da gravação ou registo fotográfico.

No fundo e em suma, defendemos que as exigências de justiça devem ser

interpretadas dentro das exigências específicas do princípio da proporcionalidade e

não serem aplicadas sem mais, desprovidas de um qualquer concreto

enquadramento valorativo.

2.3. Os equívocos da jurisprudência maioritária

Depois de termos feito uma excursão pelas justas causas que costumam ser

invocadas pela jurisprudência para admitir estas provas, queremos agora para

encerrar o capítulo, deixar duas críticas que a nosso ver são essenciais para se

compreender com algum grau de precisão a complexidade das questões que nesta

sede podem surgir. Assim, e sem prejuízo de críticas pontuais que temos vindo a

fazer ao longo da dissertação, na nossa opinião existem duas questões que não têm

sido colocadas nem ponderadas nos seus devidos termos, resultando em dois

equívocos que limitam e enfraquecem as soluções a que se chegaram, podendo

levar-nos a questionar sobre o verdadeiro valor das decisões tomadas,

questionamento esse que deixaremos também a cargo do leitor para reflexão.

O primeiro equívoco diz respeito à constante omissão de análise da (i)licitude

da conduta ao nível da utilização – é que seguindo a consagração da tese dualista

do art. 199º do CP, não só é punida criminalmente a obtenção de gravações ou

fotografias sem consentimento ou contra vontade, mas também o é a sua

utilização, sendo certo que o ato de as apresentar em sede processual pode

configurar tipicamente uma conduta reportada a essa mesma utilização. E dizemos

constante omissão com alguma propriedade, visto que das decisões que lemos e

67

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

análisamos, apenas duas delas fazem referência ao momento da utilização172.

Consideramos que a jurisprudência procede, na esmagadora maioria dos casos, a

uma análise incompleta da questão porque basta-se apenas com a verificação de

uma causa de justificação que opere no momento da recolha para concluir logo

pela admissibilidade da prova.

Pode-se afirmar que a utilização, em processo de gravações ou fotografias

obtidas sem consentimento ou contra vontade se pode configurar como um novo

ilícito. Isto na medida em que através da audição ou da visualização das mesmas,

os bens jurídicos penalmente tutelados podem voltar a ser atingidos e a sofrer uma

nova violação173. Assim a nosso ver é inadmissível que se passe constantemente

por cima desta questão ou que se possa afirmar que ela deva ter, sem mais, a

mesma conclusão previamente alcançada quanto à análise do momento da recolha

ou da sua obtenção. Como muito bem esclarece o Ac. TRE de 24/04/2012, a

propósito da dualidade de condutas incrimináveis no art. 199º do CP, elas não se

sujeitam a regimes idênticos, merecendo análises e ponderações separadas. Até

porque, ao que se julga, eventuais causas de justificação que possam ser

legitimamente invocadas para o momento da captação ou recolha das imagens ou

das gravações podem não subsistir no momento da utilização. Nestes termos,

pensamos ser necessário proceder-se a um raciocínio que possa ser construído em

duas etapas sucessivas e obrigatórias – a análise original sobre a recolha das

imagens ou das gravações e posteriormente uma nova análise da ilicitude à luz da

sua utilização no processo174. Manifestamos assim a nossa inteira concordância

com as duas decisões acima mencionadas que propõem precisamente este iter a

percorrer e que nos parece ser o mais acertado. E parece-nos ser o mais acertado

não só do ponto de vista da incriminação dual do art. 199º do CP, mas também do

ponto de vista de sentido lógico das soluções, uma vez que cremos estar perante

172 São elas os Acs. do TRL de 28/05/2009 e do TRE de 24/04/2012. 173 SÉRGIO PENA, “Os produtos da videovigilância...”, p. 115. Em sentido contrário, MILENE

MARTINS, A admissibilidade..., p. 145. 174 Da mesma forma, MILENE MARTINS, A admissibilidade..., pp. 49 e 50.

68

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

dois momentos distintos que exigem ponderações igualmente distintas. E isto

mesmo que se chegue à conclusão que a utilização também é lícita ou que as

razões justificadoras determinantes da recolha também podem ser aplicadas ao

momento da utilização.

Como temos vindo a ver, e descontando a posição daqueles que propugnam

logo por uma redução teleológica do tipo, a maior parte da jurisprudência recorre a

uma justa causa legal para excluir a ilicitude da conduta. Ora, essa justa causa é

invocada primordialmente para excluir a ilicitude do facto reportado apenas ao

momento da obtenção da gravação ou da imagem. Face à crítica que deixámos

exposta supra, e na defesa expressa da necessidade de se proceder a uma nova

averiguação acerca da ilicitude da conduta reportada ao momento da sua

utilização, importa tentar compreender se e em que medida estas tais justas causas

que têm vindo a ser identificadas podem também aplicar-se ou comunicar-se ao

momento da utilização. Já sabemos que a licitude da recolha em nada influi, à luz

do art. 199º do CP, no juízo a fazer-se sobre a utilização, uma vez que esta

consubstancia uma conduta típica igualmente autónoma. À partida, também não

será difícil compreender que eventuais justas causas que se verificam no momento

da recolha podem não subsistir no momento da utilização. Podemos assim concluir

que gravações ou imagens licitamente obtidas podem não ser licitamente utilizadas

e opostamente gravações ou imagens ilícitas podem vir a ser utilizadas. Essa

análise resultará sempre da verificação dos factos concretos e dos requisitos gerais

das causas de justificação que se pretendam aplicar. Não queremos no entanto

deixar que o nosso caminho fique por aqui porque não pensamos ser suficiente

remeter o intérprete aplicador para uma análise desacompanhada das condições de

aplicação das causas de justificação, para o momento da utilização, sem lhe deixar

qualquer tipo de pistas concretizadoras.

