DADOS DE COPYRIGHT · 2019. 1. 9. · Isso me fez lembrar um professor na faculdade de artes, ......

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DADOS DE COPYRIGHT

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A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversosparceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisase estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com ofim exclusivo de compra futura.

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não maislutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a

um novo nível."

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O Arqueiro

GERALDO JORDÃO PEREIRA (1938-2008) começou sua carreira aos 17

anos, quando foi trabalhar com seu pai, o célebre editor José Olympio,publicando obras marcantes como O menino do dedo verde, de MauriceDruon, e Minha vida, de Charles Chaplin.

Em 1976, fundou a Editora Salamandra com o propósito de formar uma novageração de leitores e acabou criando um dos catálogos infantis maispremiados do Brasil. Em 1992, fugindo de sua linha editorial, lançou Muitasvidas, muitos mestres, de Brian Weiss, livro que deu origem à Editora

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Sextante.

Fã de histórias de suspense, Geraldo descobriu O Código Da Vinci antesmesmo de ele ser lançado nos Estados Unidos. A aposta em ficção, que nãoera o foco da Sextante, foi certeira: o título se transformou em um dosmaiores fenômenos editoriais de todos os tempos.

Mas não foi só aos livros que se dedicou. Com seu desejo de ajudar opróximo, Geraldo desenvolveu diversos projetos sociais que se tornaram suagrande paixão.

Com a missão de publicar histórias empolgantes, tornar os livros cada vezmais acessíveis e despertar o amor pela leitura, a Editora Arqueiro é umahomenagem a esta figura extraordinária, capaz de enxergar mais além, mirarnas coisas verdadeiramente importantes e não perder o idealismo e aesperança diante dos desafios e contratempos da vida.

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Título original: The Pearl Sister Copyright © 2017 por Lucinda RileyCopyright da tradução © 2017 por Editora Arqueiro Ltda.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada oureproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito doseditores.

tradução: Viviane Diniz preparo de originais: Diogo Henriques revisão:Flávia Midori e Suelen Lopes diagramação: Abreu’s System capa: RaulFernandes imagens de capa: mulher: ©Viktor Gladkov/

iStock; esfera armilar: nicoolay/ Getty Images foto da autora: © Lana Pinhoadaptação para e-book: Marcelo Morais CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃONA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

R43i

Riley, Lucinda

A irmã da pérola [recurso eletrônico]/ Lucinda Riley; tradução de VivianeDiniz. São Paulo: Arqueiro, 2017.

recurso digital (As sete irmãs; 4) Tradução de: The Pearl Sister Sequência de:A irmã da sombra: a história de Estrela Formato: ePub

Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World WideWeb ISBN 978-85-8041-774-6 (recurso eletrônico) 1. Ficção irlandesa. 2.Livros eletrônicos. I. Diniz, Viviane. II. Título.

III. Série.

CDD: 828.99153

17-44557

CDU: 821.111(41)-3

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Todos os direitos reservados, no Brasil, por Editora Arqueiro Ltda.

Rua Funchal, 538 – conjuntos 52 e 54 – Vila Olímpia 04551-060 – São Paulo– SP

Tel.: (11) 3868-1723 – Fax: (11) 3862-5818

E-mail: [email protected] www.editoraarqueiro.com.br

Para Richard e Felicity Jemmett

Nenhuma jornada é impossível. Basta dar um passo à frente.

Personagens

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ATLANTIS

Pa Salt – pai adotivo das irmãs [falecido]

Marina (Ma) – tutora das irmãs Claudia – governanta de Atlantis GeorgHoffman – advogado de Pa Salt Christian – capitão da lancha da família ASIRMÃS D’APLIÈSE

Maia

Ally (Alcíone)

Estrela (Astérope)

Ceci (Celeno)

Tiggy (Taígeta)

Electra

Mérope [não encontrada]

Ceci Dezembro de 2007

1

Sempre vou lembrar exatamente onde me encontrava e o que estava fazendoquando recebi a notícia de que meu pai havia morrido, pensei enquantoolhava pela janela para a mais absoluta escuridão da noite.

Abaixo de mim, pequenos aglomerados de luzes cintilantes davam sinaisintermitentes de habitação humana, cada uma representando uma vida, umafamília, um grupo de amigos.

E eu sentia que não tinha mais nada disso.

Era quase como ver o mundo de cabeça para baixo, porque as luzes sob oavião pareciam cópias menos brilhantes das estrelas acima. Isso me fezlembrar um professor na faculdade de artes, que me disse certa vez que eu

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pintava como se não pudesse ver o que tinha à frente. Ele estava certo. Asimagens apareciam na minha mente, não na realidade. Muitas vezes, nãotomavam forma animal, mineral ou mesmo humana, mas eram fortes, esempre me senti compelida a segui-las.

Como aquela grande pilha de lixo que catei em ferros-velhos de Londres eguardei no ateliê em meu apartamento. Levei semanas tentando descobrirexatamente como as peças deveriam se encaixar. Era como trabalhar em umimenso cubo mágico, embora os materiais incluíssem uma lata de óleo fedida,um velho espantalho de Guy Fawkes, um pneu e uma picareta meio

enferrujada. Eu vivia mudando as peças de lugar, feliz até acrescentar aúltima, que sempre, onde quer que eu a colocasse, parecia arruinar toda ainstalação.

Apoiei a testa quente no acrílico frio da janela, que era tudo o que separava amim – e a todos no avião – da asfixia e da morte.

Somos tão vulneráveis...

– Não, Ceci – adverti-me severamente à medida que o pânico crescia dentrode mim –, você consegue fazer isso sem ela, consegue, sim.

Procurei concentrar novamente meus pensamentos em Pa Salt, porque,considerando o meu medo de voar, pensar no momento em que soube que eletinha morrido era estranhamente reconfortante. Se o pior acontecesse e oavião despencasse, matando todos nós, pelo menos ele talvez estivesse dooutro lado, esperando por mim. Afinal, já havia feito mesmo a viagem lá paracima.

Eu estava vestindo a calça jeans quando Tiggy, minha irmã mais nova,telefonou com a notícia da morte de Pa Salt. Hoje, olhando em retrospecto,percebo que não absorvi nada do que ela disse. Só conseguia pensar em comocontaria a Estrela, que adorava nosso pai: sabia que ela ficaria desolada.

Você também o adorava, Ceci...

Adorava mesmo. Como meu papel na vida era proteger minha irmã mais

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frágil – na verdade, Estrela era três meses mais velha, mas tinha dificuldadede se expressar, então eu sempre falava por ela –, selei o coração, fechei ojeans e fui até a sala de estar.

Ela não disse nada, apenas chorou em meus braços. Fiz o possível para conteras lágrimas. Por ela, por Estrela. Eu tinha que ser forte porque ela precisavade mim...

Isso foi antes...

– Precisa de alguma coisa, senhora?

Uma nuvem de perfume almiscarado pairou sobre mim. Olhei para o alto e via aeromoça.

– Ahn, não, obrigada.

– A senhora apertou a campainha – disse ela num sussurro exagerado,indicando o restante dos passageiros, que dormia.

Afinal, eram quatro da manhã em Londres, de onde tínhamos saído.

– Desculpe – sussurrei de volta, afastando o cotovelo infrator do botão que achamara.

Aquilo devia acontecer o tempo todo. Ela olhou para mim como uma velhaprofessora quando vê um aluno abrir os olhos durante a oração da manhã naescola. Então, com um leve farfalhar da roupa de seda, desapareceu em seurefúgio. Fiz o máximo para me sentir confortável e fechei os olhos, desejandoser como aquelas outras quatrocentas almas aleatórias que, ao dormir, tinhamconseguido fugir do horror de se lançar pelo ar em um tubo de alumínio.Como de costume, eu me sentia excluída, e não parte da multidão.

É claro que eu poderia ter reservado um assento na classe executiva.

Ainda restava dinheiro da herança – mas não o suficiente para desperdiçá-loem mais alguns centímetros de espaço. A maior parte do que ganhei foi usadapara comprar nosso elegante apartamento às margens do rio, em Londres. Eu

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achava que o que Estrela queria era um lar de fato, que isso a faria feliz, masnão...

Agora ali estava eu, mais ou menos na mesma época em que, no ano anterior,cruzara o mundo com minha irmã até a Tailândia, na classe econômica. Sóque dessa vez Estrela não estava comigo, e eu não estava me dirigindo paraalguma coisa, mas, sim, fugindo de algo...

– Gostaria de tomar o café da manhã, senhora?

Abri os olhos, grogue e desorientada, e vi a mesma aeromoça que me visitarano meio da noite. Notei que todas as luzes da cabine estavam acesas ealgumas cortinas abertas, revelando os tons rosados do amanhecer.

– Não, obrigada, só um café. Puro, por favor.

Ela assentiu e se retirou, e me perguntei por que me sentia culpada em pediralguma coisa – afinal de contas, eu estava pagando por aquele serviço.

– Para onde você vai?

Virei-me para o lado. Até então só tinha visto o passageiro de perfil e, mesmoassim, apenas nariz, boca e um cacho de cabelos louros saindo de um capuzpreto. Agora ele me fitava bem de frente. Não devia ter mais de 18 anos, osresquícios de acne da adolescência ainda visíveis no queixo e na testa.

Perto dele, eu me sentia uma aposentada.

– Bangcoc, depois Austrália.

– Legal – disse ele, atacando a bandeja de ovos mexidos gordurosos, baconqueimado e uma coisa comprida e rosa que fazia as vezes de salsicha. – Voupara lá depois, mas antes vou conhecer a Tailândia. Já me disseram que asfestas da lua cheia são incríveis.

– São mesmo.

– Você já foi?

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– Algumas vezes – respondi, sua pergunta imediatamente me trazendo umasérie de lembranças.

– Qual você sugere? Ouvi falar que a de Ko Pha Ngan é a melhor.

– Faz muito tempo desde a última vez que estive lá, mas ouvi dizer que émesmo uma grande festa... talvez chegue a receber alguns milhares depessoas.

Meu lugar preferido é a praia de Railay, em Krabi. É muito fria, mas achoque depende do que você quer.

– Também ouvi falar de Krabi – disse ele, se esforçando para mastigar asalsicha. – Vou encontrar alguns amigos em Bangcoc. Temos algumassemanas até a lua cheia para decidir. Você vai encontrar algum amigo naAustrália?

– Sim – menti.

– E quanto tempo fica em Bangcoc?

– Só uma noite.

Senti sua empolgação enquanto o avião dava início ao processo deaterrissagem no aeroporto de Suvanabhumi e as instruções de praxe eramtransmitidas pela equipe de comissários. Mas que piada, pensei, fechando osolhos e tentando me acalmar. Se o avião cair, vamos todos morrer, querminha poltrona esteja ou não na posição vertical. Imagino que digam essascoisas pra gente se sentir melhor.

O avião pousou tão suavemente que mal notei que tínhamos aterrissado atéanunciarem pelos alto-falantes. Abri os olhos e fui inundada por umasensação de triunfo. Tinha completado um voo longo sozinha e sobrevividopara contar a história. Estrela ficaria orgulhosa de mim...

isto é, se ela ainda se importasse.

Depois de passar pela imigração, peguei a bagagem na esteira e me dirigipara a saída.

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– Divirta-se na Autrália! – exclamou meu vizinho adolescente ao passar pormim. – Meu amigo disse que a vida selvagem lá é insana, aranhas dotamanho de pratos! Boa viagem!

Com um aceno, ele desapareceu em meio à multidão. Segui em ritmo

bem mais lento, e dei de cara com uma muralha de calor e umidade bastantefamiliar. Peguei um ônibus no aeroporto, fiz o check-in no hotel e subi deelevador para o meu quarto apático. Tirei a mochila dos ombros, sentei-menos lençóis brancos da cama e pensei que, se tivesse um hotel, usaria lençóisde cores escuras, para que não ficassem com as manchas de outros corpos pormais que sejam lavados.

Tantas coisas no mundo me intrigavam, regras que tinham sido impostas poralguém em algum lugar, provavelmente havia muito tempo. Tirei as botas decaminhada e me deitei, pensando que, nesse momento, odiaria estar emqualquer lugar do mundo. O ar-condicionado zumbia acima de mim, e fecheios olhos, tentando dormir, mas só conseguia pensar que, se morresse naqueleinstante, nenhum ser humano saberia.

Compreendi, então, o que era a solidão. Parecia algo que me corroía pordentro, mas, ao mesmo tempo, um grande vazio. Pisquei para conter aslágrimas. Nunca fui de chorar, mas elas não paravam de vir, até que minhaspálpebras foram forçadas a se abrir pela pressão de uma represa prestes aexplodir.

Não tem problema, você pode chorar, Ceci...

Ouvi a voz reconfortante de Ma na minha cabeça. Foi isso que ela me disseem Atlantis quando caí de uma árvore e torci o tornozelo. Em meu esforçopara não chorar, mordi o lábio inferior com tanta força que chegou a sangrar.

– Sim, é claro que ela se importa – murmurei em desespero.

Em seguida, peguei o celular e pensei em ligar ou mandar uma mensagemdizendo a ela onde eu estava. Mas não suportaria ver um recado de Estrela,ou, pior ainda, não ver nenhum sinal dela. Sabia que isso acabaria comigo,

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então joguei o telefone na cama e tentei fechar os olhos novamente. Mas umaimagem de Pa surgiu, recusando-se a ir embora.

Você e Estrela têm uma à outra, mas é importante que façam seus própriosamigos, Ceci...

Ele disse isso pouco antes de irmos para a Universidade de Sussex, e fiqueicom raiva porque não precisava de mais ninguém, nem Estrela. Ou, pelomenos, eu achava que ela não precisava. Então...

– Ah, Pa... – falei, suspirando. – É melhor aí em cima?

Nas últimas semanas, quando Estrela deixou claro que não queria mais morarcomigo, me peguei conversando bastante com Pa. A morte dele simplesmentenão parecia real; eu ainda o sentia perto de mim de alguma forma. Mesmosendo muito diferente de Tiggy, minha irmã mais nova, com todas as suascrenças espirituais esquisitas, havia uma estranha parte de mim que sentiacoisas também... por dentro e nos sonhos. Muitas vezes, meus sonhospareciam mais reais e vívidos do que o tempo que eu passava acordada, comose eu estivesse em uma série de TV. Bem, essas eram as noites boas, porqueeu tinha pesadelos também.

Como aqueles com as aranhas enormes...

Estremeci, lembrando-me das palavras de despedida de meu jovemcompanheiro de voo. Será que as aranhas na Austrália eram mesmo dotamanho de pratos?

– Meu Deus!

Pulei da cama para frear esses pensamentos e lavei o rosto no banheiro.

Fitei meu reflexo e, com os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar, ocabelo oleoso por causa da longa viagem, achei que parecia um filhote dejavali.

Não importava quantas vezes Ma me dissesse como o formato e a cor dosmeus olhos eram bonitos ou que Estrela afirmasse quanto gostava de acariciar

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minha pele – segundo ela, suave e macia como manteiga de cacau. Sabia queelas estavam apenas sendo gentis. Eu podia ser feia, mas não era cega edetestava que fossem condescendentes comigo.

Como tinha cinco belas irmãs, eu me esforçava para não competir com elas.Electra – que, por sinal, era modelo – vivia dizendo que eu não sabia realçarminha beleza, mas para mim esse esforço seria um desperdício de tempo eenergia, porque eu nunca seria bonita.

No entanto, eu podia criar beleza, e agora, no fundo do poço, lembrei-me deoutra coisa que Pa dissera quando eu era jovem: “O que quer que aconteça nasua vida, querida Ceci, a única coisa que nunca pode ser tirada de você é oseu talento.”

Na época, pensei que era apenas outra – que palavra Estrela usaria? –

platitude, para compensar o fato de eu não ser bonita, inteligente e não levaro menor jeito com as pessoas. E, na verdade, Pa estava errado: mesmo quenão possam tirar seu talento, as pessoas abalam sua autoconfiança comcomentários negativos, mexem com a sua cabeça, de modo que no fim dascontas você não sabe mais quem é ou como agradar os outros, muito menos avocê mesmo. Foi o que aconteceu comigo no curso de artes. E foi por issoque o abandonei.

– Pelo menos aprendi no que não era boa – tentei me consolar.

De acordo com meus professores, isso incluía a maior parte das matérias queeu havia feito nos últimos três meses.

Apesar das críticas que eu e minhas pinturas recebemos, até mesmo eu sabiaque, se perdesse a fé em meu talento agora, não haveria mais nenhuma razãopara seguir em frente. Era de fato tudo o que me restara.

Voltei para o quarto e deitei-me de novo, desejando apenas que aquelas horasterríveis de solidão passassem, e finalmente compreendendo por que viatantos idosos sentados nos bancos sempre que passava pelo Battersea Park acaminho da faculdade. Mesmo que estivesse fazendo um frio congelante dolado de fora, eles precisavam confirmar que havia outros seres humanos no

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planeta, que não estavam completamente sozinhos.

Acabei adormecendo sem querer, mas tive o pesadelo da aranha e acordeigritando. Levei a mão à boca na mesma hora, caso alguém no

corredor pudesse pensar que eu estava sendo assassinada. Então, decidi quenão conseguiria ficar sozinha naquele quarto sem alma por muito maistempo. Calcei as botas, ajustei a câmera e peguei o elevador até a recepção.

Lá fora, havia uma fila de táxis à espera. Entrei em um deles e pedi aomotorista que me levasse ao Grand Palace. O excesso de funcionários emBangcoc, e na Tailândia em geral, sempre me impressionara e perturbara emigual medida. Em qualquer loja, mesmo que você quisesse apenas um pacotede amendoim, havia sempre uma pessoa para orientá-lo, outra no caixa e umaterceira para empacotar a compra. A mão de obra ali era surreal de tão barata.

Na mesma hora me senti mal com esse pensamento, então lembrei que erapor isso que adorava viajar: colocava as coisas em perspectiva.

O motorista me deixou no Grand Palace e acompanhei as hordas de turistas,muitos deles exibindo ombros vermelhos, claramente recém-chegados declimas mais frios. Em frente ao templo, tirei as botas de caminhada e asdeixei junto aos degraus, com os vários chinelos e tênis de outros visitantes.

Depois, entrei. O Buda Esmeralda devia ter mais de 500 anos e era o maisfamoso da Tailândia. No entanto, era pequeno em comparação com os muitosoutros Budas que eu já tinha visto. O brilho do jade e a maneira como seucorpo era moldado lembravam um lagarto verde brilhante. O contorno deseus membros era fluido e, para ser sincera, não muito acurados. Não queisso importasse: era lindo.

Sentei-me de pernas cruzadas em um dos tapetes, aproveitando o abrigo dosol naquele espaço grande e tranquilo, bem como os seres humanos ao meuredor, que provavelmente também pensavam muito no próprio umbigo.Nunca segui nenhuma religião, mas, se tivesse que escolher uma, acho queseria o budismo, porque parece ter tudo a ver com o poder da natureza, queeu acreditava ser um milagre permanente acontecendo bem diante dos meusolhos.

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Sempre que eu começava a falar sem parar depois de assistir a um programade TV sobre meio ambiente, Estrela me dizia que eu deveria entrar para umpartido com causas ecológicas. Mas de que adiantaria?

Minha voz não contava, e eu era idiota demais para ser levada a sério.

Tudo que eu sabia era que as plantas, os animais e os oceanos que formavamo nosso ecossistema e nos sustentavam eram frequentemente ignorados.

– Se tem uma coisa que eu adoro, é isso – murmurei para o Buda.

Ele também era feito de terra, de mineral talhado transformado em algo beloao longo de milênios, e achei que provavelmente entenderia.

Eu estava em um templo, então pensei que deveria aproveitar a oportunidadepara falar com Pa. Talvez as igrejas e os templos fossem como centraistelefônicas ou cibercafés: eles fornecem uma linha mais direta com o céu.

– Oi, Pa, sinto muito que você tenha morrido. Sinto sua falta muito mais doque eu imaginava. Desculpe por não ter prestado atenção quando você medava conselhos e todas as suas palavras de sabedoria. Eu deveria ter ouvido,porque olhe só como acabei. Espero que você esteja bem aí em cima. Maisuma vez, sinto muito.

Levantei-me, sentindo um desconfortável nó na garganta causado pelaslágrimas que ameaçavam vir à tona, e caminhei em direção à porta.

Quando estava prestes a sair, voltei.

– Ajude-me, Pa, por favor – sussurrei para ele.

Depois de comprar uma garrafa de água de um vendedor de rua, caminhei atéo rio Chao Phraya e fiquei observando o tráfego intenso movendo-seruidosamente ao longo dele. Rebocadores, lanchas e grandes barcaçascobertas com lona preta davam continuidade a seus negócios diários. Resolvi,então, entrar em uma barca e dar um passeio –

era barato e melhor do que ficar em meu solitário quarto de hotel noaeroporto.

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Enquanto navegávamos, vi templos dourados elegantemente aninhados entrearranha-céus de vidro e, ao longo das margens dos rios, frágeis cais ligandocasas de madeira ao fluxo de atividade na água. Peguei minha leal câmeraNikon – que Pa me deu em meu aniversário de 16

anos para que eu pudesse, segundo ele, “tirar fotos do que a inspira, querida”– e comecei a fotografar. Estrela vivia tentando me convencer a comprar umacâmera digital, mas eu e a tecnologia não nos damos bem, então prefericontinuar com o que já conhecia.

Depois de desembarcar, caminhei por uma das ruas laterais do Hotel Orientale me lembrei do dia em que levei Estrela para um chá da tarde no famosoAuthors’ Lounge. Nós nos sentimos deslocadas com nossas calças jeans ecamisetas, enquanto todos os outros se vestiam de maneira elegante.

Estrela passara horas na biblioteca vendo as fotografias autografadas portodos os escritores que haviam se hospedado no hotel. Eu me perguntava seela algum dia publicaria um romance, porque era boa com a escrita. Não queisso fosse mais da minha conta. Estrela agora tinha uma nova família. Vi umbrilho em seus olhos quando cheguei em casa algumas semanas antes eencontrei em nosso apartamento um homem que ela chamava de Mouse. Eleolhava para ela como um cãozinho apaixonado.

Sentei-me em um café e pedi uma tigela de macarrão e uma cerveja só parapassar o tempo. Não me dava muito bem com álcool, mas, como já estava mesentindo péssima, não havia como ficar pior. Enquanto comia, pensei que oque mais doía não era o fato de Estrela ter um novo namorado e um novoemprego, mas que houvesse se afastado de mim, lenta e dolorosamente.Talvez ela tivesse pensado que eu ficaria com ciúme, que eu a quisesse sópara mim, mas isso não é verdade. Eu a amava mais do que tudo e só queriavê-la feliz.

Não era tola a ponto de pensar que um homem nunca fosse aparecer, já queera tão bonita e inteligente.

Você foi muito rude quando ele esteve no apartamento, minha consciênciame lembrou. E, sim, aquilo me chateou, mas, como sempre, eu não soube

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disfarçar.

A cerveja cumpriu com sua função e embotou a minha dor. Paguei a conta,me levantei e andei sem rumo pela rua antes de entrar em um beco estreito,onde havia um mercado. Passei por algumas barracas e vi um artista pintandouma aquarela. Ao observá-lo sentado diante do cavalete, lembrei-me dasnoites na praia de Railay, em Krabi, com meu bloco de desenho e latas detinta, tentando capturar a beleza do pôr do sol. Fechei os olhos e me recordeida paz que senti quando estive lá com Estrela, apenas um ano antes. Euqueria tanto esse momento de volta que chegava a doer.

Fui até a margem do rio e me inclinei sobre a balaustrada, pensativa.

Seria loucura visitar o lugar onde fui mais feliz antes de seguir para aAustrália? Eu conhecia pessoas na praia de Railay. Elas me reconheceriam,acenariam e cumprimentariam. A maioria estava fugindo também, porqueRailay era esse tipo de local. Era um lugar onde se refugiar, bem longe deLondres. Além disso, eu só estava indo para a Austrália por conta do que medissera Georg Hoffman, o advogado de Pa.

Então, em vez de passar doze horas em uma lata de sardinha, voando para umlugar onde não conhecia ninguém, a essa hora, na noite seguinte, eu poderiaestar bebendo uma cerveja gelada na praia de Railay. Com certeza algumassemanas não fariam mal, não é mesmo?

Afinal, dali a alguns dias seria Natal, e talvez fosse menos terrível passar adata em um local que eu conhecia e amava...

Pela primeira vez em muito tempo, fiquei de fato ansiosa ao pensar em fazeralgo. Antes que o sentimento desaparecesse, acenei para o primeiro táxi quevi e pedi que me levasse de volta ao aeroporto. Já no terminal, fui até obalcão da Thai Airways e expliquei que precisava adiar meu voo para aAustrália. A mulher no balcão digitou várias coisas no computador einformou que a alteração custaria cerca de 4 mil bahts, o que afinal de contasnão era muito.

– Sua tarifa é flexível. Para que data deseja reagendar? – perguntou ela.

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– Ah... Pode ser logo depois do Natal?

– Está tudo cheio. O primeiro voo disponível é no dia 8 de janeiro.

– Está bem – concordei, feliz em poder culpar o destino por ter que ficar maistempo.

Reservei também um voo de Bangcoc para Krabi que saía cedo na manhãseguinte.

De volta ao meu quarto, tomei banho, escovei os dentes e me deitei, sentindo-me mais calma. Se minhas irmãs soubessem, diriam que eu estava“vadiando” de novo, mas eu não me importava.

Como um animal machucado, eu iria me esconder e lamber minhas

feridas.

2

A melhor coisa da praia de Railay é que fica em uma península e só éacessível de barco. Estrela e eu visitamos muitos lugares incríveis, masaqueles dias em Railay sem dúvida estavam entre os cinco momentos maismágicos da minha vida: sentadas no banco de madeira de um longo barco,deslizando ruidosa e velozmente pelo mar azul-esverdeado, e aquela primeiravisão das incríveis colunas de calcário que se erguiam em direção ao céuazul-escuro.

À medida que nos aproximávamos, vi cordas presas à rocha e pessoas deshorts fluorescentes que pareciam formigas multicoloridas escalando.

Quando coloquei a mochila nos ombros e desci do barco, minha pele searrepiou de expectativa. Embora curtos, meus braços e pernas eram fortes eágeis, e escalar era uma das coisas em que eu era realmente boa.

Não que fosse uma habilidade útil para alguém que morava no centro deLondres e queria ser artista, mas, em um lugar como aquele, de fatosignificava algo. Pensei em como, dependendo de onde se esteja, suas forçase fraquezas podem ser algo positivo ou negativo. Na escola, eu era uma tonta,

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enquanto Estrela fazia jus ao seu nome: era uma superestrela.

No entanto, ali em Krabi, ela ficara à sombra, sentada na praia com um livro,enquanto eu me divertia com todas as atividades ao ar livre que o lugar tinhaa oferecer. O mundo exterior era o meu hábitat, como Ma dissera certa vez, eeu ficara mais conhecida na comunidade do que ela.

A cor da água à minha volta era única – turquesa quando o sol brilhava sobreela, de um intenso verde-escuro nas sombras sob as enormes rochas.

Enquanto eu passava pela água rasa a caminho da calçada, vi a praia se abrirà minha frente: um suave crescente de areia branca orlada pelos enormespilares de pedra calcária, com palmeiras entre as cabanas simples de madeiraque abrigavam os hotéis e bares. O som tranquilizador do reggae emanava deuma delas.

Caminhei com dificuldade pela areia branca escaldante em direção ao RailayBeach Hotel, onde havíamos nos hospedado no ano anterior, e me curveisobre o balcão do bar-recepção que ficava na varanda de madeira.

– Olá – disse a uma jovem tailandesa que não reconheci. – Você tem algumquarto disponível para as próximas semanas?

A mulher me observou e pegou um grande caderno de reservas. Passou odedo cuidadosamente por cada página, então balançou a cabeça.

– O Natal está chegando. Muito cheio. Nenhum quarto depois do dia 21.

– Só pelas próximas duas semanas, então? – sugeri.

De repente senti alguém tocar as minhas costas.

– Ci? É você?

Virei-me e vi Jack, uma montanha australiana de músculos tonificados, donodo hotel e diretor da escola de escalada na praia, que ficava na esquina.

– Sim, oi. – Sorri para ele. – Estou fazendo o check-in, pelo menos poralgumas semanas, antes que me expulsem daqui. Ao que parece, o hotel está

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lotado.

– Com certeza podemos encontrar um cantinho, querida, não se preocupecom isso. Sua irmã está com você?

– Ahn, não. Sou só eu desta vez.

– Quanto tempo vai ficar?

– Até depois do ano-novo.

– Bem, se quiser me dar uma ajudinha na escalada, é só avisar. Seria ótimo,Ci. Fica tudo bem agitado nesta época do ano.

– É claro! Obrigada.

– Preencha seus dados. – A recepcionista tailandesa entregou-me umformulário.

– Não se preocupe com isso, Nam – disse Jack. – Ci esteve aqui com a irmãno ano passado, então já temos a ficha dela. Venha. Vou levá-la até o seuquarto.

– Obrigada.

Quando Jack pegou minha mochila, vi que a recepcionista me olhou de carafeia.

– Para onde você vai depois daqui? – perguntou ele, enquanto me guiava porum passadiço de madeira até uma série de quartos simples, escondidos poruma fileira de portas desgastadas.

– Austrália – respondi, quando chegamos em frente ao quarto 22, no final dopassadiço. Ficava bem ao lado do gerador, com vista para duas grandeslixeiras de rodinhas.

– Ah, eu sou australiano. Qual parte?

– Costa noroeste.

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– Escaldante nesta época do ano, você sabe.

– O calor não me incomoda – afirmei, enquanto destrancava a porta.

– Bem, vejo você por aí.

Jack acenou para mim e saiu.

Embora o quarto fosse pequeno, úmido e fedorento, joguei minha mochila nochão, feliz pela primeira vez em semanas, porque era realmente bom ter porperto alguém que me conhecesse. Eu tinha adorado trabalhar na escola deescalada no ano anterior, verificando as cordas e prendendo os clientes nosarneses. Na ocasião, Estrela e eu estávamos com pouco dinheiro, e Jackabateu parte do valor da hospedagem em troca do trabalho. Eu me perguntavacomo ele reagiria se eu lhe dissesse que não precisava mais trabalhar porqueagora era milionária. Em teoria, pelo menos...

Puxei um cordão puído para ligar o ventilador de teto, que, após algum temporangendo e fazendo muito barulho, começou a soprar apenas uma leve brisa.Então, tirei a roupa, coloquei o biquíni e um sarongue que comprara ali noano anterior, saí do quarto e caminhei até a praia. Sentei um pouco na areia,rindo do fato de que o “paraíso”, com todos aqueles longos barcos chegandoe partindo da baía, era um milhão de vezes mais ruídoso do que a região àsmargens do rio em Londres. Levantei, andei até a água deslumbrante e entreino mar. Quando já estava longe o suficiente da areia, fiquei boiando, olheipara o céu e agradeci a Deus, ou a Buda, ou a quem eu devesse agradecer, porter voltado a Krabi. Sentia-me em casa pela primeira vez em meses.

Dormi na praia naquela noite, como fizera tantas vezes no passado, comapenas um caftã, um moletom com capuz e meu travesseiro inflável.

Estrela achava que eu era maluca – “Você vai morrer picada pelosmosquitos”, dizia quando eu saía do quarto com minha roupa de cama.

Mas, de alguma forma, com a lua e as estrelas brilhando no céu, eu me sentiamais protegida pelo telhado do mundo do que por qualquer outra coisa.

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Fui acordada por uma sensação de cócegas no rosto e, ao levantar a cabeça,vi dois grandes pés masculinos passando por mim em direção ao mar.

Limpei a areia do corpo e vi que, tirando nós dois, a praia estava deserta.

Pelo jeito como a luz começava a se espalhar pelo horizonte, era pouco antesdo amanhecer. De mau humor por ter sido despertada tão cedo, vi o homemchegar à praia e se sentar, abraçando os joelhos. Ele tinha barba e cabelosnegros presos em um rabo de cavalo que saía pela parte de trás do boné.

Virei-me para tentar voltar a dormir, pois descanso melhor entre quatro e dezda manhã, mas meu corpo e minha mente não estavam interessados. Entãome sentei, assumi a mesma posição do homem à minha frente e assisti comele ao nascer do sol.

Embora eu já tivesse visitado diversos lugares exóticos, não passara muitasvezes pela experiência, porque aquela não era a minha hora preferida do dia.Os matizes sutis e magníficos da aurora me lembravam uma pintura deTurner, mas eram muito melhores na vida real.

Quando o espetáculo terminou, o homem imediatamente se levantou ecaminhou ao longo da praia. Ouvi o fraco ruído de um barco a distância,anunciando o início do dia. Levantei-me, decidindo ir para o quarto dormirmais um pouco antes que a praia ficasse cheia. Ainda assim, pensei, enquantodestrancava a porta e deitava na cama, valeu a pena ser acordada para verisso.

Como sempre acontecia ali, o tempo passou sem que me desse conta. Euhavia concordado com a oferta de Jack de ajudá-lo na escola de escalada.

Também mergulhei e nadei com cavalos-marinhos, peixes-tigre e

tubarões-de- pontas-negras-do-recife, que mal olhavam para mim enquantopasseavam pelos corais.

Passei os fins de tarde conversando em cangas na praia, com Bob Marley demúsica ambiente. Fiquei agradavelmente surpresa ao ver quantos moradoresde Railay se lembravam de mim do ano anterior, e era só quando a escuridão

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caía e eles iam para o bar com a intenção de se embriagar que eu voltava parao quarto. Mas não me sentia mal, porque era eu que os deixava, e não ocontrário – se quisesse, eu podia voltar e me juntar a eles a qualquermomento.

Um dia depois de chegar a Krabi, fiquei bastante feliz quando enfim tivecoragem de ligar o celular e vi que Estrela tinha me deixado um monte deSMS dizendo coisas como: “onde vc tá?”, “tô tão preocupada com vc!”,

“por favor, me liga!”. Também havia diversas mensagens de voz, a maioriafalando que ela sentia muito, várias e várias vezes. Levei um tempo pararesponder, não só porque era disléxica e o autocorretor do celular não ajudavamuito, mas sobretudo porque não sabia o que escrever.

Por fim, disse apenas que estava bem, pedi desculpas por não entrar emcontato antes e expliquei que estava viajando. Ela respondeu na mesma hora,dizendo quanto ficava aliviada, perguntando onde eu estava, e afirmandonovamente que sentia muito. Algo me impediu de revelar a ela minhalocalização. Talvez fosse infantilidade, mas era o único segredo que eu tinhapara guardar. E ela guardara vários segredos de mim nos últimos tempos.

Só percebi que já estava em Railay havia duas semanas quando Nam, ajovem tailandesa da recepção que agia como se fosse dona do lugar, melembrou que eu tinha que fazer o check-out naquele dia, ao meio-dia.

– Droga – murmurei enquanto me afastava, percebendo que precisaria passara manhã à procura de um quarto.

Voltei ao hotel algumas horas mais tarde, após ter percorrido sem sucessotoda a extensão da praia de Railay em busca de uma cama para passar a noite,e encontrei Nam me fuzilando com os olhos.

– A camareira precisa limpar o quarto. Os novos hóspedes chegam às duas datarde.

– Estou saindo – falei, com vontade de dizer que, na verdade, tinha dinheiropara reservar o Resort Rayavadee, de cinco estrelas, se quisesse.

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Isto é, se eles tivessem um quarto vago, o que não era o caso, porque eu játinha checado.

Enfiei minhas coisas na mochila, então deixei a chave. Vou ter que dormirsob as estrelas alguns dias até o Natal passar, pensei.

Mais tarde naquela noite, depois de comer uma tigela de pad thai, vi Jack nobar. Os braços dele enlaçavam Nam, então finalmente entendi a atitude delaem relação a mim.

– Encontrou um quarto? – perguntou ele.

– Não, ainda não, mas vou ficar bem esta noite na praia – respondi.

– Ouça, Ci, pode pegar o meu, sem problema. Tenho certeza de que consigoencontrar uma cama por aqui.

Ele roçou o nariz no ombro presunçoso de Nam.

– Está bem, Jack, obrigada – concordei rapidamente.

Eu tinha passado a tarde vigiando minha mochila como se fosse o SantoGraal, e imaginando como faria para tomar banho e tirar a areia e o sal dapele. Até mesmo eu precisava do básico.

Ele enfiou a mão no bolso para me entregar a chave enquanto Nam meolhava com ar de reprovação. Seguindo suas instruções, subi um lanceestreito de escadas que saía da recepção, abri a porta e, tirando o cheiro demeias suadas e toalhas úmidas, fiquei muito impressionada: Jack tinha amelhor vista do prédio. Ainda melhor do que isso, uma estreita sacada demadeira.

Em seguida, tranquei a porta, para o caso de Jack, bêbado, esquecer que haviame emprestado o quarto, e tomei banho. O chuveiro tinha um jato d’águabem mais forte do que os esguichos dos quartos de hóspede no andar debaixo.

Vesti uma camisa limpa e uma bermuda, e fui me sentar na varanda.

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Perto do Cinturão de Órion, vi a constelação das Sete Irmãs. Quando Pa memostrou minha estrela no telescópio pela primeira vez, logo percebeu quefiquei decepcionada. Era a menos brilhante, o que praticamente já explicavatudo, e minha história mitológica parecia vaga. Ainda tão jovem, eu queriaser a maior estrela, a mais brilhante, com a melhor história de todas.

– Ceci – disse ele, pegando minhas pequenas mãos –, você está aqui na Terrapara escrever sua própria história. E eu sei que vai conseguir.

Enquanto olhava para a constelação, pensei na carta que Pa me escreveu eque Georg Hoffman, seu advogado, me entregou alguns dias depois de suamorte.

Estrela se recusou a abrir a dela, mas eu fiquei desesperada para ler a minha.Então fui para o jardim e subi nos galhos de uma faia magnífica –

a mesma da qual havia caído quando pequena. Sempre me senti segura emcima dela, escondida pelas folhas. Eu costumava ir lá para pensar ou paraficar emburrada, dependendo da situação. Depois de encontrar uma posiçãoconfortável no galho largo, abri a carta.

Atlantis

Lago Léman

Suíça

Minha querida Ceci,

Sei que vai ser difícil ler esta carta. Rogo a você, no entanto, que tenhapaciência para terminá-la. Imagino que você vá ler estas linhas sem chorar,porque sempre guardou suas emoções. No entanto, sei muito bem como vocêsente as coisas profundamente.

Tenho certeza de que você será forte por Estrela. Vocês chegaram a

Atlantis com seis meses de diferença, e a maneira como você sempre aprotegeu tem sido algo lindo de se ver. Você ama de maneira profunda eintensa, como sempre amei. Um conselho de uma pessoa com um pouco mais

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de experiência: tome cuidado para que isso não aconteça em detrimento desi mesma. Não tenha medo de deixá-la ir quando chegar a hora – o vínculoque você compartilha com sua irmã é indestrutível. Confie nele.

Como você já deve ter visto, deixei para vocês, meninas, uma esfera armilarem meu jardim especial. Sob o nome de cada uma há um conjunto decoordenadas que irá lhes dizer exatamente onde as encontrei. Também háuma citação, que espero que achem pertinente.

Eu certamente acho.

Além disso, peço que procure, assim que possível, o meu querido amigo eadvogado Georg Hoffman. Não se preocupe, ele tem boas notícias a dar,informações que fornecem uma ligação com o seu passado e vão colocá-lano caminho certo se você quiser saber mais sobre a sua família biológica.

Caso decida arriscar, eu a aconselharia a descobrir mais sobre uma mulherchamada Kitty Mercer, que morava em Broome, na costa noroeste daAustrália. Foi ela quem deu início à sua história.

Sei que muitas vezes você se sentiu ofuscada por suas irmãs. É fundamentalque não perca a fé em si mesma. Seu talento como artista é único – vocêpinta como sua imaginação exige. E, quando encontrar a confiança paraacreditar nisso, tenho certeza de que irá longe.

Por fim, quero lhe dizer quanto a amo, Ceci, minha forte e determinadaaventureira. Nunca deixe de procurar por inspiração e paz. Rezo para queum dia as encontre.

Beijos,

Pa Salt

Pa tinha razão sobre uma coisa: levei quase uma hora para ler a carta edecifrar cada palavra. Mas estava errado sobre outra: eu quase chorei.

Fiquei sentada naquela árvore por um longo tempo, até notar que minhaspernas estavam dormentes e formigavam, então desci.

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“Pela graça de Deus, sou o que sou”, foi a citação que ele inscreveu na esferaarmilar. Considerando que, tanto na ocasião quanto agora, eu não fazia amenor ideia de quem eu era, aquilo não tinha me inspirado, só me deixaraainda mais deprimida.

Quando fui falar com Georg Hoffman em seu escritório em Genebra namanhã seguinte, ele avisou que Estrela não podia entrar comigo, então elaficou esperando na recepção. Depois, ele me contou sobre minha herança eme entregou um envelope contendo uma fotografia em preto e branco de umhomem mais velho de pé com um adolescente, junto a uma caminhonete.

– Eu deveria reconhecê-los? – perguntei a Georg.

– Não tenho ideia, Celeno. Essa foi a única coisa que chegou junto com odinheiro. Não havia nenhum bilhete, apenas o endereço do advogado

que mandou o dinheiro da Austrália.

Eu vinha planejando mostrar a fotografia a Estrela para ver se ela tinhaalguma ideia de quem eram aquelas pessoas, mas, para encorajá-la a abrir acarta que Pa lhe deixara, resolvi que não lhe contaria o que Georg Hoffmanhavia me dito até que ela a abrisse. Quando isso finalmente aconteceu, Estrelanão me contou nada a respeito, então ela ainda não sabia sobre a fotografia oude onde tinha vindo o dinheiro para comprar o apartamento de Londres.

Você me contava tudo...

Descansei o queixo nas mãos e me debrucei na sacada, atingida novamentepor uma grande dose de “amargura”, como Estrela e eu dizíamos quando nossentíamos desanimadas. Pelo canto do olho, notei uma figura solitária de péna beira da água perto das rochas, olhando para a lua. Era o homem dealgumas semanas antes, que me acordara na praia. Como não o vira desdeentão, e Railay era uma comunidade muito pequena, imaginara que ele tinhaido embora. Mas ali estava ele, sozinho novamente no escuro da noite. Talveznão quisesse ser visto.

Observei-o por um tempo para ver qual direção seguiria, mas ele não semexeu pelo que pareceu uma eternidade e fiquei entediada. Então entrei e me

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deitei na cama para tentar dormir. Quem quer que fosse, eu sabia que era tãosolitário quanto eu.

3

Na véspera de Natal, uma noite de lua cheia, fiz o que Estrela e eu fazíamostodos os anos com nossas outras irmãs: olhei à noite para o céu a fim delocalizar a estrela brilhante e mágica que Pa sempre dizia ser a Estrela deBelém. Certa vez, procurei no Google pela estrela para a qual ele apontava e,com a ajuda de Ally, descobri que se tratava na verdade da Estrela Polar. NaSuíça, ela brilhava no alto do céu o ano todo, mas naquela noite não conseguiencontrá-la. Então lembrei que um site qualquer também informava que eramais difícil vê-la quanto mais ao sul se estivesse. Olhei para o céu e penseicomo era triste não sermos mais crianças, podendo descobrir a verdadeapenas ao apertar algumas teclas do computador.

Naquela noite, porém, resolvi acreditar na magia. Fixei o olhar na estrelamais brilhante que pude encontrar e pensei em Atlantis. Além disso, mesmoque o Natal não fosse celebrado na cultura budista, a Tailândia ainda seempenhava, em razão de seus hóspedes estrangeiros, em pendurar enfeitespelas ruas, o que pelo menos deixava todos de bom humor.

Pouco antes da meia-noite, saí do bar barulhento e andei em direção às rochasem busca da melhor vista da lua cheia. E lá, já de pé em meio às sombras,estava o homem misterioso – mais uma vez no escuro e sozinho.

Fiquei irritada, porque queria que aquele momento fosse especial e preferiater o espaço só para mim, então dei meia-volta e me afastei dele.

Quando estava longe o suficiente, levantei os olhos e sussurrei para o céu: –Feliz Natal, Estrela. Espero que sua noite seja boa e que você esteja bem.Sinto sua falta.

Em seguida, enviei bons pensamentos para Pa e depois Ma, queprovavelmente sentia falta de Pa tanto quanto qualquer uma de nós.

Então, mandei um beijo para todas as minhas irmãs – até Electra, que, por seregoísta, maldosa e mimada, não merecia beijo nenhum. Mas, enfim, era

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Natal. Virei-me para trás, as pernas um pouco bambas por causa da cervejaque eu tomara mais cedo no bar.

Enquanto passava pelo homem misterioso, tropecei e fui amparada pelasmãos dele, que seguraram meus braços para me equilibrar.

– Obrigada – murmurei. – Havia uma... pedra na areia.

– Não tem problema.

Quando ele me soltou, ergui os olhos em sua direção. O homem obviamentetinha ido nadar, pois os longos cabelos pretos estavam soltos e molhadossobre os ombros. Ele tinha o que Estrela e eu

havíamos apelidado de “barba de peito”. Embora não fosse muitoimpressionante, a linha de pelos negros que descia do umbigo até suabermuda formava uma sombra à luz da lua. As pernas pareciam bem peludastambém.

Meus olhos voltaram para seu rosto, e vi que as bochechas se destacavamcomo serras acima da barba escura, fazendo seus lábios parecerem muitocheios e rosados. Quando ousei fitar seus olhos, notei que eram de um azulincrível.

Pensei que ele se parecia com um lobisomem. Afinal, era noite de lua cheia.Era tão alto e magro que eu me sentia como um pigmeu gorducho a seu lado.

– Feliz Natal – murmurou ele.

– Feliz Natal – respondi.

– Já vi você antes, não é? – perguntou ele. – Você era a garota que estavadormindo outro dia na praia.

– Provavelmente. Passo muito tempo lá.

Dei de ombros casualmente enquanto seus estranhos olhos azuis meexaminavam.

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– Não tem um quarto?

– Tenho, mas gosto de dormir ao ar livre.

– Todas essas estrelas, a vastidão do universo... colocam as coisas emperspectiva, não é? – Ele suspirou pesadamente.

– Sim. Onde você está hospedado?

– Aqui perto. – O Lobisomem agitou a mão de forma vaga para o rochedoatrás dele. – E você?

– Lá. – Apontei para o Railay Beach Hotel. – Ou, pelo menos, minha mochilaestá lá. Até logo.

Virei em direção ao hotel, fazendo o máximo para andar em linha reta, o quejá era bem difícil na areia, mas, após duas cervejas, revelava-se praticamenteimpossível. Podia sentir os olhos do Lobisomem em mim quando cheguei àvaranda, e me permiti um rápido olhar para trás. Ele ainda me observava,então peguei duas garrafas de água da geladeira e corri para o quarto de Jacklá em cima. Depois de certo esforço para conseguir destrancar a porta, andeide fininho até a sacada para tentar encontrá-lo, mas ele havia desaparecido naescuridão da noite.

Talvez estivesse esperando que eu fosse dormir para então entorpecer meussentidos, cravando as enormes presas no meu pescoço. Assim eu não iriagritar enquanto ele sugasse todo o meu sangue...

Ceci, quem faz isso é vampiro, não lobisomem, pensei, rindo, depois solucei etomei uma garrafa inteira de água, irritada comigo mesma e com meuorganismo patético por não conseguir dar conta de dois copos de cerveja.

Cambaleei até a cama, sentindo a cabeça girar quando fechei os olhos, e umpouco depois apaguei.

O dia de Natal foi dolorosamente semelhante ao do ano anterior ali com

Estrela. As mesas da varanda tinham sido arrumadas juntas, e uma espécie deassado fora servido no almoço, como se fosse possível recriar a essência do

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Natal em meio a tanto calor.

Após o almoço, sentindo-me inchada por causa da comida pesada, fui nadarum pouco. Eram quase três da tarde, por volta do horário em que as pessoasestariam acordando na Inglaterra. Estrela devia estar passando o Natal emKent com sua nova família. Saí do mar e sacudi o corpo como um cachorropara me livrar da água. Havia vários casais deitados preguiçosamente naareia, cochilando depois do almoço. Era o primeiro Natal em 27 anos queEstrela e eu passávamos separadas. Bem, se o homem misterioso era umlobisomem, então eu era um lobo solitário, e deveria me acostumar com isso.

Mais tarde naquela noite, eu estava sentada no cantinho da varanda ouvindomúsica barulhenta no iPod, que sempre me animava quando eu estava parabaixo. Senti alguém bater em meu ombro, virei-me e vi Jack de pé ao meulado.

– Oi – cumprimentei-o, tirando os fones.

– Oi. Posso lhe pagar uma cerveja?

– Não, obrigada. Já bebi o suficiente ontem à noite.

Revirei os olhos, sabendo que ele estivera bêbado demais para notar o que eutinha tomado.

– Está bem. Olha, Ci, a questão é que, bem... – Ele puxou uma cadeira esentou-se ao meu lado. – Nam e eu... brigamos. Não consigo lembrar o quefiz de errado, mas ela me expulsou da cama às quatro da manhã. E

não apareceu hoje para ajudar com o almoço de Natal, então acho que nãovou ter uma recepção calorosa esta noite. Você sabe como são as mulheres.

Sim, eu sou mulher, lembra? , tive vontade de dizer, mas fiquei quieta.

– Então o problema é que não tenho onde dormir. Você se importa de dividira cama comigo?

Sim, eu me importo! , pensei imediatamente.

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– Jack, desde que eu possa deixar minha mochila no seu quarto, fico feliz emdormir na praia, sério – assegurei-lhe.

– Tem certeza?

– Tenho.

– Peço desculpas, Ci, estou completamente acabado depois dos preparativospara o Natal e do trabalho extra nos últimos dias.

– Não tem problema. Vou só pegar as coisas de que preciso e depois deixovocê à vontade.

– Tenho certeza de que vamos conseguir arrumar um lugar para você ficaramanhã – afirmou ele enquanto eu saía.

Senti que a praia era uma opção muito melhor do que dormir no mesmoquarto que um homem que eu mal conhecia, roncando. Isso, sim, me dariapesadelos.

Peguei minha cama improvisada, depois enfiei o resto das coisas na

mochila. No dia seguinte, precisava mesmo encontrar um lugar para ficar atépartir para a Austrália, dali a duas semanas.

Na praia, arrumei minha cama sob um arbusto e, num impulso, peguei ocelular e liguei para Atlantis. Depois de alguns toques, atenderam o telefone.

– Alô?

– Oi, Ma, é a Ceci. Só queria desejar a você e à Claudia um feliz Natal.

– Ceci! Que bom que você ligou! Estrela disse que você foi embora derepente. Onde você está?

Ma sempre falava comigo e com minhas irmãs em francês, e tive que ajustarmeu cérebro antes de respondê-la: – Ah, você me conhece, Ma.

Em uma praia, fazendo o que gosto.

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– Ah, claro. Não achei mesmo que você ficaria muito tempo em Londres.

– Não?

– Você é um espírito livre, chérie. Tem sede de viajar.

– É verdade.

Naquele momento, amei Ma como sempre a amara. Ela nunca julgava oucriticava, só nos apoiava.

Ouvi o barulho de um homem tossindo ao fundo e agucei o ouvido.

– Quem está aí com você? – perguntei, desconfiada.

– Só a Claudia e o Christian – respondeu Ma.

Em outras palavras, quem trabalhava em Atlantis.

– Certo. Sabe, Ma, foi muito estranho, mas, quando cheguei ao aeroporto deLondres, três semanas atrás, tenho certeza de que vi Pa. Ele estava andandopara o outro lado e eu tentei correr para alcançá-lo, mas ele desapareceu. Seique parece idiota, mas eu tinha mesmo certeza de que era ele.

– Ah, chérie... – Ouvi Ma suspirar profundamente. – Você não é a primeirade suas irmãs a me dizer algo assim. – Ally e Estrela também contaram que oviram ou o ouviram... e talvez tenham mesmo. Mas não de verdade.

Ou, pelo menos, não a verdade como a conhecemos.

– Você acha que estamos todas vendo e ouvindo o fantasma de Pa?

Dei uma risadinha.

– Acho que queremos acreditar que ainda o vemos, então talvez nossaimaginação acabe por evocá-lo. Eu o vejo aqui o tempo todo – disse Ma,soando muito triste de repente. – E esta é uma época tão difícil para todosnós... Você está bem, Ceci?

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– Você me conhece, Ma, nunca fiquei doente um dia na vida.

– E feliz?

– Estou bem. E você?

– Sinto falta do seu pai, claro, e de todas vocês, meninas. Claudia estámandando um beijo.

– Mande outro para ela. Bem, Ma, já é tarde aqui, vou me deitar.

– Dê notícias, está bem, Ceci?

– Claro, pode deixar. Boa noite.

– Boa noite, chérie. E joyeux Noël.

Enfiei o celular de volta na bermuda, depois abracei minhas pernas dobradase descansei a cabeça nos joelhos, pensando em como aquele Natal devia estarsendo difícil para ela. Eu e minhas irmãs podíamos seguir nossas vidas econstruir um futuro – ou, pelo menos, tentar.

Tínhamos mais vida à nossa frente do que havíamos vivido, mas Ma sededicara exclusivamente a nós e a Pa. Perguntei-me, então, se ela amara meupai de forma “romântica”, e concluí que era muito provável, uma vez queficara lá todos esses anos e fizera da nossa família a sua família.

E agora todos nós a tínhamos deixado.

Então me perguntei se minha verdadeira mãe algum dia sentira minha falta oupensara em mim, e por que me dera a Pa. Talvez ela tivesse me deixado emum orfanato e ele me tirara de lá porque sentira pena de mim. Eu sabia quehavia sido um bebê muito feio.

Todas as respostas estavam na Austrália, a doze horas de viagem dali.

Era muito estranho que eu tivesse me recusado terminantemente a visitar opaís, ainda que Estrela quisesse ir. E era patético que o meu pesadelo comaranhas fosse o motivo da rejeição, mas era.

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Bem, pensei enquanto me acomodava na areia, Pa disse que eu era “forte”

e “aventureira” . E eu sabia que precisaria explorar ao máximo essasqualidades para entrar naquele avião em duas semanas.

Mais uma vez, fui acordada por cócegas no rosto. Limpei a areia, sentei e vi oLobisomem caminhando para o mar. Perguntando-me brevemente quantasdonzelas ele teria devorado nas últimas horas, observei suas longas pernasvencerem a areia com agilidade.

O Lobisomem se sentou à beira d’água na mesma posição da última vez, bemna minha frente. Nós dois erguemos os olhos, esperando o espetáculocomeçar, como se estivéssemos no cinema. O cinema do universo... Gosteidessa frase e fiquei orgulhosa por ter pensado nela.

Talvez Estrela pudesse usá-la um dia em seu romance.

O espetáculo foi sensacional, ainda mais épico por causa das nuvens esparsas,que suavizavam o nascer do sol enquanto ele se infiltrava no céu.

– Oi – disse o Lobisomem para mim enquanto caminhava de volta.

– Oi.

– Foi lindo hoje, não é?

– Sim, incrível – respondi.

– Nem pense em dormir aqui fora hoje à noite. Deve cair uma tempestade.

– Está bem.

– Vejo você por aí – disse ele, acenando para mim e se afastando.

De volta ao varandão do hotel alguns minutos depois, vi que Jack preparava ocafé da manhã. Era Nam quem normalmente fazia isso, mas ela não apareciadesde a véspera de Natal.

– Bom dia – cumprimentei.

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– Bom dia. – Ele me lançou um olhar culpado antes de perguntar: –

Dormiu bem?

– Nada mal, Jack. – Fiz um sinal para ele se aproximar e apontei para ohomem que deixava a praia. – Você o conhece?

– Não, mas o vi algumas vezes na praia tarde da noite. É muito na dele.

Por quê?

– Só curiosidade. Há quanto tempo ele está aqui?

– Acho que pelo menos há algumas semanas.

– Certo. Posso subir para tomar um banho?

– Claro. Vejo você mais tarde.

Depois, sentei-me no chão do quarto de Jack e abri a mochila. Separei asroupas sujas das limpas – a pilha suja era muito maior – e resolvi deixá-

las na lavanderia quando saísse para procurar um quarto vago. Assim, seacabasse sem lugar para ficar em meio à tempestade, pelo menos teria roupasasseadas e secas para usar no dia seguinte.

Todas as pessoas caminhavam pelo estreito corredor de barracas que faziamas vezes de lojas da mesma forma que na Europa: como se tivessem bebidodemais, comido demais e estivessem entediadas depois de abrir os presentesde Natal. Até mesmo a senhora da lavanderia, em geral sorridente, pareciameio triste enquanto separava as roupas escuras das brancas e exibia minharoupa íntima à vista de todos.

– Vão estar prontas amanhã.

Ela me entregou o recibo e saí.

Ao ouvir uma trovoada a distância, dei início à minha procura por um quarto.

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Mais tarde, voltei para a varanda do hotel, com calor, suada e sem terencontrado nenhum lugar que pudesse me oferecer um quarto até a hora doalmoço do dia seguinte. Sentei-me para tomar água de coco, pensando sedeveria tentar outro lugar – Ko Phi Phi, talvez –, mas não havia nenhumagarantia de que encontraria hospedagem lá. Bem, uma noite na chuva não iriame matar e, se a coisa realmente ficasse feia, eu poderia me abrigar sob umadas varandas dos restaurantes.

– Já arrumou um lugar? – perguntou Jack, esperançoso, enquanto passava pormim, levando uma bandeja de cerveja para a mesa vizinha.

– Sim – menti, sem querer deixá-lo em uma situação difícil. – Vou subir epegar minha mochila depois do almoço.

– Você se importaria em me dar uma ajudinha no bar? – perguntou. –

Como Nam desapareceu e o hotel está cheio, não tenho conseguido ir aorochedo.

Abi acabou de me ligar dizendo que a fila está gigantesca. E estão todosfuriosos.

– Não me importo, mas não confiaria em mim para carregar bandejas –

brinquei.

– No sufoco, qualquer ajuda é bem-vinda, Ci. Vão ser só umas duas horas,

eu juro. Cerveja e o que quiser comer são por conta da casa esta noite.

Venha, vou lhe explicar tudo.

– Obrigada – falei, e me levantei para ir com ele para trás do balcão.

Quatro horas mais tarde, não havia nenhum sinal de Jack, e eu já estava desaco cheio. O bar fervilhava e muita gente queria suco –

provavelmente os que precisavam de vitamina C ou de Bloody Marys paracurar a ressaca. Nenhuma das bebidas era tão simples quanto abrir uma

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garrafa de cerveja, e acabei me sujando com suco de manga quando oliquidificador explodiu em cima de mim porque não fechei a tampa direito. Obom humor usual dos clientes desaparecera junto com os papéis dosembrulhos de Natal, e eu estava cansada de gritarem comigo por causa dademora. Além disso, ouvia o som dos trovões se aproximando, o quesignificava que, mais tarde, provavelmente quando eu e minha mochilativéssemos que acampar na praia, a chuva desabaria.

Jack finalmente voltou, desculpando-se sem parar pela demora. Deu umaolhada na varanda agora quase vazia.

– Pelo menos você não teve muito trabalho. Eu estava todo enrolado lá norochedo.

Aham... Não falei nada enquanto terminava de comer meu macarrão, depoissubi para pegar minha mochila.

– Obrigado, Ci, a gente se vê – disse ele quando desci de volta, paguei ahospedagem e saí.

Eu estava caminhando pela praia quando alguns relâmpagos brilharam logoacima de mim. Calculei que tinha cerca de cinco minutos antes de atempestade desabar, então apertei o passo e virei à direita em uma ruazinha,em direção a um bar que eu conhecia, mas percebi que a maioria dasbarraquinhas tinha fechado mais cedo. O bar também já ia fechar quando meaproximei.

– Que ótimo – murmurei quando o dono acenou para mim, e continueiandando. – Isso é absolutamente ridículo, Ceci – resmunguei. – Volte para oRailay Beach Hotel e diga a Jack que vai dividir a cama com ele.

Não seja imprudente.

No entanto, minhas pernas me impulsionaram adiante até que cheguei à praiado outro lado da península. Chamava-se Phra Nang e era até mais bonita doque Railay. Como era um ponto turístico bastante procurado por viajantesque iam ali passar somente um dia, eu costumava evitá-la.

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Além disso, como o luxuoso Rayavadee ficava nas redondezas, haviaseguranças assustadores espalhados pela região. Estrela e eu fomos lá umanoite depois que o último barco saiu, e ficamos deitadas, olhando para asestrelas. Cinco minutos depois, apontaram uma lanterna para o nosso rosto enos pediram para sair.

Tentei argumentar que as praias da Tailândia eram públicas e os segurançasdo hotel não tinham o direito de nos expulsar, mas Estrela me mandou ficarquieta enquanto eles nos conduziam de maneira rude até o caminho quelevava de volta ao lado plebeu da península.

Esse tipo de coisa me enfurecia, porque o mundo e sua beleza deveriam serdesfrutadas gratuitamente por todos, e não apenas pelos ricos.

Quando um relâmpago azul-arroxeado iluminou o céu, percebi que não era omomento para ter uma discussão filosófica comigo mesma. De repente, aoolhar para a praia, tive uma ideia: a Caverna da Princesa ficava na ponta maisafastada, então comecei a correr pela areia até lá.

Quando já tinha percorrido mais da metade do caminho, grandes gotas dechuva começaram a pingar em mim. Parecia que eu estava sendo atingida porpequenos cascalhos.

Cheguei à entrada da caverna, entrei cambaleante e atirei a mochila no chão.Ergui os olhos e lembrei que, por algum motivo, havia na verdade duasversões da princesa, duas pequenas figuras do tamanho de uma boneca queficavam aninhadas em pequenos templos de madeira, meio escondidas atrásde centenas de guirlandas coloridas. Em seu altar, pequenas velas acesasiluminavam o interior da caverna com um brilho amarelo reconfortante.

Sorri para mim mesma, lembrando-me da primeira vez que Estrela e eu avisitamos. Pensávamos que seria como qualquer outro local de cultotailandês, com uma estátua dourada e as onipresentes oferendas deguirlandas. Em vez disso, fomos confrontadas com centenas de falos dediferentes formas e tamanhos. Observo-os agora, emergindo do chão arenosocomo estalagmites eróticas e empoleirados nas rochas em volta. Vermelhos,verdes, azuis, marrons... pequenos, grandes... Ao que parece, essa divindadeem particular tinha o dom da fertilidade. E, considerando o tamanho dos falos

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que enchiam a caverna – alguns se erguiam acima da minha cabeça –, eu nãoestava surpresa.

No entanto, naquela noite, a Caverna da Princesa me oferecia abrigo dachuva, que agora caía com força. Levantei-me e andei em meio às oferendas,depois me ajoelhei no altar para agradecer. Em seguida, fiquei ao lado daentrada, observando a tempestade.

O céu se iluminava em clarões espetaculares quando os relâmpagos atingiamfuriosamente o mar e os pilares de pedra calcária. A chuva brilhava prateadaao luar, enquanto caía torrencialmente na praia, como se Deus estivesse aosprantos lá em cima.

Por fim, esgotada pelo espetáculo e pela energia do universo, levantei-me,cambaleante, e fui mais para o fundo da caverna. Arrumei minha cama paraaquela noite e adormeci atrás de um enorme falo escarlate.

4

Sentei-me rapidamente quando senti algo duro cutucando minhas costelas.Ergui os olhos e vi um segurança tailandês tentando me acordar do sonoprofundo em que eu me encontrava. Ele me levantou do chão, falandoferozmente ao rádio.

– Não fica aqui! Sai! – gritou para mim.

– Tudo bem, já vou – respondi.

Abaixei-me para arrumar minha mochila. Outro segurança, mais baixo eatarracado do que o primeiro, chegou para ajudar o companheiro, e os doisme arrastaram para fora. Pisquei quando saí na claridade e vi que o sol estavaprestes a nascer em um céu sem nuvens. Eles me levaram pela praia,prendendo firmemente meus braços como se eu fosse uma criminosa, e nãouma turista que apenas se abrigou da chuva. A areia ainda estava úmida sobmeus pés, o único indício da tempestade espetacular da noite anterior.

– Vocês não precisam me segurar – reclamei, mal-humorada. – Já estou indo.

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Um deles disparou uma enxurrada de palavras tailandesas agressivas que nãoconsegui entender, enquanto caminhávamos até a rua do outro lado da praia.Fiquei me perguntando se seria jogada na prisão como em Bangkok Hilton, aminissérie com Nicole Kidman que me dava calafrios.

Se o pior acontecesse, eu nem sequer poderia contar com Pa, que certamenteteria ido à Tailândia para me libertar.

– Você de novo?

Virei a cabeça e vi o Lobisomem espreitando dos arbustos mais afastados napraia.

– Sim – respondi, sabendo que havia enrubescido de vergonha.

– Po, solte-a – ordenou o Lobisomem, caminhando em nossa direção.

Na mesma hora, o segurança atarracado soltou meu braço, então oLobisomem trocou breves palavras em tailandês com o guarda mais alto, querelutantemente largou meu outro braço.

– Desculpe, eles são muito exagerados – disse o homem, erguendo umasobrancelha.

Depois, voltou a falar com os seguranças e, perscrutando a praia, meconvidou a segui-lo. Os guardas o cumprimentaram, parecendo muitodesapontados enquanto me viam sair aos tropeços atrás dele, em direção aosarbustos.

– Como foi que você fez isso? – perguntei. – Achei que eu estava ferrada.

– Disse que você era uma amiga. É melhor entrar depressa.

Ele segurou meu braço e me puxou em meio à folhagem. Após algunssegundos de alívio, meu coração voltou a bater rápido e me perguntei se

estaria melhor com os dois seguranças do que seguindo um homem que eunão conhecia para o interior da floresta tailandesa. Reparei em um portão altode aço escondido em meio à vegetação e vi o Lobisomem apertar alguns

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números em um teclado ao lado. O portão abriu suavemente e entramos. Vientão algumas árvores, até que de repente surgiu um vasto e belo oásis emforma de jardim. À minha direita, havia uma grande piscina de azulejospretos que parecia saída de uma revista de design. Passamos por árvorescobertas por lindas flores douradas e saímos em um amplo pátio cheio demóveis de vime em que uma empregada de uniforme arrumava almofadasgrandes e fofas.

– Aceita um café? Suco? – perguntou ele enquanto cruzávamos o pátio.

– Café seria ótimo – respondi, e ele disse alguma coisa em tailandês para aempregada quando passamos por ela.

Estávamos nos aproximando de uma série de pavilhões brancos em torno deum pátio, todos com telhados tailandeses tradicionais em forma de V noestilo lanna. No centro, havia um pequeno lago artificial cheio de florescorde-rosa flutuando. No meio da água, um Buda de ônix preto. O lugar mefazia lembrar um daqueles spas exóticos que costumam ser anunciados nasrevistas.

Subi alguns degraus de madeira ao lado de um dos pavilhões, seguindo oLobisomem, e cheguei a um terraço à sombra de onde se tinha a maismagnífica vista da praia de Phra Nang.

– Uau – foi tudo que consegui dizer. – Isso é... incrível. Estive nessa praiavárias vezes e nunca reparei na existência deste lugar.

– Ótimo – disse ele, indicando um dos enormes sofás para eu me sentar.

Tirei a mochila dos ombros e sentei hesitantemente, preocupada em mancharas imaculadas capas de seda. Era a coisa mais confortável em que eu mesentava desde que chegara à Tailândia, e tudo o que eu queria era me deitarnaquelas almofadas e dormir.

– Você mora aqui? – perguntei.

– Sim, por enquanto, pelo menos. Não é minha casa, é de um amigo –

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disse ele, enquanto a empregada chegava com uma bandeja de café e váriosfolhados em uma pequena cesta. – Sirva-se.

– Obrigada.

Enchi uma xícara de café e coloquei dois torrões de açúcar.

– Posso perguntar por que você estava sendo escoltada pelos seguranças dapraia?

– Me protegi da tempestade na Caverna da Princesa. Eu... devo ter pegado nosono enquanto esperava a chuva passar.

O orgulho me impediu de dizer a verdade.

– Foi uma tempestade e tanto – comentou ele. – Gosto quando a naturezaassume o comando, mostra quem de fato está no poder.

– Então... – Pigarreei. – O que você faz aqui?

– Ah... – Ele tomou um gole de café puro. – Nada de mais. Só estou dandoum tempo, sabe?

– É um ótimo lugar para fazer isso.

– E você?

– Mesma coisa.

Peguei um dos croissants amanteigados. O aroma me lembrava tanto doscafés da manhã que Claudia preparava em Atlantis que quase esqueci ondeestava.

– O que você fazia antes? – perguntou ele.

– Faculdade de artes, em Londres. Não deu certo, então deixei a cidade.

– Entendi. Eu moro em Londres... ou pelo menos morava. Às margens do rio,em Battersea.

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Olhei para ele em estado de choque, perguntando-me se tudo aquilo eraalgum tipo de sonho surreal. Talvez eu ainda estivesse dormindo atrás do faloescarlate.

– Eu moro lá também! Em Battersea View, num dos novos apartamentosperto da Albert Bridge.

– Sei exatamente onde é. Bem, olá, vizinha.

O Lobisomem abriu seu primeiro sorriso genuíno e fez um gesto deaprovação. Seus estranhos olhos azuis se iluminaram, e ele não parecia maisum lobisomem, mas sim um Tarzan muito magro.

Servi-me de um pouco mais de café e cheguei para trás no sofá, de modo queapenas meus pés pendiam sobre a beirada. Queria não estar de botas, entãopoderia sentar sobre as pernas e tentar parecer tão elegante quanto o ambienteexigia.

– Que coincidência... – Ele balançou a cabeça. – Alguém me disse uma vezque há apenas seis graus de separação entre nós e qualquer pessoa do mundoque vamos conhecer.

– Eu não conheço você – falei.

– Não?

O homem me observou por alguns segundos. Sua expressão ficou séria derepente.

– Não. Deveria?

– Eu só estava pensando... Será que nunca nos esbarramos na Albert Bridgeou algo assim? – murmurou.

– Talvez. Eu passava pela ponte todos os dias a caminho da faculdade.

– Eu andava lá de bicicleta.

– Eu não o reconheceria com aquelas roupas de ciclista e capacete.

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– Verdade.

Terminamos nossos cafés em meio a um silêncio constrangedor.

– Você pretende voltar? Depois do ano-novo, talvez? – perguntei após umtempo.

O rosto do Lobisomem se fechou.

– Não sei. Depende do que acontecer... Estou tentando viver um dia de cadavez. E você?

– Também, embora devesse ir à Austrália.

– Já estive lá. Mas a trabalho, e nunca é a mesma coisa. Tudo que

consegui ver foi o interior de hotéis e escritórios, e um monte de restaurantescaros.

Hospitalidade corporativa, sabe?

Eu não sabia, mas assenti de qualquer maneira.

– Cheguei a pensar em ir para lá – continuou ele. – Sabe quando você querficar o mais longe possível de tudo...?

– Sei – respondi sinceramente.

– Mas você não parece inglesa. Estou percebendo um sotaque francês.

– Sim. Eu nasci... bem, não sei de fato onde nasci porque sou adotada, masfui criada em Genebra.

– Já fui para lá, mas só conheci o aeroporto, a caminho de uma viagem deesqui. Você esquia? Quero dizer, que pergunta idiota, se você mora naSuíça...

– Sim. Eu adoro, mas não gosto tanto do frio, sabe?

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– Eu gosto.

Mais uma pausa na conversa.

– E como foi que aprendeu tailandês? – consegui por fim dizer.

– Minha mãe é tailandesa. Fui criado em Bangcoc.

– Ah! Ela ainda mora lá?

– Não, ela morreu quando eu tinha 12 anos. Minha mãe era...

maravilhosa.

Ainda sinto falta dela.

– Ah, sinto muito – falei rapidamente, antes de prosseguir: – E o seu pai?

– Não o conheci – respondeu de forma abrupta. – E você, conheceu seus paisbiológicos?

– Não. – Eu não fazia ideia de como tínhamos entrado em um assunto tãoíntimo em apenas vinte minutos. – Bem, acho que é melhor eu ir. Já lhetrouxe problemas suficientes por hoje.

– Onde você está hospedada?

– Ah – falei descontraidamente –, em um hotel na praia, mas, como vocêsabe, prefiro dormir ao ar livre.

– Pensei que tivesse dito que sua mochila ficava guardada em um quarto.

Por que ela está com você?

Imediatamente, me senti como uma criança pega escondendo doces embaixoda cama. Que diferença faria se ele soubesse?

– Porque... houve uma complicação com o meu quarto. Era emprestado e... odono brigou com a namorada e o quis de volta. E todos os outros lugares

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estavam cheios. Foi por isso que me abriguei na caverna quando começou achover.

– Certo. – Ele me observava. – Por que não me contou isso antes?

– Não sei – respondi, olhando para os meus pés como uma criança de 5

anos. – Não estou... desesperada nem nada. Posso cuidar de mim mesma... Sónão havia nenhum quarto disponível, sabe?

– Não precisa ficar envergonhada, entendo perfeitamente.

– Não queria que você pensasse que sou uma andarilha ou algo do tipo.

– Isso nunca me ocorreu, juro. A propósito, o que é esse negócio amarelo noseu cabelo?

– Ai, meu Deus! – Passei a mão pelo cabelo e vi que as pontas estavamemaranhadas. – É manga. Meu colega, o dono do hotel, pediu que eu cuidassedo bar dele ontem à tarde e estava todo mundo pedindo suco.

– Entendo. – Ele tentou manter o rosto sério, mas não conseguiu. – Bem,posso pelo menos lhe oferecer um lugar para tomar banho? E talvez umacama por algumas noites, até as coisas se acalmarem na praia? A água estáquentinha.

Era de fato uma tentação. Ao pensar na minha aparência e no meu cheiro,decidi engolir o orgulho.

– Sim, por favor.

O homem me levou de volta lá para baixo e atravessamos o pátio até outropavilhão, à direita do quadrilátero. Havia uma chave na fechadura.

Ele a girou e, depois, me entregou.

– Está tudo preparado. Sempre está. Fique à vontade, não há a menor pressa.

– Obrigada – falei e entrei, trancando bem a porta. – Uau! – exclamei em voz

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alta enquanto olhava em volta.

Ele não estava errado sobre o quarto estar “preparado”. Examinei a camasuper-king-size arrumada com travesseiros grandes e fofos e um edredommacio – tudo branco, claro. Mas perfeitamente brancos, sem manchasdeixadas por outras pessoas. Havia uma TV de tela plana atrás de venezianasque podiam ser fechadas se você não quisesse ser lembrado do mundoexterior, arte tailandesa de extremo bom gosto, e, quando toquei as paredes,vi que eram cobertas de seda. Larguei a mochila no piso de teca, procureimeu sabonete líquido dentro dela e, então, caminhei com passos suaves paraonde imaginei ser o banheiro, mas que na verdade era um closet. Tentei outraporta e encontrei um cômodo com um chuveiro potente e uma enormebanheira junto a uma parede de vidro, atrás da qual havia um pequeno jardimcheio de bonsais e lindas flores – Estrela com certeza saberia os nomes delas,mas eu não sabia. O jardim era protegido por um muro alto, para queninguém pudesse espionar enquanto você se banhava.

Fiquei muuuito tentada a preparar a banheira, mas imaginei que seria umabuso. Então abri o chuveiro e esfreguei cada pedacinho do corpo até minhapele formigar. Nem precisava ter me preocupado em procurar o sabonetelíquido, pois havia uma variedade incrível de produtos corporais de luxo dealguma marca ecológica elegante dispostos em uma prateleira de mármore.

Depois de sair do chuveiro – mesmo não querendo que ninguém soubesse,uma vez que era totalmente contra essas loções que as mulheres sãoconvencidas a comprar –, cobri completamente o corpo com todos osprodutos à disposição. Em seguida, tirei a toalha da cabeça e sacudi o cabelo,notando quanto havia crescido. Já estava na altura dos

ombros, e caía em cachos ao redor do meu rosto.

Estrela sempre falava como eu ficava mais bonita com o cabelo comprido.

Ma dizia que meu cabelo era o que eu tinha de mais bonito, porém, aos 16

anos, eu o cortara bem curto porque era muito mais fácil de cuidar. Para sersincera, também tinha sido um ato de rebeldia e petulância. Como se paramostrar ao mundo que eu não me importava com minha aparência.

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Tirei o cabelo do rosto e segurei-o no alto da cabeça. Pela primeira vez emanos, consegui fazer um rabo de cavalo, e eu queria ter um elástico paraprendê-lo.

Atravessei o quarto e olhei cobiçosamente para a enorme cama. Depois deverificar que a porta ainda estava trancada, vesti a camisa e me acomodei nocolchão. Só dez minutos, disse a mim mesma, enquanto deitava a cabeça nosmacios travesseiros brancos.

Fui acordada abruptamente pelo barulho alto de batidas à porta. Sentei-me,sem ter a menor ideia de onde estava. A escuridão era completa, e procurei àscegas por uma luz. Ouvi algo cair no chão e rolei para fora da cama empânico.

– Você está bem?

Segui o som da voz, tateando à procura da porta. Meu cérebro confusofinalmente registrou onde eu estava e quem estava batendo.

– Não consigo encontrar o buraco da fechadura, e está muito escuro aqui...

– falei, junto à porta.

– É só encontrar a chave.

A voz me acalmou, e tateei a porta na altura logo abaixo da minha cintura,onde geralmente ficam as fechaduras. Com os dedos, encontrei a chave e,depois de algumas tentativas, consegui girá-la, então procurei a maçaneta.

– Está destrancada – falei –, mas ainda não consigo abrir a porta.

– Afaste-se que vou abrir para você.

O quarto foi subitamente inundado de luz, e pude respirar novamente quandoo alívio tomou conta de mim.

– Peço desculpas – disse ele, entrando no quarto. – Vou pedir a alguém paraconsertar a maçaneta. Está um pouco enferrujada porque não é usada háalgum tempo. Você está bem?

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– Sim, claro.

Sentei-me na cama, respirando fundo.

O Lobisomem me observou silenciosamente por um tempo.

– Você tem medo de escuro, não é? É por isso que gosta de dormir ao arlivre.

Ele estava certo, mas eu não ia admitir.

– É claro que não. Só acordei e não lembrava onde estava.

– Está bem. Desculpe assustá-la, mas são quase sete da noite. Você

dormiu por quase doze horas. Imagino que estivesse cansada!

– Estava mesmo. Desculpe.

– Tudo bem. Está com fome?

– Ainda não sei.

– Se estiver, Tam está preparando o jantar. Seja bem-vinda para se juntar amim no pátio principal.

– Tam?

– O chef. Estará pronto em mais ou menos meia hora. Até já.

Soltei um grito quando ele saiu do quarto. Um dia inteiro havia se passado!

Eu provavelmente perdera a reserva no novo hotel ao não aparecer na hora doalmoço para o check-in. Para piorar, tinha dormido tanto que voltaria aenfrentar o jet lag, e, além disso, meu estranho anfitrião lobisomemprovavelmente achava que eu tinha necessidades especiais ou algo assim.

Por que ele estava sendo tão gentil comigo? Eu não era idiota o suficientepara achar que não havia segundas intenções. Afinal, ele era um homem, e

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eu, uma mulher... pelo menos algumas pessoas me viam como uma. Mas seera isso que ele queria, então gostava de mim, o que era completamenteridículo.

A menos que estivesse desesperado e qualquer uma servisse.

Vesti um caftã de que não gostava muito porque era quase um vestido, masera tudo o que eu tinha, já que a maioria das minhas roupas ainda estava nalavanderia. Quando saí, tranquei a porta e, discretamente, escondi a chave najardineira ao lado, porque meu mundo estava naquela mochila.

Aquele lugar era ainda mais bonito à noite do que de dia. Lanternas pendiamdos tetos rebaixados, emitindo uma luz suave, e a água ao redor do Buda deônix era iluminada do fundo. Havia no ar um perfume fabuloso de jasmimvindo das enormes jardineiras, e, ainda melhor do que isso, eu podia sentir ocheiro de comida.

– Por aqui!

Vi um braço acenando animado para mim do terraço em frente ao pavilhãoprincipal.

– Olá – disse ele, indicando uma cadeira.

– Oi. Lamento ter dormido tanto hoje.

– Nunca se desculpe por dormir. Queria eu poder fazer isso.

Então ele suspirou profundamente, e, como eu não poderia continuar achamá-lo de Lobisomem, considerando que ele vinha sendo – pelo menos atéagora – tão gentil comigo, perguntei seu nome.

– Eu não lhe disse outro dia?

– Não – respondi.

– Ah!... Pode me chamar de Ace. E o seu?

– Ceci.

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– Certo. Um apelido, como o meu?

– Sim.

– De quê?

– Celeno.

– É um nome incomum.

– Sim, meu pai... o homem que me adotou... tinha essa estranha fixação pelasSete Irmãs das Plêiades. A constelação – expliquei, como geralmente tinhaque fazer.

– Desculpe, senhor, podemos servir agora?

A empregada chegara ao pátio e atrás dela um homem vestindo um dólmã dechef.

Ace me conduziu à mesa.

– O que posso lhe oferecer para beber? Vinho? Cerveja?

– Nada, obrigada. Água está ótimo.

Ele serviu um copo da garrafa sobre a mesa para cada um.

– Saúde – disse.

– Saúde – respondi. – Obrigada por me salvar hoje.

– Sem problemas. Como se eu já não me sentisse mal o suficiente vivendosozinho neste lugar, vejo você dormindo na praia.

– Até ontem, era uma questão de escolha, mas a cama aqui é simplesmentefantástica.

– Como eu disse, você é bem-vinda para ficar o tempo que quiser. E, antesque recuse, saiba que não estou apenas sendo gentil. Eu realmente gostaria de

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ter companhia. Estou sozinho aqui há quase dois meses.

– Por que não convida alguns de seus colegas de Londres para vir?

– Não é uma opção. Bem... – disse ele, quando um prato com enormescamarões fritos foi colocado no centro da mesa. – Vamos matar a fome.

Aquele jantar foi um dos melhores em muito tempo – pelo menos desde queEstrela fizera um assado para mim em novembro do ano anterior, emLondres. Eu nunca aprendera a cozinhar, e já tinha quase esquecido o gostode uma boa comida. Saboreava prato após prato – sopa de capim-limão,frango frito enrolado em folhas de pandano e bolinhos picantes de peixe commolho nam jim.

– Ah, meu Deus, estava delicioso. Gostei muito deste restaurante, obrigadapelo convite. Comi tanto que parece que estou grávida – falei, mostrando abarriga estufada.

Ace sorriu da minha descrição. Não conversamos muito durante o jantar,provavelmente porque eu estava bastante ocupada enchendo a barriga.

– Então, a comida a convenceu a ficar? – Ace tomou um gole de água. –

Quero dizer, não é por muito tempo, não é mesmo? Você disse que vai para aAustrália depois do ano-novo.

– Vou. – Finalmente cedi: – Se não tem problema para você, seria ótimo ficaraqui.

– Negócio fechado. Só queria lhe pedir uma coisa: sei que você conhecemuita gente na praia de Railay, então eu realmente preferiria que não dissessea ninguém que está hospedada aqui comigo ou onde fica a casa.

Valorizo muito minha privacidade.

Seus olhos revelaram tudo que suas palavras casuais não tinham falado.

– Não vou dizer uma palavra, juro.

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– Maravilha. Agora me conte sobre suas pinturas. Você deve serextremamente talentosa para ter conseguido uma vaga na faculdade de artesde Londres.

– Humm... abandonei o curso após algumas semanas, porque percebi que nãoera. Ou pelo menos não da maneira que eles queriam que eu fosse.

– Você quer dizer que eles não a entenderam?

– Digamos que sim. – Revirei os olhos. – Eu não conseguia fazer nadadireito.

– Então você diria que é mais vanguardista do que alguém como Monet, porexemplo?

– Talvez, mas não esqueça que Monet foi considerado vanguardista na épocadele. Na verdade não foi culpa dos professores; eu simplesmente nãoconseguia aprender o que eles queriam me ensinar. – Fechei a bocaabruptamente, pensando por que estava lhe contando tudo isso. Eleprovavelmente estava morrendo de tédio. – E você? O que você faz?

– Ah, nada tão interessante. Sou só um cara normal da cidade. Faço coisassem graça, sabe?

Não sabia, mas assenti como se tivesse entendido.

– Então você está em um período... – procurei me lembrar da palavra – ...

sabático?

– É, mais ou menos – respondeu ele, contendo um bocejo. – Precisa de maisalguma coisa?

– Não, obrigada, estou bem.

– Os empregados virão limpar tudo, mas tenho que tentar dormir agora.

Como você já deve ter percebido, acordo antes do amanhecer. A propósito, osseguranças sabem que você está aqui comigo, e o código do portão do lado da

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praia é 7777. – Ele abriu um ligeiro sorriso. – Boa noite, Ceci.

– Boa noite.

Quando o homem saiu, vi os empregados andando por perto, provavelmentequerendo dormir também e torcendo para o dia acabar logo.

Como agora eu estava sob a proteção de Ace, resolvi arriscar um passeio porPhra Nang. Segui pelo caminho até a saída e apertei o botão vermelho noteclado ao lado do portão, que abriu deslizando, me dando acesso à praiadeserta.

– Sawadee krab.

Sobressaltei-me quando olhei para a minha esquerda e vi Po, o segurançaatarracado que tinha me arrastado pela praia às seis da manhã. Ele se levantoudo banquinho, que ficava meio escondido entre a folhagem que ladeava oportão, e me cumprimentou com um sorriso falso.

– Sawadee ka – falei, fazendo um wai com as mãos na tradicional saudaçãotailandesa.

O ruído metálico da música pop tailandesa ecoava de um pequeno rádio aolado do banquinho dele, e, enquanto eu olhava para seus dentes amarelados eirregulares, me perguntei quantas crianças ele teria para alimentar, e penseiem como seu trabalho era chato e solitário. Só que parte de mim o invejavapor ter aquilo tudo. Ele tinha beleza e a mais completa paz todas as noites.

Enquanto caminhava até a praia, sentindo uma liberdade que apenas oprivilégio poderia comprar naquele trecho de floresta, imaginei o dia em quecaptaria o mundo em todo o seu esplendor, e então o pintaria para que todosvissem.

Fui até a beira do mar e molhei os dedos na água morna. Olhei para o céu,cheio de estrelas, e desejei ter o vocabulário para colocar em palavras ascoisas em que pensava. Eu tinha sentimentos que não conseguia explicar, anão ser por meio da pintura ou, mais recentemente, da instalação com a qualestava obcecada.

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Não tinha dado muito certo, é claro, mas eu adorara trabalhar em meu ateliêàs margens do rio. E, com Estrela na cozinha preparando nosso jantar, mesentia contente.

– Pare com isso, Ci! – exclamei para mim mesma.

Eu não ia começar a rememorar o passado outra vez. Estrela seguira emfrente, e eu estava longe dela, levando minha própria vida. Ou, pelo menos,tentando.

Então me perguntei se Estrela algum dia pensara em si mesma como umfardo para mim. Eu não desejava criticá-la, porque a amava, mas talvez elativesse se esquecido de como precisara de mim quando era pequena e nãogostava de falar. Estrela também não era boa em tomar decisões e dizer o quesentia, sobretudo porque estávamos no meio de um bando de irmãs muitodecididas. Eu não queria que minha irmã se sentisse culpada ou coisa do tipo,mas uma história sempre tem dois lados, e talvez ela tivesse esquecido o meu.

Mas, surpreendentemente, parecia que eu tinha encontrado um novo amigo.

Eu me perguntava qual era a história dele, por que estaria ali – por que só saíaao nascer do sol ou depois do anoitecer e não convidava nenhum amigo,embora admitisse que se sentia sozinho.

Voltei lentamente pela areia em direção ao palácio oculto entre as árvores.

Po, o segurança, fez menção de digitar os números no teclado, mas cheguei láprimeiro e apertei os botões com força, para que ele visse que eu sabia ocódigo.

Depois de pegar a chave na jardineira, abri a porta do meu quarto e vi quealguém tinha estado lá antes de mim. A cama estava arrumada com lençóislimpos, e as roupas que eu tirara mais cedo, dobradas em uma

cadeira. A fada invisível da limpeza também tinha deixado um novo jogo detoalhas macias, e, depois de lavar a areia dos pés, deitei na cama.

O problema era que eu sempre vivera entre dois mundos, pensei. Eu podia

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tranquilamente dormir na praia, mas também me sentia confortável em umquarto como aquele. E, apesar de todos os meus protestos de que poderiasobreviver com muito pouco, naquela noite eu não sabia qual opção preferia.

5

Nos dias que se seguiram, Ace e eu caímos numa rotina no palacete.

Como ele acordava muito cedo – ao contrário de mim –, geralmente eu ia àpraia de Railay à tarde, para não incomodá-lo. Contei aos meus conhecidosque estava hospedada em um hotel na praia, e ninguém questionou. Assim,Ace e eu só nos esbarrávamos na hora do jantar.

Ele parecia esperar que eu aparecesse lá, e por mim estava tudo bem, já que acomida era fantástica. Ace não falava muito, mas, como eu estavaacostumada com o jeito quieto de Estrela, aquilo me era familiar eestranhamente reconfortante.

Depois de três dias vivendo a poucos metros dele, percebi que não corrianenhum risco de ser atacada. Eu sabia que não era o tipo de garota que atraíaos homens e, além disso, para ser bem sincera, nunca gostei muito de sexo.

Eu tinha perdido a virgindade nove anos antes ali mesmo, na praia de Railay.Havia tomado algumas cervejas, o que sempre era perigoso para mim, eficara acordada até bem depois de Estrela ter ido para a cama. O

cara – acho que o nome dele era Will – estava tirando um ano de férias antesde ir para a faculdade. Saímos para caminhar na praia, e os beijos foramótimos. Então, depois de um tempo, estávamos deitados na areia.

Lembro que doeu um pouco, mas não muito. Acordei de ressaca na manhãseguinte, sem conseguir acreditar que era daquilo que tanto se falava.

Com o tempo, repeti a dose algumas outras vezes em diferentes praias comdiferentes pessoas, para ver se a coisa melhorava, mas nunca melhorou. Eutinha certeza de que milhões de mulheres me diriam que eu estava perdendoalguma coisa, mas eu não poderia sentir falta do que nunca havia tido, entãoestava tranquila.

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Era interessante que, embora Estrela e eu sempre tivéssemos sido muitogrudadas, nunca trocássemos confidências sobre sexo. Eu não tinha ideia seela ainda era virgem ou não. No colégio interno, à noite na cama, as meninascostumavam contar detalhes íntimos sobre os meninos de que gostavam e atéonde tinham ido. No entanto, Estrela e eu nunca comentávamos nada sobre oassunto, nem com elas, nem uma com a outra.

Talvez achássemos que qualquer tipo de relacionamento físico íntimo comum homem fosse uma traição. Bem, eu pensava assim, pelo menos.

Saí do quarto sem me incomodar em trancá-lo, sabendo que a fada invisívelda limpeza entraria de fininho assim que eu o deixasse, e caminhei até o pátioonde Ace esperava por mim.

– Oi, Ceci.

Ele se levantou brevemente quando cheguei e me sentei. Sem dúvida tinhaaprendido boas maneiras, e eu apreciei o gesto. Ele nos serviu água fresca dojarro e me examinou.

– Blusa nova?

– Sim. Pechinchei e consegui comprar por apenas 250 bahts.

– É ridículo, não é? E o pior é que há pessoas comprando blusas praticamenteiguais nas lojas chiques de Londres por muito mais caro.

– Bem, eu nunca faria isso.

– Tive uma namorada que gastava fortunas em bolsas. Não seria tão ruim sefosse algo para a vida toda, mas então chegava uma nova coleção, e elacomprava mais uma, e a velha ia parar num armário com as outras e nuncavoltava a ser usada. Imagine só, uma vez a flagrei lá parada, admirando suacoleção.

– Talvez fossem obras de arte para ela. Cada um sabe o que o faz feliz, masesse com certeza não é o meu caso. De qualquer forma, os homens não ficamatrás com seus carros – acrescentei enquanto a empregada servia o banquete

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daquela noite.

– Tem razão – disse ele, enquanto a mulher se afastava tão silenciosamentequanto tinha chegado. – Já tive uma série de carros chamativos só porquepodia.

– E isso o fazia se sentir bem?

– Na época, sim. Eu gostava do som dos motores. Quanto mais barulhofaziam, melhor.

– Garotos e seus brinquedos...

– Garotas e suas joias – rebateu ele com um sorriso. – Agora, vamos comer?

Jantamos em meio a um silêncio agradável. Depois de comer bastante,recostei-me, satisfeita.

– Vou sentir falta disso tudo quando voltar a ser uma simples mochileira naAustrália. É como um pedacinho do paraíso. Você tem muita sorte.

– Acho que a gente nunca aprecia de verdade o que tem até perder, não émesmo?

– Bem, você não perdeu isto aqui. E é incrível.

– Ainda não... Não. – Ele deu um de seus profundos suspiros. – Amanhã já évéspera de ano-novo. O que você vai fazer à noite?

– Ainda não pensei nisso. Jack me convidou para passar com ele e o pessoalno restaurante. Quer vir?

– Não, obrigado.

– O que você vai fazer? – perguntei por educação.

– Nada. Quero dizer, é um calendário feito pelo homem. Se morássemos naChina, por exemplo, celebraríamos em uma época diferente.

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– Tudo bem, mas ainda assim é um ritual, não é? Melhor do que ficar sozinhoem casa, recebendo mensagens de seus colegas em festas maravilhosas. – Euri.

– No ano passado, estive em uma festa incrível – admitiu Ace. – Em umclube em Saint-Tropez. Chegamos de barco, e as recepcionistas não paravamde abrir garrafas de champanhe caríssimas, esguichando a bebida para todolado como se fosse água. Na época, achei ótimo, mas estava bêbado, e nesseestado a maioria das coisas parece fantástica, não é?

– Para ser sincera, não costumo beber muito. O álcool não me cai tão bem,então geralmente evito.

– Sorte sua. Eu... bebo para esquecer. Para aliviar o estresse. Eu e a maioriadas pessoas.

– Entendo.

– Fiz algumas coisas bem estúpidas quando estava alcoolizado –

confessou ele. – Então não me arrisco mais. Não bebo nada há dois meses emeio, então provavelmente ficaria bêbado com uma cerveja.

Antes, precisaria de pelo menos umas duas garrafas de champanhe e algunsgoles de vodca para começar a me sentir embriagado.

– Uau. Bem, eu gosto de uma taça de champanhe em ocasiões especiais...

aniversários e coisas do tipo.

– Olhe só. – Ele se inclinou para a frente e me encarou, os olhos azuissubitamente vivos. – O que você me diz de abrirmos uma garrafa dechampanhe amanhã à meia-noite? Como você disse, é uma bebida paraocasiões especiais, e é véspera de ano-novo. Mas a gente se limita a uma taçacada um.

Franzi a testa, e ele notou imediatamente.

– Não se preocupe, nunca fui alcoólatra. Parei completamente no minuto em

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que percebi o que estava fazendo. Além disso, não quero ser aquela pessoatriste e acuada no canto que recusa uma bebida e todo mundo logo pensa queé membro do AA. Quero poder curtir a bebida, mas sem precisar dela.Entende?

– Entendo, mas...

– Confie em mim: uma taça para cada um. Combinado?

O que eu poderia dizer? Ele era meu anfitrião, e eu não podia negar, masdeixaria minha mochila pronta caso as coisas saíssem do controle.

– Combinado – concordei.

Quando me sentei na praia de Railay na tarde seguinte, pude sentir a energiafestiva de volta no ar, enquanto todos os hotéis arrumavam suas varandaspara as comemorações noturnas. Cansada de ficar olhando para o patéticoesboço de carvão que eu havia feito dos pilares de calcário, levantei-me ecaminhei pela areia em direção ao Railay Beach Hotel.

– Oi, Ci, como vai?

– Bem – respondi a Jack, que estava arrumando copos em uma longa mesa decavaletes.

Parecia muito mais animado do que da última vez que o vira, alguns diasantes, apoiado no bar com sua enésima cerveja. A razão para isso

apareceu atrás dele e colocou uma mão possessiva em seu ombro.

– Estamos sem garfos – disse Nam, fuzilando-me com o olhar, como decostume.

– Acho que tenho alguns na cozinha.

– Vá buscá-los agora, Jack. Quero arrumar nossa mesa para mais tarde.

– Estou indo. Você vem esta noite? – perguntou ele.

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– Talvez eu apareça mais tarde – respondi, ciente de que “mais tarde” eleestaria tão distraído ou bêbado que não repararia nem se Jesus Cristo entrasseno bar.

Jack começou a seguir Nam até a cozinha, depois fez uma pausa e se virou.

– A propósito, um amigo meu acha que sabe quem é o homem misterioso dapraia. Ele foi passar o ano-novo em Ko Phi Phi, mas vai me contar mais sobreisso na volta.

– Certo.

– A gente se vê, Ci – disse ele, a caminho da cozinha, seguindo Nam com suabandeja como um pequeno cordeiro atrás da pastorinha.

Aquele homem grande e forte poderia escalar um rochedo muito mais rápidodo que qualquer pessoa que eu já tinha conhecido. Eu esperava nunca tratarum futuro companheiro assim, mas tinha visto tantos homens sendodominados por mulheres exigentes que talvez eles gostassem.

Será que fui dominadora com Estrela? Será que foi por isso que ela foiembora...?

Odiei esse pensamento, então decidi ignorá-lo e seguir em frente. Era um diadestinado a anunciar novos começos. O que quer que o colega de Jack tivessea lhe contar sobre Ace, não devia ser importante. Numa península no meio donada, o fato de alguém ter comido sorvete em vez de picolé já era notícia.Pequenas comunidades adoram uma fofoca, e pessoas reservadas como Acesão um prato cheio para boatos. Só porque meu anfitrião não ficava bêbadoou falava alto com todo mundo durante uma conversa, isso não fazia deleuma má pessoa. Na verdade, eu o achava muito interessante e inteligente.