Assim pensemos, por exemplo, no caso da invocação do critério de

ponderação de interesses e que tem por base o pressuposto essencial da existência

69

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

de um conflito de direitos fundamentais. Vimos que tem havido uma tendência

para resolver esse conflito a favor dos habitualmente invocados direitos à

segurança, à propriedade ou à integridade física das pessoas quando confrontados

com os direitos à imagem, à palavra ou à privacidade do visado. Seguindo então o

nosso raciocínio de nova análise da questão da (i)licitude à luz da incriminação da

utilização, poderíamos sem mais voltar a invocar razões atinentes a uma nova

ponderação de conflitos que deva ser resolvida a favor dos direitos à segurança, à

propriedade ou à integridade física? Não nos parece ser esse o caso. É que no

momento em que se decide sobre o juízo de licitude da utilização de tais imagens

em processo penal, não existe um conflito com os direitos acima identificados.

Poderia existir, é certo, no momento da recolha; mas não no momento da

utilização porque esses direitos já foram previamente violados. Assim, a utilização

das imagens de câmaras ou sistemas de videovigilância em sede processual não

tem como função proteger a propriedade, a vida ou integridade física ou a

segurança das pessoas175. A sua utilização visa antes garantir que a ordem jurídica

manifeste uma reação a essas mesmas violações, encabeçada no interesse da

perseguição criminal dos agentes envolvidos e da realização efetiva da justiça. Só

nestes últimos termos é que se poderá descortinar aqui um possível conflito entre

direitos fundamentais176. O conflito poderá, isso sim, ser equacionado ao nível da

ponderação entre os direitos à imagem, à palavra ou à intimidade e os interesses de

realização da justiça, com todas as limitações e críticas que já tivémos

oportunidade de deixar escritas quando nos pronunciámos acerca da invocação

desse critério.

Também ao nível das causas de justificação legalmente previstas, a diferença

de juízos valorativos que podem presidir ao momento da recolha e ao momento da

utilização pode ser colocada a descoberto. Assim por exemplo, se pensarmos no

requisito da atualidade da agressão ou do perigo, intuímos que podemos ter aqui

175 Em sentido contrário, MILENE MARTINS, A admissibilidade..., p. 115. 176 Ac. TRE de 24/04/2012.

70

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

um novo problema a solucionar. E isto porque será difícil conceber que no

momento da utilização das imagens ou das gravações obtidas a coberto de uma

dessas causas de justificação, subsista o requisito da atualidade177. Com efeito, se a

gravação ou a imagem foi recolhida com o objetivo de afastar uma agressão ou um

perigo e se, por via dessa mesma atuação, este acaba por cessar, de que forma

poderemos voltar a invocar essa causa de justificação para legitimar a sua

utilização como prova em processo apenas para perseguir criminalmente o visado

que não mais voltou a cometer qualquer ilícito? No entanto, consideramos que

também podemos perspetivar o problema do lado contrário. Isto é, se a ordem

jurídica reconheceu previamente legitimidade no processo de obtenção, não seria

incongruente querer depois punir os agentes que utilizassem essas gravações ou

imagens? É que a sua utilização, em muitos casos, poderá ser a única forma efetiva

de tutelar os seus direitos ameaçados. Como resposta, poderíamos apelar a um

estado de necessidade probatório cujo fundamento teria por base a afirmação de

que a tutela efetiva do direito do particular, que viu justificada a sua atuação no

quadro do estado de necessidade (no contexto primário da captação), exigir, para

ser consequente, que a imagem que obteve possa ser depois efetivamente

utilizada178. No seguimento desta ideia, SÉRGIO PENA defende uma

interpretação restritiva do art. 199º, nº 2, al. b) do CP, considerando que a sua parte

final – mesmo que licitamente obtidos – não deve ser aplicável para efeitos do

disposto no art. 167º, nº 1 do CPP por estar inserido no contexto de uma avaliação

e valoração prévia, num concreto processo-crime, da licitude da

captação/gravação de registos videográficos de imagens, já pré-determinada179.

Neste contexto, não nos podemos também esquecer de fazer referência às

exigências de justiça do nº 2 do art. 79º do CC como possível causa de justificação

177 Não nos esqueçamos das referências que podem ser feitas, a este propósito, às situações de quase legítima defesa ou então a interpretações mais extensivas, no contexto do direito de necessidade, que permitam identificar o conceito de perigo atual com um perigo concreto de reiteração dos atos lesivos dos direitos da vítima (por exemplo, da propriedade).

178 SÉRGIO PENA, “Os produtos da videovigilância...”, p. 115. 179 SÉRGIO PENA, “Os produtos da videovigilância...”, p. 116.

71

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

que pode operar precisamente no momento da utilização das imagens e que, a ser

interpretada da forma que propusémos, também pode ter relevância.

Aproveitando a referência feita a esta norma, podemos agora também

introduzir aquele que consideramos ser um outro equívoco levado a cabo pela

jusrisprudência. O mesmo prende-se com o âmbito de aplicação do art. 79º do CC

e com a determinação das condutas específicas que nele se encontram vedadas. É

que da leitura do seu nº 1 resulta apenas a proibição de exposição, reprodução ou

lançamento no comércio do retrato da pessoa, o que parece apontar para a ilicitude

da conduta reportar-se apenas à sua utilização, não prevendo nenhuma sanção para

o ato (prévio) da captação da imagem180. E pergunta-se qual é que pode aqui ser o

equívoco? Se considerarmos que o art. 79º do CC se reporta apenas à utilização da

imagem, então a consequente invocação das justificativas do seu nº 2 só pode

operar no momento em que estivermos a averiguar se foi ou não violado o

disposto na al. b) do nº 2 do art. 199º do CP – que, como acabámos de criticar, é

um passo que raramente é dado nas doutas decisões que lemos. Isto é, ficaria

vedada a invocação, por exemplo, das exigências de justiça como causa de

justificação no momento da recolha. E isto levantaria uma sério problema quanto à

construção das soluções que têm sido invocadas pela jurisprudência a este

propósito e recorrendo a esta norma, uma vez que na sua formulação, a maior

parte das vezes, a existência de justa causa é averiguada exclusivamente no

momento da obtenção. Ora, tal significaria invocar uma causa de justificação para

a obtenção que só poderia entrar em ação no campo da utilização.