Enquanto caminhava de volta ao palácio pelo beco cheio de barraquinhasenfileiradas, percebi que começava a me sentir na defensiva com relação aAce, assim como acontecia em relação a Estrela quando as pessoas meperguntavam se ela estava bem, só porque era calada e não falava muito.

Cheguei de volta ao meu quarto e, depois de tomar banho, passar cremes pelo

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corpo e então vestir meu velho caftã, fui até o pátio. Ace já estava lá, usandouma camisa de linho impecavelmente branca.

– Oi. Teve um bom dia? – perguntou.

– Tive sim, só o trabalho é que não deu em nada. Não consigo desenhar nemum quadrado no momento, que dirá qualquer outra coisa.

– A inspiração vai voltar, Ceci. Você só precisa tirar da cabeça todas as

coisas negativas que ouviu. Isso leva tempo.

– Sim, pelo visto leva mesmo. E o seu dia?

– Como de costume. Li um livro, depois saí para caminhar e pensar no quetinha lido. E percebi que nenhum desses livros de autoajuda pode de fatoajudar, porque, no fim das contas, é você quem deve se ajudar. – Ele abriuum sorriso irônico. – Não há soluções fáceis.

– Não, nunca há. Você só tem que seguir em frente, não é?

– Sim. Pronta para o jantar? – perguntou-me por fim, quebrando o silêncioque pairava.

– Claro. Vamos lá.

Uma enorme lagosta apareceu diante de nós, ao lado de váriosacompanhamentos deliciosos.

– Uau! Lagosta é o meu fruto do mar favorito – disse alegremente enquantodevorava a comida.

– Para uma viajante que encontrei dormindo na praia, você parece ter umgosto bem refinado – brincou ele, quando já tínhamos esvaziado os pratos epartido para a sobremesa: frutas frescas e sorvete artesanal. –

Pelo que você disse, presumo que seu pai seja rico.

– Ele era.

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Percebi, então, que não tinha contado a Ace sobre a morte de Pa, mas agoraera uma hora tão boa quanto qualquer outra, então contei.

– Lamento ouvir isso, Ceci. Então este é seu primeiro Natal e ano-novo semele?

– É.

– É por isso que você está aqui?

– Sim e não... Também perdi outra pessoa próxima recentemente. Minhaalma gêmea.

– Um namorado?

– Não. Minha irmã, na verdade. Quero dizer, ela ainda está viva, masresolveu seguir seu próprio caminho.

– Entendo. Bem, somos uma dupla e tanto, não?

– Somos? Você também perdeu alguém?

– Perdi quase tudo nos últimos meses. E não tenho ninguém para culpar, anão ser eu mesmo. – Ele tomou um gole de água. – Você pelo menos tem.

– Não foi minha culpa Pa ter morrido, mas acho que afastei minha irmã.

Por ser... mandona demais. – Finalmente pronunciei a palavra. – E talvez umpouco controladora. Eu não queria que tivesse sido assim, mas ela era muitotímida quando criança e não falava muito, então eu falava por ela, e acho queisso nunca mudou.

– Então ela encontrou sua própria voz?

– Digamos que sim. Isso partiu meu coração. Ela era a pessoa de quem eumais gostava, se entende o que quero dizer.

– Ah, sim, compreendo – concordou ele, pesaroso. – É muito difícil quandovocê confia cegamente em uma pessoa e ela o decepciona.

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– Você passou por algo assim?

Eu o vi olhar para cima e notei uma dor verdadeira em sua expressão.

– Sim.

– Quer falar sobre isso? – perguntei, percebendo que ele estava sempre meencorajando a lhe contar os meus problemas, mas, toda vez que começava afalar sobre os dele, de repente se calava.

– Lamento, mas não posso. Por vários motivos, inclusive legais... só Lindasabe a verdade – murmurou ele –, e é melhor que você não saiba de nada.

Pronto, o homem misterioso estava de volta, e aquilo começava a me irritar.Imaginei que houvesse alguma mulher tentando ficar com seus bens atravésde um divórcio, e eu só queria que ele não sentisse tanta pena de si mesmo.

– Você sabe que estou aqui se quiser conversar – ofereci-me, pensando que anoite estava ficando divertida. Só que não.

– Obrigado, Ceci. Eu agradeço sua oferta e companhia esta noite.

Confesso que estava com medo de passar a véspera de ano-novo sozinho.Como você disse, é apenas uma daquelas noites, não é? De qualquer forma,vamos fazer um brinde a seu pai. E a velhos e novos amigos.

Nós brindamos. Então ele olhou para o relógio... um Rolex, quedefinitivamente não fora comprado em uma das barraquinhas de produtosfalsificados em Bangcoc.

– São dez para a meia-noite – observou ele. – Que tal eu servir aquelas taçasde champanhe que nos prometemos e darmos uma volta até a praia para ver achegada do ano-novo?

– Claro.

Enquanto ele estava fora, aproveitei para mandar uma mensagem a Estrela,com votos de um feliz ano-novo. Fiquei tentada a lhe contar sobre meu novoamigo, mas achei que ela provavelmente entenderia tudo errado, então não

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disse nada. Depois mandei mensagens para Ma e todas as minhas outrasirmãs, onde quer que estivessem aquela noite.

– Pronta? – Ace estava ali, com uma taça borbulhante em cada mão.

– Pronta.

Caminhamos até o portão, e Po levantou de um pulo para abri-lo.

– Faltam cinco minutos... Alguma resolução de ano-novo? – perguntou-meAce à beira da praia.

– Mas que droga, não pensei em nada. Ah, já sei! Voltar a me dedicar àminha arte e reunir coragem para ir à Austrália descobrir de onde eu vim.

– Está se referindo a sua família biológica?

– Sim.

– Uau! Isso você não tinha me contado.

– E a sua resolução?

Olhei para ele à luz do luar.

– Aceitar o que está por vir de coração aberto – disse ele, olhando não paramim, mas para o céu. – E me certificar de que esta seja a única taça dechampanhe que vou beber hoje – acrescentou com um sorriso.

Poucos segundos depois, ouvimos as buzinas dos barcos pesqueirosancorados na baía, e então vimos o clarão dos fogos de artifício próximos àpraia de Railay sobre o topo dos pilares de calcário.

– Minha nossa! – exclamei, ofegante, enquanto víamos lanternas chinesasflutuando suavemente para o céu na outra ponta da praia.

– Saúde, Ceci! – disse ele, encostando a taça de champanhe na minha.

Então, bebeu tudo em alguns poucos goles. – Meu Deus, isso estava bom!

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Feliz ano-novo! – Passou os braços em volta de mim e me deu um forteabraço, fazendo a maior parte do meu champanhe voar por cima do ombrodele em direção à areia. – Você salvou a minha vida nos últimos dias. Estoufalando sério.

– Acho que não, mas obrigada mesmo assim.

Ele me afastou gentilmente com as mãos.

– Ah, salvou, sim.

Em seguida, aproximou seus lábios dos meus e me beijou.

Foi um beijo agradável, bem forte e suave ao mesmo tempo. Como umlobisomem faminto que tivesse tomado um calmante. Meu lado racional

– a parte que normalmente reconhecia todos os sinais de alerta de ummovimento assim – não reagiu, então o beijo continuou por bastante tempo.

– Venha.

Ace por fim se afastou e começou a me puxar pela mão pelo caminho devolta. Quando passamos por Po, que devia ter visto nosso beijo, sorri para elee desejei-lhe um feliz ano-novo.

Enquanto Ace me guiava até seu quarto, a mão ainda segurando a minha,senti que poderia mesmo ser um ano feliz.

Naquela noite... bem, sem entrar em detalhes, Ace obviamente sabia o queestava fazendo. Na verdade, ele parecia ser um especialista, ao contrário demim. Mas é incrível como alguém pode aprender algo rapidamente quandoquer.

– Ceci – disse ele enquanto acariciava meu rosto, depois de terem se passadoprovavelmente algumas horas, porque eu podia ouvir um suave gorjeio depássaros –, você é tão... deliciosa. Obrigado.

– Imagina – respondi, mas com a sensação de que ele estava descrevendo osabor de um sorvete.

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– Isso é só passageiro, não é? Quero dizer, não pode existir nenhum futuronesta relação.

– É claro que não – respondi de forma leve, preocupada de ter lhe dado aimpressão de que era grudenta.

– Bom, porque eu não quero magoar você, nem ninguém, nunca mais.

Boa noite, durma bem.

Com isso, ele rolou para longe de mim, em uma cama que eu calculava

ser ainda maior e mais confortável do que a minha, e foi dormir do seu lado.

É claro que é só passageiro, eu disse a mim mesma enquanto também rolavapara o meu lado, percebendo que era a primeira vez que dividia a cama comum homem, já que todos os outros casos tinham sido ao ar livre. Fiqueideitada olhando para a escuridão, feliz que as persianas das janelas deixassementrar pequenos faixos de luz do ano-novo, e pensando que era exatamentedaquilo que eu precisava. Era perfeito, pensei. Algo para levantar aautoestima, mas sem compromisso. Eu iria para a Austrália em alguns dias, etalvez pudesse manter contato com Ace por meio de mensagens. Não era umaheroína vitoriana que sacrificara a própria virtude e acabara presa em umcasamento. As pessoas da minha geração haviam conquistado a liberdade defazer o que quisessem e gostassem com seus próprios corpos. E, naquelanoite, eu tinha gostado...

Com muito cuidado, meus dedos moveram-se até ele por vontade própria,para encontrar sua pele, tocá-la e ter certeza de que ele era real e estava ali,respirando, bem ao meu lado. Quando Ace se mexeu, tirei a mão, mas elerolou na minha direção e me envolveu em seus braços.

Quente e segura com o peso do corpo dele contra o meu, finalmenteadormeci.

No fim das contas, a véspera de ano-novo não foi uma ficada de uma noite.

Acabou se estendendo por manhãs, tardes e noites que passávamos

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praticamente o tempo todo na horizontal. E, se não estávamos na cama,fazíamos coisas divertidas juntos, como quando Ace me arrastava aoamanhecer para ver os macacos, que anunciavam sua presença com umapancada forte no telhado ao invadir o palácio em busca de restos de comida.

Sempre que eu acordava, havia uma bandeja de coisas gostosas para comer.

Durante as tardes longas e quentes, saboreávamos pedaços de abacaxi emanga e assistíamos a algum filme da sua coleção de DVDs.

Certa manhã, uma lancha luxuosa apareceu à beira-mar em frente ao palácio.Po nos ajudou a subir a bordo, depois sacou uma câmera e se ofereceu paratirar uma foto, o que Ace recusou veementemente. Quando partimos, elecontou que ia me levar a um lugar especial. Como já pilotara a lancha dafamília para cima e para baixo no lago Léman, logo assumi o lugar docapitão, conduzindo o barco tranquilamente sobre as ondas e levantando aproa no ar só para assustá-lo. Quando uma parede de pilares de pedra calcáriasurgiu diante de nós no meio do mar, deixei o capitão assumir novamente.Ele conduziu o barco habilmente até uma lagoa escondida, protegida de todosos lados por vertiginosas paredes rochosas. A água era verde e calma, e haviaaté árvores de mangue crescendo dentro dela. O lugar se chamava Koh Hong,e era um paraíso.

Fui a primeira a pular na água, mas Ace entrou logo em seguida e nadamospela lagoa como se fosse nossa piscina particular, perdida no meio do oceano.

Depois, nós nos sentamos no convés e tomamos um café quente e forte,aproveitando a paz e a tranquilidade daquele lugar incrível. Então pilotei alancha de volta para casa e fomos para a cama fazer amor. Foi um diamaravilhoso, que eu sabia que nunca esqueceria. O tipo de dia que aconteceapenas uma vez na vida, mesmo para alguém como eu.

Meu quarto ficara abandonado desde a véspera de ano-novo, e na quinta noitecom Ace perguntei-me se estava em um “relacionamento”. Parte de mimestava apavorada, porque não era o que eu planejara, e Ace tinha deixadoclaro que ele também não. No entanto, outra parte de mim queria tirar umafoto de nós dois olhando um para o outro na praia e enviar para minhas irmãs,para elas verem que nem tudo estava perdido para mim, afinal. Aquele

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homem, por algum motivo, gostava de mim. Ele ria das minhas piadas – queeu mesma sabia que eram muito ruins – e até mesmo parecia achar “sexy”meu corpo pequeno e desajeitado.

Mas, acima de tudo, ele me “compreendia” de uma forma que só Estrelaconseguira antes e chegara à minha vida bem quando eu precisava dele.

Estávamos à deriva naquele mundo e tínhamos ido parar juntos na mesmapraia, sem a certeza do que estava por vir, e era reconfortante poder contarcom alguém, mesmo que por pouco tempo.

No sexto dia, acordei sozinha, olhei para o relógio e vi que era quase uma datarde. A entrega usual de frutas, croissants e café estava atrasada. E

eu já ia sair à procura de Ace quando ele abriu a porta com uma bandeja nasmãos. Eu teria relaxado, não fosse pelo olhar em seu rosto.

– Bom dia, Ceci. Dormiu bem?

– Sim, das quatro até agora – respondi, enquanto ele pousava a bandeja.

Normalmente, ele viria se deitar ao meu lado. Naquele dia, entretanto,sentou-se na beira da cama.

– Tenho que fazer umas coisas. Você se importaria de ficar sozinha à tarde?

– Claro que não – respondi alegremente.

– Vejo você às oito para o jantar?

Ele se levantou e me beijou no alto da cabeça.

– Sim, claro.

Então saiu, acenando e abrindo um sorriso, e, como eu era nova nessa coisade relacionamento, não conseguia entender se aquilo era normal.

Seria porque ele tinha que “fazer umas coisas” e o mundo estava finalmentevoltando ao normal após o ano-novo ou eu deveria entrar em pânico e

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arrumar minha mochila? Por fim, sem querer parecer que não tinha para ondeir e não conseguia me divertir sozinha, voltei pelo caminho dos plebeus atéRailay com meu bloco de desenho. Quando subi na varanda do Railay BeachHotel, vi que a praia estava menos cheia do que no réveillon. Nam estava nobar, então pedi um shake de manga, só

para ela ter o trabalho de fazer. Depois me sentei em um banquinho,observando-a com um olhar presunçoso do qual não me orgulhava.

– Você precisa de um quarto? – perguntou enquanto descascava a manga e ajogava no liquidificador.

– Não, estou bem, obrigada.

– Em que hotel está?

– No Sunrise Resort.

Nam assentiu, mas vi um brilho em seus olhos.

– Não vejo você faz tempo. Nem eu, nem ninguém.

– Andei ocupada.

– Jay disse que viu você em Phra Nang, entrando numa lancha com umhomem.

– É mesmo? Bem que eu queria.

Revirei os olhos enquanto meu coração batia acelerado.

Jay era um cara que eu conhecera de passagem no ano anterior, amigo deJack. Ele tinha ajudado no bar algumas vezes, mas era um vagabundo, que iaa qualquer lugar onde pudesse ganhar algum trocado. Alguém contou que elefora um grande jornalista até se envolver com drogas. Às vezes, eu o viasentado ali, todo confiante, fumando um baseado. Drogas não eram algo queeu aprovasse, e ali na Tailândia, quer fosse um baseado ou um monte deheroína, a punição por posse de drogas era aplicada com a mesma rigidez.

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Ele também tivera uma queda por Estrela, ia até ela toda vez que aparecíamospara tomar uma bebida. Estrela o achara tão horripilante quanto eu, então eutentava garantir que nunca ficasse sozinha com ele.

– Jay disse que viu você – insistiu Nam, entregando-me o shake de manga.

– Você tem um novo namorado.

Falou isso como se antes eu tivesse outro. Então me ocorreu que talvez elapensasse que Jack e eu estávamos tendo um caso, com aquela história de eudormir no quarto dele. Deus do céu, as mulheres às vezes são tão patéticas...

Era óbvio para todo mundo que ela fazia gato-sapato de Jack.

– Não – insisti, e bebi o mais rápido que pude.

– Jay disse que conhece o homem que estava com você. Homem mau.

Famoso.

– Acho que Jay precisa é de óculos novos, porque não era eu.

Então contei 60 bahts, com uma gorjeta de 10 bahts, e deixei o dinheiro nobalcão.

– Jay vem mais tarde. Ele conta para você.

Balancei a cabeça e revirei os olhos de novo, como se ela fosse maluca, e saí,tentando agir normalmente. Em vez de virar à direita na praia, de volta para opalácio, virei à esquerda, para onde tinha dito a Nam que ficava meu hotel, sópara o caso de ela ou Jay, ou qualquer outra pessoa, aliás, estar observando.Deixei os sapatos e a toalha na praia em frente

ao hotel e entrei na água para mergulhar e pensar um pouco.

O que será que ela entendia por “homem mau”? Na linguagem de Nam, issoprovavelmente significava que ele era um mulherengo, nada mais.

Eu sabia que Ace tivera várias namoradas quando morava em Londres –

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ele sempre citava diferentes mulheres com quem tinha compartilhado bonsmomentos. Quanto a ele ser “famoso”, talvez fosse, mas eu jamais saberia,porque nunca leio jornais ou revistas, devido à dislexia.

Saí da água, deitei-me na areia para secar ao sol e fiquei me perguntando sedeveria contar a Ace. Obviamente, ele era paranoico com relação àprivacidade... E se fosse famoso? Eu podia perguntar a Electra – afinal,aquele era o mundo em que ela vivia. E, se ele fosse mesmo uma celebridade,isso a faria ficar quietinha pelo menos uma vez na vida – a irmã D’Aplièsefeia com um namorado famoso. Quase valia a pena mandar uma mensagemperguntando só para ver a reação dela.

Mas eu sabia que, se contasse a Ace que havia alguém de olho nele, isso iriadeixá-lo preocupado. E, além disso, Jay não sabia onde ele morava –

ou, pelo menos, eu esperava que não.

Talvez eu devesse contar... mas tinha apenas mais alguns dias ali antes de irpara a Austrália e não queria estragar nosso tempo juntos. Por fim, decidique, depois que voltasse ao palácio, ficaria por lá até a hora de ir para oaeroporto. Naquele dia, só podia torcer para que ninguém me visse entrando.

Decidi fazer isso logo antes do pôr do sol, quando a praia de Phra Nangcomeçava a esvaziar, mas eu ainda podia passar despercebida em meio àmultidão. Fui nadar mais uma vez, então me sentei na toalha, bem perto dePo, que, ao me ver, logo se pôs a digitar o código do portão. Eu o ignorei edeitei-me a poucos metros de distância. Entraria furtivamente em breve,quando todos os olhos estivessem voltados para o pôr do sol.

Vinte minutos depois, o espetáculo da natureza começou e corri para osportões do palácio como um animal sendo caçado.

Eu não sabia o que esperar quando segui pelo caminho até meu quarto, mas,se Ace tivesse se cansado de mim de repente e me pedisse para ir emboranaquela noite, pelo menos já não havia tanta procura em Railay quanto antesdo ano-novo, e muitos hotéis ao longo da praia tinham vaga. Ao abrir a portado meu quarto, senti um perfume floral no ar.

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– Estou aqui, venha para cá.

Entrei no banheiro e vi Ace deitado na enorme banheira oval, cercado porinúmeras pequenas velas que emanavam um brilho suavemente perfumado.

Centenas de pétalas cor-de-rosa e brancas flutuavam na água.

– Quer se juntar a mim?

Eu ri.

– O que é tão engraçado?

– Você parece uma versão surrealista daquela famosa pintura da Oféliamorta.

– Você quer dizer uma versão mais peluda e feia? – disse ele com um sorriso.– E eu estava tentando ser romântico. Tudo bem que a empregada exageroucom as flores, mas nunca peça a um tailandês para preparar seu banho ou vaiacabar catando pétalas do corpo por dias.

Venha, entre.

Então entrei, e me deitei com a cabeça apoiada em seu peito, os braços bemfirmes em volta da minha cintura. Era maravilhoso.

– Peço desculpas por mais cedo – sussurrou em meu ouvido e então beijousuavemente minha orelha. – Eu tinha que resolver algumas coisas pelotelefone.

– Não precisa se desculpar.

– Senti sua falta – sussurrou novamente. – Vamos jantar em casa esta noite?

– Sempre jantamos – respondi com um sorriso.

Bem mais tarde, quando finalmente saímos da banheira e devoramos umpeixe fresco com molho de tamarindo, demos um passeio até a praia eficamos lá olhando o céu.

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– Então, me mostre qual é a sua estrela – pediu Ace.

Localizei a constelação e apontei.

– Sou a terceira de cima para baixo, na posição das duas horas.

– Só consigo ver seis.

– São sete, mas é mesmo difícil ver a última.

– Qual é o nome dela?

– Mérope.

– Você nunca falou dela.

– É, não. Ela nunca apareceu. Ou, pelo menos, Pa só levou seis irmãs paracasa.

– Isso é estranho.

– Sim. Agora, parando para pensar, minha infância toda foi estranha.

– Sabe por que ele adotou todas vocês?

– Não, mas a gente não se pergunta isso quando é criança, não é? Apenasaceita. Eu adorava ter Estrela e minhas irmãs ao meu redor. Você temirmãos?

– Sou filho único, então nunca tive que dividir nada. – Ele deu uma risadasarcástica e virou-se para mim. – Você não fala muito sobre suas outrasirmãs.

Como elas são?

– Maia e Ally são as duas mais velhas. Maia é muito doce, e tão inteligente...fala, tipo, um milhão de línguas... e Ally é incrível, muito forte e corajosa.Ela passou por um período difícil recentemente, mas já está conseguindosuperar. Eu a admiro muito, sabe? Gostaria de ser como ela.

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– Então Ally é sua inspiração?

– Talvez, acho que sim. E Tiggy... – Pensei por um segundo, perguntando-mequal a melhor forma de descrevê-la. – Depois de Estrela, ela é a irmã

de quem sou mais próxima. Ela é muito... Qual é a palavra para alguém queparece entender as coisas sem que você as diga em voz alta?

– Intuitiva? – arriscou Ace.

– Isso. Ela tem um jeito incrivelmente positivo de ver o mundo. Se eu opintasse do jeito que ela o vê, seria a coisa mais linda. Tem também a Electra– murmurei –, mas não nos damos bem. – Então devolvi o interrogatório: – Ea sua infância?

– Como você, eu não achava que era estranho na época. Adorava a minhamãe e ser criado na Tailândia. Então, pouco depois que ela morreu, fuimandado para uma escola na Inglaterra.

– Deve ter sido difícil ficar longe de tudo o que você conhecia.

– Foi... mas tudo bem.

– E o seu pai? – perguntei.

– Já lhe disse, não o conheço.

Senti, pelo seu tom, que não devia questionar mais nada, embora estivessemuito curiosa.

– Alguma vez você já pensou se Pa Salt era seu pai verdadeiro?

A pergunta veio do nada.

– Nunca considerei essa hipótese – respondi, embora de repente estivesseconsiderando aquilo. – Isso significaria que ele viajou pelo mundo para reunirsuas seis filhas ilegítimas.

– É, seria estranho – concordou Ace –, mas com certeza deve haver um

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motivo, não é?

– Quem sabe? E, na verdade, quem se importa? Ele está morto agora, entãonunca vou descobrir.

– Você está certa. Não há motivo algum para ficar pensando no passado, nãoé?

– Não, mas todos nós pensamos. Pensamos sobre os erros que cometemos edesejamos poder mudá-los.

– Você não cometeu nenhum erro para querer mudar alguma coisa.

Foram seus pais que erraram, desistindo de você.

Virei-me então para olhá-lo. Talvez fosse o luar, mas seus olhos pareciambrilhar muito, como se estivessem marejados.

– Foi isso que seu pai fez? Desistiu de você?

– Não. E você, vai procurar seus pais na Austrália?

Era o Método Ace de interrogatório... e a bola tinha sido habilmentedevolvida para mim. Permiti dessa vez, porque sabia que ele estava chateado.

– Talvez – respondi, dando de ombros.

– Como descobriu que foi lá que você nasceu?

– Quando Pa morreu, em junho, deixou para cada uma de nós um objetochamado esfera armilar, em que gravou as coordenadas de onde nosencontrou.

– E as suas são de onde?

– Um lugar chamado Broome. Na costa noroeste da Austrália.

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– Certo. O que mais?

– Ele contou que eu deveria ir lá e descobrir sobre uma mulher chamada KittyMercer.

– Só isso?

– Sim. Foi tudo que ele deixou. Além de uma herança, da qual fiquei sabendodias depois.

– Você já tentou procurá-la na internet? – perguntou ele.

– Ahn, não. – Fiquei feliz por estar escuro e ele não poder me ver corar.

Começava a me sentir num interrogatório de verdade. – Não é justo você mefazer todas essas perguntas e não responder nenhuma das minhas.

Ele riu.

– Você é ótima, Ceci. Fala tudo sem rodeios.

Em seguida, me rolou para cima dele e me beijou.

Dois dias depois, acordei sem fazer ideia de que dia era, sabendo que tinhaperdido completamente a noção do tempo. Saí da cama e revirei a mochila àprocura das minhas passagens de volta para Bangcoc e de lá para Sydney.Então chequei o celular para ver a data.

– Ah, merda! Vou embora amanhã! – exclamei, horrorizada com a ideia.

Desabei na cama exatamente quando Ace entrou com a bandeja do café.

E

havia um livro empoleirado entre os croissants.

– Trouxe uma coisa para você – disse ele enquanto pousava a bandeja.

Olhei para o livro. Na capa, uma fotografia em preto e branco de uma bela

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mulher. Ela usava um vestido antigo com um decote muito alto, fechado comfileiras de pequenos botões de pérolas. Levei alguns segundos para ler onome na capa.

– Kitty Mercer, a pioneira das pérolas – li em voz alta.

– Sim! – disse Ace triunfante, entrando debaixo das cobertas comigo e meestendendo uma xícara de café. – Pesquisei sobre ela no Google. Ela tem aprópria página na Wikipédia, Ceci!

– Sério?

Fiz um gesto taciturno com a cabeça.

– Ela parece incrível. Pelo que li, conquistou muita coisa em uma época emque as mulheres lutavam para estar no comando. Então comprei a biografiadela e pedi uma entrega expressa de lancha de uma livraria em Phuket.

– Você fez o quê?

Olhei para ele.

– Dei uma lida rápida, é uma história muito interessante. Você vai adorar,sério.

Ele pegou o livro e o empurrou para mim, e me esforcei ao máximo para nãome afastar dele e do livro. Coloquei o café na mesa de cabeceira e desci dacama.

– Por que você se deu todo esse trabalho? – perguntei enquanto colocava

a camisa. – Não é da sua conta. Se quisesse descobrir alguma coisa, eumesma teria feito isso...

– Minha nossa! Eu só estava tentando ajudar! Por que você está tão irritada?

– Não estou irritada – falei, mesmo sabendo que estava. – Ainda nem decidise quero descobrir alguma coisa sobre a minha família biológica!

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– Bem, você não precisa ler agora, pode guardar para quando estiver pronta.

Ace tentou me entregar o livro novamente, e eu o empurrei.

– Talvez você devesse ter me perguntado primeiro.

– É, talvez – concordou ele.

Saí do quarto zangada e subi para me sentar no terraço, tentando ficar sozinhapara me acalmar por um tempo.

Dez minutos depois, ele veio se sentar ao meu lado no sofá de seda, aindasegurando o livro em uma das mãos.

– Qual é o problema de verdade, Ceci? Não quer me dizer?

Mordi o lábio por um instante, observando as pessoas nadando no oceano láembaixo.

– Olha, foi muito legal você ter se esforçado para conseguir o livro. Não deveter sido fácil conseguir comprá-lo tão rápido. É só que... Eu não sou boa comlivros. Nunca fui. Foi por isso que não procurei nada sobre Kitty Mercer.

Eu tenho... dislexia, uma dislexia bem séria, na verdade.

Ace passou o braço pelos meus ombros.

– Por que não disse logo?

– Não sei – murmurei. – Estou com vergonha, está bem?

– Ora, mas não deveria. Algumas das pessoas mais brilhantes que eu conheçosão disléxicas – argumentou Ace, e de repente teve uma ideia. –

Ei, já sei! Vou ler em voz alta para você. – Então me puxou para junto dele eme aconcheguei em seu ombro. – Certo – disse ele, e começou a virar aspáginas antes que eu pudesse detê-lo.

Capítulo 1. Edimburgo, Escócia, outubro de 1906...

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Kitty Edimburgo, Escócia Outubro de 1906

6

Kitty McBride estava deitada na cama, observando a pequena aranha tecersua teia em torno de uma desafortunada varejeira que voara para suaarmadilha em um canto do teto. Na noite anterior, antes de apagar o lampião,ela vira a varejeira zumbindo – uma remanescente audaciosa de um outonoquente que dava lugar ao inverno. E pensou como a aranha devia ter ficadoocupada a noite toda mumificando a mosca em seus fios de seda.

– Isso certamente garantirá um mês de jantar para você e sua família –

disse Kitty à aranha, antes de inspirar forte e sair de baixo das cobertas.

Morrendo de frio, seguiu tremendo pelo quarto congelante até o lavatório,onde se limpou de forma bem mais breve do que sua mãe teria aprovado. Pelapequena janela, viu uma espessa névoa de início de manhã envolvendo ascasas geminadas do outro lado da rua estreita.

Colocou a roupa de lã, abotoou o vestido no longo pescoço branco e escovoua juba de cabelo castanho-avermelhado, tirando-o do rosto e enrolando-o noalto da cabeça.

– Pareço um verdadeiro fantasma – disse ao reflexo no espelho enquanto iaaté a gaveta de roupa de baixo pegar o ruge.

Passou um pouco nas bochechas, esfregou e depois beliscou-as para deixá-lascoradas. Tinha comprado o produto na Jenners, na Princes Street, dois diasantes, após ter economizado todos os xelins das aulas de piano que dava duasvezes por semana.

Seu pai, é claro, diria que a vaidade era um pecado. Mas ele via pecado emquase tudo; passava o tempo escrevendo sermões e depois pregando para seurebanho. Profanidade, vaidade, a bebida do demônio... e seu preferido: osprazeres da carne. Kitty sempre se perguntava como ela e as três irmãshaviam vindo ao mundo; ele não teria precisado se entregar a esses“prazeres” para que o nascimento delas acontecesse? E

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agora sua mãe esperava outro bebê, o que significava que eles deviam terfeito aquela coisa juntos havia pouco tempo.

Kitty parou quando uma repentina imagem de seus pais nus surgiu em suamente. Duvidava que um dia fosse capaz de tirar a roupa na frente de quemquer que fosse – muito menos de um homem. Então estremeceu e guardouseu precioso ruge na gaveta para que Martha, uma de suas irmãs mais novas,não ficasse tentada a roubá-lo. Em seguida, abriu a porta do quarto e desceudepressa os três lances da escada de madeira para tomar o café da manhã.

– Bom dia, Katherine.

Ralph, seu pai, estava à cabeceira da mesa com suas três filhas mais jovenssentadas em silêncio de um dos lados. Ele ergueu os olhos e abriu

um caloroso sorriso. Todo mundo sempre dizia que ela se parecia com o pai,que tinha cabelo castanho-avermelhado cacheado, olhos azuis e maçãs dorosto proeminentes. A pele pálida quase não tinha marcas, ainda que Kittysoubesse que ele já passava dos 40 anos. Todas as paroquianas eramapaixonadas por ele e ouviam atentamente cada palavra que proferia dopúlpito. Ao mesmo tempo que deviam sonhar em fazer com ele todas ascoisas que ele lhes dizia para não fazer, pensou ela.

– Bom dia, pai. Dormiu bem?

– Sim, mas sua pobre mãe não. Ela anda cheia de náuseas, como em todoinício de gravidez. Pedi à Aylsa que levasse uma bandeja para ela.

Kitty sabia que isso significava que a mãe estava mesmo mal. A rotina decafé da manhã da família McBride costumava ser seguida estritamente.

– Pobre mamãe – comentou Kitty enquanto se sentava perto do pai. –

Vou lá vê-la depois do café.

– Katherine, será que você poderia fazer a gentileza de visitar os paroquianosde sua mãe hoje? E cuidar de qualquer coisa de que ela precise?

– Claro.

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Ralph fez a oração, pegou a colher e começou a comer o grosso mingau deaveia, que era o sinal para que Kitty e suas irmãs começassem a comertambém.

Naquela manhã, por ser uma quinta-feira, Ralph testou as habilidades deadição e subtração das filhas durante o café. A agenda semanal era sagrada:segunda era dia de ortografia; terça, capitais do mundo. Na quarta, estudavamas datas de quando os reis e as rainhas da Inglaterra subiram ao trono, comuma biografia resumida de um deles, segundo a escolha de Ralph. Sexta era otema mais fácil, já que cobria a monarquia escocesa, e não havia muitos reis erainhas escoceses depois que a Inglaterra assumiu o poder. No sábado, cadafilha devia recitar um poema de cabeça, e no domingo Ralph jejuava a fim dese preparar para seu dia mais movimentado e ia para a igreja antes dequalquer outra pessoa em casa se levantar.

Kitty adorava os cafés da manhã de domingo.

Viu as irmãs se esforçarem para se virar com os números e depois paraengolir o mingau rapidamente a fim de dar a resposta sem que suas bocasestivessem cheias, o que teria feito o pai fechar a cara em reprovação.

– Dezessete! – gritou Mary, a irmã mais nova, de 8 anos, entediada de esperarque Miriam, a irmã três anos mais velha do que ela, respondesse.

– Muito bem, minha querida – elogiou Ralph, orgulhoso.

Kitty achava isso extremamente injusto com a pobre Miriam, que sempretivera dificuldade com os números e uma personalidade nervosa, ofuscadapela irmã mais confiante. Miriam era secretamente a preferida de Kitty.

– Então, Mary, como foi melhor que suas irmãs nas respostas, você podeescolher que parábola vou contar.

– A do filho pródigo! – disse Mary imediatamente.

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Enquanto Ralph começava a falar com sua voz baixa e ressonante, Kittydesejou que ele tivesse ensinado a elas mais parábolas da Bíblia. Na verdade,estava cansada das poucas que ele recitava. Além disso, por mais quetentasse, não conseguia entender a moral por trás da história do filho quedesaparecia por anos, deixando outro filho assumir o fardo dos pais. E então,quando ele voltava...

– ... tragam o novilho gordo e matem-no. Vamos fazer uma festa ecomemorar – completou Ralph por ela.

Kitty ansiava por perguntar ao pai se isso significava que qualquer pessoapodia se comportar como quisesse e ainda assim voltar para casa e ser bemrecebida, porque era isso que parecia. Ela sabia que Ralph argumentaria que oPai Celestial perdoaria qualquer um que se arrependesse de seus pecados,mas, na verdade, isso não parecia muito justo com o outro filho, que tinhasido bom o tempo todo e não fora presenteado com o abate de um novilhogordo.

Então ele diria que as pessoas boas recebiam sua recompensa no Reino dosCéus, mas isso parecia tempo demais para esperar quando outros a recebiamainda na Terra.

– Katherine! – O pai interrompeu seus pensamentos. – Você está sonhandoacordada de novo. Perguntei se poderia levar suas irmãs para o quarto eorganizar a manhã de estudos! Como sua mãe está muito indisposta para daraulas, vou subir às onze e teremos uma hora de estudo da Bíblia. – Ralphabriu um sorriso caloroso para as filhas, depois se levantou. – Até lá, estareino escritório.

Quando Ralph apareceu no quarto das crianças às onze, Kitty correu para odela a fim de pegar os livros que pretendia devolver à biblioteca pública antesde começar a visitar os paroquianos da mãe. Desceu as escadas até o hall epegou depressa o xale grosso e a capa de um gancho, ansiosa para escapar daatmosfera opressiva do presbitério. Enquanto amarrava as fitas do chapéu depala sob o queixo, entrou na sala de visitas e viu a mãe sentada ao lado dalareira, seu belo rosto pálido e esgotado.

– Mãezinha querida, você parece tão cansada.

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– Confesso que hoje estou me sentindo mais cansada que de costume.

– Descanse, mãe. Até mais tarde.

– Obrigada, querida – disse a mãe, abrindo um fraco sorriso quando Kitty abeijou e deixou a sala.

Ao sair para o revigorante ar da manhã, Kitty seguiu pelas estreitas ruas deLeith e foi cumprimentada por vários paroquianos. Alguns a conheciamdesde que ela não passava de um “bebê chorão”, como

muitas vezes gostavam de lembrá-la. Passou pela Sra. Dubhach, que, comosempre, perguntava pelo reverendo e elogiava o sermão do último domingo aponto de Kitty começar a sentir náuseas.

Quando se despediu da mulher, Kitty embarcou no bonde elétrico para ocentro de Edimburgo. Depois de fazer baldeação em Leith Walk, desceuperto da ponte George IV e seguiu para a Biblioteca Central. Deu uma olhadanos alunos, que riam e conversavam enquanto subiam os degraus para ogrande prédio de tijolos cinzentos, que irradiava luzes de suas muitas janelaspara o insípido céu de inverno. Dentro do salão principal, de pé-direito alto,fazia quase tão frio quanto do lado de fora, e, ao colocar os livros no balcãode devolução, Kitty fechou um pouco o xale, enquanto a bibliotecária cuidavada parte burocrática.

Kitty esperava pacientemente, pensando em um livro que pegara emprestadohavia pouco tempo: A origem das espécies, de Charles Darwin, publicadopela primeira vez mais de quarenta anos antes. O livro fora uma revelaçãopara ela. Na verdade, fora o catalisador que a fizera questionar sua féreligiosa e os ensinamentos que o pai lhe infundira desde a infância. Ela sabiaque ele ficaria horrorizado só de pensar que lera palavras tão blasfemas, e queainda por cima lhes dera crédito.

Na verdade, o reverendo tolerava relutantemente suas visitas regulares àbiblioteca, mas, para Kitty, era o seu refúgio – o lugar que lhe fornecera amaior parte de sua instrução em assuntos que iam muito além do que elaaprendia com o estudo da Bíblia ou as lições básicas de inglês e aritmética damãe. Sua introdução a Darwin acontecera por acaso, depois que seu pai

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mencionou que a Sra. McCrombie, a mais rica benfeitora da igreja, estavapensando em visitar os parentes na Austrália. Isso despertou o interesse deKitty. Como ela não sabia quase nada sobre o distante continente, procuroupelas prateleiras da biblioteca até se deparar com A viagem do Beagle, quenarrava as aventuras do jovem Darwin durante uma jornada de cinco anos aoredor do mundo, incluindo dois meses na Austrália. Um de seus livros levaraa outro, e Kitty se vira ao mesmo tempo fascinada e perturbada pelas teoriasrevolucionárias que Darwin abraçava.

Ela desejava ter alguém com quem discutir essas ideias, mas podia imaginar aapoplexia de seu pai se algum dia ousasse mencionar a palavra “evolução”. Aideia de que as criaturas que povoavam a Terra não fossem uma criação deDeus, mas sim o resultado de milênios de adaptação ao seu ambiente, seriaum anátema para ele. Que dirá a ideia de que o nascimento e a morte nãoseguiam Sua vontade, porque a

“seleção natural” determinava que apenas os mais fortes de qualquer espéciesobreviveriam e se reproduziriam.

A teoria da evolução fazia as orações parecerem bastante arbitrárias, porque,segundo Darwin, não havia nenhuma força além da natureza, a força maispoderosa do mundo.

Kitty verificou o relógio na parede e, depois de acertar tudo com a

bibliotecária, não se demorou entre as prateleiras como normalmente fazia,então saiu e pegou um bonde de volta a Leith.

Mais para o fim da tarde, correu para casa pelas ruas geladas. Havia edifíciosaltos e austeros dos dois lados, todos feitos do mesmo arenito maçante que semisturava ao cinza constante do céu. À luz dos lampiões, podia ver que umanévoa pesada descia sobre a cidade. Estava cansada, após passar a tardevisitando paroquianos doentes – tanto os de sua lista quanto os da lista de suamãe. Para sua consternação, quando chegou à porta da frente de um prédio daQueen Charlotte Street, descobriu que a Sra. Monkton – uma gentil idosaque, segundo seu pai, ficara pobre graças à fornicação e à bebida – haviamorrido na véspera.

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Apesar dos comentários do pai, Kitty sempre aguardava ansiosamente suasvisitas semanais à Sra. Monkton – ainda que tentar decifrar o que a mulherdizia, devido à combinação da falta de dentes e um sotaque fortíssimo, fosseuma tarefa árdua. O bom humor com que a Sra.

Monkton encarava sua decadência, sem nunca se queixar da miséria em quevivia depois de ter caído em desgraça – Sim, já fui dama de companhia, sabe.

Morava em uma excelente casa até minha senhora notar que o senhor estavade olho em mim, me contou uma vez –, fizera Kitty colocar as coisas emperspectiva: afinal, mesmo se o resto de sua vida continuasse do mesmo jeito,pelo menos tinha um teto sobre a cabeça e comida na mesa, ao contrário detantos outros por ali.

– Espero que você esteja no céu, onde é o seu lugar – sussurrou Kitty para oar espesso da noite enquanto cruzava a Henderson Street para o presbitério dooutro lado da rua.

Quando se aproximou da porta da frente, uma sombra cruzou seu caminho eKitty parou de súbito para evitar uma colisão. Então viu que a sombrapertencia a uma jovem que parara abruptamente e a olhava. Seu lençoesfarrapado escorregara da cabeça, revelando um rosto magro com enormesolhos assombrados e pele pálida emoldurada por desalinhados cabeloscastanhos. Kitty notou que a pobre criatura devia ter aproximadamente aidade dela.

– Perdoe-me – disse ela, enquanto se afastava desajeitadamente para permitirque a moça passasse.

Mas a garota não se moveu e continuou a encará-la, até Kitty desviar o olhare abrir a porta da frente. Ao entrar em casa, ainda sentiu o olhar em suascostas, e fechou a porta apressada.

Kitty tirou a capa e o chapéu, enquanto fazia o possível para esquecer aquelesolhos assombrados. Depois, pensou nos romances de Jane Austen que havialido e nas descrições dos pitorescos presbitérios em meio a lindos jardins dointerior inglês, seus moradores cercados por vizinhos refinados, que levavamvidas igualmente privilegiadas. E

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concluiu que a Srta. Austen nunca devia ter viajado tão ao norte e visto comoviviam os clérigos da cidade nos arredores de Edimburgo.

Assim como o restante dos prédios ao longo da rua, o presbitério era umasólida construção vitoriana de quatro andares, projetado pela praticidade, nãopela beleza. A área pobre ficava bem próxima, nos prédios perto das docas.

Seu pai dizia que ninguém poderia criticá-lo por viver num lugar melhor doque seu rebanho, mas, ao entrar na sala de estar para aquecer as mãos juntoao fogo, Kitty pensou que, ao contrário de outras pessoas do bairro, pelomenos os moradores do presbitério estavam quentes e secos.

– Boa noite, mãe – cumprimentou Adele, que estava sentada ao lado dalareira, cerzindo meias e apoiando-as, junto com a almofada de alfinetes, napequena barriga.

– Boa noite, Kitty. Como foi o seu dia?

Adele tinha o suave sotaque da nobreza escocesa; seu pai fora proprietário deterras em Dumfriesshire.

Kitty e as irmãs adoravam viajar para o sul no verão para ver os avós.

Ela, particularmente, gostava de sair a cavalo pela imensidão do campo.

No entanto, sempre ficava perplexa com o fato de que o pai nunca asacompanhasse nessas viagens. Ele dizia que devia permanecer com seurebanho, mas Kitty começara a suspeitar que era porque seus avós odesaprovavam. Os McBrides, apesar de ricos, tinham suas origens ligadas aoque Kitty ouvira chamar de “comércio”, enquanto os pais de sua mãe eramdescendentes do nobre clã Douglas, e com frequência expressavam suapreocupação de que a filha vivesse em circunstâncias tão simples comoesposa de um pastor.

– A Sra. McFarlane e os filhos mandaram lembranças, e o abscesso na pernado Sr. Cuthbertson parece ter cicatrizado. Mas também tenho uma notíciatriste, mãe. A Sra. Monkton faleceu ontem.

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– Que Deus cuide de sua alma. – Adele imediatamente se benzeu. – Mastalvez tenha sido melhor assim, do jeito como ela vivia...

– O vizinho me disse que levaram o corpo para o necrotério, mas, como aSra. Monkton não tinha parentes nem dinheiro, não há como fazer um enterrodecente. A menos que...

– Vou falar com seu pai – disse Adele, reconfortando a filha. – Embora eusaiba que os recursos da igreja sejam escassos no momento.

– Por favor, mãe. Por mais que papai fale sobre os pecados dela, a Sra.

Monkton com certeza se arrependeu no fim.

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– E era uma agradável companhia. Ah, eu odeio o início do inverno. Aestação da morte... – Adele estremeceu ligeiramente e levou a mão à barrigade maneira protetora. – Seu pai está em uma reunião do conselho paroquial,depois vai jantar com a Sra. McCrombie. Ele espera que ela faça uma doaçãoà igreja. Deus sabe como nossa igreja precisa.

Não é possível funcionar apenas de salvação eterna.

Ou prometendo algo que não é possível ver, ouvir ou tocar...

– Sim, mãe.

– Você pode ir lá em cima dar uma olhada nas suas irmãs, querida? Peça quevenham me ver quando estiverem de camisola. Estou me sentindo tãocansada esta noite que simplesmente não consigo subir as escadas até oquarto delas.

Uma onda de pânico inundou Kitty.

– Ainda está se sentindo mal, mãe?

– Um dia, minha querida, você vai entender como a gravidez pode drenarsuas energias, principalmente na minha idade. Nós duas vamos jantar às oito,e não há necessidade de se vestir para o jantar, já que seu pai está fora.

Kitty subiu a escada interminável, amaldiçoando o duplo malogro de ser filhade um pastor e a mais velha de uma prole de quatro filhos, em breve cinco.Entrou no quarto das crianças e encontrou Martha, Miriam e Marydisputando uma partida de bolas de gude.

– Ganhei! – gritou Martha, que tinha 14 anos e um temperamento tão teimosoquanto as crenças religiosas do pai.

– Fui eu! – retrucou Mary, fazendo beicinho.

– Na verdade, acho que fui eu – disse Miriam gentilmente.

E Kitty sabia que tinha sido ela.

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– Bem, quem quer que tenha sido, mamãe quer que vocês terminem de selavar, vistam suas camisolas e desçam até a sala para beijá-la.

– De camisola? – Mary parecia chocada. – O que papai vai dizer?

– Papai está jantando com a Sra. McCrombie – disse Kitty quando Aylsachegou ao quarto com uma bacia. – Agora vamos ver o estado do rosto e dopescoço de vocês.

– Importa-se de cuidar delas, Srta. Kitty? Preciso terminar o jantar lá embaixo– suplicou a criada.

– É claro que não, Aylsa.

Como era a única empregada da casa, Kitty sabia que a garota estavacompletamente exausta àquela hora da noite.

– Obrigada, Srta. Kitty.

Então Aylsa assentiu, grata, e saiu depressa do quarto.

Quando as três irmãs estavam vestidas com suas camisolas brancas demusselina, Kitty acompanhou-as até a sala de estar. Enquanto a mãe lhesdava um beijo de boa-noite, pensou que pelo menos sua experiência precoceem cuidar de crianças lhe seria útil quando tivesse os próprios filhos. Então,olhando para a barriga crescida da mãe e o cansaço evidente em seu rosto,pensou que talvez não quisesse ter filhos.

Assim que as irmãs foram mandadas para a cama, Kitty e sua mãe sentaram-se na sala de jantar para comer carne assada, batata e repolho.

Falaram a respeito de assuntos da igreja e também sobre as festas que seaproximavam – para a família McBride, era a época mais atarefada do ano.

Adele sorriu para ela.

– Você é uma boa menina, Kitty, e fico muito feliz com a sua ajuda, dentro

e fora de casa, quando estou... sobrecarregada. É claro que em breve você vai

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ter um marido e sua própria família. Já vai completar 18 anos semana quevem. Meu Deus, nem consigo acreditar.

– Não estou com pressa, mãe – disse Kitty, lembrando-se da última vez que opastor da paróquia de North Leith viera com a esposa tomar chá e aapresentara com entusiasmo a seu filho, Angus.

O jovem ficava vermelho toda vez que falava com seus lábios grossos eúmidos que queria seguir o pai e entrar para a vida religiosa. Kitty tinhacerteza de que ele era um bom rapaz, mas, embora ainda não soubesse o quequeria da vida, certamente não era ser esposa de um pastor. Ou de Angus.

– E eu vou ficar perdida aqui sem você – prosseguiu Adele –, mas um dia vaiser assim.

Kitty decidiu aproveitar o momento, pois não era sempre que ela e a mãeficavam sozinhas.

– Queria lhe perguntar uma coisa.

– O que é?

– Estive pensando se meu pai me deixaria estudar para ser professora.

Quero tanto ter uma profissão. E, como você sabe, gosto de ensinar minhasirmãs.

– Não sei se seu pai aprovaria que você tivesse uma “profissão”, como diz –ponderou Adele, franzindo a testa.

– Ele não veria isso como obra de Deus? Ajudar os menos afortunados aaprender a ler e a escrever? – insistiu Kitty. – E eu não seria mais um fardopara vocês se estivesse ganhando meu próprio sustento.

– Querida, é para isso que serve um marido – disse Adele gentilmente. –

Embora seu pai tenha se entregado abnegadamente ao Senhor e seu caminhotenha nos trazido a Leith, não esqueça que você é uma descendente do clãDouglas. Nenhuma mulher da minha família jamais trabalhou para ganhar a

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vida. Somente por caridade, como nós duas fazemos agora.

– Não consigo entender como alguém, sejam meus avós ou o Senhor, poderiaachar vergonhoso uma mulher trabalhar. Vi um anúncio no jornal pedindoque as jovens estudassem para ser professoras e...

– Você pode perguntar ao seu pai, mas estou certa de que ele vai querer quevocê continue fazendo suas obras de caridade na paróquia até encontrar ummarido adequado. Bem, minhas costas estão doendo nesta cadeira dura.

Vamos voltar para a sala de estar, onde é mais quente e confortável.

Frustrada pela falta de apoio da mãe à ideia que vinha alimentando nasúltimas semanas, Kitty fez o que lhe foi pedido. Sentou-se junto à lareiraenquanto a mãe tricotava algo para o bebê a caminho e fingiu ler um livro.

Vinte minutos depois, ouviram a porta da frente se abrir, anunciando oretorno do reverendo McBride.

– Acho que vou me deitar, mãe – disse Kitty, sem vontade de conversar como pai. Ao cruzar com ele no corredor, fez uma reverência. – Boa noite, pai.Espero que tenha tido um jantar agradável com a Sra.

McCrombie.

– Tive, sim.

– Bem, então, boa noite.

Kitty seguiu para as escadas.

– Boa noite, minha querida.

Poucos minutos depois, Kitty subiu na cama, notando como a aranha haviaenrolado sua teia tão completamente ao redor da varejeira que esta quase nãopodia mais ser vista, e rezando para que o pai não a tivesse prendido em umaarmadilha similar de casamento.

– Por favor, Senhor, qualquer um menos Angus – gemeu ela.

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Na manhã seguinte, Kitty sentou-se à mesa do escritório do pai. Ela seoferecera para terminar a prestação de contas da paróquia enquanto a mãeestava indisposta, tarefa que incluía somar o dinheiro recolhido no prato decoleta da igreja, além de quaisquer outras doações de caridade, e fazer umbalanço disso com o que pareciam ser saídas assustadoramente grandes.

Enquanto trabalhava nas colunas de números daquela semana, ouviu umabatida alta à porta da frente e correu para atender antes que o barulhoacordasse a mãe, que descansava no andar de cima.

Abriu a porta para uma jovem que reconheceu imediatamente como a garotaque aparecera em frente ao presbitério na noite anterior.

– Bom dia. Posso ajudá-la?

– Preciso ver Ralph – disse a moça, com urgência na voz.

– O reverendo McBride está visitando os paroquianos – disse Kitty. –

Quer deixar um recado?

– Você não está mentindo, não é? Acho que ele está se escondendo de mim.

Preciso falar com ele. Agora.

– Como eu falei, ele não está em casa. Quer deixar um recado? – repetiuKitty com firmeza.

– Sim, diga que Annie precisa falar com ele. Avise que não dá para -

esperar.

Antes que Kitty pudesse responder, a jovem virou-se rapidamente e correupara a rua.

Quando fechou a porta da frente, Kitty se perguntou por que ela chamara opai pelo primeiro nome... Quando Ralph chegou em casa, duas horas maistarde, ela bateu hesitantemente à porta do escritório.

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– Entre.

– Desculpe incomodá-lo, pai, mas uma moça apareceu aqui em casa estamanhã.

– É mesmo?

Ralph ergueu os olhos, pousou a caneta e tirou os óculos de leitura.

– E o que ela queria? Alguns trocados, sem dúvida. É o que todos querem.

– Não. Na verdade ela me pediu para dizer que Annie precisa muito falar comvocê. E que não pode esperar. Aparentemente – acrescentou Kitty, meio semjeito.

Após um instante, Ralph recolocou os óculos de leitura e voltou a pegar acaneta. Começou a escrever enquanto Kitty permanecia junto à porta.

– Acho que sei quem é – respondeu ele por fim. – Ela fica em frente à igrejaaos domingos. Fiquei com pena dela uma vez e lhe dei algumas moedas.

Vou falar com ela.

– Tudo bem, pai. Vou sair agora, tenho coisas a fazer.

Kitty retirou-se do escritório e foi depressa pegar o chapéu, o xale e a capa,aliviada por escapar de uma tensão repentina que sentia, mas não sabiadescrever.

No caminho de volta para casa, com uma cesta pesada de ovos, leite, legumese um embrulho encerado cheio de miúdos de carneiro que seu pai adorava e orestante da família apenas tolerava, o vento frio ficou mais forte.

Kitty puxou o xale mais firmemente ao redor dos ombros enquantocaminhava por um beco estreito que oferecia um atalho para a HendersonStreet. A visão de uma figura familiar à sua frente, na escuridão que seintensificava, fez com que se detivesse imediatamente.

Seu pai estava parado junto a uma porta com Annie, a pobre criatura que

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estivera no presbitério mais cedo naquele dia.

Kitty se encolheu nas sombras, o instinto lhe dizendo que não devia serevelar.

Os traços da mulher revelavam dor ou raiva enquanto ela sussurrava algopara ele com voz rouca. Kitty viu Ralph apertar as mãos de Annie comfirmeza, antes de se inclinar para murmurar algo em seu ouvido e plantar umbeijo terno em sua testa. Então, com um aceno, ele se virou e se afastou.Annie ficou ali sozinha, entrelaçando e soltando as mãos sobre a barrigavisivelmente protuberante. Um segundo depois, ela entrou, fechando bem aporta.

Depois de esperar uns bons cinco minutos, Kitty seguiu caminhando paracasa, as pernas trêmulas. Cuidou mecanicamente de suas tarefas, mas suamente não parava de imaginar possíveis respostas para o que tinha visto.

Talvez não fosse o que parecia, talvez seu pai estivesse apenas reconfortandoa pobre mulher em seu sofrimento...

No entanto, no canto mais escuro de sua mente, Kitty já sabia.

Nos dias que se seguiram, ela evitou o pai o máximo que pôde, o que foifacilitado pela aproximação de seu décimo oitavo aniversário. A casafervilhava de agitação e segredos ante a perspectiva de uma celebração, suasirmãs expulsando-a do quarto para sussurrar conspiradoramente, e seus paispassando um tempo juntos na sala de estar com a porta

firmemente fechada.

Na véspera de seu aniversário, Ralph encontrou Kitty enquanto ela subia paraa cama.

– Minha querida Katherine, amanhã você não será mais uma criança.

– Sim, pai.

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Kitty não conseguiu olhar em seus olhos.

– Você é uma bênção para mim e para sua mãe. – Ralph se inclinou e beijou-a na bochecha. – Boa noite e que Deus a abençoe.

Kitty agradeceu com um gesto e continuou a subir as escadas.

Na cama, puxou as cobertas sobre a cabeça, tremendo com o frio do fim deoutono.

– Senhor – suspirou. – Perdoe-me, porque já não tenho certeza sobre quemmeu pai é.

Aylsa já estava pronta para acender a lareira quando Kitty desceu as escadasna manhã seguinte. Como precisava de um pouco de ar fresco para clarear aconfusão e aliviar a exaustão de mais uma noite maldormida, saiu de casa ecaminhou em direção às docas.

Parou para se sentar em uma mureta, observando o lento despertar do céu,que emitia tons de roxo e rosa por toda sua incrível extensão. Então, viu umafigura emergir da rua da qual acabara de vir. Era Annie. Ela devia ter vistoKitty passando pelo beco e decidido ir atrás dela.

Seus olhares se encontraram quando a mulher se aproximou.

– Ele veio me ver – disse Annie bruscamente, olheiras de exaustão evidentesem seu rosto. – Ele não pode mais se esconder atrás de Deus.

Sim, ele sabe a verdade!

– Eu...

Kitty afastou-se dela.

– O que devo fazer? – perguntou Annie. – Ele me deu algumas moedas emandou que eu me livrasse dele. Não posso, já estou muito adiantada.

– Eu não sei, sinto muito, eu...

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– Ah, você sente muito! Ora essa! Seu pai é que deveria sentir muito.

– Eu tenho que ir. Realmente peço desculpas – repetiu Kitty, enquanto selevantava, segurava as saias e tomava o caminho de casa.

– Ele é o diabo! – gritou Annie atrás dela. – Essa é a verdade!

De alguma forma, Kitty conseguiu sobreviver ao resto do dia – abriu osatenciosos presentes caseiros de suas irmãs e soprou as velas do bolo queAylsa tinha preparado especialmente para ela. Procurou conter um tremorquando Ralph a beijou e abraçou: um gesto natural que, até alguns dias antes,costumava alegrá-la. Agora, de alguma forma, parecia impuro.

– Minha querida, você se tornou uma boa moça – disse Adele, orgulhosa.

– Rezo para que em breve tenha sua própria família e seja a senhora de suaprópria casa.

– Obrigada, mamãe – respondeu Kitty baixinho.

– Querida Katherine, minha menina especial – disse o pai. – Felizaniversário, e que o Senhor abençoe seu futuro. Creio que Ele tem algoespecial em mente para você, minha querida.

Mais tarde naquela noite, Kitty foi chamada até o escritório vazio do pai, queficava nos fundos da casa, de frente para uma parede de tijolos. Ele sempredizia que o fato de não ter vista o ajudava a se concentrar nos sermões.

– Katherine, venha e sente-se. – Ralph indicou a cadeira de madeira comencosto duro no canto da sala. – Bem, você sabe que jantei com a Sra. -

McCrombie recentemente, não é?

– Sim, pai.

Sempre que Kitty olhava para a benfeitora de seu pai do outro lado docorredor da igreja, via uma mulher rechonchuda de meia-idade,extravagantemente vestida, que parecia deslocada em meio às pessoas maispobres em volta. A Sra. McCrombie nunca os visitava em casa. Em vez disso,

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seu pai ia vê-la em sua grandiosa residência, perto da Princes Street. Portanto,as conversas que haviam tido resumiam-se a um “bom dia” educado casoseus caminhos se cruzassem fora da igreja depois da cerimônia.

– Como você sabe, Katherine, a Sra. McCrombie sempre foi uma generosabenfeitora da nossa igreja e da nossa comunidade – disse Ralph. – Seu filhomais velho entrou para o clero, mas foi morto na primeira Guerra dos Bôeres.

Imagino que ela me veja como seu substituto e, é claro, doe à igreja emmemória dele. Ela é uma boa mulher, uma cristã que quer ajudar os menosafortunados, e me sinto eternamente grato que tenha escolhido minha igrejapara fazer caridade.

– Sim, pai.

Kitty se perguntava aonde ele pretendia chegar, e esperava que a conversaterminasse logo. Afinal, era seu aniversário de 18 anos, e, naquele momento,ela mal podia suportar respirar o mesmo ar que ele.

– A questão, como você sabe, é que a Sra. McCrombie tem família naAustrália. Parece que faz muitos anos que ela não vê a irmã mais nova, ocunhado e os dois sobrinhos, que moram em uma cidade chamada Adelaide,na costa sul. E ela decidiu que precisa visitá-los enquanto goza de boa saúde.

– Sim, pai.

– E... ela está procurando alguém para acompanhá-la nessa longa jornada.

Obviamente, a garota deve vir de um bom lar cristão e ser capaz de ajudá-lanos cuidados com seu guarda-roupa, vesti-la e tudo o mais.

Então... eu sugeri você, Katherine. Você vai ficar longe por mais ou menosnove meses.

Conversei com a sua mãe e acho que esta é uma maravilhosa oportunidadepara você conhecer outra parte do mundo e aquietar esse

seu espírito aventureiro.

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Kitty estava tão chocada com a ideia que nem sabia o que responder.

– Pai, estou contente aqui. Eu...

– Esse é o seu espírito, Kitty, assim como era o meu antes que eu encontrasseo Senhor...

Kitty viu os olhos do pai deixarem o rosto dela e viajarem para algum lugardistante em seu passado. Após algum tempo, voltaram a se focar nela.

– Sei que você está em busca de um propósito, e vamos rezar para queencontre isso um dia sendo uma boa esposa e mãe. Mas, por enquanto, o queme diz?

– Na verdade, não sei o que dizer – respondeu ela honestamente.

– Vou lhe mostrar a Austrália no atlas. Você talvez tenha ouvido falar que éum país perigoso e desconhecido, cheio de nativos pagãos, mas a Sra.

McCrombie me assegurou que Adelaide é uma cidade tão civilizada quantoEdimburgo. Muitos de nossa fé navegaram para lá na década de 1830 paraescapar da perseguição. Ela contou que existem várias belas igrejas luteranase presbiterianas lá. É um lugar temente a Deus e, sob a proteção da Sra.

McCrombie, não hesito em mandá-la até lá.

– E eu vou... ser paga por meus serviços?

– É claro que não, Katherine! A Sra. McCrombie está financiando umacabine para você e cobrindo todas as outras despesas. Você tem ideia dequanto custa uma viagem dessas? Além disso, acho que é o mínimo quenossa família pode fazer, considerando o que ela tem doado tãogenerosamente para a nossa igreja ao longo dos anos.

Então, em troca, serei oferecida em sacrifício.

– Bem, minha querida, o que você acha?

– Você é que sabe o que é melhor para mim, pai – conseguiu dizer, baixando

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os olhos para que ele não pudesse ver a expressão de raiva. –

Mas e a mamãe, quando o bebê chegar? Com certeza ela vai precisar daminha ajuda.

– Conversamos sobre isso, e assegurei à sua mãe que, quando chegar a hora,vou cuidar para que haja recursos disponíveis e possamos contratar ajudaextra.

Em todos aqueles anos no presbitério, nunca houvera “recursos” para

“contratar ajuda extra”.

– Katherine, fale comigo – implorou Ralph. – Não gostou da ideia?

– Eu... não sei. Foi tudo... uma surpresa.

– Compreendo... – Ralph se inclinou e pegou as mãos da filha, seus olhoshipnotizantes fitando os dela. – Naturalmente, você deve estar confusa.

Agora me ouça. Quando conheci sua mãe, eu era capitão do 92o Highlanderse nosso futuro parecia estabelecido. Então, fui enviado para lutar na Guerrados Bôeres. Vi muitos de meus amigos e inimigos serem mortos pelas armasde outros homens. E então eu mesmo fui baleado na

Batalha do Monte Majuba.

No hospital, depois, tive uma epifania. Rezei naquela noite dizendo que, sefosse salvo, me dedicaria a Deus, daria a vida para tentar deter a injustiça e osassassinatos sangrentos que tinha visto. Na manhã seguinte, quando osmédicos nem esperavam que eu tivesse sobrevivido à noite, eu acordei.Minha temperatura tinha baixado e a ferida em meu peito cicatrizou empoucos dias.

Foi então que entendi qual caminho eu deveria seguir. Sua mãe tambémentendeu; ela sente o amor de Deus, mas, quando fiz o que senti que devia,ela sofreu, assim como você e suas irmãs. Você entende, Katherine?

– Sim, pai – respondeu Kitty automaticamente, embora não entendesse.

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– Esta viagem para a Austrália com a Sra. McCrombie é uma abertura para otipo de sociedade da qual a família de sua mãe faz parte. Só porque sinto anecessidade de salvar almas não significa que o futuro de minhas filhas deveser restringido. Tenho certeza de que, se você se comportar bem nestaviagem, a Sra. McCrombie ficará feliz em apresentá-la a um círculo maisamplo de jovens cavalheiros aqui e na Austrália, mais adequados a você doque qualquer um que eu pudesse conseguir, dada a nossa humilde condiçãofinanceira. Ela sabe do meu sacrifício para promover a obra do Senhor e dasaspirações da família de sua mãe em Dumfriesshire. A Sra. McCrombie sóquer fazer o melhor por você, Katherine. E eu também. E agora, vocêentende?

Kitty olhou para o pai, depois para as suaves mãos que seguravam as suas, euma lembrança espontânea de um momento semelhante fez com que aspuxasse de volta. Finalmente compreendeu as maquinações da mente do pai eseu plano para se livrar dela.

– Sim, pai, se você acha que é melhor, eu vou com a Sra. McCrombie para aAustrália.

– Maravilha! É claro que você vai ter que conhecer a Sra. McCrombie antes,para que ela possa ver por si mesma que boa menina você é, certo?

– Sim, pai. – Kitty sabia que devia sair do escritório antes que a raivatransbordasse e ela cuspisse no rosto dele. – Posso ir agora? – perguntoufriamente, levantando-se da cadeira.

– É claro.

– Boa noite.

Kitty fez uma reverência, então se virou e quase saiu correndo em direção aoquarto.

Depois de trancar a porta, jogou-se na cama.

– Hipócrita! Mentiroso! Traidor! E minha pobre mãe, sua esposa, esperandoum filho também! – disparou contra o travesseiro.

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Então desabou em longos e sufocados soluços de um choro desesperado.

Por fim, levantou-se, vestiu sua camisola e escovou o cabelo em frente aoespelho. Seu reflexo pálido brilhava à luz do lampião.

Você sabe que eu sei quem você é , pai. E é por isso que está me mandandoembora.

7

– Seu pai é uma inspiração para mim, Srta. McBride, e tenho certeza de quepara você também.

– É claro – mentiu Kitty enquanto bebia o chá Earl Grey de uma delicadaxícara de porcelana.

Estavam sentadas no grande salão bem aquecido de um casarão na St.

Andrew Square, um dos endereços mais procurados de Edimburgo. A salaestava cheia de objetos que eram mais elegantes do que aqueles que tinhavisto no empório da Srta. Anderson. Havia uma cristaleira em frente a umadas paredes cheia de estatuetas de querubins, vasos chineses e placasdecorativas.

Um lustre de cristais banhava tudo numa luz suave que reluzia dos móveis demogno polidos. A Sra. McCrombie obviamente não era de esconder suariqueza.

– Tão devotado ao seu rebanho e negando a si mesmo e à própria famíliatodas as vantagens que o direito nato de sua mãe poderia ter dado a ele.

– Sim – respondeu Kitty automaticamente.

Então, fitando os olhos vidrados de sua futura patroa, Kitty percebeu que aSra. McCrombie parecia uma jovem apaixonada. Também reparou naquantidade de pó que ela havia passado na pele, e pensou quanto devia custarpara cobrir todas as rugas que se espalhavam por seu rosto. O

rubor em seu nariz e bochechas revelava o tanto de uísque que ela havia

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tomado.

– Srta. McBride?

Kitty percebeu que a Sra. McCrombie ainda falava com ela.

– Perdoe-me. Eu estava admirando aquela maravilhosa pintura –

improvisou Kitty, apontando para uma pobre reprodução de Jesus carregandoa cruz até o calvário.

– Essa foi Rupert, meu amado filho, quem pintou. Pouco antes de partir paraa Guerra dos Bôeres e acabar nos braços de Jesus. Era quase como se elesoubesse... Que Deus abençoe sua alma. – Ela sorriu calorosamente paraKitty.

– Você tem mesmo um olho bom para arte.

– Com certeza admiro a beleza – respondeu Kitty, aliviada por ter conseguidodizer a coisa certa.

– Então o crédito é seu, minha querida, considerando que havia tão poucabeleza ao seu redor durante a infância, devido ao sacrifício do seu queridopai. Mas pelo menos você vai estar preparada para o que podemos encontrarem Adelaide. Mesmo que minha irmã me assegure que eles têm todas asconveniências modernas que aprecio aqui em Edimburgo, não consigoacreditar que um país tão jovem possa

competir com a cultura secular daqui.

– Estou bastante curiosa em relação a Adelaide.

– Eu não – retrucou a Sra. McCrombie com firmeza. – No entanto, sinto queé meu dever visitar minha irmã e meus sobrinhos pelo menos uma vez antes

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de morrer. E, como eles parecem pouco inclinados a vir aqui, tenho que ir atélá. – A Sra. McCrombie deu um suspiro triste enquanto Kitty tomava um golede chá. – A viagem deve levar pelo menos um mês a bordo do Oriente, umnavio que minha irmã Edith garantiu que oferece todo o conforto. Noentanto...

– O que foi, Sra. McCrombie?

– Se você me acompanhar, não haverá nenhuma confraternização comrapazes a bordo do navio. Nada de festejos, nada de idas a bailes nos salõesda classe inferior. Você vai dividir uma cabine com outra jovem e deveráficar disponível para mim a qualquer momento. Entendido?

– Sim.

– Minha irmã também me avisou que, mesmo que seja inverno aqui, lá vaiser verão. Mandei fazer alguns vestidos de algodão e musselina, e sugiro quevocê leve trajes semelhantes. Resumindo, o clima estará quente.

– Sim, Sra. McCrombie.

– Tenho certeza de que você sabe que é muito bonita, minha querida.

Espero que não seja uma daquelas garotas que desmaia ao mero olhar de umhomem.

– Nunca pensei em mim dessa forma – disse Kitty, pensando em sua pelesardenta –, mas posso lhe assegurar que não farei nada disso. Afinal, meu paié pastor na igreja e me ensinaram a ter recato.

– Seu pai me contou que você sabe costurar e remendar. E fazer penteados.

– Sempre faço em minha mãe e minhas irmãs – mentiu Kitty, imaginandoque uma mentirinha não faria diferença.

Ela estava indo para a Austrália, assunto encerrado.

– Você costuma ficar doente?

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A Sra. McCrombie ergueu os óculos para observar Kitty com mais -

atenção.

– Minha mãe falou que sobrevivi à difteria e ao sarampo, e raramente ficoresfriada.

– Não acho que essa vá ser a nossa maior preocupação na Austrália, embora,é claro, eu vá embalar um pouco de óleo de cânfora para o meu peito.

Bem, agora há pouco a discutir. Voltamos a nos encontrar no dia 13 denovembro. – A Sra. McCrombie levantou-se e ofereceu-lhe a mão. –

Tenha um bom dia, Srta. McBride. Vamos cruzar juntas o oceano em umagrande aventura.

– Sim, vamos. Adeus, Sra. McCrombie.

Kitty passou as duas semanas seguintes arrumando o pequeno baú que seupai havia comprado. Seguir os passos de Darwin logo depois de ler seuslivros era algo inacreditável. Talvez ela devesse estar assustada: afinal decontas, tinha lido o suficiente para saber que os nativos da Austrália eramextremamente hostis com relação ao homem branco, e que falava-se até emcanibalismo. Mas duvidava que a Sra. McCrombie fosse se aventurar emqualquer lugar desse tipo.

A casa ficava em silêncio enquanto trabalhava noite adentro em sua máquinade costura, fazendo vestidos simples que esperava serem adequados ao calor.Assim, pelo menos, conseguia se concentrar em alguma coisa, em vez deficar pensando em seu pai e Annie. Sabia que tinha uma última coisa a fazerantes de viajar.

Na manhã de sua partida, Kitty acordou antes do amanhecer e saiu depressade casa antes que alguém a visse. Então, seguiu pelo beco que levava até ocais, tentando se acalmar com a visão das paisagens e os sons de Leith umaúltima vez. Era o único lar que ela conhecera ao longo de seus 18 anos e sepassaria uma eternidade antes de ela poder voltar.

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Chegou à porta de Annie, inspirou fundo e bateu com cautela. Algum tempodepois, a porta se abriu e Annie apareceu, usando uma bata e um aventalesfarrapados. Seus olhos examinaram brevemente o rosto de Kitty, antes queela se afastasse em silêncio a fim de deixá-la entrar.

O pequeno cômodo era esparsamente mobiliado e frio. O colchão de crina decavalo manchado não tinha bom aspecto, mas pelo menos o chão havia sidovarrido e a mesa rústica de madeira no centro da sala parecia bem polida.

– Eu... vim ver como você estava – começou Kitty, hesitantemente.

Annie assentiu.

– Estou bem. E a criança também.

Kitty se forçou a olhar para a graciosa barriga, que abrigava aquele que logoseria seu meio-irmão ou meia-irmã.

– Juro que não sou uma pecadora – disse Annie com a voz rouca. Kittyergueu o rosto e viu lágrimas em seus olhos. – Eu só... só estive com oreverendo duas vezes. Confiei no amor de Deus, no amor de seu pai, e queEle... Ralph me guiaria. Eu...

Ela desviou o olhar de Kitty e foi até uma cômoda no canto, procurando algoem uma gaveta.

Voltou com óculos de leitura, que Kitty reconheceu imediatamente.

Eram idênticos aos que seu pai usava para escrever os sermões.

– Ralph os deixou aqui na última vez que veio me ver. Prometi que iriaguardar segredo do que aconteceu. Fiz uma promessa a Deus e tudo.

Devolva isso ao reverendo. Não quero mais nada dele sob o meu teto.

Kitty pegou os óculos das mãos de Annie, imaginando se vomitaria pelochão. Então enfiou a mão nas saias e puxou um saquinho de tecido com umcordão.

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– Tenho algo para você também.

Ela entregou o saquinho a Annie. Annie o abriu, olhou o que havia dentro ese engasgou.

– Senhorita, não posso aceitar isso, não posso.

– Pode, sim – insistiu Kitty.

Durante as últimas duas semanas, ela havia escondido moedas das doações daparóquia e, na noite anterior, pegara um maço de notas da lata que o paimantinha trancada em uma gaveta. Era uma soma grande o suficiente paragarantir o futuro sustento de Annie e do bebê, pelo menos até que ela pudesse

voltar a trabalhar. Quando Ralph desse pela falta do dinheiro, Kitty estaria acaminho do outro lado do mundo.

– Então, obrigada.

Annie tirou outra coisa que havia na bolsinha... uma pequena cruz de prataem uma corrente. Passou os dedos por ela, incerta.

– Ganhei de batismo dos meus avós – explicou Kitty. – Quero que guardepara... a criança.

– É gentil da sua parte, Srta. McBride. Muito gentil. Obrigada.

Os olhos de Annie brilhavam, lacrimejantes.

– Estou partindo para a Austrália hoje... Vou ficar fora alguns meses, mas,quando voltar, posso vir visitá-los?

– É claro, senhorita.

– Enquanto isso, gostaria que anotasse o endereço de onde vou ficar. Em casode emergência.

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Kitty estendeu um envelope e então se sentiu tola... Não fazia ideia se amulher sabia ler ou escrever, muito menos se saberia enviar uma carta paraoutro país. Mas Annie apenas assentiu e pegou o envelope.

– Nunca esqueceremos sua bondade – disse a jovem enquanto Kitty se dirigiaaté a porta. – Adeus, senhorita. E que o Senhor a proteja em sua viagem.

Kitty saiu da casa, caminhou em direção às docas e parou perto do quebra-mar, vendo as gaivotas pairarem sobre o mastro de um navio que seaproximava ruidosamente do porto. Pegou os óculos de leitura do bolso dasaia e os atirou o mais distante que pôde na água cinzenta lá embaixo.

– Até mesmo Satanás se disfarça como um anjo de luz – murmurou. –

Que Deus ajude meu pai e minha pobre e iludida mãe.

– Tudo pronto?

Adele apareceu à porta do quarto de Kitty.

– Sim, mãe – respondeu ela, fechando o baú e pegando o chapéu de palha.

– Vou sentir muitíssimo a sua falta, minha querida.

Adele aproximou-se da filha e envolveu-a num abraço.

– Eu também, mãe, principalmente porque o bebê vai nascer sem que suairmã mais velha esteja presente. Por favor, cuide-se enquanto eu não

estiver aqui, está bem?

– Não se preocupe, Kitty. Tenho seu pai, Aylsa e suas irmãs. Pode deixar quelhe envio um telegrama assim que ele ou ela chegar ao mundo. –

Adele enxugou uma lágrima do rosto da filha. – Kitty, por favor, não chore.Pense nas histórias que terá para nos contar quando voltar para casa. Sãoapenas nove meses, o mesmo tempo que leva para um bebê nascer.

– Desculpe, é que vou sentir tanto a sua falta...

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Kitty soluçou no ombro reconfortante da mãe. Pouco depois, parada à portada frente enquanto o baú era colocado na carruagem da Sra.

McCrombie, começou a abraçar as irmãs.

Miriam, em particular, chorava desconsoladamente.

– Minha querida Katherine, como sentirei sua falta. – Ralph a abraçou e elaficou tensa e imóvel nos braços do pai. – Lembre-se de orar todos os dias, eque o Senhor esteja convosco.

– Adeus, pai – conseguiu dizer.

Em seguida, desvencilhou-se dele com um último aceno para sua amadafamília, subiu na carruagem e o cocheiro fechou a porta.

Enquanto o RMS Oriente apitava e começava a se afastar do cais, Kitty ficouno convés vendo os companheiros de viagem gritarem suas despedidas paraos parentes lá embaixo. O cais estava repleto de pessoas dizendo adeus,agitando bandeiras britânicas e uma ou outra australiana. Não havia ninguémpara acenar para ela, mas, pelo menos, ao contrário de muitas pessoas ao seuredor, ela sabia que voltaria à costa inglesa.

À medida que as pessoas se tornavam figuras indistinguíveis e o navio seguiapelo estuário do Tâmisa, o silêncio pairava sobre os que a rodeavam e cadaum dos passageiros percebia a enormidade da decisão que havia tomado.

Enquanto se dispersavam, ela ouvia um ou outro choro – e sabia que eles seperguntavam se algum dia voltariam a encontrar seus entes queridos.

Embora ela já tivesse visto muitas vezes as grandes embarcações queancoravam no porto de Leith, agora parecia uma tarefa hercúlea para aquelenavio a vapor levá-los através dos mares com segurança para o outro lado domundo, apesar da altura impressionante das duas chaminés e dos mastroscom suas velas.

Ao descer as estreitas escadas até o corredor da segunda classe, onde ficavasua cabine, Kitty teve a sensação de que toda aquela experiência estava

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acontecendo com outra pessoa. Então abriu a porta, perguntando-se como iriadormir com o barulho dos enormes motores, e fez uma curva para fechar aporta. O quarto – se é que se poderia chamar assim, uma vez que mais pareciaum corredor estreito e curto –

tinha duas camas que lembravam caixões e um pequeno armário. No canto,havia uma pia, e Kitty percebeu que estava aparafusada ao chão, assim comotoda a mobília.

– Olá. Você é minha nova colega de quarto?

Olhos brilhantes cor de avelã emoldurados por cabelos escuros encaracoladosapareceram por cima da grade de madeira da cama de cima.

– Sim.

– Meu nome é Clara Dugan, como vai?

– Muito bem, obrigada. O meu é Kitty McBride.

– Da Escócia, não é?

– Sim.

– Eu sou do bom e velho East End londrino. Para onde você vai?

– Adelaide.

– Nunca ouvi falar. Eu vou para Sydney. Suas roupas são bem elegantes. É

criada de alguém?

– Não. Quer dizer... sou dama de companhia.

– Ah, entendo – disse Clara, mas não de maneira indelicada. – Bem, se temuma coisa que eu sei sobre as pessoas de classe social superior, a menos quesua senhora tenha trazido uma criada também, é que você vai ter que buscar e

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carregar tudo a bordo. E limpar o vômito dela quando o mar estiver agitado.

Meu irmão Alfie me contou que o navio todo ficava fedendo por dias quandohavia uma tempestade. Ele já está lá, tentando ter uma vida boa.

E me disse para economizar dinheiro para não precisar ir de terceira classe.Cinco almas morreram nessa travessia – acrescentou Clara. –

Trabalhei noite e dia durante dois anos em uma fábrica para pagar pela minhacabine. Mas vai valer a pena, se chegarmos lá.

– Meu Deus! Então vamos torcer para que nossa viagem seja mais tranquilaque as outras.

– Posso ser quem eu quiser quando chegar lá. Estarei livre! Não é o máximo?

Os olhos brilhantes de Clara dançavam de alegria.

Ouviram, então, uma batida repentina à porta, e Kitty foi abri-la. Um jovemcamareiro sorria para ela.

– Você é a Srta. McBride?

– Sim.

– A Sra. McCrombie pediu que você vá até a cabine dela, pois precisa deajuda para tirar as coisas do baú.

– Claro.

Enquanto Kitty seguia o camareiro para fora da cabine, Clara deitou-se comum sorriso irônico.

– Bem, pelo menos algumas pessoas são livres! – gritou para Kitty.

Depois de uma primeira noite turbulenta, tendo sonhos febris comtempestades, naufrágios ou nos quais era comida viva por nativos, todos

pontuados por roncos altos que vinham da cama acima, os dias de Kitty logo

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entraram numa rotina e começaram a passar rapidamente.

Enquanto Clara dormia até tarde, Kitty acordava às sete para se lavar, vestir earrumar os cabelos. Depois, caminhava pelo corredor que balançavaligeiramente com o movimento do mar e subia as escadas para a primeiraclasse no convés.

Tinha se acostumado com o balanço do mar quase que imediatamente e,quando enfrentaram o que a tripulação chamou de “um balanço suave”, eClara e a Sra. McCrombie foram se deitar, ficou surpresa ao perceber que sesentia muito bem. Isso lhe rendeu muitos elogios da tripulação,principalmente de George, o camareiro pessoal da Sra. McCrombie, queClara dizia estar de “olho” nela.

Em comparação com a escassa decoração das cabines da segunda classe, aacomodação da primeira era absolutamente suntuosa. O chão era coberto portapetes felpudos com intrincados desenhos de William Morris, a mobília delatão era polida até ficar brilhando e painéis de madeira primorosamenteentalhados adornavam as paredes. A Sra.

McCrombie estava bastante à vontade, usando todas as noites no jantar umavariedade de vestidos extravagantes.

Kitty passava a maior parte das manhãs atendendo aos pedidos dela, queincluíam um monte de remendos. Ela suspirava diante das costuras rasgadasnos espartilhos e corpetes, e acabou concluindo que, por vaidade, a Sra.

McCrombie devia ter se recusado a revelar seu verdadeiro tamanho para acostureira. Na hora do almoço, ia para a sala de jantar da segunda classe ecomia com Clara. Kitty ficava espantada ao ver como a comida era fresca, ecom a destreza dos garçons, que carregavam bandejas com pratos e bebidasde um andar para outro, por vezes lotados. Na parte da tarde, dava um passeiorevigorante pelo tombadilho, depois ia com a Sra.

McCrombie até o salão da primeira classe para jogar cartas.

À medida que o navio avançava para o sul através do Mediterrâneo, parandobrevemente em Nápoles antes de seguir para Port Said e passar pelo canal de

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Suez, o tempo foi ficando mais quente. Embora a Sra.

McCrombie tivesse se recusado a deixar o navio quando atracou, dizendo quepoderiam pegar alguma “praga mortal de um dos nativos”, ao olhar paraaquelas praias estrangeiras incrivelmente exóticas, Kitty começava a se sentirtomada pela ânsia de aventura.

Pela primeira vez na vida, ela desprezou as regras e dançou em animadasceilidhs, que aconteciam no salão enfumaçado, com iluminação a gás, daterceira classe. Clara praticamente a arrastara e Kitty ficara recatadamentesentada a distância enquanto via a amiga se divertir dança após dança ao somanimado da banda celta. Mas fora logo persuadida a se juntar ao grupo, erodopiava de um rapaz para outro, todos se comportando como perfeitoscavalheiros.

Ela também se afeiçoara à Sra. McCrombie, que, depois de um uísque ou

três à hora do coquetel, exibia um senso de humor ferino, contando piadasque certamente teriam provocado um ataque cardíaco em seu pai. Foi duranteuma dessas noites que a Sra. McCrombie lhe confidenciou estar nervosa parao reencontro com a irmã mais nova.

– Não vejo Edith desde que ela fez 18 anos. Não era muito mais velha do quevocê, minha jovem, quando partiu para a Austrália para se casar com oquerido Stefan. Ela é quase quinze anos mais nova do que eu... O

nascimento dela foi um choque e tanto para o meu pai. – A Sra.

McCrombie abriu um ligeiro sorriso e depois arrotou discretamente. –

Edith também não se parece nada comigo – acrescentou a Sra.

McCrombie, enquanto fazia um gesto para um garçom encher seu copo. –

E imagino que você saiba que seu pai era um galanteador quando minhafamília o conheceu naquela época.

– É sério? Meu Deus – respondeu Kitty de maneira neutra.

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Esperava que a Sra. McCrombie explicasse melhor, mas a atenção da patroajá fora roubada pela banda do navio, que começava a tocar, e a conversa nãofoi adiante.

À medida que se aproximavam de Port Colombo, no Ceilão, o Oriente passoupor mares agitados. Kitty permaneceu de pé, cuidando tanto da Sra.

McCrombie quanto de Clara quando elas ficavam enjoadas, e pensou que oenjoo era de fato um nivelador social, já que nenhum dinheiro do mundoseria capaz de impedi-lo. Passageiros de todas as classes ficavam à mercê dasondas agitadas, e os camareiros do navio estavam ocupados distribuindoinfusões de gengibre, que supostamente acalmavam o estômago. Kitty nãopodia impedir a Sra. McCrombie de acrescentar generosas doses de uísque àssuas bebidas medicinais, alegando que

“nada vai fazer parar esse terrível rodopio, então posso muito bem continuarbebendo, minha querida”.

Enquanto atravessavam o oceano Índico, o imenso território australiano comouma terra prometida diante deles, Kitty enfrentou um calor mais forte do quejamais poderia ter imaginado. Ela estava sentada com a Sra.

McCrombie no tombadilho – o melhor lugar para pegar uma brisa –, com umlivro da biblioteca do navio, e ponderava como adquirira sua própriaidentidade. Não era mais apenas a filha do reverendo McBride, mas umamulher capaz, que se acostumara ao balanço do mar melhor do que qualqueroutra mulher que George – o camareiro da sra. McCrombie – já conhecera, ese mantinha firme ali sem precisar da proteção da mãe e do pai.

Enquanto olhava para o céu sem nuvens, o horror do que descobrira poucoantes de partir felizmente ia ficando para trás, junto com a Escócia. Quando aSra. McCrombie anunciou que estavam a apenas uma semana de distância doseu destino, Kitty sentiu o estômago se revirar de um jeito que nada tinha aver com o movimento do navio. Aquela era a terra de Darwin – a terra de umhomem que não se escondeu atrás de

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Deus para explicar seus próprios motivos ou crenças, mas que celebrava opoder e a criatividade da natureza. O melhor e o pior dela em toda a suabeleza, crueza e crueldade, visível a todos. A natureza era honesta, semfanatismo ou hipocrisia.

Se pudesse encontrar uma metáfora precisa para descrever como se sentianaquele momento, Kitty concluiu que seria como a Sra.

McCrombie se livrando dos espartilhos apertados para respirar novamente.

A maioria dos passageiros encontrava-se no convés na manhã em que oOriente estava perto de avistar a costa australiana. A agitação e a ansiedadeeram palpáveis enquanto todos esticavam o pescoço para ver o lugar que,para tantos a bordo, seria seu lar e o início de uma nova vida.

Quando avistaram a costa, um estranho silêncio tomou conta do convés.

Entre o azul do mar e o céu cintilante havia uma estreita camada de terravermelha.

– Bem plano, não é? – disse Clara, dando de ombros. – Não vejo nenhumacolina.

– É – respondeu Kitty com ar sonhador, quase sem acreditar que estavarealmente vendo o que antes parecia apenas um ponto inacessível no atlas.

Quando o navio entrou no porto de Fremantle e ancorou, os gritos decomemoração começaram. Kitty tinha a impressão de que era ainda maior doque o porto de Londres, onde haviam embarcado, e ficou espantada com osnavios de carga e de passageiros incrivelmente altos que disputavam espaçono cais, e as multidões de todos os credos e cores lá embaixo, cuidando desuas vidas.

– Santo Deus! – Clara lançou os braços em volta de Kitty. – Nós chegamosmesmo à Austrália! E agora?

Kitty observou os passageiros desembarcarem, agarrados a seus pertences efilhos. Poucos foram recebidos por amigos ou parentes. A maior parte

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permaneceu na doca parecendo confusa e atordoada sob o sol brilhante, atéser agrupada e levada por um oficial. Kitty admirava cada uma dessaspessoas pela coragem de deixar seu país de origem em busca de uma vidanova e melhor ali.

– Um bando de gente rude, pelo que pude ver – comentou a Sra. -

McCrombie durante um almoço no salão em que foram servidas costeletas decordeiro. – Mas, por outro lado, a Austrália foi inicialmente povoada pelaescória da sociedade, enviada da Inglaterra. Condenados e criminosos, todoseles. Tirando Adelaide, é claro, que foi construída para incentivar pessoasmais... refinadas a estabelecerem a vida lá. Edith me disse que é uma boacidade, temente a Deus.

Ela aguçou o ouvido nervosamente quando o som anasalado e desconhecidodas vozes australianas entrou pelas janelas abertas, e abanou-se com forçaquando gotas de suor brotaram em sua testa.

– Só posso esperar que a temperatura em Adelaide seja mais amena do queaqui – continuou. – Meu Deus, não é de admirar que os nativos corram por aísem roupa. O calor é insuportável.

Depois do almoço, a Sra. McCrombie foi para a cabine tirar uma soneca, eKitty voltou ao convés, fascinada com o gado que ainda estava sendodesembarcado. Os animais pareciam magros e desnorteados enquantodesciam aos tropeços pela prancha.

– Tão longe dos campos verdes e frescos de casa – sussurrou para si mesma.Na manhã seguinte, o navio voltou a partir, com destino a Adelaide. Kitty

passou os dois dias que antecederam sua chegada arrumando o extensoguarda- roupa da Sra. McCrombie nos baús.

– Talvez você possa vir me visitar em Sydney quando eu estiver instalada,que tal? Não pode ser tão longe assim entre uma cidade e outra, não é?Parecia perto no mapa – disse Clara, durante o último almoço juntas a bordo.

Naquela noite, Kitty perguntou a George se essa viagem era possível, e ele

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riu de sua ignorância.

– Acho que, em linha reta, são mais de mil quilômetros entre Adelaide eSydney. E, mesmo assim, você teria que passar por tribos com lanças, issosem falar nos cangurus, além de cobras e aranhas que podem matá-

la com uma picada. Você olhou no mapa, Srta. McBride, e se perguntou porque não há cidades no interior da Austrália? Nenhum homem branco é capazde sobreviver por muito tempo no Outback.

Quando Kitty se acomodou para dormir em sua última noite a bordo, fez umaoração: – Por favor, Senhor, não me importo com serpentes, cangurus, nemmesmo selvagens, mas, por favor, não permita que me cozinhem viva!

Enquanto o Oriente navegava para o porto de Adelaide, Kitty se despediu deClara, que não parava de chorar.

– Então é adeus. Foi bom conhecê-la, Kitty. Promete que vai me escrever?

As jovens se abraçaram com força.

– Lógico que vou. Fique bem, Clara, e espero que todos os seus sonhos serealizem.

Enquanto Kitty ajudava a Sra. McCrombie a descer, também se sentiu à beiradas lágrimas. Só agora, na hora do desembarque, percebeu quanto sentiriafalta dos amigos que havia feito a bordo.

– Florence!

Kitty viu uma mulher elegante e magra, de cabelo castanho-avermelhado,acenar e caminhar em direção a elas.

– Edith!

As duas irmãs trocaram um beijo contido no rosto. Kitty caminhou atrás delasenquanto um condutor uniformizado as levava até uma carruagem.

Observou o traje de Edith – um vestido de brocado abotoado até o pescoço,

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sem falar do espartilho e das calças folgadas que deviam estar por baixo – ese perguntou como ela suportava o calor. Tudo que Kitty desejava eramergulhar completamente nua nas águas frias que batiam nas docas.

Quando chegaram à carruagem, um garoto pequeno com a pele mais negraque Kitty já vira estava colocando os baús no suporte traseiro.

– Meu Deus! – A Sra. McCrombie virou-se para ela de repente. – Em minhaempolgação ao vê-la, querida irmã, esqueci de apresentá-la à Srta.

Kitty McBride, a filha mais velha de um dos queridos amigos da nossafamília, o reverendo McBride. Ela foi minha acompanhante e salvadoradurante a viagem – acrescentou a Sra. McCrombie com carinho, olhando paraa jovem.

– Sendo assim, tenho prazer em conhecê-la – respondeu Edith, encarandoKitty com um olhar frio. – Bem-vinda à Austrália, e espero que goste de suaestadia conosco em Adelaide.

– Obrigada, Sra. Mercer.

Enquanto esperava as duas irmãs subirem à carruagem, Kitty teve a fortesensação de que a acolhida de Edith tinha sido tão vazia quanto parecera.

8

A viagem saindo do porto em meio ao calor sufocante começou com vistapara cabanas de telhado metálico perto das docas, passando por sequências debangalôs e, finalmente, chegando a uma rua larga com casas graciosas.

Alicia Hall, que recebera esse nome em homenagem à sogra de Edith, erauma grande mansão colonial branca na Victoria Avenue. Construída parasuportar o calor do dia, a casa era cercada de todos os lados por varandasarejadas e cobertas, e pátios cercados por treliças delicadas. Ao pôr do sol,um coro de insetos que Kitty ainda não sabia identificar produziu uma grandecacofonia.

Desde que chegara, três dias antes, a Sra. McCrombie – ou Florence, como

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Edith a chamava – passara seu tempo dormindo, descansando da árduaviagem, ou sentada com Edith na varanda, inteirando-se uma da vida daoutra.

No momento, eram as três únicas moradoras da mansão, pois o Sr.

Stefan Mercer, marido de Edith e dono da casa, aparentemente estava foracuidando de um de seus muitos negócios, e os dois filhos do casal tambémestavam ausentes. Tirando a hora das refeições – quando nenhuma das irmãslhe dava mais que um “olá” quando chegava e um

“bom dia” quando saía –, Kitty ficava em seu quarto pintado em tons pastéis,no andar de cima.

Até então, a solidão não fora difícil. Kitty se contentava em pegar um livro dabiblioteca do andar de baixo e lê-lo na varanda do quarto. Mas à medida queos dias continuavam a se arrastar na mesma rotina e o Natal se aproximava,os pensamentos de Kitty voltaram-se para casa.

Enquanto escrevia uma carta para a família, quase podia sentir o ar nebulosoe gelado, e visualizar a enorme árvore de Natal na Princes Street, enfeitadacom minúsculas luzes que balançavam e dançavam com a brisa.

– Sinto falta de todos vocês – sussurrou enquanto dobrava o papel ao meio,os olhos marejados.

Depois do café da manhã, Kitty costumava caminhar pelo vasto e exuberantejardim, que era dividido em seções, com caminhos bem demarcados nagrama, alguns deles sombreados por armações cobertas de glicínias. Haviaarbustos verde-escuros perfeitamente podados em topiarias, assim comobordaduras herbáceas com espécimes brilhantes que ela nunca tinha visto –vistosas flores cor-de-rosa e laranja, folhas verdes, flores roxas com cheiro demel em que grandes borboletas azuis mergulhavam em busca do doce néctar.

Nos limites do jardim havia fileiras de árvores enormes com uma cascabranca incomum. Sempre que se aproximava delas, sentia um perfume de

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ervas maravilhosamente fresco no ar, e pensou em perguntar a Edith o queeram.

No entanto, por mais que fosse preservada, Kitty começava a sentir queAlicia Hall era uma prisão de luxo. Nunca antes estivera tão sem o que fazer;um exército de criados cuidava de todas as necessidades dos moradores, e,tendo toda a Austrália por explorar e pouco com que se manter ocupada, otempo começou a pesar.

Perto do Natal, Kitty estava voltando do jardim após seu passeio matinalquando viu um homem entrar pelos portões dos fundos. Ela parou de repente,observando a poeira vermelha que cobria seus cabelos, as roupas e as botassujas. Seu primeiro instinto foi entrar correndo e dizer aos criados que haviaum andarilho espreitando a propriedade.

Kitty se escondeu furtivamente atrás de um pilar na varanda e estudou-o demaneira discreta enquanto ele seguia em direção à entrada dos criados.

– Bom dia! – exclamou o homem, e Kitty se perguntou como podia vê-la seestava tão bem escondida. – Posso ver sua sombra, quem quer que você seja.

Por que está se escondendo?

Ela sabia que o homem poderia facilmente agarrá-la se atravessasse a varandaem busca de um lugar seguro, mas lembrou que já estivera em situaçõesmuito piores com escoceses bêbados nas docas. Então respirou fundo e serevelou.

– Eu não estava me escondendo. Estava apenas me protegendo do sol.

– É bem forte nesta época do ano, mas nada comparado ao calor do Norte.

– Eu não sei. Acabei de chegar.

– É mesmo? De onde?

– Escócia. Você tem negócios a tratar nesta casa? – perguntou ela.

Ele pareceu achar graça da pergunta.