Apesar de a formulação literal da norma civil se reportar apenas à utilização

sem consentimento do retrato, é possível encontrar posições contrárias na doutrina.

Desde logo, CAPELO DE SOUSA defende que o art. 79º, n.º 1 do CC também

180 Assim, no Parecer n.º 95/2003 da PGR defende-se que “... atenta a letra da lei, o ordenamento juscivilista apenas considera ilegítima a exposição, reprodução ou comercialização do retrato, mas não asimples fixação da imagem num retrato”. No mesmo sentido, SÉRGIO PENA, “Os produtos da videovigilância...”, p. 116. Também o Ac. TRE de 24/04/2012 acolhe esta interpretação.

72

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

proíbe a mera captação do retrato181; no mesmo sentido pronuncia-se HUGO

TAVARES182. Pensamos que no essencial as mesmas razões determinantes de

proibição da utilização e da divulgação podem ser também pensadas para a mera

captação (tal como acontece ao nível da incriminação penal), por isso até podemos

admitir esta posição. O que nos preocupa é a falta de referência ao problema, com

a louvável exceção do Ac. TRE de 24/04/2012. Das duas uma, ou já é um

pressuposto sedimentado que esta norma se reporta também à captação e por isso a

desnecessidade da sua afirmação constante, ou então, num frenético fulgor de

consideração da norma do nº 2 do art. 79º do CC como uma verdadeira cláusula

geral permissiva, o problema foi esquecido.

Com tudo o que ficou dito, queremos deixar uma nota final em forma

conclusiva. Apesar de podermos admitir uma flexibilização no que toca à

aceitação destes meios de prova, consideramos que a mesma não se tem erguido

em bases relativamente sólidas e seguras que tenham permitido deixar a

descoberto a clareza dos raciocínios e das posições adotadas. Desconsiderando a

justeza das soluções a que se chegaram e dos resultados alcançados pelas doutas

decisões, denotámos alguma falta de rigor e até um certo tratamento apressado

desta temática. Não querendo ter a pretensão de assumir intenções alheias, parece-

nos que este tratamento menos exigente funda-se na necessidade sentida pelos

tribunais em aceitarem estes meios de prova, uma vez que possuem a virtualidade

não só de facilitar bastante a prova, como também de determinar uma solução que

espelhe a verdade dos factos. Essa aceitação poderia ser posta em causa a partir do

momento em que se questionasse e problematizasse mais a fundo, numa ideia de

que quanto mais se “cavasse”, mais inconsistências e problemas seriam

encontrados, acabando por colocar empecilhos à sua utilização. Só que a nosso ver

o efeito de um tratamento mais rigoroso, desenvolvido e aprofundado poderia ter a

função precisamente oposta – a de implementar uma via definitiva de admissão

181 CAPELO DE SOUSA, O direito geral..., p. 246. 182 HUGO TAVARES, “A tutela penal...”, p. 209.

73

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

destes meios de prova com base numa argumentação que, pelo menos, ao

identificar corretamente todos os problemas em conflito, solidificasse a

argumentação invocada.

74

3. A exclusão da ilicitude penal e consequente admissão da prova: da suapretensa inseparabilidade

Logo no início da presente investigação, começámos por identificar a

relevância do art. 167º, nº 1 do CPP, que se manifesta na remissão de

funcionamento da lei penal substantiva como critério para admitir a valoração

processual destas reproduções mecânicas. De forma a flexibilizar a aceitação

destes meios de prova, a jurisprudência tem trilhado um caminho de busca

constante por razões juridicamente atendíveis que possam fundamentar a

inoperatividade das incriminações penais que identificámos como mais relevantes.

As formas e critérios como esse desbravamento tem sido feito foram sendo

deixadas a descoberto ao longo da dissertação, bem como as possíveis críticas que

a elas podemos apontar.

Neste último capítulo propomo-nos também nós tentarmos um pequeno

desbravamento de um outro caminho inexplorado e incerto. Caminho esse que será

trilhado nesta reta final com base no questionamento do dogma da aceitação

acrítica de ligação automática entre os dois momentos que presidem à análise do

problema – a licitude da conduta por um lado, e a sua admissibilidade no processo

como consequência, por outro. Por se tratar de um problema praticamente

inexplorado e cujo avanço terá de ser inseguro, não será o nosso objetivo chegar a

soluções absolutas ou respostas concretas. Queremos apenas dar um passo no

sentido de tentar introduzir e enraizar a questão e de ajudar a uma reflexão mais

profunda a todos aqueles que se debruçam sobre o problema, motivando a busca

de futuras soluções mais completas.

Podemos assim dizer que o reconhecimento da ligação indissociável entre a

aferição da (i)licitude da conduta do particular e da posterior valoração como

prova do material obtido tem sido um dogma intocável quer para a generalidade da

doutrina, quer para a jurisprudência que se manifesta sobre o tema. E, a nosso ver,

tendo em conta a própria formulação do art. 167º, nº 1 do CPP será muito difícil

75

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

ultrapassá-lo, pois que temos como certo que o ponto de partida do problema terá

de passar sempre pela análise da conduta à luz das incriminações em causa. Assim

parece estar aqui concretizada a ideia de prevalência do direito penal substantivo

sobre o direito processual penal. Com isto, parece negar-se algum grau de

autonomia normativa e valorativa que deveria de existir no campo do processo

penal. Contudo, não queremos dizer que estas duas áreas devam ser totalmente

autónomas uma da outra – é que nunca nos podemos esquecer que a ordem

jurídica é uma só e apesar de presidir e tutelar diferentes valores em diferentes

áreas, deve evitar entrar em contradições sob pena de perder o seu reconhecimento

e a sua eficácia. Contradições essas que serão levadas a um nível pouco suportável

quando esteja em causa o confronto com os aspetos mais essenciais e básicos

definidos pelas sociedades humanas, que são espelhados precisamente no direito

penal. É que se em outros ramos do ordenamento jurídico essa separação e

autonomia pode ser mais facilmente visualizada e portanto eventuais contradições

mais facilmente ultrapassáveis, tal raciocínio torna-se mais difícil quando entram

em jogo as valorações específicas do direito penal.

No entanto, apesar do que fica aqui dito, não nos devemos impedir de tentar

tecer alguns comentários sobre as conclusões que se têm retirado acerca dessa

prevalência e dessa ligação aparentemente absolutas entre estes dois ramos do

Direito.

Com efeito, é importante pelo menos questionar se de facto existe mesmo essa

tal prevalência do direito penal substantivo sobre outros ordenamentos jurídicos,

especialmente o processual penal. É que muitas vezes as soluções próprias que se

encontram para os problemas que se manifestam em cada uma dessas áreas

resultam, ou podem resultar, do recurso a valorações próprias da outra área183,

colocando assim em causa uma eventual ideia de prevalência, porque se ela

realmente existisse então não haveria necessidade de se recorrer a soluções de um

ordenamento jurídico que lhe fosse inferior. A esse propósito, igualmente

183 COSTA ANDRADE, “Sobre a valoração...”, p. 570 .

76

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

questionando o primado das normas do direito penal substantivo sobre as normas

processuais penais, COSTA ANDRADE defende antes um modelo de

interpenetração, aberto às reais relações de influência e co-determinação

recíprocas184.

Para além deste problema específico da prevalência das normas penais sobre

as normas processuais, podemos ainda apontar um outro que se prende com a

aparente igualdade e coerência dos juízos valorativos que são feitos dentro de cada

uma dessas áreas. À partida poderíamos ser levados a pensar que sempre que haja

um juízo de (i)licitude sobre uma determinada conduta, operado ao nível

substantivo, esse mesmo juízo manter-se-ia no âmbito do processo penal. Assim,

por se tratar da área que mais conflitua com estes juízos, a temática da prova

poderia manifestar essa aparente continuidade e congruência – isto é, tudo o que

fosse lícito ao nível penal, seria admitido como prova; já para não ser admitido

como prova, teria de haver um qualquer comportamento ilícito, previsto e punido

pela lei penal, na base da sua obtenção. E dizemos aparente continuidade porque

de facto ela parece não existir de forma absoluta185. Pois como esclarece COSTA

ANDRADE, se há proibições de prova que não têm atrás de si qualquer ilícito,

não deixam, inversamente, de abundar manifestações de ilícito penal que não se

prolongam em proibições de prova186.

Do que aqui ficou dito poderíamos ser levados a tirar uma rápida conclusão – a

de que esta descontinuidade entre os dois ordenamentos jurídicos poderia admitir

que se utilizasse uma prova ilicitamente obtida187. Em tese, essa poderia

configurar-se como uma solução possível para o problema. Assim

independentemente de se responsabilizar criminalmente quem obtivesse ou

184 COSTA ANDRADE, “Sobre a valoração...”, p. 570. 185 Levantando também essa possibilidade, SUSANA AIRES DE SOUSA, “Agent provocateur e meios

enganosos de prova”, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias (org.: Manuel da Costa Andrade, José de Faria Costa, Anabela Miranda Rodrigues e Maria João Antunes), Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 1235.

186 COSTA ANDRADE, “Sobre a valoração...”, p. 570.187 SUSANA AIRES DE SOUSA, “Agent provocateur...”, p. 1535.

77

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

utilizasse a prova de forma ilícita, a mesma poderia ser admitida no processo

penal, pois que este ordenamento jurídico poderia desligar-se dessas valorações

operadas pelo direito penal e que seriam resolvidas exclusivamente em sua sede

própria, não se comunicando ao processo em causa188. Esta solução parece ser

tentadora, mas acaba por ser dificilmente configurável com o entendimento da

ação unitária ética e moral de um Estado de Direito. É que o direito penal confere

tutela aos bens jurídicos considerados como essenciais pela sociedade e cuja

defesa deve ser implementada sob pena de se negar a subsistência dos seus valores

fundamentais. Nos casos em que essa tutela dispensada pela ordem penal,

precisamente por se tratarem de bens básicos e fundamentais, é atingida de forma

insuprível no processo, torna-se difícil defender a sua utilização.

Tal conclusão também seria dificilmente defensável tendo em conta o teor do

art. 167º, nº 1 do CPP que, à parte as considerações teóricas que temos vindo a

fazer, torna inevitável a ligação entre o direito penal substantivo e adjetivo.

Mesmo que tenhamos dúvidas sobre se essa remissão traduz uma afirmação de

prevalência pelas normas penais substantivas, a verdade é que essa ligação existe e

deve ser atendida pelo intérprete aplicador. E isto a nosso ver impõe uma

conclusão que nos parece acertada e à qual não conseguimos fugir – as gravações

ou fotografias ilicitamente obtidas não podem ser utilizadas como prova, mesmo

tendo em consideração reflexões teóricas sobre as descontinuidades entre estes

dois ramos de direito, sobre a hierarquização das suas normas, sobre as suas

relações e valorações autónomas, etc. O único caminho de escapatória seria o de

poder criticar em abstrato a opção feita pelo legislador; mas de iure condito é

inegável chegar-se a outra conclusão que não essa.

Do que aqui fica dito, abre-se agora uma possibilidade de reflexão e que foi

primordialmente a questão que nos motivou a incluir este capítulo na dissertação.

Se, por força do art. 167º, nº 1 do CPP se torna incontestável não admitir a

valoração de gravações ou fotografias ilícitas de acordo com os critérios penais

188 H. OTTO, apud COSTA ANDRADE, “Sobre a Valoração...”, p. 574.

78

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

que temos vindo a colocar a descoberto ao longo da investigação, poderíamos

retirar semelhante conclusão para a situação contrária? Isto é, sendo as gravações

ou fotografias em causa lícitas, a sua admissão processual operaria logo de

imediato? É que esse é efetivamente o entendimento dominante na corrente

jurisprudencial maioritária que temos vindo a identificar. Da nossa parte, não

temos tanta certeza quanto a este entendimento, pelo menos que ele opere de

forma automática e à revelia de qualquer outro tipo de ponderação.