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– Bem, espero que sim.

– Então direi à Sra. Mercer que ela tem visita quando voltar.

– A Sra. Mercer não está em casa?

– Tenho certeza de que ela chegará em breve – respondeu Kitty, percebendoseu erro. – Mas há muitos criados na casa...

– Então vou tratar do meu negócio com eles – afirmou, andando em direção àentrada que conduzia à cozinha. – Bom dia para você.

Após entrar depressa, subir as escadas até o quarto e ir para a varanda, viuuma charrete saindo pelos fundos alguns minutos depois. Aliviada que oscriados o tivessem despachado, desabou na cama, abanando-se intensamente.

Naquela noite, Kitty se preparou para o jantar. Ainda se maravilhava com

o fato de que, do outro lado do mundo, em uma terra de nativos pagãos,houvesse luz elétrica e uma banheira que poderia encher sempre quequisesse.

Tomou um banho longo e refrescante, prendeu o cabelo, amaldiçoou suassardas e desceu a elegante escada em curva. Então parou abruptamentequando se deparou com a visão mais incrível e inesperada lá embaixo: umaárvore de Natal adornada com minúsculos enfeites que cintilavam sob a luzfraca do candelabro. O aroma do pinheiro trouxe tantas lembranças de seuúltimo Natal em família que fez brotar uma lágrima em seus olhos.

– Deus abençoe todos vocês – sussurrou enquanto descia, reconfortando-secom o fato de que no ano seguinte, nessa mesma época, estaria de volta emcasa. Ao chegar ao final da escada, viu um homem, vestido formalmente parao jantar, pendurando o último enfeite na árvore.

– Boa noite – disse ele, saindo de trás dos galhos.

– Boa noite.

Ao olhar para ele, Kitty percebeu que havia algo familiar no timbre de sua

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voz.

– Gostou da árvore? – perguntou ele, caminhando na direção dela, os braçoscruzados enquanto admirava seu trabalho.

– É linda.

– É um presente para a minha... a Sra. Mercer.

– É mesmo? Que gentil.

– Sim.

Kitty olhou para ele de novo, os cabelos escuros brilhando sob a luz e...

– Creio que já nos encontramos, senhorita...?

– McBride – conseguiu dizer Kitty, percebendo exatamente quem ele era epor que o reconhecera.

– Sou Drummond Mercer, filho da Sra. Mercer. Ou, pelo menos, seu segundofilho.

– Mas...

– Sim?

– O senhor...

Kitty viu que ele estava achando graça e sentiu o rosto ruborizar.

– Sinto muito. Eu pensei...

– Que eu era um andarilho, que tinha vindo roubar a casa.

– Sim. Por favor, aceite minhas desculpas.

– E a senhorita deve aceitar as minhas por não ter me apresentado antes.

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Vim de Alice Springs por terra, a camelo, e é por isso que estava... vestido deforma inadequada.

– O senhor veio a camelo?

– Sim, camelo. Temos milhares deles aqui na Austrália. São o meio detransporte mais confiável em nosso terreno traiçoeiro.

– Entendo – disse Kitty, tentando assimilar tudo aquilo. – Então não é de

admirar que o senhor estivesse sujo. Quero dizer, já que estava viajando acamelo pela Austrália. Vim para cá de navio, foram várias semanas e...

Kitty sabia que estava “tagarelando”, como seu pai costumava dizer.

– Está perdoada, Srta. McBride. É incrível como o vagabundo mais sujo podemelhorar depois de um bom banho, não é? Peguei uma charrete assim quecheguei para buscar nossa árvore nas docas. Encomendamos uma daAlemanha todos os anos, e eu queria escolher a melhor. No ano passado, asagulhas do pinheiro caíram no dia seguinte. Bem, vamos à sala de visitastomar alguma coisa?

Kitty endireitou o corpo e ergueu os ombros, aceitando a mão que ele lheoferecia.

– Eu ficaria encantada.

Naquela noite, no jantar, com Drummond à mesa, Kitty sentiu o clima maisleve. Ele a provocou impiedosamente sobre seu engano, e a Sra.

McCrombie teve até de enxugar as lágrimas provocadas pelo riso.

Apenas Edith exibia um olhar de desgosto diante de toda aquela alegria.

Por que ela é tão fria comigo? , perguntava-se Kitty. Não fiz nada deerrado...

– Então, Srta. McBride, já se aventurou a passear por nossa aprazívelcidadezinha? – perguntou Drummond enquanto saboreavam a sobremesa.

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– Não, mas com certeza adoraria, já que ainda preciso comprarlembrancinhas de Natal para a sua família – confessou-lhe em um sussurro.

– Bem, devo ir cuidar de alguns... negócios amanhã. Posso lhe oferecer umacarona na charrete, se quiser.

– Eu ficaria muito grata, Sr. Mercer. Obrigada.

Depois do desafortunado primeiro encontro, Kitty precisava admitir queDrummond se provara uma agradável companhia. Tinha um jeitodescontraído e uma informalidade que Kitty achava extremamente atraente.Ele também era o homem mais bonito que já vira, alto e de ombros largos,com olhos azuis brilhantes e cabelos escuros e ondulados. Não que isso fosserelevante, é claro, pensou Kitty enquanto se deitava na cama mais tarde.Drummond dificilmente olharia para ela –

a filha de um clérigo pobre, cheia de sardas.

Além disso, só de pensar em qualquer homem se aproximando, já sentia ocorpo estremecer. Quando se tratava de intimidade física, tudo o que lhevinha à mente era a hipocrisia de seu pai.

Drummond estendeu a mão para ela subir na charrete na manhã seguinte eKitty se acomodou ao lado dele.

– Pronta? – perguntou.

– Sim – respondeu ela. – Obrigada.

O cavalo passou pelos portões, seguindo uma ampla avenida. Kitty inspirou omaravilhoso aroma que não conseguia identificar.

– Que perfume é esse?

– Eucaliptos. Os coalas adoram. Minha avó me disse que, quandoconstruíram Alicia Hall em 1860, havia famílias de coala morando nasárvores.

– Meu Deus! Só li sobre eles nos livros.

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– Parecem com ursos de pelúcia vivos. Se passarmos por um, eu lhe mostro.E se ouvir um barulho estranho à noite, algo entre um ronco e um rosnado,saiba que há um coala macho por perto, à procura de folhas ou de umacompanheira.

– Certo.

Fazia muito calor, e ela puxou o chapéu para baixo para proteger o rosto.

– Sofrendo com a temperatura, não é?

– Um pouco – admitiu ela. – E o sol queima a minha pele num instante.

– Em breve sua pele vai ficar mais resistente, e devo dizer que suas sardassão adoráveis.

Kitty lançou-lhe um olhar, para ver se Drummond estava zombando delamais uma vez, mas sua expressão não se alterou enquanto se concentrava emconduzir o cavalo pela estrada cada vez mais movimentada. Entraram emsilêncio na cidade, e Kitty notou que as ruas eram muito mais largas do queem Edimburgo, e os edifícios, sólidos e elegantes. Pessoas bem-vestidaspasseavam por perto, as mulheres segurando sombrinhas para bloquear osfortes raios do sol.

– Então, o que está achando de Adelaide até agora? – perguntou -

Drummond.

– Ainda não vi o suficiente para contar.

– Algo me diz que a senhorita não é muito de compartilhar seus pensamentos.Estou certo?

– Na maioria das vezes. Mas é só porque duvido que outras pessoas iriam seinteressar por eles.

– Alguns de nós talvez se interessem – retrucou ele. – A senhorita é ummistério e tanto, não é?

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Novamente, Kitty não respondeu, sem saber ao certo se estava recebendo umelogio ou um insulto.

– Fui à Alemanha uma vez – disse ele, quebrando o silêncio. – Até agora, foiminha única viagem à Europa. Achei tudo frio, escuro e bastante tedioso. AAustrália pode ter seus problemas, mas pelo menos aqui o sol brilha e tudo émeio dramático. É capaz de lidar com um pouco de drama, Srta. McBride?

– Talvez – respondeu Kitty de forma neutra.

– Então vai se sair bem, porque este país não é para os fracos. Ou, pelomenos, fora dos limites da cidade – acrescentou, enquanto fazia a charreteparar. – Esta é a King William Street. – Indicou uma rua cheia de lojas, asfachadas pintadas de cores vivas, com cartazes reluzentes anunciando suasmercadorias. – É o mais civilizado que há. Vou deixá-la aqui na BeehiveCorner e buscá-la dentro de duas horas, à uma em ponto.

Está bom para a senhorita?

– Está ótimo, obrigada.

Drummond desceu da charrete e ofereceu a mão a Kitty para ajudá-la adescer.

– Agora vá fazer o que as damas mais parecem apreciar, e, se for uma boamenina, eu a levo para ver o Papai Noel na Rundle Street mais tarde. Bomdia.

Drummond piscou para ela enquanto subia de volta. Kitty ficou ali parada, narua cheia de poeira, observando as carruagens, as charretes puxadas porcavalos que levavam homens com chapéus de abas largas.

Ao erguer os olhos, viu o que Drummond chamara de “Beehive Corner”, ou“Esquina da Colmeia”: um belo edifício vermelho e branco, com arcos eremates, e no alto uma abelha delicadamente pintada. Confiante de que iriaencontrá-lo novamente, caminhou pela rua, dando uma olhada nas vitrines.Então, transpirando profusamente em razão do calor, viu um armarinho eentrou para examinar a seleção surpreendentemente grande de fitas e rendas

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em oferta.

Estava ainda mais quente dentro da loja, se é que era possível. Com o suorescorrendo pelo pescoço, comprou um pedaço de renda para a Sra.

McCrombie e a Sra. Mercer, e um tecido de algodão branco para os homens,pensando que poderia fazer lenços e costurar cardos escoceses nos cantos.

Pagou pelas compras e deixou o ar opressivo da loja antes que passassevergonha, desmaiando bem ali. Apressou-se, então, pela estrada, procurandodesesperadamente um abrigo do sol e um copo de água refrescante.Cambaleou até ver uma placa ao longe: edinburgh castle hotel.

Irrompeu pelas portas em um salão cheio e esfumaçado, com ventiladoresenormes agitando o ar no alto. Abriu caminho até o bar quase sem perceberque todo o lugar ficara em silêncio com sua presença, e sentou-sepesadamente em um banquinho.

– Água, por favor – murmurou para uma garçonete, cujo corpete pareciaadequadamente decotado para o calor intenso.

A garota acenou com a cabeça e serviu em uma caneca um pouco de água deum barril. Kitty agarrou-a e bebeu tudo avidamente, depois pediu outra.

Quando terminou e começou a se recuperar, ergueu a cabeça e viu cerca dequarenta olhares masculinos observando-a.

– Obrigada – disse à garçonete.

Recobrando a dignidade, levantou-se e começou a caminhar em direção àporta.

– Srta. McBride! – Alguém lhe segurou o braço quando a mão dela alcançoua maçaneta de bronze. – Que coincidência vê-la aqui.

Ela olhou para Drummond Mercer, que parecia achar graça, e mais uma vezsentiu as bochechas enrubescerem.

– Eu estava com sede – respondeu defensivamente. – Está muito quente

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lá fora.

– Sim. Pensando melhor, eu nunca deveria tê-la deixado sozinha na rua,sendo uma recém-chegada a esta região.

– Estou perfeitamente bem, obrigada.

– Então fico contente. Terminou suas compras?

– Espero que sim. Como alguém pode fazer compras com este calor? –

disse ela, abanando-se.

– Uma pequena dose de uísque, senhorita? – disse uma voz atrás dela.

– Eu...

– Apenas para fins medicinais – tranquilizou-a Drummond. – Vou fazercompanhia a ela, Lachlan – acrescentou enquanto voltavam para o bar. –

E, a propósito, esta moça vem de Edimburgo.

– Então qualquer dose que a moça queira beber é por conta da casa. É

um choque quando chegamos aqui, senhorita – continuou o homem enquantoia para trás do balcão e abria uma garrafa. – Sim, eu me lembro daquelaprimeira semana, quando achei que tinha chegado ao inferno, e sonhava comas noites frias e enevoadas de casa. Vamos brindar ao Velho Continente.

Após ter visto a Sra. McCrombie entornar de uma só vez várias doses deuísque, noite após noite, a bordo do Oriente, Kitty se convenceu de que umpequeno copo não poderia lhe fazer mal, apesar de nunca ter bebido álcool.

– Ao nosso lar – brindou Lachlan.

– Ao nosso lar – repetiu Kitty.

Quando os dois homens viraram de uma vez o líquido dourado, ela sorveuum pequeno gole. A bebida desceu por sua garganta queimando.

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As pessoas em volta a observavam com interesse, e, ao sentir o uísque seassentar muito bem em seu estômago, ela voltou a virar o copo e tomou tudo.Então, como seus novos companheiros tinham feito, bateu o copo no bar.

– Sim, uma verdadeira dama escocesa. – Lachlan saudou-a, e os espectadorescomemoraram e aplaudiram com apreço. – Outra dose para todos!

– Muito bem – disse Drummond, enquanto lhe entregava mais um copo

–, isso foi impressionante, Srta. McBride. Já podemos fazer da senhorita umaaustraliana.

– Para sua informação, Sr. Mercer, não sou covarde – disse Kitty, virando osegundo copo.

Em seguida, sentou-se abruptamente no banquinho, sentindo-se bem melhordo que minutos antes.

– Estou vendo, Srta. McBride – disse Drummond, assentindo.

– Agora, que tal um coro de “Over the Sea to the Skye” para a linda garotaque está com saudades da nossa terra? – gritou Lachlan.

O bar inteiro começou a cantar, e havia ali algumas vozes masculinas bemmelódicas, pensou Kitty, que a vida toda fizera parte de um coro

feminino de igreja meio desafinado. Em seguida, aceitou outra dose de uísquee juntou-se a um coro animado de “Loch Lomond”. Então foi levada até umamesa, e sentou-se com Drummond e Lachlan.

– Então, onde a senhorita morava?

– Leith...

– Ah! – Lachlan bateu na mesa e serviu-se de mais um pouco de uísque. –

Nasci no Sul. Na parte mais pobre, é claro. Mas chega da velha nação, vamosver um pouco mais daquela famosa bravura escocesa!

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Ele serviu mais um pouco de uísque no copo de Kitty e ergueu umasobrancelha para ela. Sem dizer uma palavra, ela levou o copo até a boca etomou tudo, fitando Drummond.

Uma hora mais tarde, depois de ter demonstrado várias danças escocesas comLachlan para a alegria dos espectadores, Kitty estava prestes a tomar outradose quando Drummond tomou sua mão.

– Já chega, Srta. McBride. Acho que está na hora de levá-la para casa, nãoconcorda?

– Mas... meus amigos...

– Prometo que a trago de volta outro dia, mas temos mesmo que voltar paracasa, ou minha mãe pode pensar que a raptei.

– Se eu fosse alguns anos mais jovem – interveio Lachlan –, eu faria issomesmo. Nossa Kitty é uma beldade, não é? Não se preocupe: a senhorita vaise dar muito bem aqui na Austrália.

Quando Kitty tentou sem sucesso ficar de pé, Drummond a levantou.

Lachlan beijou-a afetuosamente nas bochechas.

– Feliz Natal! E não esqueça: se algum dia estiver em apuros, Lachlan estásempre às ordens.

Kitty não se lembrava muito bem da caminhada até a charrete, emboracertamente se lembrasse da sensação do braço de Drummond apoiando-a pelacintura. Depois disso, deve ter adormecido, pois sua lembrança seguinte erade ter sido levada nos braços dele pela entrada de Alicia Hall, carregada pelasescadas e colocada delicadamente em sua cama.

– Muito obrigada – murmurou ela, depois soluçou. – O senhor é um homemmuito gentil.

9

Kitty acordou, aturdida, em meio à escuridão, com o que parecia ser o

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estouro de uma manada de elefantes em sua cabeça. Sentou-se e fez umacareta, porque os elefantes esmagavam sua cabeça com as enormes patas, seuestômago se revirava e a bile subia para a garganta.

Ela se virou para o lado e vomitou. Em seguida, gemendo, pegou a garrafa deágua que ficava ao lado da cama e bebeu rapidamente, depois afundou nostravesseiros, tentando clarear a mente confusa. E, quando conseguiu, desejoufervorosamente não ter conseguido.

– Ah, meu Deus, o que foi que eu fiz? – sussurrou, horrorizada ao pensar nareação da Sra. McCrombie.

Ela até podia gostar de tomar algumas doses, mas com certeza não aprovariaque sua “dama de companhia” bebesse uísque em bares e participasse deruidosos coros de velhas canções escocesas.

Era terrível demais... Kitty fechou os olhos e concluiu que era melhor dormirnovamente.

Depois de algum tempo, foi acordada pelo som de vozes e o cheiro pútrido devômito que dominava o quarto.

Ainda estava a bordo do navio? Tinha havido uma tempestade?

Sentou-se e ficou aliviada ao perceber que a manada de elefantes parecia tersaído de sua cabeça para outros pastos. O quarto estava escuro como breu, eKitty estendeu a mão para acender o lampião ao lado da cama, imediatamentevendo a poça de vômito no chão.

– Ah, meu Deus – sussurrou, enquanto se levantava com as pernas -

trêmulas.

A cabeça latejou quando ela se forçou a ficar em pé, mas conseguiucambalear em direção ao lavatório para pegar alguns panos e a baciaesmaltada para tentar limpar a bagunça. Jogou os panos sujos na bacia,perguntando-se o que deveria fazer com eles. A porta rangeu e, ao se virar,viu Drummond parado à soleira.

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– Boa noite, Srta. McBride. Ou devo chamá-la de Kitty, orgulho da Escócia edo Edinburgh Castle Hotel?

– Por favor...

– Estou só brincando, Srta. McBride. Fazemos muito isso aqui na Austrália,como sem dúvida já descobriu. Como está se sentindo?

– Acho que pode ver por si mesmo.

Ela olhou para a bacia cheia de vômito pousada nos joelhos.

– Então não vou me demorar, em parte por causa do cheiro aqui... Sugiro que,quando descer, abra as portas da varanda... mas principalmente porque seriamuito impróprio ser encontrado no quarto de uma dama.

Eu disse à minha mãe e à minha tia que, devido à minha falta de cuidado, asenhorita sofreu uma insolação enquanto fazia compras na cidade e, portanto,não está se sentindo bem para jantar conosco.

Ela baixou os olhos, envergonhada.

– Obrigada.

– Não me agradeça, Kitty. Na verdade, eu é que devo pedir desculpas.

Nunca deveria tê-la encorajado a tomar aquele primeiro uísque, que dirá osegundo e o terceiro, principalmente com esse calor, quando sabia que vocênão estava acostumada a nenhum dos dois.

– Eu nunca tinha bebido uma gota antes na vida – sussurrou Kitty. – E

estou profundamente envergonhada do meu comportamento. Se meus paistivessem me visto...

– Mas não viram, e nada ouvirão dos meus lábios. Acredite em mim, Kitty,quando estamos longe da família, às vezes é bom podermos ser nós mesmos.

Agnes virá em breve trazer um caldo e pegar essa bacia que você está

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estendendo na minha direção como se fosse um órfão de Dickens.

– Não quero beber mais nenhuma gota enquanto viver.

– Bem, embora hoje tenha sido o dia mais divertido que tive em muito tempo,sinto-me responsável por seu sofrimento. Tente descansar e tome um poucode caldo. Amanhã será véspera de Natal, e seria uma pena se a senhoritafaltasse. Boa noite.

Drummond fechou a porta e Kitty colocou a bacia fedida no chão, tomadapelo horror e pela humilhação.

O que seu pai sempre dizia sobre situações como aquela...? Talvez não sobreaquela situação específica, reconheceu Kitty com uma careta, mas ele semprelhe ensinara que, ao cometer um erro, ela devia manter a cabeça erguida eaprender com ele. Então, decidiu que, naquela noite, não iria ficar ali deitadae deixar que Drummond pensasse que era frágil.

Em vez disso, iria se juntar aos demais para o jantar.

Ele vai ver só, pensou, respirando fundo e cambaleando até o guarda-roupa.Quando Agnes, a criada, bateu à porta, Kitty estava vestida e prendia ocabelo suado em um coque no alto da cabeça.

– Como está se sentindo, Srta. McBride? – perguntou Agnes.

A moça era ainda mais jovem do que a própria Kitty e falava com um fortesotaque irlandês.

– Estou melhor agora, obrigada, Agnes. Quando descer, por favor, diga à Sra.Mercer que vou me juntar a eles para o jantar.

– Tem certeza, senhorita? Perdoe-me, mas a senhorita ainda está muito pálidae não seria nada bom passar mal à mesa – disse Agnes, franzindo o nariz paraa bacia malcheirosa e cobrindo-a com uma musselina limpa.

– Estou perfeitamente bem, obrigada. E peço desculpas por isso.

Kitty apontou para a bacia.

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– Ah, não se incomode, já fiz coisas bem piores antes de instalarem umbanheiro aqui – disse Agnes revirando os olhos.

Dez minutos depois, Kitty descia cautelosamente a escada, esperando nãoestar cometendo um erro terrível, mas até mesmo o aroma fresco de pinheiroa fez sentir náuseas. Então viu Drummond lá embaixo, os braços cruzados,admirando a árvore de Natal.

– Boa noite – cumprimentou ao chegar ao fim da escada. – Cheguei àconclusão de que estava bem o suficiente para me juntar a vocês para ojantar.

– É mesmo? E quem seria a senhorita?

– Eu... Ah, por favor, pare de me provocar – pediu. – Você sabe muito bemquem eu sou.

– Garanto-lhe que nunca fomos formalmente apresentados, embora devapresumir que seja a Srta. Kitty McBride, dama de companhia de minha tia.

– O senhor sabe que sim, deixe de brincadeira. Se isso for uma nova piada,uma punição por mais cedo... eu...

– Srta. McBride, que bom vê-la melhor depois de sua terrível crise deinsolação!

Agora Kitty imaginou que estava mesmo mal, pois viu outro Drummondvindo da sala de estar, um brilho de divertimento e advertência nos olhos.

– Por favor, deixe-me apresentar meu irmão, Andrew – continuou ele. –

Como a senhorita deve ter percebido, somos gêmeos, embora Andrew tenhanascido duas horas antes de mim.

– Ah – disse Kitty, agradecendo ao Senhor que Drummond tivesse chegadonaquela hora ou poderia ter revelado tudo a Andrew. – Perdoe-me, senhor, eunão percebi.

– Por favor, não se preocupe, Srta. McBride. Posso lhe assegurar que é um

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engano muito comum. – Andrew caminhou em sua direção e estendeu a mão.– Estou muito feliz por finalmente conhecê-la e encantado que esteja bempara se juntar a nós esta noite. Agora, posso acompanhá-la até a sala dejantar?

Precisamos apresentá-la ao nosso pai.

Kitty aceitou, grata, o braço oferecido por Andrew, suas pernas aindavacilantes. Viu Drummond piscando para ela dissimuladamente, mas virou orosto.

A mesa de jantar estava decorada de maneira festiva: elegantes porta-guardanapos dourados e raminhos de abeto com bolinhas vermelhascintilavam ao brilho das velas. Kitty observou fascinada enquanto os Mercersoravam em alemão, até que Andrew acendeu a quarta vela na intrincadaguirlanda no centro da mesa.

Enquanto todos se sentavam, Andrew percebeu o olhar de curiosidade deKitty.

– São velas do Advento – explicou. – Meus pais foram gentis de esperar queeu voltasse para casa, para que pudesse acender a última antes da véspera deNatal... Sempre adorei fazer isso, desde criança. É uma antiga tradiçãoluterana alemã, Srta. McBride.

Durante o jantar, carne foi servida e ela conseguiu comer mordendo pedaçosbem pequenos e mastigando bem. Kitty observou os gêmeos discretamente.Embora idênticos, com seus cabelos escuros e olhos azuis, tinhampersonalidades bem diferentes. Andrew parecia o mais sério e ponderado,fazendo-lhe perguntas educadas sobre sua vida em Edimburgo.

– Devo lhe pedir desculpas por meu irmão. Ele devia saber que o sol domeio-dia seria forte demais para uma moça, principalmente uma recém-chegada a essas praias.

Andrew franziu a sobrancelha para Drummond, que respondeu com um darde ombros despreocupado e acrescentou: – Você me conhece, querido irmão.Sou totalmente irresponsável. Que bom que agora tem Andrew para protegê-

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la, Srta. McBride.

À cabeceira da mesa estava Stefan Mercer, o pai dos gêmeos. Tinha osmesmos olhos azuis dos filhos, mas era bastante corpulento, com uma grandefaixa calva coberta de sardas no alto da cabeça. Ele contou a ela como suafamília havia chegado à costa da Austrália, setenta anos antes.

– Talvez você já saiba que muitos de nossos antepassados vieram paraAdelaide porque assim poderiam adorar o Senhor em qualquer religião.

Minha avó era alemã e se juntou a um pequeno povoado chamado Hahndorf,nas colinas de Adelaide. Meu avô era um presbiteriano da Inglaterra, e eles seconheceram aqui e se apaixonaram. A Austrália é um país de pensamentolivre, Srta. McBride, e já não endosso nenhuma doutrina criada pelo homem.

Nossa família frequenta a catedral anglicana na cidade. Amanhã à noiteiremos lá para a Missa do Galo. Espero que se sinta bem para nosacompanhar.

– Será um prazer – disse Kitty, tocada pelo fato de Stefan estar obviamentepreocupado por não ser uma igreja presbiteriana.

Kitty teve que se esforçar para não passar mal durante a sobremesa –

um delicioso doce com creme – e, enquanto comia, ouviu os três homensconversarem sobre os interesses comerciais da família, que pareciam termuito a ver com algo chamado “concha”, e quantas toneladas disso astripulações tinham trazido em algo que chamavam de “lugre”.

Drummond falava em “rodeio”, que ela imaginou estar de alguma formaligado a “cabeças” de gado.

Seu melhor “tropeiro” não tinha retornado e Drummond disse sem ironia queele havia sido “cortado em pedaços pelos negros e colocado em uma panelapara servir de jantar”.

Sentada ali naquela casa elegante e confortável, Kitty achava extraordinárioque tais coisas pudessem acontecer fora dos limites de

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uma cidade que, comparada às ruas simples de Leith, era definitivamenterefinada.

– A senhorita deve achar essa conversa bastante chocante – disse Drummond,lendo seus pensamentos.

– Li um livro de Darw... – Kitty se interrompeu, sem saber se Drummondaprovaria. – ... um autor que passou algum tempo nessas regiões costeiras eque mencionou isso. Os nativos atacam mesmo as pessoas com lança?

– Infelizmente, sim. – Drummond baixou a voz: – Na minha opinião, apenasdevido à intensa provocação de seus indesejados invasores. As tribosaborígines ocupam suas terras há milhares de anos... São talvez a populaçãoindígena mais antiga do mundo. Sua terra e seu modo de vida foram tomadosdeles à força bem debaixo de seus narizes. Mas... –

Drummond se deteve. – Talvez esse assunto deva ficar para outra ocasião.

– É claro – disse Kitty, enternecendo-se um pouco com relação a Drummond.Então voltou sua atenção para Andrew: – Onde o senhor mora?

– Na costa noroeste, em um povoado chamado Broome. Assumirecentemente o controle do negócio de pérolas do meu pai. É uma...

parte interessante do país, com uma longa história. Há até mesmo umapegada de dinossauro marcada em uma rocha, que pode ser vista quando amaré está baixa.

– Meu Deus! Eu adoraria ver isso. Broome fica muito longe? Talvez um diaeu possa ir até lá de trem.

– Infelizmente, não, Srta. McBride. – Andrew conteve o sorriso. – Por mar, aviagem levaria dias e, a camelo, muito mais do que isso.

– É claro – disse Kitty, envergonhada de sua ingenuidade geográfica. –

Embora em teoria eu conheça as dimensões do país, é difícil acreditar queviajar através dele possa mesmo levar tanto tempo. Espero ter a chance deconhecer um pouco além de Adelaide, ainda que apenas para tocar uma rocha

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que está lá desde a aurora dos tempos. Ouvi dizer que há esculturas e pinturasinteressantes adornando muitas delas.

– Há, sim, embora esse conhecimento sobre o interior, principalmente a áreaem torno de Ayers Rock, seja especialidade de meu irmão. É perto, pelomenos em termos australianos, do lugar onde ele administra nossa fazenda degado.

– Um dia eu adoraria visitar a rocha. Já li sobre ela – disse Kitty,entusiasmada.

– Vejo que se interessa por história antiga e geologia, Srta. McBride.

– Tenho muito interesse em saber como nós... – Kitty se controlou umasegunda vez. – ... Como Deus nos colocou aqui, Sr. Mercer.

– Por favor, me chame de Andrew. E, sim, é mesmo fascinante. E quem sabetalvez, durante a estadia dela aqui – disse Andrew, elevando a voz e dirigindosua pergunta à Sra. McCrombie –, tia Florence e a Srta. McBride

não queiram viajar até a costa noroeste? Depois de março, é claro, quandotiver passado a estação das chuvas.

– Florence querida, nem pense nisso – disse Edith de repente. – Na últimavez que fui a Broome, houve um ciclone e o navio ficou encalhado poucodepois de Albany. Meu filho vive em uma cidade completamenteincivilizada, cheia de negros, amarelos e só Deus sabe quantas outrasnacionalidades... Um bando de ladrões e vagabundos! Jurei nunca mais pôros pés naquele lugar.

– Calma, querida. – Stefan Mercer pôs a mão no braço da esposa. – Nãodevemos agir como não cristãos, principalmente nesta época do ano.

Broome com certeza é singular, Srta. McBride, uma mistura de todos oscredos e cores.

Particularmente, acho isso fascinante. Morei lá durante dez anos quandoestava montando meu negócio de pérolas.

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– É uma cidade moralmente corrupta e esquecida por Deus, dominada pelabusca da riqueza, cheia de homens gananciosos atrás do que desejam! –interrompeu Edith novamente.

– Mas não é disso que se trata a Austrália, mãe? – Drummond falou alto.

– E nós também? – continuou, indicando a enorme sala de jantar e o quehavia à mesa.

– Pelo menos nos comportamos civilizadamente e temos bons valorescristãos – replicou Edith. – Vá até lá se quiser, querida irmã, mas não meobrigue a acompanhá-la. Agora, será que podemos nos retirar para a sala devisitas e deixar os homens fumarem e conversarem sobre o lado desagradávelda vida na Austrália?

– Se puderem me desculpar – disse Kitty alguns segundos depois, já no hallcom Edith e Florence. – Ainda não me sinto muito bem, gostaria de merecuperar para o dia de amanhã.

– Mas é claro. Boa noite, Srta. McBride – despediu-se Edith secamente,parecendo de certa forma aliviada.

– Durma bem, querida Kitty – disse a Sra. McCrombie, seguindo a irmã parao outro lado do corredor em direção à sala de visitas.

No andar de cima, Kitty saiu para a varanda e olhou para o céu, tentandolocalizar a estrela de Belém, que ela e as irmãs sempre procuravam navéspera de Natal. Mas não conseguia encontrá-la, talvez porque estivessemuito à frente do horário britânico em Adelaide.

Ao voltar para dentro, deixou as portas da varanda entreabertas, já que oquarto ainda cheirava ao seu mal-estar de mais cedo. Então, de maneiraaudaciosa, já que a noite estava quente, ignorou a camisola e se arrastou parabaixo dos lençóis usando apenas a camisa de baixo.

Um sol radiante a acordou na manhã seguinte. Ao sentar-se, lembrou que eravéspera de Natal, e já ia sair da cama quando uma coisa enorme e marromcaiu do teto sobre o lençol que cobria suas coxas e começou a andar em

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direção à sua barriga. Kitty soltou um grito agudo quando percebeu que erauma aranha gigante e peluda. Completamente

paralisada enquanto o animal subia para os seus seios, ela gritou novamente,sem se importar com quem a ouvisse.

– Mas que diabos é isso? – perguntou Drummond ao entrar no quarto.

Então olhou para ela e logo viu o problema.

Com um movimento experiente, a aranha foi tirada de cima de Kitty, a mãosegurando-a por uma de suas muitas patas, o animal se contorcendo enquantoDrummond o levava para a varanda. Ela o viu atirar a criatura por sobre abalaustrada e depois voltar, fechando firmemente as portas.

– É nisso que dá deixar as portas abertas – advertiu-a, brandindo o dedo quepouco tempo antes segurava um predador.

– Foi você quem me disse para abri-las! – rebateu Kitty, sua voz soandocomo um guincho alto.

– Quis dizer por um tempo, não a noite inteira. Bem, isso é ótimo. – Eleolhou para ela, irritado. – Sou acordado para ajudar uma dama em perigo e,em vez de um agradecimento, só recebo reclamações.

– Era... venenosa?

– A aranha-caranguejo? Não. Elas às vezes picam, mas no geral são bastanteamigáveis. Só coisas grandes e feias que fazem um bom trabalho em manter apopulação de insetos sob controle. Mas isso não é nada comparado com o quevocê encontra no Território Norte, onde eu vivo. O banheiro lá está cheiodelas, e algumas são perigosas. Já tive que sugar o veneno de alguns dosmeus tropeiros. São umas criaturazinhas desagradáveis com uma faixavermelha no dorso.

Com o coração ainda acelerado, mas finalmente conseguindo se recompor,Kitty então concluiu que Drummond adorava chocá-la.

– A vida é bem diferente lá fora – disse ele, como se estivesse lendo seus

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pensamentos. – Uma questão de sobrevivência. Isso torna qualquer um maisinsensível.

– Não tenho dúvidas disso.

– Bem, vou deixá-la descansar mais um pouco, já que ainda são cinco e meiada manhã. – Ele meneou a cabeça e caminhou em direção à porta. –

E, a propósito, Srta. McBride, a senhorita sempre dorme de camisa de baixo?

Mamãe ficaria horrorizada.

Com um sorriso, Drummond saiu do quarto.

Três horas depois, durante o café da manhã com pães frescos e uma deliciosageleia de morango, a Sra. McCrombie entregou a Kitty um pacote grande.

– Para você, minha querida – disse ela com um sorriso. – Sua mãe me pediupara guardar isso até o Natal. Sei quanto sente saudades de casa, e espero queisso possa aliviar um pouco sua vontade de voltar para a Escócia.

– Ah...

Kitty pegou o pacote pesado. Lágrimas começaram a brotar em seus

olhos, mas ela as conteve.

– Vá, menina, abra! Venho guardando esse pacote há semanas, perguntando-me o que há dentro dele!

– Não devo esperar até amanhã? – perguntou Kitty.

– Segundo a tradição alemã, abrimos os presentes na véspera de Natal –

replicou Edith. – Mesmo que deixemos os nossos para o anoitecer. Por favor,querida, vá em frente.

Kitty rasgou o papel pardo e encontrou vários itens, a alegria explodindo emseu peito. Havia uma lata dos famosos biscoitos caseiros de sua mãe, fitas das

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irmãs, desenhos e cartões. Seu pai lhe enviara um livro de orações com capade couro, que Kitty devolveu à caixa sem nem mesmo ler a dedicatória.

Ela passou o resto da manhã oferecendo seus serviços domésticos, mostrandoà criada negra da cozinha como abrir a massa e distribuir a mistura de passase frutas cristalizadas que a Sra. McCrombie havia trazido.

Aparentemente, o menu daquela noite incluía ganso, e havia um peru nacâmara fria para o banquete de Natal. Em meio ao forte calor da tarde, Kittyenviou mensagens de amor à família, que devia estar acordando, e pensou nasirmãs, que deviam estar muito entusiasmadas com os acontecimentosdaqueles dois dias. Como ainda tinha o corpo exausto por conta do uísque dodia anterior, tirou um cochilo à tarde. Acordou com uma batida à porta.

– Entre – disse, sonolenta.

Agnes entrou, trazendo cuidadosamente nos braços um vestido de sedaturquesa.

– É da Sra. McCrombie. Um presente de Natal, e ela disse que a senhoritadeve usá-lo para o jantar desta noite.

Era o vestido mais bonito que Kitty já vira, mas ficou preocupada de nãopoder levantar os braços por medo de que aparecessem manchas de suor sobas axilas.

A família se reuniu às cinco horas na sala de visitas, quando Kitty foiapresentada à famosa matriarca Mercer, a avó Alicia. Alicia não era nem umpouco como Kitty esperava – em vez do eterno olhar de reprovação quedefinia Edith, tinha o rosto rechonchudo marcado por simpáticas rugas, e seusolhos azuis brilhavam de alegria. Era uma pena, pensou Kitty, que nãoconseguisse conversar muito com ela, já que Alicia praticamente só falavaalemão, embora tivesse vivido em Adelaide por muitos anos. Andrewtraduziu o pedido de desculpas da avó pelo inglês limitado, mas o toquequente de suas mãos bastou para dizer a Kitty que era bem-vinda ali, a casaque fora de Alicia havia tanto tempo.

Ficou maravilhada ao ver como os gêmeos alternavam tão confiantemente

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entre as línguas, conversando com as pessoas reunidas tanto em alemãoquanto em inglês. Também ficou tocada que todos tivessem gentilmente selembrado dela na hora dos presentes. Ganhou

um pente de marfim de Edith e Stefan, pequenos brincos de pérola deAndrew, e, de Drummond, um bilhete manuscrito preso a um pacote: CaraSrta. McBride,

Este bilhete é para lhe dizer que o seu presente de Natal de verdade está naparte de baixo do guarda-roupa em seu quarto. Juro que não é uma aranha.

Drummond.

Ela observou o ar de divertimento no rosto dele enquanto lia o bilhete, entãoabriu o pacote, tirou de dentro dele uma linda fita azul-celeste e sorriu.

– Obrigada, Drummond. A cor é muito bonita. Vou usá-la para enfeitar ocabelo durante a ceia.

– É para combinar com seus olhos – disse ele, mas as atenções já estavamvoltadas para Stefan, que entregava seu presente a Edith.

– Minha querida, feliz Natal. – Stefan beijou a esposa nas bochechas. –

Espero que você goste.

Dentro da caixa havia uma pérola incrivelmente magnífica, presa a umadelicada corrente de prata. Sua superfície lisa e opalescente reluzia demaneira deslumbrante sob a luz dos últimos raios de sol.

– Meu Deus – disse Edith, enquanto deixava a irmã prender o cordão em seupescoço. – Mais pérolas.

– Mas esta é especial, minha querida. A melhor da produção deste ano.

Não é, Andrew?

– Sim, pai. O próprio T.B. Ellies disse isso. Não foi encontrada nenhumamaior nos mares de Broome este ano.

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Os olhos de Kitty ficaram hipnotizados pela conta reluzente deslizando peloconsiderável peito de Edith. Estava espantada tanto com o tamanho daquelajoia tão preciosa quanto com a indiferença com que Edith parecia recebê-la.

– Gosta de pérolas? – perguntou Andrew, sentado ao lado dela em umaespreguiçadeira de veludo.

– Adoro – disse Kitty. – Eu sempre abria mariscos na praia em Leith àprocura delas, mas, é claro, nunca achei nenhuma.

– Não, e duvido que viesse a encontrar algum dia. É necessário um clima eum tipo de ostra específicos, isso sem falar em muitos, muitos anos para elasse formarem.

Após a abertura dos presentes, todos se retiraram para trocar de roupa antesdo jantar, e Kitty aproveitou a oportunidade para ver o que Drummondresolvera lhe dar de Natal. Se o conhecia bem, devia ser uma garrafa deuísque ou uma aranha-caranguejo morta emoldurada... O

pacote era tão pequeno que ela levou algum tempo procurando na parte debaixo do guarda-roupa até encontrá-lo. Era uma caixa comum, presa comuma fita simples.

Abriu-a ansiosamente e encontrou uma pequena pedra cinzenta.

Tomou-a na mão e sentiu como era fria, sem entender por que ele havia

lhe dado aquilo. Assim como qualquer pedrinha que poderia encontrar emuma praia em Leith, era acinzentada e, mesmo quando a segurava contra aluz, não via nenhuma estria interessante.

Mas, quando a virou, viu que havia uma gravação do outro lado.

Fascinada, passou os dedos sobre os sulcos e relevos, já desgastados pelaidade e muito manuseio, mas não conseguia identificar nenhuma forma oupalavra.

Guardou-a no armário ao lado da cama e, sentindo-se mal pelo que pensaraantes sobre o presente de Drummond, chamou Agnes para ajudá-la a colocar

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o novo vestido e fechar os pequenos botões de madrepérola que corriam dabase de suas costas até a nuca. Já estava morrendo de calor, presa naquelaroupa, como um peru de Natal pronto para ser cozido. Mas seu reflexo noespelho compensava tudo. A cor da seda combinava perfeitamente com seusolhos, fazendo-os brilhar em tom turquesa. Enquanto Agnes prendia a fita deDrummond em seus cachos, Kitty passou um pouco de ruge, depois selevantou e desceu as escadas para se juntar à festa.

– Ora, ora, a senhorita está linda esta noite – disse a Sra. McCrombie com umar maternal orgulhoso. – Sabia que a cor lhe cairia bem no momento em quevi.

– Muito obrigada, Sra. McCrombie. É o melhor presente de Natal que jáganhei – respondeu Kitty ardorosamente.

A campainha tocou para anunciar a chegada de mais convidados. Todos seencaminharam até a sala de estar para se juntar àqueles que haviam chegado.

– O “melhor” presente, é? – disse uma voz baixa atrás dela. – Nossa, estouencantado.

Era Drummond, muito elegante em seu sofisticado traje de gala.

– Eu estava apenas sendo educada. Obrigada pela fita... e pela pedra, mastenho que confessar que não tenho ideia do que é.

– Aquilo, minha querida Srta. McBride, é algo muito raro e precioso.

Chama-se pedra tjurunga, e um dia pertenceu a um nativo da tribo aboríginearrernte. Supostamente era o seu bem mais precioso, e lhe foi dada em suainiciação à idade adulta como um símbolo de suas responsabilidades.

– Meu Deus! – exclamou Kitty. Seus olhos se estreitaram. – O senhor não aroubou, não é?

– É isso que acha, que sou um ladrão? Eu a encontrei há algumas semanasquando cruzava o Outback, vindo da fazenda de gado. Dormi numa caverna elá estava ela.

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– Espero que o dono não tenha sentido sua falta.

– Tenho certeza de que ele está morto há muito tempo e não irá se queixar.

Agora, Srta. McBride – Drummond estendeu a mão para uma bandeja debebidas que passava e pegou dois copos –, posso oferecer-lhe um pouco

de xerez?

Kitty viu o brilho em seus olhos e recusou.

– Não, obrigada.

– Devo admitir que a senhorita se arrumou muito bem esta noite – disse ele,enquanto tomava o xerez dos dois copos. – Feliz Natal, Kitty –

prosseguiu, gentilmente. – Até agora tem sido uma grande... aventuraconhecê-la.

– Srta. McBride...

Kitty virou-se e viu Andrew ao seu lado. E pensou que era realmentedesconcertante ter gêmeos idênticos na mesma sala. Era como ver em dobro.

– Boa noite, Andrew, e obrigada pelos lindos brincos. Resolvi usar hojemesmo.

– Fico feliz ao ver que combinam com seu lindo vestido. Posso oferecer-lheum pouco de xerez para brindar a época natalina?

– A Srta. McBride é abstêmia. Nunca toma uma gota, não é? – murmurouDrummond ao lado dela.

Enquanto ia até o outro lado da sala, Kitty se perguntou quanto tempo levariapara lhe dar um tapa e tirar aquele sorrisinho presunçoso de seu rosto.

Pouco depois, os convidados se reuniram na sala de jantar, onde um banquetesuntuoso os aguardava: ganso assado, batatas coradas e até miúdos decarneiro, que a Sra. McCrombie guardara na câmara fria do navio durante a

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viagem. Vendo as belas roupas e joias daquelas mulheres, Kitty soube queestava participando de um banquete de Natal com o crème de la crème dasociedade de Adelaide. Um agradável cavalheiro alemão, que falava inglêsperfeitamente, sentou-se à sua direita e lhe contou sobre seu negócio decerveja e suas vinhas, que aparentemente floresciam nas colinas de Adelaide.

– O clima é semelhante ao do sul da França, e as uvas crescem bem.

Guarde minhas palavras, dentro de alguns anos o mundo estará comprandovinho australiano. Este – ele pegou uma garrafa e mostrou a ela – é um dosnossos. Posso convencê-la a provar um pouco?

– Não, obrigada, senhor – respondeu ela em voz baixa, incapaz de suportaroutro olhar irônico de Drummond, sentado à sua frente.

Quando o jantar terminou, um grupo se reuniu ao redor do piano e cantou“Noite feliz” em alemão, ao que se seguiram tradicionais canções de Natalbritânicas. Quando esgotaram o repertório, Edith, que exibira um talentosurpreendente ao piano, virou-se para um dos filhos.

– Andrew, você canta para nós?

As pessoas reunidas bateram palmas, incentivando-o educadamente a seguirpara o piano.

– Perdoem-me, senhoras e senhores, pois estou enferrujado. Como podemimaginar, não tenho muita oportunidade de me apresentar em Broome – disseAndrew. – Vou cantar uma ária do Messias, de Händel.

– E farei o máximo para acompanhá-lo – completou Edith.

– Meu Deus, que voz – sussurrou seu vizinho vinicultor depois que Andrewterminou e o salão irrompeu em aplausos. – Quem sabe não poderia ter sidocantor de ópera, mas a vida... e o pai... tinham outros planos. Essa é aAustrália – acrescentou em voz baixa. – Repleta de ovelhas, gado e riquezas,mas pobre em cultura. Nosso país vai mudar um dia, guarde minhas palavras.

Àquela altura, eram quase onze da noite, e os convidados foram levados até

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as carruagens pelos cavalariços. Seguiriam até o centro de Adelaide paraassistir à Missa do Galo.

A catedral de São Pedro era uma visão imponente, com suas intrincadasespirais góticas estendendo-se em direção ao céu, e a luz acolhedora das velasprojetando-se através dos vitrais. Drummond acompanhou a mãe e a tia,enquanto Andrew ajudava Kitty a descer da carruagem.

– Você tem uma bela voz – disse ela.

– Obrigado. Todo mundo me diz isso, mas talvez a gente nem semprevalorize o que nos vem de maneira fácil. Além disso, fora entreter osconvidados de mamãe e papai nos feriados, não tenho nenhum propósito –comentou Andrew enquanto subiam os degraus da catedral atrás das outraspessoas.

O interior da igreja era igualmente impressionante, com altos arcosabobadados emoldurando os assentos. A cerimônia, do tipo que seu paichamaria de “alta igreja”, estava repleta de incenso e clérigos com vestesdouradas que Ralph teria ridicularizado. Kitty subiu para a SagradaComunhão, ajoelhando-se no altar entre Drummond e Andrew. Pelo menos,pensou ela, seus dedos dos pés não estavam se crispando de frio, comoacontecia na igreja do pai em Leith, na véspera de Natal.

– Você gostou? Sei que é diferente daquilo a que está acostumada –

perguntou Andrew enquanto saíam.

– Creio que o Senhor não se importa com o local onde é adorado, ou como,desde que glorifique Seu nome – respondeu Kitty com tato.

– Se é que existe mesmo um Deus. Particularmente, duvido disso – a voz deDrummond veio da escuridão atrás dela.

Quando se retirou para o quarto mais tarde, verificando se as portas davaranda estavam bem fechadas e depois examinando o teto e os cantos paraver se havia algum sinal de monstros peludos de oito patas que pudessemdecidir se juntar a ela na cama, Kitty chegou à conclusão de que fora um dia

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muito interessante.

10

Entre o Natal e o Hogmanay – como nós, escoceses, chamamos a véspera deano-novo –, foram realizados passeios para manter os moradores de AliciaHall entretidos. Eles fizeram um piquenique em Elder Park e ouviram aorquestra tocando no coreto, e no dia seguinte foram até o zoológico deAdelaide. Enquanto Kitty se encantava com os vários habitantes peludos dolugar, como os adoráveis coalas e uma espécie de olhos arregaladossemelhante a um gambá, Drummond achou mais interessante levá-la até acasa dos répteis e mostrar-lhe uma série de cobras. E se esforçava paraapontar quais eram benignas e quais eram fatais.

– As pítons são basicamente inofensivas, embora possam causar bastante dorse forem pisadas por acidente. As marrons australianas, difíceis de ver naterra, são as mais venenosas. – Ele apontou para o vidro. – E aquela listradaenrolada no galho do canto é uma serpente-tigre, com uma picada igualmenteterrível. Mas lembre-se: as cobras só vão mexer com a senhorita se foremprovocadas.

Drummond sugeriu que Kitty desse uma volta de elefante, a glória máximado zoológico de Adelaide. Kitty foi içada de maneira nada elegante até asenvelhecidas costas cinzentas de sua montaria. Ela sentou-se no alto,sentindo- se como a maharani indiana que vira num livro.

– Espere só até andar a camelo... Isso, sim, é um passeio desafiador! –

exclamou Drummond.

Naquela noite, ela chegou em casa e imediatamente escreveu para a família afim de lhes contar que havia montado em um elefante, no lugar maisimprovável.

O Hogmanay chegou, e Kitty ficou sabendo que Edith sempre dava umagrande festa.

– Ela nos faz passar por isso todos os anos – lamentou-se Drummond no café

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da manhã daquele dia. – E insiste para que usemos nosso tartã.

– Isso é normal em Edimburgo durante o ano todo – retrucou Kitty.

– Essa é justamente a questão, Srta. McBride. Nasci e cresci na Austrália,nunca pus os pés na Escócia e, para ser franco, nem pretendo fazer isso.

Se os tropeiros na fazenda Kilgarra ficarem sabendo que saltei por aí a noitetoda usando saia como uma garota, eu ouviria piadas até o fim da vida.

– Com certeza não é pedir muito para agradar à mamãe, não é mesmo? –

Andrew se intrometeu na conversa. – Não esqueça que ela nasceu lá e sentefalta da velha nação. E tenho certeza de que a Srta. McBride também vaigostar.

– Não pensei em trazer o tartã do meu clã...

Kitty mordeu o lábio.

– Tenho certeza de que mamãe pode lhe emprestar um. O guarda-roupa delaestá lotado de roupas xadrez. Com licença. – Drummond levantou-se. –Tenho algumas coisas para fazer na cidade antes de partir para a Europa.

– Seu irmão vai para a Europa? – perguntou Kitty a Andrew depois queDrummond deixou a sala.

– Sim. Amanhã, com papai. Ele quer comprar cabeças de gado. O estoquediminuiu este ano devido a uma seca e às lanças dos negros, e papai temalgumas pérolas magníficas para vender e não confia em ninguém para fazerisso por ele. Além disso, é a estação úmida no norte, nada agradável. Nossoslugres em Broome estão quase todos no porto devido à temporada deciclones.

Voltarei logo para comandar o navio, por assim dizer. Passei os últimos trêsanos lá aprendendo o ofício com meu pai e passarei a cuidar de tudo para elede agora em diante, antes que minha mãe se divorcie dele por abandono.

Andrew abriu um sorriso pesaroso para Kitty.

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– Lembro-me dela dizendo que não gostou do tempo que passou em Broome– disse Kitty.

– Quando minha mãe morou lá, dez anos atrás, era difícil para as mulheres,mas, à medida que a indústria de pérolas cresce, a cidade cresce junto. E, comuma sociedade tão misturada, com certeza nunca é tedioso. É preciso seacostumar, mas, falando por mim, acho animador.

Talvez a senhorita gostasse também, porque tem um espírito aventureiro.

– Tenho?

– Na minha opinião, sim. E a senhorita parece aceitar as pessoas do jeito quesão.

– Meu pai... e a Bíblia – acrescentou ela apressadamente – dizem que nuncase deve julgar alguém por credo ou cor, mas apenas pela alma.

– Sim, Srta. McBride. É muito interessante, não é, que aqueles que seconsideram verdadeiros cristãos possam justamente se comportar de maneiraoposta? Ah, bem... – disse ele, então ficou em silêncio, constrangido.

Kitty se levantou e falou: – Preciso procurar sua mãe e oferecer minha ajudacom os preparativos para a festa desta noite.

– É gentil de sua parte, mas duvido que ela vá precisar. Como as coisas queela gerencia, tudo correrá tranquilamente como uma máquina bemlubrificada.

Quando Kitty colocou seu vestido turquesa naquela noite, que Agnes passaraa vapor habilmente para remover quaisquer manchas de suor, ouviu umabatida à porta. A Sra. McCrombie entrou, vestindo xadrez.

– Boa noite, minha querida Srta. McBride. Aqui está sua faixa para acelebração desta noite. Cortesia minha e de meu pobre e falecido marido.

Ficarei orgulhosa de vê-la usar o tartã McCrombie. Nessas últimas semanas,a senhorita se tornou como uma filha para mim.

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– Eu... agradeço, Sra. McCrombie. – Kitty ficou profundamente tocada porsuas palavras. – A senhora tem sido tão gentil comigo...

– Posso ter a honra de prendê-la na senhorita?

– Claro. Obrigada.

– Sabe – disse a Sra. McCrombie enquanto passava o tartã sobre o ombrodireito de Kitty –, tem sido um prazer vê-la desabrochar nessas semanasdesde que deixamos Edimburgo. A senhorita era uma menina terrivelmentetímida quando a conheci. Mas agora, veja só! – A Sra.

McCrombie prendeu um broche delicado de cardo no ombro de Kitty. –

Está linda e é um motivo de honra para sua família. E certamente será umaesposa de que qualquer homem se orgulhará.

– Serei...? – replicou Kitty enquanto se permitia ser levada até o espelho.

– Olhe para você, Srta. Katherine McBride, com sua orgulhosa herançaescocesa, sua inteligência e sua bela aparência. Ah, eu me diverti bastanteobservando meus dois sobrinhos disputarem sua atenção, cada um a seu jeito.

A Sra. McCrombie deu uma risadinha e Kitty percebeu que ela já tinhatomado algumas doses de uísque.

– Fiquei pensando... – continuou ela. – Qual deles escolherá? Os dois são tãodiferentes... Minha querida, já decidiu qual dos gêmeos será?

Como nunca ousara pensar que Drummond a considerasse algo diferente dediversão ou que Andrew não a tivesse como uma irmã mais nova, Kittyrespondeu sinceramente: – Sra. McCrombie, tenho certeza de que estáenganada. Os Mercers são claramente uma das famílias mais poderosas deAdelaide...

– Senão da Austrália – acrescentou a Sra. McCrombie.

– Sim, e eu, como a pobre filha de um pastor de Leith, nunca poderia meconsiderar boa o suficiente para qualquer um deles. Ou a família deles...

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O som da campainha veio ao seu resgate.

– Bem, minha querida – a Sra. McCrombie abraçou-a carinhosamente juntoaos grandes seios –, vamos ver o que acontece, não é? E, caso não tenha aoportunidade de lhe desejar um feliz 1907 mais tarde, faço isso agora. Eu seique será feliz.

Kitty viu a Sra. McCrombie sair do quarto a toda velocidade. Quando a portase fechou, ela desabou na cama, sentindo-se aliviada e confusa.

Se havia uma coisa em que Kitty sabia que era boa eram as danças escocesas.Ela e suas irmãs tinham aprendido com a mãe, em parte

porque Adele adorava dançar, mas principalmente porque não havia muitomais o que fazer para se distrair durante as longas noites de inverno em Leith.E dançar tinha o benefício de mantê-las aquecidas.

Agora, enquanto dançava o “Duke of Perth”, pensou Kitty, com certezaestava se sentindo quente. Ela invejava os homens, que pelo menos podiamficar com as pernas de fora do kilt, enquanto ela com seu vestido espartilhadode seda e a pesada faixa de tartã suava como um porco.

Naquela noite, porém, não se importou com nada disso, dançando umamúsica atrás de outra com vários parceiros até que por fim, pouco antes dameia-noite, sentou-se para descansar e Andrew trouxe-lhe um grande copo deponche de frutas para aplacar sua sede.

– Minha nossa, Srta. McBride, vimos mais uma faceta da sua personalidadeesta noite. É uma excelente dançarina.

– Obrigada – disse ela ainda ofegante, rezando para que Andrew não seaproximasse demais, porque não tinha dúvidas de que estava com um cheirohorrível.

Minutos depois, ele a levou para o hall com o restante dos convidados, paracumprir a antiga tradição escocesa de dar as boas-vindas à primeira pessoa acruzar a porta após a badalada da meia-noite.

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Reuniram-se ao redor da árvore de Natal, que parecia desamparada com asagulhas de pinheiro que caíam reunidas em montinhos verdes no chão, eKitty ficou ao lado de Andrew.

– Faltam dez segundos! – rugiu Stefan do meio da multidão.

Eles fizeram a contagem regressiva até todos começarem a comemorar edesejar um ótimo ano-novo uns aos outros.

Kitty de repente se viu sendo abraçada por Andrew.

– Feliz ano-novo, Srta. McBride. Eu queria perguntar...

Kitty viu a ansiedade no rosto dele.

– O que foi?

– Tudo bem se eu a chamar de Kitty de agora em diante?

– Mas é claro.

– Bem, espero que em 1907 possamos continuar com nossa... amizade.

Eu... isto é, Kitty...

– Feliz ano-novo, meu filho! – Stefan interrompeu a conversa ao bater nascostas de Andrew. – Não tenho dúvidas de que me deixará orgulhoso emBroome.

– Darei o melhor de mim, senhor – respondeu Andrew.

– E feliz ano-novo. A senhorita veio enfeitar o Natal da nossa família. –

Ele se inclinou e beijou Kitty ternamente, o bigode de pontas viradas paracima fazendo cócegas em sua bochecha. – E tenho certeza de que nós doisesperamos que resolva prolongar seu tempo conosco na Austrália, não é,rapaz?

Stefan piscou de maneira óbvia para o filho antes de se dirigir aos outros

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convidados.

Andrew rapidamente pediu licença para ir atrás da mãe e Kitty saiu para

a varanda em busca de ar fresco.

Lá, foi imediatamente erguida por trás por fortes braços e rodopiada, depoisfinalmente colocada de volta no chão.

– Feliz ano-novo, Srta. McBride, Kitty... Kat... Sim, esse apelido combinaperfeitamente com a senhorita, que é como um felino, com pés muito leves ebem mais inteligente, desconfio, do que a maioria das pessoas pensa. Emsuma, é uma sobrevivente.

– Sou? – A cabeça de Kitty estava girando e ela procurou se firmar. Olhoupara Drummond. – Você está bêbado?

– Ha, ha! Essa é boa vindo da Srta. Kitty-Kat. Talvez um pouco, mas aspessoas costumam dizer que sou um bêbado afetuoso. Agora, tenho algo paralhe contar.

– O que poderia ser?

– Deve saber tanto quanto eu que há planos em andamento para garantir quese junte à nossa família de forma mais permanente.

– Eu...

– Não finja que não faz ideia do que quero dizer. É óbvio para todo mundoque Andrew está apaixonado pela senhorita. Até mesmo ouvi meus paisconversando sobre isso. Meu pai é totalmente a favor. Mamãe, seja lá porqual motivo, um pouco menos. Mas, uma vez que é a palavra do meu pai queconta nesta casa, estou certo de que em breve teremos um pedido.

– Posso lhe garantir que nada disso passou pela minha cabeça.

– Então ou a senhorita é cheia de falsa modéstia ou mais tola do que euimaginava. Naturalmente, ele tem preferência para tentar ficar com asenhorita.

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Mas, antes de se decidir, queria deixar claras minhas intenções e lhe dizerque, para uma mulher, tem uma série de qualidades que admiro. E...

Pela primeira vez desde que o conhecera, Kitty viu incerteza nos olhos deDrummond.

– A questão é essa...

Ele a pegou nos braços e a beijou com força. Fosse por choque ou por puroprazer, Kitty não se afastou imediatamente, e seu corpo todo começou aderreter como um torrão de manteiga ao sol australiano.

– Pronto – disse ele quando finalmente a soltou. Inclinou-se para sussurrarem seu ouvido: – Lembre-se disso: meu irmão pode lhe oferecer segurança,mas comigo a senhorita terá aventura. Mas, por favor, não tome nenhumadecisão até eu voltar da Europa. Agora vou para o Edinburgh Castle celebraraté o amanhecer com meus amigos.

Boa noite, Srta. McBride.

Com um aceno, Drummond a deixou na varanda e seguiu para os fundos dacasa. Quando ouviu a charrete saindo pelo portão, Kitty levou os dedoshesitantemente aos lábios. E reviveu cada segundo do prazer que sentira como toque dele.

Kitty não viu Drummond na manhã seguinte – ele fora cedo para o navio

a fim de supervisionar o embarque dos baús. Kitty entregou as cartas queStefan Mercer prontificara-se gentilmente a enviar para sua família quandochegasse à Europa.

– Ou, na verdade – disse ele, dando uma piscadela –, posso até mesmoentregar pessoalmente. Adeus, minha querida.

Ele a beijou nas duas faces. Então, com acenos de despedida de todos nacasa, subiu na carruagem.

Kitty tomou o café da manhã sozinha com Andrew, já que a Sra.

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McCrombie tomava o dela no quarto e Edith fora ao cais se despedir domarido e do filho. Considerando as conversas ocorridas no dia anterior, ela sesentiu desconfortável sentada ali com ele. Andrew parecia estranhamentequieto.

– Srta. McBride... – disse ele por fim.

– Por favor, Andrew, concordamos que você me chamaria de Kitty.

– É claro, é claro. Kitty, você anda a cavalo?

– Ando, sim, ou melhor, andava. Aprendi quando era criança e ficamos umtempo na casa dos meus avós, em Dumfriesshire. Alguns dos cavalos erambastante selvagens, vindo das charnecas, e passei muito tempo sendo jogadano chão. Por que pergunta?

– Estava apenas pensando que não há nada como andar a cavalo para clarearas ideias. Temos um bangalô nas colinas de Adelaide com um pequenoestábulo anexo. O que me diz de irmos lá hoje? O ar é mais fresco e arejado,e acho que você iria gostar. Mamãe me deu permissão para acompanhá-la, apropósito.

Eles chegaram ao bangalô da família Mercer duas horas depois. Comoesperava pouco mais do que uma casa de campo, Kitty ficou espantada ao verque a casa, em um terreno não muito alto, era, na verdade, uma mansão, emmeio a jardins exuberantes e cercada por vinhas. Ela deu um giro, observandocomo as colinas verdejantes desciam e se elevavam ao redor, o que a fezlembrar das Terras Baixas escocesas.

– É lindo – disse Kitty sinceramente com um suspiro.

– Fico feliz que tenha gostado. Agora, permita-me mostrar-lhe os estábulos.

Meia hora depois, os dois saíram para cavalgar. Enquanto trotavam pelo valeem direção à planície, Kitty arriscou um galope. Andrew então recuperou aliderança, mantendo o ritmo, e Kitty riu alto com o prazer de sentir o arfresco na pele e poder admirar todo aquele verde ao seu redor.

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Quando voltaram ao bangalô, viu que um almoço leve fora servido em umamesa na varanda.

– Parece delicioso – disse Kitty, ofegante por causa do esforço, enquanto sejogava em uma cadeira e, sem cerimônia, pegava uma fatia de pão aindaquente do forno.

– Há também um cordial de limão para você – indicou Andrew.

– Quem fez tudo isso?

– A governanta. Ela mora aqui o ano todo.

– Mesmo que vocês raramente venham, como me contou no caminho?

– Sim. Meu pai é muito rico, e pretendo ser também.

– Tenho certeza de que vai ser – disse Kitty após uma pausa.

– É claro – continuou Andrew apressadamente, percebendo ter cometido umerro – que não é o meu objetivo principal, mas, sobretudo aqui na Austrália, odinheiro pode ajudar.

– Ajuda em qualquer lugar, mas realmente acredito que não pode comprar afelicidade.

– Eu não poderia concordar mais, Kitty. Família e... amor, isso é tudo queimporta.

Terminaram o almoço praticamente em silêncio, Kitty apenas seconcentrando em apreciar os arredores, tentando não pensar no provávelmotivo para aquele passeio.

– Kitty... – Andrew acabou quebrando o silêncio. – Talvez você saiba por queeu a trouxe aqui.

– Para me mostrar a vista? – respondeu ela, soando insincera até mesmo aosseus ouvidos.

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– Isso, e... creio que não seja uma completa surpresa quanto eu... passei agostar da senhorita nos últimos dez dias.

– Ah, tenho certeza de que se cansaria de mim se me conhecesse por maistempo, Andrew.

– Duvido, Kitty. Como de costume, você está apenas sendo modesta.

Conversei bastante com minha tia, uma mulher que a conhece praticamente avida inteira, e ela não tinha nada negativo para dizer a seu respeito. Aos olhosdela, assim como aos meus, você parece perfeita.

E, já tendo contado aos meus pais sobre minhas intenções, e com a aprovaçãodos dois...

Nesse momento, Andrew levantou-se abruptamente e ajoelhou-se na frentedela.

– Katherine McBride, poderia fazer a honra de se tornar minha esposa?

– Meu Deus! – disse Kitty após uma pausa adequada, que esperava indicarque não sabia sobre o pedido. – Estou em choque. Nunca pensei...

– Isso é porque você é única, Kitty. Uma garota... mulher, na verdade, quenão reconhece a própria beleza, interior ou exterior. Você é linda, Kitty, e eusoube no instante em que a vi que queria que fosse minha esposa.

– Soube?

– Sim. Eu não diria que sou de natureza romântica, mas... – Andrewenrubesceu – ... foi realmente um caso de amor à primeira vista. E então

– ele riu – percebi que estava certo quando você mostrou todo aqueleentusiasmo pela pegada de dinossauro em Broome. A maioria das garotasnem sequer saberia o que é um dinossauro, que dirá ficar interessada em suapegada fossilizada. O que você me diz?

Kitty olhou para Andrew, para o seu rosto indiscutivelmente lindo, e entãoergueu a cabeça e examinou a bela propriedade que aquele

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homem provavelmente herdaria. Seus pensamentos voltaram para Leith e opai, que dizia amá-la, mas a banira para o outro lado do mundo,provavelmente em razão do que ela sabia.

– Eu...

Sua mente evocou uma vívida imagem de Drummond e, logo em seguida,começou a reproduzir uma seleção de lembranças. A maneira como ele aprovocava, tratando-a como igual, e não como uma boneca de porcelana, ojeito como a fazia rir mesmo sem querer... e, acima de tudo, a sensação queexperimentara quando ele a beijara.

A questão era: Drummond despertava o melhor ou o pior nela? O que querque fosse, Kitty com certeza era uma pessoa diferente quando estava com ele.

– Por favor, entendo que isso seja um choque, assim tão pouco tempo depoisde nos conhecermos – persistiu Andrew diante do silêncio dela. –

Mas devo voltar para Broome em fevereiro ou março, e, como mamãeressaltou, dessa forma há pouco tempo para se preparar qualquer casamento.Ou seja, não é que eu queira apressá-la a tomar uma decisão, mas...

Andrew parou de falar e Kitty pensou em como ele era gentil.

– Posso pensar um pouco mais? Eu planejava voltar para a Escócia e para aminha família. E o casamento significaria... bem, ficar aqui. Para o resto daminha vida. Com você.

– Querida Kitty, entendo perfeitamente. Você pode levar todo o tempo de queprecisar. Tia Florence me contou que você vem de uma família em que aspessoas são muito próximas, e sei o sacrifício que faria se casasse comigo. E,é claro, pelo menos pelos próximos anos, você teria que morar em Broome.

– Um lugar que sua mãe odeia.

– Mas que eu acredito que você aprenderia a amar. As coisas lá mudarammuito desde a última vez que ela se dignou a fazer uma visita. Broome estáprosperando, Kitty, os navios que chegam diariamente do mundo inteiro

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trazem artigos de luxo e coisas preciosas em que você não iria acreditar. Mas,sim – concordou Andrew –, ainda é uma sociedade em formação, ondemuitas regras do comportamento social tradicional não existem. De qualquermaneira, sinto que você a abraçaria tão fortemente quanto minha mãe aridicularizou, por sua natureza igualitária e generosa. Agora preciso melevantar, antes que meu joelho não aguente mais. – Andrew ficou de pé esegurou as mãos de Kitty. – De quanto tempo você precisa?

– Alguns dias, tudo bem?

– É claro. De agora em diante – disse ele, pegando a mão dela e beijando-asuavemente –, vou deixá-la à vontade para pensar.

Durante os três dias seguintes, Kitty ponderou a situação consigo mesma,com um periquito magnífico no jardim e, é claro, com Deus.

Nada conseguiu ajudá-la a clarear as ideias sobre o assunto. Ela ansiava pelasabedoria da mãe, que lhe aconselharia com base puramente no amor e nosmelhores interesses da filha.

Mas seria mesmo? , pensou Kitty, enquanto andava de um lado para outro noquarto, percebendo que havia uma grande chance de Adele incentivar a filhaa pular de cabeça na oportunidade de se casar com um homem bonito de umafamília boa e rica, dada a vida frugal que levavam em Leith.

A verdade nua e crua era que, apesar de Kitty saber que o casamento era apróxima etapa de sua vida, uma vez que completara 18 anos, isso sempreparecera uma ideia remota. Mas agora ali estava. A pergunta que ela nãoparava de se fazer era se a mulher devia amar o futuro marido desde oprimeiro momento em que o vira. Ou se, inicialmente, a emoção de umnoivado vinha de um ângulo muito mais pragmático: o fato de saber que tinhasido tirada da árvore das jovens solteiras –

principalmente sendo tão pobre quanto ela – e que estaria em segurança peloresto da vida. Talvez o amor viesse ao se compartilhar uma existência juntos,o que um dia incluiria uma -

família.

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Kitty também estava certa de que se os Mercers tivessem visto ascircunstâncias difíceis em que sua própria família vivia e percebessem queela não era exatamente um “bom partido”, poderiam ter uma opinião bemdiferente sobre aquela união. No entanto, ali não era Edimburgo, mas aAustrália, onde ela e todos que chegavam ao seu solo vermelho e empoeiradopodiam se reinventar e ser o que escolhessem.

De qualquer maneira, o que de fato havia na Escócia para ela no futuro?

Se tivesse sorte, casar-se com Angus e levar a vida como esposa de umclérigo, o que seria pouco diferente dos seus primeiros dezoito anos, emboratalvez mais difícil.

Apesar das palavras de Drummond sobre levar uma vida de aventuras comele, Kitty percebeu que casar-se com qualquer um dos gêmeos e segui-lo parao norte do imenso país iria lhe garantir isso.

No entanto... a maneira como seu corpo havia estremecido quandoDrummond a beijou. Quando Andrew pegou sua mão e a beijou, não foradesagradável, mas...

Por fim, completamente exausta de tanto pensar, Kitty decidiu procurar a Sra.McCrombie. Por mais tendenciosa que pudesse ser, era o mais próximo deuma família que Kitty tinha.

Escolheu um momento em que Edith tinha saído para fazer visitas.

Tomaram chá juntas, e a Sra. McCrombie ouviu Kitty desabafar asmaquinações de sua mente.

– Ora, veja. – A Sra. McCrombie ergueu uma sobrancelha, sem demonstrarprazer ou desagrado, para a surpresa de Kitty. – Você já sabia que euesperava que isso fosse acontecer, mas, minha querida, eu sinto mesmo porvocê. Não podemos ser tão ingênuas a ponto de

acreditar que sua decisão não terá um efeito irrevogável sobre o resto de suavida.

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– Sim.

– Você sente muita falta de Edimburgo?

– Sinto falta da minha família.

– Mas não do lugar em si?

– Quando o sol queima, sinto saudade do frio, mas gosto do que vi daAustrália até agora. É uma terra de possibilidades, em que tudo pode -

acontecer.

– Para o melhor ou para o pior – interveio a Sra. McCrombie. – Minhajovem, do meu ponto de vista, vou repetir o que eu disse na véspera do ano-novo. Só posso dizer que você desabrochou desde que chegou aqui.

Acho que você e a Austrália combinam.

– Definitivamente, sinto-me mais livre aqui, sim – arriscou Kitty.

– No entanto, se você se casar com Andrew, terá que se resignar a não versua família novamente talvez por muitos anos. Embora, minha querida, semdúvida você vá dar início à sua própria família. É a progressão natural, sejaem Edimburgo ou na Austrália. De uma maneira ou de outra, quando umamulher se casa, sua vida muda. E quanto ao Andrew? Você gosta dele?

– Sim, muito. Ele é atencioso, amável e inteligente. E, pelo que me disse,trabalhador também.

– De fato ele é – confirmou a Sra. McCrombie. – Independentemente do quepossa parecer para alguém de fora, ser filho de um pai riquíssimo tem suasdesvantagens. Ele precisa provar a Stefan e a si mesmo que pode serigualmente bem-sucedido. Ao contrário de Drummond, que, por acaso donascimento, não carrega esse mesmo peso de responsabilidade. O herdeiro eo suplente do trono Mercer – disse a Sra.

McCrombie, rindo. – Posso lhe perguntar, Kitty, se Drummond... falou comvocê antes de partir para a Europa?

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– Sim. – Kitty concluiu que não era hora de poupar seu rubor. – Ele me pediuque o esperasse.

– Imaginei. Ele não conseguia tirar os olhos de você desde o instante em quea conheceu. Toda aquela provocação tola... Uma maneira juvenil de ganharsua atenção. E o que você respondeu?

– Eu não disse nada. Drummond saiu e não o vi novamente antes de eleembarcar para a Europa.

– Que emocionante. Bem, não quero tratá-la com condescendência indicandoas qualidades de cada um de meus sobrinhos, mas, Kitty, minha querida, oque posso lhe dizer é que, quando uma moça decide se casar, o que elaprecisa de seu pretendido é muito diferente daquilo com que possa sonharcomo uma jovem. Com isso quero dizer estabilidade, segurança,principalmente em um país como este, e alguém firme e confiável, de quemse pode esperar proteção. Alguém que você respeita e, sim, antes quepergunte, o amor pode vir com o tempo. E não tenho

dúvidas de que Andrew já ama você.

– Obrigada, Sra. McCrombie, pelo sábio conselho. Vou pensar no que medisse. E farei isso rapidamente, porque sei que temos pouco tempo.

– É um prazer. Como tenho certeza de que sabe, nada me agradaria mais doque passarmos oficialmente a ter laços de parentesco, mas a decisão é sua.

Apenas lembre-se de que Andrew não está lhe oferecendo apenas seu amor,mas uma vida completamente nova, da qual só você poderá decidir o que vaifazer.

Mais tarde naquele dia, quando viu Andrew chegar em casa de charrete, Kittydesceu rapidamente para encontrá-lo à porta e comunicar sua decisão antesque mudasse de ideia.

– Andrew, posso falar com você?

Ele se virou para ela, e Kitty soube que estudava seu rosto para ver se

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descobria a resposta em seus olhos.

– É claro. Vamos até a sala de visitas.

Kitty notou a tensão no corpo dele quando entraram na sala e se sentaram.

– Andrew, perdoe-me por ter levado algum tempo para pensar na suaproposta. Como sabe, é uma decisão muito importante para mim. No entanto,finalmente me decidi, e digo que ficaria honrada em me tornar sua esposa,contanto que meu pai concorde com essa união.

Ela ficou em silêncio, sem fôlego por ter dito as palavras, e em seguida olhoupara Andrew. Ele não parecia tão feliz quanto ela imaginara que ficaria.

– Andrew, você mudou de ideia?

– Eu... não. Quer dizer... você tem certeza absoluta?

– Certeza absoluta.

– E ninguém a pressionou a fazer isso?

– Não!

Agora que comunicara sua decisão, ele parecia interrogá-la sobre os motivosde ter aceitado seu pedido.

– Eu... bem, imaginei que você estivesse se preparando para recusar. Quetalvez houvesse outra pessoa. Eu...

– Juro que não há ninguém.

– Certo, bem, então...

Kitty viu as nuvens se dissiparem dos olhos de Andrew.

– Meu Deus! Isso faz de mim o homem mais feliz do mundo! Devo escreverimediatamente a seu pai solicitando a permissão dele, mas...

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você teria alguma objeção se eu fizesse isso por telegrama? Como você sabe,as cartas demoram muito para chegar e o tempo é essencial. E, é claro,mandarei uma para o meu pai também, pedindo que vá logo à casa dos seuspais enquanto está na Europa. – As palavras saíam sem parar enquantoAndrew andava de um lado para outro na sala. – Espero que seu pai estejapreparado para confiar sua amada filha a mim. Ele conhece

nossa família através da minha tia, é claro. – Andrew parou de andar parapegar as mãos dela. – Juro a você agora, Katherine McBride, que vou amá-lae lhe darei o melhor durante toda a sua vida.

Kitty assentiu e fechou os olhos quando ele a beijou suavemente nos lábios.

Dois dias depois, Andrew mostrou a Kitty o telegrama que acabara de chegar.

andrew pt encantado em dar minha bênção para seu casamento com minhafilha pt muitas felicidades para você e katherine pt mamãe e toda a famíliamandam parabéns aos dois pt ralph pt – O obstáculo final! –

exclamou Andrew, cheio de júbilo. – Agora podemos anunciar ao mundo ecomeçar os preparativos para o casamento.

Pode não ser tão grandioso quanto você desejaria, considerando as limitaçõesde tempo, mas mamãe conhece todo mundo em Adelaide e pode usar suainfluência para conseguir que você tenha um belo vestido, pelo menos.

– Sinceramente, Andrew, essas coisas não são importantes para mim...

– Pode ser, mas este casamento é importante para mamãe. Então devemosfalar com ela e tia Florence hoje mesmo.

Kitty assentiu, então virou e subiu a escada, sabendo que tinha os olhoscheios de lágrimas. Quando chegou ao quarto, atirou-se na cama e chorou,pois tudo que imaginara sobre seu pai querer se livrar dela para sempreprovara-se verdadeiro.

Na manhã de seu casamento com Andrew, um mês depois, Kitty estavadiante do longo espelho em seu vestido de noiva. Edith realmente usara de

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sua influência, e o vestido branco era digno de uma princesa. Sua cinturaestava apertada ao máximo, e o pescoço comprido, à mostra; os cabeloscastanho-avermelhados foram presos de maneira encantadora por Agnes noalto da cabeça. A magnífica renda Alençon fora ornamentada por centenas depequenas pérolas que brilhavam e cintilavam ao mais ligeiro movimento.

– Você está linda, Srta. Kitty, estou com vontade de chorar... – disse Agnesenquanto endireitava o véu de tule sobre os ombros de Kitty.

– Bom dia, Kitty.

Ela viu o reflexo de Edith, que entrava no quarto atrás dela.

– Bom dia.

– Ela não parece uma pintura, senhora? – disse Agnes, limpando o nariz.

– De fato – respondeu Edith formalmente, como se lhe doesse dizer aspalavras. – Posso ter uma palavra a sós com Katherine?

– Claro, senhora.

Agnes saiu depressa do quarto.

– Vim lhe desejar boa sorte, Katherine – disse Edith, andando em torno dafutura nora e verificando se o vestido estava perfeito.

– Obrigada.

– Conheci seu pai um dia, quando era bem mais jovem. Nós nos vimos pelaprimeira vez em um baile nas Terras Altas. Eu achava que ele estava tãoencantado por mim quanto eu por ele. Mas seu pai sempre foi muitoenvolvente, como creio que saiba.

O coração de Kitty começou a bater acelerado. Ela não respondeu, sabendoque Edith tinha mais a dizer.

– É claro que eu estava enganada. Ele não só era envolvente, mas também umaproveitador. Um cafajeste que gostava de seduzir as mulheres e que, depois

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de usá-las, passava para a próxima. Sem meias palavras, ele me abandonou.Não vou entrar em detalhes, mas, além de partir meu coração, ele quasearruinou minha reputação. Eu... Bem, basta dizer que se Stefan não tivessechegado da Austrália e não tivéssemos nos conhecido por acaso em Londres,sem que ele tivesse a menor ideia da minha “reputação”, minhas perspectivasde futuro teriam sido arruinadas.

Kitty respirou fundo, procurando se recompor, ao sentir o calor doconstrangimento e do choque em sua pele.

– Posso lhe garantir que o que estou dizendo é verdade. Espero que entendapor que não fiquei nem um pouco satisfeita quando minha irmã me escreveudizendo que você a acompanharia e que eu tinha de recebê-

la em minha casa. Pois, é claro, a verdade sobre esse assunto foi varrida paradebaixo do tapete e minha irmã não sabe do que seu santo Ralph fez. Eagora...

– Edith ficou de frente para ela. – Você, filha dele, vai se casar com meufilho, e seremos parentes. Não posso ignorar a ironia nisso, e seu pai tambémnão.

Kitty olhou para toda aquela renda branca em torno de seus péselegantemente calçados.

– Por que está me contando isso? – sussurrou.

– Porque você está entrando para a nossa família e não quero mais segredosentre nós. E também para avisar que, se algum dia você ferir meu filho dojeito que seu pai me feriu, vou atrás de você até destruí-la.

Entendeu?

– Sim.

– Bem, isso é tudo que tenho a dizer. Só posso esperar que você tenha anatureza de sua mãe. Minha irmã me contou que ela é uma mulher muitogentil e impassível. Parando para pensar, acho que tive sorte, pois tenho

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certeza de que sua mãe sofreu durante o casamento com aquele homem,assim como eu sofri. Um pastor?! Logo ele! – Edith riu com voz rouca, masdepois, vendo a óbvia aflição de Kitty, recuperou a compostura. –

Agora, Kitty, nunca mais mencionaremos esse assunto. – Edith se aproximoue beijou hesitantemente as bochechas da futura nora. – Você está linda,minha querida. Bem-vinda à família Mercer.

Ceci Praia de Phra Nang, Krabi, Tailândia Janeiro de 2008

11

Ace esticou os braços e bocejou, deixando o livro no sofá. Sentei-me,pensando sobre a história que acabara de ouvir.

– Uau – murmurei. – Kitty Mercer parece incrível! Mudar-se para o outrolado do mundo, casar-se com um homem que mal conhecia e herdar umasogra que parece terrível.

– Imagino que várias mulheres tenham feito o mesmo naquela época,sobretudo as que tinham uma vida para a qual não queriam voltar. – Aceolhava para longe. – Como Kitty – acrescentou, por fim.

– Sim, o pai dela parecia um verdadeiro babaca. Você acha que ela fez aescolha certa, casando-se com Andrew em vez de Drummond?

Ace observou a foto de Kitty na capa.

– Quem sabe? Fazemos tantas escolhas todos os dias...

O rosto dele se fechou, então não o pressionei para saber sobre as decisõesque ele havia tomado para acabar escondido naquele palácio.

– A questão é: o que ela tem a ver comigo? – perguntei. – Não acho quesejamos parentes, não nos parecemos nem um pouco.

Para ilustrar o que queria dizer, ergui o livro e tentei imitar a expressão sériade Kitty. Ace deu uma risada e passou um dedo pela minha bochecha.

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– Você não precisa ser parecida para ser parente. Veja o meu caso... Meu paié europeu, e aposto que você também veio de uma mistura de raças.

Nunca parou para pensar nisso?

– É claro que sim. Para ser sincera, simplesmente aceitei... As pessoas sempretentavam adivinhar de onde eu era quando lhes contava que era adotada.Diziam todo tipo de coisa... sul-asiática, sul-americana, africana... é como setodos quisessem me colocar em uma caixa e me rotular, mas eu só queria sereu.

Ace assentiu.

– Sim, entendo. Aqui na Tailândia eles nos chamam de luk kreung, queliteralmente quer dizer “meio filho”, com o sentido de “meio tailandês”.

Mas, mesmo conhecendo minha origem, isso não significa que entendo quemeu sou ou a que lugar pertenço. Sinto-me deslocado onde quer que esteja. Eme pergunto se você se sentirá em casa na Austrália.

– Eu... não sei.

Estava começando a sentir meu rosto corar, todas aquelas perguntas

deixando minha mente confusa. Levantei-me. – Vou sair para ver o pôr do sole dar um último mergulho – disse enquanto atravessava o terraço em direçãoà escada. – Quero tirar algumas fotos.

– O que você quer dizer com um “último” mergulho?

– Estou indo embora amanhã. Vou colocar o biquíni.

Ao chegar ao portão alguns minutos depois com minha câmera, encontreiAce à espera, com calção de banho, óculos escuros e boné.

– Vou com você – falou.

– Está bem.

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Tentei não demonstrar minha surpresa ao vê-lo apertar o botão vermelho.

Então entreguei minha câmera a Po enquanto Ace saiu a toda velocidade parao mar, eu logo atrás dele. Nadamos para bem longe, para além de todas asoutras pessoas, e ele me abraçou e me beijou.

– Por que você não me contou antes que ia embora?

– Para ser sincera, perdi a noção dos dias. Só quando vi a passagem de aviãona mochila hoje de manhã foi que me dei conta.

– Será estranho sem você, Ceci.

– Tenho certeza de que você vai ficar bem. Venha – chamei enquanto -

saíamos da água –, preciso pegar a câmera e tirar algumas fotos do pôr do sol.

Peguei a câmera com Po e voltei à praia para capturar o pôr do sol, enquantoAce me observava em meio à folhagem.

– Senhora quer foto? Eu tiro – disse Po, oferecendo ajuda.

– Você se importaria de sair na foto comigo? – perguntei a Ace. – Com o pôrdo sol e todo esse cenário atrás de nós? Só para eu guardar de lembrança?

– Eu...

Ela notou o medo atravessar os olhos dele antes que relutantementeconcordasse.

Mostrei a Po qual botão apertar e, de costas para a praia, Ace passou o braçoao meu redor e posamos diante do pôr do sol em Phra Nang. Po tirou váriasfotos, entusiasmado, até que Ace ergueu a mão, digitou o código no portão edesapareceu. Fui atrás dele, parando para pegar minha câmera.

– Senhora, levo para a loja e imprimo? Meu primo tem loja boa em KrabiTown. Vou lá agora, fotos prontas amanhã de manhã – disse Po.

– Está bem, obrigada – concordei, tirando o rolo do filme da máquina. –

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Faça duas cópias de tudo, sim?

Gesticulei para explicar, pensando que seria uma boa lembrança para deixarpara Ace.

– Sem problema, senhora. – Po sorriu para mim. – Será um prazer.

Trezentos bahts pelas duas cópias?

– Está certo.

Então saí me perguntando por que ele estava sendo tão prestativo, e

pensei que ainda poderia estar com a consciência pesada. Talvez, de vez emquando, os seres humanos quisessem compensar de alguma forma os erros dopassado.

Naquela noite, perguntei-me se era eu quem estava diferente, mas a conversaque costumava fluir durante o jantar agora soava artificial. Ace estavaestranhamente quieto e nem sequer ria das minhas piadas, o que normalmentefazia, por piores que fossem. Assim que baixei a faca e o garfo, ele bocejou edisse que devíamos nos deitar cedo, e eu concordei.

Na cama, ele me abraçou silenciosamente na escuridão e fizemos amor.

– Boa noite, Ceci – disse, enquanto nos acomodávamos para ele dormir e eucontinuar acordada.

– Boa noite – respondi.

Mesmo prestando atenção para ver se notava a mudança na respiração queme indicaria que estava dormindo, não escutei. Depois de algum tempo, eu oouvi suspirar e senti sua mão me procurar hesitantemente na escuridão.

– Você está dormindo? – sussurrou ele.

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– Você sabe que raramente estou.

– Venha, preciso de um abraço.

Ace me puxou para junto dele e me abraçou tão forte que meu nariz ficoupressionado ao seu peito e eu mal conseguia respirar.

– Falei sinceramente mais cedo. Vou sentir sua falta – murmurou ele, noescuro. – Talvez eu vá até a Austrália. Vou lhe dar o número do meu celular.

Promete me mandar seu endereço?

– Sim, claro.

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– Somos uma dupla e tanto, não somos?

– Somos?

– Sim, ambos em uma encruzilhada, sem saber para onde ir em seguida.

– Acho que sim.

– Bem, isso vale para você, pelo menos. Infelizmente, sei muito bem paraonde vou. Alguma hora...

– Para onde?

– Não importa, só quero lhe dizer que, se as coisas fossem diferentes... –

Senti seus lábios tocarem delicadamente o alto da minha cabeça. – Você é apessoa mais verdadeira que já conheci, Celeno D’Aplièse. Nunca mude, estábem?

– Acho que não consigo.

– Não. – Ele riu. – Provavelmente não. Só quero que me prometa mais umacoisa.

– O quê?

– Se você... ouvir coisas sobre mim no futuro, tente não me julgar. Você sabeque as coisas nunca são exatamente o que parecem. E... – eu sabia que eleestava se esforçando para encontrar as palavras – ... às vezes

você tem que fazer certas coisas para proteger aqueles que ama.

– Sim, como eu fiz pela Estrela.

– Sim, querida, como você fez pela Estrela.

Então, ele me beijou de novo e rolou para o lado.

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É claro que nem pisquei naquela noite. Uma enxurrada de emoções –

algumas delas novas – passava pelo meu coração. Eu só queria poderdesabafar com alguém, pedir uma opinião sobre o que Ace tinha me dito.

Mas o fato era que Ace se tornara meu “alguém”... meu amigo. Pensei umpouco sobre essa palavra. Eu nunca tivera um amigo propriamente dito quenão fosse minha irmã, e talvez nem mesmo soubesse como funcionava aamizade. Eu também era amiga dele? Ou Ace simplesmente estava meusando para aliviar sua solidão... e será que eu estava fazendo o mesmo? Ouéramos mais do que apenas amigos...?

Desisti de ficar deitada na cama sem dormir e fui até a praia, embora aindafosse cedo demais para o nascer do sol. Meu coração começou a bateracelerado quando pensei em deixar a segurança daquele pequeno universoque Ace e eu havíamos criado juntos. Eu sentiria muita falta dele... e daqueleparaíso.

Po estava voltando para o turno do dia enquanto eu caminhava até o portãodo palácio pela última vez.

– Suas fotos, senhora.

Ele estendeu a mão para a mochila de nylon e pegou alguns envelopescoloridos. Folheou quatro deles, verificando o conteúdo, e me perguntei seaquele era um serviço que ele oferecia aos moradores da praia de Phra Nangpara ganhar um dinheiro extra.

– Esses são os seus – confirmou, guardando os outros dois pacotes namochila.

– Obrigada – falei, lembrando-me de pagar pelas fotos e dar-lhe uma boagorjeta quando saísse.

Em seguida, fui até o quarto guardar minhas coisas.

Uma hora depois, coloquei a mochila nas costas e fechei a porta. Entãocaminhei infeliz até o terraço, onde Ace andava de um lado para outro.

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Apesar dos pesares, fiquei contente ao ver que ele parecia tão triste e agitadoquanto eu.

– Está indo embora?

– Sim. – Tirei o envelope de fotos do bolso traseiro e coloquei-o na mesa.

– São para você.

– E aqui está o número do meu celular – disse ele, entregando-me um pedaçode papel.

Ficamos parados ali sem jeito, nos olhando. E eu só queria que aquelemomento acabasse.

– Muito obrigada por... tudo.

– Não precisa me agradecer, Ceci. Foi um prazer.

– Está certo.

Quando eu ia colocar a mochila nos ombros novamente, ele abriu os

braços.

– Venha aqui. – Ace me puxou para junto dele e me deu um grande abraço, oqueixo descansando no alto da minha cabeça. – Promete que vai mantercontato?

– Sim, é claro.

– E nunca se sabe, de repente posso ir até a Austrália – disse enquantocarregava minha mochila até o portão.

– Isso seria ótimo. Tchau.

– Tchau, Ceci.

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Po apertou o botão vermelho para me deixar sair, e eu lhe dei o dinheiro dasfotos e ofereci uma gorjeta. Surpreendentemente, ele recusou, balançando acabeça e olhando para mim com aquela sua expressão típica de culpa.

– Adeus, senhora.

Segui pelo caminho dos plebeus até Railay, sentindo-me perturbada demaispara ir me despedir de Jack e do resto do pessoal. Não que eu esperasse queeles fossem sentir falta de mim. Quando passei pelo bar, vi Jay à toa navaranda com uma cerveja Singha, algo tão comum que parecia estarpermanentemente colada aos seus dedos. Continuei, passando direto por ele.

Não estava no clima para jogar conversa fora.

– Oi, Ceci – disse ele, me interceptando. – Indo embora?

– Sim.

– Não vai levar seu novo namorado com você?

Vi um brilho em seus olhos embriagados e um sorriso debochado em seuslábios.

– Você se enganou, Jay. Eu não tenho nenhum namorado.

– Não... é claro que não.

– Tenho que ir ou vou perder meu voo. Tchau.

– Como está sua irmã? – perguntou enquanto eu saía.

– Bem! – gritei de volta sem parar de andar.

– Mande lembranças minhas, ok?

Fingi não ouvir e segui pela areia em direção aos barcos à espera paratransportar passageiros de volta à cidade de Krabi.

À medida que o avião deixava a pista do aeroporto de Suvanabhumi em

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direção a Sydney, pensei que o lado positivo de minha mente estar tãoocupada com Ace nas últimas horas era que, pelo menos, eu não tinha ficadopensando na viagem de avião de doze horas ou no que poderia encontrarquando chegasse lá. Também conseguira comprar o que o farmacêutico doaeroporto chamara de “pílulas do sono” para ajudar na viagem. Tomara duaspor precaução assim que o embarque foi anunciado. Mas, na verdade, agorame sentia mais acordada e alerta do que de costume, e me perguntei seaqueles comprimidos não teriam cafeína em vez de uma poção para dormir.

Por sorte, o avião estava relativamente vazio, com dois assentos livres aomeu lado, então, assim que o aviso do cinto de segurança foi desligado,estiquei o corpo e procurei uma posição confortável, dizendo a meu cérebroque estava exausta, medicada, e que ele devia fazer o favor de dormir.

Mas obviamente não fui ouvida, e, depois de me revirar um pouco, inquieta,sentei-me e aceitei a comida oferecida pela comissária tailandesa.

Até tomei uma cerveja para acalmar os pensamentos. Isso também nãofuncionou. Então, quando as luzes diminuíram, deitei-me e me forcei apensar no que estava por vir.

Depois de desembarcar em Sydney, no início da manhã, eu teria que seguirpara uma cidade chamada Darwin, na ponta norte da Austrália, e de lá pegaroutro avião para Broome. O trajeto não era nada lógico, o que me irritaraquando reservei os voos. Isso significava horas a mais no ar, sem falar notempo gasto em trânsito no aeroporto.

Eu pesquisara Broome na internet quando estava no aeroporto, e, a julgarpelas fotos, a cidade parecia ter uma praia muito bonita.

Atualmente, era um local acima de tudo turístico, mas muito tempo antes,pelo que lera na biografia de Kitty Mercer, fora o centro da indústria depérolas. Perguntei-me se tinha sido de lá que viera minha herança...

Se havia uma coisa que as últimas semanas tinham me ensinado era que oclichê de que dinheiro não compra felicidade era absolutamente verdadeiro.

Pensei em Ace, que sem dúvida era extremamente rico, mas solitário e

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infeliz.

Imaginei se estaria sentindo minha falta. Naquela noite, eu sentia muita faltadele... Não de uma maneira sentimental, como se não pudesse viver sem eleou algo assim, ou ansiasse pelo toque da mão dele na minha.

Quero dizer, o sexo fora bom, o melhor que eu já tivera, mas a parte de queeu mais gostara fora a cumplicidade, assim como a que eu tinha com Estrela.

Ace preenchera a imensa lacuna que ela deixara. Fora meu amigo econfidente até certo ponto. É assim que sinto falta dele, pensei, só por ele terestado lá do meu lado. Eu sabia que no mundo real, fora do palácio, nossoscaminhos nunca teriam se cruzado. Ele era um garoto rico da cidade,acostumado a louras magricelas que compravam bolsas de grife e usavamsalto agulha extremamente altos.

Tinha sido um acaso: duas pessoas solitárias à deriva em uma praia, ajudandouma à outra. Ele seguiria em frente, e eu também, mas esperava mesmo quefôssemos sempre amigos.

Àquela altura, ou a cerveja ou as “pílulas do sono” entraram em ação, porquenão registrei mais nada até a comissária me acordar para dizer queaterrissaríamos em Sydney em 45 minutos.

Duas horas depois, decolei novamente, em um avião bem menor. Ao deixarSydney para trás, olhei para baixo e vi um enorme vazio. Nada, literalmentenada, exceto a imensidão vermelha. No entanto, era um vermelho nãoexatamente vermelho... o mais perto que eu podia chegar de descrever a corda terra lá embaixo era a páprica que Estrela às vezes usava na cozinha.

Na mesma hora, pus-me a pensar em como replicar aquela cor em um quadro.Depois de um tempo, percebi que tinha a vida toda para pensar nisso, pois aterra cor de páprica lá embaixo estendia-se infinitamente.

Era sobretudo plana, a paisagem fazendo lembrar uma sopa podre de tomate:acastanhada nas bordas, com uma fina camada de creme colocada por cimaindicando uma estrada ou um rio.

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No entanto, quando nos aproximamos de Darwin, meu destino final, umsúbito aperto no coração o fez bater mais rápido. Eu me sentia estranhamenteanimada e chorosa, do mesmo jeito que ficava quando assistia a um filmecomovente, mas encorajador. Era como se eu quisesse bater com o punho najanela de acrílico, pular e aterrissar naquela terra vermelha, dura e implacávelque instintivamente parecia de alguma forma parte de mim. Ou melhor, euera parte dela.

Depois de aterrissarmos, a alegria que senti foi logo substituída por um medoabjeto enquanto embarcava num avião que parecia de brinquedo, de tãopequeno. Ninguém mais à minha volta dava a impressão de estar preocupadoenquanto sacolejávamos nas correntes de ar. Depois pousamos em algumlugar chamado Kununurra, uma cidade da qual nunca tinha ouvido falar e quecertamente não era Broome. Quando eu já ia descer, me informaram queaquela era apenas uma parada e que Broome seria a seguinte, assim comoquando andamos de ônibus ou trem. O assustador ônibus voador decolounovamente e tomei outro comprimido para dormir e me acalmar. Quando porfim aterrissamos, numa pista que não parecia muito mais longa do que aentrada para carros das casas em Genebra, fiz o sinal da cruz.