Como já colocámos em evidência no início do capítulo, a existência de

sobreposições valorativas entre o direito penal e o direito processual penal não é

uma realidade linear. Não nos parece que possamos afirmar que tudo o que for

lícito à luz do direito penal pode também beneficiar do mesmo juízo à luz do

processo penal, especialmente em matéria de prova, que, pela natureza das coisas,

nunca deixará de ser uma matéria processual e, por isso mesmo, merecedora de

uma consideração autónoma a esse nível. Será aqui a propósito deste problema

que poderemos levar mais a fundo o argumento da existência de quebras de

continuidade entre os dois ordenamentos jurídicos no sentido de não nos

pronunciarmos pela afirmação de uma extensão exatamente igual entre o tipo de

juízo valorativo que se faz dentro do campo do direito penal e o tipo de juízo

valorativo que deve ser feito dentro do processo penal. Desse modo, não nos

parece a mais acertada a leitura e interpretação do art. 167º, nº 1 do CPP como

uma norma de admissão automática destes meios de prova depois de terem

passado o teste da (i)licitude189. E isto por duas ordens de razões: por um lado

porque parece-nos que a ideia de continuidade entre os dois ordenamentos

jurídicos não deve ser absolutizada nem se verifica na prática; depois porque

consideramos que existem outros juízos valorativos que devem operar quanto à

temática da prova especificamente apenas dentro do processo penal, juízos esses

que pensamos merecerem uma reflexão autónoma e desligada do juízo de licitude

operado num primeiro momento no campo penal. Não nos podemos esquecer que

189 COSTA ANDRADE, “Sobre a valoração...”, p. 618.

79

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

sobra ainda um espaço – mesmo que se possa considerar ser um espaço pequeno –

para a eventual ponderação de violação de outras normas estritamente processuais

ou até mesmo constitucionais. Basta pensarmos, por exemplo, no nº 8 do art. 32º

da CRP ou no nº 1 do art. 126º do CPP quando fazem referência a ofensas à

integridade moral das pessoas, ofensas essas que podem traduzir-se, entre outras

condutas, na utilização de meios enganosos (art. 126º, nº 2, al. a), última parte)),

não sendo difícil equacionar a utilização de gravadores e câmaras ocultas como

meios que se possam caraterizar como tal. Para além destes meios poderem

potenciar a assunção de comportamentos auto-incriminatórios190, podem, em

última instância, configurar-se como verdadeiras confissões processuais não livres

nem esclarecidas.

Assim se é certo que a questão da admissibilidade destes meios de prova passa,

num primeiro momento, pela incontornável análise das potenciais condutas

criminalmente tipificadas que possam ser subsumidas aos factos, não menos certo

nos parece a conclusão de que tratando-se também de um problema de índole

processual, essa mesma admissibilidade deve posteriormente ser ainda

equacionada face aos preceitos constitucionais e processuais que possam ter

relevância no caso concreto. E isto porque os filtros da lei penal podem não ser

suficientes para impedir atentados que se manifestem como intoleráveis à luz do

caso concreto e que possam ser inexplicavelmente ultrapassados, ao arrimo das

normas constitucionais e processuais.

É claro que se pode argumentar contra o que acabámos de dizer que as

referidas normas se dirigem apenas às instâncias formais de controlo, não

existindo possibilidade de invocá-las quando estejam em causa atentados aos

direitos nelas tutelados quando levados a cabo por particulares por não serem

190 Defendendo que a prerrogativa da não auto-incriminação não se deve aplicar às declarações extraprocessuais do arguido não dirigidas a órgãos de perseguição criminal, PAULO SOUSA MENDES, “O processo penal entre a eficácia e as garantias”, in Direito da Investigação Criminal e da Prova (coord.: Fernanda Palma, Augusto Silva Dias, Paulo de Sousa Mendes e Carlota Almeida), Coimbra: Almedina, 2014, pp. 77 e 78, seguindo PAULO MESQUITA, A prova do crime e o que se disse antes do julgamento, 1ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, p. 584.

80

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

considerados como destinatários dessas normas. As proibições de prova do art.

126º do CPP dirigem-se então a que sujeitos? Não há grandes dúvidas de que do

lado passivo esta norma não se dirige só ao arguido, como também a testemunhas,

peritos, assistentes ou partes civis191. Já quanto aos sujeitos a quem se dirigem

estas proibições no sentido da sua não atuação, a questão poderá ser diferente.

PINTO DE ALBUQUERQUE e COSTA ANDRADE entendem que esta norma

dirige-se não apenas aos agentes do Estado que exercem funções investigativas ou

jurisdicionais no processo, mas a toda e qualquer pessoa particular192. PAULO DE

SOUSA MENDES defende que as proibições de produção de prova não se

destinam aos particulares, uma vez que as normas processuais do CPP dirigem-se,

em primeira análise, às instâncias formais de controlo193. A busca de uma resposta

para esta questão afigura-se-nos importante uma vez que se entendermos que esta

norma não se aplica aos particulares, então não sobrará espaço para invocar uma

das situações nela previstas que possa ser pertinente para o caso, de forma a poder

afastar um meio de prova lesivo, obrigando-nos apenas a valorar essa conduta ao

nível do direito penal substantivo.

O art. 126º do CPP insere-se na parte geral da prova, não existindo qualquer

referência que nos permita excluir os particulares como destinatários da norma194.

Seguindo as palavras de COSTA ANDRADE, mal se compreenderia que, por um

lado, o legislador português precludisse sem mais a valoração de meios de prova

(gravações e fotografias) obtidas por particulares através de atentado ao direito à

palavra ou à imagem e, por outro lado e ao mesmo tempo, admitisse as provas

logradas por particulares à custa de atentados tão intoleráveis a eminentes bens

jurídicos pessoais como os previstos no art. 126º do CPP195.