No saguão do pequeno aeroporto, procurei o centro de informações eencontrei um balcão, atrás do qual havia uma garota com a cor da peleparecida com a minha. Até o cabelo dela – um emaranhado de cachos escuros– era parecido com o meu.

– Bom dia, posso ajudá-la?

Ela sorriu para mim calorosamente.

– Sim, estou procurando um lugar para ficar na cidade por algumas noites.

– Então veio ao lugar certo – disse ela, me entregando alguns folhetos.

– Qual você recomenda?

– O meu favorito é a Pearl House, na Carnarvon Street, mas eu não deviadizer minhas preferências – comentou com um sorriso. – Quer que euverifique se eles têm um quarto?

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– Seria ótimo – respondi, sentindo os músculos das pernas repuxarem,

obviamente já cansados de me sustentarem por milhares de quilômetros aoredor do planeta. – Só não queria que fosse no térreo.

– Claro, não se preocupe.

Enquanto ela fazia uma ligação, eu disse a mim mesma que estava sendoridícula. Aranhas podiam subir pelas paredes, não podiam? Ou por canos atéos chuveiros...

– Sim, a Sra. Cousins tem um quarto vago – disse a garota enquanto colocavao telefone no gancho, anotava as informações e me entregava. –

O ponto de táxi fica bem aqui em frente.

– Obrigada.

– Você é francesa? – perguntou.

– Suíça, na verdade.

– Veio visitar parentes?

– Talvez – respondi, dando de ombros, perguntando-me como ela sabia.

– Bem, meu nome é Chrissie e aqui está o meu cartão. Pode me ligar seprecisar de ajuda. Quem sabe a gente se vê por aí.

– Sim, obrigada – falei enquanto caminhava para a saída, impressionada comsua simpatia e seu poder de percepção.

Já estava suando quando entrei num táxi e o motorista me disse que era umaviagem curta até a cidade. Pouco tempo depois, paramos em frente a umprédio baixo com vista para uma grande área verde, e várias pequenas lojas ecasas à beira da larga estrada.

O hotel era simples, mas, quando entrei no quarto, fiquei feliz ao ver queestava impecável e – após uma inspeção minuciosa – livre de aranhas.

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Tentei verificar a hora no celular, mas a bateria obviamente já tinha acabado.Eu só sabia que estava anoitecendo, o que provavelmente significava queeram por volta das seis da tarde. E meu corpo estava me dizendo que era horade dormir.

Tirei a roupa que usara no voo, me enfiei embaixo dos lençóis e adormeci.

Quando acordei, o sol brilhava forte pela janela sem cortina. Tomei banho,me vesti e desci depressa para ver se havia algo para comer.

– Posso tomar café da manhã? – perguntei à senhora na recepção.

– O café foi retirado horas atrás. São quase duas da tarde, querida.

– Certo. Há algum lugar em que eu possa comer algo?

– Tem o Runway Bar mais adiante na rua, que serve pizza e algumas outrascoisas. É o melhor que você vai conseguir a esta hora. Mais tarde vão abriroutros lugares.

– Obrigada.

Saí e parei em frente ao hotel. Até mesmo para mim, o sol pareciainsuportavelmente quente, como se tivesse se movido alguns milhares dequilômetros mais para perto da Terra durante a noite. Todo mundo com ummínimo de inteligência estava dentro de algum lugar, procurando seesconder, porque a rua estava deserta. Mais abaixo, vi quatro estátuas debronze perto de um estacionamento e fui dar uma

olhada. Três eram homens de terno, todos velhos a julgar pelas rugas, e oquarto – que usava macacão, botas pesadas e um capacete redondo que cobriatodo o seu rosto – parecia um astronauta.

Havia placas com letras minúsculas, provavelmente informando o quetornava aqueles homens tão especiais, mas eu começava a me sentir mal sobo sol escaldante e sabia que precisava de comida. Quando cheguei aoRunway Bar, sentia o suor escorrer.

Fui até o balcão e pedi água, bebendo a garrafa inteira assim que me

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entregaram. Escolhi um hambúrguer e peguei um dos mapas gratuitosdetalhando as atrações da cidade, antes de encontrar um lugar para sentar auma mesa de plástico desbotada.

– Você é turista? – perguntou o jovem que me trouxe o hambúrguer.

– Sim.

– Você é corajosa, garota. Não recebemos muitos turistas aqui nesta época doano. É a estação das chuvas, sabe. Meu conselho é não ir muito longe sem umguarda-chuva. Ou um leque. Embora os dois sejam praticamente inúteis naestação das chuvas.

Comi meu hambúrguer em cerca de quatro mordidas, depois estudei comatenção o mapa da cidade novamente. Como de costume, as letras seembaralhavam diante dos meus olhos, mas me esforcei e finalmente conseguiencontrar o lugar que estava procurando. Em seguida, voltei ao balcão parapagar e pegar outra água. Aproveitei e apontei o local no mapa para ogarçom.

– Fica muito longe?

– O museu? Saindo daqui, é uma caminhada de vinte minutos.

– Ok, obrigada.

Virei-me para sair, mas ele me deteve.

– Mas está fechado esta tarde. Tente amanhã.

– Vou tentar, sim. Tchau.

Parecia que tudo em Broome estava fechado à tarde. De volta ao meu quarto,lembrei-me do celular sem bateria e coloquei-o para carregar ao lado dacama. Enquanto estava no banheiro, fiquei surpresa ao ouvir diversos toquese corri de volta para olhar.

– Uau! – exclamei quando vi as notificações.

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Abri a tela de mensagens, que não paravam de chegar. Vi também que haviauma série de ligações perdidas.

Comecei pelas primeiras: Estrela: Ci! Meu Deus! Me liga. Bjs Maia: Ceci,cadê vc? O que tá acontecendo? Me liga! Bjs Ally: É VOCÊ, não é? Me liga.

Bjs Tiggy: Vc tá bem? Pensando em vc. Me liga. Bjs Electra.

Electra tinha me mandado mensagem...

Em pânico, sem entender por que todas as minhas irmãs estavam tentandoentrar em contato comigo de repente, concentrei-me em decifrar a mensagemde Electra.

Quem diria, hein?

Não havia nenhum beijo nem “me liga” no final, mas eu também não

esperava por isso.

– Tem alguma coisa acontecendo – murmurei enquanto rolava a tela e viauma mensagem de um número desconhecido.

Eu tinha confiado em vc. Espero que esteja feliz agora.

Corri para buscar minha mochila, peguei o papel no qual Ace anotara seucelular e vi que batia com o telefone que aparecia em minha tela.

– Ah, meu Deus, Ci... – Esfreguei distraidamente as palmas das mãos norosto, para cima e para baixo. – O que foi que você fez?

Refiz mentalmente meus passos desde que saíra da Tailândia, procurandopistas sobre o que poderia ter sido.

Você esteve no avião a maior parte do tempo...

Não, não havia nada. Nada que eu tivesse dito ou mesmo pensado sobre Aceque fosse ruim. Muito pelo contrário, na verdade. Levantei-me e andei de umlado para outro no pequeno cômodo, então peguei o celular e liguei para a

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caixa postal, mas fui informada por uma gravação com forte sotaqueaustraliano de que aquele não era o número correto. Joguei o telefone nacama, irritada.

Mesmo que custasse uma fortuna, eu tinha que descobrir o que estavaacontecendo. E a melhor maneira era ir direto à fonte, ou seja, Ace.

Então pensei que seria ótimo se eu gostasse de beber – algumas doses deuísque e tequila poderiam ter acalmado o tremor dos meus dedos – e digitei onúmero de Ace. Preparei meu corpo como se fosse entrar em uma luta eesperei a ligação completar.

Uma voz australiana diferente me informou que o número estava fora de áreaou desligado. Então, pensando que talvez tivesse me enganado, tentei maisdez ou até mesmo quinze vezes, mas a resposta foi a mesma.

– Merda! O que eu faço agora...?

Ligue para Estrela... Ela deve saber.

Andei um pouco mais pelo quarto porque isso significaria quebrar o silêncio,e eu sabia que ouvir a voz dela pela primeira vez em semanas talvez mequebrasse também. Ainda assim, sabia que não tinha escolha.

Não conseguiria dormir naquela noite sem saber o que acontecera.

Disquei o número de Estrela, e o telefone tocou, o que já era alguma coisa.

Então ouvi a voz da minha irmã, e fiz o máximo para conter a emoçãoquando ela disse “alô”.

– Sou eu, Sia... – falei, voltando automaticamente para o apelido que usavaquando falava com ela.

– Ci! Você está bem? Onde você está?

– Na Austrália... no meio do nada.

Consegui dar uma risadinha.

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– Austrália? Mas você sempre se recusou a ir para lá!

– Eu sei, mas aqui estou. Escute, você sabe por que todo mundo me mandouum monte de mensagens?

Ela ficou em silêncio do outro lado da linha. Por fim disse: – Sei. Você

não?

– Não. Não sei mesmo.

Outra pausa, mas eu estava acostumada com essas hesitações dela, entãoesperei Estrela escolher as palavras. O que ela falou foi decepcionante: – Ah.Entendo.

– Entende o quê? Sério, Sia, eu realmente não sei o que está acontecendo.

Você pode me dizer?

– Eu... posso, sim. Tem a ver com o homem com quem você foi fotografada.

– Com quem fui fotografada? Quem?

– Anand Changrok, o investidor desonesto que quebrou o Berners Bank edepois desapareceu da face da Terra.

– Quem? O quê?! Eu não conheço nenhum Anand Changrok.

– É um homem alto e de cabelos escuros com traços orientais.

– Ah, meu Deus! Merda... é o Ace!

– Então você o conhece? – perguntou Estrela.

– Sim, mas não sei o que ele fez. O que ele fez?

– Ele não lhe contou?

– É claro que ele não me contou! Ou eu não estaria ligando para descobrir,

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não é? E como assim ele “quebrou” um banco?

– Não sei dos detalhes, mas tem a ver com comércio ilegal. De qualquerforma, quando a fraude foi descoberta, ele já havia deixado o Reino Unido.

Pelo que li no Times ontem, serviços de inteligência do mundo inteiro estãoatrás dele.

– Meu Deus, Sia! Ele nunca me disse nada.

– Como foi que você o conheceu?

– Ele era só um cara em Phra Nang, lembra, aquela praia linda com os pilaresde pedra calcária.

– É claro que lembro.

Pensei ter ouvido sua voz falhar um pouco quando disse isso.

– Mas como é que todo mundo parece saber que o conheci? – continuei.

– Porque tem uma foto de vocês dois abraçados em uma praia na capa decada tabloide da Inglaterra. Eu vi hoje de manhã na banca ao lado da livraria.

Você está famosa, Ci.

Parei para pensar e toda uma enxurrada de lembranças surgiu em minhamente: o fato de Ace se recusar a sair durante o dia, sua insistência para queeu nunca contasse a ninguém onde estava me hospedando... e, acima de tudo,Po, o segurança que tirara a fotografia...

– Ci? Você ainda está aí?

– Sim – respondi por fim, lembrando como Po se mostrara interessado emtirar fotos de mim e Ace juntos.

Ao entregar-lhe a câmera em minha última noite no palácio, eu também lhedera a oportunidade perfeita. Não era de admirar que ele tivesse

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ficado tão entusiasmado para levar o filme a seu “primo” na cidade deKrabi... Ele obviamente fizera outras cópias, o que explicava os envelopesextras que eu tinha visto em sua mochila. Então me lembrei de Jay, o ex-jornalista, e me perguntei se os dois estavam mancomunados.

– Você está bem? – perguntou Estrela.

– Não, não mesmo. Foi tudo um erro – acrescentei desanimada ao me lembrartambém do envelope de fotos que deixara para Ace sobre a mesa.

Eu tinha feito algo de todo o coração que seria interpretado da pior maneirapossível.

– Ci, me diga onde você está. Sério, posso pegar um avião e encontrar comvocê amanhã. Ou depois de amanhã, no máximo.

– Não, está tudo bem. Eu vou ficar bem. E você, como está? – conseguiperguntar.

– Tudo bem, tirando a falta que sinto de você. Sério, qualquer coisa que eupuder fazer para ajudar, é só me dizer.

– Obrigada. Tenho que ir agora – falei antes de desmoronar completamente. –Tchau, Sia.

Apertei o botão para encerrar a ligação e desliguei o celular. Então me deiteina cama, olhando para o teto. Não conseguia nem chorar... estava bem alémdas lágrimas. Mais uma vez, parecia que eu conseguira arruinar uma belaamizade.

12

Acordei no dia seguinte me sentindo um pouco como na manhã depois desaber sobre a morte de Pa Salt. Os primeiros segundos de consciência foramtranquilos, antes que o dilúvio da realidade desabasse sobre minha cabeça.Rolei para o lado e enterrei o rosto no travesseiro barato de espuma. Eu nãoqueria acordar, não queria enfrentar a verdade. Era quase – mas nãoexatamente – engraçado, porque, mesmo que eu soubesse que Ace era

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procurado pela polícia, era tonta demais para fazer algo a respeito. Masoutros tinham sido inteligentes o suficiente para fazê-lo, e eu levara a culpa.

Ace devia me odiar. E ele tinha todo o direito.

Só de imaginar o que ele devia estar pensando sobre mim naquele momento,meu estômago se revirava. Eu corri até o banheiro para vomitar. Em seguida,levantei, lavei a boca e bebi um pouco de água, concluindo que tudo quepodia fazer era confrontar as evidências.

– Enfrente seus medos – disse a mim mesma enquanto me vestia e desciapara a recepção.

– Tem algum cibercafé por aqui? – perguntei à mulher atrás do balcão.

– Sim, claro. Vire à direita e ande cerca de 200 metros. Vai encontrar o lugarem um beco.

– Obrigada.

Ao sair, pisei em grandes poças cor de páprica que se formaram sobre acalçada irregular e percebi que devia ter chovido na noite anterior.

Enquanto caminhava, sentia-me flutuando, como se estivesse bêbada,sensação provavelmente causada por um coquetel letal de infelicidade e medocom relação ao que a tela do computador poderia me mostrar.

Após pagar alguns dólares à mulher na entrada do café, ela indicou um lugare me sentei, sentindo-me mal novamente. Entrei na internet com a senha queela me dera, depois fiquei olhando para o navegador, perguntando-me o quedeveria digitar. Estrela me contara o nome verdadeiro de Ace, mas eu nãoconseguia me lembrar. E, mesmo que lembrasse, não saberia exatamentecomo se escrevia.

Quebra de banco.

Apertei Enter, mas apareceu algo sobre Wall Street, em 1929.

Criminoso procurado por quebra de banco.

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Então apareceu um vídeo sobre John Wayne em algum filme de faroeste.

Por fim, digitei “criminoso bancário escondido na Tailândia” e apertei Enter.Uma tela inteira de manchetes que incluíam desde The Times e The

New York Times até um jornal chinês. Selecionei “imagens” primeiro, poisprecisava ver o que todos tinham visto.

E lá estava: a foto de nós dois ao pôr do sol na praia de Phra Nang. Eu!

Bem ali, para o mundo inteiro ver, inclusive aquela cidadezinha pequena nomeio do nada.

– Meu Deus – disse em voz baixa, observando a foto mais atentamente.

Vi que eu estava de fato sorrindo, o que não costumo fazer em fotos. Com osbraços de Ace me envolvendo, eu parecia feliz, tão feliz que quase não mereconhecia. E, na verdade, não era assim tão feia, pensei, ajeitandoinstintivamente os cabelos que agora costumavam se aglomerar em pequenoscachos em torno dos meus ombros. Entendia agora por que Estrela preferiameu cabelo comprido; pelo menos eu parecia uma garota na foto, e não umgaroto feio.

Pare com isso, disse a mim mesma, porque aquele não era o momento de serfútil. No entanto, enquanto clicava nas intermináveis reproduções da foto –inclusive em vários jornais australianos –, me permiti um sorriso amargo. Detodas as irmãs D’Aplièse que poderiam acabar na primeira página de ummonte de jornais, eu era a mais improvável. Nem mesmo Electra conseguiratanta audiência.

Então voltei à realidade e comecei a clicar nos artigos e tentar decifrar o quediziam. A boa notícia era que, pelo menos, eu era citada como “umadesconhecida”, então não estava envergonhando o nome da família. Já Ace...

Duas horas depois, deixei o café. Embora minhas pernas tivessem conseguidopular as poças mais cedo, agora eu não era capaz de fazer nada além decolocar um pé na frente do outro. Ao chegar ao saguão do hotel, perguntei àrecepcionista como fazia para ir à praia. Estava precisando muito de um

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pouco de ar fresco e espaço.

– Vou chamar um táxi para você – disse ela.

– Não dá para eu ir andando?

– Não, é muito longe com esse calor.

– Está bem.

Fiz então o que ela me sugeriu e me sentei em um sofá duro e barato nosaguão até o táxi chegar. Entrei e partimos, eu ainda entorpecida no bancotraseiro. A vista pela janela parecia desprovida de vida humana; havia apenasa terra vermelha ao longo da ampla estrada, e estacionamentos vazios, ondebandos de pássaros brancos empoleiravam-se em árvores altas e frondosas, ascabeças movendo-se juntas quando o táxi passou.

– Chegamos. São 7 dólares – disse o motorista. – Pare no Sunset Bar aliquando quiser voltar, que eles me chamam.

– Claro, obrigada – falei, dando-lhe uma nota de 10 dólares, sem esperar pelotroco.

Coloquei os pés na areia macia e corri em direção à imensidão azul, sabendoque, se alguém precisava afogar suas mágoas, essa pessoa era

eu. Ao chegar à beira d’água, meus dedos sentiram como estava fria e,mesmo de bermuda e camisa, mergulhei direto. Nadei sem parar naquelaágua incrível, tão clara que eu podia ver a sombra das aves marinhas quevoavam no alto cintilando na areia do fundo. Depois de um tempo, voltei paraa costa, totalmente exausta, e me deitei naquele pedaço deserto de paraíso nomeio do nada. A praia se estendia por quilômetros à esquerda e à direita, e ocalor que parecera tão opressivo na cidade foi levado pela brisa do oceano.Não havia nenhuma outra pessoa à vista, e eu me perguntava por que osmoradores não faziam fila para nadar naquela perfeição bem à sua porta.

– Ace... – sussurrei, sentindo que deveria dizer algo significativo para o céu afim de expressar minha angústia.

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Mas, como sempre, as palavras certas não vinham, então deixei ossentimentos tomarem conta de mim.

O que eu concluíra depois de ler todos aqueles artigos on-line foi que Ace era“famigerado”. Tive que procurar a palavra em um dicionário eletrônico,como Estrela me ensinara: que tem muita fama negativa...

Meu Ace, o homem em quem eu confiara e que se tornara meu amigo, era umdos piores seres humanos que eu conhecia. Ninguém no mundo tinha algobom a dizer sobre ele. No entanto, a menos que fosse o ator mais brilhante doplaneta, eu não podia acreditar que o cara que estavam descrevendo fosse omesmo com quem eu morara e rira até alguns dias atrás.

Aparentemente, ele havia feito uma série de negociações fraudulentas. Aquantia que perdeu foi tão astronômica que, a princípio, pensei que tinhamdigitado o número errado de zeros. Era ultrajante que alguém pudesse perdertanto dinheiro – quero dizer, para onde essa grana tinha ido?

A razão pela qual todos estavam duplamente furiosos era porque ele fugiraassim que tudo fora descoberto e ninguém vira nenhum sinal dele desdenovembro. Até aquele momento, é claro.

Graças a mim, seu disfarce fora arruinado.

De qualquer forma, após ter visto todas as fotos dele de cerca de um anoantes em seus elegantes ternos da Savile Row, barbeado e com o cabelo bemmais curto do que o meu normalmente estava, parecia improvável quealguém em Krabi tivesse reconhecido o lobisomem magro na praia como ohomem mais procurado do mundo bancário. Agora que eu parava parapensar, aquele seu paraíso tailandês emprestado tinha sido o lugar perfeitopara se esconder: ali, entre os milhares de mochileiros jovens, ele tinha umaproteção perfeita.

O Bangkok Post daquele dia dizia que as autoridades britânicas estavam emnegociações com os tailandeses para que ele fosse “extraditado”.

Mais uma vez recorri ao dicionário, e descobri que isso significava que basi-camente o arrastariam de volta para a Inglaterra para arcar com as

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consequências.

Senti alguns pingos fortes no rosto e, ao erguer os olhos, vi as nuvens detempestade que haviam se reunido em furiosas massas escuras no alto.

Corri até o bar da praia bem a tempo, e me sentei com uma bebida de abacaxipara assistir ao espetáculo natural de luzes. Isso me fez lembrar datempestade que vira da Caverna da Princesa antes de ser expulsa, e agoraparecia que Ace seria preso quando voltasse à Inglaterra.

Se ao menos as coisas fossem diferentes...

Na época, pensei que os problemas de Ace tivessem relação com outramulher, mas não poderia estar mais errada. Se nossos caminhos se cruzassemde novo, eu tinha certeza de que ele iria querer me apunhalar em vez de meabraçar.

O que dava aquele nó na garganta idiota era o fato de ele ter confiado emmim. Até mesmo me dera seu precioso número de celular, que eu sabia porinúmeros filmes que poderia ser rastreado para localizarem o dono.

Ele devia mesmo ter desejado manter contato comigo se estivera disposto acorrer esse risco.

Eu sabia, simplesmente sabia que aquele cretino do Jay estava por trás detudo. Provavelmente reconhecera Ace por conta de seus olhos doentios dejornalista, então o seguira até o palácio e subornara Po para conseguir fotoscomo prova. Eu não duvidava que ele tivesse vendido a foto e a localizaçãode Ace para quem fizera a melhor oferta e agora comemorasse o fato de terdinheiro suficiente para tomar Singha pelos cinquenta anos seguintes.

Não que isso importasse agora. Ace nunca acreditaria que não tinha sido eu,nem eu acreditaria se fosse ele. Principalmente depois de não ter lhe contadoque Jay o reconhecera, só para não preocupá-lo. Pareceria um monte dedesculpas patéticas. De qualquer forma, eu nem conseguia entrar em contatocom ele. E apostaria minha vida que agora o chip do seu celular nadava comos peixes em Phra Nang.

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– Ah, Ci... – repreendi a mim mesma, tomada pela desolação. – Vocêestragou tudo de novo. Não serve para nada!

Quero ir para casa...

– Bom dia – disse uma voz atrás de mim. – Como está?

Virei-me e vi a garota do balcão de informações turísticas.

– Bem, obrigada.

– Esperando alguém? – perguntou.

– Não, ainda não conheço ninguém aqui.

– Então se importa se eu me juntar a você?

– É claro que não – falei, pensando que seria rude negar, mesmo que nãoestivesse com ânimo de jogar conversa fora.

– Você estava nadando? – indagou, franzindo a testa. – Seu cabelo estámolhado.

– Aham – confirmei, passando a mão nervosamente pelos fios e meperguntando se estava despenteada.

– Minha nossa! Ninguém avisou você sobre as águas-vivas? É muito

perigoso nadar aqui nesta época do ano... Não entramos no mar até março,depois que a costa está limpa. Você teve sorte. Uma queimadura de irukandjie você poderia ter morrido.

– Obrigada por me alertar. Alguma outra coisa perigosa que eu deva -

saber?

– Não, tirando os crocodilos nos riachos e as serpentes venenosas queaparecem por aí nesta época do ano. Mas então, já conseguiu entrar emcontato com o seu pessoal?

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– Você quer dizer meus parentes? – perguntei para ter certeza, tentandoacompanhar seu jeito de falar. – Não, ainda não. Quero dizer, não acreditoque tenha algum parente vivo por aqui. Estou investigando a história daminha família, e me disseram para começar em Broome.

– Sim, faz sentido. – A garota, de quem eu não conseguia me lembrar onome, me encarou com seus lindos olhos cor de âmbar. – Você tem todo ojeito de ser destas bandas.

– Tenho?

– Sim. Seu cabelo, a cor da pele e seus olhos... Aposto que eu poderia dizerde onde eles vieram.

– Mesmo? De onde?

– Imagino que você tenha sangue aborígine, misturado com o de algumbranco, e talvez esses olhos tenham vindo de algum lugar com muitosimigrantes japoneses, assim como os meus. – Ela gesticulou vagamente parao lado oposto à praia. – Broome fervilhava de japoneses algumas geraçõesatrás, e há muitas pessoas aqui como nós, que são resultado dessa misci-genação.

– Você é parte aborígine? – perguntei, desejando agora ter pesquisado umpouco mais sobre a Austrália, porque eu realmente parecia uma idiota.

Pelo menos me lembrei do nome dela: Chrissie.

– Meus avós são aborígines. Yawuru... a principal tribo aborígine nestetrecho de floresta. Ceci é apelido de quê? – perguntou ela.

– Celeno. Sei que é estranho.

– É lindo!

Foi a vez de Chrissie se mostrar admirada.

– Você acha?

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– Sim, é claro! Você recebeu o nome de uma das Sete Irmãs das Plêiades...

Aqui são chamadas de gumanyba. Elas são como deusas em nossa cultura.

Fiquei sem palavras. Ninguém nunca... nunca sabia de onde vinha meu nome.

– Você não sabe mesmo muita coisa sobre seus ancestrais, não é? –

indagou ela.

– Não. Nada. – Então, me sentindo rude além de burra, acrescentei: – Mas eugostaria muito de aprender mais.

– Minha avó é uma verdadeira especialista nessas coisas. Aposto que ela

adoraria lhe contar suas histórias do Tempo do Sonho... coisas que vêm sendopassadas de geração em geração. Ligue para mim quando quiser e eu a levopara conversar com ela.

– Sim, isso seria ótimo.

Olhei para a praia e vi que a chuva agora era uma lembrança, substituída porum sol em tons de roxo e dourado que sumia depressa no horizonte.

Então minha atenção se voltou para um homem e um camelo passeando pelapraia em frente ao bar.

Chrissie virou-se para eles também.

– Ei, aquele ali é meu colega Ollie... Ele trabalha para a empresa de passeiosde camelo – explicou ela, acenando com bastante entusiasmo para o homem.

Ollie veio até o café para dizer olá, deixando seu camelo, sonolento e dócil, àespera na praia. Ele tinha a pele mais escura que a nossa, o rosto comprido ebonito, e teve que se curvar para abraçar Chrissie. Fiquei ali sentada, semgraça, enquanto eles conversavam, percebendo que falavam numa língua queeu nunca ouvira.

– Ollie, esta é Ceci... É a primeira vez que ela vem a Broome.

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– Bom dia – disse ele e me cumprimentou com a mão calejada. – Já andou decamelo?

– Não.

– Gostaria de dar uma volta agora? Eu estava levando Gobbie para dar umpasseio e lhe ensinar boas maneiras... Ele é jovem e selvagem, então não ojuntamos aos outros ainda. Mas tenho certeza de que vocês conseguemmantê-lo sob controle.

Ele piscou para nós.

– Sério? – perguntei, nervosa.

– Claro, se é amiga da Chrissie... – disse ele calorosamente.

Seguimos Ollie até Gobbie, o camelo, que virou a cabeça para o outro ladocomo uma criança malcriada quando Ollie pediu que ajoelhasse. Na enésimavez, Gobbie finalmente obedeceu.

– Você já fez isso antes? – sussurrei para Chrissie enquanto nós duassubíamos nas costas do animal.

O cheiro que vinha do camelo era avassalador; em outras palavras, ele fedia.

– Sim – murmurou ela, sua respiração fazendo cócegas na minha orelha.

– Prepare-se para um passeio cheio de solavancos.

Com uma balançada, Gobbie de repente se levantou e senti uma das mãos deChrissie passar pela minha cintura para me firmar enquanto éramos erguidas.O sol começava a mergulhar em direção ao oceano, e o corpo do cameloprojetava uma longa sombra na areia dourada, suas pernas finas e compridas,como algo saído de uma pintura de Dalí.

– Você está bem?

– Sim – respondi.

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O passeio com certeza não foi suave, já que Gobbie parecia estar fazendo

o máximo para fugir. Sacolejando pela areia, nós duas gritamos quando elecomeçou a galopar, e percebi como os camelos podiam se moverrapidamente.

– Volte aqui, seu idiota! – gritou Ollie, correndo para tentar acompanhá-

lo, mas Gobbie nem ligou.

Algum tempo depois, Ollie conseguiu fazer o camelo desacelerar, e Chrissiepousou o queixo em meu ombro, arfando de alívio.

– Caramba! Mas que passeio! – disse ela enquanto seguíamos maistranquilamente ao longo da praia.

O pôr do sol iluminara o céu em tons de rosa, roxo e vermelho, que serefletiam perfeitamente no oceano abaixo. Eu sentia como se estivessedeslizando por uma pintura, as nuvens como poças de tinta em uma paletamulticolorida.

Gobbie levou-nos de volta ao Sunset Bar, onde saltamos desajeitadamente naareia. Depois de nos despedirmos de Ollie, subimos os degraus da varanda.

– Acho que precisamos de alguma coisa gelada depois de toda essa emoção –disse Chrissie desabando numa cadeira. – O que você quer beber?

Pedi um suco de laranja e ela também, então relaxamos, tentando nosrecuperar.

– Então, como você vai encontrar sua família? – perguntou ela. – Temalguma pista?

– Algumas – respondi, brincando com o canudinho –, e ainda não sei o quefazer com elas. Fora o nome de uma mulher que me trouxe até aqui, tenhouma fotografia em preto e branco de dois homens... um velho e um bem maisnovo, mas não faço a menor ideia de quem sejam ou o que têm a ver comigo.

– Você já mostrou a foto a alguém aqui? Talvez sejam conhecidos –

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sugeriu Chrissie.

– Não, vou ao museu amanhã. Achei que poderia conseguir algumasrespostas lá.

– Você se importa que eu veja? Se eles forem dessas redondezas, talvez eupossa conhecê-los.

– Por que não? A foto está no meu quarto no hotel.

– Não se preocupe. Eu lhe dou uma carona, e então podemos dar uma olhada.

Saímos para a rua, e o anoitecer trouxe consigo o som de milhares de insetoszumbindo no ar, sob a vigilância ávida de famintos morcegos.

Uma sombra atravessou a estrada vazia, e a princípio pensei que fosse umgato, mas, quando ela parou de repente e olhou para mim, vi que tinha olhosgrandes e um focinho rosado e pontudo.

– É um tipo de gambá, Ci – comentou Chrissie. – São como uma praga poraqui. Minha avó costumava colocá-los na panela e cozinhá-los para o jantar.

– Ah! – exclamei enquanto a seguia pelo estacionamento até uma mobiletevelha e enferrujada.

– Tudo bem ir de carona na mobilete? – perguntou ela.

– Depois daquele passeio de camelo, parece o paraíso – brinquei.

– Suba, então.

Ela me entregou um capacete velho e eu o coloquei antes de subir, passandoas mãos por sua cintura. Depois de uma partida vacilante, tomamosvelocidade e saímos. E eu podia sentir uma brisa bem-vinda no rosto – umalívio para outro anoitecer incrivelmente úmido, sem um sopro de vento paraagitar o ar pesado.

Paramos em frente ao hotel, e, enquanto Chrissie estacionava a mobilete,corri para pegar a foto. Quando voltei à recepção, a garota conversava com a

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mulher atrás do balcão.

– Pronto – falei, acenando para ela.

Nós nos acomodamos no pequeno saguão de hóspedes, perto da recepção, nogrudento sofá de couro sintético. Chrissie inclinou a cabeça para observar opapel.

– É uma foto muito ruim, porque o sol está bem atrás deles, além de ser empreto e branco – comentei.

– Você quer dizer que não dá para ver a cor das pessoas na foto? –

perguntou Chrissie. – Eu diria que o homem mais velho é negro e o garototem a pele mais clara. – Ela segurou a foto sob a luz de uma lâmpada. – Achoque foi tirada na década de 1940 ou 1950. Tem alguma coisa escrita na lateralda caminhonete atrás deles. Está vendo?

Ela me devolveu a foto.

– Sim, parece que diz “JIRA”.

– Caramba...! – Chrissie apontou para a figura mais alta em frente ao carro. –Acho que sei quem é esse homem.

Houve uma pausa enquanto ela me encarava boquiaberta de entusiasmo e euolhava de volta sem entender.

– Quem?

– Albert Namatjira, o artista... Ele é apenas o aborígine mais famoso daAustrália. Nascido e criado em uma missão em Hermannsburg, a poucashoras de Alice Springs. Você não acha que ele é seu parente, não é?

Um arrepio percorreu o meu corpo.

– Como eu iria saber? Ele está morto?

– Sim, ele morreu já faz bastante tempo, no final da década de 1950. Foi o

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primeiro aborígine a ter os mesmos direitos que os brancos. Ele podia ter suaprópria terra, votar, ingerir bebida alcoólica e até mesmo conheceu a rainhada Inglaterra. Era um pintor incrível... Tenho uma reprodução de MonteHermannsburg na parede do meu quarto.

Chrissie era claramente fã daquele cara.

– Então, antes dessa época, os povos aborígines não tinham esses direitos?

– Não, não até o final dos anos 1960 – explicou. – Mas Namatjira obteve

seus direitos mais cedo em razão de seu talento artístico. Que cara.

Mesmo que ele não seja seu parente, é uma grande pista sobre sua origem.Quantos anos você tem?

– Vinte e sete.

– Então... – Observei Chrissie fazer algumas contas de cabeça. – Issosignifica que você nasceu em 1980, e que ele pode ser seu avô! Você sabe oque isso significa, certo? – indagou ela, sorrindo para mim. – Você precisadar um pulo em Alice Springs depois. Uau, Ceci, não posso acreditar que sejaele na foto!

Chrissie atirou os braços em volta de mim e me abraçou com força.

– Ok – falei, meio sem jeito. – Na verdade, eu estava pensando em ir aAdelaide conversar com o advogado que me enviou uma herança. Onde ficaAlice Springs?

– Bem no meio do país... Chamamos a região de Never Never. Sempre quis irlá... é perto de Uluru. – Quando viu minha expressão confusa, ela revirou osolhos. – Você a conhece como Ayers Rock, sua tonta.

– Então, que tipo de coisa esse cara pintou?

– Namatjira revolucionou totalmente a arte aborígine. Ele fazia umaspaisagens incríveis em aquarela, e deu início a uma nova escola de pintura. É

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preciso muita habilidade para pintar uma boa aquarela; não são só manchasde tinta em uma tela. Ele dava luminosidade às suas paisagens... e realmentesabia como trabalhar as aquarelas em camadas para conseguir o efeito de luzcerto.

– Uau. Como você sabe de tudo isso?

– Sempre amei arte – disse Chrissie. – Estudei a cultura australiana comoparte da minha graduação em turismo e passei um semestre na faculdadeestudando artistas aborígines.

Eu não estava pronta para admitir que também tinha estudado arte nafaculdade, mas havia abandonado.

– Então, esse cara já pintou outras coisas, como retratos? – perguntei, curiosapara saber mais.

– Retratos são complicados em nossa cultura. É um grande tabu, porque vocêestá reproduzindo a essência de alguém... Isso afligiria os espíritos, porqueeles já fizeram o trabalho aqui embaixo e querem ficar em paz.

Quando um de nós morre, não devemos falar seu nome novamente.

– Sério? – Pensei em quantas vezes eu e Estrela mencionávamos o nome dePa Salt desde que ele morrera. – Não é bom se lembrar daqueles que vocêama e de quem sente falta?

– Claro, mas mencionar o nome deles os chama de volta, e eles estão felizesem nos ajudar lá de cima.

Acenei a cabeça, tentando absorver tudo aquilo, mas fora um longo dia e nãoconsegui disfarçar um grande bocejo.

– Não estou deixando você chateada, não é? – provocou ela.

– Desculpe, só estou muito cansada da viagem.

– Não se preocupe, vou deixar que tenha seu sono reparador. – Ela selevantou. – Ah, me ligue amanhã se quiser ver minha avó.

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– Ligo, sim. Obrigada, Chrissie.

Com um aceno, ela saiu do hotel e eu subi as escadas, exausta demais paraprocessar o que acabara de descobrir, mas sentindo um tremor de ansiedadecom a descoberta de que o homem na foto tinha sido um artista, assim comoeu...

13

Acordei estranhamente cedo na manhã seguinte. Talvez porque tivesse tidoum sonho – tão real e vívido que precisei me esforçar para voltar à realidade.

Eu era uma garotinha sentada no joelho de uma mulher mais velha, que, poralgum motivo, estava nua, pelo menos na parte de cima. Ela me levava pelamão através de um deserto vermelho até uma planta sob a qual havia algumtipo de ninho de insetos. Ela apontava para lá e me dizia que era meu trabalhocuidar deles.

Eu tinha certeza de que era algo relacionado a mel, porém o mais estranho eraque, apesar do meu ódio por qualquer coisa com mais pernas do que eu,segurava um dos insetos como se fosse um animal de estimação. Então eu oacariciava com meus pequenos dedos enquanto ele se arrastava pela palma daminha mão. E até me lembrava da sensação de cócegas causada por suaspatas.

Seja como for, eu sabia que ele era meu amigo, não meu inimigo.

Animada por tudo que descobrira no dia anterior, peguei o telefone do hotel edisquei o número do escritório do advogado em Adelaide. Mesmo que eu nãofosse até lá, pensei que poderia obter algumas respostas.

Após vários toques, uma voz feminina atendeu: – Angus & Tine, como possoajudar?

– Oi, posso falar com o Sr. Angus Junior, por favor?

– Infelizmente ele se aposentou há alguns meses – disse a mulher. – MasTalitha Myers assumiu suas causas. Devo marcar uma hora para você?

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– Na verdade, estou em Broome, e só queria fazer algumas perguntas rápidas.Devo ligar de volta quando ela tiver tempo ou...?

– Aguarde, por favor.

– Talitha Myers falando – disse uma voz diferente. – Como posso ajudá-

la?

– Olá, recebi uma herança no ano passado que foi enviada pelo Sr. Anguspara o advogado do meu pai na Suíça. Meu nome é Celeno D’Aplièse.

– Ok. A senhora sabe a data exata em que a herança foi enviada ao -

advogado do seu pai?

– Recebi em junho quando meu pai faleceu, mas não sei direito quanto tempoantes chegou ao advogado dele.

– E qual é o nome do escritório?

– Hoffman & Associados, em Genebra.

– Certo, aqui está. – Houve uma pausa. – Então, o que posso fazer pela

senhora?

– Estou tentando localizar minha família biológica, então esperava que oescritório tivesse um registro sobre a origem dessa herança.

– Deixe-me ver as anotações no computador. Se bem que, infelizmente, nãodeve haver muita coisa. O Sr. Angus preferia anotar tudo em papel, comofazem os mais velhos... Não, nada. Espere, vou só verificar se há algumaanotação nos livros contábeis.

Ouvi um barulho, então o som de páginas sendo viradas.

– Aqui está. Pelo que entendi, refere-se a registros de janeiro de 1964,

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“fundo criado pela falecida Katherine Mercer”.

Katherine, Kitty... Quase deixei o telefone cair com o choque.

– Kitty Mercer?

– A senhora já ouviu falar nela?

– Um pouco – murmurei. – Tem alguma ideia de para quem ela criou ofundo?

– Receio que não consiga saber a partir destas anotações, mas posso desceraté os cofres para dar uma olhada no livro contábil de 1964.

Poderia ligar para a senhora quando descobrir?

– Isso seria ótimo, obrigada.

Dei meu número a Talitha e encerrei a ligação, o coração saindo pela boca.Será que eu tinha algum parentesco com Kitty no final das contas?

Deixei o hotel e caminhei pela estrada para voltar ao cibercafé, pensando empassar algum tempo pesquisando sobre Albert Namatjira. Mas parei derepente em frente a uma banca de jornal ao ver um rosto familiar na capa doThe Australian.

CHANGROK SE ENTREGA E VOLTA PARA CASA – Merda! – exclamei, emchoque.

Observei a foto mais atentamente: Ace estava algemado, descendo os degrausde um avião cercado por vários homens de uniforme.

Comprei o jornal, sabendo que levaria muito tempo para decifrar o que diziao parágrafo logo abaixo. Também havia uma chamada dizendo

“continua na página 4”. Dei meia-volta e caminhei para o hotel. Era inútil iraté o café; meu cérebro era incapaz de se concentrar em mais de uma coisaaté mesmo quando tudo estava bem. Aquele definitivamente não era omomento para pesquisar sobre Albert Namatjira.

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De volta ao meu quarto, percebi quanto dependera de Estrela para

“traduzir” jornais, e-mails e livros para mim. E, ainda que ela houvesse meenviado algumas mensagens de texto durante a noite para verificar se euestava bem, e eu tivesse certeza de que ela ficaria feliz em ajudar, eu sentiaque era importante provar a mim mesma que poderia cuidar disso sozinha.Então me sentei de pernas cruzadas na cama e me esforcei ao máximo paradecodificar o que o jornal falava sobre o meu Ace.

Anand Changrok, o investidor desonesto que quebrou o Berners InvestmentBank em novembro passado, voou para casa hoje, deixando seu esconderijo

tailandês, e se entregou em Heathrow.

Changrok se recusou a comentar o caso enquanto era levado pela polícia. O

Berners Bank, um dos bancos mais antigos do Reino Unido, foi recentementecomprado por £1 pelo Jinqián, um banco chinês de investimento.

Com a notícia da prisão de Changrok, inúmeros investidores irritadoscercaram a entrada do banco, na Strand, em Londres, para protestar porseus fundos perdidos. Muitos investiram suas pensões em fundosadministrados pelo Berners e perderam as economias de toda a vida. DavidRutter, diretor executivo do Berners, recusou-se a comentar sobre o nível deremuneração que será oferecido aos investidores, mas o Conselho deAdministração anunciou que está em andamento uma investigação completasobre como tudo isso aconteceu de maneira despercebida.

Enquanto isso, Changrok foi levado para a prisão de Wormwood Scrubs eirá se apresentar ao tribunal na próxima terça para responder por acusaçõesde fraude e falsificação de documentos.

Algumas fontes dizem que é improvável que ele saia sob fiança.

Então Ace estava preso em Londres. Mordi o lábio, agitada, pensando que, senunca tivesse pedido a Po para tirar aquelas fotos, talvez ele tivesse vindo meencontrar na Austrália e nós dois pudéssemos ter nos tornado fora da lei empleno Outback. Talvez eu devesse ir visitá-lo e tentar explicar a verdade

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pessoalmente... Ele não poderia fugir, dado o lugar onde estava, mas era umlongo caminho a percorrer caso ele se recusasse a me ver.

Olhei o relógio e vi que passava um pouco das onze, e o Broome HistoricalMuseum devia estar aberto.

Saí com o mapa turístico da cidade em mãos. Enquanto caminhava pelaampla avenida, olhei as vitrines e vi expositores de pérolas – não apenas asbrancas, mas pérolas pretas e cor-de-rosa presas em colares ou transformadasem brincos delicados. Ouvi uma grande algazarra em uma das árvores aopassar.

À minha esquerda, além de uma faixa de densos manguezais, ficava o vastooceano, que se unia perfeitamente ao céu no horizonte. Depois de algumtempo, vi o museu. Parecia-se com um monte de outros edifícios em Broome:um único andar, com telhado corrugado e uma varanda ao longo da fachada.

Assim que entrei me senti em evidência, uma vez que era a única visitante.

Uma mulher sentada a uma mesa, diante de um computador, mostrou o rostocom sardas abrindo um sorriso discreto.

Dei uma volta e vi que tudo ali parecia estar relacionado à indústria depérolas. Havia vários modelos de barcos expostos e fotos em preto e brancode pessoas navegando neles. Meus olhos ficaram vidrados diante das placascom descrições em letra pequena, e segui até um canto cheio deequipamentos antigos. Havia outro conjunto idêntico à escultura do

astronauta de bronze, os buracos redondos no capacete de metal meencarando como olhos vazios. Ao ler a placa abaixo, finalmente entendi queera um traje de mergulho usado na indústria de pérolas muito antes da épocado neoprene.

No mostruário seguinte, havia pérolas expostas em almofadas de veludovermelho dentro de pequenas caixas de madeira. Muitas delas pareciamdisformes, como lágrimas cintilantes que tivessem acabado de cair no chão.

Eu nunca fora uma garota ligada a joias, mas havia alguma coisa naquelas

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pequenas esferas que me fazia ter vontade de estender a mão e tocá-las.

– Posso ajudar?

Saltei para longe do mostruário me sentindo culpada, mesmo não tendo feitonada de errado.

– Só queria saber se você já ouviu falar sobre uma mulher chamada KittyMercer.

– Kitty Mercer? É claro que sim. Duvido que alguém de Broome não tenhaouvido. Ela é uma das pessoas mais famosas que já viveu aqui.

– Ah, que bom então – comentei. – Você tem alguma informação sobre ela?

– Com certeza. Você está fazendo um projeto escolar ou algo assim?

– Para a faculdade, na verdade – improvisei, ofendida por ela ter me achadotão jovem.

– Várias alunas vêm aqui para pesquisar sobre Kitty Mercer. Ela foi uma dasgrandes pioneiras da Austrália. E meio que administrou esta cidade no iníciodo século XX. Há uma biografia dela lá em cima. Foi escrita há algum tempopor um historiador local. Li e descobri várias coisas sobre ela que não sabia.

– Ah, sim, acho que já tenho esse livro – falei apressadamente quando vi abiografia que Ace havia comprado para mim.

Estava pensando se aquela era a única fonte de informações sobre Kitty.

Talvez eu devesse perguntar se havia um documentário televisivo sobre ela aque eu pudesse assistir, porque levaria anos para conseguir terminar o livrosozinha. Então meus olhos correram para uma mesa ao lado da prateleira,com uma pequena seleção de audiolivros. Reconheci a capa de um deles.

– É um CD da biografia?

– Sim.

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– Ótimo, obrigada, vou levar – falei, sendo inundada de alívio.

– São 29 dólares, querida. Você não é daqui, certo? – perguntou ela, enquantoeu separava três notas de 10 dólares.

– Não.

– Veio pesquisar sua própria história? – sondou.

– Sim. Isso e o trabalho da faculdade.

– Bem, se precisar de mais alguma ajuda, é só falar.

– Pode deixar. Tchau.

– Tchau. Fico feliz ao ver que um de vocês chegou à faculdade.

Deixei o museu aliviada, porque havia algo no jeito com que a mulher olhavapara mim, com uma mistura de empatia e desconforto, que não me agradava.Tentei tirar aquilo da cabeça enquanto dava um pulo numa loja que vira nocaminho para comprar um CD player portátil e um fone de ouvido barato.Tinha certeza de que os outros hóspedes não estariam interessados em ouvirintermináveis horas da história da vida de Kitty Mercer através das paredesfinas do quarto.

Pedi um hambúrguer para o almoço ao passar pelo café e, quando voltavapara o hotel, notei algumas crianças negras agachadas na grama.

Na verdade, uma delas estava deitada e parecia dormir. Um dos que estavamacordados meneou a cabeça para mim e outro bebeu um gole de uma garrafade cerveja.

Vi uma mulher se desviar de seu caminho para passar longe deles, como sefossem atacá-la em plena luz do dia. Eles não pareciam perigosos para mim –só um bando de jovens como quaisquer outros na esquina de uma cidade oupovoado.

Eu tinha acabado de entrar no quarto quando meu celular tocou e vi que eraMa. Sentindo-me mal por não ter respondido suas mensagens, atendi a

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ligação.

– Alô?

Após uma longa pausa, provavelmente devido à conexão ruim com a Suíça,ela falou:

– Ceci?

– Sim. Oi, Ma.

– Chérie! Como você está?

– Ótima. Bom, estou bem.

– Estrela me disse que você está na Austrália.

– Estou.

– Você foi embora da Tailândia?

– Sim.

Houve outra pausa, mas dessa vez por parte de Ma. Eu podia praticamenteouvir sua mente em ação enquanto tentava decidir se me perguntava ou nãosobre Ace.

– E você está bem? – disse ela por fim.

– Sempre, Ma – falei, perguntando-me quando ela iria direto ao assunto.

– Chérie, você sabe que estou aqui para ajudar se algum dia precisar de mim.

– Eu sei. Obrigada.

– Quanto tempo você vai ficar na Austrália?

– Não tenho certeza, para ser sincera.

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– Bem, fico feliz em ouvir sua voz.

– Eu também – falei.

– Então tchau, vou desligar.

– Ma...

Como ela obviamente não queria puxar a conversa, eu sabia que teria quefazer isso.

– Sim, chérie?

– Você acha que Pa teria ficado chateado com aquela foto?

– Não. Tenho certeza de que você não fez nada de errado.

– Não fiz mesmo. Eu não sabia nada sobre Ace e o que ele havia feito.

Alguém contactou você? Quero dizer, os jornais?

– Não, mas não direi nada, mesmo que entrem em contato.

– Sei que não. Obrigada, Ma. Boa noite.

– Boa noite, chérie.

Encerrei a ligação, pensando em quanto amava aquela mulher. Mesmo queminha viagem para a Austrália terminasse comigo descobrindo quem eraminha mãe biológica, eu não conseguia imaginar ninguém que pudesse sermais gentil, compreensivo e solidário do que Ma. Ela amara todas nós dofundo do coração. E isso era mais do que minha mãe biológica obviamentefizera, porque, a menos que Pa tivesse me sequestrado, o fato é que ela meabandonara. Provavelmente havia uma explicação; talvez estivesse doente oufosse pobre, e tivesse pensado que eu teria uma vida melhor com Pa Salt.

Mas... o vínculo entre mãe e filho não deveria ser mais forte do que qualquerobstáculo?

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Sentei-me na cama outra vez, perguntando-me se queria mesmo continuarnaquela jornada bizarra para encontrar as pessoas que tinham meabandonado.

Talvez eles nem me quisessem de volta. No entanto, Maia, Ally e Estrelapareciam estar levando vidas novas e mais felizes após terem seguido osrastros para descobrir sua origem...

Meu celular tocou de novo e vi que era Chrissie. Quando atendi, meperguntei como é que ela sempre aparecia quando eu estava me sentindo parabaixo.

– Oi, Ceci! Foi ao museu hoje?

– Sim.

– Descobriu algo?

– Alguma coisa, mas ainda não sei bem o que isso tem a ver comigo.

– Quer me encontrar mais tarde? Falei com minha avó e ela gostaria muito deconhecê-la.

– Claro.

– Que tal eu passar pelo seu hotel às três e levar você até ela?

– Por mim parece ótimo, Chrissie, desde que não seja um incômodo.

– Incômodo nenhum. Tchau, Ceci.

Eu estava guardando o celular no bolso da bermuda quando ele tocounovamente. Era Estrela.

– Oi. – Estrela parecia um pouco sem fôlego. – Você está bem?

– Sim, estou. E você?

– Estou bem. Olha, Ci, achei que devia avisá-la de que recebi uma ligação

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hoje. De um jornal.

– O quê?

– Não sei bem como conseguiram meu número, mas eles me perguntaram seeu sabia onde você estava. Eu disse que não, claro.

– Meu Deus – murmurei, de repente me sentindo tão caçada quanto Ace.

– Eu realmente não sei de nada, Sia.

– Acredito em você, querida, é claro que acredito. Só queria que vocêsoubesse que eles descobriram seu nome completo. Você sabe como?

– Aposto que foi aquele tal de Jay, em Railay... aquele que gostava de você,lembra? Ele é ex-jornalista e acho que foi quem vendeu a foto aos jornais. Jayé colega de Jack, do Railay Beach Hotel, e eles têm todos os nossos dados dequando fizemos o check-in... números de telefone, endereços, essas coisas. Efoi a namorada de Jack que me disse que Jay tinha reconhecido Ace. Ela érecepcionista no hotel. Jay provavelmente a subornou para dar uma olhadanos registros.

De repente, ouvi uma risadinha do outro lado da linha.

– O que é tão engraçado?

– Nada. Quero dizer, tem que ter um lado engraçado em tudo isso, não é?

Só você poderia acabar na capa de todos os jornais com um homemmegaprocurado e nem sequer saber quem ele era!

Eu a ouvi rir novamente, e de repente ela parecia a velha Estrela.

– Sim, aposto que Electra está morrendo de inveja – falei, rindo.

– Sem dúvida. Ela provavelmente está ao telefone agora falando com suaequipe de relações públicas. É difícil conseguir uma primeira página, que dirátodas. Ah, Ci...

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Estrela continuou a rir e acabei me juntando a ela, porque aquela situação eratão louca e ridícula que acabei tendo um ataque de riso.

Depois de algum tempo, nós nos acalmamos e respirei fundo algumas vezesantes de conseguir falar novamente.

– Eu gostava mesmo dele – lamentei. – Era um cara muito legal.

– Notei pela foto que você gostava dele. Estava em seus olhos. Você pareciamuito feliz. Adorei seu cabelo, aliás, e aquela blusa que você estava usando.

– Obrigada, mas nada disso importa agora porque ele me odeia. Ele pensaque fui eu quem contou à mídia onde se escondia, porque a foto foi tiradacom a minha câmera. O segurança levou o filme para revelar e até dei cópiasdas fotos a Ace como presente de despedida. Ficou parecendo que eu queriaesfregá-las no nariz dele ou algo assim.

– Ah, isso é terrível, Ci. Você deve estar arrasada.

– Sim, estou, mas o que posso fazer?

– Contar a ele que não foi você?

– Ele nunca acreditaria em mim. Sério, Sia, ele não é nem um pouco como osjornais o descrevem.

– Você acha que ele fez aquilo?

– Talvez, mas alguma coisa não bate.

– Bem, se isso faz você se sentir melhor, Mouse diz estar convencido de queAce é apenas um bode expiatório. Alguém mais no banco devia saber o queestava acontecendo.

– Certo – comentei, sem saber se ficava feliz ou triste por seu namorado,Mouse, estar do meu lado, pois ele fora o principal causador dos problemas

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entre mim e Estrela, para começo de conversa.

– Olha, se houver qualquer coisa que nós possamos fazer para ajudar, porfavor, me liga.

Ela ter usado a palavra “nós” me irritou ainda mais.

– Obrigada. Ligo, sim.

– Fique bem, Ci. Te amo.

– Também te amo. Tchau.

Encerrei a ligação e, depois de me sentir tão melhor ao rirmos juntas comonos velhos tempos, agora estava triste pelo fato de uma pequena palavra melembrar como as coisas tinham mudado. Estrela tinha o seu Mouse, que aabraçava com carinho todas as noites. Terminara sua jornada em busca dopassado e dera início ao seu futuro, enquanto eu não estava nem perto denenhuma das duas coisas.

Às três horas em ponto, Chrissie chegou à recepção. Apesar do calor, usavauma calça jeans desbotada e uma camisa justa, com uma bandana vermelhaprendendo os cachos longe do rosto.

– Bom dia, Ceci. Pronta para levantar poeira... quero dizer, pegar a estrada?

Então me sentei na garupa de sua mobilete e partimos. Reconheci o aeroportoquando passamos ao lado da pista, depois fizemos algumas curvas fechadasaté chegar a uma estrada empoeirada com cabanas de telhado de metal. Nãoera uma favela, mas era óbvio que as pessoas que moravam ali não tinhamdinheiro sobrando para embelezar suas casas.

– Chegamos. – Chrissie parou a mobilete, mantendo-a firme para eu saltar.

– Acho melhor avisar que minha avó pode parecer um pouco estranha, masjuro que ela não é louca. Pronta?

– Pronta.

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Chrissie me conduziu por um caminho que, tecnicamente, era um jardim, sóque parecia mais uma sala de estar. Havia um velho sofá marrom, váriascadeiras de madeira e uma espreguiçadeira com um travesseiro e um lençol,como se alguém tivesse dormido ali.

– Oi, Mimi – disse Chrissie em direção a um lugar atrás do sofá.

Quando demos a volta, vi uma pequena mulher sentada de pernas cruzadas nochão. Sua pele tinha cor de chocolate, e o rosto era marcado por centenas delinhas. Ela era a pessoa mais velha que eu já tinha visto, mas ainda assimusava uma bandana moderna em volta da testa, tal como a neta.

– Mimi, ngaji mingan? Esta aqui é Celeno, a garota de quem lhe falei –

apresentou Chrissie.

A velha olhou para mim e vi que seus olhos eram incrivelmente vívidos ebrilhantes, como se uma jovem tivesse sido colocada dentro da pele de umapessoa idosa por engano. Eles me lembravam duas avelãs em suaves poças deleite.

– Mijala juyu – disse ela, e fiquei ali sem jeito, sem ter ideia do que elaacabara de dizer.

Ela acariciou o chão ao seu lado e me sentei, confusa pelo sofá vazio e ascadeiras.

– Por que ela está sentada no chão? – perguntei a Chrissie.

– Porque quer sentir a terra embaixo dela.

– Certo.

Eu podia sentir os olhos da senhora ainda em mim, como se estivesseexaminando minha alma. Ela estendeu a mão nodosa para acariciar meurosto, a pele surpreendentemente macia na minha. Então puxou um dos meuscachos e sorriu. Vi que havia uma grande lacuna entre seus dois dentes dafrente.

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– Você conhece a história das gumanyba? – perguntou ela em um inglêshesitante.

– Não...

Olhei para ela sem entender.

– Ela está falando sobre as Sete Irmãs, Ci. É como são chamadas em nossalíngua – explicou Chrissie.

– Ah! Sim, conheço. Meu pai me contou tudo sobre elas.

– Elas são nossas kantrimen, Celeno.

– Isso significa nossos parentes – esclareceu Chrissie.

– Nós, família, povo do mesmo kantri.

– Certo.

– Outra hora explico o que ela quer dizer – sussurrou Chrissie.

– Tudo começou no Tempo do Sonho – disse a velha.

– O quê?

– A história das Sete Irmãs – falou Chrissie. – Ela vai contá-la para vocêagora.

E, com Chrissie traduzindo, ouvi a história.

Aparentemente, as Sete Irmãs desciam de seu lugar no céu e pousavam emuma colina que era alta e vazia por dentro, como uma caverna. Havia umapassagem secreta para o seu interior, e isso significava que as irmãs podiam ire vir entre os céus e a terra sem serem vistas. Enquanto estavam aquiembaixo conosco, moravam na caverna. Um dia, quando saíram em busca decomida, um velho as viu passar, mas elas estavam muito ocupadas e não onotaram. Ele decidiu segui-las, porque queria uma jovem como esposa.Enquanto elas descansavam junto a um riacho, ele pulou e agarrou a irmã

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mais nova. As outras correram de volta para a caverna em pânico, entãoseguiram pela passagem secreta até o alto da

colina e de lá para o céu, deixando a pobre irmã mais nova nas garras dovelho.

Quando ouvi isso, pensei que tinha sido muito ruim da parte das outrasdeixarem a caçula para trás. De qualquer forma, ela conseguiu escapar ecorreu de volta para a caverna. Percebendo que as irmãs já tinham voado esabendo que o velho ainda a perseguia, ela subiu pela passagem secreta evoou atrás das irmãs. Aparentemente era por isso que a irmã mais nova – queeu pensava se chamar Mérope, mas que a senhora chamava de outro nome –muitas vezes não podia ser vista, porque havia se perdido no caminho devolta para o seu “país”.

No fim da história, a velha ficou em profundo silêncio, os olhos fixos emmim.

– O que é realmente estranho – comentei com Chrissie – é que, na verdade,nós somos apenas seis irmãs; Pa nunca levou uma sétima filha para casa.

– Na nossa cultura, tudo é um reflexo de lá de cima – respondeu ela.

– Acho que o “velho” que sua avó mencionou deve ser Órion, sobre quem Panos falava nas histórias gregas.

– Provavelmente – disse ela. – Há várias lendas sobre as irmãs em diferentestradições, mas essa é a nossa.

Como essas histórias de vários lugares do mundo podem ser tãosemelhantes? , pensei. Quero dizer, quando foram originalmente contadas,milhares de anos antes, os gregos não podiam simplesmente mandar um e-mail para o povo aborígine, ou os maias no México contarem por telefone aosjaponeses. Poderia realmente haver uma ligação maior entre o céu e a terra doque eu pensava? Talvez houvesse mesmo algo místico, como diria Tiggy, nofato de termos recebido os nomes das famosas irmãs do céu, e de a sétimaestar perdida...

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– De onde você é? – perguntou-me a senhora, e voltei subitamente àrealidade.

– Eu não sei. Fui adotada.

– Você daqui. – Ela pegou o que parecia um longo bastão com algumasmarcas e bateu-o na terra dura e empoeirada. – Você kantrimen.

– Família – lembrou Chrissie, e então se virou para a avó. – Eu soube assimque a vi que uma parte dela era.

– Parte mais importante: coração, alma. – A velha bateu no peito, os olhoscor de avelã calorosos. Ela estendeu a mão e apertou a minha com uma forçainesperada. – Você veio para casa. Pertence aqui.

Enquanto ela segurava minha mão, de repente me senti zonza e à beira daslágrimas. Talvez Chrissie tenha notado, porque ela se levantou e gentilmenteme ajudou a ficar de pé.

– Temos que ir agora, Mimi, porque Ceci tem um compromisso.

Fiz um aceno de cabeça para Chrissie, agradecida, segurando seu braço embusca de apoio muito mais do que eu gostaria.

– É, é verdade. Muito obrigada por me contar a história.

– Contar muito mais ainda. Volta – encorajou-me a mulher.

– Vou voltar – prometi, pensando que seu sotaque era o mais estranho que eujá tinha ouvido. – Tchau.

– Galiya, Celeno.

Ela acenou para mim enquanto Chrissie me levava pelo jardim/sala de estarem direção à mobilete.

– Quer beber alguma coisa? Tem um posto de gasolina logo depois daesquina.

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– Sim, seria ótimo – respondi, sentindo que ainda não estava pronta parasubir na instável mobilete.

Pouco depois, chegamos à loja de conveniência do posto. Pedimos Coca-Colae fomos nos sentar em um banco do lado de fora.

– Desculpe pela minha avó. Ela é realmente... intensa.

– Não se desculpe. Foi muito interessante. Só me senti um pouco estranha, sóisso. Ouvir tudo aquilo sobre... – procurei pela palavra – ...

essa cultura a que eu posso pertencer. Sabia muito pouco sobre isso antes dechegar aqui.

– Não precisa se sentir mal. Por que você saberia, Ci? Você foi adotada elevada para a Europa quando era bebê. Além disso, os mais velhos queremgarantir que suas histórias sejam contadas, principalmente em nossa cultura.

Tudo é transmitido oralmente, sabe? De geração em geração. Nada foiescrito.

– Você está dizendo que não há... nenhuma Bíblia ou Alcorão com todas ashistórias e regras?

– Nada. Na verdade, ficamos bem irritados quando as pessoas escrevemalguma coisa. É tudo falado e pintado também. – Ela fitou minha expressãoatordoada. – Ci, você parece bem perturbada, o que houve?

– É só que, bem... – falei engolindo em seco e sentindo que tudo ficava maisestranho a cada segundo. – Eu sou disléxica, então não consigo ler bem,mesmo que meu pai tenha me dado a melhor educação possível. As letrassaltam diante dos meus olhos, mas eu sou... bem... uma artista.

– Sério?!

Foi a vez de Chrissie ficar perplexa.

– Sim.

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– Então por que não me contou antes? Isso é sensacional!

Principalmente porque você pode ter algum parentesco com Namatjira!

– Não sou nada especial, Chrissie...

– Todos os artistas são especiais. E não se preocupe, sou mais auditiva evisual também. Talvez esteja em nossos genes.

– Talvez. Chrissie, posso lhe perguntar uma coisa?

– Pode, claro. Qualquer coisa.

– Sei que vou parecer uma idiota como sempre, mas existe... preconceitocontra os aborígines na Austrália?

Chrissie virou o belo rosto na minha direção e assentiu lentamente.

– Com certeza, mas não é assunto para conversarmos agora, sentadas em umposto de gasolina, tomando Coca-Cola. Quero dizer, se você perguntar aqualquer branco, ele lhe dirá que não existe. Pelo menos eles não estão nosassassinando aos milhares e roubando nossa terra... Eles a roubaram háalgumas centenas de anos e ainda não devolveram a maior parte. Em janeiro,os brancos celebram o Dia da Austrália, o dia em que uma frota de naviosbritânicos chegou para “reivindicar” o nosso país.

Nós o chamamos de Dia da Invasão, porque foi quando teve início ogenocídio do nosso povo. Estamos aqui há cinquenta mil anos, e eles fizeramde tudo para acabar conosco e destruir nosso modo de vida. De qualquerforma – acrescentou, dando de ombros –, é coisa antiga, eu lhe conto maisoutro dia.

– Tudo bem.

Não queria perguntar o que significava “genocídio”, mas parecia algo muitoruim.

– Isso a assusta? – perguntou ela depois de um tempo. – Quero dizer,perceber que é uma de nós, ou que parte de você é, pelo menos?

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– Não. Sempre fui diferente. Alguém que não se encaixa, sabe?

– Sei. – Ela pousou a mão quente em meu braço. – Certo, vamos levá-la devolta ao hotel.

Depois que Chrissie me deixou, entrei no quarto e desabei na cama. Pelaprimeira vez em muito tempo, dormi assim que me deitei.

Ao acordar, abri um dos olhos para ver a hora no celular. Passava um poucodas oito da noite, o que significava que eu tinha dormido por três horasseguidas. Talvez a sobrecarga de informações dos últimos dois dias tivessetido o mesmo efeito que uma pílula do sono; meu cérebro sabia que eu nãopodia aguentar, então me apagou. Ou talvez, apenas talvez... fosse algum tipode profundo alívio por estar descobrindo quem eu realmente era, depois de terreunido coragem para ir até ali.

– Você veio para casa...

Mesmo que acreditasse que sim, será que eu queria ser rotulada pelos meusgenes, e não pela minha criação? Então levantei para fazer xixi e olhei meunariz achatado no espelho, vendo que era igual ao nariz da senhora e deminha nova amiga, Chrissie. Elas com certeza tinham um profundo senso desi mesmas e orgulho de sua cultura, e talvez fosse disso que eu precisava: umpouco de orgulho. Eu podia não pertencer mais a Estrela – tinha aprendido damaneira mais difícil que nunca se pode ter ninguém –, mas talvez pudessepertencer a mim mesma e a uma cultura que me definia.

Para o mundo em geral, eu era uma fracassada, mas, naquele dia, sentadacom Chrissie e sua avó, elas viram minha herança como uma força. Emoutras palavras, eu tinha pessoas que me entendiam, porque eram como eu.Minha... kantrimen. Família.

Voltei para o quarto, sentindo-me energizada. Resolvi então ligar paraChrissie e ver se ela podia me contar mais sobre a cultura aborígine.

Quando peguei o celular, vi que havia doze novas mensagens de texto evárias mensagens de voz.

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As duas primeiras mensagens eram de Estrela: Tão bom conversar e rir ontemà noite... Vc sabe onde estou se precisar de mim.

Te amo, S. Bjs

Eu novamente, outros jornais ligaram! NÃO ATENDA O TELEFONE!!!

Então...

Esta é uma mensagem para Ceci D’Aplièse. Oi. Meu nome é Katie Coombe.Sou jornalista do Daily Mail. Gostaria de entrevistá-la sobre seurelacionamento com Anand Changrok. Ligue para o meu celular a qualquerhora para contar o seu lado da história.

E outra...

Esta é uma mensagem para Ceci D’Aplièse, da BBC1 Newsdesk, emLondres.

Gostaríamos de conversar com a senhorita sobre Anand Changrok. Por favor,ligue para Matt no número abaixo. Obrigado.

E outra...

Oi, este celular é da Ceci? Sou Angie, do News of the World. Vamos discutiros termos para uma entrevista completa com você?

E assim por diante...

– Merda!

Os jornalistas obviamente estavam atrás de mim. Uma vez que Ace seencontrava preso e sob proteção da polícia e do tribunal, não tinham comoarrancar nada dele, então queriam falar comigo. Por um instante, pensei emligar para Wormwood Scrubs e pedir para falar com Ace e lhe perguntar sehavia algo que ele queria que eu dissesse à mídia em seu nome.

Deixe de ser idiota, Ci, falei a mim mesma. Ele não confiaria em você parapedir um suco de manga em um bar da praia...

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“Linda sabe a verdade... ”, ele havia me dito certa vez.

Mas quem era Linda? Uma namorada? Ou talvez a esposa, embora os jornaisnão fizessem qualquer menção ao fato de ele ser casado. Além de mim, éclaro, mas um dos tabloides me chamara de “namorada du jour”, logo meconsideravam uma de várias com quem ele saíra.

Ainda assim, meus instintos me diziam que eu deveria fazer algo por ele.

Afinal, Ace me ajudara quando eu precisara dele. A questão era: o quê? E

como?

Havia uma coisa que eu podia fazer...

Tirei o chip do celular, em seguida verifiquei se todos os números de queprecisava estavam armazenados na agenda do aparelho. Levei o chip aobanheiro, enrolei-o em um pedaço de papel higiênico e joguei-o no vaso.

Depois dei descarga, por bastante tempo. Satisfeita por ninguém poder melocalizar agora, saí do quarto, fui até uma loja na esquina e comprei umcartão SIM local. Então mandei uma mensagem para Estrela e Ma com meunovo número. Meu celular tocou trinta segundos depois.

– Oi, Estrela.

– Só estava vendo se funcionava.

– Funcionou, mas é pré-pago e a moça da loja disse que tenho que pagar aschamadas vindas do exterior, então provavelmente só tenho cerca de trintasegundos dos meus 20 dólares.

– Boa ideia jogar fora o seu chip antigo. Recebi mais um monte de ligaçõeshoje. Mouse disse que, se eles forem inteligentes, provavelmente poderãolocalizá-la através do registro da companhia aérea, então...

Estrela foi abruptamente cortada e vi uma mensagem no meu celular, dizendoque meus créditos haviam acabado.

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– Isso está ficando ridículo – lamentei-me enquanto caminhava de volta pelarua para o hotel.

Eu não era James Bond, nem mesmo Pussy Galore, ou qualquer que fosse onome dela.

– Oi, Srta. D’Aplièse – cumprimentou-me a recepcionista. – Já decidiuquanto tempo ainda vai ficar?

– Não.

– Bem, avise-me, por favor, quando decidir. – Notei que a recepcionista meobservava atentamente. – É sua primeira vez aqui? Seu rosto me parecefamiliar.

– Sim, primeira – respondi, tentando manter a voz firme. – Tchau, obrigada–falei e subi de novo para o meu quarto.

Os sapos ainda faziam seu coro noturno em frente à minha janela aberta.

Acendi a luz e vi o CD player na mesa de cabeceira, lembrando-me de quedevia ouvir um pouco mais da história de Kitty, já que precisava de distração.

Deitei na cama, troquei as pilhas do aparelho e coloquei o segundo disco.

Então peguei meus fones de ouvido, apertei Play e fechei os olhos paradescobrir o que acontecera com Kitty Mercer.

Kitty Broome, Austrália Ocidental Outubro de 1907

14

Kitty se agitou quando Andrew a beijou na testa.

– Vou para o cais – disse ele. – Está para chegar um navio em cerca de umahora, e quero dar uma olhada na carga e me certificar de que nenhumdaqueles malditos e dissimulados koepangers tenha escondido alguma pérolano corpo. Descanse bem hoje, está bem, querida?

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– Está bem.

Kitty olhou para o marido, vestido como sempre em seu elegante uniforme demestre mandaçarre, isto é, chefe dos pescadores de pérolas: um terno brancoresplandecente com gola mandarim e botões de madrepérola e um chapéu noestilo safári, de abas curtas. Ela sabia que, quando Andrew voltasse para casapara o almoço, o terno estaria inevitavelmente coberto de poeira vermelha eele teria que se trocar antes de sair novamente. Ali em Broome era sempre diade lavar roupa, mas ela não precisava suar sobre tinas de água quente; osternos eram dobrados por sua criada e enviados a Cingapura para seremlavados assim que chegava o navio a vapor bissemanal.

Era apenas uma das muitas excentricidades em Broome que ela rapidamentefora forçada a aceitar, agora que não era mais a filha de um pastor, mas aesposa de um rico comerciante de pérolas.

Ela embarcara com Andrew no vapor costeiro, o Paroo, em Fremantle, logoapós o casamento, e, após alguns dias difíceis no mar, a costa haviafinalmente surgido a distância. Kitty vira uma praia plana e amarelada evárias casas com telhado de metal bem próximas. O navio tinha ancorado emum píer de quase 1,5 quilômetro, a água marrom-escura batendo nos suportesde madeira. Um denso mangue contornava a costa, e atrás dele havia umafileira de galpões de ferro corrugado. Os infames navios de pérolasaportavam bem à frente da baía, os mastros aglomerados em contraste com ovasto céu azul.

Após saírem do navio, ela e Andrew foram conduzidos de charrete pelopequeno enclave da cidade, e Kitty não ficou nem um pouco encorajada.

Com a chegada dos navios a vapor e dos lugres, um afluxo ruidoso depessoas começou a encher os bares e hotéis ao longo da Dampier Terrace – arua principal da cidade – com música de piano, vozes ásperas e fumaça decharutos. Kitty lembrou-se do Oeste Selvagem da América sobre o qual havialido. Era tão quente quanto ela imaginava, e o cheiro

de corpos que não haviam se banhado permeava o ar úmido e parado.

O bangalô com telhado de metal que seu sogro construíra somente para

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fornecer um teto temporário a ele e Edith, enquanto estabelecia seu negóciode pérolas, não era nada atraente. Andrew prometera a Kitty uma casa maisconfortável, e as obras tinham sido concluídas apenas dois meses antes.

Depois de sete meses ali, Kitty se acostumava lentamente àquela cidadeestranha e isolada, cercada de um lado pelo mar e pelo vasto desertovermelho do outro. As poucas casas ao longo da empoeirada e por vezesinundada Robinson Street, onde a população em sua maioria branca e ricaresidia, ficava a poucos minutos da área carente superlotada.

Broome não tinha nem um pedacinho elegante ou gracioso em sua vibrantemistura multicultural, mas era o epicentro da indústria mundial de pérolas.Quando era levada até a cidade por Fred, seu cavalariço aborígine, Kittyencontrava uma mistura de diferentes raças que saíra dos navios do dia eestava à procura de entretenimento. O dinheiro fluía como água, e muitosestabelecimentos ficavam felizes em recebê-lo. A Yamasaka & Mise tinhauma seleção de maravilhosos tesouros japoneses, assim como sedas maciasque poderiam virar belos vestidos, que as esposas dos comerciantes depérolas exibiriam durante a temporada de baile.

Kitty se esforçou para se sentar na cama, as costas doloridas pelo peso dabarriga, e só podia agradecer ao Senhor que o bebê estaria ali em menos detrês meses. O Dr. Blick, que Kitty via esvaziar uma garrafa de uísque sempreque o encontrava em reuniões sociais, assegurara-lhe que teria o melhoratendimento quando sua hora chegasse. Afinal, Andrew – ou, pelo menos,seu pai – era dono do maior negócio de pérolas em Broome, com uma frotade 36

lugres que levavam centenas de toneladas de conchas para o porto todos osanos.

Assim que ela chegou, os assuntos de que Andrew tratava, como lugres eclassificações de conchas, eram estranhos para ela, mas, como ele quase nãofalava sobre outra coisa quando jantavam à noite, sua mente lentamenteassimilou o funcionamento do negócio.

A Mercer Pearling Company havia passado por um início de temporadadifícil, quando um lugre e toda a equipe foram perdidos em razão de um

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ciclone. Kitty rapidamente aprendera que ali a vida humana era frágil enotavelmente substituível. Isso era um fato que ela ainda se esforçava paraassimilar. A crueldade e a dureza da vida em Broome – sobretudo otratamento da população aborígine local – eram algo que ela sabia que nuncapoderia aceitar completamente.

Kitty ficara horrorizada a primeira vez que vira um grupo de aboríginesacorrentados pelo pescoço e vigiados por um guarda com um rifle, enquantolimpavam os destroços de uma casa destruída por um ciclone.

Andrew a afastara com delicadeza quando ela começara a chorar,

extremamente chocada.

– Você ainda não entende os costumes de Broome, minha querida –

Andrew a confortara. – É para o próprio bem deles. Dessa forma, eles podemser produtivos para a sociedade.

– Acorrentados? – Kitty tremia com uma fúria latente. – Privados daliberdade?

– É um método humano. Eles ainda podem andar um bom pedaço assim.

Por favor, querida, acalme-se.

Kitty ouvira, impotente, Andrew explicar que os encarregados acreditavamque os “negros” voltariam correndo para o deserto no minuto em quetivessem a chance. Então eles os acorrentavam uns aos outros, e os prendiama uma árvore durante a noite.

– É cruel, Andrew. Você não consegue ver isso?

– Pelo menos, se trabalham, eles recebem tabaco ou sacos de farinha paralevar para as famílias em casa.

– Mas não um salário digno? – indagara ela.

– Não é disso que eles precisam, minha querida. Essas pessoas venderiam um

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filho sem pestanejar. São como animais selvagens e, infelizmente, devem sertratadas assim.

Após semanas de desentendimento sobre o assunto, Kitty e Andrewsimplesmente concordaram em discordar. Ela estava convencida de que

– com bondade, compreensão e algum respeito pelo fato de essas pessoasestarem na Austrália havia muito mais tempo do que os colonos brancos – umacordo mais gentil certamente poderia ser alcançado.

Andrew garantia que isso já tinha sido tentado antes e dado completamenteerrado.

No entanto, o fato de acreditar que essa desigualdade era errada corroía aconsciência de Kitty. Tivera até mesmo que pedir uma dispensa especial dapolícia para manter Fred nas dependências à noite, já que, de outra forma, eleseria arrebanhado com os outros e levado de volta para um acampamento forada cidade, longe de seus “senhores” brancos.

Essa situação, além das mortes assustadoramente regulares na área carentesuperlotada e no mar, era o preço que cada pessoa em Broome tinha quepagar pelos salários muito maiores que a média. E, para uns poucos, havia oprêmio máximo: encontrar a pérola perfeita.

Ingenuamente, Kitty imaginara que cada concha conteria uma, mas seenganara. A indústria sobrevivia principalmente dos revestimentos demadrepérola. Escondido dentro das feias conchas marrons manchadas que semisturavam ao fundo do mar, havia um material lustroso vendido aos montesao redor do mundo para ser usado como decoração para pentes, caixas ebotões.

Não era sempre que um capitão triunfante entregava com empolgação umacaixa de pérolas ao mestre mandaçarre. E, dentro da caixa – que não poderiaser aberta uma vez que a pérola tivesse sido colocada lá dentro, já quesomente o próprio mestre tinha a chave –, haveria um possível

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tesouro de enorme valor. Kitty sabia que Andrew sonhava todas as noites emencontrar a pérola mais magnífica, que o tornaria não somente rico, mastambém famoso.

Uma pérola que o estabeleceria – e não seu pai – como o principal mestremandaçarre de Broome. E, portanto, do mundo.

Houvera várias ocasiões em que ele chegara em casa com uma pérola dotamanho de uma grande bola de gude, os olhos brilhando de emoçãoenquanto lhe mostrava a joia por vezes com formato estranho. Então, a pérolaia para a loja de T.B. Ellies, na Carnarvon Street, que verificava se adescoberta de Andrew era boa. T.B. era tido como o mais experienteconhecedor de pérolas do mundo.

Como os diamantes, as pérolas tinham que ser trabalhadas e polidas pararevelar sua verdadeira beleza. Kitty ficara intrigada ao descobrir que eramfeitas de finas camadas, como a casca de uma cebola. O talento de T.B.estava em sua habilidade de remover cada camada imperfeita sem danificar obrilho da que estava por baixo. Ela o observara segurar uma pérola sob a luz,como se seus aguçados olhos castanhos pudessem ver até o seu núcleo. Seusdedos sensíveis procuravam minúsculas saliências, e ele usava suas lixas efacas para removê-las, estreitando os olhos em seus óculos de joalheiro.

– É apenas o cuspe da ostra – dissera ele com naturalidade enquanto Kitty oobservava trabalhar. – O animal sente uma irritação, um grão de areia,

talvez, e constrói camadas de cuspe ao redor para se proteger. E eis que écriado um lindo mineral. Mas às vezes... – Ele franzira a testa antes de retiraroutra camada. – Às vezes, as camadas não protegem nada além de umpedacinho de lama.

Ele erguera a pérola para Kitty e Andrew verem e, de fato, uma pequenamancha marrom saía de um buraco. Andrew não conseguiu conter umgemido enquanto T.B. continuava a trabalhar.

– Uma excrescência perolada. Que pena – lamentou-se o homem. – Dará umbom alfinete de chapéu, talvez.

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O canto de sua boca se ergueu em um sorriso irônico sob o bigode enquantoretomava seu trabalho.

Kitty se perguntava intimamente se o silencioso cingalês sabia que detinhamais poder do que qualquer um em Broome. Ele era o criador de sonhos. Emsua despretensiosa loja com fachada de madeira, podia removercuidadosamente camadas finas de pérola para revelar uma majestosa joiacapaz de mudar vidas ou transformar a esperança em uma pilha de poeiraperolada em sua bancada de trabalho.

Broome era um microuniverso intenso e único, que englobava todas aspessoas que moravam ali. E a própria Kitty era agora mais uma engrenagemda máquina, desempenhando o papel de dedicada esposa de um empresáriodo ramo de pérolas.

– Um dia, minha querida – dissera Andrew enquanto a abraçava após outradecepção na loja de T.B. –, eu lhe trarei a pérola mais magnífica. E

você a usará para todos verem.

Kitty tocou as pérolas pequenas e delicadas que Andrew escolhera e reunirapara ela em um cordão. Fora sua obsessão em encontrar esse tesouro tãoespecial, ele fazia de tudo para lhe agradar. Kitty aprendera a não falar sobreseus sonhos, pois Andrew não media esforços para realizá-los. A casa forapreenchida com lindos móveis antigos comprados dos barcos que atracavamem Broome vindo de toda a Ásia.

Uma vez, Kitty comentara que gostava de rosas e, uma semana depois, elepegara sua mão e a levara até a varanda para lhe mostrar as roseiras quetinham sido plantadas ali em volta antes de ela acordar.

Em sua noite de núpcias, ele fora gentil e cortês. Embora o ato em si tivessesido algo a que Kitty se submetera em vez de aproveitar ativamente, semdúvida não fora insuportável. Andrew talvez tivesse ficado ainda maisemocionado do que ela ao anunciar sua gravidez cinco meses antes, quando acriança era pouco maior do que uma pérola dentro dela. Andrew já lhe falaraque o filho seguiria os passos do pai no Immanuel College, em Adelaide, edepois faria faculdade por lá. Uma semana depois, Kitty ganhara um berço de

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mogno lindamente entalhado e inúmeros brinquedos.

– Que grande dicotomia é Broome – disse ela com um suspiro enquanto seerguia com dificuldade da cama e pegava o robe de seda.

Noventa e nove por cento das pessoas na cidade viviam em condiçõesterríveis, mas qualquer coisa que os moradores mais ricos desejassem podiaser entregue naquele canto remoto e isolado do mundo em poucas semanas.

Kitty pegou seus chinelos e sacudiu bem, tendo aprendido que aranhas ebaratas gostavam de se esconder em seus interiores acolhedores. Então,atirou-os no chão e espremeu os pés inchados dentro deles. Acostumada a serativa, mesmo com a barriga crescendo, recusava-se a ficar confinada em casa,sabendo que enlouqueceria de tédio.

Durante o café da manhã, fez uma lista de todas as coisas que precisavacomprar na cidade. Antes da gravidez, sempre caminhava por cerca de dezminutos até a Dampier Terrace e sua variedade de lojas, que vendiam detudo, desde o caviar trazido da Rússia até a suculenta carne recém-abatida nomatadouro de Hylands Star. Eles comiam bem e com fartura, com umavariedade e qualidade muito superiores às encontradas em Leith. Tarik, suacozinheira malaia, apresentara-lhe o curry, que, para sua surpresa, Kittyachara incrivelmente saboroso.

Depois de colocar o chapéu de pala, ela pegou a cesta e a sombrinha e deu avolta na casa até os estábulos, onde Fred dormia na palha. Bateu as mãos eele se levantou, alerta, em questão de segundos. Sorriu para ela, um dosdentes da frente faltando – Kitty ficara sabendo que isso era comum noshomens aborígines e tinha algo a ver com um ritual.

– Cidade?

Ela apontou para o lugar, já que a compreensão que Fred tinha de sua línguaera básica, na melhor das hipóteses. Ele falava a língua da tribo -

yawuru, que era a palavra indígena para Broome.

– Vai até cidade – concordou ele enquanto Kitty o observava engatar o cavalo

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à charrete, aliviada que ele estivesse ali.

Fred costumava desaparecer ou, como ele dizia, “dar uma volta, Sra.

Patroa”. Como o dente que faltava, Kitty aprendera que muitos aboríginesfaziam isso: sumiam por semanas para as regiões distantes e perigosas fora dacidade. No início, ela ficara horrorizada ao perceber que Fred dormia numacama de palha nos estábulos.

– Querida, os negros não querem viver dentro de casa. Mesmo queconstruíssemos um abrigo, ele dormiria do lado de fora. A lua e as estrelassão o teto sobre a cabeça dos aborígines.

No entanto, Kitty sentira-se extremamente desconfortável com isso, e,quando a casa deles estava sendo reformada, insistiu que Andrew construísseuma acomodação básica com instalação de água, uma cama e uma pequenacozinha, que Fred poderia usar sempre que quisesse. Até então, Fred nãooptara por aproveitar as instalações. Mesmo que ela cuidasse para que ouniforme dele fosse sempre lavado, ainda podia sentir seu cheiro após algunspassos.

Kitty aceitou a ajuda de Fred para subir na charrete e sentou-se ao lado dele,desfrutando da suave brisa no rosto enquanto entravam na cidade.

Ela gostaria de poder coversar com Fred, compreendê-lo, e também oscaminhos de seu povo, mas, apesar de ter tentado ajudá-lo a melhorar seuinglês, Fred permanecia claramente desinteressado.

Quando chegaram a Dampier Terrace, Kitty levantou a mão e disse: –

Pare!

Fred a ajudou a descer.

– Eu fica aqui?

– Sim.

Kitty abriu um sorriso e seguiu na direção dos açougueiros. Após terminar as

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compras para o jantar daquela noite e parar para conversar com a Sra.

Norman, esposa de outro mestre mandaçarre, ela saiu em meio à forte luz dosol. Ao perceber que se sentia mal com o intenso calor, entrou em um becoestreito que oferecia um pouco mais de sombra, enquanto se abanava. Já iavoltar para a carruagem quando ouviu um gemido baixo vindo do lado opostodo beco.

Caminhou, então, em direção à pilha de lixo, pensando que talvez escondesseum animal ferido, tirou um caixote fedido e viu uma pessoa recurvada atrásdele. A cor da pele indicava que era aborígine, e o contorno da figura, que erauma mulher.

– Olá?

Como não obteve resposta, Kitty inclinou-se e estendeu a mão para tocar

aquela pele de ébano. A pessoa encolhida se esquivou e, quando ela estendeuo corpo, Kitty viu que era uma jovem, que a encarava com extremo pavor nosolhos.

– Eu fazia... nada errado, dona...

A garota se encolheu ainda mais para dentro da pilha de lixo fedido. Ao fazerisso, Kitty notou o grande volume de sua barriga.

– Eu sei. Não estou aqui para machucá-la. Você fala inglês?

– Sim, dona. Fala um pouco.

– O que aconteceu com você? Posso ver que estamos na mesma...

condição. – Kitty indicou a própria barriga.

– Você e eu tem bebê, mas melhor eu morrer. Vai embora. Vida aqui não boapara nós, dona.

Com esforço, Kitty se ajoelhou.

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– Não tenha medo. Quero ajudá-la. – Ela se arriscou a estender a mãonovamente para tocar a garota, e, dessa vez, ela não se encolheu. – De ondevocê veio?

– Vem de uma casa grande. Patrão importante, ele viu – a garota acariciou abarriga –, não tem casa mais para mim.

– Bem, agora fique aqui. Tenho uma charrete logo ali na estrada. Vou levá-

la para a minha casa e ajudá-la. Você entendeu?

– Deixa eu, dona. Eu, más notícias.

– Não. Vou levar você para a minha casa. Tenho um lugar em que você podeficar. Você não está em perigo.

– Melhor eu morrer – repetiu a garota, enquanto as lágrimas saíam de seusolhos fechados.

Kitty levantou-se, perguntando-se o que poderia fazer para convencer ajovem de que iria ajudá-la. Abriu o colar de pérolas que estava em seupescoço, abaixou-se e colocou-o nas mãos da garota, pensando que, se fosseuma pessoa com más intenções, a garota já teria desaparecido quandovoltasse, mas se não...

– Cuide disso para mim enquanto vou buscar a charrete. Confio em você,assim como você deve confiar em mim.

Kitty caminhou depressa para encontrar Fred e mandá-lo levar a charrete paraa entrada do estreito beco. Então indicou que ele deveria descer e segui-la.Para seu alívio, a garota ainda estava lá sentada, segurando firmemente ocolar de pérolas nas mãos.

– Agora, Fred, você pode ajudar essa moça a subir na charrete? – pediu Kitty,fazendo mímica.

Fred olhou para sua senhora sem acreditar. Kitty o viu olhar para a garota eem seguida de volta para a patroa.

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– Faça o que estou dizendo, Fred, por favor!

Então Fred decidiu interrogar a garota, que estava sentada no lixo, segurandoas pérolas da patroa, e iniciou-se uma conversa em yawuru.

Às vezes, as vozes se alteravam, mas, no final, Fred assentiu.

– Ela está bem, patroa.

– Então se apresse e ajude-a a subir na charrete.

Fred estendeu a mão, hesitante, mas a garota não aceitou e levantou-selentamente, mas com orgulho.

– Ando sozinha – disse ela passando por Kitty, com a cabeça erguida.

– Onde coloca ela? – perguntou Fred.

– É melhor ela deitar lá atrás e cobrirmos com a lona.

Depois que Kitty organizou tudo, Fred ajudou-a a subir na frente da charretecom ele.

– Agora, vamos para casa, Fred.

Quando chegaram, Kitty pegou lençóis limpos para a cabana que Fred nuncausara e ajudou a garota – que, àquela altura, mal conseguia ficar de pé – a sedeitar no colchão. Então passou um pouco de hamamélis em um inchaço aoredor do olho da jovem e, ao fazer isso, notou mais hematomas na bochecha eno queixo.

Em seguida, Kitty deixou um jarro de água ao lado da cama e sorriu para ela.

– Durma agora. Você está segura aqui.

– Ninguém vem bater?

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– Ninguém. – Kitty mostrou-lhe a grande chave de ferro na porta. –

Quando eu sair – ela gesticulou –, você fecha a porta. Você está segura.

Entende?

– Sim, entende.

– Vou lhe trazer uma sopa mais tarde – disse Kitty ao abrir a porta.

– Por que você tão gentil, dona?

– Porque você é um ser humano. Agora, durma.

Kitty fechou a porta suavemente ao sair.

Naquela noite, depois de servir um caldo a Camira – esse era o nome dagarota, segundo ela –, Kitty abrira uma boa garrafa de vinho tinto paraacompanhar o jantar de Andrew. Depois que ele havia bebido duas grandestaças, abordou o assunto da jovem que atualmente residia em sua cabana.

– Ela me disse que era criada em uma casa na Herbert Street. Quando suacondição tornou-se óbvia, eles a expulsaram. Ela também apanhou muito.

– Você sabe quem é o patrão dela? – perguntou Andrew.

– Não, ela não quer me contar.

– Não estou surpreso – disse ele, tomando outro gole de vinho. – Ela bemsabe que poderíamos ir até ele e descobrir a verdadeira história.

– Andrew, eu acredito que ela esteja nos contando a verdadeira história.

Ninguém quer uma empregada grávida. É provável que ela tenha sidoestuprada.

Kitty disse a palavra sem pensar. Tais incidentes eram comuns ali emBroome, onde marinheiros embriagados mostravam-se ávidos por

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“veludo negro”, como as aborígines eram chamadas.

– Você não tem como saber.

– Não, não tenho, mas a garota me contou que foi educada na missão cristãem Beagle Bay, e ela fala inglês relativamente bem. Com certeza não é umaprostituta.

Andrew recostou-se na cadeira e olhou para ela sem conseguir acreditar.

– E nós vamos abrigar e alimentar uma aborígine grávida em nossapropriedade? Santo Deus! Quando estivermos fora, ela pode entrar na casa eroubar tudo que temos!

– Se ela fizer isso, nós temos dinheiro para substituir as coisas. Além disso,não acredito que será capaz. Andrew, pelo amor de Deus, a garota estágrávida! Está esperando uma nova vida. Você acha que eu, como cristã,deveria deixá-la na sarjeta?

– Não, é claro que não, mas você deve entender que...

– Estou aqui já faz sete meses, e não há nada com relação a esta cidade queeu não entenda. Por favor, Andrew, você precisa confiar em mim.

Não acredito que a garota vá nos roubar, e, se ela fizer isso, assumo toda aresponsabilidade. Ela provavelmente está mais perto de dar à luz do que eu.

Devemos ter a morte de duas almas na consciência?

– E eu posso lhe garantir que, assim que der à luz, ela irá embora.

– Andrew, por favor. – Kitty levou os dedos à testa. – Entendo sua reticência,mas também sei como é fácil num lugar como este ficar insensível aosofrimento dos outros. Imagine se eu estivesse no lugar dela...

– Tudo bem – disse ele, assentindo. – Sua condição a tornou vulnerável a ver

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os menos afortunados do que você em tal situação. Ela pode ficar, pelomenos por esta noite.

– Obrigada! Muito obrigada, meu querido.

Kitty se levantou e foi até ele, passando os braços por seus ombros.

– Mas não diga que não avisei. Ela vai embora amanhã, com tudo que pudercarregar – disse ele, sempre querendo dar a última palavra.

Na manhã seguinte, Kitty bateu à porta da cabana e encontrou Camiraandando de um lado para outro como um dingo claustrofóbico.

– Bom dia, trouxe café da manhã.

– Você me prende aqui? – Camira apontou para a porta.

– Não, eu lhe disse que a chave estava na porta. Você é livre para sair sempreque desejar.

A garota olhou para ela, observando sua expressão.

– Eu livre ir agora?

– Sim, se você quiser.

Kitty abriu bem a porta e usou a mão para indicar o caminho.

Camira caminhou em silêncio. Kitty viu-a hesitar na soleira, olhando para aesquerda e para a direita, e para Fred, que mascava tabaco

enquanto tentava cuidar do cavalo. Então saiu e seguiu desconfiada pela terravermelha, os sentidos em alerta para um ataque súbito. Como ninguémapareceu, ela continuou caminhando em direção à rua que levava à estrada.Kitty deixou a cabana e voltou para casa.

De lá, olhou pela janela da sala de visitas e viu a pequena figura de Camirasumir ao longe. Então deixou escapar um suspiro quando percebeu queAndrew provavelmente estava certo. Seu bebê chutou de repente, e ela foi se

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sentar na sala de visitas. O calor daquele dia fora opressivo.

Uma hora se passou, mas, quando estava prestes a perder a esperança, viuCamira caminhando em direção à casa, depois hesitando por um segundoantes de voltar para a cabana. Kitty esperou mais dez minutos e foi até lá,levando um copo de limonada gelada que Tarik acabara de preparar, comgelo raspado do bloco recém-entregue.

A porta da cabana estava entreaberta, mas ela bateu mesmo assim.

Camira a abriu e Kitty percebeu que tudo que levara na bandeja de café damanhã mais cedo fora comido.

– Trouxe isso para você. Tem coisas boas para o bebê.

– Obrigada, dona. – Camira pegou a limonada de Kitty e sorveu um golehesitantemente, como se pudesse estar envenenada. Logo depois bebeu todoo resto de uma vez. – Não me faz prisioneira?

– É claro que não – respondeu Kitty rapidamente. – Quero ajudar você.

– Por que quer ajudar, dona? Nenhum branco quer.

– Porque... – Kitty procurou a resposta mais simples. – Nós somos iguais.

– Ela indicou a barriga. – Quanto tempo você ficou na missão?

– Dez anos. Professor diz que sou boa aluna. – Um ligeiro brilho de orgulhopassou pelos olhos escuros de Camira. – Também sabe alemão.

– Você sabe? Meu marido fala alemão, mas eu não.

– O que você quer, dona?

Kitty estava prestes a dizer “nada”, mas então percebeu que Camira talvezainda não conseguisse entender esse conceito de bondade vindo de um“homem branco”.

– Bem, para começar, se você ficar aqui, talvez possa ensinar um pouco de

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inglês ao Fred.

Camira franziu o nariz.

– Ele tem cheiro. Não lava.

– Talvez você possa lhe ensinar a fazer isso também.

– Eu ser professora, dona?

– Sim. E também – pensou Kitty rapidamente – estou procurando uma babápara ajudar quando o bebê chegar.

– Sabe sobre bebês. Cuida deles na missão.

– Então está resolvido. Você fica aqui – ela indicou a cabana – e nós lhedamos comida em troca de ajuda.

O rosto sério de Camira observou o de Kitty.

– Não tranca porta.

– Não vou trancar. Aqui, pegue. – Kitty entregou-lhe a chave.

–Combinado, então?

Por fim, um ligeiro sorriso iluminou o rosto de Camira.

– Combinado.

– Então, sua negrinha fugiu com tudo que pôde roubar quando você virou ascostas? – perguntou Andrew ao voltar para o almoço.

– Não, ela apenas saiu para dar uma volta e depois retornou. Você acreditaque ela fala um pouco de alemão além do inglês, Andrew? E foi criada comocristã.

– Duvido que seja alguma convicção mais profunda. Então, o que você vaifazer com ela?