191 PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do CPP...,p. 335 e PAULO DE SOUSA MENDES, “As Proibições...”, p. 141.

192 PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário... p. 335 e COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições..., p. 197.

193 PAULO DE SOUSA MENDES, “As Proibições...” p. 141. 194 Ao contrário, por exemplo, do que acontece com o §136ºa da StPO que está inserido sistematicamente

numa secção relativa ao interrogatório do acusado (Vernehmung des Beschuldigten).195 COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições..., p. 198.

81

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

A nosso ver, a pedra de toque para a resolução da questão encontra-se na

distinção frequentemente operada dentro do regime das proibições de prova, que

abrangem quer as proibições de produção (ou seja, de recolha), quer as proibições

de valoração (ou seja, de utilização)196 – onde idealmente as proibições de

produção deveriam gerar a consequente proibição de valoração, mas nem sempre

isso ocorre197. Consideramos que o regime das proibições de produção de prova se

dirige apenas às instâncias formais de controlo, sendo que eventuais juízos sobre a

legalidade ou ilegalidade de um meio de prova obtido por um particular estariam

arredados das regras processuais e teriam de ser feitos num momento inicial à luz

do direito penal. No entanto, as proibições de valoração de prova sempre que

tenham a potencialidade de ofender direitos fundamentais terão de se dirigir a

todos os sujeitos, quer sejam as autoridades judiciárias, quer sejam os

particulares198. E isto na medida em que essas proibições de valoração impostas

pelas normas processuais penais tenham na sua base normativos constitucionais –

como é o caso do nº 8 do art. 32º da CRP – não sendo admissível defender-se que

estes últimos não se aplicam nas relações dos particulares entre si. Assim, na

medida em que tais regras previstas no CPP sejam a concretização de imposições

constitucionais destinadas a garantir a proteção de direitos fundamentais, a defesa

da sua aplicabilidade exclusivamente a instâncias formais de controlo acabaria por

deixar de lado a previsão de consequências para particulares que utilizassem

algum dos referidos meios. O que seria bastante gravoso, uma vez que colocaria os

particulares num espaço livre de atuação dificilmente compaginável com o seu

reduzido papel no âmbito da obtenção de prova e apenas dependente da sua

subsunção a um determinado crime relevante para o caso. O juízo final sobre a

196 PAULO DE SOUSA MENDES, Lições de Direito Processual Penal, 2ª reimp. da ed. de 2013, Coimbra: Almedina, 2014, p. 177; KARL-HEINZ GöSSEL, “As proibições de prova no direito processual penal da República Federal da Alemanha” (trad. por Costa Andrade), in RPCC, ano 2, nº 3, julho/setembro 1992, p. 399.

197 PAULO DE SOUSA MENDES, “As Proibições...”, p. 142 a 144; COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições..., p. 58.

198 MILENE VIEGAS MARTINS, A admissibilidade..., p. 43.

82

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

valoração da prova não deve assim ser procurado exclusivamente em sede de

ilícito penal; antes terá de ter em conta também o regime das proibições de

valoração da prova constantes do CPP por considerarmos que este, por via de

imposição constitucional que a todos se dirige, se aplica igualmente aos

particulares.

O que nos parece essencial que fique afirmado é a cautela a ter no raciocínio

que tem sido feito pela jurisprudência entre a exclusão da ilicitude e a automática

admissão de gravações e fotografias obtidas por particulares como meio de prova.

É que interpretando o art. 167º, nº 1 do CPP como uma cláusula de admissão

irrestrita destes meios de prova quando a sua licitude seja demonstrada (através de

critérios que muitas vezes são insuficientes ou pouco fundamentados), despedimo-

nos da nossa tarefa primordial de considerar o espírito valorativo de todo o sistema

e reduzimos em grande parte a complexidade do problema.

Assim, concluímos pela importância de se ter em consideração a eventual

violação de normas conexas com a regulação do próprio processo penal, uma vez

que o juízo acerca da admissibilidade destes meios de prova quando obtidos por

particulares é não só um problema de ilícito criminal, mas também um problema

processual. Olhar apenas para um dos problemas ou então fazer equivaler os

mesmos juízos que neles são feitos é uma operação metodológica a evitar. Por

isso, não devemos admitir que tais normas sejam arredadas da conclusão final

acerca da sua valoração. Tal juízo terá sempre de respeitar as exigências e os

limites impostos pelas normas processuais penais, em contraste com a sua

autonomia valorativa ao nível penal.

83

Conclusões

1. As gravações e as fotografias podem ser meios de prova bastante úteis na

descoberta da verdade, sendo igualmente invasivos e potencialmente letais para

direitos fundamentais constitucionalmente protegidos e bens jurídicos penalmente

tutelados, como é o caso da privacidade, da imagem ou da palavra. Tal

intromissão, admitida em certos casos e respeitando condicionalismos legais

apertados para os agentes do Estado responsáveis pela investigação e perseguição

criminal, pode atingir um nível alarmante quando seja levada a cabo por meros

particulares despidos de qualquer função punitiva. No entanto, numa outra

perspetiva, as provas por eles obtidas podem ser encaradas como auxílios

necessários ao combate à criminalidade e à defesa dos seus próprios direitos.

2. As gravações e fotografias obtidas por particulares são levadas à categoria de

prova documental, local onde se deve procurar a sua regulamentação processual.

Nos termos do art. 170º do CPP, deve admitir-se a possibilidade de contestar a sua

autenticidade em juízo. Questão diferente será a de averiguar acerca da fiabilidade

do material apresentado devido às possibilidades técnicas de edição ou

manipulação do mesmo, sendo este um problema transversal a todos os meios de

prova e que exige uma especial atenção por parte do intérprete julgador no sentido

de não os elevar ao nível de eficácia máxima.

3. É o art. 167º, nº 1 do CPP que regula a (in)admissibilidade de utilização destes

meios de prova. Da sua formulação, resulta a necessidade de recorrer a normas

penais para se averiguar acerca da (i)licitude da conduta do particular, pois que a

mesma assume-se para o legislador como uma condição essencial para se concluir

sobre o seu juízo de valoração processual.