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– Ela me contou que cuidava dos bebês levados para a missão. Sugeri que,em troca de me ajudar com o bebê e ensinar um pouco de inglês a Fred, elafique na cabana.

– Mas, Kitty, minha querida, a garota está grávida! O mais provável é queseja filho de um homem branco. E você conhece as regras com relação aosmestiços.

– Andrew! – Kitty bateu a faca e o garfo no prato. – Camira não deve sermais velha do que eu! O que você quer que eu faça? Atire-a de volta ao lixoonde a encontrei? E quanto às regras... são cruéis e bárbaras. Separar umamãe de seu bebê...

– É para a própria proteção dos bebês, querida. O governo está fazendo omelhor que pode para garantir que essas crianças não morram na sarjeta. Elesquerem recolhê-las e lhes ensinar os costumes cristãos.

– Não consigo nem imaginar como me sentiria se o nosso filho fossearrancado de mim. – Kitty tremia. – E, quando podemos pelo menos ajudaruma delas, por que nos negaríamos a fazer isso? Não é nada menos do quenosso dever cristão. Desculpe-me, estou me sentindo...

indisposta.

Kitty então se levantou, foi para o quarto e deitou-se, o coração acelerado.

Ela sabia tudo sobre as regras para as crianças mestiças; tinha visto oscapangas do protetorado local fazerem a ronda por Broome em uma charrete,procurando qualquer bebê ou criança cuja pele mais clara entregasse suaorigem. E ouvira o lamento das mães desesperadas quando bebês e criançaseram jogados na charrete para serem levados a um orfanato da missão, ondesua herança aborígine seria apagada e substituída por um Deus queaparentemente acreditava que era melhor adorá-Lo do que crescer com oamor materno.

Alguns minutos depois, Kitty ouviu uma batida à porta e Andrew entrou.

Ele se sentou ao lado dela na cama e pegou sua mão.

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– Como você está se sentindo?

– Estou um pouco fraca, só isso. Está muito abafado hoje.

Andrew pegou uma musselina da pilha na mesa de cabeceira e mergulhou-ano jarro de água. Então colocou-a na testa dela.

– Você também está perto de dar à luz, querida. Se lhe agrada ajudar umamãe em circunstâncias semelhantes, quem sou eu para negar? Ela pode ficar,pelo menos até a criança nascer. Então, nós devemos... dar uma olhada.

Kitty sabia que ele queria dizer “ver a cor do bebê”, mas não era hora de serrude.

– Obrigada, querido. Você é tão gentil comigo.

– Não, você que é gentil. Estou em Broome há muito tempo. E talvez tenhaficado insensível ao sofrimento em volta. São necessários novos olhos paraenxergar tudo de novo. No entanto, tenho uma posição e uma reputação asustentar. Eu... e você... não podemos desrespeitar a lei. Você entende, Kitty?

– Entendo.

– Então, quando vou conhecer sua negrinha?

Kitty cerrou os dentes.

– O nome dela é Camira. Vou mandar fazer alguns vestidos. Ela só tem aroupa do corpo e está imunda.

– Eu as queimaria se fosse você. Só Deus sabe onde estiveram, mas semdúvida descobriremos em breve. Se ela estava trabalhando como empregada,devemos conhecer seus antigos patrões. – Andrew a beijou suavemente natesta e levantou-se. – Agora preciso ir à cidade. Tenho uma reunião com T.B.

Ellies. O Edith trouxe uma carga particularmente boa e quero que eleexamine algumas pérolas. Uma delas pode ser muito especial.

Os olhos de Andrew brilharam de prazer e cobiça. Já não temos o suficiente?

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, pensou Kitty, suspirando, quando Andrew deixou o quarto.

Kitty sabia quem era o verdadeiro deus naquela cidade. E seu nome eradinheiro.

15

Em janeiro, quando o barômetro na parede da sala de estar despencou,indicando o início da estação úmida, Kitty acordou com o suor escorrendo datesta. Devia dar à luz a qualquer dia e rezava para que fosse logo. A umidadea envolvia como um cobertor ensopado, e ela fazia força para respirar.Exausta demais para se levantar, ficou deitada, desejando que umatempestade e sua bolsa estourassem. Tocou a sineta para indicar à cozinhaque queria tomar o café da manhã. Nos últimos dias, ficara na cama, semconseguir pensar em colocar o espartilho –

embora especialmente feito para sua condição –, além das inúmeras anáguase um vestido por cima. Era mais fácil ficar ali de camisola, a barriga semrestrições e a pele comparativamente fresca.

Seus pensamentos voltaram-se novamente para Camira, e Kitty mordeu olábio, frustrada. Tudo estava indo tão bem, até mesmo Andrew tinha ditocomo ela era inteligente depois de lhe fazer algumas perguntas em alemão.Desde que o “acordo” fora firmado entre elas, e Camira percebeu que nãoseria trancada nem levada no meio da noite para a prisão local por delitosdesconhecidos, ela se provara disposta e ansiosa para ajudar de todas asformas possíveis. Quem quer que houvesse lhe dado emprego antes, ensinara-lhe bem. Logo ela estava ocupada pela casa, repreendendo a lentidão daempregada, uma garota cingalesa de olhos escuros chamada Medha quepassava mais tempo se fitando no espelho do que de fato limpando-o.

Kitty disfarçava sua diversão quando Camira assumia o controle, dandoordens para que os pisos fossem varridos pelo menos três vezes por dia, pararemover a poeira interminável, e esfregados dia sim, dia não. Os móveis demogno brilhavam com camadas de cera, e as teias de aranha que tinham seinsinuado pelos cantos no alto foram varridas junto com suas moradoras.

Quando Camira entrava na sala de estar, tão leve quanto uma borboleta, Kitty

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a observava de sua escrivaninha, onde dificilmente tinha energia para pegar acaneta-tinteiro. Embora Camira estivesse com a gravidez tão adiantadaquanto a dela, isso não parecia afetá-la.

Dez dias antes, Kitty até mesmo conversara com Andrew sobre a ideia de selivrarem de Medha e deixarem Camira assumir tudo.

– Vamos esperar para ver o que acontece depois que o bebê dela nascer.

Não há por que agir precipitadamente. Se ela for embora, estaremos

perdidos no momento em que você mais precisará de ajuda.

E então, no dia seguinte, como se Camira tivesse ouvido as palavras deAndrew, Kitty fora até a cabana e a encontrara deserta.

– Fred, onde está Camira? – perguntara enquanto saía.

– Saiu.

– Ela disse para onde?

– Não, patroa. Embora – informara Fred.

– Avisei você, querida. Esses negros não seguem as mesmas regras que nós –dissera Andrew mais tarde. – Que bom que não despedimos Medha.

Kitty ficara bastante irritada diante da óbvia satisfação de Andrew por estarsempre certo. Todos os dias desde o desaparecimento de Camira, Kitty ia atéa cabana e a encontrava tão deserta quanto no dia anterior. E, comoprometera a Andrew não anunciar a presença de Camira em sua casa, Kittynão podia simplesmente perguntar pela cidade se alguém a vira.

– Ela sai por aí, patroa – era tudo o que Fred dizia.

Fora a raiva por Camira ter ido embora sem nem avisar, principalmentedepois de sua gentileza com ela, Kitty sentia sua falta. Ela descobrira queCamira tinha uma compreensão muito boa do inglês e um excelente senso dehumor. Vira-se rindo de pequenas coisas pela primeira vez desde que chegara

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a Broome, e quase sentia que – apesar da vasta diferença cultural entre asduas – tinha uma grande afinidade com Camira. À medida que o parto deKitty se aproximava, sentia-se confortada pelo jeito calmo e capaz da garota.

– Não se preocupe, patroa, eu canto para seu bebê chegar ao mundo, semproblema.

E Kitty acreditara nela, e relaxara e sorrira, fazendo até mesmo Andrewperceber a diferença e ficar satisfeito por Camira estar ali.

Uma lágrima correu do olho de Kitty. Ela não cometeria o mesmo erro denovo.

Então ouviu uma batida curta à porta e sentou-se enquanto a abriam.

– Dia, patroa, traz seu café da manhã. Medha ainda dormindo no trabalho.

Completamente chocada, Kitty viu Camira, agora magra, impecavelmentevestida com seu uniforme branco, uma faixa prendendo os cachos negrossedosos, aproximar-se dela com a bandeja.

– Tarik diz que você sendo teimosa e não come sua comida boa. Eu faz ovopara você e traz leite para o bebê – falou com voz melodiosa enquantocolocava a bandeja do café da manhã sobre as coxas de Kitty.

– Onde... – Kitty engoliu em seco, tentando encontrar as palavras. – Ondevocê esteve?

– Eu saí caminhar, ter bebê. – Deu de ombros como se tivesse ido à padariacomprar pão. – Ela vem fácil. Mulheres dizem ela bonita e saudável.

Mas come muito. – Camira revirou os olhos e indicou os seios. – Nada dedormir para mim.

– Mas por que você não me contou aonde estava indo, Camira? – A raivacomeçava a dar lugar ao alívio. – Eu estava morta de preocupação!

– Não preocupa, patroa. Fácil. Ela sai como caracol da concha!

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– Não foi isso que eu quis dizer, Camira. Embora, é claro, fique feliz quevocê e sua bebê estejam bem e saudáveis.

– Você vem cabana depois do café e eu mostro bebê para você. Eu ajuda acomer?

Camira ofereceu a colher depois de cortar habilmente a parte superior do ovocozido com uma faca.

– Não, obrigada. Eu consigo me alimentar sozinha.

Enquanto Kitty comia o ovo, Camira movimentava-se pelo quarto,arrumando as coisas e reclamando da camada de poeira vermelha que seacumulara no chão desde a última vez que estivera lá. Kitty percebeu queprovavelmente nunca saberia aonde a garota tinha ido. Sentiu um alívio porCamira já ter tido o bebê e invejava sua incrível recuperação.

Mais tarde naquela manhã, Kitty seguiu Camira até a cabana, onde a garotadestrancou cuidadosamente a porta. Lá no chão, numa gaveta que Camiratirara da cômoda, havia um pequeno bebê, berrando com todas as forças.

– Falei, ela esfomeada – disse Camira enquanto pegava a criança, sentava-sena cama e rapidamente abria os botões da frente da blusa.

Kitty viu o seio enorme da garota, o mamilo agora pingando o fluido leitosoenquanto Camira ajeitava a bebê, que parou imediatamente de gritar.

Os olhos de Kitty acompanhavam tudo atentamente. Ela nunca tinha visto osseios de outra mulher. Seu próprio bebê tomaria mamadeira dada por umababá, já que a amamentação era considerada coisa de selvagens. No entanto,ao ver mãe e bebê unidas em um ritual tão natural, Kitty concluiu que aquilotinha uma beleza própria.

Quando os lábios da bebê finalmente soltaram o mamilo e a cabecinha dela seapoiou no peito de Camira, a garota rapidamente a colocou sobre o ombro ecomeçou a esfregar vigorosamente suas costas. A bebê arrotou e Camiraassentiu com a cabeça, com ar de aprovação.

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– Segura ela?

Camira estendeu a bebê para Kitty.

– Você disse que é uma menininha?

– O nome dela é Alkina... quer dizer “lua”.

Kitty pegou a bebê nua nos braços e acariciou a pele macia e perfeita.

Não havia dúvida de que, em comparação com a pele da mãe, a de Alkina eraum tom mais claro. A bebê de repente abriu os olhos e olhou diretamentepara ela.

– Meu Deus! Eles são...

– As mulheres dizem amarelos – completou Camira enquanto fechava a

blusa. – De um homem amarelo, japonês. Ele cara mau.

Kitty olhou para os sinais reveladores de uma herança que abençoara aquelamenina com os mais belos olhos que já vira. Eram de um tom âmbarsurpreendente, quase dourados, e seu formato amendoado os fazia parecerainda maiores no pequeno rosto.

– Bem-vinda ao mundo, Alkina, e que Deus a abençoe – sussurrou Kitty naorelhinha minúscula.

Talvez fosse imaginação sua, mas a bebê pareceu sorrir com as palavras.

Então fechou seus incríveis olhos e dormiu tranquilamente nos braços deKitty.

– Ela é linda, Camira – disse Kitty baixinho. – Os olhos dela me lembram osde um gato.

– Mulheres falam isso também. Então dei o apelido de Cat, que é como

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brancos chamam gatos – disse rindo enquanto pegava a filha gentilmente dosbraços de Kitty e prendia um pano cobrindo as partes da bebê.

Alguém já me chamou assim também..., pensou Kitty. Após colocar a bebê devolta no berço improvisado, Camira acariciou a testa da filha e sussurroualgumas palavras ininteligíveis junto a sua pele. Então seus olhosescureceram e ela levou um dedo aos lábios.

– Cat, segredo, ok? Ou caras maus dos bebês vêm buscar. Você entende?

– Eu juro, Camira, Cat estará segura aqui conosco. Direi a Fred para vigiá-

la quando você estiver trabalhando na casa.

– Ele ainda cheira mal, mas Fred é um bom rapaz.

– Sim, Fred é um bom rapaz – concordou Kitty.

Duas semanas depois, ainda nada de tempestade e de bebê para aliviar odesconforto crescente de Kitty. E Andrew também não ajudava, mal-humorado em razão das duas pérolas que confiara às mãos experientes deT.B. Ellies, e acabara vendo serem reduzidas a pó diante dele, camada apóscamada.

– Não é justo. Meu pai sempre me pergunta por que os lugres nuncadescobrem os tesouros que ele costumava achar quando os comandava.

Meu Deus, Kitty, quando ele chegou a Broome, podia-se caminhar pela praiado Cabo e pegá-las com as próprias mãos nas águas rasas! Será que ele nãoentende que o mundo inteiro se mudou para cá desde então para pescá-las?

Estamos procurando em águas mais profundas e perigosas a cada dia.

Perdemos outro mergulhador semana passada devido à descompressão.

Kitty agora conhecia a doença e os sintomas tão bem quanto o resfriadocomum. Ficara intrigada ao ver um mergulhador pela primeira vez, um jovemjaponês que estava sendo colocado em um novo traje de mergulho queAndrew encomendara da Inglaterra. O homem esguio entrara no enorme traje

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de lona bege e um pesado capacete esférico de bronze fora baixado até suacabeça e aparafusado firmemente ao seu colarinho. Seus

pés ganhavam mais peso com botas de chumbo e seus colegas de equipe oajudavam enquanto verificavam se o fluxo de ar passava perfeitamente pelotubo fino.

Ela estremecera ao pensar em todas aquelas toneladas de água pressionando ocorpo do homem enquanto ele mergulhava 20 braças, protegido apenas pelafrágil lona e o ar precioso que fluía pelo tubo. A intensa pressão podiadanificar gravemente os ouvidos e articulações e, se o mergulhadorpersistisse, levar à paralisia e à morte, uma condição conhecida como doençade descompressão.

– Que Deus abençoe sua alma. – Kitty fez o sinal da cruz. – Eles são homenscorajosos.

– Que ganham uma fortuna para isso – ressaltou Andrew. – Recebi outropedido deles de aumento de salário, e ainda ouvi dizer que vão de fatoimplementar essa política ridícula de não contratar negros em Broome.

Você consegue imaginar os brancos se inscrevendo para fazer o trabalho?

– Não – respondeu ela –, mas, por outro lado, qualquer que seja a cor da pele,não consigo imaginar ninguém arriscando a vida todos os dias simplesmentepara ganhar dinheiro.

– Minha querida, você nunca passou fome ou sentiu o peso daresponsabilidade de ter que ganhar o máximo possível para sustentar umafamília.

– Você tem razão – disse baixinho, irritada com a forma como Andrewconseguia abranger cobiça e moral em poucas frases curtas. Em seguida,levantou. – Acho que vou tirar um cochilo.

– Claro. Devo pedir que o Dr. Blick venha vê-la esta noite?

– Duvido que ele possa me dizer algo além de que o bebê ainda não está

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pronto para chegar ao mundo, e eu sei muito bem disso.

– Minha mãe me contou que a maioria dos primeiros filhos demora mesmo.

Mas ela não morava em Broome, com a estação úmida se aproximando... ,pensou Kitty enquanto saía da sala.

Camira acordou-a mais tarde naquela noite e colocou uma xícara de algo comcheiro ruim em sua mesa de cabeceira.

– Patroa, bebê não vindo. Não é bom. Vamos ajudar pequenino, sim? –

Ela estendeu a xícara para Kitty. – Minhas mulheres bebem isso. Patroa, éhora.

– O que tem aí?

– Natural. Da terra. Nenhum mal. Bebe agora.

E Kitty, desesperada como estava, fez o que Camira lhe dissera.

As dores começaram algumas horas mais tarde, e, quando Kitty se levantoupara usar o banheiro, um esguicho anunciou o rompimento da bolsa. EntãoKitty chamou por Andrew – que dormia em seu toucador ao lado –, voltoupara o quarto e deitou-se.

– O bebê está vindo – disse quando ele chegou à porta.

– Vou mandar chamar o Dr. Blick imediatamente.

– E Camira – disse Kitty, sentindo uma contração. – Quero Camira comigo.

– Vou buscá-la agora – prometeu Andrew, arrumando-se rapidamente esaindo depressa.

Daquela longa noite febril, em que as nuvens de trovoada se reuniam sobreBroome, Kitty não conseguia lembrar de muita coisa além da dor e da voztranquilizadora de Camira.

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O Dr. Blick tinha chegado – e pelo jeito, direto de uma taberna em ShebaLane.

– O que uma negra está fazendo no local do parto? – perguntou ele com vozengrolada para Andrew.

– Deixe Camira aqui! – gritou Kitty, enquanto Camira cantarolava baixinho eesfregava suas costas.

Andrew deu de ombros para o médico e assentiu. Após um rápido exame, oDr. Blick disse a ela que ainda faltava muito tempo e que devia ligar seprecisasse dele. E então saiu do quarto. Fora Camira que a incentivara a selevantar e caminhar para o bebê sair, “enquanto eu canta aqui”.

Às quatro da manhã, as nuvens finalmente irromperam e a chuva começou acair nos telhados de metal.

– Ele está vindo, ele está vindo, patroa, falta pouco agora... não se preocupa.

E, quando um relâmpago brilhou acima deles, iluminando o jardim lá fora e aexpressão de transe de Camira, com um grande empurrão e um estrondo detrovão, o bebê de Kitty veio ao mundo.

Kitty ficou ali parada, incapaz de fazer qualquer coisa que não fosse arfar dealívio com o fim da dor. Ela ergueu a cabeça para ver o bebê, mas, em vezdisso, viu Camira entre as suas pernas, mordendo alguma coisa.

– O que você está fazendo? – sussurrou com voz rouca.

– Estou libertando ele, patroa. Aqui.

Ela colocou o bebê nos braços, virou-o de cabeça para baixo na palma damão e bateu forte em seu traseiro. Com essa indignidade, o bebê berrou alto ecomeçou a chorar.

– Aqui está, patroa. Pega seu bebê. Eu chamo o doutor. – Ela acariciou a testade Kitty. – Ele menino grande e forte. Você mulher inteligente.

E, com isso, deixou o quarto.

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O Dr. Blick, que dormira na sala de estar para se recuperar da diversão danoite anterior, entrou cambaleando.

– Meu Deus! Que trabalho de parto rápido – comentou ele, enquanto tentavatirar o bebê dos braços de Kitty.

– Ele está bem, doutor, e quero que fique comigo.

– Mas eu preciso examiná-lo. É um menino?

– Sim, e ele é perfeito.

– Então vou cuidar de sua parte de baixo.

Ela viu o Dr. Blick erguer o lençol limpo que Camira colocara sobre ela.

– Bem, estou vendo que não é preciso.

O Dr. Blick teve a dignidade de corar quando percebeu que tinha dormidodurante todo o parto.

– Você pediria ao meu marido para vir ver o filho?

– Mas é claro, minha senhora. Fico feliz que tenha sido um processo tãorápido e tranquilo.

Sim, mas porque Camira estava aqui, e não você, pensou Kitty.

Quando Andrew entrou no quarto, Kitty agradeceu a todas as estrelas no céupor Camira ter voltado para ela.

Broome Austrália Ocidental Dezembro de 1911

16

- Minha querida, preciso conversar com você – disse Andrew, dobrando suacópia do Northern Times e colocando-o cuidadosamente ao lado do prato docafé da manhã.

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– O que é?

– Meu pai quer que eu vá para Cingapura no ano-novo, e de lá viaje com elepara a Europa. Quer que eu conheça seus contatos na Alemanha, na França eem Londres, porque finalmente se cansou de viajar e quer que eu assumatambém o departamento comercial da empresa. Ficaremos longe por quasetrês meses. Pensei em pedir que você me acompanhasse, mas será umaviagem árdua nessa época do ano em que os mares ficam tão agitados.Principalmente para uma criança que ainda não completou 4 anos. Creio quevocê não esteja preparada para deixar Charlie com Camira, certo?

– Meu Deus, não! – respondeu Kitty.

Charlie era o sol de sua manhã e sua lua à noite. Sentia falta dele depois deapenas uma hora longe, que dirá três meses.

– Você tem certeza de que ele não poderia ir conosco? – perguntou ela.

– Como você mesma sabe, a vida a bordo de um navio pode ser entediante edesagradável. Não devemos parar em nenhum porto por mais de um dia oudois. Devo estar de volta no final de março para o início da nova temporada.

– Então talvez eu pudesse partir de Londres com Charlie até Edimburgo.

O que acha? Queria muito que minha mãe e o resto da família oconhecessem.

Meu irmãozinho Matthew tem quase 5 anos e ainda não conheceu a irmãmais velha.

– Querida, prometo que no próximo ano, quando eu finalmente for senhordos meus compromissos, viajaremos para a Escócia juntos.

Talvez no Natal.

Não seria ótimo?

– Ah, sim!

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Kitty fechou os olhos de alegria.

– Então poderia deixar vocês dois por algumas semanas em Edimburgoenquanto conduzo meus negócios. Mas, este ano, com meu pai a reboque,isso simplesmente não é possível.

Kitty sabia que Andrew queria dizer que o pai não gostaria de levar umacriança junto com eles. Da mesma forma, ela já sabia, por experiências

anteriores, que Andrew não o enfrentaria nem insistiria.

– Bem, eu não posso deixar Charlie, então é isso.

– E você consideraria ir a Adelaide com Charlie enquanto eu estiver fora?

Pelo menos assim teria a companhia da minha mãe e a segurança de AliciaHall – sugeriu Andrew.

– Não. Vou ficar aqui. Tenho Camira e Fred para me proteger, e três mesesnão são muita coisa.

– Não gosto de pensar em você sozinha aqui, Kitty, principalmente durante aestação das chuvas.

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– Sério, Andrew, vamos ficar bem. Tenho todos os nossos amigos para cuidarde mim também. E agora que o Dr. Suzuki veio para a cidade e instalou seunovo hospital, minha saúde e a de Charlie estão garantidas, pode confiar.

– Talvez eu devesse adiar a viagem até o próximo ano, quando poderemosviajar juntos, mas estou tão ansioso para me tornar independente, não ter meupai em cima de mim o tempo todo.

– Querido, vamos sentir saudades de você, mas estamos seguros aqui, nãoestamos?

Kitty virou-se para Charlie, que estava sentado entre eles, comendo seu ovocom torrada.

– Sim, mamãe!

Charlie, o pequeno anjo louro com gema de ovo e migalhas no rosto, bateu acolher no prato.

– Silêncio, Charlie. – Andrew tirou a colher dele. – Agora tenho que ir para oescritório. Vejo vocês no almoço.

Quando ele saiu, Camira apareceu na sala de jantar para limpar Charlie elevá-lo para brincar no jardim com Cat. Fred se provara um útil carpinteiro econstruíra um balanço de bebê de madeira, preso com duas cordas fortes aum baobá. Na verdade, pensou Kitty satisfeita, Fred mudara quase porcompleto.

Já não cheirava mal e, graças às aulas incansáveis de Camira, lentamentecomeçava a entender inglês.

A mudança no relacionamento de Fred e Camira acontecera quase quatroanos antes, logo após o nascimento de Charlie. A Sra. Jefford, esposa de umdos mais poderosos mestres mandaçarres da cidade, resolvera aparecer semavisar – um evento incomum, já que essas coisas normalmente eramcombinadas com pelo menos uma semana de antecedência.

– Eu estava passando, Kitty querida, e percebi que ainda não havia feito uma

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visita desde que seu filho nasceu. Eu estava na Inglaterra, entende, visitandoa família.

– É muito gentil de sua parte pensar em nós. – Kitty a levara até a sala devisitas. – Posso lhe servir algo gelado para beber? – perguntara enquantoobservava os olhos pequenos e brilhantes da Sra. Jefford percorrerem a sala.

– Sim, obrigada. Que lugar pequeno e agradável você tem aqui –

comentou ela quando Kitty fez sinal para Medha trazer uma jarra delimonada. – Tão... acolhedor.

Quando Kitty se sentou, olhou pela janela e viu Camira, os olhos cheios demedo, a mão fazendo o gesto de garganta cortada. Em seguida, a Sra.

Jefford contou a Kitty sobre os tesouros que adquirira recentemente para suaprópria casa.

– Acreditamos que o vaso pode muito bem ser Ming – disse ela.

Kitty estava acostumada à demonstração de superioridade das esposas doscomerciantes de pérolas, que pareciam rivalizar ainda mais do que os maridosao reivindicar a coroa de mestre mandaçarre mais bem-sucedido de Broome.

– O Sr. Jefford teve muita sorte no ano passado ao encontrar oito pérolasextraordinárias, uma das quais vendeu recentemente em Paris para o resgatede um rei. Tenho certeza de que um dia seu marido será igualmente bem-sucedido, mas ele, é claro, ainda é jovem e inexperiente. O Sr. Jeffordaprendeu da maneira mais difícil que muitas das pérolas valiosas nuncachegam às suas mãos. E criou formas e meios para se certificar de quecheguem.

Kitty se perguntou por quanto tempo aqueles elogios a ela mesma e aomarido continuariam. Quando a Sra. Jefford finalmente esgotou sua lista deextravagâncias recentes, Kitty perguntou se ela gostaria de ver o bebêCharlie.

– Ele está dormindo agora, mas estou certa de que posso acordá-lo mais cedo.

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Só desta vez.

– Minha querida, tive três filhos e sei quanto é precioso o sono de um bebê,então, por favor, não se incomode por minha causa. Além disso, a Sra.Donaldson me contou recentemente que você empregou uma babá negra paracuidar dele.

– Sim.

– Então devo alertá-la para nunca deixar a criada sozinha com a criança.

Os negros vendem cabeças de bebês brancos!

– É mesmo? E as colocam em panelas para cozinhá-las? – perguntou Kitty,impassível.

– Quem sabe, minha querida? – A Sra. Jefford estremeceu. – Mas, repito, nãose pode confiar neles. Há alguns meses, fui obrigada a demitir minha últimaempregada, quando me dei conta de que ela complementava a rendaprostituindo-se nos bordéis em Japtown. E quando falo que me dei conta,quero dizer que a garota já estava com alguns meses de gravidez.

Ela fez o possível para esconder de mim e do Sr. Jefford, é claro, mas no finaldificilmente poderíamos deixar de notar. Quando eu disse que seus serviçosnão eram mais necessários, ela literalmente me atacou, implorando-me paraperdoá-la e deixá-la ficar. Tive que afastá-la à força.

Então ela desapareceu no bairro pobre e nunca mais foi vista.

– É mesmo? Que terrível.

– Sim. – A Sra. Jefford observou a expressão de Kitty. – A criança, que a estaaltura certamente já nasceu, deve ser encontrada e levada pelo protetoradopara uma missão, pois provavelmente é mestiça.

– Meu Deus! Que história trágica.

Kitty percebeu então o verdadeiro motivo da visita da Sra. Jefford, quecomentou: – Devo dizer que ela era uma boa empregada e que sinto falta

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dela, mas, como cristã, eu não poderia permitir uma criança ilegítima sob omeu teto.

Ela encarou Kitty com seus intensos olhos brilhantes.

– Estou certa de que não. Ah, acho que acabei de ouvir Charlie chorando.

Pode me dar licença um minuto?

Kitty levantou da cadeira e caminhou o mais serenamente possível até aporta. Ao fechá-la, correu para a cozinha, dizendo a Medha para acordarCharlie para ela, depois pegou graxa ao lado do fogão e correu para o quintal.

Entrou na cabana sem bater e encontrou Camira escondida debaixo da cama,a filha agarrada ao peito.

– Faça a bebê ficar negra. – Entregou a graxa para ela. – Fred, seu marido,entende?

Na escuridão, tudo que Kitty podia ver eram os olhos aterrorizados deCamira.

– Entende – sussurrou ela.

Então ela correu de volta para a cozinha, onde Medha segurava Charlie, aosberros.

– Por favor, leve uma mamadeira até a sala de visitas – ordenou Kitty aopegar o bebê e voltar para junto da Sra. Jefford.

– Perdoe-me por demorar tanto. A fralda dele estava cheia – disse, enquantoMedha chegava com a mamadeira.

– Sua babá cuida dessas coisas, certo? – indagou a Sra. Jefford.

– É claro, mas Camira saiu para comprar mais musselina no armarinho, e omarido dela foi de charrete à cidade buscar gelo. Eles acabaram de voltar.

– Que rapazinho bonito – comentou a Sra. Jefford enquanto Charlie tomava

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avidamente sua mamadeira. – Você mencionou que o nome de sua babá éCamira?

– Sim, e me sinto muito afortunada por tê-la aqui. Ela foi educada na missãoBeagle Bay, onde cuidava dos bebês na creche.

– Sabe – disse a Sra. Jefford depois de uma pausa –, estou quase certa de queCamira era o nome da empregada grávida que precisei mandar embora.

Nós a chamávamos de Alice, é claro.

– É claro – repetiu Kitty. – Ainda estou aprendendo essas coisas.

– Você disse que ela é casada?

– Sim, com Fred, que trabalha para meu sogro e meu marido há anos. Eleconduz a charrete, cuida dos cavalos e do terreno. E, ah, ele está tão

orgulhoso da filha... Alkina chegou ao mundo apenas duas semanas antes deCharlie. Eles são uma família devota e estudam a Bíblia regularmente

– acrescentou Kitty por precaução.

– Ora, veja só, eu não fazia ideia de que Alice tinha um marido.

– Então talvez você queira conhecer sua linda família...

– Sim, é claro, seria um... prazer ver Alice e sua filha.

– Venha comigo, então.

Kitty levou a Sra. Jefford até o quintal.

– Fred? Camira?

O coração de Kitty acelerou enquanto batia à porta da cabana, sem saber seCamira teria entendido suas instruções. Para seu mais completo alívio, a“linda família” – Fred, Camira e a bebê, envolta em um tecido nos braços damãe – aparecera à porta da cabana.

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– Minha querida amiga Sra. Jefford queria conhecer o seu marido e verAlkina – disse Kitty, tentando acalmar o medo nos olhos de Camira. – A bebênão é linda? Acho que é a cara do pai.

Camira cutucara Fred e sussurrara algo para ele. Inteligentemente, Fredcruzara os braços e assentira, como um pai orgulhoso de fato.

– Agora – continuou Kitty, notando que a graxa no rosto do bebê começava aderreter com o calor –, Fred, por que você não leva Alkina e eu deixo Charliecom Camira para ela dar a mamadeira? Confesso que estou exausta!

– Sim, Sra. Kitty – disse Camira com voz aguda.

Então os bebês trocaram de colo e Fred desapareceu dentro da cabana.

– Minha nossa! – comentou a Sra. Jefford, abanando-se intensamente emrazão do calor, enquanto seguiam Camira de volta para casa. – Eu não tinhaideia de que Alice fosse casada. Eles geralmente não são, sabe, e...

– Entendo perfeitamente, Sra. Jefford. – Kitty passou o braço de maneirareconfortante sobre o dela, apreciando cada momento do desconforto damulher. – E foi tão atencioso de sua parte vir aqui nos visitar...

– Não foi nada, minha querida. Agora receio que precise ir, pois tenho umapartida de bridge com a Sra. Donaldson. Precisamos convidar você e Andrewpara um jantar em breve. Adeus.

Kitty observou a Sra. Jefford apressar-se pelo caminho da frente em direção àcarruagem. Em seguida, entrou na cozinha onde Camira estava sentada,visivelmente trêmula, enquanto dava a Charlie o resto da mamadeira.

– Ela acreditou! Eu...

Kitty começou a rir, e então, quando o rosto desesperado de Fred apareceu àporta da cozinha, segurando Cat como num ritual de sacrifício, Kitty o deixouentrar e pegou a menina enegrecida de suas mãos.

– Sra. Jefford acha Fred meu marido? – O olhar de desgosto no rosto deCamira fez Kitty rir ainda mais. – Eu não casa homem que cheira mal como

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ele.

Fred bateu no peito.

– Eu... marido!

E os três riram até a barriga doer.

A partir de então, Fred levou seus deveres fictícios a sério. Quando Camiraestava trabalhando dentro de casa, cuidando de Charlie, Fred ficava de guardaprotegendo Cat, como se o dia em que a Sra. Jefford os visitara tivessejuntado os três em uma verdadeira família. Ele começara a se lavar e passaraa se arrumar consideravelmente melhor, e os dois passaram a brigar como umvelho casal. Era óbvio que Fred a adorava, mas Camira não queria saberdaquilo.

– Não são peles certas um para o outro, Sra. Kitty.

Foram necessários meses de persuasão para Camira chamar sua senhora pelonome em vez de “patroa”.

Kitty não fazia ideia do que isso significava ou quais eram de fato asconvicções religiosas de Camira: num momento, ela sussurrava para seus“ancestrais” no céu e entoava canções estranhas com sua voz doce e aguda seuma das crianças estivesse com febre. No momento seguinte, estava sentadacom Fred no estábulo, lendo a Bíblia para ele.

Desde a visita da Sra. Jefford, não houvera nenhuma ameaça do protetoradolocal. Camira estava livre para ir aonde quisesse em Broome, com Cat eCharlie aninhados juntos no carrinho de bebê. Para os brancos, agora ela erauma mulher casada, sob a proteção do “marido”.

Kitty sentou-se para escrever uma carta para a mãe, incluindo uma fotorecente com Andrew e Charlie tirada pelo fotógrafo na cidade. Tão longe dafamília, ela achava o Natal a época mais difícil do ano, principalmente porquecaía no início da estação úmida. Pensou na viagem de Andrew à Europa emjaneiro, e desejou que ela e Charlie pudessem ir junto para visitar sua mãe eirmãs em Edimburgo, mas sabia por experiência própria que seria inútil pedir

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a ele novamente.

Nos últimos quatro anos, seu marido parecia muito mais casado com osnegócios do que com ela. Kitty via a tensão em seu rosto quando uma cargachegava a um lugre, e o estresse da decepção mais tarde no mesmo dia,quando não revelava nenhum tesouro. No entanto, o comércio estava indobem, dizia ele, e seu pai estava satisfeito com o andamento das coisas. Nomês anterior, um novo lugre fora acrescentado à sua frota.

Kitty ficava feliz por ter Charlie para ocupá-la, pois a atenção do marido sevoltava constantemente para outro lugar. Só havia uma coisa que ele desejavamais do que tudo:

descobrir uma pérola perfeita.

– Ele é tão determinado... – disse a si mesma ao selar o envelope e colocá-loem uma pilha para Camira enviar depois. – Só queria que ele pudesse secontentar com o que tem.

– Escrevi para Drummond – contou Andrew durante o jantar naquela noite –e expliquei a ele que você insistiu em permanecer em Broome enquanto euestiver na Europa. Ele geralmente está em Darwin em

janeiro, supervisionando o embarque de gado para os mercados estrangeiros.Pedi que, se for o caso, desse uma olhada em você quando terminar de cuidardos negócios.

Kitty sentiu um intenso frio na barriga ao ouvir o nome de Drummond.

– Como eu falei, ficaremos bem. Não há necessidade de incomodar seuirmão.

– Isso faria bem a ele. Drummond ainda precisa conhecer o sobrinho, e...

morando naquela fazenda de gado isolada... preocupo-me que esteja virandoum nativo, por quase não ter nenhuma companhia civilizada.

– Ele ainda é solteiro?

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– Vai ser difícil ele se casar – disse Andrew, bufando. – Está envolvidodemais com suas cabeças de gado para arrumar uma esposa.

– Não pode ser verdade – comentou Kitty, perguntando-se por que estavadefendendo o cunhado.

Não vira Drummond nem sequer ouvira uma palavra dele em quase cincoanos – nem mesmo um telegrama para parabenizar os dois pelo nascimentode Charlie.

Isso, no entanto, não a impediu de se lembrar de como ele a beijara naquelavéspera de ano-novo, sobretudo depois que as relações conjugais com omarido diminuíram consideravelmente. Por vezes, Andrew se retirava antesdela e, quando Kitty chegava ao quarto, ele já dormia profundamente,exausto do estresse do dia. Desde o nascimento de Charlie, havia quasequatro anos, Kitty podia contar nos dedos de uma das mãos o número devezes que ele a procurara e os dois tinham feito amor.

A falta de um segundo filho fora devidamente comentada pelo círculo defofoca das esposas dos mestres mandaçarres da cidade. Kitty respondia queainda era jovem, além de estar desfrutando muito da vida com Charlie paraengravidar novamente. A verdade era que ansiava por outro bebê – ansiavapela grande família em que ela própria fora criada. E

também, para ser sincera, pelo toque amoroso de um homem...

– Você tem certeza absoluta de que prefere ficar aqui a ir para Alicia Hall?

– perguntou Andrew enquanto Camira tirava os pratos da mesa.

– Pela última vez, querido, sim.

– Então vou confirmar a viagem com meu pai. E eu lhe prometo, Kitty, queno ano que vem levo você e Charlie para visitar sua família.

Andrew levantou-se e acariciou o ombro da esposa.

No convés do Koombana, um mês depois, a culpa e o arrependimentotomavam os olhos de Andrew ao abraçar a esposa e o filho.

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– Auf wiedersehen, mein kleiner. Pass auf deine Mutter auf, ja?

Andrew colocou Charlie no chão quando soou o aviso do Koombana de quetodos os não passageiros deviam deixar o navio.

– Adeus, Kitty. Mando um telegrama quando chegarmos a Fremantle. E

prometo voltar para casa com algo extraordinário para você.

Andrew piscou para ela e deu um tapinha no nariz dele, enquanto Kittypegava Charlie nos braços.

– Cuide-se, Andrew. Agora, Charlie, diga adeus ao seu pai.

– Auf wiedersehen, papai – disse Charlie com voz esganiçada.

Por insistência de Andrew, falavam também em alemão com o menino, quealternava entre as línguas com facilidade.

Depois de caminhar pela prancha, Kitty e Charlie esperaram no cais com ummonte de outras pessoas que se despediam. A presença do Koombana emBroome sempre deixava seus moradores em clima festivo. O navio era oorgulho da Adelaide Steamship Company – o máximo do luxo e uma façanhada engenharia, construído com um fundo plano para que pudesse entrar nabaía de Roebuck mesmo com a maré baixa. O apito soou e os moradoresacenaram para o Koombana em despedida.

Enquanto Kitty e Charlie voltavam para a cidade no trem aberto ao longo docais, ela olhava para a água cintilante lá embaixo. O dia estava tãoinsuportavelmente úmido que sentia um impulso irresistível de tirar todas asroupas e mergulhar.

Mais uma vez, pensou em como eram ridículas as regras sociais sobrecomportamentos; sendo uma mulher branca, não podia nem pensar em nadarno mar. Ela sabia que Camira muitas vezes levava Cat até a areiaincrivelmente macia e as águas rasas da praia do Cabo, quando não era épocade água-viva, e já se oferecera para levar Charlie também. Quando Kittysugerira isso a Andrew, ele recusara terminantemente.

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– Minha nossa, querida, às vezes você tem cada ideia absurda! Nosso filhonadando com os negros?

– Por favor, não os chame desse jeito! Você sabe muito bem o nome deles.

E nós moramos perto do mar, você não acha que Charlie deveria aprender anadar? Tenho certeza de que você aprendeu em Glenelg.

– Isso foi... diferente – disse Andrew, embora Kitty não conseguisse entenderpor quê. – Sinto muito, Kitty, mas quanto a isso estou decidido.

Enquanto Charlie dormia em seu ombro, cansado do calor e da agitação,Kitty abriu um pequeno sorriso.

Quando o marido sai, Kat faz a festa...

No dia seguinte, Kitty perguntou a Camira se por acaso havia uma enseadaescondida onde Charlie pudesse brincar na água. Camira ergueu assobrancelhas diante da pergunta da patroa, mas assentiu.

– Conheço um bom lugar sem água-viva.

Naquela tarde, Fred conduziu a charrete até o outro lado da península.

Pela primeira vez desde que chegara à Austrália, Kitty sentiu a felicidade demergulhar os pés nas maravilhosas águas frias do oceano Índico. A praia deRiddell não tinha o mesmo extenso trecho de areia exibido pela praia doCabo, mas era infinitamente mais interessante, com suas grandes formaçõesrochosas vermelhas e pequenas lagoas cheias de

peixes. Com um encorajamento gentil de Camira, que tirara a blusa e a saiatão inocentemente quanto uma criança, Charlie logo estava gritando ebrincando alegremente na água com Cat. Enquanto andava pelo rasosegurando as anáguas, Kitty sentia- se fortemente tentada a fazer o mesmo.

Então Camira apontou para o céu e inspirou.

– Tempestade chegando. Hora de ir para casa.

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Mesmo que o céu parecesse perfeitamente claro para Kitty, ela aprendera aconfiar no instinto de Camira. E, de fato, assim que Fred estacionou acharrete em casa, ouviram o estrondo de um trovão, e as primeiras gotas dechuva da estação úmida que se aproximava começaram a cair. Kitty suspirouenquanto carregava Charlie, pois, por mais que desejasse o abençoado frescordo ar que viria com a tempestade, em poucos minutos o jardim seria um riode lama vermelha.

A chuva durou a noite toda e boa parte do dia seguinte, e Kitty fez o melhorque pôde para entreter Charlie dentro de casa com livros, papel e lápis de cor.

– Brincar com Cat, mamãe? – Ele olhou para ela com tristeza.

– Cat está com a mãe dela, Charlie. Você pode vê-la mais tarde.

Charlie fez biquinho e seus olhos se encheram de lágrimas.

– Quero ir agora.

– Mais tarde! – disse ela, irritada.

Recentemente, Kitty percebera que, por mais coisas interessantes quesugerisse para os dois fazerem juntos, Charlie só queria estar com Cat.

Com certeza a filha de Camira era uma garotinha extraordinariamenteadorável, com uma natureza tranquila que acalmava seu filho hiperativo.

Não havia dúvida de que ela já era linda, com uma pele cor de mognoincrivelmente macia e olhos hipnotizantes cor de âmbar. Ela tambémpercebera nos últimos meses que Charlie não era apenas bilíngue, mastrilíngue. Às vezes, ela ouvia as crianças brincando juntas no jardim,conversando no yawuru nativo de Cat.

Kitty não tinha dito nada sobre isso a Andrew, mas o fato de Charlie serinteligente o bastante para entender e falar três línguas, quando ela às vezesse esforçava para encontrar a palavra certa em uma, a deixava orgulhosa. Noentanto, ao ver Charlie olhando pela janela da cozinha, procurandodesesperadamente por Cat, ela se perguntava se permitira que o filho passasse

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mais tempo na companhia da menina do que deveria.

A chuva finalmente parou, embora a lama vermelha tivesse devastado suaspreciosas rosas, e, com a ajuda de Fred, ela passou a manhã inteira seguintelimpando os canteiros da melhor maneira possível. Naquela tarde, sabendoque a maré estava baixa e achando importante passar algum tempo sozinhacom o filho, levou Charlie a Gantheaume Point para lhe mostrar a pegada dedinossauro.

– Monstros! – disse Charlie, enquanto Kitty tentava explicar que as

enormes marcas nas rochas tinham sido feitas por uma pata gigante. –

Deus cria eles?

– Deus “os criou”, Charlie – repreendeu-o Kitty, percebendo que o inglêsrudimentar de Cat e Camira estavam influenciando o filho. – Sim, criou.

– Quando ele criou o bebê Jesus?

– Antes de criar o bebê Jesus – disse Kitty, sabendo que Charlie era muitonovo para lidar com tais questões filosóficas.

Enquanto voltavam para casa, ela pensou que a vida só se tornava maisconfusa quando vista através dos olhos de uma criança inocente.

Naquela noite, Kitty colocou Charlie na cama e leu uma história. Então,como Andrew não estava lá, levou seu jantar numa bandeja para a sala devisitas. Pegou um livro da prateleira e ouviu outro trovão lá fora, percebendoque a estação úmida começara para valer. A chuva então começou a cairsobre os telhados de metal. Andrew prometera que no ano seguinte mandariafazer um telhado direito, o que diminuiria todo aquele barulho.

– Boa noite, Sra. Mercer.

Kitty quase morreu de susto. Então virou-se e viu Andrew – ou pelo menosuma versão dele completamente encharcada e suja de lama vermelha –parado à porta da sala de visitas.

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– Querido! – disse ela, levantando-se e correndo até ele. – Mas o que vocêestá fazendo aqui?

– Eu estava desesperado para ver você, é claro.

Ele a abraçou e Kitty sentiu sua roupa encharcada molhar a dela.

– Mas e a viagem para Cingapura? Para a Europa? Quando você decidiuvoltar?

– Kitty, como é bom ter você em meus braços de novo. Como senti sua falta,meu amor.

Foi algo em seu cheiro, almiscarado, sensual, que finalmente a alertou.

– Meu Deus! É você!

– Está certa, Sra. Mercer, sou “eu” mesmo. Meu irmão me pediu para ver sevocê estava bem na ausência dele. E, como eu estava passando...

– Pelo amor de Deus! – Kitty conseguiu se soltar dele. – Você se diverte comessa piada? Achei que fosse Andrew!

– E foi adorável...

– Você deveria ter se anunciado apropriadamente. É minha culpa que vocêssejam idênticos? – Levada além do pensamento racional pelo atrevimento deDrummond, Kitty deu um tapa no rosto dele. – Eu... – Ela afundou em umacadeira, horrorizada com seu gesto. – Perdoe-me, Drummond, isso foitotalmente desnecessário – desculpou-se enquanto o observava esfregar orosto avermelhado.

– Bem, já sofri coisas piores, e vou perdoá-la. Embora nem mesmo euacredite que Andrew a chame de “Sra. Mercer” quando entra em casa, atrásdo jantar e da companhia da esposa. Mas você, é claro, está certa –

admitiu. – Eu deveria ter me anunciado no momento em que passei pela

porta, mas, perdoe minha presunção, pensei que me reconheceria.

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– Eu não estava esperando você...

– Andrew não disse que me convidou para visitá-la?

– Sim, mas não achei que seria logo que ele partisse.

– Eu já estava em Darwin quando ele me enviou o telegrama em dezembro.

Concluí que não fazia muito sentido voltar para a fazenda de gado... Você poracaso tem conhaque? Parece estranho em razão do calor, mas na verdadeestou tremendo.

Kitty viu os riachos vermelhos pingando dele e formando uma poça no chão.

– Meu Deus, perdoe-me por deixá-lo aí parado, ensopado e exausto. Vouchamar a empregada para preparar seu banho. Enquanto isso, procuro oconhaque. Andrew guarda uma garrafa para os convidados em algum lugar.

– Você ainda não bebe nada, então?

Ele abriu um sorriso torto e, mesmo sem querer, Kitty sorriu.

– É claro. – Ela pegou um copo e uma garrafa do armário e serviu. – Agoravou cuidar do seu banho.

– Não há necessidade de chamar a empregada. Só me mostre onde ficam aágua e a banheira.

Ele virou o conhaque de uma só vez e então estendeu o copo para ser enchidonovamente.

– Você está com fome? – perguntou ela.

– Faminto, e comerei com prazer qualquer bezerro gordo que você tiver.

Mas, primeiro, preciso tirar essas roupas molhadas.

Kitty levou Drummond até o toucador de Andrew e lhe mostrou os jarrospara encher a banheira, em seguida foi até a cozinha para reunir uma bandeja

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de pão, queijo e a sopa que sobrara do almoço.

Drummond entrou na cozinha vinte minutos depois com uma toalha enroladana cintura.

– Todas as minhas roupas estão sujas. Posso pegar alguma emprestada domeu irmão?

– Claro, pegue o que quiser.

Kitty não pôde deixar de olhar para seu peito nu – os músculos firmes e obronzeado profundo dos ombros, que revelavam um trabalho manual pesado.

Ele chegou à sala de visitas usando o roupão de seda e os chinelos deAndrew. Tomou a sopa avidamente e em silêncio, depois se serviu de umpouco mais de conhaque.

– Você veio de Darwin de barco? – perguntou ela educadamente.

– Viajei por terra, parte do caminho a cavalo. Então cruzei com os cameleirosafegãos que acampavam às margens do rio Ord. O rio estava cheio, então elesficaram esperando a água baixar o suficiente para os camelos atravessarem.Pobres bestas, não gostam de nadar. Continuei

com eles, o que foi muito mais divertido do que viajar sozinho. As históriasque aquele cameleiros têm para contar... e todo o tempo do mundo paracontá-las. Levei muitos dias para chegar aqui.

– Ouvi dizer que o deserto além de Broome é um lugar perigoso.

– De fato, mas imagino que nem de longe tão mortal quanto as línguas devíbora de algumas de suas vizinhas. Prefiro enfrentar a lança de um negro ouuma cobra qualquer a ter que aguentar a conversa entediante da classe médiacolonial.

– Do jeito que você fala, parece que todo mundo aqui leva uma vidaentediante e prosaica – disse Kitty com irritação. – Por que você sempre metrata com esse ar de superioridade?

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– Perdoe-me, Kitty. Entendo que tudo seja relativo. O fato de você estar aquiagora, uma mulher sozinha e desprotegida em uma cidade a milhares dequilômetros da civilização, onde o assassinato e o estupro são comuns, é umcrédito para sua força e bravura. Principalmente com uma criança pequena.

– Não estou desprotegida. Tenho Camira e Fred.

– E quem seriam Camira e Fred?

– Fred cuida das terras e dos cavalos, e Camira me ajuda na casa e comCharlie. Ela tem uma filha, mais ou menos da idade do meu.

– Imagino que sejam negros.

– Prefiro não usar esse termo. Eles são yawuru.

– Que bom, não é comum ter uma família assim trabalhando para alguém.

– Eles não são exatamente uma família. É complicado.

– Sempre é – concordou Drummond –, mas estou feliz por você. Quandoessas pessoas se comprometem, tornam-se os criados mais leais e protetores.

Para ser sincero, fico surpreso que meu irmão tenha deixado você empregarum casal assim.

– Eles não são um casal.

– Não importa que relacionamento tenham. O importante é que Andrewsuperou seu preconceito e permitiu a presença deles. Agora não fico mais tãopreocupado por você estar aqui em Broome sozinha. Admito que fiqueihorrorizado quando recebi o telegrama. Por que meu irmão não a levoujunto?

– Ele disse que era uma viagem de negócios e que Charlie ficaria impacientea bordo do navio. Ele queria que eu fosse a Adelaide para ficar com a suamãe, mas recusei.

– Você deve ter achado esse destino pior do que a morte, sem dúvida. –

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Drummond ergueu uma sobrancelha e voltou a encher o copo de conhaque. –Estou certo de que você já percebeu a essa altura que a única coisa queimporta para Andrew é se provar para nosso pai. E, claro, ficar mais rico doque ele.

– Essas coisas são importantes para ele, é claro, assim como para

qualquer homem.

– Não para mim.

– Para quase todos os homens, então.

Kitty conteve a irritação enquanto via Drummond esvaziar outro copo deconhaque.

– Talvez eu nunca tenha conhecido a pressão de ser o filho mais velho de umhomem rico. Muitas vezes me pego pensando que aquelas duas curtas horasque demorei para vir ao mundo depois de Andrew foram uma dádiva deDeus.

Fico feliz em deixar a coroa Mercer para ele. Como você deve ter percebido,sou uma causa perdida, inepto para a sociedade civilizada.

Ao contrário de Andrew, que é, e sempre foi, seu mais obstinado pilar.

– Ele certamente é um bom marido para mim e um pai atencioso paraCharlie. Temos tudo de que precisamos, não tenho queixas.

– Bem, eu tenho. – Drummond de repente bateu o copo na mesa. – Pedi quevocê esperasse até eu voltar da Europa antes de aceitar o pedido de Andrew.

E você não esperou.

Kitty olhou para ele, indignada com sua presunção.

– Você acha mesmo que acreditei que estivesse falando sério? Não tive maisnotícias suas...

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– Eu estava em um barco quando meu irmão a pediu em casamento. Nãoachei que seria apropriado enviar um telegrama perguntando a ele por que suanoiva não atendera ao meu pedido!

– Drummond, você estava bêbado naquela noite, assim como está agora!

– Bêbado ou sóbrio, qual é a diferença?! Você sabia que eu a queria!

– Eu não sabia de nada! Chega! – Kitty levantou-se, agora tremendo de raiva.– Não vou mais ouvir essas bobagens. Sou casada com Andrew.

Temos um filho e uma vida juntos, então chega.

Os dois ficaram em silêncio, e o único som na sala era o da chuva caindo notelhado.

– Peço desculpas, Kitty. Fiz uma longa viagem. Estou exausto edesacostumado a companhias civilizadas. Talvez devesse ir para a cama.

– É, também acho.

Drummond levantou-se, ligeiramente oscilante.

– Boa noite. – Ele caminhou até a porta, então parou e virou-se para ela. –

Nunca parei de pensar naquele beijo de ano-novo. Você não?

E, com isso, saiu da sala.

17

Kitty mal dormiu naquela noite, as palavras de Drummond em sua cabeçacomo um enxame de moscas banqueteando-se com uma carcaça.

– Por favor, ignore qualquer coisa que eu tenha dito, eu estava delirante deexaustão e bebida – disse ele no café da manhã no dia seguinte.

Então tomou Charlie nos braços e o atirou no ar, pegando a criança aos risose colocando suas pernas gordinhas sobre os próprios ombros largos.

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– Então, meu sobrinho, nós, homens, precisamos ficar juntos. Mostre-me oque há para ser mostrado por aqui.

Em seguida, desapareceram pela porta, e ficaram fora por tanto tempo queKitty estava cheia de preocupação quando finalmente voltaram.

– Charlie me mostrou a cidade – disse Drummond, colocando-o em pé.

Kitty percebeu que o rosto do filho estava sujo de chocolate e sorvete e Deussabia o que mais.

– Mostrei, mamãe, e todos pensaram que ele era o papai! Eles parece omesmo!

– “Parecem”, sim, Charlie – corrigiu ela.

– Nós enganamos algumas pessoas, não foi, Charlie?

Drummond riu enquanto limpava a boca suja da criança.

– Enganamos, tio Drum.

– Podemos receber algumas ligações de vizinhos confusos acreditando queseu marido voltou mais cedo das viagens. Particularmente, mal posso esperar.

Drummond piscou para Kitty.

De fato, nos dias que se seguiram, receberam uma enxurrada de pessoas dacidade que vinham bater à sua porta. Drummond sempre os cumprimentavaeducadamente, comportando-se como o anfitrião perfeito. Era muito maisentusiástico do que o irmão, brincando gentilmente sobre o engano eencantando a todos que conhecia. E, como resultado, receberam váriosconvites para jantar.

– Mais um – disse Kitty enquanto o abria. – E é dos Jeffords!

Sinceramente, Drummond, devíamos recusar todos.

– Por quê? Não sou seu cunhado? Isso sem falar que sou tio de Charlie e filho

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do meu pai. Não fui convidado para vir aqui atendendo a um pedido

do meu irmão gêmeo?

– Você disse outro dia que uma picada de cobra era menos mortal do que alíngua viperina das vizinhas. Você vai encarar esse evento como umadiversão, e, por mais maçante que possa achar nossos conhecidos da

“classe média colonial”, não quero que os ofenda.

– Eu falei que estava bêbado naquela noite. Não me lembro de nada –

disse Drummond enquanto Kitty saía pelo corredor e entrava na sala devisitas.

– Qual problema, Sra. Kitty? Parece triste.

Com o espanador na mão, Camira a observava.

– Nada, acho que devo estar cansada.

– Sr. Drum aborrece você?

– Não. – Kitty suspirou. – É complicado demais para explicar.

– Ele parece luz no céu. Sr. Andrew, escuro, como terra. Os dois bons, sódiferentes.

Kitty pensou em como era precisa a avaliação que Camira fazia dos -

gêmeos.

– Charlie gosta dele, eu e Fred gosta dele. Ele aqui bom para nós.

Mas não para mim...

– Sim, é bom tê-lo aqui. E você tem razão, Charlie parece adorá-lo.

– Sr. Drum faz a vida melhor para você, Sra. Kitty. Ele engraçado.

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Kitty levantou-se.

– Acho que vou dormir um pouco, Camira. Você poderia cuidar de Charlieenquanto isso?

Camira a observava, desconfiada.

– Sim. Eu olho pequenino.

Kitty foi se deitar e se perguntou se estava doente. Certamente se sentia febrile, apesar de suas melhores intenções, pensar em Drummond a poucos metrosde distância, atrás de uma parede fina, incendiava seus sentidos. Ele nãodissera mais nenhuma palavra íntima desde a primeira noite, mas também eleconfessara estar bêbado...

Kitty rolou para o lado, tentando encontrar uma posição confortável e dar umdescanso à mente. Talvez ele de fato estivesse ali com as melhores intenções:cuidar da cunhada como o irmão pedira. em cingapura pt sei que drummondestá com você pt feliz que não esteja só pt negócios indo bem pt amo você echarlie pt andrew pt Kitty leu o telegrama no café da manhã e soltou umgemido. Até mesmo seu marido parecia achar maravilhoso que Drummondestivesse com eles. E, até o momento, seu hóspede não dava nenhumaindicação de ir embora.

Algum tempo depois, ela não teve escolha a não ser aceitar alguns dosconvites para jantar e, assim, eles tinham saído três vezes na semana anterior.Para sua surpresa, Drummond se comportara de forma impecável em todas asocasiões, encantando as esposas e soltando bravatas aos maridos sobre suavida no Outback. E, o mais importante, mantendo-se sóbrio a noite toda.

– Venham nos visitar de novo! – dissera a Sra. Jefford com voz melodiosaenquanto Drummond beijava sua mão e se despediam. – Quem sabe para oalmoço de domingo na semana que vem?

– Obrigada, Sra. Jefford, vou consultar minha agenda e confirmamos embreve – respondera Kitty educadamente.

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– Sim, por favor. Deve ser estranho para você ter Drummond por aqui.

Tão parecido com seu marido, mas tão... mais. – A Sra. Jefford corara comouma jovem. – Boa noite, minha querida.

Chovia incessantemente, mas, mesmo assim, Drummond encontrara maneirasde entreter Charlie e Cat. Eles brincavam de esconde-esconde dentro de casa,fazendo o piso ranger alegremente enquanto corriam por toda parte.

Um campo de críquete em miniatura foi instalado no hall – Drummond ficarahorrorizado que Andrew ainda não tivesse ensinado ao filho as regras básicasdo jogo. Drummond pedira a Fred que entalhasse algumas estacas e umbastão e depois dissera que ele tinha feito “um trabalho e tanto”.

Como a chuva continuava a castigar, a porta da frente acabou marcada pelabola que Drummond comprara de presente para Charlie no armazém. No finalde cada sessão, apesar da contagem cuidadosa de Kitty, Drummond sempredeclarava empate.

– Casa feliz quando ele está aqui – disse Camira uma tarde, enquanto levavaas crianças agitadas até a cozinha para o chá. – Quando ele vai, Sra. Kitty?

– Não tenho a menor ideia – respondeu ela sinceramente, sem saber se queriaque ele fosse ou não.

– Quando as chuvas pararem, creio – disse Drummond, ao ser indagado porKitty no jantar da noite seguinte.

– Isso pode levar semanas – comentou Kitty, revirando no prato o frangocozido demais.

Tarik ainda não acertava o tempo de preparo das aves.

– Isso é um problema para você? Se eu não for bem-vindo aqui, vou embora.

– Não. Não é isso...

– Então, o que é? – Drummond a observava.

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– Nada. Talvez eu esteja cansada esta noite.

– Talvez você se sinta desconfortável com minha presença. Nunca vi você tãotensa. E eu que achava que estava indo tão bem com os seus amigos, efazendo tudo que posso para divertir Charlie e Cat... Que criança adorável elaé. E será uma linda mulher também um dia. Isso sem falar que tenho ajudadoFred a manter a entrada livre de lama e...

– Pare! Por favor, apenas pare.

Kitty levou as mãos à cabeça.

– Meu Deus, Kat, o que foi que eu fiz? – Drummond olhou para ela,

sinceramente chocado com sua angústia. – Por favor, me diga e tentareiconsertar, eu lhe imploro. Não tenho nem bebido porque sei que você nãogosta. Eu...

– Você não entende?!

– O quê?

– Eu não sei por que você está aqui ou o que você quer! Seja o que for, estousimplesmente... exausta!

– Entendo – disse ele com um suspiro. – Perdoe-me. Não fazia ideia de queminha presença aqui a perturbasse tanto. Vou embora amanhã de manhã bemcedo.

– Drummond. – Kitty levou a mão à testa. – Não pedi para você ir emboraamanhã, só perguntei quando você vai embora. Por que tudo com você temque ser um drama? Você vai para a cama à noite pensando em como enganoua todos? Ou esse é o verdadeiro você e o outro Drummond é uma farsa? Outalvez não tenha nada a ver com nenhum de nós aqui...

talvez, mesmo que você diga que não, tenha a ver com o fato de você ternascido duas horas depois do seu irmão e ele ter tudo que você deseja!

– Basta!

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Drummond bateu o punho na mesa, começando uma cacofonia de porcelana,vidro e talheres tilintando, em uma imitação de orquestra.

– E então? Afinal, o que é? Qual é a verdadeira razão de você estar aqui? –

perguntou Kitty novamente.

Ele ficou em silêncio por um longo tempo antes de olhar para ela.

– Não é óbvio?

– Não para mim.

Drummond levantou-se e saiu da sala, batendo a porta. Kitty se perguntou seele tinha ido guardar suas coisas e partiria imediatamente.

Era exatamente o tipo de gesto dramático a que ele estava inclinado.

Alguns segundos depois, ele estava de volta, não com a bagagem, mas comuma garrafa.

– Trouxe um copo para você, mas imagino que não queira.

– Não, obrigada. Pelo menos isso você me ensinou.

– Só isso?

– Nada mais que eu me lembre no momento.

Ele sorriu e tomou um gole de conhaque.

– Então, pelo menos, consegui algo. Você está certa, é claro.

– Sobre o quê? Por favor, Drummond, chega de enigmas – suplicou.

– Então serei direto. Você disse agora há pouco que talvez intimamente eudeseje tudo que meu irmão tem. Bem, você estava certa, porque havia, e há,algo que eu quero muito. Quando conheci você naquele Natal, admirei o seuespírito e, sim, achei você atraente, mas que homem não acharia? Você é

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linda.

E então vi meu irmão cortejá-la, e admito agora que ver quanto ele a desejavasó aumentou o meu fascínio por você. Irmãos serão sempre irmãos, Kitty, esempre foi assim, principalmente com gêmeos idênticos.

Drummond tomou outro gole do conhaque.

– No entanto, se tudo começou como um jogo, peço desculpas, pois, duranteaquele Natal, vi como você se adaptou aos nossos costumes, como erapaciente com minha mãe e minha tia, sem nunca se queixar da falta quesentia da própria família, e atirando-se de coração em tudo que lhe eraapresentado.

Nunca vou me esquecer de quando você subiu naquele elefante sem sepreocupar com sua aparência ou recato. Foi naquele momento que tudomudou.

Vi através da sua alma; vi que era livre como a minha, não tolhida porconvenções. Vi uma mulher que eu poderia amar.

Kitty concentrou-se em seu copo de água, não se atrevendo a olhar para ocunhado.

– Quando pedi que me esperasse, eu estava falando muito sério, mas já eratarde demais. Soube disso quando saí e admito que, se fosse você, teriatomado a mesma decisão. Dois irmãos, de aparência idêntica, um bêbado ebrincalhão e o outro... bem – ele deu de ombros –, você conhece Andrew.

Quando o inevitável aconteceu e eu soube que você se casaria com meuirmão, percebi que tinha perdido. O tempo passou e segui com a minha vida,como todos fazemos. Então recebi o telegrama de Andrew pedindo queviesse vê-la em Broome. Preciso confessar que tive que pensar por muitashoras. Por fim, achei que seria melhor eu vir aqui para acabar com osfantasmas do passado e seguir em frente. Entrei aqui saindo da chuva,esgotado e exausto, olhei uma vez para você e na mesma hora soube que nadatinha mudado. Na verdade, ao ver sua força e determinação em construir umavida para você e seu filho nesse ambiente hostil, que a maioria dos homens,

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que dirá as mulheres, acharia desencorajador, minha admiração e respeito sóaumentaram.

Resumindo, minha querida, Kat, você é de longe a mulher mais corajosa,teimosa, inteligente, irritante e linda que tive a infelicidade de conhecer.

E, por alguma razão extraordinária que não consigo entender, amo cadapedacinho de seu lindo corpo. Então – ele ergueu o copo para ela –, é isso.

Kitty mal podia acreditar no que acabara de ouvir, nem se atrevia a confiarnaquilo. Cada palavra que ele dissera refletia exatamente seus sentimentos.No entanto, ela sabia que deveria responder de forma pragmática.

– Sou a esposa do seu irmão e você admitiu que cobiça o que ele tem.

Tem certeza de que esse sentimento que você diz nutrir por mim não temnada a ver com isso?

– Santo Deus! Acabei de abrir meu coração para você e pediria que, porfavor, não o partisse com sua língua afiada. No entanto, não importa se vocêacredita em mim ou não, mas, sim, se eu acredito em mim mesmo.

Você me perguntou por que ainda estava aqui e eu lhe disse a verdade:

sou seu se você quiser. E se quiser que eu vá embora, eu vou.

– É claro que você pode ficar. Meu próprio marido o convidou. Por favor,ignore meu estranho humor esta noite. Provavelmente foi algo que comi.

Ele procurou no rosto dela a verdade, mas Kitty a escondera completamente.

Não serei como meu pai...

– Estou cansada, Drummond. Se me der licença, vou me deitar. Boa noite.

Kitty sentiu que Drummond a observava enquanto caminhava até a porta.

– Boa noite, Sra. Mercer – disse ele.

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Quando a estação chuvosa tomou conta de Broome, as ruas ficaraminundadas e intransitáveis. As lojas na Dampier Terrace foram escoradas comsacos de areia e Fred corajosamente atravessou a lama para buscar provisões.

Kitty olhou por uma das janelas e viu que seu precioso jardim estava agoraenterrado sob um rio de lama vermelha. Lágrimas vieram aos seus olhosquando pensou no amor que dedicara a ele na tentativa de recriar umpedacinho de Edimburgo.

O fato de estarem confinados à casa tornava o convívio com Drummondainda mais tenso. Mesmo que ele quisesse ir embora, com o tempo daquelejeito não tinha muita escolha a não ser ficar um pouco mais.

Após vários longos dias, em que Kitty pensou que ficaria louca de frustraçãoe desejo, as chuvas finalmente pararam, e todos saíram como toupeiras meiocegas em busca da luz do sol. Em poucos minutos, Charlie e Cat estavamcom terra vermelha úmida até os joelhos, gritando e brincando de atirá-la umno outro.

O clima parecia mais fresco, mas um odor desagradável de esgoto aindapairava no ar.

– É melhor termos cuidado, é a estação do cólera. Limpe bem as crianças,está certo, Camira? – disse ela, tirando Charlie da lama.

– Sim, Sra. Kitty. Tempo ruim de doença depois que a chuva para.

Como era esperado, logo ficaram sabendo que cinco casos de cólera haviamsido levados ao hospital do Dr. Suzuki, e, pouco depois, muitos outros.

– Por enquanto a doença está restrita aos bairros pobres – reconfortou-aDrummond depois de dar um passeio pela cidade para esticar as pernas.

– Nenhum branco doente foi registrado até agora.

Mas pouco depois os casos surgiram, e tiveram mais uma vez que fechar asportas, dessa vez contra uma praga mortal.

Fred foi o primeiro a adoecer na casa dos Mercers, e delirava em sua cama de

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palha nos estábulos. Kitty ficou surpresa quando Camira insistiu em cuidardele em vez de deixar que o levassem para o hospital.

– Ele sempre bom para mim e não confia nesses doutor – comentou ela comfirmeza.

– Claro – disse Kitty, sabendo que os aborígines eram os últimos na lista

de prioridades de atendimento hospitalar. Ela apertou as mãos de Camira.

–Você precisa me dizer o que posso fazer para ajudar.

Ao voltar para casa, o coração de Kitty batia acelerado ao pensar em todo ocontato que Fred tinha com Charlie diariamente.

– Tente não se preocupar. Os aborígines têm uma resistência muito menor aocólera do que nós. Nossas doenças ocidentais vieram para a Austráliaconosco e mataram milhares de nativos – explicou Drummond.

– Por mais horrível que isso seja, sinto-me reconfortada com relação aCharlie. – Ela abriu um fraco sorriso. – Fico feliz que esteja aqui.

– Bem, essa é a primeira coisa positiva que você me diz em dias. O prazer émeu, senhora. – Drummond fingiu um cumprimento.

Enquanto Fred suava durante as duas noites seguintes, Camira reclamava quenão sabia se ele ia resistir, então corria de volta para a cabana com misturasmalcheirosas que levava da cozinha.

– O que você acha de levarmos as crianças à praia de charrete? – sugeriuDrummond.

– Claro que não.

– A praia de Riddell é bem afastada da cidade. E acho que um pouco de arfresco nos faria bem.

Kitty estava tão desesperada quanto ele para sair de casa, então preparou umpequeno piquenique e eles partiram. Drummond pegou o caminho mais longo

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para evitar passarem pela cidade. Kitty sentou-se na areia macia e Drummondtirou suas roupas e entrou na água de ceroulas.

– Desculpe, mas preciso fazer isso – provocou ele. – Vamos, crianças, apostouma corrida até a água!

Ela viu Charlie e Cat gritando de alegria enquanto Drummond brincava comeles no raso. Estava feliz por se ver longe da atmosfera opressiva da casa,mas perturbada pela imitação de um passeio em família com um homem quenão se intimidava pelas regras da sociedade, e que parecia Andrew, mas nãoera. Um homem que sabia rir e viver o momento.

E, sim, Kitty confessou a si mesma finalmente, desejava de todo o coraçãoque as coisas fossem diferentes.

Quando voltaram para casa, Camira já estava na cozinha com uma expressãode completo alívio.

– Fred bem agora.

– Graças a Deus – disse Kitty, abraçando-a. – Certo, vamos levar essascrianças para a banheira e pensar no jantar.

De madrugada, Kitty sentiu-se doente e febril. Então seu estômago começoua se contrair e ela só teve tempo de chegar à privada, onde Camira aencontrou na manhã seguinte, caída no chão.

– Sr. Drum! Vem rápido!

Talvez ela tivesse sonhado com Camira gritando para Drummond:

“Hospital não, Sr. Drum! Muita gente doente! Busca remédios, nós cuida

Sra. Kitty aqui.”

Abrira os olhos e vira o rosto de Andrew – ou talvez fosse Drummond –

pedindo que tomasse um líquido salgado que a fez vomitar, e notou que umcheiro ácido ruim pairava no ar.

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Mãos suaves a limpavam com água fria enquanto seu estômago se contraía denovo e de novo. Ela sonhou então que flutuava para se juntar aos ancestraisde Camira que moravam no céu ou talvez ao próprio Deus... Uma vez, abriuos olhos e havia um anjo, reluzentemente branco na frente dela, estendendo-lhe a mão. Uma bela voz aguda cantava em seu ouvido.

Seria bom, pensou com um sorriso, ficar livre da dor.

Então outra figura apareceu na frente do anjo, dizendo-lhe: “Lute, minhaquerida Kitty. Não me deixe agora, eu amo você, amo você...”

Ela devia ter dormido de novo, pois, quando acordou, pôde ver pequenasfendas horizontais de luz aparecendo por trás das persianas.

– Por que ninguém fechou as cortinas? – murmurou ela. – Eu sempre fecho.

Ajuda a afastar o calor...

– Bem, Vossa Majestade, por favor, perdoe meu atraso. Eu tinha outrascoisas ocupando a mente até agora.

Drummond estava de pé junto a ela, as mãos entrelaçadas na altura dacintura. Sua aparência era péssima: pálido e abatido, com fortes olheiras.

– Bem-vinda de volta à terra dos vivos – disse para ela.

– Sonhei que um anjo veio me levar para o céu...

– Ah, não tenho dúvida. Quase perdemos você, Kitty. Pensei que estavadesistindo de nós. Mas parece que Deus ainda não a queria, e enviou-a devolta.

– Talvez haja mesmo um Deus, afinal – sussurrou ela enquanto tentava sesentar, mas então sentiu-se terrivelmente zonza e recostou-se nostravesseiros.

– Bem, essa é uma conversa que teremos outra hora, depois que eu dormirum pouco. Você me parece lúcida... até certo ponto... e não sujou a cama pordoze horas – disse Drummond.

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– Sujei a cama?

Kitty fechou os olhos e usou a pouca energia que tinha para se afastar dele,cheia de horror e vergonha.

– O cólera é assim. Não se preocupe, deixei o quarto enquanto você e oslençóis eram trocados. Camira cuidou de tudo. Mas, se você tivesse morrido,eu iria à delegacia e insistiria para que a prendessem pelo assassinato de suasenhora. Quando tentei levá-la para o hospital, ela lutou como um tigre parame deter. Camira está convencida de que os hospitais dos “homens brancos”estão cheios de doenças, o que provavelmente é verdade. Se você não morrerpor suas próprias bactérias em uma epidemia, é provável que morra pelas doseu vizinho.

No final, ela me venceu e eu concordei, que Deus me perdoe.

– Um anjo esteve aqui, eu juro...

– Está delirando de novo, Kitty? Eu espero que não. – Drummond ergueuuma sobrancelha. – Bem, agora vou deixar você com seu papo sobre anjos einformarei à enfermeira Camira que você está viva e ficará muito bem embreve.

Kitty o viu caminhar em direção à porta.

– Obrigada – conseguiu dizer.

– Foi um prazer, senhora. Estou aqui para servir.

– Eu vi mesmo um anjo – insistiu e, exausta da conversa, fechou os olhos edormiu novamente.

– Sr. Drum com você dia e noite. Nunca saiu do seu lado. Só quando eutrocava você e lençóis fedidos. – Camira franziu o nariz. – Ele bom homembranco, me ouve quando eu fala “nada de hospital”.

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Kitty, que estava sentada na cama, fazendo o máximo para tomar a sopa ralae salgada na bandeja à sua frente, observou a expressão sonhadora de Camirae percebeu que a babá e ajudante também se deixara envolver completamentepelos encantos de Drummond.

– Ele ama você, Sra. Kitty.

Ela negou com firmeza.

– É claro que não! Ou, na verdade – Kitty tentou suavizar sua reação àspalavras de Camira –, ele me ama como qualquer cunhado deveria.

Apenas isso.

Camira revirou os olhos, discordando.

– Você mulher de sorte, Sra. Kitty. Maioria dos homens não bom como ele.

Agora você come e fica forte para seu filho.

Dois dias depois, Kitty sentiu-se confiante para ver Charlie sem que suaaparência o assustasse.

– Mamãe! Você está melhor? – perguntou ele enquanto corria para os seusbraços e ela sentia sua força e saúde.

– Muito melhor, Charlie querido. E ah, muito feliz em ver você.

– Papai disse que ia voltar para casa quando tio Drum telegrafou para dizerque você estava doente.

Instintivamente, o estômago de Kitty se revirou, assim como durante ospiores momentos de sua doença.

– É mesmo? Que gentileza.

– É, mas aí você ficou bem e tio Drum voltou ao telégrafo para contar aopapai, então ele não vai vir.

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– Você deve estar desapontado, Charlie.

– Sim, mas temos tio Drum para cuidar de nós, e ele é exatamente igual, sóque é mais divertido e joga críquete e nada com a gente. Por que papai nãonada com a gente?

– Talvez ele nade, se pedirmos com jeitinho.

– Não, porque ele está sempre ocupado com o trabalho. – Charlie deu um

beijo úmido na bochecha da mãe, as mãos gorduchas em volta de seupescoço.

– Fiquei feliz por você não ter morrido. Eu e Cat vamos ajudar Fred aconstruir uma cabana no jardim.

– Que cabana?

– Nossa própria casa. Podemos morar nela juntos e talvez jantar lá às vezes. –Os olhos de Charlie suplicavam à mãe. – Podemos?

– De vez em quando, talvez – concordou Kitty, exausta demais para -

discutir.

– E um dia vamos nos casar como você e papai. Adeus, mamãe, tome suasopa e fique forte.

Kitty observou-o atravessar decididamente o quarto. Até mesmo naquelespoucos dias, ele parecia ter crescido, tanto em termos de maturidade quantode estatura.

Embora não houvesse nada de errado com as brincadeiras de infância, Kittyse perguntou mais uma vez se cometera um erro ao deixar Camira cuidartanto de Charlie. Mas pensaria nisso outra hora. Agora, se concentraria emterminar a sopa.

Na manhã seguinte, ela insistiu que estava bem o suficiente para tomar banhoe se vestir. A comida ainda era um problema – ficava enjoada toda vez que a

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via, mas se esforçava para comer. Charlie e Cat estavam ocupados no jardimcom Fred, que serrava e pregava a cabana de brinquedo dos dois.

– Ele é um bom homem – comentou Drummond no café da manhã. –

Você os tratou com respeito, ele e Camira, e eles retribuíram muitas vezesmais.

– Você também é um bom homem. Obrigada por cuidar de mim enquanto euestava doente. Não sei o que faria se você não estivesse aqui.

– Foi um prazer, ou pelo menos, meu dever. Eu não poderia deixá-la morreraos meus cuidados, não é? Meu irmão jamais me perdoaria. A boa notícia éque parece que a epidemia acabou, embora o Dr. Suzuki tenha me informadoque perderam doze almas no hospital. Nos bairros pobres o número deve tersido pelo menos três vezes maior.

Infelizmente, a Sra. Jefford foi uma das vítimas.

– Que tragédia. Devo escrever imediatamente para o marido dela.

– A morte nos torna todos santos, não é? – Drummond abriu um sorrisoirônico. – De qualquer forma, agora que você está bem e o tempo melhorou,provavelmente vou voltar para casa daqui a um ou dois dias.

– Mas não deve vir mais chuva por aí?

– Talvez, mas não quero mais ser um fardo para você.

– Por favor, fique até o tempo firmar – implorou Kitty, a ideia de Drummondir embora parecia-lhe insuportável. Tinha certeza de que fora a voz dele que achamara de volta quando estivera à beira da morte.

– Charlie adora você.

– É gentil da sua parte dizer isso. E você?

– Mamãe! Tio Drum! – Charlie entrou correndo. – Nossa cabana está pronta.Vamos lá ver?

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– Claro.

Kitty levantou-se, grata que o filho tivesse interrompido o momento.

Eles se aglomeraram na pequena cabana, tomaram chá e comeram osbolinhos com cobertura que Tarik havia preparado. Eles tinham a textura deprojéteis, mas ninguém se importava.

– Podemos dormir aqui esta noite, mãe? – implorou Charlie.

– Desculpe, querido, mas não. Cat dorme com a mãe dela e você dorme noseu quarto.

Charlie fez beicinho quando os adultos se agacharam para deixar o espaçoclaustrofóbico.

Naquela noite, Kitty levou mais tempo do que o normal para cuidar datoalete. Quer fosse a forma como Drummond cuidara dela, a voz deletrazendo-a de volta à vida, ou a maneira como ele brincava tão naturalmentecom Charlie e Cat, ela não podia mais negar aquilo.

Passando um pouco de perfume no pescoço, mesmo sabendo que atraíamosquitos, olhou para seu reflexo no espelho.

– Eu o amo – disse. – Que Deus me perdoe, não consigo evitar.

Jantaram juntos naquela noite, as mãos de Kitty tremendo enquanto seesforçava para comer. Se Drummond podia sentir a súbita eletricidade no ar,ela não fazia ideia. Ele comeu bem, desfrutando de uma garrafa de vinho queAndrew mandara vir de Adelaide. Parecia não notar a mudança sísmicadentro dela.

– Poderia me passar uma pequena taça de vinho? – perguntou ela.

– Você acha aconselhável? – Drummond franziu a testa diante do pedido.

–Não acho que seja uma boa ideia, considerando sua saúde delicada.

– Talvez não, mas quero brindar por ainda ter saúde com que me preocupar e

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não estar deitada no necrotério como a pobre Sra. Jefford.

– Tudo bem.

Ele serviu-lhe apenas um pouquinho de vinho.

– Um pouco mais, por favor.

– Kitty...

– Pelo amor de Deus, sou uma mulher adulta! Se quiser tomar uma taça devinho, vou tomar.

– Posso ver que está melhor. – Ele ergueu uma sobrancelha. – Voltou comesse seu jeito mandão.

– Eu sou mandona? – perguntou ela.

– Foi uma piada, Kitty. A maioria das coisas que eu digo são. O que mordeuvocê esta noite? Está mais agitada do que uma égua selvagem.

Kitty tomou um gole.

– Acho que quase perder a vida... me fez mudar.

– Entendo. Como?

– Creio que percebi como tudo pode ser fugaz.

– É verdade. E aqui neste nosso novo mundo ainda mais do que na maioriados outros lugares.

– Também devo confessar que, no passado, duvidei da existência de Deus,mas, naquela noite, eu o senti. Senti o amor d’Ele.

– Meu Deus! – Drummond encheu novamente a própria taça de vinho. –

Você teve uma epifania. Daqui a pouco vai implorar ao reverendo local paraser a primeira mulher a se tornar clériga!

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– Pelo menos desta vez, pare de me provocar! – Kitty tomou seu vinho, jásentindo a cabeça girar. – A questão é que eu, é...

– Pelo amor de Deus, Kitty, fale logo.

– Assim como senti o amor d’Ele, eu amo você, Drummond. E acredito quetenha amado desde o primeiro momento em que o vi.

Kitty estendeu a mão para a garrafa de vinho, mas Drummond a afastou.

– Nada mais de vinho, senhorita. Isso traz de volta muitas lembranças ruins.E – ele agarrou seu pulso – quero acreditar que você realmente acredita noque está dizendo.

– Estou falando sério. É verdade. – Kitty riu de repente. – E não, não estoubêbada com um golinho de nada de vinho, mas aliviada! Você tem ideia decomo tem sido cansativo negar meus sentimentos nas últimas semanas? Porfavor, eu lhe imploro, Drummond, podemos simplesmente celebrar a alegriade estarmos vivos? Neste momento? E não se preocupe com o amanhã, nemcom o que é certo ou errado...

Depois de um longo silêncio, ele finalmente falou: – Você não tem ideia decomo sua confissão me faz feliz. No entanto, deixando de lado a pequena taçade vinho que tomou, acho que você talvez esteja mais embriagada com aprópria vida, tendo-a quase perdido recentemente.

Por mais que eu esteja desesperado para amar você de todas as maneiraspossíveis, sugiro, para o seu bem, que espere um pouco. Que dê um tempopara recuperar suas forças e pensar no que me disse esta noite. E nasconsequências que isso traria para nós e para a nossa família.

Kitty o encarava, incrédula.

– Aqui estou eu, cheia de audácia, oferecendo-lhe o meu corpo e a minhaalma, e você escolhe justamente este momento para ser sensato! Tempo é umluxo finito e, meu Deus, não quero desperdiçar nem mais um segundo.

– Mas usar parte desse tempo para pensar no que você disse não será um

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desperdício. Se você ainda pensar da mesma forma daqui a alguns dias,bem...

– Agora eu estou falando com o coração, e você com a cabeça... Meu Deus!

– Kitty torceu as mãos. – Você sempre arruma uma maneira de contrariar?Ou será que depois de me ver tão doente, e meu corpo... fora de controle,você mudou de opinião?

– Eu vi cada centímetro do seu corpo, e posso assegurar-lhe que é lindo.

Drummond estendeu a mão para Kitty, mas ela recusou e levantou-se

com as pernas ainda fracas.

– Vou me deitar.

Ela caminhou em direção à porta, tão aprumada quanto conseguia, mas umbraço a agarrou e puxou-a para ele.

– Kat, eu...

Então ele a beijou bruscamente, e sua cabeça já zonza girou ainda mais.

Quando ele asfastou os lábios e a soltou, Kitty quase desmoronou.

– Você está mais fraca do que uma boneca de pano – disse ele gentilmenteenquanto a apoiava. – Venha, vou acompanhá-la até o quarto.

Em frente à porta, ele parou.

– Consegue se despir ou devo ajudá-la?

Então abriu um sorriso malicioso.

– Consigo – disse ela.

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– Preciso saber se você tem certeza, Kitty, porque não posso voltar atrásdepois que começar.

– Eu entendo. Boa noite, Drummond.

Os poucos dias que ele tinha pedido passaram tão lentamente quanto observaruma grande rocha transformar-se em areia. Por sorte, as crianças tinham acabaninha para brincar. Kitty não sabia muito bem o que faziam juntos ládentro, mas podia ouvir as risadinhas agudas sempre que ia dar uma olhadaneles.

Drummond fora cuidar de negócios do pai na cidade e se ausentara da casa amaior parte do tempo, deixando Kitty andando de um lado para outro,impaciente, exasperada pelo calor opressivo e o desejo febril. Por mais quedissesse a si mesma para pensar, como ele lhe pedira para fazer, sua menteracional parecia tê-la abandonado de vez. E, mesmo quando recebeu umtelegrama amoroso de Andrew, não conseguiu reunir a culpa necessária paradominar seus pensamentos de traição.

verdadeiramente aliviado você está bem pt feliz drummond estava aí ptespero voltar com presente digno de rainha pt andrew pt Dois dias depois,Kitty não aguentava mais. Deitada na cama, ela ouviu a porta de Drummondse fechar. Desde a partida de Andrew, passara a se deitar nua, com apenas umlençol para preservar o recato. Esperou o relógio no hall bater meia-noite eentão se levantou e vestiu o robe.

Fechou a porta suavemente para não acordar Charlie, e caminhou na pontados pés pelo corredor. Sem bater, entrou no quarto de Drummond.

Ele não tinha fechado as persianas e, à luz da lua que brilhava através dasvidraças, ela o viu esparramado nu na cama.

Então abriu o robe, deixando-o cair no chão. E, caminhando em direção àcama, estendeu a mão para tocá-lo.

– Drummond?

Ele abriu os olhos e viu Kitty.

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– Já pensei. E estou aqui.

18

– Você bem agora, Sra. Kitty – comentou Camira uma semana – depois. –

Você recuperou bem, sim?

– Eu me recuperei bem – repetiu Kitty enquanto tomava uma xícara de chá navaranda, olhando para seu canteiro de rosas destruído e imaginando se plantaroutro valeria realmente o esforço.

Olhou com ar sonhador para Camira, que jogava água na lama vermelhaendurecida e esfregava com uma escova dura para limpar.

– Você diferente. – Camira apoiou-se na escova e observou sua senhora.

– Você brilha como estrela! – disse, então continuou esfregando.

– Com certeza me sinto aliviada por estar bem novamente, e quem sabe atemporada de chuvas fortes já tenha passado este ano.

– Todas boas razões para ser feliz, mas acho Sr. Drum faz você feliz também,Sra. Kitty.

Camira deu uma batidinha no nariz com o dedo, piscou e saiu para pegaroutro balde de água. O coração de Kitty bateu descompassadamente com aspalavras de Camira. Como ela sabia? Com certeza não podia ter visto nada –eles eram tão cuidadosos, deixando os abraços carinhosos para depois que elase retirava para a cabana com Cat e depois que Charlie adormecia. Aindaassim, era diferente o som das risadas quando Drummond a provocava oufazia cócegas em Charlie até ele implorar por misericórdia. A casa tinha umanova energia, e ela também. Na verdade, pensou Kitty, sentia-se viva pelaprimeira vez na vida.

Dia e noite, seu corpo ansiava por Drummond, quer ele estivesse com ela nasala ou escondido em sua imaginação. Até mesmo as atividades mais simplesagora lhe davam prazer se ele estivesse ao seu lado. O simples toque da mãodele fazia correr uma onda de eletricidade pelo seu corpo, e Kitty acordava

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pela manhã já ansiando pela chegada da noite para poder ir até ele ecompartilharem seu mundo secreto de êxtase.

Depois da primeira noite, eles tinham concordado em simplesmente viver omomento, sem deixar que os pensamentos sobre o futuro destruíssem o quetinham descoberto juntos. Kitty ficou espantada e constrangida com afacilidade com que conseguiu fazer isso. Embora a parte racional de suamente soubesse que Andrew retornaria em menos de um mês, a parteemocional mais forte a superava. Ela justificava suas ações com opensamento de que a presença de Drummond durante a longa temporadachuvosa não só salvara sua vida, mas também era uma bênção para Charlie.A mente inventiva de Drummond podia transformar

uma cadeira em um navio lançado ao mar cheio de piratas e tesouros, ou umamesa em uma cabana na selva diante da qual vagavam leões e tigres. Era umamudança bem-vinda aos monótonos jogos de cartas que Andrew sempresugeria quando chovia.

Drummond também é uma criança, pensou Kitty enquanto o observavaengatinhar pelo corredor, rosnando ferozmente. Mas, à noite, com certeza eleera um homem...

Desde que o tempo melhorara, também faziam passeios pela praia de Riddelle, no canto mais distante, protegido pelas formações rochosas, Kitty juntava-se a Cat, Drummond e Charlie – agora já um habilidoso nadador – nas lindaságuas verde-azuladas.

– Mamãe! Tire as calçolas! – Charlie gritara para ela. – Tio Drum disse queas roupas fazem a gente pesar.

Kitty nunca chegara a esse ponto na frente de Charlie e o fizera jurar segredosobre aqueles passeios, mas algumas vezes deixara o filho com Camira com adesculpa de resolver coisas na cidade. Ela e Drummond pegavam, então, acharrete para a praia e nadavam nus juntos. Enquanto ele a segurava em seusbraços, beijando seu rosto, o pescoço e lambendo a água salgada de seusseios quando voltavam para a areia, ela sabia que nenhum momento futuroque experimentasse poderia ser mais feliz.

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– Querida – disse Drummond no final de fevereiro quando estavam deitadosjuntos em sua cama, Kitty meio entorpecida pela noite de amor.

–Recebi um telegrama do meu pai. Ele quer que eu me junte a ele e Andrewem Adelaide no final da próxima semana, quando voltarem da Europa. Temalgo a ver com o império comercial Mercer. Ele quer dividir seus bens enegócios entre mim e Andrew para que não haja confusão no caso de suamorte. Devo ir a Alicia Hall para assinar os documentos com o advogado, eAndrew e eu vamos redigir nossos próprios testamentos.

– Entendo. – O coração de Kitty, tão recentemente cheio de amor econtentamento, pareceu se apertar. – Quando você vai partir?

– Pego o navio em dois dias. Você não vai perguntar o que ele está medeixando? Descobrir quais são minhas perspectivas?

– Você sabe que não me importo nem um pouco com isso. Eu viveria comvocê em um eucalipto sem mais nada, se necessário.

– No entanto, vou lhe contar. Como você pode imaginar, a Mercer PearlingCompany, que atualmente representa 70% da renda familiar, será transferidapara Andrew. Eu vou receber 2.500 quilômetros quadrados de deserto árido egado subnutrido, em outras palavras, a fazenda Kilgarra. Ah, e tambémalguns hectares de terra a poucas horas de viagem de Adelaide. Fala-se sobrealgum tipo de mineração na região, e meu pai logo comprou uma parte. Podenão dar em nada, mas, conhecendo o faro instintivo dele quando se trata dedinheiro, que se assemelha ao de um dingo atrás do cadáver de uma novilha,talvez acabe sendo lucrativo. Também herdei um bangalô nas colinas deAdelaide e as vinhas em volta. Após a morte de meus pais, meu irmão herdaAlicia Hall.

– Ah! Mas o bangalô é tão mais bonito! Estive lá, e a vista é espetacular! –

disse Kitty, lembrando-se vividamente. – Foi lá que Andrew me pediu emcasamento... – Ela parou de falar, constrangida.

– Foi mesmo? Que... pitoresco.

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– Perdoe-me. Isso foi indelicado.

– Concordo inteiramente. – Drummond tirou um cacho do cabelo dela dorosto. – Infelizmente, Sra. Mercer, parece-me que a realidade está invadindonosso ninho de amor isolado do mundo. Por mais que tenhamos feito omáximo para evitar isso durante essas poucas semanas felizes, chegou a horade você tomar algumas decisões.

Ela sabia muito bem quais eram.

– Bom, e com certeza você também, não? Afinal, Andrew é seu irmão.

– Sim... um irmão que não tinha o menor escrúpulo em tirar meus brinquedosfavoritos quando éramos pequenos.

– Rezo para que eu não seja uma vingança pelos erros que ele cometeu.

– Se você é, então melhor para mim. – Drummond riu. Depois, vendo aexpressão dela, ele cedeu. – Kitty... minha Kat, eu estou, como sempre,provocando você. Embora me preocupe nunca ter ganhado nenhuma batalhaque Andrew se importou em travar.

– Ah, ganhou, sim. – Kitty aproximou-se e beijou-o suavemente no rosto.

– Você sabe como ser feliz. E, por causa disso, eu também.

– E provavelmente ficarei muito infeliz se não falarmos sobre o nosso futuro,meu amor. – Drummond tomou o rosto dela nas mãos. – Quando eu for paraAdelaide, você quer que seja para sempre?

– Ah, Drummond... – Ela balançou a cabeça desesperadamente. – Eu não sei.

– Tenho certeza de que não. Meu Deus, em que confusão nos metemos.

Talvez possa ajudar se eu lhe contar no que andei pensando.

– Por favor.

– É muito simples: não suporto a ideia de deixar você. Posso chorar como um

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bebê na sua frente se você insistir em ficar com meu irmão.

Drummond abriu um fraco sorriso.

– Então o que você sugere?

– Que a gente fuja... levando Charlie.

– Para onde?

– Para a lua seria melhor, mas, como é ainda mais longe do que a minhafazenda de gado e teríamos que ter asas para chegar lá, Kilgarra éprovavelmente a melhor opção.

– Quer que eu vá com você?

– Sim, embora deva avisá-la, Kat, que a vida lá é dura e brutal. Faz Broomeparecer o centro da sociedade civilizada. O trem afegão de camelos passasomente duas vezes por ano com suprimentos, e o povoado mais próximo,Alice Springs, fica a dois dias de distância. Não há médico ou hospital, e sóum banheiro externo para as necessidades.

Mas há uma vantagem, veja bem.

– E qual é?

– O vizinho mais próximo fica a um dia de viagem, então não teremos maisque enfrentar esses jantares intermináveis.

Kitty conseguiu abrir um sorriso, sabendo que Drummond estava fazendo omáximo para deixar o clima mais leve.

– E quanto a Andrew? Como nós poderemos fazer isso com ele? Andrewficará devastado. Perder sua esposa, sem falar em seu amado filho... –

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Kitty balançou a cabeça. – Ele não merece.

– Não, não merece, e sim, isso o machucará profundamente, sobretudoporque Andrew nunca perdeu nada na vida. Na escola, ele sempre era o caraque marcava o último ponto e salvava o dia.

– Não sou uma bola de rúgbi, e Charlie também não. – Ela olhou paraDrummond. – Você tem certeza absoluta de que não se trata apenas de você -

ganhar?

– Nessas circunstâncias, absolutamente não. Juro para você, Kat, apesar dasminhas brincadeiras, eu o amo. Ele é meu irmão gêmeo, e eu faria de tudopara não magoá-lo, mas é uma questão de vida e morte e não dá para evitar.

– O que você quer dizer?

– Fisicamente, não posso mais viver sem você. É terrível, mas é verdade.

Então é nesse ponto que estou. E agora, minha Kitty-Kat, usando a analogiado rúgbi, a bola está nas suas mãos. Cabe a você decidir.

Mais uma vez, Kitty vivia a agonia da indecisão, porque não era apenas ofuturo dela que precisava considerar. Se fosse embora com Drummond, sabiaque estaria negando a Charlie o direito de crescer com o pai. Ainda maispreocupante era pensar que Andrew poderia tentar lutar para ficar comCharlie. Pelo menos, não havia dúvida de que ele adorava Drummond e teriaum tio amoroso e uma figura paterna para orientá-lo enquanto crescesse. SóDeus sabia o que ela diria a Charlie quando ele fosse mais velho: Kittyconhecia bem o choque de se descobrir a triste verdade sobre um pai queidolatrava.

Ela não conseguia se decidir, e até mesmo visitou a igreja local e ajoelhou-sepedindo orientação.

– Senhor, sempre me ensinaram que Deus é amor. E eu amo Drummond comtoda a minha alma, mas também amo Charlie...

Quando se ajoelhou, mais uma vez viu o pai apertando as mãos de Annie à

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entrada da casa dela. E sua pobre mãe inocente, também grávida e sem saberque o marido a enganava.

– Não sou hipócrita e não posso ser uma mentirosa – sussurrou para umatriste pintura de anjos levando mortos para o céu.

Embora agora, pensou enquanto se levantava, não seja melhor do que meupai, deitando-me na cama do irmão do meu marido, noite após noite...

– Senhor, provavelmente eu tive uma epifania – disse ela com um suspiro –,mas parece que tenho desrespeitado vários de seus mandamentos desde então.

Já lá fora, sob o sol, Kitty foi observar os túmulos dos falecidos.

– Você algum dia amou como eu antes de deixar a Terra? – sussurrou para osrestos de uma certa Isobel Dowd.