4. Devem ser tidas em conta todas as normas penais cuja finalidade se prenda com

84

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

a proteção de direitos fundamentais relacionados com a personalidade humana,

nomeadamente a privacidade, a imagem ou a palavra. Não defendemos uma

análise centrada apenas e só nas normas do CP.

5. A escolha do critério da ilicitude penal do art. 167º, nº 1 do CPP tem sido

interpretada, por alguma doutrina, no sentido da prevalência dos bens jurídicos

afetados sobre as finalidades de busca da verdade e de realização da justiça

tipicamente associadas ao processo penal. Pelo contrário, uma corrente

jurisprudencial maioritária tem vindo a afastar-se desta interpretação, alertando

para a necessidade de se ponderar, à luz do caso concreto, acerca desse juízo,

defendendo que o mesmo não se encontra previamente feito pelo art. 167º, nº 1 do

CPP.

6. A corrente maioritária jurisprudencial favorável a estes meios de prova tem

referenciado uma fórmula geral de aferição da (i)licitude da conduta do particular,

assente em duas exigências – i) que o conteúdo das gravações ou fotografias não

diga respeito ao núcleo duro da vida privada do visado e ii) que exista uma justa

causa para a sua obtenção.

7. O núcleo duro da vida privada não se deve reportar apenas a uma esfera mais

reduzida que possa ser encontrada dentro do conceito geral de privacidade. Apesar

de utilizar essa expressão, a jurisprudência maioritária parece seguir esse mesmo

entendimento e considera que a proteção conferida pelo art. 192º do CP abrange

quer a intimidade, quer a privacidade, embora esta última possua uma certa

elasticidade no seu maior ou menor âmbito de proteção.

8. A invocação do local onde a conduta ocorreu para poder caraterizar a ação como

pertencente à vida privada não é um critério determinante, ao contrário do que têm

85

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

defendido algumas decisões jurisprudenciais. Nessas orientações, o caráter público

da conduta gravada ou filmada bastou para que se admitisse os respetivos produtos

como meio de prova, inexistindo a preocupação em considerar a violação de

outros direitos autónomos igualmente afetados. A proteção da privacidade não é o

único, nem principal, interesse subjacente à proibição de valoração de prova do

art. 167º, nº 1 do CPP.

9. É que mesmo que se entenda não ter havido qualquer violação da privacidade

do visado pelas gravações ou imagens, não podemos retirar a conclusão de que é

permitida a sua admissibilidade como prova, uma vez que os direitos à imagem e à

palavra, penalmente tutelados no art. 199º do CP, permanecem igualmente lesados.

10. As gravações e fotografias que tenham sido feitas pelo próprio encontram-se

excluídas da área de tutela típica do art. 199º do CP. Defendemos que a sua

utilização no processo também deve beneficiar desse mesmo juízo, uma vez que a

al. b) dos nºs 1 e 2 do art. 199º se reporta a gravações ou fotografias referidas na

alínea anterior, ou seja, excluíndo todas aquelas que tenham sido feitas pelo

próprio. A jurisprudência maioritária tem-se pronunciado no mesmo sentido,

embora não tenha colocado autonomamente o problema da sua utilização

processual como uma nova potencial conduta lesiva dos respetivos bens jurídicos

afetados.

11. Alguma juriprudência tem defendido também uma redução teleológica do tipo

do art. 199º do CP com base nos limites imanentes dos direitos fundamentais e da

inadmissibilidade de proteção de condutas que materializem palavras ou imagens

criminosas. Manifestámo-nos no sentido da não adoção desta construção por

razões ligadas à posição do arguido no processo e à própria configuração da

incriminação penal. A jurisprudência maioritária parece ir no mesmo sentido,

86

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

preferindo antes fundamentar a exclusão da responsabilidade criminal na

invocação de causas de justificação ao nível da ilicitude.

12. A justa causa na obtenção das imagens é encontrada, de acordo com a

jurisprudência, ou na invocação de um juízo de ponderação de interesses

conflituantes, em que o mesmo é resolvido a favor do interesse na realização da

justiça, perseguição criminal e proteção dos direitos dos ofendidos, ou então na

invocação de causas de exclusão da ilicitude legalmente previstas.

13. Se considerada isoladamente, a via da ponderação de interesses conflituantes

pode não nos dar uma resolução segura para o problema. A ponderação casuística

desprovida de uniformidade e em que a gravidade do delito é o critério primordial

de aferição da prevalência dos interesses em jogo são fatores a ter em conta contra

a invocação desta solução.

14. As causas de exclusão da ilicitude devem ser a sede preferencial para se

resolver o problema da justificação da conduta do particular que obteve a prova

sem consentimento. Os requisitos específicos de algumas causas de justificação

como a legítima defesa ou o direito de necessidade podem não ser facilmente

verificáveis, especialmente os da atualidade da agressão ou da impossibilidade de

recorrer em tempo útil às autoridades públicas. Eventuais considerações sobre uma

maior flexibilidade destes requisitos não são de fácil aceitação devido à sua falta

de sistematização e incerteza jurídica que podem trazer.

15. A existência de autorizações legais, especialmente relevante nos casos em que

a utilização de sistemas de videovigilância está prevista e regulada na lei, é uma

causa de justificação dificilmente contornável na admissão destes meios de prova.

Assim, concluímos que nos casos em que a videovigilância cumpra todos os

87

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

condicionalismos impostos e a utilização processual dos produtos captados esteja

prevista na lei, as gravações podem ser valoradas como prova.

16. A este propósito, a jurisprudência maioritária vai ainda mais longe e admite

que, mesmo em casos em que os referidos sistemas de videovigilância instalados

por particulares não cumpram os formalismos exigidos, ainda assim as gravações

podem continuar a ser utilizadas como prova, bastanto invocar uma outra causa de

justificação.