A pobre tinha morrido aos 23 anos... a mesma idade que ela tinha. Kittyfechou os olhos, deixando escapar um profundo suspiro.

– Isso já foi longe demais e não vou enganar meu marido pelo resto de nossasvidas. Portanto – engoliu em seco –, que o Senhor me ajude, mas devoencarar as consequências.

– Decidi que vamos com você para Kilgarra quando voltar de sua reunião emAdelaide – disse Kitty tranquilamente enquanto jantava com Drummondnaquela noite.

Ele olhou para ela, surpreso.

– Meu Deus, mulher! Estávamos discutindo se deveríamos levar Charlie até apraia para um último mergulho e você fala isso assim de repente!

– Achei que você deveria saber – retrucou ela, pelo menos se divertindo coma expressão atordoada de Drummond.

– Sim, você está certa, eu deveria saber. – Ele pigarreou. – Bem, então émelhor traçarmos um plano.

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– Também decidi que eu mesma contarei a Andrew quando ele voltar.

Não me comportarei como uma covarde, Drummond. Camira sairá comCharlie antes e já terei deixado um baú pronto. Então sairei imediatamente,pegarei Charlie com Camira e viajaremos para nos encontrar com você, ondequer que esteja.

– Parece que você já pensou em tudo.

– Tenho uma natureza prática e descobri que, em situações difíceis, ajuda serorganizado.

Kitty não queria que ele visse toda a gama confusa de emoções por baixo desua aparência calma.

– Posso expressar minha mais absoluta alegria com a sua decisão? –

perguntou Drummond.

– Pode, mas também quero saber onde devemos nos encontrar depois queeu... tiver resolvido as coisas.

– Bem... – Drummond estendeu a mão para ela por cima da mesa. – Kitty,você tem certeza de que não quer que eu esteja junto quando contar aAndrew?

– Absoluta. Temo que ele possa atirar em você na mesma hora.

– Ele poderia atirar em você também.

– E não seria menos do que eu mereço. – Kitty engoliu em seco. – Masduvido. Atirar na esposa certamente prejudicaria sua reputação na sociedadede Broome.

Os dois se permitiram um fraco sorriso.

– Você tem certeza disso, minha Kat?

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– Não tenho escolha, porque Andrew merece muito mais do que uma esposainfiel que nunca poderá amá-lo.

– Se serve de consolo, tenho certeza de que não levará muito tempo para queas mães da indústria de pérolas de Broome façam fila com suas doces filhasaqui na porta da frente. Agora, já chega disso. Sugiro que eu ainda vá paraDarwin de navio, tendo em vista que já disse a meu pai e Andrew que planejofazer isso. Então você e Charlie fogem no próximo barco e me encontram lá.

– Andrew pode ir atrás de nós.

– Pode e, se ele for, teremos que lidar com isso. – Drummond apertou a mãodela. – Até lá, devo estar ao seu lado.

– Você precisa ir a Adelaide? Com certeza essa reunião de negócios com seupai pode ser feita em alguma outra data, não?

Kitty podia sentir sua resolução de não se mostrar emotiva enfraquecendolentamente.

– A última coisa no mundo que eu quero é deixá-la aqui; mais do quequalquer outra coisa, temo que você possa mudar de ideia quando eu estiverlonge. – Ele abriu um amargo sorriso. – No entanto, para que nós trêspossamos ter algum futuro, devo ir assinar a escritura da fazenda Kilgarra eos documentos dos outros bens. Duvido que meu pai esteja disposto atransferi-los quando souber a verdade.

– E quanto a Charlie? – Kitty sentiu lágrimas surgirem em seus olhos. –

Como lhe explico tudo isso?

– Apenas diga que ele vai conhecer o Outback e visitar o tio Drum e suasmilhares de vacas. Contei-lhe muitas histórias sobre Kilgarra, e sei que eleestá ansioso para ver tudo pessoalmente. Então – Drummond encolheu osombros largos – o tempo passa e vocês simplesmente não voltam para casa. –Ele fez uma pausa. – Você está certa de tudo isso, Kat?

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– Não. – Kitty balançou de leve a cabeça enquanto ele levava a mão dela aoslábios e a beijava delicadamente. – É claro que não. Por que deveria estar?

Kitty chorara suavemente contra o ombro de Drummond na noite anterior àpartida dele, então, enquanto ele dormia, procurara gravar cada centímetro deseu corpo e guardar na memória. A enormidade do que teria que enfrentarentre aquele momento e a próxima vez que o veria era demais para pensar.

Sua despedida pública no cais na manhã seguinte foi como deveria ser –

ela o beijou castamente nos dois lados do rosto e desejou que fizesse uma boaviagem. Qualquer emoção que sentisse fora suplantada por Charlie, que semostrava inconsolável.

– Venha me visitar em breve! – gritou Drummond enquanto subia no navio.

– Eu vou, tio Drum, prometo.

Charlie chorava abertamente.

– Amo você! – gritou de volta, embora seu olhar estivesse em Kitty. –

Vamos nos ver antes do que você pensa.

E, com um último aceno, Drummond desapareceu de vista.

Kitty fazia o máximo para se manter ocupada, limpando a casa para aprimavera e até mesmo insistindo que Fred a ajudasse a plantar algumasmudas de rosa. Não tinha ideia se iriam pegar, e, mesmo que pegassem, nãoestaria ali para ver o resultado.

No entanto, não tinha dúvidas quanto à sua decisão. Não podia continuar aviver uma mentira. Era como se sua vida com Andrew tivesse sido umapérola de má qualidade – tão grande e reluzente na superfície, mas, em seunúcleo, nada além de uma lama sem graça. Ela e Drummond tinham criadosua própria pérola perfeita, as bordas polidas pela alegria e um amorimpenetrável no centro.

Alguns dias depois, Kitty recebeu dois telegramas. O primeiro, do marido,

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dizendo que chegara em segurança a Adelaide e informando que Stefan logovoltaria a Broome com ele e Drummond no Koombana para ver o neto.

O outro telegrama era de Drummond dizendo o mesmo, e acrescentando queas “legalidades” estavam progredindo bem. Os homens da família Mercerchegariam a Broome no dia 22 de março. Daqui a apenas dez dias, pensouKitty.

Naquela noite, ela começou a arrumar seu baú, precisando fazer o que pareciaimpossível se tornar real.

– O que está fazendo, Sra. Kitty? – veio uma voz atrás dela.

Ela deu um pulo, desejando que Camira não se movimentassesilenciosamente como um gato.

– Estou guardando algumas roupas de bebê de Charlie – improvisou,deixando cair a tampa do baú.

– Mas aquela camisa, ainda boa nele.

Kitty sentiu Camira observando-a enquanto se levantava.

– Não é hora de as crianças estarem na cama?

– Sim. – Camira começou a sair, depois se virou em direção à Kitty. – Eu vêtodas as pequenas coisas, sabe por que você arruma baú. Só não esquece nós.Nós acompanha você, e Fred protege você de homens pretos ruins. – Comisso, ela deixou o quarto.

Kitty balançou a cabeça de espanto e irritação. Camira parecia intuir suasmaquinações emocionais internas por algum tipo de osmose invisível.

À noite, sua cabeça se agitava com planos febris, tentando pensar em tudoque poderia dar errado e analisando cada passo com cuidado. A única coisade que tinha certeza era que Drummond nunca a decepcionaria, e, quandoestivesse segura em seus braços em Darwin, tudo o mais ficaria bem.

Ela escreveu cartas cheias de sentimento para a mãe e a Sra. McCrombie,

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pedindo perdão e compreensão, depois escondeu-as no forro do baú.

Então começou a redigir uma para Edith, mas depois pensou melhor, já quenão havia nada que pudesse dizer para melhorar a situação. Edith pelo menosse sentiria reconfortada em saber que estivera certa o tempo todo: Kitty eramesmo filha de seu pai.

– Eu não poderia estar mais preparada – sussurrou ela.

Outro telegrama de Andrew chegou na manhã seguinte.

surpreenderei você quando chegar de todas as maneiras pt papai poderáexplicar pt missão de último minuto mas chegarei em casa são e salvo pt amovocê e charlie pt Kitty franziu a testa, perguntando-se o que Andrew queriadizer, mas então Charlie entrou querendo carinho e uma história antes dedormir e ela não pensou mais sobre o assunto.

Na noite anterior à sua planejada fuga, o clima estava de acordo com asemoções turbulentas de Kitty. As nuvens pairavam escuras e agourentas nocéu e os trovões estremeciam a terra, relâmpagos rasgando o céu como umacostura que se desfaz. Kitty andava de um lado para outro da casa, as janelasfechadas vibrando com o esforço de protegê-los das intempéries.

Ela se levantou junto com o resto da cidade no dia seguinte e saiu aliviada aover que a tempestade ladrara, mas não mordera. Suas rosas ainda estavam depé, e Fred comentou que os ventos tinham perdido força sobre as areias dePindan, no Sul. Não que ela tivesse conseguido dormir: Koombana chegaria aBroome naquela noite, e ela sabia que, mesmo depois que contasse a Andrewque estava indo embora, ainda teria uma longa e árdua jornada à frente atéDarwin. E ela se sentia ocasionalmente nauseada, o estômago revirado, o queo Dr. Suzuki lhe assegurava ser ainda um resquício de sua doença.

Devo contar a Andrew esta noite ou amanhã de manhã...? , perguntava-se

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Kitty pela enésima vez. Não facilitava muito que Stefan também estivesse aliem Broome, e ela precisaria esperar até o sogro se afastar.

As mãos de Kitty tremiam visivelmente enquanto tomava banho e se vestia.Encontrou Camira na cozinha, preparando ovos para o café da manhã deCharlie.

– Você está branca como espíritos no céu, Sra. Kitty – comentou, depoisbateu no ombro da patroa. – Não preocupa, eu e Fred, nós cuidamos Charliena praia enquanto você fala com marido.

– Obrigada. – Kitty cobriu a mão de Camira com a sua. – E prometo avisarvocê e Fred quando estivermos em segurança em Kilgarra.

– Nós vai com você – disse Camira com um aceno de cabeça. – Nós aqui paravocê, Sra. Kitty.

– Obrigada, Camira. Sinceramente, não sei o que faria sem você.

O Koombana devia chegar durante a maré noturna, mas, quando Kitty chegouao porto – àquela altura em tal estado de agitação que teve que

recorrer a um gole de conhaque para acalmar os nervos –, não havia nenhumsinal do navio na baía.

– Um ciclone passou por lá – disse o mestre do porto aos que já estavamreunidos. – Acreditamos que o navio deva ter se abrigado em Derby paraaguardar o fim da tempestade. Não adianta esperarem por aqui, senhores.Vão para suas casas e voltem mais tarde.

Kitty amaldiçoou o mau tempo por chegar no mesmo dia para o qual sepreparara tanto. No trem de volta do píer, os vizinhos a cumprimentaram,jogando conversa fora sobre a tempestade da noite anterior e falando sobrequantos barcos se abrigaram.

O Sr. Pigott, que também era mestre mandaçarre em Broome, sentou-se ao

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lado dela.

– Espero que esse navio chegue em breve. Metade da minha família está lá. Asua também, pelo que sei.

– Sim. Você acha que o Koombana está seguro? Afinal, é o mais novo dafrota.

– Tenho certeza de que sim – respondeu o Sr. Pigott –, mas foi umatempestade e tanto a da noite passada, Sra. Mercer, e já vi navios maiores doque o Koombana afundarem antes. Bem, tudo que podemos fazer é esperarpelo melhor. E rezar.

Ele bateu de leve na mão dela e levantou-se quando o trem parou. Kittysentiu o primeiro arrepio de medo percorrer seu corpo como um fio de sedagélido.

De volta à casa, andava de um lado para outro da sala de visitas enquantoCamira tentava convencê-la a comer, mas ela recusou. Fred, a quem pedirapara aguardar no cais e alertá-la sobre qualquer sinal do navio, voltou paracasa à meia-noite.

– Nada de navio, patroa.

Kitty se retirou para a cama, mas o sono não vinha, sua mente agitada deansiedade.

Na manhã seguinte, enquanto Fred a levava até o cais, viu-se no meio de umamultidão reunida na cidade, discutindo o destino do Koombana em sussurrossilenciosos. Kitty decidiu segui-los até o alto da colina no final da DampierTerrace, onde os moradores olhavam para a baía de Roebuck.

– Não sabemos onde ele está, Sra. Mercer – disse o Sr. Rubin, outro mestremandaçarre. – O encarregado do telégrafo acha que as linhas de Derby foramderrubadas, e é por isso que não estão respondendo.

Teremos notícias em breve, tenho certeza.

Abaixo dela, o mar traiçoeiro agora parecia o reservatório de um moinho, e

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aqueles com binóculos informavam que não viam sinal de qualquer navio.

Alguns lugres também estavam desaparecidos, e, à medida que o calor do diaaumentava, mais amigos e parentes se juntavam à aglomeração

de pessoas no topo da colina. Kitty se viu levada pela multidão ao escritóriodo telégrafo para indagar o funcionário. Ele disse que continuava a enviarmensagens para o escritório de Derby, mas o silêncio era a única resposta.

Finalmente, ao pôr do sol, a multidão ficou silenciosa em frente à cabanaquando a máquina do telégrafo ganhou vida. Tudo que se podia ouvir era ozumbido de insetos no crepúsculo e o barulho da máquina.

O encarregado saiu da cabana, o rosto sombrio. Ele pendurou um aviso noquadro do lado de fora, em seguida recuou.

“O Koombana não está em Derby”, diziam as palavras na página com bordaspretas.

O chefe do porto, capitão Dalziel, requisitou todos os homens para sejuntarem à busca do navio, e Kitty ouviu Noel Donovan, gerente da MercerPearling Company, oferecendo a ajuda de suas embarcações. Ao chegar emcasa, sua mente parecia enevoada de terror e exaustão.

Camira a ajudou a deitar, alisando seus cabelos para trás da testa úmida.

– Eu fica com você, canta para dormir – acalmou-a Camira enquanto Kittysegurava firme sua mão, incapaz de expressar os terríveis pensamentos quepassavam por sua cabeça.

Nos dias que se seguiram, como não havia mais notícias, Kitty ouviaentorpecidamente todos aqueles que vinham à sua porta para atualizá-la sobrea situação. Edições do Northern Times se empilhavam em sua porta deentrada, já que ela se recusava a ler as manchetes.

Quase duas semanas depois, Kitty entrou na cozinha e perdeu o ar quando viu

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Camira chorando no ombro de Fred.

– O que houve?

– O Koombana, Sra. Kitty. Afunda. Todos perdidos. Todos se foram.

Kitty não conseguia se lembrar muito bem do resto daquele dia: talvez ochoque tivesse apagado sua memória. Ela mal se lembrava de Fred levando-ana charrete para o escritório do chefe do porto, onde uma multidão aosprantos estava reunida. O capitão Dalziel pediu silêncio e leu o telegrama daAdelaide Steamship Company:

“Com profundo pesar, a empresa anuncia que considera a descoberta dedestroços pelo S.S. Gorgon e S.S. Minderoo , identificados comopertencentes ao S.S. Koombana , evidência de que o Koombana se perdeucom todos a bordo nas proximidades da Bedout Island, durante o ciclone queatingiu a área nos dias 20 e 21 de março...”

Então leu a lista de passageiros para a plateia devastada.

... McSwain, Donald,

Mercer, Andrew,

Mercer, Drummond,

Mercer, Stefan...

Algumas espreguiçadeiras foram trazidas para que as mulheres pudessem sesentar. Muitos já haviam caído ao chão.

O Sr. Pigott fora um dos primeiros a desmoronar e chorava alto. Incapaz deprocessar quaisquer de seus próprios pensamentos ou sentimentos, Kitty, pelomenos, agradecia a Deus pela pequena misericórdia de não perder um filho.O Sr. Pigott tinha perdido a esposa e duas filhas.

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Após algum tempo, a multidão arrasada começou a voltar cambaleante paracasa para dizer aos familiares que não havia sobreviventes. O

capitão Dalziel mencionara que as pessoas mais próximas das vítimasestavam sendo contactadas por telegrama. Enquanto Fred a ajudava a subir nacharrete, Kitty pensou que a única pessoa a quem precisava contar era o filho.No entanto, ao chegar em casa, automaticamente pegou sua caneta-tinteiro eescreveu uma breve mensagem de solidariedade a Edith, entendendo que nãohavia palavras de conforto que pudesse dizer a uma mulher que perdera omarido e os dois filhos em uma reviravolta do destino. Ela pediu que Fredlevasse a mensagem ao escritório do telégrafo, depois foi para o quarto,fechou a porta e ficou sentada olhando para o vazio.

Andrew se foi.

Drummond se foi...

As palavras eram insignificantes. Kitty deitou-se completamente vestida nacama que compartilhara com ambos, fechou os olhos e dormiu.

– Charlie querido, preciso falar uma coisa com você.

– O que é, mamãe? Quando papai vai voltar para casa?

– Bem, Charlie, a questão é que papai não vai voltar. Pelo menos, não paranós.

– Então, aonde ele está indo?

– Seu pai, tio Drum e o vovô Mercer foram chamados para ficar com os anjosno céu.

Kitty sentiu as primeiras lágrimas arderem em seus olhos. Ainda não tinhaconseguido chorar desde que recebera a notícia, e agora sabia que não devia enão podia de forma alguma fazer isso na frente do filho.

– Eles são especiais, sabe, e Deus os queria lá com ele – acrescentou ela.

– Quer dizer, para estar com seus ancestrais? Com o resto dos espíritos deles?

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Mamãe – Charlie balançou um dedo –, Cat diz que quando alguém vai para océu, não devemos falar seu nome. – Ele levou o dedo aos lábios. – Shh.

– Charlie, não há problema algum em falarmos os nomes deles. E noslembrarmos deles.

– Cat diz que não é...

– Não quero saber o que Cat diz! – Toda a tensão reprimida de Kittytransbordou. – Eu sou sua mãe, Charlie, e você deve me ouvir!

– Sinto muito, mamãe. – O lábio inferior de Charlie tremeu. – Então elesforam para o céu? E nunca mais vamos vê-los?

– Infelizmente não, querido. Mas sempre nos lembraremos deles –

replicou Kitty mais gentilmente, sentindo-se péssima por gritar com ele

em um momento tão delicado. – E eles cuidarão de nós lá do céu.

– Posso visitá-los às vezes?

– Não, querido, ainda não, embora um dia você vá vê-los de novo.

– Talvez eles venham aqui. Cat diz que os ancestrais dela fazem isso às vezesem seus sonhos.

– Talvez, mas você e ela são diferentes, Charlie, e... – Kitty balançou acabeça. – Ah, não importa agora. Sinto muito, querido. – Ela pegou Charlie eo abraçou.

– Vou sentir falta deles... principalmente do tio Drum. Ele fazia umasbrincadeiras tão divertidas... – Charlie se afastou dela e colocou uma dasmãos no braço da mãe. – Eles ainda estão cuidando de nós. Cat diz...

Charlie se deteve e não falou mais nada.

– Talvez nós possamos ir para Adelaide ficar com a vovó Edith?

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Kitty tentou desesperadamente recuperar seu equilíbrio. Parecia que seu filhode 4 anos a estava reconfortando.

– Não. – Charlie franziu o nariz. – Gosto daqui com Cat e Camira. Elas são anossa família.

– Sim, meu menino corajoso. – Ela abriu um sorriso fraco. – São mesmo.

– Drummond se foi!

Kitty sentou-se de repente, aliviada por acordar de um terrível pesadelo.

Então, quando de fato despertou, percebeu que não era um pesadelo. Ou era,mas não um do tipo que se dissiparia quando recobrasse a consciência,porque Drummond nunca mais estaria consciente.

Ou Andrew. Pense um pouco em seu marido. Ele também está morto...

Ou talvez, pensou, fosse ela quem estava morta – tinha sido enviada aoinferno para sofrer pelo que fizera.

– Por favor, Senhor, não permita que seja verdade. Não pode ser...

Ela enterrou o rosto no travesseiro para abafar os soluços sem lágrimas deuma dor insuportável.

E Andrew? O que fizera para merecer sua traição? Ele a amava do único jeitoque conhecia. Era excitante? Não, mas isso importava? Alguma coisa aindaimportava?

– Nada importa, nada importa. Eu... – Kitty enfiou um pedaço de lençol naboca, percebendo que estava prestes a gritar. – Sou uma prostituta, umaJezebel! Igualzinha ao meu pai! Não posso viver com isso, não posso vivercomigo mesma! Ah, Deus!

Então pôs-se de pé, caminhando e balançando a cabeça de um lado paraoutro.

– Eu não consigo viver. Não consigo!

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– Sra. Kitty, vem aqui fora e caminha comigo.

Sua visão estava meio borrada com luzes roxas e vermelhas, e ela estavazonza, mas sentiu alguém passar o braço pelo seu ombro e guiá-la até a portada frente. E, em seguida, pelo jardim, o solo vermelho fresco que Fredespalhara parecendo úmido como sangue seco sob seus pés.

– Eu vou gritar, eu preciso gritar!

– Sra. Kitty, nós vamos caminhar, com a terra embaixo de nós, e vamos olharpara cima, vamos ver eles olhando para cá.

– Eu matei os dois, de maneiras diferentes. Deitei-me com um homem quenão era meu marido, mas seu irmão gêmeo. Eu o amava! Ah, Deus, eu oamava tanto... Eu ainda o amo...

Kitty caiu de joelhos na terra. Camira levantou gentilmente seu queixo.

– Entenda, você não faz destino. Eles fazem, lá em cima. – Camira apontou. –Sei que você ama aquele homem. Eu também ama. Mas nós não mata ele,Sra. Kitty. Coisas ruins acontecem. Vejo monte de coisas ruins. Eles teve boavida. Vida começa e termina. Ninguém muda isso.

– Ninguém pode mudar isso. – Kitty colocou a cabeça nos joelhos dela echorou. – Ninguém pode mudar isso...

Por fim, quando parecia que cada gota de líquido em seu corpo havia sidodrenada pelos seus olhos, Camira a ajudou a se levantar.

– Levo você, dorme agora, Sra. Kitty. O pequenino precisa de você amanhã.E dia depois disso.

– Sim, você tem razão, Camira, perdoe o meu comportamento. Eu só...

Kitty balançou a cabeça. Não havia mais palavras.

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– No grande deserto, nós uiva alto como quer para lua e estrelas. É bom, tiracoisas ruins. Então sente melhor.

Camira ajudou Kitty a se deitar, depois sentou-se ao lado dela segurando suamão.

– Não preocupa. Canto para eles irem para casa.

Quando Kitty fechou os olhos exaustos, ouviu a voz doce e aguda de Camiracantarolando uma melodia suave e monótona.

– Que Deus me perdoe pelo que fiz – murmurou, antes de ser dominada pelosono.

Ceci Broome, Austrália Ocidental Janeiro de 2008

19

Enxuguei as lágrimas dos olhos e me sentei, tentando acalmar o coração.

Pensei na tristeza que senti por Pa quando ele morreu e tentei multiplicar issopor todas as pessoas que Kitty havia perdido no Koombana. Todas as pessoasque aquela cidade tinha perdido...

Tirei os fones de ouvido e esfreguei as orelhas doloridas, depois fui abrir ajanela em busca de ar fresco. Tentei imaginar todos ali naquela cidadereunidos no alto da colina no final da Dampier Terrace, uma rua pela qual eupassara, todos esperando para ouvir a pior notícia de suas vidas.

Fechei a janela para bloquear o coral noturno da vida selvagem. Mesmo como ar-condicionado no máximo, ainda estava com calor e suada. Nãoconseguia nem pensar como Kitty tinha aguentado viver ali em Broome umséculo antes, principalmente usando espartilho, calçolas e sabe lá Deusquantas anáguas. Isso sem falar em dar à luz no calor – o que devia ser oprocesso que mais provocava suor em uma pessoa.

Mesmo que eu não tivesse pensado muito na relação que podia ter com Kittyantes de chegar ali, agora havia uma parte de mim que adoraria ter algumparentesco com ela. Não só por causa de sua coragem de ir para a Austrália,

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para início de conversa, mas também pela maneira como lidou com o queencontrou lá quando chegou. As experiências dela faziam meus própriosproblemas parecerem insignificantes. Fazer o que ela fez na Broome de cemanos atrás exigia muita coragem. E ela seguiu seu coração, aonde quer queisso a tenha levado.

Ao olhar para a foto na capa do CD, eu não conseguia imaginar que pudesseser parente dela, mesmo que a advogada tivesse me dito que era dela quevinha originalmente a minha herança. Era muito mais provável que eu fosseparente da empregada, Camira. Principalmente porque sua filha, Alkina, tinhaos olhos do pai, que era japonês. E pareciam com os meus.

Camira e sua filha eram dali – um dia já haviam passado pela estrada à minhafrente. No dia seguinte, eu tentaria descobrir mais. Quando me deitei, penseiem como aquela pequena cidade tranquila ganhara vida para mim ao ouvir ahistória de Kitty. Um dia, quando ela morara ali, o lugar fervilhava de gente.Eu queria ver as coisas que ela tinha visto, embora não soubesse quantopoderia ter deixado fora do livro.

Cedo na manhã seguinte, acordei com o telefone tocando. Era a recepcionistado hotel.

– Srta. D’Aplièse? Há um homem à sua espera no saguão. Ele diz que é dojornal The Australian .

– Certo, ahn... obrigada. Diga a ele que desço em cinco minutos.

Minha mão tremia quando desliguei o aparelho. A imprensa tinha meencontrado. Então, sabendo que não havia um momento a perder, pulei dacama, me vesti depressa, joguei o resto das minhas coisas na mochila e acoloquei nas costas. Calculei os dólares que devia pela minha estadia edeixei-os com a chave na mesa de cabeceira ao lado da cama, assim não seriapresa por não pagar a conta. Em seguida, corri até a saída de emergência queeu notara na noite anterior, quando vi alguém fumando ali. Empurrei a barrada porta, que, para meu alívio, abriu sem disparar nenhum alarme. Vi, então,alguns degraus de ferro que levavam até um quintal na parte de trás do hotel.

Desci correndo por eles o mais silenciosamente que pude com minhas

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pesadas botas. O muro do quintal era baixo, então joguei minha mochila porcima e pulei logo depois. Alguns quintais à frente, saí na rua do outro lado.

Ok, o que eu faço agora?

Liguei para Chrissie, que atendeu após o primeiro toque.

– Onde você está? – perguntei, ainda ofegante.

– No aeroporto, trabalhando. O que houve?

– É fácil reservar um voo para fora daqui?

– Não é difícil se você trabalha no balcão de informações turísticas em frenteao balcão de vendas da companhia aérea. Aonde você quer ir?

– Alice Springs. Qual é a melhor maneira de chegar lá?

– Você vai ter que pegar um voo até Darwin, e fazer uma conexão para Alice.

– Você consegue um lugar para mim nesses voos hoje?

– Sei que tem um voo daqui para Darwin em umas duas horas mais oumenos. Vou perguntar ao pessoal se ainda tem lugar.

– Se tiver, reserve para mim. Estarei aí assim que arrumar um táxi.

– Vou mandar um para você agora. Vá até as estátuas de bronze no final daestrada. Ele chegará em dez minutos.

– Obrigada, Chrissie.

– De nada.

No aeroporto, Chrissie estava junto às portas de entrada esperando por mim.

– Você pode me contar o que está acontecendo depois que confirmarmos suasreservas – disse ela, passando o braço pelo meu e me levando ao check- in daQantas. – Este é meu amigo, Zab. – Chrissie indicou o cara atrás do balcão. –

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As reservas já estão feitas. Você só precisa pagar.

Peguei meu cartão de crédito e o coloquei no balcão. Zab recebeu opagamento, então me entregou minhas passagens e um recibo.

– Muitíssimo obrigada, Chrissie.

– Vou passar pela segurança com você – disse ela. – Podemos nos sentar

no café e então você me conta tudo sobre a Tailândia.

Merda! Então Chrissie também sabia, o que dificilmente era uma surpresa, jáque seu balcão ficava de frente para um jornaleiro. Ela provavelmente passaradias ali vendo meu rosto na capa de todos os tabloides. Ainda assim, nuncadissera uma palavra.

Passamos pela segurança juntas e fomos até um pequeno café. Chrissievoltou de lá com duas garrafas de água e dois sanduíches. Eu escolhera umlugar de frente para uma parede no canto, em todo caso.

– Então, por que você precisa ir embora tão rápido?

– Um repórter do The Australian apareceu no hotel esta manhã. Vocêprovavelmente sabe por que ele queria me entrevistar.

Olhei para ela.

– Sim, eu sei. Reconheci você assim que passou pelo balcão. E...?

– Conheci esse cara em uma praia na Tailândia e passei um tempo com ele.

Acontece que ele é procurado por algum tipo de fraude bancária.

– Anand Changrok?

– Ou Ace, como eu o conheci.

Então contei a Chrissie a história de como o conhecera.

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– Como ele era? – perguntou ela quando terminei.

– Incrível. Ele me ajudou quando precisei.

– Vocês dois ficaram juntos?

– Sim, eu realmente gostei dele, e, mesmo que não tivesse gostado, nuncateria feito algo tão baixo assim. Ainda que eu soubesse quem ele era.

– Sei que não, Ci. – Os olhos de Chrissie mostravam solidariedade, e nãodesconfiança. – Então ele pensa que foi você quem contou aos jornais.

– Ele me mandou uma mensagem dizendo que tinha pensado que podiaconfiar em mim. Fiquei péssima, ainda estou, mas ele nunca acreditaria naminha versão, mesmo que eu pudesse explicar. Acho que teve um cara, Jay,que subornou nosso segurança para conseguir uma foto, e eu lhe dei aoportunidade perfeita.

– Você poderia escrever para ele na prisão.

– Eu não conseguiria escrever bem o suficiente para o que precisaria dizer.

– Abri um fraco sorriso. – Sou disléxica, lembra?

– Eu poderia escrever para você.

– Talvez. Obrigada.

– Você acha que ele fez isso?

– Como eu poderia saber? O resto do mundo parece pensar assim. Não sei,Chrissie, tem algo que não bate. Pequenas coisas que ele me disse... É

só um instinto, mas acho que há mais coisa nessa história do que ele estácontando.

– Talvez você devesse tentar descobrir o que é.

– Como eu conseguiria fazer isso? Não sou detetive e não sei nada sobre

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bancos.

– Você é inteligente, vai encontrar um jeito – disse ela com um sorriso.

Então corei, por alguém ter me achado inteligente.

– De qualquer forma, vou me concentrar em descobrir mais sobre minhafamília.

– Ei, se precisar de uma colega detetive para ajudá-la em Alice, estou aqui–sugeriu Chrissie de repente. – Tenho uns dias de férias para tirar e essa épocaé meio parada aqui, então que tal eu me encontrar com você lá?

– Sério? Quer dizer, não quero tomar seu tempo, mas, se você conseguir,seria incrível contar com sua ajuda – falei, sinceramente entusiasmada com aideia. – Você viu como não sei nada sobre as coisas aqui na Austrália.

– Que isso, você só precisa de alguém que lhe dê umas dicas. Vai ser ótimo, eeu sempre quis ir a Alice. – Chrissie olhou para o quadro de embarque. –Hora de ir.

– Odeio aviões – comentei, nervosa, enquanto ela caminhava comigo até oportão.

– Sério? Eu sempre quis ver o resto do mundo. Vou lhe mandar umamensagem quando tiver certeza de que poderei encontrá-la. – Ela meabraçou.

– Boa viagem.

– Obrigada por tudo.

Ao entrar no avião, senti-me perdida de repente, porque tinha conseguido metornar amiga de Chrissie. Só precisava tomar cuidado para não estragar tudocomo acontecera com Ace.

Quando o avião começou a descer em Alice Springs, vi uma mudançamarcante na paisagem lá embaixo. Do céu, parecia um oásis verde no deserto– o que suponho que era –, mas com uma cor bem mais intensa.

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Vi uma cadeia de montanhas que cintilava em tom de roxo sob a luznebulosa, os cumes irregulares como um conjunto maciço de dentesdespontando do chão. O avião parou rápida e bruscamente na pista curta enós, passageiros, descemos a escada até o asfalto.

– Uau! – murmurei ao ser atingida por uma onda causticante de calor, queprovavelmente poderia acender um fósforo só de segurá-lo no ar.

Minhas narinas arderam quando respirei e fiquei feliz de entrar no terminalcom ar- condicionado.

O aeroporto não era muito maior do que o de Broome, mas estava cheio deturistas. Depois de comprar uma garrafa de água e pegar alguns folhetos dehotéis e lugares interessantes, sentei-me numa cadeira de plástico para tentarlê-los antes de decidir onde ficar. Percebi que havia tantos turistas ali porqueAlice Springs era a porta de entrada para Ayers Rock – ou Uluru, comoChrissie disse que era chamado pelo povo aborígine: o folheto informava queera um de seus locais mais sagrados e ficava a “apenas” seis horas de carrodali.

Então li sobre Alice Springs, ou Alice, como era carinhosamente chamada.

A arte indígena era, obviamente, muito importante ali. Havia várias galeriasdentro e fora da cidade, que iam desde o Many Hands Centre, dirigido porartistas aborígines, até o Araluen Art Center – tão moderno que parecia umaespaçonave caída no meio do deserto.

Senti outro tremor de ansiedade e um instinto me disse que, se fosseencontrar respostas em algum lugar, haveria de ser ali.

– Minha kantri – murmurei, lembrando-me da avó de Chrissie dizendo apalavra.

Então abri o folheto sobre a Missão Hermannsburg e fiquei sabendo queagora era um museu e ficava a algumas boas horas de carro da cidade.

Albert Namatjira nascera lá. Eu nunca nem tinha ouvido falar sobre ele até odia anterior, mas via pelos folhetos que seu nome era usado em galerias, ruas

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e edifícios por ali. Tentei ler mais, mas as palavras dançavam na página,sobretudo porque havia um monte de nomes aborígines.

Lembrei, então, que devia ligar de novo o celular, e ouvi duas mensagenschegando. Eram de Chrissie: Oi! Arrumei um hotel pra vc... Basta perguntarpor Keith no balcão de informações turísticas do aeroporto de Alice Springs eele vai te dar os detalhes! Bjs, C

Acabei de falar com a Qantas. Eles vão me dar uma viagem de graça comopresente por todos os voos que arranjei para os turistas. MUITO

ANIMADA!!! Chego amanhã de tarde. A gente se vê!! Bjs Fiquei espantadaao ver como aquela garota que eu mal conhecia estava se dando o trabalho devoar centenas de quilômetros para me encontrar. E, mesmo que eu nuncadescobrisse quem era minha família, vir para a Austrália já tinha valido apena, porque conhecera Chrissie.

Atravessei o saguão até o balcão de informações turísticas, onde havia umhomem alto e sardento, com cabelo louro até os ombros, sentado diante deum computador.

– Oi, você é o Keith? – perguntei.

– Sim, quem quer saber?

– Acho que minha amiga Chrissie, de Broome, falou com você mais cedo...

Ela disse que você tem uma reserva de hotel para mim?

– Ah, a amiga da Chrissie, Ceci! Consegui uma oferta especial para você.

Aqui está. – Ele me entregou o papel de reserva. – Pegue um táxi paraLeichhardt Terrace, ao lado do rio Todd.

– Obrigada pela ajuda.

– Se é amiga de Chrissie é minha amiga... – disse ele com um sorrisosimpático. – Tenha um bom dia!

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No táxi, pensei, admirada, no jeito como Chrissie lidava com todos. Elaparecia totalmente à vontade consigo mesma, com quem ela era.

Pela graça de Deus, sou o que sou...

Pela primeira vez, a citação de Pa Salt na esfera armilar começou a fazer

sentido, porque era assim que eu queria ser também.

Meia hora depois, eu estava instalada em um quarto que pelo menos tinha umchuveiro decente e uma chaleira. Olhei pela janela esperando ver um rio,como Keith tinha dito, mas fiquei surpresa ao encontrar apenas um leito derio seco e arenoso com algumas árvores nodosas em volta. De repente me deiconta de que estava no meio do deserto.

Estava anoitecendo quando resolvi sair um pouco, e percebi que o ar cheiravadiferente ali – seco e perfumado, em vez da densa umidade de Broome.Caminhei por uma ponte que atravessava o leito do rio Todd e comi sozinhauma pizza em um restaurante cheio de famílias, rindo e conversando.

Sentia falta de Chrissie e estava muito feliz em saber que ela se juntaria amim no dia seguinte.

Voltei para o hotel e vi um jornal em uma mesinha de centro na recepção.

Vi que era o Times inglês do dia anterior e me perguntei se havia maisalguma novidade sobre o caso de Ace. A história fora rebaixada a umamanchete muito menor na primeira página: CHANGROK SE DECLARACULPADO PELA FRAUDE

Havia uma fotografia de Ace – ou pelo menos de suas costas – entrando notribunal, cercado por uma multidão irritada. Eu poderia ler a “históriacompleta na página 7”, então levei o jornal para o quarto e tentei decifrar aspalavras.

Anand Changrok compareceu ao tribunal Woolwich Crown hoje, acusado defraude. Parecendo magro e abatido, o Sr. Changrok se declarou culpado detodas as acusações. O juiz não concedeu fiança, e o Sr. Changrok está detido

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sob custódia até o julgamento, que deverá ocorrer em maio. Fora dotribunal, centenas de clientes do Berners Bank atiraram ovos nele, acenandocartazes em que exigiam que suas perdas sejam compensadas.

O diretor executivo do Berners, Sr. David Rutter, procurou tranquilizá-los.

“Estamos cientes da triste e difícil situação em que nossos clientes seencontram. Continuamos a fazer tudo ao nosso alcance para compensar osafetados.”

Perguntado sobre como o Sr. Changrok conseguira encobrir as perdas portanto tempo e sua subsequente alegação de culpa hoje, o Sr. Rutter serecusou a comentar.

Então me deitei e acabei tendo um sono agitado, imaginando Ace encolhidoem um colchão fino de prisão.

Acordei com um susto ao som do telefone tocando, e atendi atordoada.

– Alô?

– Ci!

– Chrissie?

– Sim, estou aqui! Vamos, dorminhoca, já são três e meia da tarde!

Estarei aí em cima em um segundo.

Ouvi um clique quando ela desligou e rolei da cama para me vestir.

Poucos minutos depois, eu a ouvi colocar a chave na fechadura e a porta

se abriu.

– Oi, querida. Que bom ver você.

Chrissie cumprimentou-me com um sorriso alegre e deixou cair a mochila naoutra cama.

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– Tudo bem dividir o quarto comigo? Keith disse que não há nenhum outrodisponível.

– Sem problema, eu tive que dividir um quarto com minha irmã a vidainteira.

– Você tem sorte. Tive que dividir com meus dois irmãos. – Chrissie riu efranziu o nariz. – Sempre fedia a garoto, sabe?

– Tenho cinco irmãs, lembra? Nosso corredor fedia a perfume.

– Isso é quase tão ruim quanto – retrucou ela com um sorriso. – Aqui, trouxeum lanchinho.

Ela me entregou uma caixa plástica dentro da qual havia quadrados de boloscobertos de chocolate e coco ralado. O cheiro era incrível.

– Vá em frente – insistiu ela. – São lamingtons, eu mesma fiz. Coma umagora de café da manhã e vamos sair para explorar.

Com minha boca cheia daquele bolo delicioso, saímos para o caloravassalador do fim de tarde, que queimava minha cabeça. Pelo mapa, pareciafácil andar por Alice Springs, por ser tão pequena. Caminhamos pela ToddStreet, onde vimos galerias de arte de um andar, salões de beleza e cafés comcadeiras sob as palmeiras. Paramos para comer e beber em um deles, e noteiuma enorme pintura feita com pontilhismo pendurada na janela da galeria emfrente.

– Uau! Veja isso, Chrissie! São as Sete Irmãs!

– Elas são muito conhecidas por aqui – disse ela com um sorriso. –

Melhor não mencionar que você tem o nome de uma delas ou os moradoresdaqui vão construir um santuário ao seu redor!

Por insistência de Chrissie, experimentei meu primeiro prato de carne decanguru, pensando que Tiggy nunca me perdoaria se um dia descobrisse.

Quando criança, ela era louca pelo Guru, das histórias do Ursinho Pooh que

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Pa costumava nos contar, e foi por volta dessa época que decidiu se tornarvegetariana.

– O que você achou do canguru? – perguntou Chrissie, me cutucando.

– É bom, parece carne de veado. Não são uma espécie em extinção?

– Céus, não! Há milhares deles pulando por toda a Austrália.

– Nunca vi um.

– Com certeza você vai vê-los por aí, há muitos no Outback. Então, já teve achance de descobrir mais sobre Albert Namatjira?

Chrissie olhou para mim, os olhos brilhando de expectativa.

– Não, só cheguei aqui ontem, lembra? E realmente não sei por ondecomeçar.

– Bem, imagino que em uma viagem à Missão Hermannsburg amanhã.

Mas fica a alguns quilômetros da cidade, então teremos que ir de carro.

– Eu não sei dirigir – disse.

– Eu dirijo, desde que seja câmbio automático. Se você tiver dinheiro paracontratar o transporte, serei sua motorista. Combinado?

– Combinado. Obrigada, Chrissie – falei, agradecida.

– Sabe, se você for mesmo parente do Namatjira, vão definitivamente fazerum santuário para você por aqui, e eu vou ajudá-los! Mal posso esperar paraver seu trabalho, Ci. Você devia comprar umas telas e pincéis enquanto estáaqui, pintar a paisagem, como fez Namatjira.

– Talvez, mas só tenho feito porcaria nos últimos seis meses.

– Deixa disso, Ci. Ninguém entra para uma das melhores faculdades de artesde Londres pintando só porcaria – retrucou Chrissie, espetando o último

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pedaço de seu canguru.

– Bem, as pinturas que fiz na faculdade eram. Os professores bagunçaramcom a minha cabeça de alguma forma. Agora não sei bem o que devo pintar.

– Entendi. – Chrissie colocou sua mão quente sobre a minha. – Talvez vocêprecise saber quem é antes de descobrir o que quer pintar.

Após nossa refeição, Chrissie balançou um folheto turístico na minha cara.

– Que tal subirmos o monte Anzac? – sugeriu ela. – É uma curta caminhada,e dizem que tem a melhor vista de Alice Springs e do pôr do sol.

Eu não contei a ela que já tinha visto minha cota de pores do sol naquelaviagem. Sua energia era contagiante, então saímos para o calor e começamosa escalar a colina em um ritmo tranquilo.

No alto, fotógrafos já se preparavam com tripés prontos para capturar o pôrdo sol, e encontramos um local tranquilo voltado para o oeste para sentar.

Fiquei vendo Chrissie assistir ao pôr do sol, sua expressão de alegriaenquanto tons suaves de roxo e dourado coloriam seu rosto. Lá embaixo,Alice Springs se iluminava com as cintilantes luzes da rua, e o sol se punhaatrás das montanhas, deixando apenas uma linha vermelho-escura emcontraste com o céu índigo.

Depois de uma parada rápida na cidade para uma Coca-Cola, voltamos aohotel e Chrissie me deixou tomar banho primeiro. Enquanto sentia a água frialavar a pele suada, virei o rosto para cima e sorri. Era ótimo ter Chrissiecomigo. Ela era tão animada! Enrolei uma toalha em volta do corpo ecaminhei para o quarto e fiquei espantada. De alguma forma, nos dez minutosdesde que eu saíra, a perna direita de Chrissie parecia ter caído, deixando-acom apenas uma parte que ia até pouco abaixo do joelho. O restante da pernaestava a alguns centímetros dela.

– Sim, eu tenho uma perna falsa – disse ela, casualmente, enquanto eu olhavaboquiaberta.

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– Como? Quando?

– Desde que eu tinha 15 anos. Fiquei muito mal uma noite, mas minha

mãe não confiava no médico branco, então só me deu uns dois comprimidosde paracetamol para a febre. Na manhã seguinte, ela me encontrouinconsciente na cama. Não me lembro de nada, mas fui levada de avião paraDarwin pelo Serviço Médico Aéreo e diagnosticada com meningite nohospital. Era tarde demais para salvar a perna porque a septicemia haviacomeçado a se instalar, mas pelo menos saí com vida.

Acho que foi uma troca e tanto, não é?

– Eu... Sim, se você vir as coisas dessa maneira – concordei, ainda emchoque.

– Não adianta ver de outra maneira, não é? E eu ando muito bem. Você nempercebeu.

– Verdade, mas eu me perguntava por que você sempre estava de calça jeansenquanto eu, só de bermuda, já suo como uma porca.

– A única coisa ruim é que eu costumava ser a melhor nadadora da AustráliaOcidental. Ganhei os campeonatos juniores algumas vezes e ia tentar entrarpara a equipe olímpica de 2000 em Sydney. Eu e Cathy Freeman mostrandoao mundo o que nós, aborígines, podemos fazer. –

Chrissie abriu um sorriso discreto. – De qualquer forma, isso é passado –

disse ela, enquanto se levantava sem vacilar, como se tivesse plantado os doispés firmemente no chão para sustentar seu peso. – Certo, minha vez de tomarbanho.

Ela usou habilmente os braços fortes para agarrar-se à mobília e deu impulsoem direção ao banheiro, fechando a porta em seguida.

Afundei-me na cama, sentindo como se minhas pernas tivessem virado poçasde mingau. Minha mente e meu coração estavam em disparada com ummilhão de pensamentos e batidas por segundo, enquanto eu experimentava

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uma série de emoções: culpa, por um dia ter sentido pena de mim quando nãosó era incrivelmente privilegiada, mas também fisicamente perfeita; raiva poraquela mulher não ter recebido os cuidados médicos imediatos de queprecisava; e, acima de tudo, admiração pela maneira como Chrissie aceitaraseu destino e por sua coragem e bravura em seguir em frente com a vida,quando poderia ter passado o restante dela sentindo pena de si mesma. Comoeu fizera recentemente...

A porta do banheiro se abriu e Chrissie, envolta em uma toalha, voltou semesforço para a cama e revirou sua bolsa atrás de uma calça e uma camiseta.

– O que foi? – Ela se virou e viu meus olhos fixos nela. – Por que você estáolhando assim para mim?

– Só quero dizer que acho você incrível. A maneira como você superou...

isso.

Apontei hesitantemente para o membro faltante.

– Eu só nunca quis que isso me definisse, sabe? Não queria que a parteausente fosse quem eu era. Veja bem, houve alguns benefícios.

Ela riu enquanto subia na cama.

– Como o quê?

– Quando fui tentar a faculdade, recebi um monte de ofertas.

– Você provavelmente as mereceu.

– Quer merecesse ou não, eu pude escolher. Um aborígine deficiente podemarcar dois quadradinhos nos formulários de cota do governo. Asuniversidades estavam me disputando.

– Isso soa seriamente cínico – falei enquanto também me deitava.

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– Talvez, mas fui eu quem teve a oportunidade de ter acesso a uma ótimaeducação, e aproveitei ao máximo. Então quem venceu? – perguntou ela,estendendo a mão para apagar a luz da cabeceira.

– Você – respondi.

Você... com toda a sua positividade, força e entusiasmo pela vida.

Deitei-me na escuridão, sentindo sua energia estranha, mas familiar, a poucosmetros.

– Boa noite, Ci – disse ela. – Fico feliz por estar aqui.

Eu sorri.

– Também fico.

20

Você vai acordar ou não?

– Senti a respiração de alguém no meu rosto e esforcei-me para voltar àconsciência em meio ao meu torpor rotineiro de dormir até tarde.

– Minha nossa, Ci, já desperdiçamos metade da manhã!

– Ah, me desculpe. – Abri os olhos e vi Chrissie sentada na cama em frente àminha, uma ligeira irritação no rosto. – Sou dorminhoca por natureza.

– Bem, nas últimas três horas, tomei café da manhã, passeei pela cidade ealuguei um carro que você precisa pagar na recepção. Precisamos partir paraHermannsburg tipo agora.

– Tudo bem, me desculpe novamente.

Afastei o lençol e levantei cambaleante. Chrissie me observava comcuriosidade enquanto eu vestia a bermuda e procurava uma camisa limpa namochila.

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– O que houve? – perguntei enquanto seus olhos me seguiam até o espelho,onde passei a mão pelo cabelo.

– Você costuma ter pesadelos? – questionou ela.

– Sim, às vezes. Minha irmã me disse que sim, pelo menos – respondicasualmente. – Desculpe se a incomodei.

– Você não se lembra deles?

– De alguns, sim. Agora – falei, enfiando a carteira no bolso –, vamos paraHermannsburg.

Quando saímos da cidade para uma estrada larga e reta cercada por terravermelha dos dois lados, o sol brilhava intensamente sobre nosso pequenocarro. Fiquei espantada por não derreter com o calor que estava -

suportando.

– Como se chamam? – perguntei, apontando para as montanhas irregulares adistância.

– Cordilheira MacDonnell – respondeu Chrissie sem titubear. – Namatjira fezvárias pinturas delas.

– Elas parecem roxas.

– Foi dessa cor que ele as pintou.

– Ah, certo. – Então me perguntei se algum dia poderia pintar umarepresentação realista do que via no mundo. – Como alguém conseguesobreviver aqui? – ponderei, olhando pela janela para a vasta paisagemaberta. – Não há nada por quilômetros e quilômetros.

– Eles se adaptam, simples assim. Você já leu Darwin?

– Se eu já li? Pensei que Darwin fosse uma cidade.

– É, sua tonta, mas um cara chamado Darwin também escreveu livros... O

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mais famoso é A origem das espécies. Ele fala sobre como todas as plantas,animais e humanos se adaptaram ao meio ambiente ao longo de milênios,entendeu?

Virei-me para olhar Chrissie.

– Você é uma intelectual disfarçada, não é?

– Não. – Chrissie balançou a cabeça com firmeza. – Só me interesso em sabercomo surgimos, apenas isso. Você não?

– Sim, é por isso que estou aqui na Austrália.

– Não falo sobre nossas famílias. Quero dizer, como realmente surgimos.

E por quê.

– Você parece minha irmã Tiggy. Ela fala como se tivesse um conhecimentosuperior.

– Eu gostaria de conhecer sua irmã. Ela parece legal. O que ela faz?

– Ela trabalha na Escócia em um santuário de veados.

– Parece ser algo que vale a pena.

– É o que ela pensa.

– Faz bem para a alma ser responsável por algo ou alguém. Quando nossosgarotos aborígines têm a sua iniciação, eles são circuncisados e recebem umapedra chamada tjurunga, e nela há uma marcação especial mostrando a eles oque precisam procurar no bush. Pode ser um buraco de água ou uma cavernasagrada, ou talvez uma planta ou um animal.

Seja lá o que for, é sua responsabilidade proteger e cuidar disso.

Costumava haver uma cadeia humana por todo o caminho através do Outbackque tinha a responsabilidade de cuidar das necessidades de todos. O sistemamantinha nossas tribos vivas enquanto cruzavam o deserto.

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– Isso parece incrível – falei com um suspiro. – Tradições que realmente têmum motivo. Então, só os garotos ganham uma dessas tju...

– Pedras tjurunga. Sim, só os homens recebem... Mulheres e crianças nãopodem tocá-las.

– Isso é um pouco injusto.

– É – disse ela, dando de ombros –, mas nós, mulheres, temos nossas própriastradições sagradas também, que mantemos separadas dos homens.

Minha avó me levou ao bush quando eu tinha 13 anos, e não estou brincando,eu estava morrendo de medo, mas na verdade foi muito legal.

Aprendi algumas coisas úteis, tipo como usar meu bastão de escavar paraencontrar água ou insetos, quais plantas são comestíveis e como usá-las. E,quando voltei, podia ouvir alguém espirrar no final da rua e dizer exatamentequem era. Lá, nós tínhamos que ficar atentas ao perigo ou ao barulho de águapor perto ou às vozes a distância que nos guiariam de volta para a nossafamília.

– Parece incrível. Sempre adorei esse tipo de coisa.

– Olha! – gritou Chrissie de repente. – Um bando de cangurus!

Chrissie levou o carro para a beira empoeirada da estrada e pisou fundo

no freio, e nossas cabeças bateram no apoio do banco.

– Desculpe, não queria que você perdesse. Trouxe a câmera?

– Sim.

Os cangurus eram muito maiores do que eu esperava, e Chrissie meencorajou a fazer poses tolas na frente deles. Enquanto caminhávamos devolta para o carro, espantando as intermináveis moscas que examinavamnossa pele, não pude deixar de me lembrar da última vez que usara a câmerae do que acontecera com o rolo de filme dentro dela.

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Em pé no meio do nada, com um monte de cangurus e Chrissie, a Tailândiaparecia a um mundo de distância.

– Quanto falta agora? – perguntei quando partimos novamente.

– Quarenta minutos no máximo, eu acho.

E levamos pelo menos isso antes de finalmente sairmos de uma trilhaempoeirada e vermos algumas construções caiadas de branco. Havia umaplaca de madeira pintada à mão nos dizendo que tínhamos chegado à MissãoHermannsburg.

Ao descermos, vi que nós – e os ocupantes de uma caminhonete estacionadaperto da entrada – éramos os únicos humanos que haviam chegado de carro.Não fiquei surpresa. O pequeno agrupamento de cabanas era cercado porquilômetros e quilômetros de nada, como a superfície de Marte. Notei que olugar estava quase completamente em silêncio, sem nem o sussurro da brisa,só o zumbido ocasional de insetos. Até eu, que gostava de paz e espaçosabertos, me senti isolada ali.

Caminhamos até lá e entramos no bangalô com telhado de metal, nossosolhos ajustando-se lentamente após a luz ofuscante do sol.

– Bom dia – disse Chrissie ao homem parado atrás do balcão.

– Bom dia. Só vocês duas?

– Sim.

– São 9 dólares cada.

– Está tranquilo aqui hoje – comentou Chrissie enquanto eu pagava.

– Não recebemos muitos turistas aqui nesse calor nesta época do ano.

– Aposto que não. Esta é minha amiga Celeno. Ela tem uma foto que gostariade lhe mostrar.

Chrissie me cutucou, então peguei a foto e entreguei ao homem. Ele deu uma

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olhada, então me observou atentamente.

– Namatjira. Como foi que a senhorita conseguiu esta foto?

– Foi enviada para mim.

– Por quem?

– Um escritório de advogados em Adelaide. Eles estão tentando rastrear oremetente original porque estou procurando minha família biológica.

– Entendo. Então, o que a senhorita quer saber?

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– Não tenho certeza – falei, sentindo-me como se fosse uma impostora oualgo assim. Talvez o cara recebesse possíveis “parentes” de Namatjira alitodos os dias.

– Ela foi adotada quando era bebê – esclareceu Chrissie.

– Certo.

– Meu pai morreu alguns meses atrás, e me contou que tinham deixado umdinheiro para mim – expliquei. – Quando fui falar com seu advogado suíço,esta fotografia estava no envelope que ele me deu. Resolvi, então, vir àAustrália e descobrir quem me enviou a foto. Falei com a advogada emAdelaide, mas eu não tinha ideia de quem era Namatjira, nunca tinha ouvidofalar dele antes e...

Continuei falando de modo desconexo até Chrissie colocar a mão no meubraço e assumir o controle: – Ceci basicamente veio aqui porque eu reconheciNamatjira na foto. Ela acha que pode ser uma pista da identidade de seuspais.

O homem observou a fotografia novamente.

– Com certeza é Namatjira, e eu diria que a foto foi tirada em Heavitree Gap,por volta de meados da década de 1940, quando Albert comprou suacaminhonete. Mas não sei quem é o menino ao lado dele.

– Bem, por que eu e Ci não damos uma olhada no lugar? – sugeriu Chrissie. –Talvez o senhor se lembre de alguma coisa. Tem arquivos aqui?

– Temos livros de registro de todos os bebês que nasceram aqui ou foramtrazidos para a missão. E uma caixa cheia de fotos em preto e branco comoessa. – O homem apontou para a minha. – Mas eu levaria dias para ver tudo.

– Sem pressão, senhor. Só vamos dar uma olhada.

Chrissie me guiou por uma pilha de cartões-postais e uma geladeira cheia debebidas até a placa que indicava a entrada do museu. Passamos por outrocaminho empoeirado e nos vimos em um grande espaço aberto, cercado por

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cabanas brancas que formavam uma espécie de L.

– Certo, vamos começar pela capela. – Chrissie apontou para o prédio.

Atravessamos a terra vermelha e entramos na pequena capela com bancosfrágeis e uma grande imagem de Cristo na cruz pendurada sobre o púlpito.

– Então esse cara chamado Carl Strehlow criou esta missão para tentar fazercom que os aborígines se convertessem ao cristianismo – Chrissie leu naplaca. – Ele chegou da Alemanha com a família em 1894. Começou comouma missão cristã normal, mas então ele e o pastor seguinte ficaramfascinados pela cultura e as tradições locais dos arrerntes –

continuou Chrissie, enquanto eu observava os rostos de pele escura nas fotos,todos vestidos de branco.

– Quem são os arrerntes?

– O povo aborígine local.

– Eles ainda moram aqui? – perguntei.

– Sim, na verdade diz aqui que em 1982 a terra foi oficialmente devolvida aeles, então Hermannsburg agora pertence aos proprietários tradicionais.

– Isso é bom, não é?

– Sim, é fantástico. Venha, vamos ver o restante.

Encontramos um prédio longo com telhado de metal, que descobri ser umaescola, e ainda podíamos ver palavras e imagens rabiscadas no quadro-negro.

– Também diz aqui que nenhum aborígine mestiço jamais foi trazido à forçaa Hermannsburg pelo protetorado. Todo mundo vinha e ia por vontadeprópria.

– Mas eles tiveram realmente que se tornar cristãos?

– Todos tinham que assistir às cerimônias e às leituras da Bíblia, mas parece

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que os pastores faziam vista grossa para quem quisesse celebrar sua própriacultura.

– Então, na verdade, eles acreditavam, ou fingiam acreditar, em duasreligiões diferentes?

– Sim. Um pouco como eu – disse Chrissie, sorrindo. – E todo o resto donosso povo na Austrália. Venha, vamos dar uma espiada na cabana deNamatjira.

A cabana era composta por alguns cômodos simples de concreto, e eureconheci o rosto de Namatjira em uma foto na lareira. Era um homemgrande com feições fortes e marcantes, que sorria estreitando os olhos para aluz do sol, ao lado de uma mulher que parecia tímida com um lenço nacabeça.

– Albert e Rosie – li. – Quem era Rosie?

– A esposa dele. Seu nome verdadeiro era Rubina. Eles tiveram nove filhos,mas quatro deles morreram antes de Albert.

– Não posso acreditar que eles precisavam acender algum fogo com essecalor – falei, apontando para a lareira na foto.

– Confie em mim, faz muito frio à noite no Never Never.

Uma pintura na parede me chamou a atenção e fui analisá-la.

– É do próprio Namatjira? – perguntei a Chrissie.

– Diz aí que sim.

Eu olhava para a pintura, fascinada, pois, em vez de parecer uma típicapintura aborígine, era uma linda paisagem em aquarela com um eucaliptobranco de um lado, então cores magnificamente suaves retratando a vista,tendo ao fundo a arroxeada cordilheira MacDonnell. A obra me fazia lembraruma pintura impressionista, e me perguntei como e onde aquele homem quetinha crescido no meio do nada – aborígine por nascimento, cristão na vida –encontrara seu próprio estilo.

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– Não é o que você esperava? – Chrissie estava ao meu lado.

– Não, porque a maior parte da arte aborígine que vimos na cidade erampontilhismos tradicionais.

– Namatjira aprendeu com um pintor branco chamado Rex Battarbee, que foiinfluenciado pelos impressionistas e veio para cá pintar a paisagem. Albertaprendeu a pintar aquarelas com ele.

– Uau, estou impressionada. Você sabe das coisas, não é?

– Só quando me interesso. Eu falei que arte, especialmente Namatjira, sãominhas paixões.

Enquanto saía da cabana atrás dela, pensei como a arte também fora minhapaixão, mas se perdera em algum ponto do caminho nos últimos tempos. E

percebi como queria isso de volta.

– Preciso ir ao banheiro – anunciei quando voltamos para o sol abrasador.

– É por ali – disse Chrissie, indicando.

Atravessei o pátio naquela direção e vi uma placa ilustrada pendurada naporta: cobras gostam de água! mantenha a tampa abaixada!

Fiz o xixi mais rápido da minha vida e saí depressa, me sentindo mais suadado que quando entrara.

– Melhor irmos embora – disse Chrissie. – Vamos comprar água para aviagem de volta.

Dentro da cabana que abrigava a bilheteria e a loja de suvenires, Chrissie e eufomos até o caixa pagar.

– A senhorita está com aquela foto aí? – disse o homem que encontramos naentrada. – Pensei que poderia mostrá-la para algum dos anciãos. Eles vêmaqui para a nossa reunião mensal amanhã à noite. Talvez reconheçam o

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garoto ao lado de Namatjira. O mais velho tem 96 anos, mas uma cabeçaótima. Foi trazido para cá.

– Ahn... – Olhei para Chrissie, em dúvida. – Nós teríamos que voltar aquipara pegar a foto?

– Estarei em Alice no sábado, então posso devolvê-la se a senhorita me derseu celular e o endereço de onde está ficando.

– Tudo bem – concordei, vendo Chrissie assentir de maneira encorajadora,então entreguei a foto a ele e anotei o que ele havia pedido.

– Não se preocupe, vou guardá-la em segurança – disse o homem com umsorriso.

– Obrigada.

– Boa viagem de volta – desejou ele quando saímos.

– Então, você sentiu alguma coisa? – perguntou Chrissie enquanto seguíamospela estrada ampla e deserta de volta à civilização.

– Como assim?

– Algum instinto lhe disse que você pode ter vindo de Hermannsburg?

– Não sei se tenho instintos, Chrissie.

– Claro que tem, Ci. Todos nós temos. Você só precisa confiar um poucomais neles, sabe?

Quando nos aproximamos de Alice Springs, o sol fazia uma reverênciaperfeita, curvando-se no final da cordilheira MacDonnell e projetandofragmentos de luz no deserto vermelho abaixo.

– Pare aqui! – ordenei de repente.

Chrissie desacelerou bruscamente e levou o carro para a lateral da -

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estrada.

– Desculpe, mas preciso tirar uma foto.

– Tudo bem, Ci.

Peguei minha câmera, abri a porta e atravessei a estrada.

– Meu Deus! É incrível! – exclamei, tirando várias fotos.

Do nada, senti os dedos começarem a formigar, que era o sinal que o meucorpo me dava quando eu precisava pintar. Era uma sensação que eu nãotinha havia muito tempo.

– Você parece feliz – comentou Chrissie quando voltei para o carro.

– Estou. Muito.

E eu estava falando sério.

Na manhã seguinte, acordei quando ouvi Chrissie andar furtivamente peloquarto. Normalmente, eu dormiria de novo, mas naquele dia uma estranhaansiedade me forçou a sair da cama.

– Desculpe acordar você. Eu ia descer para tomar café.

– Está tudo bem, vou com você.

Enquanto eu tomava uma xícara de café bem forte e comia bacon e ovos, comum pouco de fruta para aliviar a consciência, conversamos sobre o quefaríamos naquele dia. Chrissie queria ver a exposição permanente deNamatjira no Araluen Arts Centre, mas eu tinha outras ideias porquepercebera o que me acordara tão cedo.

– A questão é que... bem, fiquei inspirada no caminho de volta ontem.

Você se importaria de me levar de novo àquele lugar onde tirei as fotos dopôr do sol? Queria tentar pintá-lo.

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O rosto de Chrissie se iluminou.

– Que notícia fantástica. É claro que levo.

– Obrigada, mas antes preciso encontrar papel e tinta.

– Você está com sorte – disse Chrissie, apontando pela janela para as váriasgalerias ao longo da rua. – Vamos entrar em uma delas e descobrir ondecompram seu material.

Depois do café da manhã, caminhamos pela rua e entramos na primeiragaleria que vimos. Chrissie perguntou à mulher na recepção onde eu podiaencontrar papel e tintas, acrescentando que eu era aluna do Royal College ofArt, de Londres.

– Você quer pintar aqui?

A mulher apontou para uma grande sala na lateral da galeria, onde váriosartistas aborígines trabalhavam em mesas ou no chão. A luz entrava pordiversas janelas, e havia uma pequena copa onde alguém preparava café.

Parecia muito mais acolhedor do que os estúdios compartilhados da minhaantiga faculdade de arte.

– Não, ela está planejando ir ao bush, não é, Ci? – Chrissie piscou para mim.– O nome dela é Celeno – acrescentou Chrissie por via das dúvidas.

– Certo. – A recepcionista abriu um sorriso. – Tenho algumas tintas a óleo etelas ou ela pinta aquarelas? – perguntou, seu olhar passando direto por mimem direção a Chrissie como se estivessem falando de

uma criança de 4 anos.

– As duas coisas – intervim –, mas gostaria muito de experimentar aquarelashoje.

– Tudo bem, vou ver o que consigo encontrar.

A mulher saiu de trás do balcão e vi sua barriga de grávida encoberta pelo

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caftã amarelo. Enquanto ela estava fora, andei pela galeria, observando astradicionais obras aborígines.

As paredes estavam cheias de diferentes representações das Sete Irmãs.

Eram pontos, riscos, formas de aparência estranha que os artistas usaram pararetratar as garotas e o “velho” – Órion, que as perseguiu através dos céus. Eusempre me sentia constrangida pelo fato de o meu nome ter sido tirado de umestranho mito grego e uma constelação a alguns milhões de anos-luz, masnaquele dia me senti especial e orgulhosa. Como se eu fizesse parte delas,como se tivesse uma conexão especial. E ali, em Alice, parecia que eu estavaem seu templo.

Também adorava estar rodeada por um monte de artistas que com certeza nãofrequentaram escolas de arte. No entanto, ali estavam todos eles, pintando oque sentiam. E vendendo bem também, a julgar pelo número de turistasandando pela galeria e vendo-os trabalhar.

– Aqui está, Celeno. – A mulher me entregou um velho estojo de aquarelas,dois pincéis usados, fita, um maço de papel e uma tela com fundo de madeira.

– Você é boa? – perguntou, enquanto eu procurava a carteira para pagar.

– Ela é brilhante – disse Chrissie com voz estridente antes que eu conseguisseabrir a boca, como se fosse minha agente. – Você deveria ver alguns dos seustrabalhos.

Minha pele suada ficou vermelha.

– Quanto lhe devo pelas tintas e o papel?

– Que tal uma troca? Você me traz uma pintura e, se for boa, eu a penduro nagaleria e dividimos os lucros. Meu nome é Mirrin, e administro a galeria parao dono.

– Sério? Isso é muito gentil, mas...

– Muitíssimo obrigada, Mirrin – interrompeu Chrissie de novo. –

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Faremos isso, não é, Ci?

– Eu... Sim, obrigada.

Ao sairmos sob a ofuscante luz do sol, virei para ela.

– Meu Deus, Chrissie, você nunca viu nenhuma das minhas pinturas!

Sempre fui péssima com aquarelas, e só queria experimentar, me divertir umpouco...

– Quieta, Ci. Eu já sei que você é ótima. – Ela tocou o peito no lugar docoração. – Só precisa recuperar sua autoconfiança.

– Mas aquela mulher – eu estava ofegante de agitação e calor –, ela vaiesperar que eu traga alguma coisa e...

– Ouça, se ficar uma porcaria, a gente devolve as tintas e paga pelo papel,está bem? Mas isso não vai acontecer, tenho certeza.

Enquanto deixávamos a cidade, Chrissie resolveu fazer uma palestra sobrecomo Namatjira abordava sua pintura.

– Você disse ontem que ficou surpresa com o fato de ele pintar paisagensporque a maioria dos artistas aborígines pinta usando símbolos para retrataras histórias do Tempo do Sonho.

– Sim, é verdade.

– Bem, observe com mais atenção, porque Namatjira faz o mesmo, só que deuma forma diferente. Preciso lhe mostrar o que quero dizer exatamente, masquando você olha para os eucaliptos que ele pinta, eles nunca são só umaárvore. Há todo tipo de simbolismo ali. Ele conta as histórias do Tempo doSonho em suas paisagens. Entende?

– Acho que sim.

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– Ele desenhou a forma humana na natureza... Então, se você olhar comatenção, os nós em uma acácia são olhos, e, em uma de suas pinturas, acomposição da paisagem, incluindo o céu, as colinas e as árvores, tudo mudae se transforma, e de repente você está vendo a figura de uma mulher deitadana terra.

– Uau! – Tentei imaginar isso. – Já pensou em fazer algo com seuconhecimento artístico, Chrissie?

– Tipo em um programa de perguntas e respostas, em que “Artistasaustralianos do século XX” seria meu assunto escolhido?

Ela riu.

– Não, quero dizer profissionalmente.

– Você está de brincadeira, né? Os caras que trabalham no mundo da arteestudaram anos para ser curadores ou agentes. Quem iria me querer?

– Eu iria – respondi. – Você fez um ótimo trabalho me promovendo hoje.

Além disso, aquela mulher na galeria não parecia ter um milhão degraduações em arte e, no entanto, estava dirigindo o negócio.

– É verdade. Certo, chegamos. Onde você quer se instalar?

Chrissie me ajudou a esticar o cobertor e espalhar as almofadas que havíamospegado escondido do quarto do hotel. Então sentamos à sombra de umeucalipto e tomamos um pouco de água.

– É melhor eu dar uma volta, não? Deixar você à vontade?

– Sim, obrigada.

Ao contrário dos artistas daquela galeria, eu não estava nem perto deconseguir pintar com outra pessoa observando. Sentei-me de pernas cruzadas,o papel preso à tela. O pânico tomou conta de mim, assim como vinhaacontecendo sempre que eu tentava pegar um pincel nos últimos meses.

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Fechei os olhos e inspirei o ar quente, suavemente perfumado por um aromade menta, quase medicinal, que vinha do eucalipto em que eu estavaencostada. Pensei em quem eu era – filha de Pa Salt, uma das próprias SeteIrmãs – e imaginei que tinha descido dos céus para a terra e saído da cavernanaquela paisagem magnífica e iluminada...

Abri os olhos, mergulhei o pincel na garrafa de água, misturei com algumacor e comecei a pintar.

– Como está indo?

Dei um pulo, quase derramando a água cor de lama da garrafa em cima dapintura.

– Desculpe, Ci. Você estava imersa em seu mundinho, não é? – falouChrissie, inclinando-se para colocar a garrafa de pé de novo. – Você está comfome? Já está pintando há algumas horas.

– Já?

Eu estava me sentindo meio letárgica, como se tivesse acabado de acordar deum sono profundo.

– Sim. Fiquei sentada no carro com o ar-condicionado no máximo durante osúltimos quarenta minutos. Caramba, está quente aqui.

Trouxe água gelada para você. – Chrissie me entregou a garrafa e eu bebi,desorientada. – E aí?

Chrissie me encarava com curiosidade.

– E aí o quê?

– Como foi?

– Ahn...

Não consegui responder, porque não sabia. Olhei para o papel apoiado emmeus joelhos e fiquei espantada ao ver que o que parecia uma pintura

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totalmente acabada havia de alguma forma aparecido ali.

– Uau, Ci... – Chrissie espiou por cima do meu ombro antes que eu pudessedetê-la. – É... Uau! Ah, meu Deus! – Ela entrelaçou as mãos, encantada. – Eusabia! Está incrível! Principalmente levando em consideração que você sótinha aquele estojo de aquarela ridículo para trabalhar.

– Eu não iria tão longe – falei, observando a pintura. – Não consegui fazerdireito a perspectiva da cordilheira MacDonnell, e o céu está um poucobarrento porque devo ter ficado sem água limpa.

Mas, ao olhar para a pintura, eu sabia que era a melhor aquarela que já haviapintado.

– Isso é uma caverna? – Chrissie se agachara ao meu lado. – Parece que háuma figura sombria de pé na entrada.

Olhei com mais atenção e vi que ela estava certa. Havia uma nuvem brancaembaçada, como um fio de fumaça saindo de uma chaminé.

– Sim – concordei, embora não conseguisse me lembrar de pintá-la.

– E essas duas partes nodosas na casca do eucalipto... parecem olhosobservando secretamente a figura. Ci! Você simplesmente tentou econseguiu!

Chrissie atirou os braços à minha volta e me apertou com força.

– Sério? Não faço ideia de como.

– Isso não importa. A questão é que você fez.

– Bem, importa se eu quiser fazer de novo. E definitivamente não estáperfeita. – Como sempre acontecia quando as pessoas me diziam que eu

era boa em alguma coisa, meu olho crítico começava a examinar maisatentamente e ver as falhas. – Olhe, os galhos das árvores estãodesproporcionais, e as folhas estão manchadas e não do tom certo de verde.E...

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– Uau! – Chrissie tirou a pintura do meu joelho e do meu alcance, como setivesse medo que eu pudesse rasgá-la. – Sei que os artistas são seus piorescríticos, mas cabe ao público decidir se um trabalho é bom ou ruim. E, comosou o público e uma especialista secreta em artes, principalmente em pinturascomo esta, estou lhe dizendo que você pintou algo incrível. Tenho que tiraruma foto disso, você trouxe a câmera?

– Sim, está no carro.

Depois de tirar algumas fotos, guardamos as coisas e voltamos para a cidade.Durante todo o caminho até Alice, Chrissie falou sobre a pintura.

Na verdade, não só falou, mas a analisou exaustivamente.

– O mais incrível de tudo é que você captou o estilo de Namatjira e criou oseu próprio. Aquela fumaça saindo da caverna, os olhos escondidos naárvore, observando, as seis nuvens em direção ao céu...

– Eu estava pensando na história das Sete Irmãs que sua avó me contoupouco antes de começar a pintar – admiti.

– Eu sabia! Mas não queria dizer isso antes de você. De alguma forma, assimcomo Namatjira, você conseguiu pintar outra camada em uma paisagemdeslumbrante. Mas à sua maneira, Ci. Ele usava símbolos, e você usou umahistória. É incrível! Estou extasiada!

Sentei-me ao lado dela, em parte apreciando seus elogios, em parte desejandoque ela se calasse. Eu entendia que ela estava tentando ser solidária, mas avoz cética dentro de mim dizia que, por mais que parecesse conhecer bemNamatjira, Chrissie não era uma especialista em arte. E, além disso, se apintura tivesse mesmo potencial, será que algum dia eu conseguiria replicar oque fizera?

Ela estacionou o carro na rua principal, e voltamos ao restaurante ondetínhamos comido a boa carne de canguru. Pedimos hambúrgueres enquantoeu a ouvia falar.

– Você vai ter que aprender a dirigir, porque precisa ir lá novamente. E

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eu vou voltar a Broome amanhã cedo. – Os olhos dela ficaram sombrios.

– Eu realmente não queria. Adoro Alice. Tantas pessoas me contaramhistórias ruins sobre este lugar, sobre os problemas entre nós e os brancos. E,sim, tenho certeza de que alguns são verdadeiros, mas o movimento artísticoaqui é simplesmente incrível, e ainda nem vimos nada sobre Papunya ainda.

– O que é isso?

– Outra escola de arte, que veio logo depois da época de Namatjira. Tipo, amaioria das pinturas de pontilhismo que você viu na galeria.

Tentei reprimir um grande bocejo, sem sucesso. Não entendia por que mesentia tão exausta.

– Escute, por que você não volta para o hotel e tira um cochilo? – sugeriuChrissie.

– É, acho que preciso disso – falei, com muito sono para contestar. – Vocêvem comigo?

– Não, pensei em dar uma volta para ver as obras de Namatjira no AraluenArts Center.

– Tudo bem. – Deixei os dólares necessários para pagar o lanche na mesa eme levantei. – Vejo você depois.

Acordei algumas horas depois e me sentei de repente.

Onde está a pintura? , pensei imediatamente enquanto tentava despertar porcompleto. Ao vasculhar a memória, percebi que a havíamos deixado noporta-malas do carro quando saímos para comer.

E tínhamos que devolver o carro à locadora às seis da tarde...

– Merda! – xinguei, olhando para o relógio e vendo que eram quase sete emeia.

E se Chrissie tivesse se esquecido? Calcei as botas e desci as escadas

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correndo, o que provavelmente demorou mais do que se tivesse perdidoalguns segundos esperando o elevador. Cheguei à recepção e a vi através dasportas de vidro, sentada num sofá no pequeno saguão. Ela estava lendo umlivro sobre Namatjira, e, quando abri as portas e caminhei em sua direção,meu pânico aumentou. Não havia nenhum sinal da pintura ao lado dela.

– A Bela Adormecida acordou. – Ela olhou para mim e sorriu. O sorrisodesapareceu quando viu meu rosto. – O que houve?

– A pintura – falei, arfando. – Cadê? Estava no porta-malas, lembra? E ocarro ia ser devolvido às seis, já são sete e meia agora e...

– Minha nossa, Ci! Você achou mesmo que eu iria esquecer?

– Não, mas onde está?

Quando coloquei as mãos nos quadris de maneira combativa, percebi quantoaquela pintura significava para mim. Brilhante ou péssima – ou maisprovavelmente algo no meio do caminho –, essa não era a questão.

A questão é que era um recomeço.

– Não se preocupe, está perfeitamente segura, eu juro.

– Onde? – perguntei novamente.

– Eu disse que está segura. – Ela se levantou e olhou para mim. – Você temmesmo um problema com confiança, não é? Vou dar uma volta.

– Está bem, me desculpe, mas você poderia me dizer onde está?

Ela deu de ombros silenciosamente e saiu do saguão. Quando minhas pernasse reanimaram e a seguiram em direção à recepção, ela já havia deixado ohotel. Fui até a rua e olhei para um lado e para outro, mas ela desaparecera.

Voltei para o quarto e deitei na cama, o coração batendo como um tambor.

Após algum tempo me acalmei e disse a mim mesma que eu havia exagerado,mas com certeza era justo esperar que ela respondesse

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diretamente onde estava minha pintura. Porque ela marcava o retorno de algoque eu pensara seriamente que podia ter perdido para sempre.

Algo que era meu, que pertencia a mim, que ninguém poderia pegar, excetoeu.

Eu precisava dela de volta. A pintura não estaria segura a menos que fossecomigo. Chrissie não conseguia entender isso? Tomei um longo banho quentepara apaziguar os pensamentos, depois me deitei na cama para esperá-lavoltar.

– Oi – disse ela ao entrar no quarto, duas horas mais tarde.

– Oi – respondi.

Então a vi se sentar e tirar as botas, depois despir a calça para soltar metadeda perna direita. Ela não falou comigo, me dando um gelo como Estrela faziaquando eu dizia ou fazia algo errado. Deitei na cama e fechei os olhos.

– Você ouviu o que eu disse quando saí do hotel mais cedo? – perguntou-mealgum tempo depois.

– Sim, posso ser burra e disléxica, mas não sou surda – rebati, os olhos aindafechados.

– Meu Deus!

Chrissie deixou escapar um longo suspiro de frustração, e a ouvi caminhandoaté o banheiro. A porta bateu e ela ligou o chuveiro.

Eu odiava esses momentos em que todos pareciam saber o que eu havia feitode errado, menos eu. Como se eu fosse uma alienígena que caíra na Terra enão entendesse as regras do jogo. Era muito irritante e, depois de toda aeuforia que eu sentira mais cedo, um banho de água fria.

Então ouvi Chrissie sair do banheiro e o rangido da cama quando ela sesentou.

– Devo apagar a luz ou você vai precisar dela para se despir? – perguntou

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friamente.

– Como você preferir. Por mim tanto faz.

– Ok. Boa noite.

Ela apagou a luz. Consegui aguentar cerca de cinco minutos – na verdade,provavelmente menos – antes de abrir a boca.

– Qual é o seu problema? Eu só estava perguntando onde está minha pintura.

Nada além de silêncio veio da cama ao lado. Mais uma vez, esperei omáximo que pude, mas depois disparei: – Por que isso é um problema tãogrande?

A luz se acendeu e Chrissie olhou para mim de onde estava sentada.

– Está certo! Vou lhe contar onde está a maldita pintura! No momento, deveestar no depósito nos fundos da Galeria Tangetyele, esperando para seremoldurada, o que deve acontecer até amanhã, foi o que Mirrin me prometeu.

E talvez no dia seguinte vá ser pendurada na parede da galeria, com um preçode venda de 600 dólares, que eu negociei. Ok?

A luz se apagou de repente de novo, e eu e minha agitação – além do espanto– mergulhamos de volta na escuridão.

– Você a levou para a galeria? – perguntei lentamente, tentando respirar.

– Sim. Esse foi o acordo, não foi? Eu sabia que você nunca daria valor àminha humilde opinião sobre a obra, então a levei até uma profissional daárea. Só para você saber – acrescentou através dos dentes cerrados –, Mirrinadorou. Quase arrancou-a da minha mão. Quer saber quando pode receberoutras.

Havia muita informação naquelas frases para a minha mente absorver, entãoeu não falei nada. Só respirei da melhor forma que pude.

– Ela comprou minha pintura? – consegui dizer após algum tempo.

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– Eu não diria isso... Ela não me deu nenhum dinheiro, mas, se algumapostador comprá-la, então você recebe 350 dólares, e a galeria, 250. Elaqueria negociar meio a meio, mas consegui convencê-la com a promessa demais Celeno D’Aplièse.

Celeno D’Aplièse... quantas vezes eu sonhara com esse nome ficando famosono mundo da arte? Com certeza não era um nome que alguém pudesseesquecer, sendo tão singular.

– Ah. Obrigada.

– Tudo bem.

– Quero dizer – acrescentei, começando a entender por que ela estava tãochateada. – Obrigada mesmo.

– Já disse que está tudo bem – veio a resposta concisa da escuridão.

Fechei os olhos e tentei pensar em dormir, mas era impossível. Sentei-me,sentindo que era minha vez de sair do palco. Tateei à procura da bermuda e,desajeitada como eu era, tropecei na perna falsa de Chrissie, uma armadilhaentre as camas.

– Desculpe – pedi, procurando-a no escuro para apoiá-la de volta.

A luz foi ligada novamente.

– Obrigada – repeti, enquanto procurava os sapatos.

– Você está fugindo de mim? – perguntou ela.

– Não, só não estou cansada. Dormi por séculos esta tarde.

– Sim, enquanto eu estava fora cuidando de negócios para você. –

Chrissie olhava para mim com a cabeça apoiada no cotovelo. – Olha, Ci, é aminha última noite aqui e não quero que a gente brigue. Só fiquei chateadapor você não confiar em mim para cuidar daquela pintura depois de tudo oque disse e fiz. Hoje vi que tipo de artista você poderia ser, e fiquei muito

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empolgada.

Mas você não se lembrou de nada disso quando entrou no saguão daquelejeito exigindo saber onde estava sua pintura. Aquilo só... me abalou.Realmente achei que você tivesse começado a confiar em mim.

Fiquei enlouquecida quando Mirrin adorou sua obra e mal podia esperar paralhe contar e sairmos para comemorar. Mas você estava tão irritada comigoque arruinou o momento.

– Sinto muito, Chrissie. Não quis aborrecê-la.

– Você não vê? Vim aqui para Alice porque queria estar com você. Senti suafalta quando você foi embora de Broome.

– Sentiu?

– Sim. Muito – admitiu, timidamente.

– E eu fiquei muito feliz mesmo por você ter vindo – falei de maneira gentil,me perguntando se estava processando corretamente o que estava ouvindo.Ou, mais ainda, o que havia por trás disso. – Sinto muito

– repeti, querendo apagar a situação, porque não conseguiria lidar com aquiloagora. – Sou tão idiota às vezes...

– Olha, você me contou sobre Estrela e o relacionamento que teve com ela, ecomo ela a decepcionou.

– Ela não me decepcionou, só precisava seguir em frente.

– Seja como for, sei que você acha difícil confiar, principalmente no amor,quando é... – Ouvi Chrissie suspirar pesadamente. – Acho que só quero quevocê saiba antes de eu ir embora que eu... bem, acho que amo você, Ci. Nãome pergunte como ou por quê, mas foi isso que aconteceu.

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Sei que você tinha um namorado na Tailândia e... – Vi lágrimas surgirem nosolhos dela. – Só estou sendo sincera, está bem?

– Tudo bem, eu entendo – falei, desviando o olhar. – Você foi fantástica,Chrissie e...

– Não precisa dizer mais nada. Eu entendo também. Pelo menos podemosvoltar a ser amigas antes de irmos dormir.

– Sim.

– Boa noite, então.

Ela estendeu a mão para desligar a luz novamente.

– Boa noite.

Deitei-me na cama, de repente exausta demais para me mexer enquantominha mente absorvia as implicações do que Chrissie dissera.

Aparentemente, ela me amava. E nem mesmo eu seria tão ingênua de pensarque ela queria dizer apenas como amiga.

A questão era: eu a amava? Quero dizer, apenas algumas semanas antes, euestava com Ace. Espantava-me que, agora que Estrela se afastara, euparecesse estar criando laços com todos os tipos de pessoas, homens emulheres...

21

Senti uma mão gentil em meu ombro.

– Acorda, Ci, preciso ir para o aeroporto agora. Dormi demais.

Despertei do sono imediatamente e me sentei.

– Você está indo? Agora?

– Sim, foi o que acabei de dizer.

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– Mas... – Saí da cama e procurei minha bermuda. – Vou com você.

– Não. Não sou boa nesse tipo de coisa. – Então me puxou para junto dela eme deu um abraço. – Boa sorte na descoberta de quem você é – disse ela,soltando-me e caminhando em direção à porta.

Não deixei de notar o duplo significado por trás de suas palavras.

– Vou manter contato, juro.

– Sim, eu ficaria feliz. Não importa o que aconteça – disse ela, estendendo amão para a maçaneta.

Aquilo me impeliu à ação, e fui até ela.

– Olha, gostei muito de estar com você, Chrissie. Esses últimos dias foram,tipo, bem, os melhores da minha vida.

– Obrigada. Peço desculpas pela noite passada e tudo o mais. Eu não deviater... bem... – Ela sorriu tristemente. – Tenho que ir.

Então ela se aproximou de mim, seus lábios quentes roçando minha bocanum beijo. Ficamos assim por alguns segundos antes de ela se afastar.

– Tchau, Ci.

Ela então saiu e me vi num quarto que de repente parecia triste e solitário,como se Chrissie tivesse levado com ela todo o calor, amor e graça. Afundeina cama, sem saber direito o que pensar ou sentir. Deitei-me, mas o silêncioressoava em meus ouvidos. E me senti exatamente como quando Estrela medeixara para ir a Kent ficar com sua nova família: abandonada.

Só que isso não era verdade, pensei. Embora eu estivesse chocada, Chrissietinha dito que me amava.

Isso, sim, fora uma revelação. Tão poucas pessoas haviam dito essas palavraspara mim antes... Será que era por isso que eu estava me sentindo tão molepor dentro com relação a ela? Será que eu......

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– Merda!

Balancei a cabeça, em confusão total. Eu nunca fora boa em entender minhasemoções – literalmente, precisava de um xerpa e de uma tocha flamejantepara guiar meus passos psicológicos. Estava pensando que talvez devesse mejuntar à maior parte do mundo ocidental e

descarregar tudo em um profissional quando o telefone ao lado da minhacama tocou.

– Oi, Srta. D’Aplièse. Tem um homem aqui querendo vê-la.

– Qual é o nome dele?

– Sr. Drury. Ele disse que a conheceu na Missão Hermannsburg.

– Diga a ele que estarei aí num instante.

Coloquei o fone no gancho, calcei as botas e saí do quarto.

Encontrei o homem de Hermannsburg andando de um lado para outro narecepção, o que por alguma razão me fez pensar em um grande animalselvagem colocado em uma jaula pequena a contragosto. Ele era mais alto doque tudo em volta, suas roupas empoeiradas e o rosto marcado pelo soldeslocados entre os modernos móveis de plástico.

– Oi, Sr. Drury. Obrigada por vir – falei, estendendo a mão da maneiraeducada que Ma sempre nos ensinara incansavelmente quando crianças.

– Oi, Celeno, pode me chamar de Phil. Tem algum lugar onde possamosconversar um pouco?

– Acho que o café da manhã ainda está sendo servido.

Olhei para a recepcionista, que assentiu.

– O bufê fecha em vinte minutos – informou ela, e seguimos para lá.

– Aqui?

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Indiquei uma mesa junto à janela na sala de jantar meio vazia.

– Por mim, está ótimo – disse ele e sentou-se.

– Quer alguma coisa do bufê?

– Vou pegar um café se tiver. Mas fique à vontade para comer.

Depois de pedir dois cafés – fortes e puros –, fui depressa pegar a comida emontei um prato cheio de colesterol.

– Admiro mulheres que comem com vontade – comentou Phil quandocoloquei o prato na frente dele.

– Ah, eu como – concordei enquanto tomava o café.

A julgar pelo jeito como ele me olhava, calculei que devia estar precisando decomida mais saudável.

– Tivemos nosso encontro com os anciãos ontem à noite em Hermannsburg –comentou ele, tendo tomado a deliciosa xícara de café de um só gole.

– Sim, o senhor... você havia mencionado.

– No final da reunião, mostrei sua fotografia.

– Alguém reconheceu o jovem?

– É. – Phil fez sinal para a garçonete lhe servir outro café. – Pode-se dizerque sim.

– Como assim?

– Bem, eu não conseguia entender por que todos olhavam para a foto,apontavam e riam.

– E então? – perguntei, ansiosa para chegar ao ponto.

– Acontece que o cara da foto estava presente na reunião, Celeno. Ele é um

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dos anciãos.

Respirei fundo e tomei um gole de café, me perguntando se ia gritar, pular dealegria ou vomitar a enorme quantidade de comida que acabara de ingerir.

Não estava acostumada a tantas emoções em apenas 24 horas.

– Certo – assenti, sabendo que ele estava esperando para continuar.

– As risadas finalmente pararam, e o cara que está naquela fotografia veiofalar comigo depois que os outros saíram.

– O que ele disse?

– Quer que eu seja sincero?

– Sim.

– Bem. – Phil engoliu em seco. – Nunca vi um ancião chorar antes. Na noitepassada, eu vi.

– Ah – murmurei, por algum motivo com um nó na garganta.

– Eles são homens grandes e fortes, entende? Não têm nenhumasensibilidade. Dito de outra forma, ele sabia exatamente quem a senhorita era.

E quer conhecê-la.

– Ah – murmurei novamente. – Ahn, quem ele pensa que é? Quero dizer...

– Balancei a cabeça, lamentando meu péssimo uso das palavras. – Ele temalgum parentesco comigo?

– Ele acha que é seu avô.

– Ah.

Dessa vez, não pude conter as lágrimas ou teria mesmo vomitado o café damanhã. Então deixei que brotassem livremente dos meus olhos na frente

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daquele homem que eu nem conhecia. Ele revirou o bolso e me passou umlenço impecavelmente branco por cima da mesa.

– Obrigada – falei, assoando o nariz. – É o choque, quero dizer... Percorri umlongo caminho e não esperava de fato encontrar a minha... família.

– Posso imaginar.

– Ele esperou pacientemente eu me recompor.

– Peço desculpas – falei, e ele balançou a cabeça.

– Eu compreendo.

Eu segurava seu lenço encharcado, relutante em soltá-lo.

– Então, por que ele acha que pode ser meu... avô?

– Acho que cabe a ele lhe contar.

– Mas e se ele se enganou?

– Então se enganou – Phil deu de ombros –, mas eu duvido. Esses homens,eles não lidam apenas com fatos, entende? Eles têm um instinto que vaimuito além do que eu poderia tentar explicar. E Francis, de todos os anciãos,não é de perder tempo. Se ele sabe, ele sabe, e é isso.

– Certo. – O lenço estava tão molhado agora que tive que passar as costas damão pelo nariz, que ainda escorria. – Quando ele quer me conhecer?

– Quanto antes... Não quer voltar comigo para Hermannsburg agora?

– Agora?

– Sim, se não tiver nenhum problema. Ele vai para o bush em breve,

então eu diria que não há momento melhor do que o presente.

– Tudo bem – concordei –, mas não tenho nenhum transporte para voltar para

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cá.

– Pode dormir na minha casa esta noite, se necessário, e eu a trago de voltapara a cidade quando quiser.

– Está bem. Ahn, então eu preciso pegar as minhas coisas.

– Claro – assentiu ele –, fique à vontade. Tenho mesmo algumas coisas parafazer na cidade. Que tal eu voltar aqui em meia hora?

– Ótimo, obrigada.

Nós nos despedimos na recepção e subi as escadas para o meu quarto.

Dizer que minha cabeça estava girando não era nem o começo. Enquantoguardava tudo na mochila, pensei que me sentia como se tivesse ficado presaem um filme que durara horas – quer dizer, minha vida antes daquela manhã–, e então, de repente, o filme estava sendo acelerado e várias coisasaconteciam ao mesmo tempo. Essa era minha vida no momento.

Austrália, Chrissie, meu avô...

Levantei-me e fiquei tão zonza que precisei me apoiar na parede para mefirmar. Balancei a cabeça, mas isso só fez as coisas piorarem, então em vezdisso me deitei, sentindo-me uma banana.

– Emoção demais – murmurei, tentando respirar profundamente para meacalmar.

Depois de algum tempo, levantei de novo, e vi que só tinha dez minutos atéencontrar Phil lá embaixo.

Siga com a corrente, Ci, pensei enquanto escovava os dentes com força eolhava para o meu reflexo no espelho. Apenas siga com a corrente.

A recepcionista me informou que não havia nada para pagar, e percebi queChrissie devia ter usado seu pouco dinheiro para acertar a conta.

Fiquei péssima por não ter pensado nisso antes. Ela era obviamente orgulhosa

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como eu, e não queria sentir como se estivesse se aproveitando.

A caminhonete velha e empoeirada que eu vira no estacionamento emHermannsburg estava em frente ao hotel.

– Jogue a mochila na traseira e entre – disse Phil.

Partimos, e eu o observei discretamente enquanto ele dirigia. Das pontas desuas enormes botas sujas de terra até os braços musculosos e o chapéuAkubra na cabeça, ele era o estereótipo do australiano da região do bush.

– É um momento e tanto para você, não é, jovem? – comentou.

– Sim. Se esse cara for realmente meu avô... Só não entendo como elepoderia saber que sou eu com certeza. Quero dizer, ele não viu nenhuma fotominha nem nada, e eu sei que foi meu pai adotivo que escolheu meu nome.

– Bem, conheço Francis há muito tempo, e ele normalmente não reagiria daforma como reagiu quando falei de você para ele ontem à noite. Além

disso, você tinha aquela foto dele, lembra?

– Sim, talvez tenha sido ele quem me mandou a foto e a herança?

– Talvez.

– Como ele é? Como pessoa, quero dizer?

– Francis? – Phil riu. – Ele é bem difícil de descrever. “Único” seria a melhorpalavra. Ele nasceu no início dos anos 1930, eu acho, então deve ter mais de70 anos, e não tem pintado tanto ultimamente...

– Ele é artista?!

– Sim, e bem conhecido por aqui. Ele morava na Missão quando era criança.E, pela forma como os anciãos o provocaram ontem à noite, seguia Namatjirapor aí como um dingo de estimação.

– Também sou artista.

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Mordi o lábio quando senti que as lágrimas queriam voltar.

– Bem, aí está. O talento corre no sangue, não é? Bom, não sei bem o quemeu velho pai passou para mim, além de um ódio pelas cidades e pelaspessoas... Sem ofensa, mas me sinto muito mais confortável com minhasgalinhas e meus cachorros do que com seres humanos.

– Então definitivamente não tenho nenhum parentesco com Namatjira?

Pensei em como Chrissie ficaria desapontada.

– Acho que não, mas Francis Abraham ainda é um parente bem interessantede se ter.

– Abraham? – indaguei.

– Sim, eles lhe deram um sobrenome na Missão, assim como faziam comtodos os bebês órfãos.

– Ele era órfão?

– É melhor que ele mesmo lhe conte. Só sei por alto. Tudo que você precisasaber é que ele é um homem bom e confiável, e não como alguns outros poraqui. Vou sentir falta dele quando se aposentar do conselho.

Ele mantém os outros na linha, se entende o que quero dizer. Eles orespeitam.

Meu coração começou a disparar quando finalmente paramos noestacionamento da Hermannsburg, e desejei que Chrissie estivesse ao meulado para me acalmar.

– Certo, vamos tomar uma bebida gelada enquanto esperamos por ele –

sugeriu Phil, saltando da caminhonete. – Melhor deixar suas coisas ondeestão... Você não quer que nenhum visitante indesejável entre na sua mochila,não é?

Estremeci, e meus batimentos dispararam ainda mais enquanto o pânico

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tomava conta de mim. E se eu realmente tivesse que passar a noite ali? NoOutback, cercada pelos meus piores pesadelos de oito patas?

Vamos, Ci, seja corajosa. Você tem que enfrentar seus medos, falei para mimmesma enquanto caminhava pelo duro terreno vermelho atrás de Phil.

– Coca-Cola?

Ele estendeu a mão para o freezer.

– Obrigada.

Enquanto eu abria a tampa, Phil foi até a estante de livros, procurando algo.

– Aqui vamos nós.

Eu o vi folhear um grande livro de capa dura intitulado Arte aborígine doséculo XX, e só esperava que ele não fosse me dar um texto enorme para ler.

– Sabia que ele estava aqui. – Phil bateu de leve o dedo em uma página. –

Esta é uma das obras de Francis. Está na Galeria Nacional de Camberraagora.

Olhei para a imagem naquele papel brilhante e não pude deixar de sorrir.

Dado que meu possível avô tinha aprendido com Namatjira, eu esperava umapaisagem em aquarela. Em vez disso, meus sentidos foram surpreendidos poruma vibrante pintura de pontos – o que parecia um redemoinho arredondadode laranja, amarelo e vermelho intenso –, que me lembrava a girândola quePa colocara no jardim de Atlântida para meu aniversário de 18 anos.

Quando olhei com mais atenção, comecei a descobrir formas dentro daespiral perfeita. Um coelho talvez, e quem sabe fosse uma cobra buscandoseu caminho até o centro do círculo...