17. A propósito do direito à imagem, o nº 2 do art. 79º do CC, por via do art. 31º,

nº 1 do CP, tem sido frequentemente invocado. Os casos de dispensa de

consentimento nele previstos podem fundamentar a exclusão da responsabilidade

criminal quer ao nível do tipo, quer ao nível da ilicitude.

18. Nas imagens captadas em locais públicos, as mesmas devem estar enquadradas

num contexto geral que não permita nem tenha intenções de individualizar

determinada pessoa. Se dirigida à generalidade das pessoas (por força da proteção

de pessoas e bens), podemos aceitar a atipicidade da captação de imagens em

locais públicos por sistemas de videovigilância, o mesmo não entendemos ser de

defender quando esteja em causa a obtenção de imagens de pessoas concretas,

mesmo que captada num local público;

19. A expressão exigências de justiça do nº 2 do art. 79º do CC exige uma

particular atenção na forma como deve ser feita a sua articulação com o art. 167º,

nº 1 do CPP. Identificadas as duas grandes orientações fundamentais, concluímos

pelo afastamento da consideração do art. 167º, nº 1 do CPP como uma norma

proibitiva de utilização destes meios de prova. No entanto, também criticámos o

facto de se encarar esta causa de justificação como uma cláusula automática. A

88

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

invocação das exigências de justiça deve ser apoiada numa demonstração efetiva,

à luz dos requisitos do princípio da proporcionalidade, que a utilização do meio de

prova é indispensável no caso concreto.

20. A esmagadora maioria das decisões que admitem estes meios de prova tem

cometido um erro ao não se manifestar acerca do juízo de (i)licitude no momento

da utilização das gravações e imagens. A verificação da justa causa, por forma a

excluir a responsabilidade criminal do particular e admitir a utilização probatória

do material, é apenas feita no momento da obtenção, havendo uma

desconsideração aparentemente inexplicável sobre a problemática da sua

utilização em processo penal como uma possível forma de atentar contra os bens

jurídicos afetados.

21. Por consequência da falta de análise do juízo de licitude da conduta ao nível da

utilização, e se partirmos do princípio de que a dispensa de consentimento prevista

no nº 2 do art. 79º do CC se reporta precisamente ao momento da utilização,

concluímos que podemos apontar à jurisprudência maioritária uma construção

incongruente nas suas soluções, uma vez que parece invocar, para o momento da

recolha, uma causa justificativa que só deveria operar no momento da sua

utilização.

22. A aceitação da continuidade e da semelhança entre os juízos valorativos

operados ao nível do direito penal e do direito processual penal tem sido um

dogma constante e praticamente inquestionável. O art. 167º, nº 1 do CPP vai ao

encontro desta posição, prevendo uma proibição de valoração de gravações ou

fotografias ilicitamente obtidas por particulares. Sem prejuízo de podermos em

abstrato questionar essa opção fundada na continuidade entre estes dois

ordenamentos jurídicos, não podemos deixar de nos afastar dessa conclusão.

89

Da Valoração de Gravações e Fotografias Obtidas por Particulares no Processo Penal

23. No entanto, consideramos que o oposto não é igualmente inevitável.

Verificámos que, sempre que a obtenção das gravações ou fotografias seja

considerada lícita, a jurisprudência admite imediatamente a sua utilização

probatória. Defendemos que esta mesma conclusão não deve ser retirada sem

mais. Para já, porque a referida continuidade entre os dois ramos jurídicos nem

sempre é assim tão linear; depois porque entendemos existirem valorações

próprias e exclusivas do processo penal que devem, da mesma forma, e após o

primeiro momento de análise da (i)licitude da conduta, ser equacionadas, como

por exemplo a questão da auto-incriminação ou a proibição de condutas ofensivas

da integridade moral das pessoas e proibição de utilização de meios enganosos na

obtenção de prova.

24. Assim, mesmo estando a conduta do particular justificada penalmente, não

cremos ser de excluir a eventual ponderação de violação de normas constitucionais

ou processuais penais de proibição de valoração de prova que possam ser

aplicáveis a particulares. Nesses termos, não podemos concordar com a

equivalência necessária e automática que é feita entre a licitude da conduta e a sua

admissibilidade como prova em processo penal.

90

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100

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Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/12/1997, disponível e

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101

Índice

Introdução............................................................................................................................1

1. Os processos técnicos de gravação de voz e registo de imagem como meio de prova. . .5

1.1. Fins do processo penal e (proibições de) prova.......................................................5

1.2. Os processos técnicos de gravação de voz e registo de imagem como prova

documental......................................................................................................................8

1.3. A proibição de utilização de gravações de voz e registo de imagem quando obtidas

de forma ilícita..............................................................................................................10

2. A resposta flexível da jurisprudência nacional sobre a exclusão da ilicitude ...............15

2.1. As tendências atuais e as razões justificadoras......................................................15

2.2. A identificação dos critérios invocados para permitir a sua utilização probatória 19

2.2.1. O primeiro critério: "Não dizer respeito ao núcleo duro da vida privada".....20

2.2.1.1. A concretização do conceito de vida privada do art. 192º do CP...........25

2.2.2. A insuficiência do critério: a violação autónoma dos direitos à imagem e à

palavra .....................................................................................................................29

2.2.2.1. O art. 199º do CP e a sua área de tutela típica........................................34

2.2.2.1.1. A atipicidade de gravações ou fotografias feitas pelo autor das

mesmas............................................................................................................38

2.2.2.1.2. A redução teleológica de sentido vitimodogmático .......................41

2.2.2.1.3. A concordância e o acordo presumido............................................44

2.2.3. O segundo critério: "Haver justa causa na sua obtenção"..............................46

2.2.3.1. A via da ponderação de interesses conflituantes.....................................46

2.2.3.2. A via das causas de justificação .............................................................52

2.3. Os equívocos da jurisprudência maioritária...........................................................67

3. A exclusão da ilicitude penal e consequente admissão da prova: da sua pretensa

inseparabilidade.................................................................................................................75

Conclusões.........................................................................................................................84

Bibliografia........................................................................................................................91

Lista de Jurisprudência......................................................................................................97

102