– É incrível! – exclamei, entendendo pela primeira vez o que um artistatalentoso podia fazer com o pontilhismo.

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– Chama-se Roda de fogo – comentou Phil de trás do balcão. – O que vocêacha?

– Adorei, mas não era o que estava esperando, porque você disse que eleaprendeu com Namatjira.

– Sim, mas Francis também foi a Papunya com Clifford Possum muito antesde Geoffrey Bardon entrar em cena. Os dois ajudaram a iniciar o movimentoPapunya. Aqui, vou lhe mostrar o trabalho de Clifford Possum.

Eu estava envergonhada em ver aquele homem falar com naturalidade decoisas que eram tão novas para mim. Não fazia ideia de quem eram GeoffreyBardon ou Clifford Possum, ou onde ficava Papunya. Que ótima estudante dearte eu sou, pensei.

– Aqui.

Phil bateu em uma página e vi outra pintura incrível diante dos meus olhos.

O artista criara uma imagem em suaves tons pastel, as formas compostas demilhares dos mais ínfimos e delicados pontos. Lembrei-me um pouco dosNenúfares, de Monet, embora fosse como se o pintor tivesse pegado as duasdiferentes escolas de pintura e as juntado para produzir algo único.

– Essa se chama Warlugulong. Foi vendida por mais de 2 milhões de dólaresno ano passado. – Phil ergueu uma sobrancelha. – Uma grana e

tanto.

Agora me dê licença, Celeno, preciso dar uma olhada no banheiro...

encontrei uma pseudonaja lá ontem.

– Está bem. Ele... meu... ahn... avô... disse quando deve chegar?

– Ainda hoje – respondeu Phil vagamente. – Pegue o que quiser na geladeira.Vejo você daqui a pouco.

Com uma garrafa de água em punho, peguei o livro e procurei um lugar para

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me sentar e dar uma olhada nele. Só havia o banco alto atrás do balcão, entãofui até lá e abri o livro no início.

Eu estava tão concentrada – não só nas pinturas incríveis, mas tentandodecifrar os títulos aborígines das pinturas e seus significados – que só erguios olhos quando ouvi a porta da cabana se abrir, e obviamente não notara obarulho do carro.

– Olá – disse a figura de pé na entrada.

– Oi.

A princípio, pensei que ele fosse um turista que tinha ido visitarHermannsburg, porque não podia ser meu avô... Todos os idosos aboríginesque eu vira em fotos eram pequenos e muito escuros, a pele ressecada pelosol, com rugas e fissuras parecendo uma ameixa seca.

Além disso, aquele homem parecia jovem demais. Ele era alto e magro, coma pele da mesma cor que a minha. Quando tirou o chapéu Akubra e caminhouem minha direção, vi que tinha olhos incríveis. Eram bem azuis, compintinhas douradas e cor de âmbar, de modo que suas íris pareciam aspinturas de pontos que eu acabara de ver. Então percebi que ele me encaravatão insistentemente quanto eu o olhava, e senti o rubor tomar conta do meurosto sob a intensidade de seu olhar.

– Celeno? – Sua voz soava densa e cadenciada, como mel. – Sou FrancisAbraham.

Meus olhos encontraram os dele em um momento de identificação.

– Sim, sou eu.

Seguiram-se então mais olhares e silêncio, e percebi que ele também nãotinha ideia de como agir naquele momento, porque nós dois sabíamos daenorme importância daquele encontro.

– Posso tomar um pouco de água? – perguntou ele, indicando o freezer.

Fiquei feliz por ele ter quebrado a tensão do momento, mas também pensei

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por que ele estava me perguntando. Afinal, era um ancião, o que quer queisso significasse, então eu tinha certeza de que ele poderia tomar a água quequisesse.

Observei enquanto ele se dirigia ao refrigerador. A maneira como andou edepois estendeu o braço musculoso para abrir a porta de vidro nãocorrespondia à idade que Phil me dissera que tinha. Como aquele homemforte e cheio de energia podia estar na casa dos 70? Ele estava muito maispara Crocodilo Dundee do que para um idoso aposentado, o que eleconfirmou ao abrir a tampa da garrafa com o polegar e o indicador, sem fazera menor força.

Então o vi beber com vontade, talvez usando o gesto para ganhar tempo epensar no que dizer.

Depois de esvaziar a garrafa, ele a atirou na lixeira e virou-se de novo paramim.

– Fui eu que lhe mandei aquela fotografia – revelou ele. – Esperava que vocêviesse.

– Ah, obrigada.

Seguiu-se um longo silêncio, antes de ele suspirar, balançar ligeiramente acabeça, depois dar a volta no balcão e vir em minha direção.

– Celeno... venha dar um abraço no seu avô.

Já que não havia como ir a nenhum lugar no espaço minúsculo e confinadoatrás do balcão, só precisei me aproximar um pouco e ele me tomou em seusbraços. Minha cabeça apoiou-se em seu peito, e pude ouvir seu coraçãobatendo firmemente, sentir sua força vital. E seu amor.

Nós dois enxugamos discretamente uma lágrima quando nos afastamos poucodepois. Ele sussurrou algo em uma língua que não entendi, então olhou para océu. Como ele estava mais perto agora, eu podia ver suaves rugas marcandosua pele, que revelavam que era mais velho do que a minha primeiraimpressão sugerira.

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– Tenho certeza de que você tem muitas perguntas.

– Tenho.

– Onde está Phil?

– Saiu para procurar cobras no... vaso.

– Tenho certeza de que ele não vai se importar se usarmos sua cabana dedormir. – Ele estendeu o braço. – Venha, temos muito o que conversar.

A cabana de dormir de Phil era exatamente o que o nome sugeria: um quartopequeno de pé-direito baixo, com um antigo ventilador preso acima de umacama rústica de madeira, com apenas um saco de dormir em cima do colchãomanchado. Francis abriu a porta que dava em uma varanda sombreada. Puxouuma velha cadeira de madeira para mim, que oscilou um pouco quando ele acolocou no chão.

– Quer se sentar? – perguntou.

– Obrigada.

Quando me sentei, notei que a visão à minha frente compensava a falta derecursos lá dentro. O deserto vermelho ininterrupto em primeiro plano desciaaté um riacho. Do outro lado dele, uma pequena linha de arbustos verde-claros, que dependiam de sugar o suprimento limitado de água para semanterem vivos, crescia ao longo da margem. Além disso... bem, não havianada até a terra vermelha encontrar o horizonte azul.

– Morei perto daquele riacho por um tempo. Muitos de nós moraram.

Dentro, mas fora, se entende o que quero dizer.

Eu não compreendia, mas assenti mesmo assim. Foi quando percebi queestava na junção de duas culturas que se esforçavam para se entender haviaduzentos anos. A Austrália e eu éramos jovens, tentando nos

resolver.

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Fazíamos progresso, mas depois cometíamos erros, porque não tínhamosséculos de sabedoria e a experiência da idade para nos guiar.

Senti instintivamente que o homem sentado à minha frente era mais sábio doque a maioria. Ergui os olhos para encontrar os dele novamente.

– Ah, Celeno, por onde devemos começar?

Ele juntou as pontas dos dedos e olhou para aquele horizonte distante.

– Você me diz.

– Sabe – ele voltou o olhar para mim –, nunca imaginei que este dia chegaria.Tantos momentos que a gente sonha em vão...

– Eu sei – concordei, querendo identificar seu estranho sotaque.

Era uma mistura de tantas entonações diferentes que, toda vez que eu achavaque tinha descoberto, sabia que estava errada. Havia inglês australiano, inglêsbritânico, e até pensei ter identificado um pouco de alemão.

– Então, você recebeu a carta e a fotografia da advogada em Adelaide? –

perguntou ele.

– Sim.

– E o dinheiro também?

– Sim. Obrigada, foi muito gentil da sua parte, se foi você quem mandou.

– Cuidei para que fosse enviado, sim, mas não ganhei com estas mãos.

No entanto, é seu por direito. Por meio da minha... da nossa família. –

Franziu os olhos em um sorriso caloroso. – Você parece com a sua bisavó. Éa cara dela...

– A filha da Camira? O bebê com olhos cor de âmbar?

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Arrisquei um palpite segundo o que tinha ouvido no CD.

– Sim. Alkina era minha mãe. Eu... bem...

Ele parecia a ponto de chorar.

– Ah.

– Então. – Francis se recompôs visivelmente. – Conte-me o que descobriu atéagora sobre seus parentes.

Eu revelei a ele o que sabia, sentindo-me acanhada e insegura diante daquelehomem imponente, que tinha uma aura de tranquilidade e carisma, fazendocom que me sentisse ainda mais sem jeito para falar do que de costume.

– Só cheguei até a parte em que o Koombana afundou, levando StefanMercer e os dois filhos. A pessoa que escreveu o livro parecia insinuar quehavia um relacionamento muito próximo entre o irmão do marido de Kitty...

Drummond, não era isso?... e ela.

– É verdade, ela sugere que eles tiveram um caso – concordou Francis.

– Sei como as pessoas gostam de escrever coisas só para vender livros, entãonão acreditei em tudo – prossegui, sentindo-me péssima por talvez estardifamando um membro próximo da família dele... da nossa

família.

– Celeno, você está me dizendo que acha que esta biógrafa pode terexagerado no que disse sobre a vida de Kitty Mercer?

– Talvez – respondi nervosa, procurando me esquivar.

– Celeno.

– Sim?

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– Quando ouvir o que tenho a lhe contar, você verá que ela não exagerou obastante.

Vi com espanto Francis jogar a cabeça para trás e rir. Quando seus olhosvoltaram para mim, notei como achava graça.

– Agora, vou lhe contar a verdadeira história. Uma verdade que só me foicontada no leito de morte da minha avó. E não vamos rir disso, porque ela foiuma das pessoas mais queridas e preciosas que já conheci.

– Eu entendo, e, por favor, não me conte se não quiser. Talvez devêssemosnos conhecer melhor para você saber se pode confiar em mim, não?

– Senti você desde que era uma semente no útero da minha filha. É com vocêque me preocupo, Celeno. Sem nunca conhecer suas raízes, saber de ondeveio... – Francis deu um profundo suspiro. – E você precisa conhecer ahistória de seus parentes. Você é da família. Sangue do sangue deles... e domeu.

– Como você me encontrou? – perguntei. – Depois de todos esses anos?

– Foi o último desejo da minha falecida esposa, sua avó, que eu procurassemais uma vez nossa filha. Não a encontrei, mas, em vez disso, encontreivocê. Para ajudá-la a entender melhor, devo levá-la de volta ao passado. Vocêconhece toda a história até o naufrágio do Koombana, que levou consigotodos os homens da família Mercer?

– Sim. Mas como me encaixo nisso?

– Entendo sua impaciência, mas primeiro você precisa ouvir com atençãopara entender. Então vou lhe contar o que aconteceu com Kitty depois disso...

Kitty Broome, Austrália Ocidental Abril de 1912

22

Kitty muitas vezes se perguntava como os seres humanos sobreviviam aosmomentos mais sombrios da perda. Em Leith, já tinha acontecido algumasvezes de ir visitar famílias nos bairros pobres apenas para descobrir que

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haviam sido dizimadas por uma epidemia de gripe ou sarampo. Elesdepositaram sua fé no Senhor, simplesmente porque não havia outra opção.

E estou com certeza a caminho do inferno, pensava ela constantemente.

Na semana que se seguiu – embora externamente sua rotina não tivesse sealterado –, Kitty passava por tudo como um fantasma, como se tambémtivesse partido deste mundo. Panos pretos foram pendurados nas vitrines daslojas ao longo da Dampier Terrace e quase todas as famílias da cidadehaviam sido afetadas pelo desastre. Para aumentar o seu choque, aindachegaram até eles notícias de que o “inafundável”

Titanic também havia sido engolido pelo oceano, com poucos sobreviventes.

Ninguém fazia ideia de como o Koombana afundara, levando sua cargapreciosa para o fundo do mar. Uma porta de cabine, a almofada de um sofáde couro marroquino... estes foram os poucos objetos que restaram nasuperfície.

Nenhum corpo fora encontrado, e Kitty sabia que nunca seriam. Os tubarõesfamintos teriam se banqueteado com a carne deles em poucas horas.

Dessa vez, pelo menos, Kitty estava satisfeita com sua pequena comunidade,e seu pesar compartilhado. As regras sociais de costume eram ignoradas, aspessoas se encontravam na rua e se abraçavam, deixando as lágrimas rolaremsem controle. Kitty ficou comovida com toda a gentileza que recebeu e oscartões de condolências deixados na caixa de correio para não perturbá-la.

Charlie, cuja reação inicial fora tão tranquila, chorara no colo da mãe algunsdias depois que ela lhe contara.

– Sei que eles foram para o céu, mamãe, mas sinto falta deles. Quero ver opapai e o tio Drum...

O sofrimento do filho pelo menos deu a Kitty algo em que se concentrar, eela passava todo o tempo que podia com ele. Com a perda de seu pai, avô etio, a linhagem masculina da família Mercer fora destruída de uma só vez, eCharlie era agora o único herdeiro. Kitty temia como isso

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poderia se tornar um fardo para o filho no futuro.

Depois de colocar Charlie na cama, acariciando gentilmente seus cabelospara fazê-lo dormir, Kitty passou os dedos pela crescente pilha de cartas etelegramas fechados em sua escrivaninha. Não podia suportar abri-los, aceitaras condolências de quem os escrevera, pois sabia que não merecia nada disso.

Embora tentasse domar seu coração insincero e concentrar seu pesar emAndrew, ela continuava a lamentar incessantemente a perda de Drummond.

Saiu para a varanda e olhou para o vasto céu estrelado, procurando umaresposta.

Como sempre, não recebeu nenhuma.

Não havia corpos a serem sepultados, então o bispo Riley anunciou umacerimônia memorial a ser realizada na Igreja da Anunciação no final de abril.

Kitty foi a Wing Hing Loong, o alfaiate local, comprar roupas de luto, masdescobriu que o tecido preto já estava esgotado.

– Não se preocupe, Sra. Mercer – disse o diminuto chinês. – Use o que asenhora tem, ninguém vai se importar com a sua roupa.

Kitty deixou a loja lotada com um sorriso amargo, vendo por si mesma que atristeza de uns podia fazer a felicidade de outros.

Embora a maioria dos lugres da frota de produção de pérolas estivesseancorada, alguns tinham sido apanhados pelo ciclone. Noel Donovan, o gentilgerente irlandês da Mercer Pearling Company, foi até a casa de Kitty lheinformar sobre as perdas.

– Vinte homens – disse ela, com um suspiro. – O senhor tem os endereçospara que eu possa escrever a suas famílias? Algum deles tem parentes emBroome? Se tiver, gostaria de visitá-los pessoalmente.

– Vou pegar todos os endereços que puder no escritório, Sra. Mercer.

Acredito que 20 de março, o dia em que o poderoso Koombana afundou, vai

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definitivamente entrar para a história. Com certeza o naufrágio nos ensina anunca ser arrogantes, não é? A arrogância do homem o faz acreditar que elepode controlar os oceanos. A natureza sabe que não é assim.

– Infelizmente para todos nós que ficamos para trás, o senhor tem razão.

– Bem, agora vou deixá-la sossegada. – Ele se levantou da cadeira, entãojuntou as mãos nervosamente. – Perdoe-me por tocar neste assunto, mas asenhora teve alguma notícia da Sra. Edith Mercer?

– Infelizmente ainda não tive coragem de abrir todos os telegramas querecebi. Nem os cartões e as cartas.

Kitty indicou a pilha crescente em sua mesa.

– Bem, também não recebi nenhuma notícia dela e não gostaria de incomodá-la, mas me pergunto se por acaso a senhora teria alguma ideia sobre o rumodo negócio de pérolas. Agora que os três homens da família Mercer seforam...

Noel balançou a cabeça, desolado.

– Confesso não ter a menor ideia, mas, sem ninguém para administrá-lo, eCharlie sendo ainda tão jovem, só posso imaginar que será vendido.

– Pensei a mesma coisa, e deveria adverti-la, Sra. Mercer, de que os abutresjá estão sobrevoando. Creio que irão procurá-la primeiro, então aaconselharia a entrar em contato com o advogado da família em Adelaide. Háum cavalheiro em particular, japonês, acredito, que está muito interessado. O

Sr. Pigott também planeja vender tudo. É realmente um grande golpe para anossa indústria. Bem, bom dia, Sra. Mercer, voltamos a nos ver na cerimônia.

Na manhã da cerimônia memorial, Kitty tentou persuadir Camira e Fred aacompanhá-los. Camira pareceu chocada.

– Não, Sra. Kitty, aquele lugar de brancos. Não para nós.

– Mas vocês merecem estar lá, Camira. Você e Fred... Vocês também os

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amavam.

Camira recusou-se obstinadamente, então Kitty partiu com Charlie nacarruagem. Na pequena igreja, as pessoas chegaram para o lado para que elapudesse se sentar com Charlie na frente. A congregação transbordou para ojardim e muitos olhavam pelas persianas das janelas para ouvir o sermão dobispo. Ao longo da cerimônia e em meio ao som do choro sentido de todosem volta, Kitty não derramou uma lágrima. Rezou pelas muitas almasperdidas, mas não choraria lágrimas por si mesma. Sabia que merecia cadasegundo da dor e da culpa que estava sofrendo.

Depois, houve uma vigília no Roebuck Bay Hotel. Alguns dos homensafogaram suas mágoas na bebida fornecida pelos mestres mandaçarres ecomeçaram a cantar canções de marinheiro escocesas e irlandesas, o que fezKitty se lembrar do dia em que fora parar no Edinburgh Castle Hotel .

De volta à casa mais tarde, sentou-se na sala de estar e, por hábito, pegou seubordado. Enquanto costurava, pensou no futuro, o seu e o de Charlie.

Sem dúvida o que ela dissera a Noel Donovan estava correto e os negóciosseriam vendidos, e o dinheiro depositado em um fundo para Charlie. Kitty seperguntava se deveria voltar para Edimburgo, mas duvidava que Edith ficariafeliz em ver o único neto deixar a Austrália.

Talvez ela insistisse para que os dois fossem morar em Adelaide, e, se Kittyse recusasse, poderia até colocar isso como exigência para ele receber suafutura fortuna...

Kitty levantou-se da cadeira e caminhou até a escrivaninha. Agora que acerimônia memorial havia terminado, tinha que começar a enfrentar o futuro.

Separou as cartas dos telegramas fechados, sentou-se e começou a ler.

Lágrimas começaram a deslizar pelo seu rosto ao ver a generosidade e aconsideração das pessoas de Broome.

“... E Drummond, que agradável sopro de ar fresco ele era. Alegrando nossa

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mesa de jantar com sua inteligência e seu humor...”

Kitty deu um pulo quando ouviu uma batida à porta da frente. Passos pesadossoaram ao longo do hall e a porta da sala de estar se abriu. Kitty prendeu arespiração, percebendo tarde demais que agora era uma mulher sozinha emuma cidade perigosa. Virou-se em sua mesa e viu uma figura parada ali depé, uma figura que lhe era muito familiar, até mesmo coberta como estava desujeira e poeira vermelha. Kitty se perguntou se estava alucinando, porquenão podia ser verdade...

Ela fechou os olhos, depois os abriu de novo. E ele ainda estava lá, olhandopara ela.

– Drummond? – sussurrou ela.

Seus olhos se estreitaram, mas ele não respondeu.

– Ah, meu Deus, Drummond, você está vivo! Você está aqui!

Ela correu para ele, mas ficou assustada quando ele a afastou de um jeitoáspero. Seus olhos azuis estavam muito sérios e vermelhos.

– Kitty, não sou Drummond, mas Andrew, seu marido!

– Eu...

Sua cabeça girou e ela lutou contra a vontade de vomitar, mas algum instintoprofundo lhe disse que devia revirar a mente para inventar uma explicação.

– Fiquei tão perdida em meu sofrimento que mal consigo me lembrar do meupróprio nome. Claro que é você, Andrew, sim, agora eu vejo. – Ela forçousua mão a acariciar o rosto dele, seus cabelos. – Como pode ser?

Como meu marido voltou para mim dos mortos?

– Eu não sei direito... Ah, Kitty...

O rosto dele se contorceu e ele caiu contra a parede. Ela o pegou pelo braço elevou-o até uma cadeira, onde Andrew apoiou a cabeça nas mãos, os ombros

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tremendo com o choro.

– Ah, meu querido... – sussurrou ela, com lágrimas nos olhos.

Foi, então, até o aparador, serviu-lhe uma dose de conhaque e colocou-a emseus dedos trêmulos. Por fim, ele tomou um gole.

– Não posso suportar – murmurou ele. – Meu irmão e meu pai... se foram.

Mas eu ainda estou aqui. Como Deus pode ser tão cruel? – Ele fitou a esposa,os olhos desolados. – Eu deveria ter estado no Koombana.

Deveria ter morrido com eles...

– Pelo amor de Deus, meu querido, é um milagre ter você de volta conosco.Por favor, me conte, como você sobreviveu?

Andrew tomou outro gole de conhaque e reuniu suas forças. A dor parecia teraprofundado as linhas em seu rosto jovem, e, sob as marcas vermelhas dalama, sua pele estava pálida de exaustão e choque.

– Deixei o navio pouco depois de Fremantle. Eu tinha que cuidar de alguns...negócios. Viajei por terra, e só quando cheguei a Port Hedland há dois diasfoi que ouvi as notícias. Não durmo desde então...

Sua voz falhou, e ele escondeu o rosto.

– Foi um grande choque para você, meu amor – disse ela, tentando se

recompor –, e você ainda não teve tempo de assimilar tudo. Deixe-me trazeralgo para você comer. E é melhor tirar essas roupas molhadas.

Vou separar uma muda seca.

O corpo de Kitty estava ansioso para se ocupar, pois sua mente nãosossegava. Ele pegou a mão dela.

– Você não recebeu meu telegrama? Eu disse que tinha uma missão de últimominuto.

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– Recebi, sim. Você disse que seu pai me explicaria o que queria dizer, mas,Andrew, ele não chegou...

A voz de Kitty falhou. Ele estremeceu.

– É claro. Como está minha mãe? Ela deve estar devastada.

– Eu... não sei. Escrevi para ela logo depois do que aconteceu, mas... –

Cheia de culpa, Kitty apontou para a pilha de telegramas ainda fechados.

–Noel Donovan veio me ver ontem e me contou que também não haviarecebido notícias dela.

– Meu Deus, Kitty! – Andrew levantou-se, tremendo de raiva. – NoelDonovan é apenas um membro da minha equipe. Numa situação como essa,ela dificilmente responderia a ele. Mas você é nora dela! Não pensou que elapoderia precisar de alguma resposta sua?

Ele começou a abrir os telegramas, lê-los brevemente, e então sacudiu um emseu rosto. venha para adelaide imediatamente pt não posso viajar para aíporque estou devastada pt preciso saber o que houve pt responda assim quepuder pt edith pt

Andrew atirou o telegrama no chão.

– Então, enquanto você foi consolada pelos habitantes locais, comparecendoa cerimônias memoriais e recebendo cartas de condolências, minha mãe ficousozinha em seu sofrimento, a milhares de quilômetros.

– Você está certo, e eu sinto muito. Perdoe-me, Andrew.

– E me perdoe por ter voltado para casa ansioso para ver minha esposa, tendodescoberto que meu pai e meu irmão estão mortos. No entanto, você ficousentada aqui nessas últimas semanas sem sequer pensar em minha pobre mãe.

Eles não falaram muito depois disso. Enquanto Andrew devorava o prato depão e frios que ela trouxera, Kitty observava suas expressõescuidadosamente, enquanto via várias emoções passarem pelos olhos de

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Andrew, mas ele não as compartilhava.

– Andrew, você vem para a cama? – perguntou Kitty após algum tempo. –

Deve estar exausto.

Ela estendeu a mão para pegar a dele, mas ele a recolheu.

– Não. Vou tomar banho. Vá dormir.

– Vou prepará-lo para você.

– Não! Eu cuido disso. Boa noite, Kitty, vejo você pela manhã.

– Boa noite.

Kitty deixou a sala e, ao chegar ao quarto, fechou a porta, mordendo o

lábio para conter o choro que se formava em seu peito.

Não posso aguentar isso...

Depois de se despir, ela se deitou e enterrou o rosto no travesseiro.

Eu o chamei de Drummond... Meu Deus! Como pude fazer isso?

– Será que ele sabe? – sussurrou para si mesma. – É por isso que ele está tãobravo? Senhor, o que foi que eu fiz?

Por fim, sentou-se e respirou fundo algumas vezes.

– Andrew está vivo – disse para si mesma. – E é uma notícia maravilhosa.

Charlie, Edith... Eles vão ficar tão felizes... Todos vão me dizer quanto tenhosorte. Sim. Eu tenho sorte.

Andrew não foi para a cama dela naquela noite. Ela o encontrou na manhãseguinte, com Charlie sentado na cadeira ao seu lado.

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– Papai voltou do céu – disse seu filho, sorrindo alegremente. – Ele é um anjoagora, e chegou com suas asas.

– E estou feliz por estar em casa – disse Andrew.

Enquanto Camira os servia, Kitty viu seu olhar confuso.

– Não é maravilhoso? Andrew está em casa!

– Sim, Sra. Kitty – concordou ela com um aceno rápido da cabeça, depoissaiu da sala.

– Sua negrinha está estranha – comentou Andrew enquanto comia trêstorradas com bacon.

– Ela provavelmente está espantada e maravilhada com seu retornomilagroso, como todos nós.

– Gostaria que você me acompanhasse até a cidade, Kitty. Acho que éimportante que as pessoas nos vejam reunidos.

– Sim, claro, Andrew.

– Depois vou ao escritório, já que imagino ter muito a fazer por lá. Vouenviar um telegrama para minha mãe no caminho dizendo-lhe que devemos ira Alicia Hall para uma visita em breve.

Quando Camira levou Charlie para a cozinha, Andrew levantou-se,observando-a.

– Li as cartas de condolências do pessoal da cidade depois do banho ontem ànoite. Eles foram muito gentis com relação ao meu pai e a mim, e com opobre Drummond. Ele, em particular, era obviamente muito popular por aqui.

– Era, sim.

– Parece que vocês socializaram bastante juntos enquanto eu estava fora.

– Os convites foram chegando, e senti que deveria aceitá-los. Você sempre

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me diz como isso é importante.

– E lembro quantas vezes você veio com uma desculpa para recusá-los nopassado. Comigo.

– Eu... Bem, as chuvas foram muito piores este ano. Acho que todos nós nossentimos presos e precisamos sair um pouco quando elas pararam –

improvisou Kitty.

– Bem, agora que voltei da morte, podemos celebrar. Espero não decepcionarnossos vizinhos por ser eu mesmo em vez do meu irmão, que Deus o tenha.

– Andrew, por favor, não fale assim.

– Até mesmo meu próprio filho não para de falar “Tio Drum” isso é, “TioDrum” aquilo. Parece que ele cativou a todos. Isso inclui você, minhaquerida?

– Andrew, por favor, seu irmão está morto! Ele se foi para sempre!

Certamente você não se ressente do fato de ele ter desfrutado de suas últimassemanas de vida aqui com a família e com os novos amigos.

– É claro que não. O que você acha que eu sou? No entanto, embora eleesteja morto, parece que entrou na minha casa e na minha vida e tomou possede tudo enquanto eu estava fora.

– E graças a Deus que ele estava aqui, principalmente quando fiquei -

doente.

– Sim, é claro – assentiu Andrew, repreendido. – Perdoe-me, Kitty, foi tudobastante devastador. Gostaria de sair para a cidade às dez horas.

Você pode se aprontar?

– Claro. Vamos levar Charlie?

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– Melhor deixá-lo aqui – decretou Andrew.

Enquanto seguiam pela Dampier Terrace, Kitty só podia supor que Andrewquisesse que o máximo de habitantes visse que ele havia retornado. Elaobservava as reações dos comerciantes e dos transeuntes, que seaglomeravam ao redor dele, desesperados para saber como conseguiraescapar de seu túmulo no mar. Andrew contou a mesma história inúmerasvezes, e as pessoas abraçavam Kitty e lhe diziam como tinha sorte.

Eu tenho, reiterou silenciosamente enquanto seguiam para o escritório pertodo porto.

Mais uma vez, Kitty testemunhou o espanto, então a alegria, quando NoelDonovan, emocionado, abraçou seu chefe. Arranjaram uma garrafa dechampanhe e improvisaram uma festa. Parecia que todos na cidade queriamcomemorar o milagre da sobrevivência de Andrew, e Kitty fixou um sorrisodiscreto no rosto enquanto as pessoas a abraçavam, chorando de felicidadepelo retorno de seu marido. Andrew estava constantemente cercado porpessoas, todas dando-lhe tapinhas nas costas, como se testando para ver se eleera real.

– Talvez devessem mudar meu nome para Lázaro – brincou Andrew naquelanoite, quando a festa foi transferida para o Roebuck Bay Hotel.

Era um raro momento de humor dele, e Kitty estava feliz por isso.

Na semana seguinte, receberam um fluxo constante de visitantes em casa,todos reunindo-se para ouvir Andrew repetir a ladainha de sua decisão dedeixar o navio em Geraldton.

– Você teve uma visão? – perguntou a Sra. Rubin. – Você sabia o que iriaacontecer?

– Claro que não – disse Andrew – ou nunca teria deixado o navio continuar.Não passou de uma coincidência...

Mas parecia que ninguém queria acreditar que tinha sido. Andrew assumira opapel do Messias, sua sobrevivência um sinal de que a felicidade estava no

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destino de Broome. Isso revigorou os capitães e mergulhadores dos lugres,que andavam abatidos desde as recentes perdas. Até mesmo seus colegasmestres mandaçarres, que quase certamente estavam ansiosos para ver aqueda da Mercer Pearling Company, saudaram Andrew na cabeceira da mesaquando a reunião semanal foi retomada.

No meio desse furacão, Kitty se via movendo-se pelos dias como umfantoche, seus braços e pernas parecendo ser operados por forças externas,sua mente presa como testemunha a uma vida que não deveria levar. A culpaatormentava constantemente seus pensamentos, dormindo e acordada.Durante o dia, Andrew era cortês, amável e grato com aqueles que orodeavam, mas à noite, durante o jantar, mal falava com ela. Depois, retirava-se para a cama, agora dando preferência à cama de solteiro em seu toucador.

– Você não ficaria mais confortável de volta ao nosso quarto? –

perguntou Kitty hesitantemente uma noite.

– Ando muito inquieto e só a incomodaria, minha querida – respondera elefriamente.

No final da semana, Kitty estava uma pilha de nervos. Sentou-se comAndrew e Charlie durante o café da manhã, percebendo que até mesmo ofilho se sentia subjugado na presença do pai. Talvez fosse simplesmente aperda terrível que Andrew estava enfrentando que tinha afetado sua atitudeem relação a ela, ou... ela não podia suportar pensar na outra razão.

– Kitty, tenho algumas coisas para resolver hoje e gostaria que você meacompanhasse. – Andrew interrompeu seus pensamentos sem nem olhar paraela.

– Claro.

Após o café da manhã, ele a ajudou a subir na charrete, então se sentourigidamente ao seu lado, enquanto conduzia. Mas, em vez de pegar a estradapara a cidade, pegou a que ia em direção à praia de Riddell.

– Aonde vamos? – perguntou ela.

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– Pensei que você e eu deveríamos conversar. Sozinhos.

O coração de Kitty bateu acelerado em seu peito, mas ela permaneceu emsilêncio.

– Charlie me disse que vocês foram à praia muitas vezes enquanto eu estavafora – continuou Andrew. – Aparentemente você até nadou. De calçola.

– Sim, eu... Bem, estava muito quente e...

Kitty piscou para afastar as lágrimas.

– Meu Deus! Para onde vamos desse jeito? Minha esposa nadando de

calçola como uma nativa. – Andrew parou a charrete e amarrou o cavalo aum poste. – Vamos andar?

Ele indicou a praia abaixo deles.

– Como você quiser – concordou ela.

Kitty pensou que, se Andrew fosse lhe dizer que sabia sobre seu caso,escolhera o lugar exato onde, apenas algumas semanas antes, deitara-se comseu irmão e fizera amor com ele. Nunca antes Andrew sugerira umacaminhada na praia; ele sempre odiara sentir a areia nos sapatos.

Uma brisa agradável soprava suavemente, e o mesmo mar que roubara Kittyde seu amor agora estava tão calmo quanto um bebê adormecido.

Andrew caminhava à frente em direção ao mar, enquanto Kitty – que nãoousava tirar as botas e enfrentar a reprovação de Andrew – seguia aos tro-peços atrás dele. Chegaram à entrada rochosa, onde, havia tão pouco tempo,subira em uma pedra e mergulhara. Andrew parou a centímetros da água, asondas espumando junto aos sapatos.

– Meu pai e meu irmão estão em algum lugar por aí. – Andrew apontou parao oceano. – Foram-se para sempre, enquanto eu estou aqui, vivo.

Kitty observou-o desabar em uma pedra, curvando a cabeça e levando as

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mãos ao rosto.

– Sinto muito, querido.

Ela entendia agora por que ele quisera ir até ali: para chorar e lamentarreservadamente a perda do pai e do irmão. Viu os ombros dele se sacudirem eseu coração ficou tocado pelo sofrimento do marido.

– Andrew, você ainda tem Charlie e eu, e sua mãe, e...

Ela se ajoelhou e tentou abraçá-lo, mas ele se afastou dela, levantou-se e saiucambaleante pela praia.

– Ah, perdoe-me, por favor, perdoe-me, Deus, mas...

Kitty ficou olhando para ele, confusa. Ele quase parecia estar rindo em vez dechorando.

– Andrew, por favor!

Ela correu atrás dele quando as ondas começaram a lamber seus sapatos bempolidos e ele desabou na areia, os ombros estremecendo, os olhos aindaescondidos atrás das grandes mãos morenas. Por fim, ele ergueu a cabeça etirou as mãos dos olhos, que estavam cheios de lágrimas.

– Deus, perdoe-me – disse ele –, mas tinha que ser assim. Por mim, por vocêe Charlie. Minha Kitty. Minha Kat...

– Andrew, não estou entendendo... – Ela olhou para ele e percebeu que, defato, as lágrimas não eram de tristeza, mas de alegria. – Por que, afinal, vocêestá rindo?

– Sei que não é engraçado, justo o contrário, mas... – Ele respirou fundoalgumas vezes e olhou para ela. – Kitty, você realmente não sabe quem eusou?

– Claro que sei, querido. – Kitty já estava se perguntando como poderia fazerAndrew voltar para a charrete e levá-lo direto ao Dr. Suzuki. Era óbvio queele havia enlouquecido. – Você é meu marido e o pai do nosso

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filho, Charlie.

– Então consegui mesmo! – gritou ele, socando o ar. – Pelo amor de Deus,Kitty, sou eu!

Ele a puxou para junto de seu corpo e a beijou ávida e apaixonadamente.

E, quando o corpo dela relaxou, soube exatamente quem ele era.

– Não!

Ela conseguiu se afastar dele, soluçando de confusão e choque.

– Pare com isso! Por favor, pare! Você é Andrew, meu marido... meumarido! – Ela caiu de joelhos. – Por favor, pare de fazer esses joguinhos –

implorou. – Seja o que for que queira que eu admita, admitirei. Por favor,pare!

Braços fortes envolveram seus ombros.

– Perdoe-me, Kitty, mas tive que fazer isso para garantir que todosacreditassem que eu era seu marido, inclusive você. Se eu fosse convincenteo bastante para enganar a pessoa que mais nos conhecia, então poderiaenganar qualquer um. Se você soubesse, então o menor olhar ou toquepoderia ter nos entregado. Agora até mesmo Charlie está convencido de quesou o pai dele.

Ah, minha querida...

Seus dedos deslizaram pelos braços de Kitty e ele beijou suavemente seupescoço suado.

– Não! – Kitty se afastou. – Como você pôde fazer isso comigo?! Como?

Fingir ser o próprio irmão de volta dos mortos! É... ultrajante.

– Kitty, você não consegue entender? É amor!

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– Não entendo nada! Só sei que você enganou todos nós! Você se fez passarpor meu marido morto, deixou meu filho acreditar que o pai voltou dotúmulo, mostrou-se ao povo da cidade e se apresentou como Andrew noescritório dele!

– E eles acreditaram em mim, Kitty. Eles acreditaram que eu era Andrew,assim como você. Tive a ideia ao pensar na última vez que vim visitá-la, e aspessoas acreditaram que eu era Andrew. Sim. – Seus braços largaram osombros dela. – É uma mentira terrível, mas tinha que aproveitar aoportunidade. Então, quando soube o que havia acontecido e vinha por terra,formulei meu plano.

– Então você sabia antes de Port Hedland?

– É claro que eu sabia! Santo Deus, até mesmo os cucaburras a centenas dequilômetros daqui gritavam a notícia das árvores. É a maior tragédia naregião em décadas.

– Então você resolveu se passar por seu irmão?

– Tem que haver alguma vantagem em se ter um gêmeo idêntico. Comcerteza eu nunca soube de uma antes, mas então percebi que talvez tudotivesse acontecido por algum motivo. Pedi um conselho aos céus enquantoestava sozinho junto à minha fogueira no deserto. Eles me disseram que avida é muito curta nesta terra. E embora talvez eu pudesse me casar com vocêum dia, quando fosse apropriado, pensar em

desperdiçar sabe-se lá quantos anos longe de você me parecia inútil quandoeu poderia simplesmente voltar e reivindicá-la no mesmo momento.Poderíamos ficar juntos como marido e mulher, e todos se alegrariam por euter me salvado e...

– Drummond... – Kitty usou seu nome pela primeira vez. – Você deve estarlouco. Você não entende as implicações do que fez?

– Talvez nem todas, mas a maioria delas, sim. Eu só queria ficar com você.

Isso é tão errado?

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– Então você está preparado para mudar sua identidade e mentir para todas aspessoas que não eu sobre quem realmente é?

– Se isso for o necessário, então sim. Para ser sincero, ainda estouimpressionado que minha imitação de Andrew tenha sido tão boa queninguém questionou!

– Você tem sido muito severo comigo. Na verdade, tem sido verdadeiramentehorrível.

– Então vou suavizar meu comportamento com você de agora em diante.

– Drummond...

Kitty estava sem palavras diante do terrível desprezo dele pela gravidade desua farsa.

– De agora em diante você deve me chamar de Andrew – replicou ele.

– Vou chamá-lo como eu quiser. Isto não é um jogo, Drummond. O que vocêfez é completamente imoral, até mesmo ilegal! Como você pode seguir tãotranquilamente com sua farsa?

– Eu não sei, mas olho para lá e imagino meu pai e meu irmão mortos nofundo do oceano, já reduzidos a nada pelos tubarões. E penso em você, Kitty,que quase me deixou também quando esteve doente.

Simplesmente entendo agora como a vida é preciosa. Então, sim, sigotranquilamente.

Kitty se afastou dele, tentando assimilar as consequências do que ele haviafeito.

Para ficar com ela...

– Devo admitir que estou surpreso por você não ter notado, mesmo eu tendofeito o máximo para ficar afastado de você fisicamente. –

Drummond tinha tirado os sapatos e as meias, e agora tirava a calça. –

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Para começar, com certeza você conhecia Andrew o suficiente para saber queele nunca viajaria por terra de charrete. Na verdade, vim para Broome acamelo, como de costume, mas achei que uma charrete pareceria maisrealista.

– Sim, realmente achei estranho, mas na ocasião não tinha nenhum motivopara acreditar que meu marido mentiria – respondeu ela friamente. – Talvezagora você possa me contar como se salvou.

– Foi Andrew quem me pediu para deixar o Koombana em Geraldton. Ele medeu uma maleta de dinheiro, disse onde eu deveria encontrar seu contato e memostrou uma fotografia do que eu deveria receber em

troca. Em suma, ele confessou ter muito medo de fazer a viagem, e sabia queeu tinha mais experiência em me orientar pelo interior da Austrália.

Considerando que eu estava prestes a fugir com a esposa e o filho delequando voltasse, achei que era o mínimo que eu podia fazer. Uma última boaação, por assim dizer.

– E o que você deveria receber?

– Kitty, isso é uma história para outra hora. Basta dizer que a covardia deúltimo minuto de Andrew salvou minha vida e, com isso, ele perdeu a dele.Se tivesse aberto seus telegramas, você teria encontrado um meu, avisandoque me encontraria com Andrew aqui em Broome com... o prêmio dele antesde seguir para Darwin como eu havia planejado.

Escrevi dizendo que me atrasaria alguns dias e que você deveria me esperarlá até eu chegar. Agora me dê linceça, mas preciso de um mergulho pararefrescar.

Kitty sentou-se na praia, a cabeça girando. Ela o viu mergulhar nas ondas deum jeito tão diferente de Andrew que mal pôde acreditar que tinha sidoenganada. Mas tinha, assim como o restante da cidade.

As implicações do que ele havia feito e o risco que correra pairavam sobre elacomo uma maldição. No entanto, ela não podia deixar de imaginar a

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felicidade que agora podiam compartilhar – legalmente –

como um casal.

Como você pode pensar assim, Kitty?! Sua consciência a cutucou e elacolocou as palmas das mãos na areia para voltar à realidade.

O que mais a irritava era o fato de ele não ter compartilhado seu plano comela, presumindo o tempo todo que ela iria querer o mesmo.

E ela queria. Deus do céu, como queria...

Mas qual era o preço?

Kitty sabia que era alto, mas, depois das mortes das últimas semanas, o queimportava? Se viver na Austrália lhe ensinara alguma coisa, era que a vidahumana era frágil; a natureza estava de fato no comando e não se importavanem um pouco com o estrago que causava aos que povoavam sua terra.

Além disso, sua família nunca conhecera Andrew; podia perfeitamente ir parasua casa em Edimburgo de braços dados com Drummond e eles nãoperceberiam nada. A Austrália ainda era um país jovem, e aqueles corajosos osuficiente para morar lá tinham o dom de criar suas próprias regras – e foraexatamente isso que Drummond fizera.

Quando ele saiu do mar e veio caminhando na sua direção, sacudindo asgotas do corpo como o cachorro que era – um oportunista e sedutor que,aparentemente, seria capaz de qualquer coisa para conseguir o que queria –,

Kitty finalmente teve um vislumbre do que seria seu futuro.

Para ficar com Drummond, teria que viver uma mentira pelo resto da vida,traindo dois homens mortos e uma esposa e mãe aflita. Isso sem falar em seuprecioso filho – um inocente em toda essa história –, que

cresceria acreditando que o tio era o pai...

Não! Não! Isso é errado, é errado...

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Quando Drummond se aproximou dela, Kitty levantou-se. Saiu caminhandopela praia, de repente incapaz de conter sua fúria.

– Como você se atreve! – gritou para o mar e as nuvens. – Como ousa meenvolver nessa sua terrível farsa! Você não vê, Drummond, que isso não é umdos seus joguinhos?! O que você fez não é menos do que – Kitty procurou aspalavras – imoral! E não terei nenhuma participação nisso.

– Kitty, minha querida Kat, pensei que você quisesse ter uma vida comigo.

Fiz isso por nós...

– Não, não fez! Você fez isso sozinho! – Kitty caminhava de um lado paraoutro na areia. – Você nem teve a decência de me perguntar antes o que euachava! Se alguém descobrisse a verdade, não há dúvida de que você iriapara a prisão!

– Com certeza você não quer que isso aconteça.

– Não é menos do que você merece. Meu Deus, que confusão. Que confusão!E não consigo ver uma saída.

– Tem que haver uma? – Drummond se aproximou de Kitty como se elafosse um escorpião encurralado que pudesse atacar a qualquer momento. –Será que importa qual é o meu nome ou o seu? Dessa forma podemos ficarjuntos para sempre. Perdoe-me, Kitty, se agi por impulso.

– Ele deu um passo mais para perto dela. – Por favor.

Ouviu-se então um estalo quando Kitty deu um tapa no rosto dele pelasegunda vez na vida, controlando-se para não se atirar em cima dele e jogá-lono chão com um soco.

– Você não vê? Se tivesse apenas esperado, tido paciência, em vez de agircom o seu impuslo habitual, então talvez um dia pudéssemos ficar juntos.

Legalmente, à vista de Deus. Todos teriam achado natural uma viúva seaproximar do cunhado. Mas não, Drummond, você tinha que tomar a lei naspróprias mãos e se apresentar como Andrew para todos na cidade!

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– Eu digo a eles que bati a cabeça ou...

– Não seja ridículo! Ninguém acreditaria nisso nem por um instante, e isso sóme implicaria na sua mentira nojenta. As pessoas realmente acreditariam quenão reconheci meu próprio marido?

– Então talvez possamos seguir o plano original – sugeriu Drummond, agoradesesperado. – Você e Charlie vêm comigo para a fazenda de gado.

Ninguém lá vai saber quem você é...

– Não! Meu marido está morto e devo honrar sua memória. Ah, Drummond,você não vê que fez um pacto com o diabo, e agora nada pode ficar bem entrenós de novo?

Kitty caiu de joelhos na areia e apoiou a cabeça nas mãos. O silêncio pesouentre os dois por um longo tempo. Por fim, Drummond falou: –

Você está certa, Kitty. Fui impulsivo. Vi uma chance de ter você para mim enão parei para pensar. Foi um grande erro, admito. Anseio tanto por

viver o momento que não penso nas futuras consequências. Então, o que vocêquer que eu faça?

Kitty fechou os olhos e respirou fundo, reunindo coragem para dizer aspalavras que precisava.

– Você tem que ir embora. O mais cedo possível.

– Para onde?

– Isso não é da minha conta. Você não me perguntou o que eu achava quandotomou sua decisão. Não quero ter nada a ver com as que vier a tomar nofuturo.

– Então talvez eu vá ver minha mãe. Deixar a poeira assentar.

Independentemente de qual filho eu seja, ela ficará reconfortada por ainda ter

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um. Quem devo ser?

– Acabei de lhe dizer que não quero ter mais nada a ver com isso. Acho quefui clara.

Kitty retorceu as mãos.

– E quanto às pessoas aqui em Broome? Eles não vão se perguntar por queseu marido chegou e partiu de novo tão rapidamente?

– Tenho certeza de que vão entender que, após a morte de um pai e umirmão, há muito a ser feito em outros lugares.

– Kitty...

Ele estendeu a mão e ela se encolheu, sabendo que o toque dele acabaria comsua determinação. Drummond recolheu-a.

– Será que algum dia você poderá me perdoar?

– Perdoo você agora, Drummond, pois sei que, apesar de sua completaestupidez, você não quis prejudicar ninguém. Também não posso dizer quenão o amo mais, porque sempre vou amá-lo. Mas nunca poderei tolerar o quevocê fez ou viver a mentira que você forjou não só para nós, mas tambémpara Charlie.

– Eu entendo. – Drummond levantou-se e, dessa vez, Kitty viu que havialágrimas de desespero em seus olhos. – Vou embora como me pediu. E

tentarei, ainda que no momento não saiba como, consertar os danos que meucomportamento egoísta infligiu a você e Charlie. Ele crescerá sem pai...

– Ou sem tio.

– Isso é para sempre?

– Nunca vou mentir para o meu filho. Ele deve manter sagrada a lembrançado pai.

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– Mas ele me viu ainda esta manhã...

– O tempo cura, Drummond, e, se você for embora, não será tão difícil dizera ele um dia que o pai morreu.

– Você me mataria mais uma vez?

– É o único jeito.

– Então – Drummond respirou fundo –, vou embora esta noite. E, por maisque queira lhe implorar, suplicar a você que mude de ideia, que aproveite achance de ser feliz que temos agora ao nosso alcance, não

vou fazer nada disso. Kitty, nunca revisite este momento e se pergunte sevocê teve alguma culpa. Não teve. Fui eu que arruinei nosso futuro.

– É melhor voltarmos. Está escurecendo.

Kitty levantou-se, o corpo mole, como se fosse um urso de pelúcia sem oenchimento.

– Posso pelo menos abraçá-la para dizer adeus?

Kitty não teve energia para responder sim ou não. Apenas deixou que ele atomasse nos braços e ficaram juntos pela última vez.

Depois de algum tempo, ele a soltou, ofereceu-lhe a mão, e voltaram juntospela areia.

Kitty ficou feliz que Charlie já estivesse dormindo quando chegaram em casa.Ela correu para o quarto e fechou a porta, depois sentou-se em uma cadeiracomo uma mulher condenada, esperando ouvir o som dos passos deDrummond pelo corredor, e o barulho da porta que lhe dizia que ele se fora.

Em vez disso, viu sombras em frente à sua janela e ouviu algumas vozes.

Levantou-se da cama e, ao olhar para fora, viu Drummond conversando comCamira no jardim. Cinco minutos depois, ouviu uma batida à porta do quarto.

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– Perdoe-me por incomodá-la, Kitty, mas devo lhe dar algo antes de partir.

– Drummond lhe entregou uma pequena caixa de couro. – Esta é a razão pelaqual ainda estou vivo. Andrew recebeu um telegrama quando estávamossaindo de Fremantle. Ele me contou que descobrira através de seus contatosque uma pérola muito famosa estava à venda.

Investigara bastante para confirmar sua proveniência e contactara a pessoaque representava o vendedor. O telegrama que recebera em resposta dizia quedevia levar o dinheiro ao lugar combinado, a algumas horas de viagem deGeraldton. Como você sabe, concordei em ser seu mensageiro, deixei o navioe fui buscar a pérola. Seguindo as orientações de Andrew sobre o queprocurar quando a visse, eu sabia que era genuína. Então – suspirou –, meuúltimo gesto para o meu irmão é entregar a Pérola Rosada nas mãos de suaesposa como ele queria. Vale muito dinheiro, pesa quase 13 gramas, eAndrew mal podia esperar para vê-la ao redor do seu pescoço e mostrar tantoo seu amor por você quanto o sucesso dele para toda Broome.

– Eu...

– Espere, Kitty. Há outra coisa. Você precisa saber que, segundo a lenda, estapérola é amaldiçoada. Todo proprietário legal supostamente teve uma morterepentina e chocante. Andrew era o dono dela, e agora se encontra no fundodo mar. Kitty, mesmo que eu deva fazer o que meu irmão pediu, imploro quevocê se livre dela assim que puder. Nunca a use. Na verdade, não devocolocá-la em suas mãos, mas deixá-la onde quer que você considere seguro.

Imploro que não a toque.

Kitty observou a caixa, depois o rosto de Drummond, e não viu nenhumasugestão de diversão em seus olhos. Ele estava completamente sério.

– Posso vê-la, pelo menos?

Drummond abriu a caixa e Kitty olhou para a pérola. Era do tamanho de umabolinha de gude grande, em tons de rosa e dourado da mais absoluta

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perfeição. Sua magnífica opalescência emitia luz própria e atraía o olhar.

Kitty respirou fundo.

– Nossa, é linda, a pérola mais extraordinária que já vi...

Ela estendeu os dedos em direção à pérola, mas Drummond tirou a caixa deseu alcance.

– Não toque! Não quero sua morte em minha consciência, junto com asoutras coisas terríveis que eu fiz. – Ele fechou a caixa. – Onde devo deixarisso?

– Ali.

Kitty foi até a escrivaninha e destrancou a gaveta secreta que ficava por baixodela. Drummond guardou a caixa lá dentro e trancou-a firmemente.

– Jure para mim que não vai tocá-la – implorou, entregando-lhe a chave.

– Drummond, não vá me dizer que realmente acredita numa história dessas.

Circulam várias por aí sobre certas pérolas em Broome. São todas inventadas.

– Infelizmente, depois das últimas semanas, eu acredito. Enquanto eucarregava essa pérola, acreditei que tinha salvado minha vida. E foi quandoela estava em minha posse que elaborei meu plano. Senti-me...

invencível, como se o impossível fosse possível. Estava eufórico. E agoraperdi tudo que importa. Minha alma está tão morta quanto meu pai e meuirmão. Então devo dizer adeus. E, se nos encontrarmos de novo, espero poderlhe mostrar que aprendi com meu terrível erro. Por favor, tente me perdoar.Eu amo você, minha Kat. Para sempre.

Drummond virou-se e dirigiu-se para a porta.

O instinto de Kitty implorava que ela percorresse os poucos metros até ele e oarrastasse de volta, que aproveitasse a oportunidade que ele havia criado paraos dois de terem uma vida como marido e mulher. Mas ela se manteve firme.

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– Adeus.

Ele sorriu para ela uma última vez. E então saiu.

23

5 de junho de 1912

Alicia Hall

Victoria Avenue

Adelaide

Minha querida Kitty,

É com o coração pesado que escrevo, porque só você pode imaginar aalegria que senti quando recebi o telegrama de Andrew, de Broome, mecontando a notícia milagrosa de sua sobrevivência, Minha querida, você é aúnica outra alma que conheço que realmente entende o que é passar pelagama de emoções que vivi nas últimas semanas. Na verdade, durante diasapós a tragédia, tive dificuldade em encontrar uma razão para continuar.Meu mundo inteiro se perdeu no espaço de algumas horas, mas felizmente eutinha o Senhor.

Andrew voltar para nós foi um milagre que dificilmente teríamos esperadoreceber. Mas recebemos, embora, como já disse, esta carta não vá terminarde maneira feliz.

Eu ansiava pela visita de Andrew aqui em Adelaide, para poder ver meuprecioso filho com meus próprios olhos. No entanto, ontem recebi uma visitado Sr. Angus, o advogado da família, para dizer que Andrew foi vê-lo epediu-lhe que entregasse uma carta que havia escrito para mim. De acordocom o Sr. Angus, parece que o golpe de perder tanto o pai quanto o irmãoem uma viagem em que Andrew também deveria estar afetou-oprofundamente. Ele carrega uma terrível culpa por ainda caminhar pelaterra enquanto eles se foram.

Cara Kitty, talvez o choque tenha sido simplesmente demais para ele, pois o

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Sr. Angus inferiu que ele não parecia estar em plena posse de suasfaculdades mentais e estava muito diferente.

Andrew pediu ao Sr. Angus para dizer a mim – e a você – que ele resolveu seafastar para se recuperar. Para se recompor, por assim dizer. Eu só queriaque ele tivesse me procurado pessoalmente, pois eu teria lhe implorado paraficar. Há muitos bons médicos que podem ajudar com um colapso nervoso;Andrew sempre foi muito nervoso quando criança, mas, aparentemente, eleinsistiu que precisava fazer isso sozinho. Ele também pediu ao Sr. Angus queimplorasse seu perdão por abandoná-la tão pouco tempo depois de terretornado, mas não queria infligir seu estado de espírito confuso a você.

Queria poder lhe dar o conforto de determinar quando Andrew retornará

para nós, mas ele não deu nenhuma indicação ao Sr. Angus. Ele também –

embora eu acredite que tenha sido loucura fazer isso – insistiu em colocartodas as participações acionárias da família em um fundo para Charlie. O

Sr. Angus trouxe os documentos para me mostrar e foi bastante terrível verque a assinatura quase não parecia a de Andrew. Se Andrew não retornar, asempresas

passarão a Charlie quando ele completar 21 anos.

Na carta de Andrew, ele me diz que visitou Noel Donovan antes de deixarBroome e lhe falou sobre sua decisão. O Sr. Donovan é um homem capaz e,sem dúvida, administrará o negócio de forma eficiente. Andrew também fezde você, Kitty, a única executora do fundo de Charlie. Mais uma vez,questionei sua decisão – a responsabilidade é um fardo pesado –, masAndrew me diz que confia cegamente em seu julgamento.

Devo também mencionar que, quando o Sr. Angus leu os testamentos do meuamado marido e de Drummond, feitos apenas algumas semanas antes,quando estavam aqui em Adelaide, o querido tio de Charlie também deixouao sobrinho todos os seus bens, o que significa que nosso amado garoto é oúnico herdeiro da fortuna Mercer. Que peso em seus ombros tão jovens, mas,tal como está, não há nada que nós, mulheres, possamos fazer para alterar

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as vontades de Andrew. Na carta, ele me pediu que lhe assegurasse que umaquantia mensal considerável será depositada na sua conta do fundo emBroome, que irá cobrir amplamente os custos de sua vida.

Entretanto, percebo que é um conforto frio em face, pelo menos porenquanto, de perder seu marido mais uma vez.

Cara Kitty, estou certa de que essas notícias serão mais um choque para seucoração já despedaçado. Imploro que pense em vir morar com meu neto aquiem Alicia Hall, para que possamos nos reconfortar e nos dar força enquantosaímos dessa nova tempestade.

Tudo que podemos fazer é rezar por Andrew e seu rápido retorno.

Por favor, deixe-me saber de sua decisão imediatamente.

Edith.

Kitty largou a carta, sentindo gotas frias de suor percorrerem seu corpo e abile subir-lhe a garganta. Ela correu para a bacia em seu quarto e vomitou.

Depois de limpar a boca e o rosto com uma toalha, levou a bacia até o vaso eesvaziou-a, como se estivesse descartando as últimas vísceras venenosas dafarsa de Drummond. Camira a viu lavando a bacia na cozinha.

– Doente de novo, Sra. Kitty? Passando mal? Chama o doutor. Está só pele eosso – disse ela, estalando a língua, enquanto enchia um copo de água e oentregava a Kitty.

– Obrigada. Estou bem, sério.

– Olhou no espelho esses dias, Sra. Kitty? Parece um espírito.

– Camira, onde está Charlie?

– Na cabana com Cat.

– Eu preciso lhe dizer que o patrão foi embora por um tempo.

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Camira olhou-a com desconfiança.

– Qual patrão?

– Andrew, meu marido, é claro.

– Talvez para melhor. – A empregada assentiu astutamente. – Eu e Fred cuidada senhora e de Charlie. Às vezes homens – Camira ergueu as sobrancelhas –causa grandes problemas.

– Com certeza.

Kitty sorriu fracamente da observação de Camira.

– Sra. Kitty, eu...

Charlie e Cat chegaram à porta da cozinha, e Camira suspirou e não dissemais nada.

Naquela tarde, Kitty sentou-se na varanda e releu a carta da sogra. Uma vezque Drummond enviara um telegrama para dizer que Andrew sobrevivera,Kitty imaginou que ele não havia tido muita alternativa a não ser levar a farsaaté o fim. Pelo menos ele mantivera sua promessa e desaparecera. Kitty ficouparticularmente emocionada com o fato de, antes de quaisquer daquelascoisas terem acontecido, Drummond já ter deixado tudo o que possuía paraCharlie em seu testamento.

Agora que seu horror inicial tinha diminuído, Kitty sabia que corria o risco dedesejar não ter agido tão precipitadamente. Primeiro viera a raiva, depois atristeza e finalmente o arrependimento. Durante as longas noites desofrimento e solidão, Kitty se torturava pensando se deveria ter dado algumtempo para a poeira assentar. Agora era tarde demais – Drummond se forapara sempre como ela havia pedido.

Após sofrer com sua perda uma vez, agora sofria novamente.

Charlie mal levantou os olhos quando soube que “papai” saíra a negóciosnovamente. Já acostumado às ausências de Andrew, e envolvido como estavacom Cat em seu mundo infantil de fantasia, ele aceitou sem rancor.

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Dolorosamente, Charlie falava muito mais no tio Drum.

– Sei que ele foi para o céu porque Deus o queria, mas sentimos falta de suasbrincadeiras, não é, Cat?

– É, sentimos – assentiu ela solenemente.

Kitty sorriu ao ouvir a menina. Falava com ela em inglês desde que nascera, eela sabia um pouco de alemão também. Era uma criança encantadora;educada, de boas maneiras e a menina dos olhos da mãe.

No entanto, Kitty se perguntava o que poderia haver para Cat no futuro, pois,apesar de sua beleza e inteligência, era mestiça; uma pária diante das culturasdos pais e, portanto, à mercê da sociedade que atualmente as governava.

Kitty abriu a gaveta da escrivaninha para escrever a Edith, recusando a ofertade ir morar com ela em Alicia Hall. Embora soubesse como seria desafiadorficar em Broome sendo viúva, pelo menos tinha sua independência ali.Talvez, pensou, pudesse levar Charlie à Escócia nas

semanas seguintes para conhecer sua família e decidir se deveria voltardefinitivamente para lá.

Os dedos sentiram o latão frio da chave que destrancava sua gaveta secreta.Em meio ao caos das emoções, havia se esquecido da pérola que Drummondlhe dera pouco antes de ir embora. Pegou a caixa e abriu a tampa.

E lá estava, brilhando sob a luz, seu magnífico tamanho e brilho rosadodefinindo-a como uma pérola de alto valor. Qualquer essência ruim quediziam ter estava profundamente escondida no grão de areia que gerara suabeleza luminosa. Como a bela rainha má dos contos de fadas, sua aparêncianão dava nenhum indício do que escondia em seu núcleo.

Então, seguindo o alerta de Drummond de não tocá-la e nunca usá-la, Kittylargou-a e caminhou pelo quarto. Vendo por um lado, era o último presentede Andrew para ela e deveria ser exposto em seu pescoço e apreciado. Poroutro lado, se Drummond estivesse certo, havia uma maldição mortal ligada à

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pérola.

Ouviu, então, uma batida à porta.

– Entre – disse Kitty, ainda pensativa.

– Sra. Kitty, crianças inquietas e dizem a Fred e eu que querem correr napraia. Eu... – O olhar de Camira recaiu sobre a pérola e suas sobrancelhasnegras se ergueram. – Sra. Kitty, não toca isso! – Camira murmurou algumaspalavras para si mesma e afastou os olhos quando um raio de sol fez a pérolacintilar. – Fecha caixa! Agora! Não olha, Sra. Kitty! Fecha caixa!

Automaticamente, Kitty fez o que ela mandava, enquanto Camira abria ajanela atrás da mesa.

– Não preocupa, eu salva a senhora.

Murmurando outras palavras incompreensíveis enquanto Kitty olhava comespanto, Camira segurou um pedaço de sua saia de musselina, envolveu acaixa e atirou-a pela janela aberta.

– O que você fez?! Essa pérola é valiosa, Camira! Extremamente valiosa.

E se não conseguirmos encontrá-la?

Kitty esticou o pescoço para fora da janela.

– Eu vejo – disse Camira, apontando para onde a caixa havia caído. – Sra.

Kitty, não vende essa pérola. Não aceita dinheiro por isso. Entende?

– Meu... marido mencionou a maldição ligada a ela, mas com certeza isso éapenas superstição, não é?

– Então me fala: por que patrão está morto? E muitos antes dele.

– Você quer dizer o Sr. Drum, Camira – corrigiu bruscamente.

– Sra. Kitty – começou ela com um suspiro –, eu sei qual deles é qual, mesmo

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que a senhora não sabe.

Kitty percebeu que não havia por que tentar manter a farsa para Camira.

– Você acredita na maldição?

– Espíritos acha homens gananciosos e mata eles. Posso sentir espíritos mausem volta da caixa. Eu disse para Sr. Drum nada bom.

– O que você sugere que eu faça com isso se não posso vender, Camira?

Além do fato de ser o último presente que Andrew me deixou, vale umafortuna. Não posso simplesmente jogar no lixo.

– Dá para mim. Eu leva caixa para longe e nenhum mal vem.

– Para onde?

Os olhos de Kitty se estreitaram por um segundo, pensando que, por mais queamasse Camira e confiasse nela, a garota era pobre e a pérola valia uma vidacompletamente nova para ela e a filha.

Camira observou sua expressão e, como de costume, leu seus pensamentos.

– Guarda maldita pérola e vende por dinheiro dos homens ricos e Charlieórfão em três meses.

Ela cruzou os braços e desviou o olhar.

– Tudo bem – concordou Kitty. Afinal, não precisava mesmo do dinheiro,nem seu filho. – Essa pérola trouxe o mais terrível azar para todos nós.

Se eu acreditasse na maldição, diria que destruiu nossa família. – Kittyengoliu em seco e olhou para ela. – Talvez, assim que ela for embora, nóspossamos respirar aliviados novamente.

– Fred me leva para lugar que ele conhece. Eu e Cat vamos por um dia com

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ele. – Camira caminhou em direção à porta. – Melhor coisa, Sra.

Kitty.

Coloca coisa ruim onde não pode fazer mal.

– Cuide para que não faça mesmo. Obrigada, Camira.

Poucos dias depois, Kitty recebeu a visita de Noel Donovan.

– Perdoe-me por me intrometer novamente, Sra. Mercer, e em um momentotão difícil para sua família, mas tenho certeza de que a senhora sabe que seumarido deixou a administração da Mercer Pearling Company em minhasmãos até que ele volte ou o pequeno Charlie tenha idade para cuidar de tudo.

– Vamos rezar para que seja a primeira opção – respondeu Kitty.

– É claro, não duvido disso. Um momento tão difícil para a senhora.

Minha própria família perdeu dez pessoas na fome da batata no séculopassado. Foi o que trouxe o restante de nós para cá. Muitos homens emulheres chegaram aqui nestas praias trazidos pela tragédia.

– Eu não cheguei com ela, mas parece que ela me seguiu até aqui –

completou Kitty bruscamente. – Agora, Sr. Donovan, como posso ajudá-

lo?

– Bem, acredito que a senhora é quem talvez saiba melhor o que se passavana mente de Andrew. E me pergunto se teria alguma ideia de quando eleestará de volta.

– Ele não me deu nenhuma indicação, Sr. Donovan.

– Não conversava à mesa de jantar, como minha senhora e eu fazemos? –

Noel continuou a pressioná-la. – Se há alguém que sabe o que ele pensavasobre o futuro, seria a senhora.

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– Sim, é claro. – Um instinto mais profundo em Kitty disse-lhe pararesponder afirmativamente. – Antes de sua partida, falamos sobre muitas -

coisas.

– Então a senhora deve saber que seu marido tirou 20 mil libras da contabancária da empresa apenas alguns dias antes de morrer, certo?

Kitty sentiu o estômago se revirar quando percebeu para o que Andrew usarao dinheiro.

– Sim.

– Talvez tenha sido para um novo lugre?

– Sim, é isso.

– E saberia dizer quem o estava construindo? Parece não haver nenhumregistro nos livros contábeis.

– Receio que não, mas acho que era uma empresa da Inglaterra.

– É possível... O fato, Sra. Mercer, é que perdemos três lugres com o ciclone.Agradeço a Deus que era a época em que ficam ancorados, ou certamenteteriam sido mais. O problema é que isso, combinado a um déficit de 20 millibras, significa que estamos com um enorme saque a descoberto no banco.

– Estamos? – Embora estivesse chocada, Kitty não demonstrou surpresa.

– Imagino que a dívida possa ser paga durante um período acordado,enquanto a companhia se recupera da perda, não?

– Vinte mil libras e três lugres a menos é muita coisa, Sra. Mercer. Mesmocom um bom carregamento nos próximos meses, eu diria que levaríamos unsbons três anos para pagar tudo antes de voltarmos a lucrar. A menos, é claro,que tenhamos sorte...

A voz de Noel falhou e Kitty viu a preocupação em seu rosto normalmenteplácido.

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– Entendo.

– E o outro problema que temos, se não se importa que eu diga, é que a moralda equipe está baixa. É uma perda dupla, entende? Por mais duro que seumarido trabalhasse, muitos deles ainda viam o Sr. Stefan como chefe. E

agora, com a ausência do Sr. Andrew, alguns dos nossos melhores homensestão sendo atraídos por ofertas de outras empresas. Ontem mesmo, Ichitaro,nosso mergulhador mais experiente, me contou que ele e seu barco estavamindo trabalhar para a Rubin. É um grande golpe, e isso só vai encorajar outroshomens a fazer o mesmo.

– Entendo perfeitamente, Sr. Donovan. É de fato uma situação muitopreocupante.

– Bem. – Noel ficou de pé. – Aqui estou eu incomodando a senhora comessas questões de negócios em um momento em que também perdeu tanto. Jáestou indo.

– Sr. Donovan. – Kitty também se levantou. – Parece-me que, como o senhorcontou, os homens estão desanimados e sem um líder. Talvez

seja uma boa ideia eu ir até o escritório falar com eles? Explicar que a MercerPearling Company ainda é uma grande empresa, e que não há motivo dealarde?

Noel parecia em dúvida.

– Eu diria que... sem querer ofendê-la, Sra. Mercer... não tenho certeza se elesouviriam uma mulher.

– Os homens não ouvem suas esposas ou são confortados por elas em casa?

Noel enrubesceu.

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– Bem, talvez a senhora tenha razão. Nossos lugres devem sair depois deamanhã. Nós nos atrasamos tentando encontrar tripulantes substitutos.

– O senhor já pagou esses homens que pediram demissão?

– Não. Eles vêm receber o salário amanhã de manhã.

– Então, por favor, reúna toda a tripulação que conseguir arrastar dos bares eprostíbulos e diga-lhes que o novo chefe da Mercer Pearling Company querfalar com eles às onze horas amanhã.

Noel ergueu uma sobrancelha.

– Está me dizendo, Sra. Mercer, que Andrew lhe entregou o negócio?

– Em essência, sim. Sou a executora dos fundos do negócio, então sou o maispróximo de um chefe que temos.

– Bem, tem uma coisa. Devo preveni-la, Sra. Mercer, de que eles são umaequipe bastante heterogênea e estarão à espera de um homem.

– Moro em Broome há cinco anos, Sr. Donovan, sei bem disso. Vejo o senhoramanhã às onze horas em ponto. – Kitty foi até a gaveta em sua escrivaninhae contou uma pilha de notas de libra australiana. – Vá à Yamasaka & Mise ecompre duas dúzias de garrafas de seu melhor champanhe.

– A senhora tem certeza de que isso é sensato, levando em conta as finançasda empresa?

– Isso não é dinheiro da empresa, Sr. Donovan. É meu.

– Muito bem. – Noel guardou o dinheiro e abriu um sorriso. – Eu diria que,de um jeito ou de outro, nossos funcionários vão ter uma bela surpresa.

Quando Noel saiu, Kitty chamou Fred para levá-la à cidade. Ela entrou naalfaiataria de Wing Hing Loong e perguntou se ele poderia fazer um corpetede manga comprida e uma saia com o algodão branco usado para os ternosdos mestres mandaçarres. O corpete deveria ter cinco grandes botões depérola, que fechariam na frente, e uma gola chinesa.

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Tendo oferecido o dobro do preço normal para se certificar de que asvestimentas estariam prontas às nove horas da manhã seguinte, voltou paracasa e passou a tarde andando de um lado para outro na sala de estarpensando no que diria quando se dirigisse aos homens.

Confusa e perguntando-se se estava completamente louca por fazer isso,

lembrou-se do pai, de pé no púlpito todos os domingos. Muitas vezes vira amultidão hipnotizada, não por suas palavras, mas pela força de sua crençanelas, e seu indiscutível carisma.

Vale a pena tentar por Andrew, Charlie e Drummond, disse a si mesma,quando de repente teve uma ideia.

Kitty observou sua imagem no espelho na manhã seguinte. Prendeu apequena corrente dourada tirada da jaqueta branca impecável de Andrew, queera o símbolo de um produtor de pérolas. Pegou o pequeno chapéu branco,colocou-o na cabeça e riu do seu reflexo. Talvez fosse um pouco demais,mas, ainda assim, guardou-o com a pasta de couro do marido, que ele usavapara transportar os documentos entre o escritório e a casa.

Então, olhou pela última vez para seu reflexo e respirou fundo.

– Kitty McBride, você não é filha do seu pai à toa...

– Cavalheiros – começou Kitty, olhando para o mar de rostos masculinosabaixo e se perguntando por um momento a quantas nacionalidadesdiferentes se dirigia.

Havia japoneses, malaios, koepangers e uma série de rostos mais brancossalpicados entre eles. Ela podia ver que alguns já estavam rindo e sussurrandouns para os outros.

– Antes de tudo, gostaria de me apresentar àqueles que não me conhecem.

Meu nome é Katherine Mercer, e sou a esposa do Sr. Andrew Mercer.

Devido à perda recente de seu pai e de seu irmão, o Sr. Mercer foi forçado adeixar Broome por um tempo para cuidar de assuntos familiares.

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Espero que todos desejem que ele faça boas viagens e rezem para queencontre forças para lidar com essas questões em um momento pessoal tãodifícil.

Kitty percebeu um ligeiro tremor na voz enquanto repetia a mentira.

Não demonstre nenhum sinal de fraqueza, Kitty, ou eles vão sentir o cheiro aum quilômetro de distância...

– Ele me pediu que ficasse em seu lugar enquanto estivesse ausente,habilmente assistida pelo Sr. Noel Donovan, que continuará a conduzir onegócio no dia a dia.

Ela viu uma série de sobrancelhas erguidas e ouviu sussurros de protesto daplateia. Então reuniu toda a força que possuía para continuar: – Cavalheiros,recentemente ouvi boatos na cidade de que a Mercer Pearling Companyestaria enfrentando problemas financeiros, devido à perda de três de nossoslugres no ciclone. Alguns dizem até que podemos sair do mercado. Tenhocerteza de que ninguém que está aqui hoje teria sido tão cruel a ponto deespalhar tais boatos, considerando a tragédia que atingiu não só nossa família,mas toda a cidade de Broome.

Sei também que todos os senhores se lembram com carinho do homem quecomeçou tudo isso, o Sr.

Stefan Mercer. A Mercer Pearling Company é uma das empresas mais

antigas e mais bem estabelecidas na cidade e garantiu a muitos aqui umarenda para suas famílias.

Kitty observou os rostos em volta e prosseguiu: – Estou aqui para dizer queos boatos sobre problemas financeiros são completamente infundados. Eforam espalhados por aqueles que têm inveja de nosso patrimônio egostariam que fracassássemos. O império Mercer é um dos mais ricos e bem-sucedidos da Austrália e posso garantir a todos os homens aqui que nãoestamos passando por qualquer problema de escassez de dinheiro, nem nocomércio de pérolas, nem em uma escala maior. Ainda esta manhã, o Sr.

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Donovan e eu assinamos um contrato para a construção de três novos lugres.E esperamos acrescentar mais dois à nossa frota até o final do ano.

Kitty respirou fundo e avaliou a reação de seus espectadores. Alguns homenstinham virado para o colega ao lado para traduzir o que ela estava dizendo.Muitos balançavam a cabeça, surpresos.

Já quase os convenci...

– Em vez de um colapso dos negócios, muito pelo contrário, iremos recrutaros melhores homens em Broome para se juntar a nós nos próximos meses. Eue meu marido desejamos continuar a fazer da Mercer Pearling Company amaior do mundo.

Com isso, alguns dos homens começaram a comemorar, o que deu à Kittycoragem para continuar seu discurso: – Aceito que alguns aqui hoje játenham decidido seguir em frente. Os senhores irão receber, é claro, tudo quelhes for devido. Se desejarem reconsiderar e ficar, porém, receberão o bônusde 10% em seus salários que o Sr. Stefan Mercer solicitou para toda suaequipe em seu testamento.

Todos a ouviam atentamente.

– Cavalheiros, em nome da família Mercer, peço perdão pela incerteza que osatormentou nas últimas semanas. E sua compreensão pelo fato de que nós,assim como tantas famílias aqui em Broome, estávamos sofrendo com nossasperdas. Alguns aqui também duvidam da capacidade de uma gerente. Noentanto, peço que olhem para as mulheres em suas famílias e reconheçam suaforça. Elas administram suas casas, sem dúvida as contas, e lidam com asnecessidades de muitos. Posso não exibir a força ou a coragem para navegaro oceano que cada um dos senhores mostra todos os dias, mas tenho ocoração repleto de ambas. E a bênção do meu falecido sogro e do meuquerido marido para conduzir a Mercer Pearling Company rumo ao futuro.

Tentando não arfar de emoção e estresse, Kitty olhou para sua plateia e viuque estavam em silêncio agora, esforçando-se para ouvir cada palavra quedizia. A pedido dela, taças de champanhe estavam sendo servidas pela sala.

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Noel apareceu ao lado dela e ofereceu-lhe uma, que ela aceitou.

– Amanhã, estarei na doca para ver aqueles que ainda estão conosco saindopara o mar. Para desejar-lhes boa sorte e rezar por um porto

seguro em sua volta. Finalmente, gostaria que erguêssemos nossas taças parahomenagear

todos os homens que perdemos no recente ciclone. E, em particular, para onosso fundador, o Sr. Stefan Mercer. – Kitty ergueu a taça. – Para Stefan!

– Para Stefan! – disseram os homens em uníssono enquanto Kitty tomava umgole de champanhe com eles.

Outro silêncio, então alguém da plateia gritou: – Três vivas para a Sra.

Mercer. Hip hip!

– Hurra!

– Hip hip!

– Hurra!

– Hip hip!

– Hurra!

Kitty cambaleou um pouco e, grata, sentiu o braço forte de Noel ampará-

la e ajudá-la a se sentar em uma cadeira ao lado do depósito.

– A senhora fez um discurso e tanto – comentou ele enquanto observavam oshomens serem servidos de mais champanhe e começarem a conversar entre

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si. – Até eu fui convencido – sussurrou com um sorriso. – Duvido que hajaum homem entre eles que não tenha sido. Embora só Deus saiba como iremoshonrar as promessas que a senhora acabou de fazer.

– Precisamos encontrar um jeito, Noel – disse ela –, e sei que vamos -

encontrá-lo.

– A senhora parece exausta. Por que não vai para casa descansar? Já fez suaparte aqui, com certeza. Agora, eles vão querer esvaziar as taças e receber seudinheiro, inclusive esse tal bônus... E nossas reservas já estão tão reduzidas...

– Tenho o montante extra comigo – avisou Kitty com firmeza. – Agora, senão fizer objeção, gostaria de cumprimentar cada um dos homenspessoalmente e pagar aquilo a que têm direito.

– Não faço nenhuma objeção, é claro.

Noel olhou para ela, espantado, fez uma reverência discreta e foi depressa atéo escritório nos fundos buscar o salário dos homens.

Naquela mesma tarde, às quatro horas, Fred ajudou Kitty educadamente a

descer da carruagem. Em seguida, ela entrou cambaleante pela porta da frenteda casa.

– Vou descansar – disse a Camira, passando por ela no hall. – Você poderialevar um jarro de água ao meu quarto?

– Sim, Sra. Kitty. – Camira fez sua habitual reverência, então observou apatroa. – Senhora doente de novo?

– Não, só muito, muito cansada.

Kitty deitou-se na cama e apreciou a brisa fresca que entrava pela janelaaberta. Nas três horas em que passara cumprimentando cada homem eperguntando por ele e sua família, nenhum pedira o último salário. Em vezdisso, chegavam até ela com um sorriso envergonhado, falavam de sua fé naMercer Pearling Company e expressavam solidariedade – às vezes através de

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um tradutor – pela recente perda de Kitty.

A empresa tinha agora um déficit ainda maior no banco, mas uma equipecompleta de mergulhadores e barcos partiriam no dia seguinte para restaurarsua fortuna.

Kitty fechou os olhos e agradeceu a Deus pelo café da manhã das quartas-feiras, uma insistência de seu pai quando ela era criança. A biografiaresumida de Elizabeth Tudor que ele lhes contava – mesmo que ela tivessesido responsável pela morte da prima escocesa, Mary –

inspirara seu discurso naquele dia.

Embora eu tenha o corpo de uma mulher frágil e fraca..., dissera Elizabethao se dirigir a seus exércitos em Tilbury Docks, pronta para derrotar aArmada espanhola.

Perdoe-me, Andrew, fiz o melhor que pude por você hoje...

Durante as duas semanas seguintes, Kitty levantava-se cedo e chegava aoescritório antes de Noel. Estudara os livros contábeis com atenção, usando aexperiência básica adquirida no trato com as contas paroquiais de seu pai.

Havia várias inconsistências – retiradas de dinheiro que ela foi verificar como auxiliar do escritório.

– Pergunte ao Sr. Noel. Ele as autorizou – revelou o homem.

– Bem, às vezes um mergulhador tinha uma pérola, quero dizer, uma pérolacontrabandeada do lugre. Se ele acreditasse que pudesse ser valiosa... – Noelolhou para as mãos, que entrelaçava e desentrelaçava nervosamente. – Emvez de arriscar que o mergulhador a roubasse e ficasse com todo o dinheiro, oSr.

Andrew... e o Sr. Stefan antes dele... ofereciam um valor para qualquerhomem que trouxesse o que acreditassem ser uma pérola particularmenteespecial.

Algumas acabavam não sendo nada além de coisas sem valor, mas, dessa

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forma, o risco era compartilhado. Entende?

– Sim, entendo perfeitamente.

Kitty marcou uma reunião no banco naquela tarde e sentou-se diante do Sr.

Harris, que parecia sentido enquanto lhe explicava detalhadamente a situação.

– Posso lhe garantir que não estamos sem fundos, Sr. Harris. O impérioMercer vale uma fortuna.

– Talvez, Sra. Mercer, mas sinto dizer que o banco precisa de uma garantiaimediata. Talvez a senhora possa transferir esses fundos de outra parte doimpério Mercer.

O gerente do banco permaneceu impassível, acostumado a morar em umacidade cheia de almas que diriam qualquer coisa para ganhar mais meses decrédito.

Como Kitty não tinha ideia do que havia nas contas bancárias da família esabendo que precisaria fazer uma viagem a Adelaide para consultar oadvogado e descobrir, ela assentiu.

– Estou ciente disso. O senhor poderia me dar um mês?

– Infelizmente não, Sra. Mercer. O saque a descoberto está atualmente nacasa das 23 mil libras.

– Talvez nossa casa pudesse servir de garantia temporária para o senhor

– sugeriu. – Fica na melhor parte de Broome e é elegantemente mobiliada. Osenhor aceitaria isso até eu conseguir outros fundos?

– Sra. Mercer – disse o gerente do banco, franzindo a testa –, longe de mimquerer aconselhá-la, mas acha isso sensato? Talvez a senhora não percebacomo a indústria de pérolas pode ser imprevisível. Eu ficaria muitoangustiado em vê-la sem um teto no futuro.

– É realmente um negócio imprevisível, Sr. Harris, e, se um jogador fosse

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arriscar um palpite, apostaria que a família Mercer provavelmente terá umaonda de sorte depois de um momento tão difícil. Trarei os documentos para osenhor amanhã.

– Como quiser, Sra. Mercer. O banco exigirá que os fundos sejam devolvidosnos próximos seis meses.

– Fechado. No entanto – disse Kitty ao se levantar –, se eu ouvir qualquerrumor sobre esta transação em qualquer parte da cidade, cancelarei todos osnossos negócios com o senhor imediatamente. Está entendido?

– É claro.

– Ótimo. Voltarei amanhã para preencher a papelada.

Kitty saiu de cabeça erguida, ciente de que não precisava passar por isso

– ela e Charlie podiam voltar para Alicia Hall e viver em meio ao luxo comEdith se assim decidisse.

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– Um destino pior do que a morte – repetiu as palavras de Drummond aodeixar o banco em meio ao sol escaldante do meio-dia.

Viver uma mentira ali sozinha era uma coisa, mas vivê-la todos os dias sob oteto de uma mulher que acreditava que seu filho mais velho estava vivo e umdia retornaria era outra.

De volta à casa, Kitty sentiu a cabeça girar mais uma vez e amaldiçoou seucorpo, sabendo que não podia demonstrar nada além de força se queria que onegócio sobrevivesse. Sentada à escrivaninha, retirou os livros contábeis quelevara para casa na pasta de couro de Andrew e os estudou de novo.

– Meu Deus. – Kitty descansou a cabeça na mesa. – O que estou fazendo?

Ouviu, então, uma batida à porta, e Camira entrou com uma bandeja trazendoo chá que ela pedira.

– Obrigada – disse Kitty, levantando-se da escrivaninha.

– Senhora parece morta também. Descansa, senhora precisa descansar.

– É só o calor, e eu...

Camira viu, horrorizada, sua amada patroa desabar no chão.

– Senhora, quando foi sua última regra?

Kitty olhou para os olhos escuros e inteligentes do Dr. Suzuki. Franziu atestaenquanto tentava se lembrar, perguntando-se por que ele queria saber issoquando era óbvio que ela ainda sofria de exaustão, além dos resquícios docólera.

– Talvez há dois meses. Realmente não sei, Dr. Suzuki.

– A senhora não sangrou desde então?

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Kitty estremeceu com sua falta de delicadeza. Mesmo sabendo que ele era ummédico melhor, o Dr. Blick nunca falaria em termos tão explícitos.

Ela pensou rapidamente.

– Foi no meio de abril – mentiu Kitty. – Agora eu lembro.

– Sério? Bem, isso me surpreende. Eu diria que seu bebê tem cerca de quatromeses.

– Eu estou grávida?! O senhor tem certeza?

– Absoluta.

Não pode ser verdade...

– Fora sua condição, a senhora se encontra em perfeita saúde. Meus parabéns,espero que seu marido volte logo para que possa lhe dar a boa

- notícia.

– Obrigada – disse Kitty, entorpecida.

– A senhora sofreu uma perda terrível, mas o que Deus tira, Ele devolve.

Só posso prescrever o máximo de repouso possível. A senhora está muitomagra e o bebê é obviamente grande. Fique na cama pelo próximo mês parapreservar a vida que está crescendo aí dentro.

Kitty observou, chocada e em silêncio, o Dr. Suzuki guardar seusinstrumentos na maleta.

– Bom dia, Sra. Mercer. Estou a seu dispor se precisar de mim.

Então a cumprimentou e saiu do quarto.

– Não, por favor... – disse Kitty, arfando, enquanto uma pequena lágrima caíade seu olho em protesto. – Tenho tanta coisa a fazer...

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Ela olhou para o teto e viu uma grande aranha atravessando-o. E

lembrou- se de quando Drummond aparecera em seu quarto para salvá-

la anos antes.

– Estou grávida de um filho seu... – disse baixinho, então agradeceu àsestrelas no céu que pelo menos, com aquela farsa, todos acreditariam que obebê era de seu marido.

Pelo que lembrava, sua última regra tinha sido em meados de fevereiro...

– Ah, Senhor... – Kitty mordeu o lábio. – Que confusão – sussurrou.

Hesitantemente, ela tocou a barriga.

– Perdoe-me – implorou àquela nova vida, inocente de todo pecado. –

Você nunca poderá saber a verdade sobre quem é seu pai.

Broome

Janeiro de 1929

17 anos depois

24

O sol já tinha se posto havia muito tempo quando Kitty ergueu os olhoscansados do livro de contabilidade à sua frente. Tirou os óculos de leitura,então pousou um cotovelo na mesa e esfregou a ponte do nariz, cansada.Olhou para o relógio na parede do escritório e viu que havia muito passavadas oito.

Os funcionários já deviam ter deixado o prédio e ela sabia que provavelmenteteria que fazer o mesmo, mas, para ser sincera, era normal para ela ficar aliaté tarde.

Deixou escapar um suspiro ao pensar em Charlie, seu querido filho.

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Pretendera recebê-lo mais cedo, ao desembarcar, mas um lugre aportarainesperadamente com um grande carregamento de conchas, e ela se distraíra eacabara perdendo a hora.

Por um lado, estava extremamente orgulhosa que todo seu trabalho árduo efaro apurado para os negócios não só houvessem restabelecido, comotambém ampliado o império Mercer nos últimos dezessete anos. E

que Charlie herdaria os frutos de tudo aquilo em apenas dois dias quandocompletasse 21

anos. Por outro lado, sentia-se culpada por ele ter se tornado praticamente umórfão em razão de sua dedicação aos negócios.

Pelo menos, enquanto trabalhava no escritório, sabia que ele era muito bemcuidado em casa por Camira, tendo Cat sempre por perto para passar otempo, e isso amenizava um pouco sua culpa. O vínculo especial que conti-nuara a florescer entre os dois ao longo dos anos não escapara à atenção deKitty. Mesmo quando ele partira para o internato em Adelaide, um desejo deAndrew que tinha honrado – e, sob as circunstâncias, a melhor solução –, osdois passavam as férias juntos.

Talvez

fosse

mesmo

bom

que

Elise

Forsythe,

uma

jovem

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extraordinariamente bonita e bem-educada, recém-chegada a Broome com afamília, se juntasse à empresa como secretária de Charlie quando eleassumisse os negócios em tempo integral. Kitty escolhera Elise a

dedo para a posição. Embora se repreendesse mentalmente por tentar juntaros dois, era

vital que Charlie escolhesse uma esposa adequada que pudesse amá-lo eapoiá-lo quando assumisse o papel de líder do império Mercer.

Quanto a ela, ainda não contara a ninguém seus planos, mas já tinha umaideia clara do que faria quando finalmente passasse as rédeas para o filho.

Kitty se preocupava em não ter a distração do trabalho no futuro, já que estedera à sua mente outro lugar para onde ir sempre que começava a vagar nadireção de Drummond e tudo que acontecera dezessete anos antes... Adevastação que sentira com sua perda, duplicada por uma perda igualmentedolorosa cinco meses depois, quase a destruíra.

Não houvera mais ninguém desde então, embora alguns pretendentestivessem mostrado interesse em se casar com a jovem, bela e rica proprietáriado mais bem-sucedido negócio de pérolas em Broome. Ela prometera a simesma nunca mais amar depois que Drummond fora embora, e manteve apalavra. Seu amante eram os negócios; seus companheiros de cama, os livroscontábeis.

– Minha nossa! Eu me tornei um homem – disse com um sorriso amargo.

Então, recolocando os óculos, voltou a atenção para o livro.

– Obrigado, Alkina. – Charlie piscou discretamente para ela, que servia ocafé da manhã para ele e a mãe.

Como sempre, Alkina o ignorou, temendo que a mãe dele percebesse, mas,uma vez que o rosto de Kitty estava enfiado como de costume nas páginas doNorthern Times, ela provavelmente não notaria nem se o teto caísse sobre a

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própria cabeça.

– Meu Deus – disse Kitty com um suspiro, virando a página do jornal. –

Houve uma revolta em Port Adelaide. Que bom que você partiu antes. –

Ela balançou a cabeça e abaixou o jornal para falar com Charlie. – Você jáconseguiu dar uma olhada na lista de convidados para o seu jantar deaniversário quinta à noite? Convidei o mesmo grupo de pessoas influentes desempre. Mal posso acreditar que em alguns dias você assumirá o seu legítimolugar entre eles. Como o tempo voa – comentou ela, novamente suspirando. –Parece que foi ontem que você ainda era um bebê nos meus braços.

Charlie queria responder dizendo que parecia que os 21 anos anteriorestinham passado excruciantemente devagar; esperava por aquele momentohavia tanto tempo...

– Não, ainda não, mas tenho certeza de que você não esqueceu ninguém,mãe.

– Esta tarde, o Sr. Soi trará seus uniformes de mestre mandaçarre.

Encomendei uma dúzia, embora me pareça que você perdeu peso desde aúltima vez que o vi. O que andou comendo em Adelaide, hein? E queria quevocê me acompanhasse ao escritório esta manhã. Empreguei uma

moça muito eficiente chamada Srta. Forsythe para ser sua secretária. Ela foialtamente recomendada e vem de uma das melhores famílias de Broome.

– Sim, mãe – disse Charlie, acostumado ao seu hábito irritante de tentaraproximá-lo de qualquer mulher com menos de 25 anos que chegasse àcidade.

Certamente, pensou ele, enquanto seu olhar seguia o corpo esguio de Alkinapara fora da sala, sua mãe já sabia que ele só tinha olhos para uma mulher.Seria um grande alívio quando ele fizesse o anúncio e toda a farsa acabasse.

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– Então, podemos sair em trinta minutos?

– Sim, mãe – concordou ele, vendo-a se levantar da cadeira.

Charlie sabia que as pessoas da cidade se perguntavam se ela era feliz,comentando que, após quase dezessete anos do desaparecimento do marido,devia ser possível solicitar uma anulação por abandono. Afinal, ela só tinha40 e poucos anos. Ele abordara meio sem jeito o assunto com ela alguns anosantes, enfatizando que não deveria se sentir culpada se desejasse pôr fim aocasamento com seu pai oficialmente.

– Eu não me importaria nem um pouco, só quero que você seja feliz, mãe

– concluíra, constrangido.

– Aprecio sua preocupação e agradeço, mas nunca mais me casarei.

Ao ver o olhar no rosto da mãe ao sair da sala, Charlie nunca mais tocou noassunto.

Quando Kitty foi ao escritório pegar os livros contábeis que usaria naqueledia, Charlie saiu à procura de Alkina. Encontrou Camira na cozinha.

– Cat saiu, Sr. Charlie – disse ela antes que ele pudesse perguntar. – Ela temtarefas, não se preocupa, volta mais tarde. Senhor sai daqui.

Ela o enxotou da cozinha, e Charlie saiu desanimado para o quarto, a fim dese arrumar para o trabalho. Fazia quatro meses desde a última vez que vierade Adelaide para casa, o tempo mais longo que ele e Alkina já haviam

ficado separados, e ele estava desesperado para abraçá-la. Quando terminaraos exames finais da faculdade no final de novembro, arrumara suas coisaspara voltar a Broome. Mas fora literalmente detido à porta por um telegramada mãe, dizendo-lhe que sua avó Edith falecera na noite anterior. Em vez deembarcar no navio, Kitty lhe pedira que esperasse por ela em Adelaide, paracuidarem das providências necessárias.

Eles enterraram Edith e depois passaram o Natal em Alicia Hall. Kitty entãoo levou às vinhas nas colinas de Adelaide, onde o encorajou a aprender o

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ofício com o gerente de lá, um treinamento para assumir seu cargo. Depoisforam a Coober Pedy, para que Kitty pudesse lhe mostrar a mina de opala.Ela insistira que ele ficasse lá por duas semanas para

conhecer o funcionamento da indústria enquanto ela viajava de volta aBroome.

Pelo menos, seu tempo prolongado em Adelaide lhe dera a chance de seencontrar regularmente com seu velho amigo Ted Strehlow. Ele conhecia Teddesde os 11 anos, quando dividiam o dormitório do Immanuel College. Emseguida, tinham ido para a Universidade de Adelaide, e, enquanto Charlie seesforçava para se formar em economia, Ted estudara os clássicos e inglês,mas estava determinado a se tornar antropólogo e pesquisar a história dosaborígines. Era um mundo bem diferente do negócio de ganhar dinheiro como trabalho dos outros, e Charlie não podia deixar de invejá-lo por isso. Teriafeito qualquer coisa para se ver livre das responsabilidades que tinha adiante.

– Charlie, você está pronto para sair? – Kitty o chamou.

– Sim, mãe – disse ele, com um suspiro –, já estou indo.

Charlie tentou se mostrar interessado ao alfaiate, que estava orgulhoso porfazer seus primeiros ternos de trabalho. Então, foi para o escritório junto aoporto a fim de conhecer a nova secretária, Elise Forsythe. Ela era realmentebonita, mas de um jeito inglês insípido, que não se comparava à beleza negrae exótica de Cat, pensou ele. Depois, participou de uma reunião com NoelDonovan e o restante da equipe sênior. Sentou-se à mesa de mogno da sala dereuniões e ouviu a conversa sobre os concorrentes japoneses.

– Eles a chamam de pérola “cultivada”, mas como acreditam que a palavra“cultura” possa estar ligada a algo que não passa de uma cópia tão grosseira?

Sua mãe resmungou depreciativamente.

– Ouvi falar, senhora, que Mikimoto está inundando os mercados – disse ocontador da empresa. – Suas pérolas esféricas são quase indistinguíveis dasnaturais, e ele abriu recentemente outra loja em Paris. Elas são chamadas dePérolas do Mar do Sul e...

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– Se as pessoas querem comprar imitações baratas, deixe que sigam em frente– retrucou Kitty. – Tenho certeza de que a moda nunca vai pegar por aqui.Agora, cavalheiro, se não tivermos mais nada para resolver, levarei meu filhopara ver seu novo escritório.

Ela se levantou e os homens fizeram o mesmo, as pernas das cadeiras -

raspando o chão de madeira. Então, Kitty saiu da sala e Charlie a seguiu pelocorredor, ao longo do qual se espalhavam escritórios cheios de bandejas depapel. Os funcionários dentro deles acenavam de maneira servil quando Kittye Charlie passavam. Sua mãe destrancou uma porta no final de um corredor eo levou para dentro.

– Então, querido, o que você acha? Mandei prepará-lo para você como umasurpresa.

Charlie ficou de pé olhando para uma grande escrivaninha reluzente, umlindo globo antigo e um refinado aparador preto laqueado, pintadodelicadamente com borboletas douradas.

– Nossa, mãe, é maravilhoso, obrigado. Só espero poder corresponder àsexpectativas de todos.

Charlie caminhou até a janela e olhou para as docas, vendo o pequeno tremque percorria o caminho até a cidade seguir firme e ruidosamente.

– É claro que vai. O negócio de pérolas está em seu sangue.

– Mãe. – Charlie sentou-se pesadamente na cadeira de couro de espaldar alto.– Não sei se estou pronto para tudo isso. Você administrou tãomagnificamente o negócio por todos esses anos...

– Meu querido, tudo o que fiz foi cuidar do império Mercer, deixado a vocêtanto por seu pai quanto por seu tio. Nos 21 anos em que o vi crescer, vocênunca me deu motivos para duvidar de sua capacidade.

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Será um sucessor digno do seu pai.

– Obrigado, mãe.

Charlie não pôde deixar de notar que Kitty não admitia levar nenhum -

crédito.

Os brilhantes olhos azuis dela o observavam atentamente.

– Você é tudo que eu, sua avó e seu pai poderíamos ter desejado comoherdeiro. Estou tão orgulhosa de você, Charlie... Só um conselho...

O olhar de sua mãe se afastou para a janela e o mar lá fora.

– Sim, mãe?

– Nunca deixe o amor cegá-lo. É a ruína de todos nós. Agora – ela forçou umsorriso e se levantou –, vamos descer até as docas e inspecionar o trabalhodas equipes nos lugres.

– Claro, mãe.

Ao se levantar e sair do escritório com Kitty, Charlie sentiu um nó nagarganta com as palavras dela.

Naquela noite, às onze horas, depois de ver a luz no quarto da mãe se apagar,Charlie saiu de casa furtivamente como um gato e cruzou o pátio até ojardim. A grama parecia bem fresca sob seus pés – resultado dos constantescuidados de Fred e do otimismo contínuo da mãe de que um dia poderia terum jardim que não sucumbisse à lama vermelha que o atravessava durante aestação das chuvas. Mas havia desistido dos canteiros de rosas, que agoraeram plantadas em grandes vasos ao redor do pátio e levadas para um abrigono instante em que uma tempestade ameaçava cair. Sem que ela soubesse, ogalpão das rosas garantira uma área seca e reservada para os dois seencontrarem. Trancado assiduamente todas as noites por Fred, Cat conseguirapegar a chave

“emprestada” e Charlie a levara ao serralheiro para fazer uma cópia.

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Mais cedo, ele mexera na pedra que ficava na parte externa, virando-a dolado vermelho para o lado verde. Esse era o sinal que usavam para combinarum encontro mais tarde, quando todos estivessem na cama.

Eles haviam passado muitas tempestades dentro do galpão, as rosas formandoum caramanchão perfumado quando se deitavam entre elas em um cobertoráspero no chão e declaravam seu amor um ao outro. E,

naquela noite, ele tinha algo muito especial para lhe dar.

Ele a tinha visto no apartamento de Ted, enquanto tomavam cerveja paracelebrar o ano-novo. Um colecionador obsessivo, os aposentos de Ted eramcheios de pedras, conchas e artefatos tribais que reunira em suas viagens. Apeça em que pôs os olhos foi uma pequena e reluzente pedra âmbar, com oque parecia ser uma minúscula formiga capturada dentro dela, presa ali pormilênios. Ted lhe dera a pedra ao notar o vívido interesse de Charlie, e, nodia seguinte, ele a levara a um joalheiro na King William Street para quefosse transformada em um anel de noivado para Cat. A cor da pedracombinaria perfeitamente com os olhos dela.

Charlie sorriu ao se lembrar da primeira vez que pedira Cat em casamento.

Fora na noite anterior à sua partida para o internato em Adelaide. Ele tinha 11

anos e ela o abraçara enquanto ele chorava de medo e saudade em seu ombropequeno e macio.

– Um dia, não precisarei fazer o que minha mãe diz, e vou voltar aqui eiremos nos casar. Como posso viver sem você? – gemera ele. – Espere pormim, está bem, minha Cat?

– Vou esperá-lo, Charlie. Vou esperá-lo.

E ela esperara, durante dez longos anos, assim como ele a esperara.

Escrevera para ela do internato todos os domingos, dividindo seussentimentos, enquanto os outros meninos ao seu redor rabiscavam poucaspalavras para os pais. Ele sabia que ela tinha dificuldade para ler porque não

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recebera nenhuma educação formal, mas só o processo de escrever para ela jáo confortava. Em troca, depois de ter lhe fornecido um grande suprimento deenvelopes selados e endereçados, Charlie recebia cartas curtas e terrivelmenteescritas, mas ela ilustrava cada missiva com imagens cuidadosamentedesenhadas de flores que tinha visto ou da lua pairando baixa sobre o mar,com uma corrente de corações e hera adornando a beirada das páginas. Senão podia falar de seu amor por ele, podia desenhá-lo.

E naquela noite – finalmente – ele a pediria em casamento de verdade.

Charlie olhou para o céu quando ouviu o leve rugido de um trovão. O

calor era sufocante, e, sem dúvida, dentro de uma hora, cairia umatempestade.

Quando levou a mão à maçaneta para abrir a porta do galpão, esperandoencontrá-la destrancada, o medo tomou conta de seu coração quando nãoconseguiu abri-la. Cat sempre chegava primeiro, já que tinha a chave. Eletentou novamente, mas a porta não se mexeu. Tentou vê-la na escuridão eouvir seus passos leves pelo jardim. Talvez fosse simplesmente suaimaginação, mas, quando ela olhara para ele no café da manhã, não vira aternura usual em seus olhos cor de âmbar. Seu maior medo sempre fora queela pudesse se cansar de esperá-lo e encontrasse outra pessoa. Mas agora eleestava a poucas horas de

declarar suas intenções para o mundo, e os dois ficariam livres parademonstrar seu amor publicamente...

Sua mente voltou para Cat e aquela última noite em que estivera no galpãocom ela, pouco mais de quatro meses antes. Tendo crescido juntos, nãosentiam o constrangimento habitual com o corpo um do outro à medida queamadureciam. Charlie riu ao se lembrar dela, com 6

anos, sentada nua na cabana deles, servindo chá em uma xícara em miniatura.Ele conhecia cada centímetro do corpo dela desde que era pequena e só pôdese maravilhar ao vê-la desabrochar, passando de uma criança encantadora auma linda jovem.

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Eles trocaram seu primeiro beijo no aniversário de 16 anos de Charlie, omomento mais maravilhoso e mais frustrante de sua vida, pois ele não queriasimplesmente beijá-la nos lábios, mas em todo seu corpo perfeito. Noentanto, os dois sabiam aonde um gesto tão íntimo poderia levar, e Charliecorou com a lembrança de Cat batendo em seu rosto quando a mão delecorreu na direção dos seios dela.

– Não posso – gemeu ela. – Não me obrigue.

Sentindo-se mal, Charlie fez de tudo para controlar seus impulsos físicos,lembrando-se constantemente de que, quando se casassem, o corpo dela seriaseu por direito.

E então... naquela noite de setembro antes de ter que voltar a Adelaide parasuas últimas semanas na universidade, ele roubou uma garrafa de champanhedo armário de bebidas e abriu com ela na cabana. Ela olhou comdesconfiança depois que ele tirou a rolha e serviu duas taças.

– Minha mãe diz que essas coisas não são boas para nós.

– Experimente uma taça, você vai adorar as cócegas que as bolhas fazem nalíngua – encorajou-a Charlie. – Juro que não lhe fará nenhum mal.

Ela tomou um gole – só para lhe agradar – e fechou os olhos para assimilar onovo gosto.

– Eu gosto disso – disse alguns instantes depois, abrindo os olhos e sorrindopara ele.

Ela terminou aquela taça, e ele lhe serviu de novo. Charlie terminou de bebero resto, e os dois ficaram lá deitados no cobertor áspero, falando sobre ofuturo.

Foi ela que se virou para beijá-lo, foi ela que rolou para cima dele e conduziua mão de Charlie para soltar os botões de sua blusa. Depois disso, a felicidadede sentir a pele nua dela contra a sua impediu qualquer pensamento racionalde detê-los antes que se amassem. Cat adormeceu logo depois, mas Charlieficou acordado, absorvendo cada centímetro glorioso do corpo nu ao seu

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lado. Consolava-se com o pensamento de que, dentro de alguns meses, osdois seriam marido e mulher, e mesmo que aquele evento houvesse sidoprematuro, ele tinha certeza de que todos os seus diferentes deuses osperdoariam. Afinal, eles eram adultos e o ato do amor era completamentenatural...

Outros vinte minutos se passaram em frente ao galpão sem nenhum

sinal de Cat. Charlie levantou-se e caminhou pelo gramado. Entrou na casa edeu uma olhada na cozinha para ver se ela havia se atrasado por lá, mas acasa toda estava escura. Ao seguir em direção à cabana que Cat e a mãecompartilhavam, viu Fred adormecido em sua cama improvisada no estábuloe sentiu uma gota de chuva na mão. Fred sempre dormia do lado de fora, amenos que visse o sinal de uma tempestade se aproximando, quando entãobuscava abrigo. Ao chegar à porta da cabana, aguçou os ouvidos, mas nãoconseguiu escutar nada.

Segurou então a maçaneta e girou-a o mais silenciosamente que pôde.

Lá dentro, viu o luar passando pelas venezianas da janela e iluminandoCamira, que dormia na cama de casal.

Ao fechar a porta, uma onda de pânico o invadiu. Onde estava Cat? Apósvasculhar o resto do terreno, Charlie voltou ao galpão das rosas, perguntando-se se poderiam ter se desencontrado enquanto ele estava fora. Tentou abrir aporta de novo, mas ainda estava trancada. Ele então agachou-se,perguntando-se por que, justo agora que estava tão perto de realizar um sonhode anos, ela não estava ali.

Talvez ela tenha conhecido alguém... algum mergulhador dos lugres, quemsabe, pensou.

Charlie sentiu o estômago se revirar, então se perguntou se deveria pegar acharrete e ir até a cidade procurá-la. Talvez sua mãe tivesse lhe pedido parafazer alguma coisa já tarde e, no meio do caminho, ela tivesse sido abordadaou até mesmo estuprada...

À sua volta, havia apenas o mais absoluto silêncio que antecedia o irromper

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das águas de uma grande tempestade, e foi então que de repente ele ouviu umsom vindo de dentro do galpão. Uma pequena tosse, ou talvez um soluço, ouum choro... ele não sabia ao certo, mas era o suficiente para fazê-lo entrar emação.

O trovão retumbou no alto quando ele bateu o punho na porta.

– Cat, sei que você está aí. Deixe-me entrar agora!

Outro rugido de trovão, e ele bateu novamente à porta.

– Vou derrubar a porta se você não abrir!

Finalmente, a chave virou, e ao entrar Charlie viu Cat olhando para ele, omedo acentuando seus lindos olhos.

– Pelo amor de Deus! – Charlie passou pela porta, ofegante. – Você estava aío tempo todo? Não me ouviu tentar abrir?

Ela baixou os olhos.

Charlie fechou a porta, trancou-a e foi até ela para abraçá-la. Ela não seentregou; foi como abraçar um poste.

– O que foi, minha querida? O que aconteceu?

Ela se afastou dele, depois virou-se e sentou-se no cobertor. Então disse algo,mas Charlie não conseguiu ouvir porque os trovões abafaram sua voz baixa.

– Desculpe, o que você disse?

– Eu disse que estou grávida. Vou ter um bebê. Jalygurr.

Charlie viu Cat colocar o punho na boca para não gritar. Ela tremia da cabeçaaos pés. Outro estrondo de trovão e a chuva começou a cair no telhado demetal acima deles.

– Eu... – Ele andou em direção à jovem para abraçá-la, mas ela recuou,aterrorizada. – Cat, minha querida Cat... por favor, não tenha medo de mim.

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Não sou o inimigo, sério, eu...

– Se minha mãe descobrir, ela vai me bater, me atirar na rua! Eu prometi aela, prometi...

– Meu amor. – Charlie deu alguns passos hesitantes em sua direção. –

Posso entender por que está tão angustiada e, sim, é um pouco prematuro,mas...

– Eu prometi a ela, prometi não repetir o que ela fez – gemia Cat, afastando-se ainda mais. – Nunca confie nos brancos, nunca confie neles, nunca confieneles...

Charlie a viu erguer os joelhos protetoramente à frente do corpo.

– E sua mãe estava certa – disse ele, dando outro passo em sua direção. –

Mas não sou apenas um homem branco qualquer. Sou seu Charlie, e você éminha Cat. Pense nas vezes em que imaginamos que nos casaríamos eteríamos uma família.

– Sim! Mas nós éramos crianças, Charlie. Era brincadeira. Não a vida real.

E agora é. Eu quero me livrar disso, afogá-lo assim que nascer. Então nãoterei esse grande problema.

Charlie ficou horrorizado com as palavras dela.

– Por favor, Cat.

Ele deu os dois últimos passos em sua direção. Os trovões continuavam aretumbar acima de suas cabeças, como se toda a força dos céus expressasseseu desagrado.

– Tenho algo para você aqui no meu bolso. – Ele se agachou ao lado dela etirou o anel âmbar. – Está tudo bem, meu amor. Ouça-me. – Charlie seguroua pequena mão direita dela na sua. – Minha querida Cat – ele pegou seu dedoanelar –, você quer se casar comigo?

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Então deslizou o anel no dedo de Cat, e viu os olhos dela correrem para oobjeto e o observarem silenciosamente.

– É feito de âmbar, e tem algum tipo de inseto preso dentro dele. Achei quecombinaria com os seus olhos. Você gostou?

– Eu... – Cat mordeu o lábio. – É um presente bonito, Charlie.

– Está vendo? Vai ficar tudo bem. Nós nos casaremos o mais rápido possível,meu amor.

– Não. – Cat olhou para ele. – Não posso me casar com você, Charlie. Sousua empregada.

– Sabe que não me importo com isso! Eu amo você. Quero me casar comvocê desde menino.

Cat olhou para o céu. Quando seu olhar voltou para ele, estava cheio detristeza.

– Charlie, em 24 horas você vai se tornar o branco mais importante emBroome. Você vai herdar a Mercer Pearling Company e se tornar o grandechefe. Sabe muitas coisas que eu não sei, porque teve uma boa educação.Você pertence ao mundo dos brancos, eu não.

– Posso lhe ensinar, Cat, assim como fiz no passado.

– Não! Ninguém virá comer à nossa mesa se eu for sua senhora. Você será...– Cat ergueu as sobrancelhas procurando as palavras – ... mira de zombaria.

– Alvo – corrigiu Charlie automaticamente.

– Alvo, isso. E nossa descendência não é a mesma. Não. – Alkina balançou acabeça com firmeza. – Você precisa de uma mulher branca, não de mim.

Não posso ser motivo de orgulho para você, ser algo que eu não sou.

Não quero os brancos rindo de mim pelas costas, dizendo que sou burra.

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E

eles ririam de mim. Sou uma boa pessoa, só diferente.

– Eu sei, mas... – Outra vez, Charlie procurou as palavras certas. – Aquidentro – apontou para a barriga dela –, há algo que nós dois fizemos comnosso amor. Não devemos colocá-lo em primeiro lugar? Se nos casarmosrapidamente, ninguém saberá, porque o bebê só chegaria cedo e...

– Você está sonhando. Todos saberiam por que você se casou comigo. Jáestou de quatro meses. – Alkina puxou a mão e recostou a cabeça nosjoelhos.

– Eles nunca acreditariam no nosso amor.

– Mas eu acredito – disse Charlie, sua voz forte e clara acima do trovão. –

Você é a responsável por me fazer seguir em frente nos últimos dez anos.

Nunca se passaram mais do que alguns minutos, nem mesmo durante asprovas finais, sem que eu pensasse em você. Não... – Ele tomou o rosto deCat nas mãos e ergueu a cabeça dela. – Repito, nunca me coloque na mesmacategoria que outros homens. Amo você de todo o meu coração.

Você é minha jarndu nilbanjun... Estamos prometidos um ao outro.

Minha vida não seria nada sem você e nosso bebê que está por vir.

Então ele a puxou para os seus braços e beijou-a apaixonadamente, mas ela oafastou.

– Marlu! Não! Pare com isso! Por favor, pare! Apesar de tudo o que estudou,você não entende! Não posso ser sua esposa. Não há futuro para nós.

– Há, sim, minha querida. E, sim, você está certa, talvez vá ser difícil, etalvez todos fiquem chocados com a nossa união, mas certamente devemos àsfuturas gerações de homens e mulheres neste país marcar nossa posição, não?

E estou perfeitamente disposto a fazer isso. Em 24 horas, herdarei uma

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grande fortuna. O dinheiro conta... principalmente nesta cidade. – Charlievoltou a abraçá-la, segurando o corpo retesado de Cat junto ao seu. –

Minha querida, já somos uma família, você não vê? Era para ser.

– Não! Eu... você e isso – Cat tocou a barriga – não somos apenas uma

experiência. Somos humanos, e esta é nossa vida, Charlie. Vivemos lado alado, sim? Sempre juntos, mas a verdade é que somos muito diferentes.

Você anda pelo mundo como um branco com um véu diante dos olhos.

Você não vê como o resto do mundo me vê, como eles me tratam por causada cor da minha pele. Você não vê como o mundo não está aberto para mim,porque você é livre, e eu não. E nosso bebê não será livre.

– Cat, seríamos marido e mulher, e a lei permitiria! E farei tudo o que puderpara garantir que você e nosso bebê fiquem seguros, assim como minha mãefez por Camira, por você! – Charlie torceu as mãos enquanto tentava fazê-

la entender. – Eu não tenho nada sem você.

Fez-se então um momento de silêncio, em que os dois ficaram ouvindo achuva bater no telhado.

Um longo suspiro escapou dos lábios de Cat.

– Charlie, acho que você não mora aqui em Broome há muito tempo. Nãoentende como é.

– Não me importo com isso! Batizaremos o bebê na frente de toda a cidade!Conversei sobre isso com Ted... o amigo de quem lhe falei, cujo pai dirige aMissão Hermannsburg, perto de Alice Springs. Ted me ensinou muito, ele atéfala arrernte, e contou que os aborígines da missão são livres para ir e vir. Osbrancos respeitam sua cultura e...

– Ele sabe de mim?

– É claro que sim.

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– Ele se casaria com alguém da minha cor?

– Deus, eu não sei, nunca perguntei...

– Rá! As coisas que os outros dizem, mas não fazem...

– Não! Não é assim. Ted Strehlow é um bom homem, um homem que quertrazer mudanças para a Austrália...

– Ele vai morrer antes de conseguir fazer isso. – Cat arrancou o anel âmbar eo estendeu de volta. – Não posso aceitar isso. Fique com ele, por favor.

Ela colocou o anel na palma da mão de Charlie. Ele estava prestes a suplicarque ficasse com o anel quando de repente ouviram uma batida forte à porta.Os dois quase morreram de susto.

– Tem alguém aí?! Meu Deus, estou me afogando aqui e minhas rosastambém! Por que minha chave não encaixa na fechadura?!

– Jidu! Esconda-se, Cat! – ordenou Charlie.

Ela já tinha se levantado e apagava as velas antes de tirar o cobertor do meiodo piso.

– Desculpe, mãe, sou eu – falou Charlie alegremente pela porta. – Ouvi atempestade e já havia começado a guardar suas rosas.

Certificando-se de que Cat estava bem escondida nas sombras, virou a chavena porta o mais silenciosamente possível e atirou-a nas mãos de Cat,enquanto fingia virar a maçaneta várias vezes.

– Nossa, a fechadura está agarrando, precisamos pedir ao Fred para

passar óleo – disse bem alto.

Então virou-se de novo para a figura nas sombras e sussurrou: – Eu amovocê.

Depois, com um puxão exagerado, abriu a porta.

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– Mãe! Você está completamente ensopada!

– Estou, mas vou secar logo. – Kitty entrou no galpão, arrastando um vaso derosas. – Nunca soube que essa porta estava prendendo. Parecia que você tinhatrancado por dentro.

– Por que eu faria isso? Certo, vou sair depressa e tentar salvar o resto dosvasos da morte.

Charlie riu e saiu do galpão para a chuva.

– Obrigada – disse Kitty alguns minutos depois, quando as últimas rosasforam levadas para o abrigo, em segurança. – Eu me orgulho de saber quandouma tempestade está chegando, mas esta noite – suspirou – eu estava tãocansada...

– Claro, mãe. Você trabalha demais.

– E ficarei realmente aliviada em passar o fardo a você – replicou Kitty. –

A propósito, convidei Elise Forsythe para sua festa de aniversário. Ela é umajovem tão agradável... Ela me disse hoje, depois que você foi embora, que oavô dela é da Escócia.

– Que coincidência. Agora, mãe, vamos para casa nos secar?

– Sim. Obrigada, meu querido. Sei que sempre posso contar com você.

– Sempre, mãe – disse Charlie quando fechou a porta e Kitty a trancou.

Quando os passos se afastaram, uma figura emergiu das sombras no interiordo galpão. Depois de andar na ponta dos pés até a porta e destrancá-la com achave que Charlie atirara para ela, abriu-a e saiu furtivamente para a noite.

A tempestade diminuíra, pelo menos por um tempo. Apoiando-se no galpão,Cat olhou para o céu, as mãos envolvendo a barriga de maneira protetora.

– Hermannsburg – disse ela baixinho quando uma lágrima rolou pelo seurosto. – Santuário.

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Alkina deitou-se na cama ao lado da mãe, tão silenciosamente quanto umgato, fazendo jus ao apelido que recebera, e tentou acalmar a respiração.

Ajudem-me... por favor, ancestrais, ajudem-me, implorou ela.

Naquela noite, sonhou que as gumanyba haviam descido até a caverna.

Viu quando elas atravessaram a floresta e o Velho apareceu. Elas correram devolta para a caverna, mas a mais nova foi deixada para trás.

De repente, o Velho a perseguia, mas, quando entrou na caverna, ela sabiaque tinha que encontrar algo que estava enterrado bem no fundo do solovermelho. Suas irmãs a chamavam, dizendo-lhe para se apressar, que o Velhoestava quase chegando e a tomaria para si. Ainda assim, embora pudesseouvir os pés dele trovejando no chão, ela continuava cavando porque nãopodia deixar a terra sem aquilo...

Alkina abriu os olhos bem no momento em que tinha achado uma lata e atirava do chão. Então uma lembrança voltou à sua mente, de sua mãelevando-a para o bush quando tinha 14 anos para iniciá-la nos costumes deseus ancestrais. A caminho do corroboree, sua mãe avisou que precisavaparar e verificar uma coisa. Elas haviam chegado a uma caverna exatamentecomo a que vira em seu sonho, e Camira se abaixara e começara a escavar aterra até tirar de lá uma caixa de metal.

– Afasta – dissera à filha, enquanto se sentava de pernas cruzadas e a abria.

Curiosa, Alkina obedecera, mas observara enquanto a mãe abria a pequenacaixa de couro protegida dentro da lata. Naquele momento, o sol iluminara oobjeto lá dentro, que parecia brilhar com uma opalescência rosa, como Alkinanunca tinha visto antes. Brilhava como a própria lua, e ela ficara hipnotizadapor sua beleza.

Então a caixa fora subitamente fechada, devolvida à lata e enterrada. Sua mãese levantara, murmurando algumas palavras, então voltara até ela.

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– Bibi, o que é aquilo? – perguntara a Camira.

– Você não precisa saber. Aquilo seguro onde está, e também Sra. Kitty.

Agora nós segue nosso caminho.

Quando Alkina viu a aurora começar a passar pelas persianas de madeira dacabana, soube o que tinha que fazer.

25

Charlie também não conseguiu dormir. Virava-se de um lado para outro nacama, enquanto pensava no que fazer e se repreendia por ter desencadeadotudo aquilo – afinal, fora ele quem dera champanhe a Cat.

Ele entendia o medo dela, e não tinha dúvida de que o início seria difícil.

No entanto, uma vez que já havia uniões mestiças na cidade, a deles tambémseria aceita, não é mesmo?

Havia apenas outra opção, e Charlie a considerara muitas vezes no anoanterior, enquanto se preocupava com seu futuro como comerciante depérolas.

Ninguém jamais lhe perguntara se era isso que queria fazer. Como o filho deum rei, presumia-se que ele vestiria o manto quando chegasse a hora

– fosse ou não apto à tarefa. Charlie já sabia havia algum tempo que não era.Odiara cada segundo de seu curso de economia na universidade. Até mesmoseus professores diziam que ele não tinha aptidão para os números, mas,quando tentara hesitantemente levar a questão à mãe, ela afastara suasdúvidas.

– Meu querido Charlie, você não estará lá para adicionar e subtrair.

Muitos funcionários se encarregarão disso. Você estará lá para liderar,inspirar e tomar decisões sobre a direção que os negócios devem seguir nofuturo.

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Não era um grande consolo, já que nenhuma das facetas do negócio lheinteressava, fossem pérolas, opalas ou gado. Todas pareciam envolverprivação e às vezes morte para aqueles que trabalhavam para as empresas,enquanto os “patrões”, como Cat os chamava, ficavam ricos com o trabalhoduro de seus funcionários.

Então... se Cat se recusasse a se casar com ele em Broome, Charlie estavapreparado para desistir de tudo e ir embora com ela para onde quisesse.

Sua mãe já estava à mesa quando ele chegou para o café da manhã; ela lia seujornal de costume.

– Bom dia, Charlie. Como você dormiu?

– Bem, obrigado, mãe. E você?

– Muito melhor depois de saber que minhas preciosas rosas estavam a salvoda chuva. Obrigada por ser tão atencioso.

– Café, Sr. Charlie?

– Sim, obrigado.

Ele ergueu os olhos, pronto para sorrir para Cat, mas em vez disso foisaudado pelos olhos de Camira. Sentiu, então, um aperto repentino no peito.

Cat sempre servia o café da manhã.

– Cat não está bem?

– Ela bem, Sr. Charlie. Ela vai visitar prima – respondeu Camira de modotranquilo.

– Entendo. Quando ela volta?

– Quando o bebê da prima nasce. Talvez uma semana, talvez duas.

Os olhos inescrutáveis de Camira pareciam ver dentro dele, e Charliecomeçou a suar frio, mesmo com o calor já intenso do dia. Ela estava lhe

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passando alguma mensagem secreta? Com certeza Cat não teria contado àmãe sobre sua condição, não é?

– Certo – conseguiu dizer, tentando acalmar a respiração e manter o controlena frente da mãe, na frente das duas mães, quando tudo o que queria era sairdepressa da mesa do café e ir procurá-la.

– Você disse que Cat não está?

Kitty tirou os óculos de leitura para olhar para Camira.

– Sim, Sra. Kitty. Eu cuida de tudo enquanto ela não está aqui.

Camira colocou o bule no aparador e saiu da sala.

– Um eufemismo para ela ter saído por aí – sussurrou Kitty. – De qualquerforma, o mais importante é você, meu querido Charlie. À meia-noite de hoje,você completa 21 anos e se torna o legítimo proprietário de todos osinteresses comerciais Mercer. Como está se sentindo?

– Um pouco assustado, mãe.

– Não há necessidade disso, embora eu não possa dizer que você estáassumindo no momento perfeito, já que os pedidos de conchas diminuíramrecentemente...

Charlie não ouviu o que ela disse, apenas assentia e sorria apropriadamentesempre que ela fazia uma pausa para avaliar sua reação.

Cat, onde você está...?

Por fim, para alívio de Charlie, sua mãe parou de falar e se levantou.

– Então sugiro que você aproveite seu último dia de liberdade antes deassumir suas responsabilidades. Amanhã será um dia atarefado. Haverá umalmoço no escritório para recebê-lo, então, é claro, o jantar dançante noRoebuck Bay Hotel à noite. Vamos rezar para que a tempestade tenhapassado, ou metade das pessoas importantes de Broome vai chegar com terravermelha manchando a barra de suas calças e saias. – Ela riu. – Vejo você à

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noite.

– Sim, mãe.

Charlie assentiu com cortesia quando ela deixou a sala, e pouco depois saiupara procurar Camira. Ele a encontrou na cozinha, depenando um pato eestalando a língua. Atualmente Cat era a cozinheira; aprendera bem com amãe a preparar comida britânica.

– Aonde ela foi? – perguntou ele, sem se importar se Camira sabia ou nãosobre o bebê.

A empregada deu ligeiramente de ombros.

– Foi ajudar prima.

– Você acredita nisso?

– Ela minha filha. Ela não mente para mim.

Charlie desabou em uma das cadeiras de madeira que cercavam a mesa dacozinha. Sabia que estava muito perto das lágrimas.

– Ela é uma amiga especial. Você sabe disso. Nós crescemos juntos e...

Por que ela iria embora na véspera do meu aniversário de 21 anos?

Camira virou-se e observou-o, o olhar inabalável.

– Pensa, o senhor sabe o porquê. Eu também, mas nós não conversa sobreisso. Talvez para melhor, sim?

– Não! – Ele bateu o punho na mesa. – Eu... – Ele balançou a cabeça,sabendo a regra de ouro de nunca divulgar informações, muito menossentimentos, para um criado, mas a sorte estava lançada. – Eu a amo; Cat étudo para mim. Eu a pedi em casamento ontem à noite! Queria dizer aomundo amanhã que ela será minha esposa! Por que ela foi embora? Eusimplesmente não entendo!

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Então ele chorou, e os braços que o envolveram gentilmente não eram de suamãe, mas de sua mãe de criação, que vinha de outro mundo.

– Ah, Deus, Camira... Você não sabe quanto eu a amo, quanto preciso dela.

Por que ela foi embora?

– Ela pensa que faz o melhor para o senhor. Não quer atrapalhar sua vida.

Senhor deve ser parte do mundo branco.

– Nós conversamos sobre isso desde crianças! Eu falei para ela ontem à noiteque nos casaríamos e viveríamos juntos pelo resto de nossas vidas! – Charliebateu novamente na mesa. – Todas as cartas que lhe escrevi nos últimos dezanos, dizendo-lhe quanto sinto sua falta, quanto a amo... Eu não poderia terlhe dado mais provas do meu amor. Acredite em mim – Charlie balançou acabeça, devastado –, eu desistiria de tudo que tenho de bom grado.

Não significa nada para mim, não tenho nenhum interesse em ficar rico, sóem viver com ela, com amor, entusiasticamente à vista de Deus.

O rosto de Camira se suavizou.

– Brancos são chefes. Talvez ela quer ser sua própria chefe. Não viver no seumundo.

– Camira, onde ela está? Para onde ela foi? Pelo amor de Deus, diga-me!

– Eu não sei, juro, Sr. Charlie. Ela me diz que vai, e eu entende. Eu vê e euentende. Sabe?

Ela olhou para ele e Charlie assentiu.

– Cat teria ficado segura comigo. Eu poderia protegê-la.

– Ela cheia de medo. Precisa tempo para pensar.

– Quanto tempo? Se ela voltar em alguns meses, a evidência será óbvia! É

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agora ou nunca. Diga-me aonde ela foi! Você deve, precisa!

Camira caminhou até a porta dos fundos da cozinha. Abriu-a e então ficou dolado de fora por um tempo, a cabeça voltada para cima como se estivessepedindo orientação. Quando voltou para a cozinha, balançou a

cabeça.

– Sr. Charlie, nem ancestrais me diz onde minha filha vai. Acredita em mim.

– Ela lhe deixou uma mensagem? Para mim, quero dizer?

– Sim, ela me pede para dar algo ao senhor amanhã.

– Se isso dará alguma pista de onde ela está, você precisa me entregar agora!

– Faz como Cat diz. Amanhã.

Charlie sabia que não adiantava discutir.

– Então irei à sua cabana à meia-noite.

Camira assentiu.

– Agora preciso cozinhar pato.

Charlie foi até a cabana pouco antes da meia-noite, e estendeu a mão parabater de leve à porta, mas, antes que sua pele tocasse a madeira, Camira aabriu.

– Aqui. – Ela entregou a Charlie um pacote de papel pardo amarrado comuma fita que ele já vira no cabelo de Cat. – Feliz aniversário. Parabéns!

Senhor um homem agora, não mais menino. – Camira sorriu para ele comternura. – Eu ajuda o senhor a crescer.

– Ajudou mesmo, Camira, e sou grato por isso. – Ele olhou para o pacote em

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suas mãos, depois para ela de novo. – Você não está preocupada com suafilha?

– Eu confia, Sr. Charlie, ela bem crescida agora. Que escolha eu tenho?

Por favor. – Ela colocou a mão sobre a dele, a palma dela, quente. – Este seudia. Senhor merece. Por favor, aproveita. Eu e Cat queremos que aproveita.

– Vou tentar, mas você tem que saber...

Camira levou o dedo aos lábios.

– Não diz essas palavras. Já sei. – Camira ficou na ponta dos pés e beijou atesta dele. – Senhor meu garoto também. Eu sua bibi. Orgulhosa do senhor.

Galiya.

Ela fechou a porta e Charlie voltou para casa. Sentado em sua cama, elerasgou o papel pardo, todas as suas esperanças atadas ao que iria encontrar.

Uma pista que pudesse seguir, qualquer coisa que o levasse até Cat.

Após desembrulhar as muitas camadas que envolviam o presente, segurou apequena moldura de madeira, esculpida com linhas delicadas moldandorosas. Segurando o quadro sob a luz, viu que Cat havia pintado os doissentados no galpão das rosas, a cabeça mais clara dele inclinada em direção àdela, mais escura. Suas mãos estavam entrelaçadas de tal forma que ele malpodia distinguir os dedos de cada um.

Charlie fechou os olhos, a pintura ainda na mão. E, enquanto amanhecia

– 21 anos desde que chorara pela primeira vez –, adormeceu.

Charlie sempre tentaria se lembrar do dia do seu aniversário de 21 anos, mastudo passara como um borrão de rostos, presentes e champanhe, que aceitarairrestritamente para afogar sua agonia. Ele fingia ser um adulto formado,embora cada parte dele gritasse por Cat.

Houve música após o jantar no Roebuck Bay Hotel, e Elise Forsythe dançou

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com ele muitas vezes, mostrando suas covinhas perfeitas enquanto ria de tudoque ele dizia, mesmo que não fosse nem um pouco engraçado. Ela contou aCharlie que vinha de uma família aristocrática, e ele podia ver que isso lhecaía muito bem. Admitiu que a jovem estava linda em seu vestido azul-escuro, com o cabelo louro e a pele pálida como espuma de leite. Quandochegou a hora de soprar as velas em seu extravagante bolo de aniversário detrês andares, a multidão irrompeu em aplausos, e Kitty se iluminou deorgulho.

Charlie ouviu seu discurso generoso, os olhos baixos de constrangimento edesespero. Deram três vivas a ele, e todos ergueram as taças em um brinde.

Sozinho em seu quarto mais tarde, depois de agradecer profusamente à mãepor uma festa tão maravilhosa e pelo relógio caro de um joalheiro suíço,Charlie pensou que nunca ficara tão grato por chegar ao fim de um dia. Eledevia estar no escritório às nove na manhã seguinte, como estaria todos osdias pelo resto de sua vida.

– Como poderei suportar isso sem você? – murmurou, e adormeceu com afita de Cat na mão.

– Tomei uma decisão, Charlie – anunciou Kitty durante o café na manhãseguinte. – Mês que vem farei uma viagem à Europa.

– A trabalho?

– Não, esse trabalho agora é seu. Quero ver minha família em Edimburgo.

Já faz cinco anos desde a última vez que estive lá, e mesmo assim foi só umabreve visita. Quero ficar com eles por uns meses... Tenho sobrinhos esobrinhas que nem conheci. Também sinto que é importante deixá-lo seestabelecer aqui, cortar totalmente minha influência, para que todos saibamque você está no comando.

– Mãe – uma onda de pânico invadiu Charlie –, você acha mesmo issosensato? Eu mal sei o que estou fazendo. Preciso de você aqui comigo.

– Teremos mais um mês juntos, o que é muito tempo para você aprender.

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Você não vê, meu querido? Se eu ficar, todos os funcionários continuarão avir falar comigo, e eles precisam entender que você é o chefe. Você podequerer fazer mudanças... algumas talvez não sejam populares entre nossosfuncionários. Não quero ter que ouvir um bando de gente descontente queacredita que tenho alguma influência sobre você. Não, é muito melhor que euvá. E, além disso – Kitty deixou escapar um suspiro

–, não sou mais jovem e ando muito cansada. Preciso de férias.

– Você não está doente, não é, mãe?

– Não. Parece que Deus me fez forte como um touro, e quero continuarassim.

– Você vai voltar?

– Claro, o congelante inverno escocês me dará um empurrãozinho. –

Kitty estremeceu só de pensar. – Partirei de volta para Adelaide antes doNatal e passarei os feriados em Alicia Hall. Espero que se junte a mim epossamos visitar a mina de opala e a vinha para garantir que os ratos nãoestejam fazendo a festa enquanto o gato está longe.

Cat está longe...

– Mesmo entendendo que você queira um descanso, preocupa-me muito eunão ter condições de administrar o negócio sozinho.

– Estou certa de que tem. Quando seu pai partiu, não tive escolha senãomergulhar de cabeça. Eu estava sozinha, sem ninguém para pedir conselhos,exceto o querido Sr. Donovan, que estará lá para ajudá-lo também. Ele sabetudo o que há para se saber, mas já vai fazer 60 anos, e estou ciente de queem algum momento vai se aposentar. Ele já tem alguém em mente paraassumir suas funções... um jovem japonês brilhante, que fala inglêsfluentemente.

Considerando a quantidade de japoneses que empregamos, ele vai conseguirse comunicar melhor com nossas equipes, além de ser uma grande aquisição.

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–Kitty levantou-se da mesa. – Certo, vamos ao trabalho!

Ao longo do mês, mesmo que Charlie deitasse na cama todas as noitesprometendo a si mesmo que no dia seguinte contaria à mãe o motivo peloqual Cat fora embora – e que iria atrás dela, mandando os negócios às favas–, nunca conseguia dizer uma palavra. Ele sabia que a mãe passara os últimosdezessete anos de sua vida se matando de trabalhar para aumentar a herançadele, e tudo que ela queria agora era aproveitar um merecido descanso. Comopoderia lhe negar isso?

Sua admiração por ela cresceu rapidamente ao notar sua voz de autoridade e aforma como lidava com os funcionários e qualquer problema da maneira maistranquila. Ele também via como as linhas de preocupação no rosto haviam sesuavizado e como ela parecia relaxada em comparação ao passado.

Como ele poderia abandoná-la depois de tudo que fizera por ele? Aindaassim, como poderia não sair para procurar Cat e trazê-la de volta?

Dividido entre a lealdade às duas mulheres que amava, Charlie várias vezessentia que sua cabeça e seu coração poderiam explodir. Aos domingos, seuúnico dia de folga se não estivessem esperando a chegada de um lugre, eledirigia até a praia de Riddell e nadava para acalmar a mente torturada.Boiava, as ondas lambendo seus ouvidos, enquanto tentava encontrar a paz ea determinação de que precisava. Sem sucesso, e com o dia da partida de suamãe para a Europa se aproximando, seu pânico só aumentava. E ele seperguntava se deveria simplesmente mergulhar a cabeça sob as ondas eafundar para encontrar seu

abençoado alívio.

Além de todo o resto, ele não sentia que levava jeito para o trabalho. Nãotinha o ar de autoridade natural da mãe, e nem de perto a facilidade com queela conversava com os outros comerciantes de pérolas em seus jantareshabituais. Charlie tinha a metade da idade da maioria desses homens, entãosabia que provavelmente riam dele pelas costas e pensavam em quantoofereceriam pela empresa quando naufragasse.

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Seu único pensamento era vender a Mercer Pearling Company, mas ele sabiaque a mãe veria isso como uma traição a seu pai e seu avô. A empresa erauma das mais antigas da cidade, administrada desde o início por um membroda família Mercer.

Em suma, Charlie nunca se sentira tão infeliz, desolado e solitário.

Kitty convidara Elise para o almoço de domingo em algumas ocasiões.

Não havia dúvida de que ela era uma secretária eficiente e talvez mais capazdo que ele, já que encobria os erros de Charlie sempre que podia.

Inteligente, bonita e espirituosa, era óbvio que Kitty a considerava a futuraesposa perfeita. Vivia comentando sobre casamento e um herdeiro para oimpério.

– É melhor agarrá-la antes que outro faça isso. Mulheres como ela nãocostumam aparecer nesta cidade – disse Kitty sem qualquer sutileza.

Mas já há um herdeiro por aí, crescendo a cada dia na barriga da mãe.

Só Deus sabia como ela devia estar sobrevivendo...

– Espere por mim, Cat – sussurrava Charlie para os ancestrais dela. – Eu vouencontrá-la...

– Então isso é um adeus, pelo menos por enquanto.

Kitty sorriu para o filho na luxuosa suíte do navio que a levaria até Fremantlee depois na longa viagem através dos mares até sua terra natal.

Charlie notou como parecia despreocupada naquele dia – quase como umajovem, os olhos cheios de emoção.

– Farei o máximo para não decepcioná-la.

– Estou certa disso. – Kitty estendeu a mão para tocar o rosto do filho. –

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Cuide-se, meu querido.

– Pode deixar.

O apito do navio soou, para avisar a todos que não eram passageiros quedeviam desembarcar.

– Escreva para mim, está bem? E conte-me como está indo, por favor –

pediu Kitty.

– Claro. Boa viagem.

Charlie deu um último abraço na mãe antes de sair da suíte e descer a rampa.Ele acenou até o navio parecer apenas uma mancha ao longe no oceano.Então pegou o pequeno trem que seguia pelo cais, onde Fred o aguardava nocarro para levá-lo para casa.

Naquela noite, Charlie jantou sozinho. O silêncio na casa era lúgubre, e,

depois que acabou de comer, foi ver Camira na cozinha. No último mês, comKitty em casa, tinha sido difícil falar com a empregada, mas ela não podiaevitá-lo agora.

– Jantar bom, Sr. Charlie?

– Sim – respondeu ele. – Recebeu alguma notícia dela?

– Não.

– Ela não entrou mesmo em contato com você? Por favor, eu lhe imploro,diga-me a verdade.

– Senhor não entende. Lá longe – Camira acenou vagamente o braço –

sem papel e selo.

– Quem sabe alguém a viu? Sei como o telégrafo do bush funciona e asmensagens são passadas boca a boca.

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– Não, não ouve nada, verdade, Sr. Charlie.

– Fico impressionado que você não esteja louca de preocupação.

– Sim, eu me preocupa, mas acha que ela bem. Eu sente ela, e os ancestraiscuidam dela.

– Você acha que ela foi morar com seu povo?

– Talvez.

– Será que ela vai voltar?

– Talvez.

– Meu Deus! – Charlie tinha vontade de sacudi-la. – Você não vê que estouenlouquecendo de preocupação?

– Sim, eu vê um cabelo grisalho no senhor esta manhã.

– Se ela não voltar nas próximas semanas, irei atrás dela.

Charlie andava de um lado para outro na cozinha.

– Cat não quer que encontrem ela.

Camira continuava a lavar a louça tranquilamente.

– Nós dois sabemos por que ela foi embora, então pelo menos é minharesponsabilidade tentar, ela querendo ou não. Afinal, ela está carregando omeu...

Charlie se conteve, sabendo que a verdade não devia ser falada entre eles.

Mais uma vez, viu-se à beira das lágrimas.

– Senhor bom homem, sei que ama minha filha. E ela ama o senhor. Elapensa que faz o melhor. Quer que o senhor tem vida feliz. Muito difícil para osenhor com ela. Aceita coisas que não pode mudar.

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– Não posso, Camira, não posso. – Charlie afundou em uma cadeira, colocouos cotovelos na mesa e apoiou a cabeça neles. Para sua vergonha, começou achorar. – Não posso viver sem ela, simplesmente não posso.

– Sr. Charlie. – Camira largou a louça, secou as mãos e passou os braços emtorno dos ombros trêmulos dele. – Eu vê os dois juntos por muitos anos.

Pensa que talvez isso desapareça, mas não.

– Por isso não posso desistir dela desse jeito, Camira, deixá-la sozinha

por aí... Você sabe o que pode acontecer com crianças mestiças se a mãe nãofor casada... Eu poderia, pelo menos, ter lhe oferecido alguma proteção! E eutentei, mas ela recusou. – Ele tirou o anel âmbar do bolso e o brandiu paraela.

– Meu filho ou filha pode acabar em um desses terríveis orfanatos e,enquanto eu tiver vida, não posso ficar aqui sentado sem fazer nada!

Ele jogou o anel na mesa. A joia rolou e foi parar em frente a Camira.

– Eu entende – disse ela.

A cozinha ficou em silêncio enquanto ela pensava.

– Sr. Charlie, faz acordo com senhor. Se eu não tem notícias de Cat naspróximas semanas, sai para procurar ela.

– E eu irei com você.

– Não. Senhor homem branco, não sobrevive lá. Senhor grande chefe aqui.

Sua mãe confia no senhor. Não a desaponta. Ela trabalha duro para deixargrandes negócios para senhor. Aqui, guarda isso.

Ela pegou o anel e estendeu para Charlie, mas ele afastou sua mão.

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– Não, fique com ele. Encontre-a e traga-a de volta, então o colocarei no dedodela. Até lá, não aguento olhar para isso.

Camira guardou o anel no avental.

– Certo, nós tem acordo? Senhor trabalha duro agora no escritório para Sra.Kitty, e eu procura minha filha se ela não volta para casa logo.

Pessoas demais nesta família se perderam. Dorme agora, Sr. Charlie, ou maiscabelos grisalhos.

Sem alternativa, Charlie fez o possível para seguir o conselho de Camira.

Com a promessa de que ela iria à procura de Cat quando chegasse a hora,durante os quatro meses seguintes ele se dedicou aos negócios como sua mãeteria desejado. Livros contábeis, documentos e a chegada sem fim de lugresàs docas pelo menos o distraíam dos pensamentos em Cat.

Os negócios, como todos em Broome, passavam por dificuldades. Seusgrandes estoques de concha tinham despencado de preço, uma vez que aEuropa e a América requisitavam materiais mais baratos. Charlie examinouatentamente o negócio das fazendas de cultivo de pérolas do Sr. Mikimoto.Com as pérolas reais tornando-se uma mercadoria escassa em Broome devidoao arrasto excessivo da costa, ele concluiu que as pérolas cultivadas eramboas réplicas – e, na verdade, muito mais adequadas à joalheria, pois tinhamum tamanho-padrão e, portanto, poderiam ser facilmente presas a um colar oupulseira. Apesar dos comentários depreciativos de Kitty, Mikimoto achavaque as pérolas cultivadas eram o futuro, opinião compartilhada pela vastaAmérica, que estava comprando seu produto aos montes.

Charlie também ficou impressionado com o fato de as fazendas de pérola nãocolocarem em risco a vida humana como acontecia com o mergulho, einteressou-se em convidar um dos gerentes de Mikimoto para

mostrar-lhe como isso poderia ser feito em Broome. Ele também sabia que,após os custos de instalação iniciais, os lucros aumentariam com o tempo.

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Isso acabaria por destruir a indústria que tornara a cidade tão próspera, mas,assim como na natureza, tudo tinha sua época, e Charlie sentiainstintivamente que Broome estava entrando em um outono obscuro.

– Quem paga a orquestra, escolhe a música – murmurou enquanto colocava ochapéu de aba curta, estilo safári, endireitava a corrente dourada e saía paraencontrar Fred à sua espera no carro.

Pelo menos, pensou ele enquanto o veículo se afastava, estava dando seuprimeiro passo em direção ao futuro, ainda que controverso.

Charlie dormia profundamente quando ouviu um repentino som agudodominar o ar ao seu redor. Sentou-se depressa, procurando despertar.

O barulho continuou – um gemido terrivelmente alto –, reminiscente de umsom que ele já havia ouvido antes. Ainda sonolento, forçou sua mente acompreender...

– Não, não...!

Deu um pulo da cama, saiu em disparada do quarto e correu pela casa,seguindo o som através da cozinha e saindo pela porta dos fundos.

Encontrou Camira ajoelhada no chão, amassando a poeira vermelha com osdedos. Ela balbuciava palavras que ele não conseguia entender, mas nãoprecisava, porque já sabia.

Camira olhou para ele, os olhos cheios de explícita agonia.

– Sr. Charlie, ela se foi! Eu sai muito tarde. Eu sai muito tarde!

Uma atmosfera sombria pairava sobre a casa, uma vez que seus doisocupantes afligiam-se dia e noite. Eles quase não falavam, o vínculo que umdia os ligara agora se desintegrando em amargura, raiva e culpa.

Charlie passava o menor tempo possível em casa, isolando-se no escritório,assim como a mãe fizera depois que seu pai os deixara. Ele agora entendia oporquê – um coração partido devastava e destruía a alma, principalmentequando havia culpa envolvida.

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Elise, sua secretária, parecia sentir que havia algo errado e, mesmo semquerer, com seu sorriso ensolarado e sua presença reconfortante, Charlie viunela uma luz no mar escuro da tristeza. Ao mesmo tempo, ressentia-se daingenuidade da moça, de sua situação e do fato de estar viva, enquantoAlkina e seu filho já não estavam.

O que mais o torturava era que nunca saberia como ela morrera, talvezsozinha em agonia, dando à luz o bebê. Aos 21 anos e sendo um dos homensmais ricos da Austrália, Charlie

Mercer poderia ser tomado por alguém com o dobro de sua idade.

Never Never

Perto de Alice Springs

Junho de 1929

26

A noite estava silenciosa, o único som era o lamento de um dingo distante.As reluzentes estrelas e a lua no céu sem nuvens eram a única fonte de luzenquanto o cavalo seguia pelo terreno rochoso do deserto, passando pelosarbustos que cresciam junto ao chão para se proteger das frequentestempestades de areia. Os olhos do vaqueiro haviam se ajustado à luz fraca epodiam identificar as sombras da terra acidentada à sua volta e dos veiosazul- escuros nos penhascos. O ar noturno carregava os aromas frescos eperfumados da terra que se recuperava do calor do dia, e o ar estava repletode sons de animais rastejantes e do zumbido de insetos.

Ele amarrou seu cavalo a um afloramento rochoso que despontava da terracomo uma estalagmite vermelha. Esperava chegar a Alice ao anoitecer, mashouve um conflito entre a tribo aborígine local e os vaqueiros mais cedo,então aguardara até tudo terminar. Pegou uma de suas garrafas d’água de pelede camelo, tirou uma tigela do alforje, encheu-a e colocou-a no chão para ocavalo exausto beber. Tomou o resto do grogue do cantil e, revirando a sacolapara ver o que restava de sua comida, estendeu o cobertor áspero e sentou-se

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para comer. Estaria em Alice Springs ao pôr do sol do dia seguinte. Depoisde reabastecer seus suprimentos, iria para o leste e cuidaria do gado atédezembro. E

depois disso...

Ele suspirou. Qual era o sentido em planejar um futuro que não existia?

Mesmo fazendo o máximo para viver um dia de cada vez, sua mente aindainsistia para que tivesse um objetivo. Na verdade, era um vazio que elemesmo criara.

O vaqueiro se acomodou para dormir, ouvindo o silvo de uma cobra por pertoe jogando uma pedra para assustá-la. Até mesmo para seus padrões estavaimundo; podia sentir o cheiro acre do próprio suor. Os grandes olhos- d’águaque normalmente usava estavam secos, a estação inusitadamente áridamesmo para o Never Never.

Ele pensou nela, como fazia todas as noites, então fechou os olhos paradormir.

Algum tempo depois, foi acordado por um estranho grito a distância.

Após anos no Outback, ele sabia que era humano, não animal. Esforçou-separa identificar o som familiar, então percebeu que era o choro de um bebê.Outra alma nascida neste mundo podre, pensou antes de fechar os

olhos e dormir de novo.

Estava de pé quando o sol nasceu, ansioso para chegar a Alice ao anoitecer,arrumar um quarto na cidade e tomar seu primeiro banho decente desde quedeixara Darwin. Montou seu cavalo e, ao partir, viu a caravana de camelos nohorizonte. Iluminada pelo sol nascente, parecia quase bíblica. Ele os alcançouem menos de uma hora, no local onde haviam parado para descansar e comer.Conhecia um dos cameleiros afegãos, que deu um tapinha em suas costas eofereceu-lhe um lugar em seu tapete e um prato de pão ázimo.

Ignorou o mofo em um dos cantos e comeu o pão avidamente. De todos os

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humanos que encontrava em sua rota habitual através do Never Never, eracom os cameleiros que ele mais gostava de passar o tempo.

Pioneiros secretos do Outback, os cameleiros eram os heróis desconhecidos,levando os suprimentos necessários pelas planícies vermelhas até as fazendasde gado escassamente espalhadas pelo interior. Muitas vezes eram homensinstruídos, que falavam bem inglês, mas, enquanto bebia, sedento, da águadeles, ouviu falarem sobre como sua atividade estava em perigo com a novalinha ferroviária que logo seria aberta entre Port Augusta e Alice Springs. Oplano era que se estendesse até Darwin.

– Somos alguns dos últimos que restaram. Todos os outros cruzaram o mar evoltaram para casa – disse Moustafa com indiferença.

– Tenho certeza de que ainda haverá lugar para você, Moustafa. A ferrovianão pode chegar às aldeias remotas.

– Não, mas o automóvel pode.

O vaqueiro estava se despedindo quando o estranho berro que ouvira na noiteanterior voltou, vindo de uma cesta amarrada de um dos lados de um camelo.

– Isso é um bebê? – perguntou ele.

– Sim. Foi trazido ao mundo há cinco dias. A mãe morreu ontem à noite.

Nós a enterramos apropriadamente para os dingos não a acharem –

respondeu Moustafa.

– Um bebê negro?

– Pela cor da pele, um meia-casta ou talvez um quadrarão. A garota pegoucarona conosco há duas semanas. Disse que estava indo para a MissãoHermannsburg – contou Moustafa. – Os outros não quiseram levá-la porcausa da sua condição, mas ela estava desesperada, e eu concordei. Agoratemos um bebê sem mãe gritando dia e noite pelo seu leite, que não temospara dar.

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Talvez morra antes de chegarmos a Alice. É pequeno, para começar.

– Posso ver?

– Se quiser...

Moustafa levantou-se e o levou em direção aos berros. Ele soltou o cesto eentregou-o ao amigo.

Lá dentro, tudo que o vaqueiro podia ver era um tecido se movendo. Ele

colocou o cesto no chão, ajoelhou-se ao lado e tirou a musselina que cobria obebê. O cheiro de fezes e urina o atingiu em cheio quando ele descobriu oresto do corpo minúsculo e magro, com sua pele macia em tom de caramelo.

O bebê chutava e berrava, seus pequenos punhos socando o ar ferozmente.

Embora tivesse visto muitas coisas em seu tempo no Outback, aquela criançafaminta e sem mãe despertou uma emoção dentro dele que não sentia haviamuitos anos. Uma lágrima surgiu em seus olhos. Então, enrolou os lençóis demusselina ao redor do bebê, para não tocar em suas excreções e quem sabepegar uma doença, e tirou-o do cesto. Ao fazer isso, ouviu algo cair de voltalá dentro.

– É um menino – comentou Moustafa de longe, por causa do mau cheiro.

– Que vida ele pode esperar ter, mesmo que sobreviva?

Ao toque do vaqueiro, o bebê parara de chorar. Colocara um punho na boca,abrira os olhos e o encarava com curiosidade. Drummond se espantou ao vê-los. Eram azuis, as íris com pequenos pontos âmbar, mas não fora a corincomum que chamara sua atenção, mas a forma e a expressão neles. Ele játinha visto aqueles olhos antes, mas não conseguia lembrar onde.

– A mãe deu nome ao bebê antes de morrer? – perguntou a Moustafa.

– Não, ela não falou muita coisa.

– Você sabe onde o pai pode estar?

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– Ela nunca disse, e talvez não quisesse contar. Você sabe como é.

Moustafa deu de ombros de maneira elegante.

Drummond olhou para o bebê, ainda sugando o punho, e algo nele voltou a seagitar.

– Eu poderia levá-lo comigo para Alice e depois para Hermannsburg.

– Você poderia, mas acho que ele já era, meu amigo, e talvez seja melhorassim.

– Ou talvez eu seja sua única chance. – As palavras do vaqueiro forammovidas puramente por instinto. – Vou levá-lo. Se eu deixá-lo com você,certamente morrerá como a mãe.

– Verdade, verdade.

Moustafa respondeu solenemente, o alívio nítido em suas feições honestas.

– Você tem um pouco de água para me dar?

– Vou arrumar – disse Moustafa.

O bebê fechara os olhos, exausto demais para recomeçar o choro. Suarespiração era ofegante, e, ao segurá-lo, Drummond sabia que o tempo eracurto.

– Aqui. – Moustafa lhe entregou um cantil. – Você está fazendo uma coisaboa, meu amigo, e eu abençoo você e a criança. Kha safer walare.

Colocou a mão nodosa na testa suada do bebê.

Depois de levar o cesto até o cavalo, o vaqueiro pegou o cobertor em que

se deitava à noite e improvisou uma manta. Ao fazer isso, viu uma caixametálica suja por baixo da musselina, que colocou no alforje. Em seguida,pingou um pouco d’água do cantil nos lábios do bebê e ficou aliviado ao vê-lo sugando fracamente a bebida. Então prendeu o cesto vazio à parte de trás

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da sela, montou o cavalo e saiu galopando pela planície.

Enquanto seguia, o sol queimando sua pele, ele se perguntava que diabosdera em sua cabeça para fazer tal coisa. Ele provavelmente chegaria a Alice everia o bebê morto, amarrado a ele. No entanto, independentemente do quefosse, algo o impulsionava adiante em meio ao calor incandescente da tarde,sabendo que, se passasse outra noite no deserto, o pequeno coração deencontro ao seu pararia de bater.

Às seis horas daquela noite, seu valente cavalo chegou cambaleante ao pátioempoeirado de sua habitual hospedaria. Ainda montado, Drummondhesitantemente colocou a mão no peito do bebê e sentiu batidasreconfortantes, ainda que fracas. Depois de descer e encher um balde comágua da bomba para o animal sedento, ele soltou o tecido e colocou o meninode volta no cesto, cobrindo-o de leve com a musselina.

– Voltarei para lhe dar uma comida decente mais tarde – prometeu ao cavaloantes de entrar e ser saudado com alegria pela Sra. Randall, a dona dahospedaria.

– É bom ver o senhor de novo por essas bandas. O quarto de sempre?

– Se estiver disponível, sim. Como a senhora está?

– O senhor sabe como são as coisas por aqui, embora vá ser muito melhorquando o trem estiver funcionando. Posso lhe trazer alguma coisa, Sr. D? Ode costume? – Ela piscou. – Há algumas garotas novas na cidade.

– Não esta noite, foi uma longa viagem até aqui. Eu estava pensando: asenhora por acaso tem um pouco de leite?

– Leite? – A Sra. Randall pareceu surpresa com o pedido. – Claro que sim.

Quantas cabeças de gado temos aqui para estes lados! – Ela riu. – Não é suabebida de costume, Sr. D.

– A senhora está certa, talvez acrescente ao pedido um copo de um bomuísque escocês.

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– Devo ter uma garrafa especialmente guardada. Alguma coisa para comer?

– O que tiver no fogão, Sra. R. – Abriu um sorriso para ela. – Pode me dartambém aquele saleiro? Gosto de salgar a comida por conta própria.

– Certo. – Ela lhe deu uma chave. – Levo tudo lá no quarto em um instante.

– Obrigado, Sra. R.

Drummond pegou o cesto e o alforje e subiu a rústica escada de madeira.

Ao entrar no quarto, fechou a porta e trancou-a firmemente. Depois, colocouo cesto na cama e tirou a musselina do rosto do bebê. Mesmo encostando oouvido ao minúsculo nariz, mal podia ouvi-lo respirar.

Pegou então o cantil que Moustafa lhe dera e espargiu as últimas gotas

de água nos lábios do bebê, mas ele não reagiu.

– Caramba! Não morra agora! Serei acusado de assassinato – suplicou aopequeno ser.

Colocou o cesto ao lado da cama e caminhou de um lado para outro peloquarto, esperando a Sra. Randall chegar. Algum tempo depois, por frustraçãoe também por causa do cheiro pungente no quarto, correu até lá embaixo.

– Está pronto? – perguntou.

– Eu já ia levar para o senhor – disse a mulher, colocando a bandeja nobalcão estreito da recepção.

Ele olhou para o que havia ali e percebeu que faltava uma coisa.

– Pegou o saleiro para mim, Sra. R.?

– Desculpe, vou buscar. – Ela voltou com o objeto na mão cheia de sardas.

– É folheado a prata, ganhei de presente quando me casei com o Sr. R.

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Depois me devolva, ou estará encrencado.

– Pode deixar – disse Drummond, o conteúdo da bandeja balançandoenquanto subia com tudo. – Vou descer depois para tomar um banho.

Ao voltar para o quarto, tirou a camisa, abriu a tampa do saleiro e despejou oconteúdo no tecido. Então pegou o copo de leite e fez um funil com umapágina arrancada da Bíblia na mesa de cabeceira, e derramou o líquido nosaleiro vazio. Pegou o bebê e, respirando pela boca para evitar o fedor quevinha dele, cutucou suavemente os lábios da criança com a ponta bicuda dosaleiro.

A princípio, não houve reação, e seu próprio coração estava tão acelerado queera como se batesse pelos dois. Removeu o pequeno bico de prata, entãoderramou um pouco de leite em seu dedo. Em seguida, agindo por puroinstinto, passou-o pelos lábios do bebê. Após alguns agonizantes segundos,os lábios se moveram. Ele então colocou a ponta do saleiro na boca do bebêde novo e rezou pela primeira vez em dezessete anos. Alguns segundosdepois, sentiu um pequeno puxão exploratório na mamadeira improvisada.Uma pausa angustiante e, então, um puxão mais firme quando o bebêcomeçou a sugar.

Drummond ergueu os olhos para o teto.

– Obrigado.

Quando a criança acabou de mamar, ele derramou água do jarro na bacia,retirou a musselina fedida e fez o possível para lavar a sujeira incrustada emseu corpo. Improvisou uma fralda com dois de seus lenços e, rezando paraque ele não fizesse suas necessidades de novo, envolveu o pequeno traseiroda melhor forma que pôde. Escondeu a musselina suja em um dos lençóis eenfiou o embrulho fedido em uma gaveta. Enrolou o outro lençol em volta dobebê, notando a barriga inchada e as pernas emaciadas que pareciampertencer a uma rã, e não a um ser humano. O

bebê agora dormia, então ele engoliu o ensopado de carne agora frio emalgumas colheradas e tomou algumas boas doses de uísque para acompanhar.Depois deixou o quarto para alimentar seu cavalo e se

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limpar no barril de água no quintal.

Sentindo-se renovado, Drummond voltou para o andar de cima e viu que obebê não tinha se mexido. Encostou o ouvido no pequeno peito e escutou asbatidas suaves de seu coração e a respiração constante. Ao subir em seupróprio colchão, lembrou-se da lata que guardara no alforje.

Ela estava incrustada de ferrugem e terra vermelha, como se tivesse ficadoenterrada por muito tempo. Ele a abriu e encontrou uma pequena caixa decouro. Soltou o fecho, levantou a tampa, e então, de repente, perdeu o ar eseu coração se descompassou.

A Pérola Rosada... a pérola que acabara com a vida de seu irmão, mas salvaraa sua.

– Como pode ser...? – murmurou ele, os olhos atraídos pela belezahipnotizante da pérola, como acontecera tantos anos antes.

O que ele poderia fazer com aquele dinheiro... Sabia o seu valor... Ele mesmohavia entregado as 20 mil libras.

Banido de Broome e sem poder voltar a Kilgarra, sua amada fazenda de gado,Drummond viajou pelo Never Never, pegando trabalho onde encontrava.

Mantinha-se reservado, sem confiar em ninguém. Ele era uma pessoadiferente agora, um humano vazio com um coração de gelo. E só podia culpara si mesmo – e talvez à pérola. No entanto, desde o momento em que viraaquele bebê, algo havia se abrandado dentro dele.

Fechou a caixa bruscamente e colocou-a de volta na lata antes que ohipnotizasse de novo.

Como aquela criança estava ligada à Pérola Rosada? Da última vez que avira, ele a trancara na escrivaninha de Kitty. Camira lhe implorara que não aentregasse à sua senhora e...

– Meu Deus!

Ele lembrava agora onde tinha visto os olhos do bebê.

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– Alkina...

Levantou-se e foi observar o bebê dormindo. E, pela primeira vez em muitosanos, admitiu a existência do destino. Ele instintivamente soubera que aquelebebê com a pérola amaldiçoada escondida em seu cesto estava ligado a ele.

– Boa noite, pequeno. Amanhã vou levá-lo a Hermannsburg. – Acariciou abochecha macia, então foi deitar de novo em seu colchão. – E depois vou aBroome descobrir qual é a sua ligação comigo.

O pastor Albrecht ergueu os olhos da Bíblia ao ouvir o som de cascos seaproximando da missão. Pela janela, viu o homem parar, depois descer docavalo e olhar em volta, sem saber aonde ir. O religioso levantou-se,caminhou em direção à porta e saiu ao sol brilhante.

– Guten Tag, ou devo cumprimentá-lo em inglês?

– Falo as duas línguas – respondeu o homem.

Ao redor do pátio, algumas pessoas de seu rebanho, vestidas de branco,

pararam para ver o homem bonito. Qualquer estranho que aparecesse ali erauma visão bem-vinda.

– De volta ao que estavam fazendo – orientou-os, e eles rapidamenteretomaram o trabalho.

– Há algum lugar em que possamos conversar, pastor?

– Venha ao meu escritório. – O pastor indicou o quarto atrás dele, e entãoouviu um choramingar vindo do pano preso ao peito do homem. – Por favor,sente-se – disse ele, fechando a porta e as venezianas para evitar olharescuriosos.

– Vou sentar, assim que lhe der isso.

O homem desatou o tecido ao redor do corpo e colocou seu conteúdo namesa. Ali, entre os panos fedidos, havia um pequeno menino recém-nascido,

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seus pulmões cantando para os céus pedindo comida.

– O que temos aqui?

– A mãe dele morreu a algumas horas de Alice Springs. Os cameleiros mecontaram que estava a caminho de Hermannsburg. Ofereci-me para trazer obebê aqui mais rápido. Pedi um saleiro na hospedaria em que estive a noitepassada e ele tomou um pouco de leite que coloquei lá dentro.

– Bastante criativo da sua parte, senhor.

– Talvez o resto de sal no fundo também tenha ajudado, porque ele parecemais forte hoje.

– Ele é muito pequeno. – O pastor Albrecht examinou o bebê, testando osmembros e sua força. – E está fraco pela desnutrição.

– Pelo menos ele sobreviveu.

– E eu o louvo e o abençoo, senhor. Não há muitos vaqueiros por estasbandas que fariam o mesmo. Presumo que a mãe era aborígine.

– Eu não saberia dizer, pois já havia morrido e sido enterrada quandocheguei. Embora, por acaso, eu talvez saiba quem é a família dela.

O pastor olhou desconfiado para o homem.

– O senhor é o pai deste bebê?

– Não, não, mas havia um objeto com ele que reconheci. – Ele tirou a lata dobolso. – Vou a Broome ver se minhas suspeitas se confirmam.

– Entendo. – O pastor Albrecht pegou a lata em suas mãos. – Então depoisme diga o que descobriu. Por enquanto, se ele sobreviver, terá uma casa aquiem Hermannsburg.

– Por favor, guarde esta lata por segurança até eu voltar. E, para o seu própriobem, não olhe aí dentro.

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– Por quem me toma, senhor? – O pastor franziu a testa. – Sou um homem deDeus. E confiável.

– Claro que sim.

O pastor viu o homem revirar o bolso e tirar algumas notas.

– Aqui está uma doação para a missão e o alimento da criança.

– Obrigado.

– Voltarei assim que puder.

– Uma última pergunta, senhor: a mãe lhe deu um nome?

– Não.

– Então eu o chamarei de Francis, em homenagem a Francisco de Assis, osanto padroeiro dos animais. Pelo que o senhor me disse, foi um camelo queajudou a salvar a vida dele.

O pastor abriu um sorriso amargo.

– Um nome apropriado.

– E o seu nome, senhor? – perguntou o pastor Albrecht.

– As pessoas aqui me conhecem como Sr. D. Adeus, pastor.

A porta se fechou. O religioso foi até a janela e abriu as venezianas para ver ovaqueiro montar seu cavalo e partir. Embora o homem obviamente estivesseem plena saúde e força física, podia sentir nele uma estranha vulnerabilidade.

– Outra alma perdida – murmurou enquanto observava o bebê na mesa à suafrente.

O bebê olhou de volta, piscando lentamente seus grandes olhos azuis.

– Você sobreviveu a uma longa jornada, pequenino.

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Então, pegou a caneta-tinteiro, abriu um livro de registros e escreveu o nome“Francis” e a data de sua chegada em uma nova página. Pensando melhor,acrescentou: “Sr. D – vaqueiro, Alice Springs”.

Um mês depois, Drummond prendeu o cavalo em um pedaço de terra, a cercade 1 quilômetro da casa, e andou o resto do caminho. Era uma noite escura,as estrelas escondidas pelas nuvens, e ele ficou feliz com isso. Ao chegar aoportão da frente, tirou as botas e enfiou-as na cerca viva. A casa estava namais completa escuridão, e apenas um ruído ocasional vinha dos estábulos.Ele suspirou, pensando que havia passado os melhores e piores momentos desua vida sob aquele telhado

– um dia metálico, mas agora impecavelmente coberto por telhas decentes.

Ao ver Fred adormecido em seu lugar de costume em frente aos estábulos,caminhou até a cabana. Então, rezando para que a porta não tivesse trancada,segurou a maçaneta e abriu facilmente. Em seguida fechou-a e esperou seusolhos se ajustarem à escuridão. Ela estava lá, com uma das mãos jogada paratrás da cabeça. Aproximou-se dela, sabendo que assustá-la alertaria osocupantes da casa vizinha.

Ajoelhou-se ao lado da cama e acendeu a vela na mesa de cabeceira para queela o reconhecesse imediatamente.

Balançou o braço de Camira suavemente, e ela se agitou.

– Camira, sou eu, Sr. Drum. Voltei para vê-la. Estou realmente aqui, masvocê não pode fazer nenhum barulho. – Ele tampou a boca de Camira com amão, enquanto ela o observava, completamente acordada agora. –

Por favor, não grite.

O terror em seus olhos começou a diminuir, e ela fez força para tirar a mãodele de sua boca.

– Promete?

Camira assentiu e ele tirou a mão, levando um dedo aos lábios.

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– Não queremos acordar ninguém, não é?

Ela balançou a cabeça em silêncio, então se sentou.

– O que faz aqui, Sr. Drum? Senhor morto por anos! – disse ela.

– Nós dois sabemos que eu não morri, não é?

– Então por que volta agora?

– Porque tenho algo para lhe dizer.

– Que minha filha está morta? – Os olhos de Camira se encheram delágrimas. – Já sei. Minha alma diz.

– Infelizmente sua alma está certa. Sinto muito, Camira. Ela estava... -

grávida?

– Sim. – A mulher baixou a cabeça. – Senhor não conta ninguém. Bebê agoramorto também.

Ele agora tinha certeza de que o que havia imaginado era verdade.

– Bem, há algo que você não sabe – sussurrou.

– O que é?

Ele colocou a mão gentilmente em seu braço.

– O bebê de Cat sobreviveu. Você tem um neto.

Então ele contou como encontrara a criança e os olhos de Camira seencheram de admiração e espanto.

– Os ancestrais, eles fazem plano inteligente. Onde ele está?

Camira olhou ao redor do quarto como se o bebê estivesse ali, escondido.

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– Ele estava fraco demais para fazer a viagem. Deixei-o em boas mãos naMissão Hermannsburg. E devo dizer-lhe também que a pérola ruim estava emseu cesto. Alkina deve tê-la encontrado e...

– Não! Pérola ruim é amaldiçoada. Não quero perto meu neto!

Camira ergueu a voz e Drummond levou o dedo aos lábios.

– Juro que está sendo guardada em um lugar seguro longe dele até vocêdecidir o que fazer com ela e o bebê. Pensei que talvez você queira trazê-

lo para cá depois que ele estiver recuperado.

– Ele não vem para cá – afirmou Camira com veemência.

– Por que não? Pensei que, pelo menos, ele seria um consolo para você.

Então foi a vez de Camira lhe contar o que acontecera.

– Então esse bebê é filho do meu sobrinho?! Meu parente de sangue?! –

exclamou Drummond com espanto.

– Sim. Nosso sangue mistura lá dentro, então ele pertence nós dois –

disse ela solenemente.

– Mas, acima de tudo, Camira, ao meu sobrinho Charlie, agora que sua filhaestá com os ancestrais.

– Não! Melhor para todos Sr. Charlie pensa bebê morto também.

– Por que logo você diria isso?

– Senhor não está aqui por muito tempo, Sr. Drum. Não entende. Sra.

Kitty, ela trabalha tão duro, faz tudo pelo filho depois que o senhor vaiembora.

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Drummond ergueu uma sobrancelha.

– Ela fica doente, muito doente – continuou Camira. – E triste.

– Ela está bem agora? Está aqui?

Ele virou a cabeça em direção à casa.

– Passa férias na Europa. Deixa Sr. Charlie no comando. Mesmo que eletambém triste com minha filha, ele é jovem e melhora logo. Talvez casa comsecretária gentil. Melhor para ele, ele não sabe, entende?

– E quanto a Kitty? Ela é avó como você, Camira. Certamente tanto elaquanto Charlie têm o direito de saber sobre a existência do bebê. E

quanto ao próprio bebê? Eu não poderia simplesmente abandonar meusobrinho-neto em uma missão.

Camira levantou-se da cama.

– Eu vai com o senhor. Senhor leva eu na missão. Então eu cuida do meuneto lá.

– Você deixaria tudo o que tem aqui? E quanto a Kitty? Sei quanto eladepende de você.

Camira já estava pegando um saco de estopa, obviamente um dia usado paraguardar verduras, a julgar pelo cheiro de repolho velho.

– Eu cuida minha família, ela cuida a dela. Melhor assim.

– Acho que você subestima sua senhora. Afinal, ela a trouxe para casa contraa vontade de meu irmão. Ela tem um coração amoroso e gostaria de serincluída nesta decisão. E sem dúvida iria acolher o neto em sua casa.

– Sim, mas agora ela descansa e precisa paz. Não quer trazer vergonha para

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ela ou Charlie, entende? Melhor eu ir cuidar neto. Guardar segredo.

Drummond percebeu então que Camira faria tudo que pudesse para protegera senhora que a salvara e o menino que ela trouxera ao mundo.

Mesmo que isso significasse ter que abandoná-los. No entanto, a decisãocabia a ela, quer ele concordasse ou não.

– E Fred? Não vai contar a ele?

– Ele não bom em guardar segredos, Sr. Drum. Talvez um dia. – Camiraolhou para ele, ansiosa, todos os seus bens agora guardados no saco deestopa.

– Senhor leva eu até neto agora, sim?

Drummond assentiu, resignado, e abriu a porta da cabana.

Ceci Hermannsburg, Território do Norte Janeiro de 2008

27

O sol já estava baixo no céu quando olhei para o meu avô. Para Francis, queum dia fora um bebê resgatado do deserto por um homem que nem sabia queera seu parente.

– Como é possível? – murmurei e, ao espantar uma mosca do rosto, notei queestava molhado pelas lágrimas.

– Sou a prova viva de que parentes encontram parentes, de que milagresacontecem. – Ele abriu um fraco sorriso e vi que contar a história o deixaraexausto e abalado. – Não podemos perguntar quais são os motivos para ascoisas extraordinárias que nos ocorrem. Eles estão lá em cima... os ancestrais,ou Deus, são os únicos que sabem as respostas.

E não as saberemos até irmos para lá também.

– O que aconteceu com Kitty e Drummond?

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– Ah, Celeno, é uma pergunta e tanto. Se ao menos ele tivesse tido apaciência e a firmeza de esperar, eles poderiam um dia ter compartilhado umavida felizes juntos após a morte de Andrew. Mas ele era impetuoso, viviapara o momento. Há um pouco do meu tio Drummond em mim, confesso –admitiu ele com um sorriso.

– Em mim também – falei, me perguntando se teria feito o mesmo que Kittye mandado o homem... ou mulher, já que Chrissie me veio ao pensamento...que eu amava embora. – Você o conheceu?

– Esta é a próxima parte da história, mas precisamos deixá-la para outromomento. De repente me sinto tão velho quanto sou. Você está com fome?

– Eu comeria algo, sim.

Meu estômago roncava, mas não dava para simplesmente dobrar a esquina ecomer um hambúrguer em algum lugar.

Ele olhou para o riacho a distância e, após uma pausa, disse: – Então por quenão a levo até a minha casa? Tenho muita comida e não é longe.

– Ahn... – O céu começava a adquirir tons delicados de rosa e pêssego,anunciando que o anoitecer estava próximo. – Eu planejava voltar para AliceSprings esta noite.

– Você é que sabe, claro. Mas, se vier comigo, poderíamos conversar mais. E,se quiser, tenho uma cama para você.

– Tudo bem, vou aceitar o convite – respondi, lembrando que aquele homemera meu avô.

Ele confiara em mim o suficiente para compartilhar os segredos de sua –

minha – família, e eu tinha que confiar nele também.

Nós nos levantamos, atravessamos o quarto de Phil e voltamos para o

pátio, onde encontramos o próprio Phil encostado despreocupadamente a umaparede.

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– Pronta para ir, Celeno?

Expliquei a mudança de planos e ele se aproximou para apertar minha mão.

– Foi um prazer. Não suma, está bem?

– Ela pode ocupar meu lugar no conselho quando eu me aposentar –

brincou meu avô.

– A caminhonete não está trancada, aliás! – gritou Phil enquanto nosafastávamos dele.

Abri a porta traseira da caminhonete e estendi a mão para pegar minhamochila, mas as mãos fortes e morenas do meu avô chegaram antes de mim elevantaram-na como se não pesasse nada.

– Por aqui.

Ele fez sinal para que eu o seguisse.

Talvez ele tenha estacionado o carro em outro lugar, pensei. Mas, à medidaque nos afastávamos da entrada da missão, o único veículo que eu podia verera um cavalo e uma charrete à espera na grama.

– Suba – disse ele, jogando minha mochila no banco de madeira áspera. –

Você sabe montar? – perguntou, balançando as rédeas.

– Fiz aulas de montaria quando criança, mas minha irmã Estrela não gostava,então paramos.

– Você gostava?

– Eu amava.

Ele ignorou a estrada e conduziu a charrete para a terra áspera, o cavalo noslevando para o alto de uma suave inclinação.

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– Posso ensiná-la a cavalgar se quiser. Como você já sabe, seu tio-avôDrummond passou a maior parte da vida na garupa de um cavalo.

– E em camelos – acrescentei.

O cavalo seguia confiantemente pelo terreno acidentado. Meu avô olhavapara mim, as mãos segurando frouxamente as rédeas.

– Se sua mãe e sua avó pudessem nos ver agora... Juntos, aqui.

Ele balançou a cabeça e estendeu a mão para tocar o meu rosto. Senti aaspereza de sua pele, que parecia lixa, mas surpreendentemente tinha umtoque cheio de amor.

Uma dúvida me veio à cabeça.

– Posso lhe perguntar o que é o Tempo do Sonho? – comecei. – Quero dizer,ouvi algumas histórias do Tempo do Sonho, dos ancestrais, mas o que é isso?

Meu avô deu uma risada.

– Ah, Celeno, para nós o Tempo do Sonho é tudo. É como o mundo foicriado... a origem de tudo.

– Mas como?

– Vou lhe contar do jeito como minha avó Camira me contou quando eu eramenino. No Mundo do Sonho, a Terra era vazia quando tudo

começou... um deserto plano, na escuridão. Não havia sons nem vida, nada.Então vieram os ancestrais, e, enquanto se moviam pela Terra, eles cuidaramdela e a amaram.

Criaram tudo o que há: as formigas, os cangurus, os wallabies, as cobras...

– As aranhas? – interrompi.

– Sim, até mesmo elas, Celeno. Tudo está conectado e é importante, por maisque seja feio ou assustador. Os ancestrais também fizeram a lua, o sol, os

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humanos e nossas tribos.

– Os ancestrais ainda estão aqui?

– Bem, depois de criar tudo isso, eles se retiraram. Eles entraram no céu, naterra, nas nuvens, na chuva... e em todas as criaturas que formaram.

Então deram a nós, humanos, a missão de proteger e cuidar de tudo.

– Todas as tribos aborígines têm o Tempo do Sonho?

– Sim, embora as histórias individuais variem aqui e ali. Lembro-me de comominha avó Camira ficava irritada quando uma de nossas histórias arrerntestinha algo diferente daquela que conhecia. Ela era yawuru.

– Então você também fala yawuru? – perguntei, pensando em Chrissie.

– Um pouco, mas em Hermannsburg aprendi a falar alemão, arrernte e inglês,e são línguas mais do que suficientes para ocupar a mente.

Meia hora depois, chegamos ao que parecia ser um grande galpão construídosobre palafitas de concreto sobre a terra vermelha. Atrás dele, havia umpequeno estábulo, para onde meu avô levou o cavalo e a charrete.

Havia uma varanda frontal, protegida do sol quente por telhas metálicas.

Nela se viam móveis que pareciam ser tirados do interior, lembrando-me dacasa da avó de Chrissie. Subi os degraus com minha mochila e me virei paraadmirar a vista.

– Dê uma olhada – disse ele, colocando a mão suavemente em meu ombroenquanto nós dois admirávamos a paisagem.

O sol poente irradiava seus últimos raios em um afloramento rochoso, alémdo qual serpenteava um riacho, cintilando na areia vermelha. À

distância, pude ver as cabanas brancas de Hermannsburg com um profundobrilho alaranjado logo atrás.

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– A noroeste fica Haasts Bluff, perto de Papunya – explicou ele, apontandopara trás de nós. – E a nordeste está a cordilheira MacDonnell... HeavitreeGap sempre foi o meu lugar favorito para pintar.

– Foi lá que foi tirada a fotografia com Namatjira?

– Sim. Você fez sua lição de casa – disse ele, com ar aprovador.

– Phil fez por mim. Ele reconheceu o lugar.

– Ah, sim, já estivemos lá juntos muitas vezes.

– A vista é incrível – comentei assim que meus dedos começaram a formigar.

Eu queria pintá-la imediatamente.

– Vamos entrar.

A cabana cheirava a terebintina e tinta. O cômodo em que estávamos era

pequeno, com um sofá antigo em frente a uma lareira aberta. Vi que o restodo espaço estava ocupado por uma mesa de cavalete manchada de tinta ecoberta de frascos cheios de pincéis. Havia também várias telas apoiadascontra as paredes.

– Vamos ver o que temos para jantar.

Então o segui para um cômodo contíguo, em que havia uma geladeira antigae barulhenta, um fogão a gás e uma pia sem torneira.

– Tenho bife, se isso lhe agradar. Posso preparar com legumes.

– Parece ótimo.

– Os pratos e os talheres estão naquele armário. Você vai encontrar umafrigideira e uma panela lá também.

Procurei no armário e coloquei tudo o que ele me pediu na pequena mesa demadeira no meio do cômodo. Enquanto isso, meu avô tirou algumas

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cenouras, cebolas e batatas da geladeira e começou a descascá-

las e cortá-las com habilidade. Sentei-me e fiquei observando-o, tentandoentender a trilha genética que nos ligava. Eu teria que desenhar uma árvoregenealógica em algum momento.

– Você cozinha, Celeno? – perguntou enquanto trabalhava.

– Não – admiti. – Minha irmã Estrela é quem fazia essas coisas.

– Vocês moram juntas?

– Morávamos, até dois meses atrás.

– O que aconteceu? Vocês brigaram?

– Não... É uma longa história.

– Bem – disse ele, acendendo a chama na boca do fogão e colocando oslegumes em uma panela, junto com algumas ervas que eu não conhecia –,depois do jantar você pode me contar tudo sobre a sua vida.

Nós nos sentamos na varanda comendo o que devia ser o melhor bife detodos os tempos, mas talvez fosse só porque eu estava faminta. Percebi queera a minha primeira refeição com um parente de sangue, e me admirei que aspessoas pudessem fazer isso todos os dias sem sequer pensar em quanto éespecial.

Quando terminamos de comer, meu avô me mostrou o barril de água dachuva nos fundos da cabana. Peguei um pouco com um jarro e usei para lavaros pratos na pia enquanto ele preparava café no fogão. Então ele acendeu umlampião na varanda e nós nos recostamos nas cadeiras de madeira, tomando ocafé.

– Caso você duvide de mim, quero lhe mostrar isso.

Era outra foto em preto e branco, dessa vez de duas mulheres e um homemno meio. Uma das mulheres, embora mais escura do que eu, poderia serminha sósia. Os olhos não deixavam margem para dúvida: tinham o mesmo

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formato amendoado dos meus.

– Vê a semelhança?

– Sim, vejo. Nossos olhos têm o mesmo formato. Era sua mãe?

– Sim, era Alkina, ou Cat, como todos a chamavam. Como você já ouviu, nãocheguei a conhecê-la.

– E quem é esse?

Apontei para o belo homem louro, bem mais alto que as duas mulheres.

Ele passava um braço em volta de cada uma.

– Esse é Charlie Mercer. Seu bisavô e meu pai.

– E a outra mulher?

– Camira, minha avó. Tirando a minha Sarah, era o ser humano maismaravilhoso, amável e corajoso que já conheci...

Seus olhos correram para o horizonte e pude ver que estavam cheios detristeza.

– Então ela veio cuidar de você em Hermannsburg?

– Ah, sim, ela veio. Cresci pensando que era minha mãe, e ela poderia tersido. Só tinha 40 e poucos anos quando nasci.

– Charlie Mercer ficou sabendo sobre você? Vocês dois se conheceram?

– Celeno – disse ele, com um suspiro –, vamos deixar o passado porenquanto. Quero saber de você. Como tem sido sua vida?

– Essa é uma grande pergunta.

– Então deixe-me ajudá-la. Quando comecei a procurar minha filha e acabeiencontrando você, me disseram que você havia sido adotada por um homem

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rico da Suíça. Você morou lá na sua infância?

– Sim, em Genebra.

– Tem irmãos?

– Somente irmãs. E todas nós seis fomos adotadas.

– Como suas irmãs se chamam? Qual é a idade delas?

– Você provavelmente vai achar isso estranho, mas recebemos os nomes dasSete Irmãs.

Seus olhos se arregalaram de interesse e pensei que, pelo menos, nãoprecisava explicar o mito. Aquele homem devia ter aprendido sobre elasdesde o nascimento. Eram seus ancestrais também.

– Você disse que são seis?

– Aham.

– Como na lenda – falamos juntos, e depois rimos.

– Mérope está por aí. Talvez um dia ela seja encontrada.

– Bem, é tarde demais, pelo menos para Pa. Ele morreu em junho.

– Sinto muito, Celeno. Ele era um bom homem?

– Sim, muito, embora às vezes eu sentisse que ele amava mais minhas outrasirmãs do que eu. Todas elas são tão talentosas e lindas...

– Assim como você. E, lembre-se, nada acontece por acaso. Tudo estáplanejado antes mesmo de respirarmos pela primeira vez.

– Você realmente acredita nisso?

– Acho que devo, pela forma como fui encontrado quando bebê por umparente de sangue, que então trouxe minha avó para cuidar de mim. Não sei

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quais são suas crenças religiosas, mas certamente nenhum homem ou mulherpode negar que deve haver algo maior do que nós, não é?

Confio no universo, embora às vezes sinta como se me decepcionasse, comoquando perdi minha filha. Mas esse era o caminho que ela devia

seguir, e devo aceitar a dor.

Pensei em como aquele homem era sábio e digno e, com uma pontada de dor,quanto me lembrava Pa Salt.

– Mais uma vez nos desviamos do rumo da sua vida. Por favor, conte-mesobre suas irmãs.

Atendi então seu pedido, oferecendo biografias resumidas como fizera tantasvezes antes.

– Entendo. Mas parece que você deixou uma irmã de fora.

Contei-as de cabeça.

– Não, falei um pouco sobre cada uma delas.

– Ainda não me falou de você.

– Ah, tudo bem. – Pigarreei. – Não há muito para contar. Moro em Londrescom Estrela, embora ache que ela pode ter se mudado de vez enquanto estoufora. Na escola, eu era uma tonta, porque tenho dislexia.

É...

– Eu sei o que é, porque também tenho. E sua mãe também.

A palavra “mãe” me fez sentir um estranho arrepio. Mesmo que,considerando o que ele me dissera até o momento, eu acreditasse que elaestava morta, ao menos ele poderia me contar sobre ela.

– Deve ser genético, então. O problema era que Estrela, ou Astérope, semprefoi aquela de quem eu fui mais próxima, porque somos as do meio, com

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apenas alguns meses de diferença. Ela é muito inteligente, e a pior coisa é quea minha falta de aptidão para os estudos acabou por atrasá-la. Ela conseguiuuma vaga em Cambridge, mas não aceitou. Em vez disso, foi para afaculdadeem Sussex comigo. Sei que a pressionei a fazer isso. E me sinto muitoculpada.

– Talvez ela também não quisesse ficar sem você, Celeno.

– Sim, mas às vezes devemos tentar fazer o que é certo na vida, não é? Eudeveria tê-la convencido a ir para Cambridge, dito a ela que não sepreocupasse comigo. Era o que deveria ter feito, se realmente a amava...

e eu amava. Ainda amo.

Engoli em seco.

– O amor é a emoção mais egoísta e altruísta do mundo, Celeno, e suas duasfacetas não podem ser separadas. A necessidade em si luta com o desejo de apessoa querida ser feliz. Só que o amor não é algo a ser racionalizado enenhum ser humano escapa de seu controle, acredite. O

que você estudava na faculdade?

– História da arte. Foi um desastre, e abandonei depois de alguns períodos.Simplesmente não conseguia entender os textos por causa da dislexia.

– Compreendo. Mas você se interessa pelo assunto?

– Ah, sim, quero dizer, a arte é a única coisa para a qual levo jeito.

– Você é artista?

– Não exatamente. Bem, consegui uma vaga no Royal College, em Londres,o que foi legal, mas então...

A vergonha pelo meu fracasso me invadiu. Aquele homem tivera tantotrabalho para me encontrar e queria ouvir as histórias de sucesso da minhavida, mas, na verdade, eu não tinha conquistado absolutamente nada nosúltimos 27 anos.

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– Também não deu certo. Saí depois de três meses e vim para cá.

Lamento– acrescentei numa reflexão tardia.

– Não há necessidade de se desculpar comigo ou consigo mesma – disse meuavô, sem dúvida só por gentileza. – Vou lhe contar um segredo: ganhei umavaga na Melbourne School of Art. Quem arrumou para mim foi um homemchamado Rex Battarbee, que dava aulas sobre Namatjira.

Fiquei menos de quatro dias, então fugi e voltei para minha casa emHermannsburg.

– Sério?

– Sim. E foi um momento tenso, ter que encarar minha avó Camira quandofinalmente cheguei em casa depois de um mês de viagem. Ela ficara tãoorgulhosa quando consegui a vaga... Pensei que fosse me bater, mas ela sóestava feliz por me ver bem e em segurança. O único castigo que me deu foime trancar no galpão com um barril de água até eu me esfregar da cabeça aospés com uma barra de sabão carbólico!

– E ainda assim você seguiu em frente para se tornar um artista famoso?

– Segui em frente para ser um artista, sim, mas fiz do meu próprio jeito,assim como você está fazendo. Está pintando de novo?

– Tenho sofrido muito com isso, para ser sincera. Perdi toda a minhaconfiança depois que deixei a faculdade em novembro.

– É claro que perdeu, mas ela vai voltar, no momento em que algo... umapaisagem ou uma ideia... mexer com você. E essa sensação lá dentro vai fazersua mão formigar e...

– Conheço essa sensação! – interrompi, animada. – É exatamente o queacontece comigo!

De tudo o que meu avô me dissera até então, aquele foi o momento em queeu realmente acreditei que éramos parentes.

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– Tive essa sensação há alguns dias – acrescentei –, quando estava voltandode carro de Hermannsburg com minha amiga Chrissie, e vi o sol se pôr portrás da cordilheira MacDonnell. No dia seguinte, arranjei tinta, sentei- medebaixo de uma árvore e... pintei! Chrissie gostou muito, então levou apintura para uma galeria em Alice Springs sem que eu soubesse, e agora elaestá sendo emoldurada, e vão colocá-la à venda por 600 dólares!

– Maravilhoso! – Meu avô bateu nos joelhos. – Se eu ainda fosse de beber,faria um brinde a você. Estou ansioso para ver a pintura.

– Ah, não acho que seja nada especial, e eu só tinha uma lata velha deaquarelas infantis...

– Mas já foi um começo – concluiu ele, os olhos brilhando com o que pareciaser felicidade genuína. – Tenho certeza de que é muito melhor do que vocêpensa.

– Vi sua Roda de fogo em um livro. É fantástica.

– Obrigado. Curiosamente, não é a minha favorita, mas, muitas vezes, apreferência do artista por um trabalho específico não corresponde à visão dacrítica ou do público.

– Pintei um mural das Sete Irmãs feito com pontos quando era mais jovem –falei. – Eu nem sabia por que estava fazendo aquilo.

– Os ancestrais a estavam guiando de volta ao seu país – respondeu Francis.

– Sempre me esforcei muito para encontrar meu estilo...

– Qualquer pintor que se preze passa por isso.

– Hoje de manhã, quando vi como você e o tal de Clifford Possum tinhammisturado dois estilos para criar algo novo, pensei em tentar algo assim.

Ele não me perguntou o quê, apenas fixou seus extraordinários olhos emmim.

– Então você deve tentar. E logo. Não deixe o momento da inspiração passar.

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– Não vou deixar.

– E nunca, jamais, se compare a outros artistas. Se eles são melhores oupiores, isso só leva ao desespero...

Esperei, porque sabia que ele tinha mais a dizer.

– Caí nessa armadilha quando as pinturas de Cliff começaram a ganharreconhecimento nacional. Ele era um gênio e sinto falta dele até hoje...

Éramos grandes amigos. Mas a inveja me corroeu à medida que eu o via ficarfamoso e receber a adulação que eu nunca teria. Só existe um artista seminalda primeira geração de uma nova escola de pintura. Uma vez que era ele,nunca poderia ser eu.

– Você perdeu a confiança? – perguntei.

– Pior do que isso. Não só parei de pintar, como comecei a beber. Deixeiminha pobre esposa e saí por aí por mais de três meses. Não posso lheexplicar a inveja que senti ou como minha arte parecia inútil naquelemomento. Precisei de todo aquele tempo lá sozinho para entender que osucesso e a fama são uma miragem para qualquer artista. A verdadeira alegriaestá no próprio processo criativo. Você sempre será um escravo dele e, sim,isso dominará sua vida, controlará você como um amante.

Mas, ao contrário de um amante, nunca irá deixá-lo – continuou elesolenemente. – Está dentro de você para sempre.

– Quando você aceitou isso, conseguiu pintar novamente? – perguntei,curiosa.

– Cheguei em casa, bêbado e arrasado, e minha esposa me colocou na cama ecuidou de mim até eu melhorar fisicamente. A recuperação mental já haviacomeçado enquanto eu estava no bush, mas levei bastante tempo reunindo acoragem para me sentar em frente a uma tela e segurar um pincel de novo.Nunca esquecerei como minha mão tremia quando retomei a pintura. E então,finalmente, a liberdade de saber que não estava pintando para ninguém, a nãoser para mim mesmo, que eu

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provavelmente nunca alcançaria meu objetivo original de dominar o mundo,me deu uma sensação de paz e liberdade que não sei descrever.

Desde então, nos últimos trinta anos ou mais, minhas pinturas melhoraram e,de fato, agora valem bastante, simplesmente porque eu apenas pinto quandosinto os dedos formigarem. Bem, é isso.

Ficamos em silêncio por um tempo, mas um silêncio confortável. Eu jáestava aprendendo que meu avô só falava quando tinha algo a dizer.

Também sentia ter recebido uma tonelada de informações nos últimos dias e,mais ou menos como uma criança com uma caixa de doces, eu queria guardartudo no armário da mente e desembrulhar os fatos aos poucos. Tinha certezade que havia muitos dias famintos por vir...

– Veja!

Pulei cerca de 15 centímetros no ar ao som da voz dele, tomada de pânico aopensar que ele poderia estar apontando para uma cobra ou uma aranha.

– Lá em cima. – Ele apontou e segui a direção de seu dedo até a familiarconstelação bem baixa no céu, o mais perto de mim que eu já vira. – Ali estávocê. – Ele caminhou em minha direção e passou o braço pelo meu ombro. –Aquela é sua mãe, Pleione, e seu pai, Atlas. Olha, até a sua pequena irmã estáse mostrando para nós esta noite.

– Ah, meu Deus! Ela está lá! Eu posso vê-la!

E eu podia. Mérope estava tão vívida quanto o resto de nós – ali parecíamosbrilhar muito mais intensamente do que em qualquer outro lugar.

– Ela está vindo se juntar a todas vocês em breve, Celeno. Finalmentealcançou as irmãs...

Sua mão caiu pesadamente ao lado do corpo. Então ele se virou para mim,estendeu os braços e puxou-me para junto de si. Passei hesitantemente meusbraços ao redor de sua cintura, então ouvi um estranho som gutural e percebique ele estava chorando. O que também me levou às lágrimas, ainda mais por

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estarmos sob minhas irmãs e Pa Salt naquele lugar incrível. Concluí que nãohavia mal em me juntar a ele em seu choro.

Depois de algum tempo, ele se afastou e segurou meu rosto com as mãos.

– Consegue acreditar nisso? Você e eu, dois sobreviventes de uma poderosalinhagem, juntos aqui, sob as estrelas?

– Não consigo absorver isso tudo – falei, limpando o nariz.

– Não. Acabei de fazer isso e olhe o que aconteceu. – Ele sorriu para mim.

– Está feliz de ter ficado aqui comigo esta noite? Há uma boa cama e eudormirei no sofá aqui fora.

– Sim – respondi, surpreendendo-me, ainda que nunca tivesse me sentido tãoprotegida. – Ahn, onde fica o banheiro?

– Lá nos fundos. Irei com você para garantir que esteja livre de visitantes, seentende o que quero dizer.

Fiz o que precisava, então voltei depressa para a cabana, onde vi que umaporta que dava para a sala estava entreaberta.

– Estou só trocando os lençóis... Sarah ficaria brava se eu não colocasse umaroupa de cama limpa para a nossa neta – disse meu avô enquanto colocavadois travesseiros impecáveis no colchão, dando um tapinha neles.

– Sarah era sua esposa?

– Sim.

– De onde ela era?

– Londres, onde você disse que mora agora. Pronto. – Pegou um lençol nobaú e colocou-o sobre o colchão. – Vou deixar um cobertor, caso esfrie muito

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de madrugada, e aqui está um ventilador, se ficar muito quente.

Há uma toalha na cadeira se quiser tomar um banho. Talvez seja melhoramanhã de manhã.

– Obrigada, mas você tem certeza? Estou acostumada a dormir em qualquerlugar.

– Para mim, não tem problema nenhum. Várias vezes durmo do lado de fora.Estou acostumado.

Queria lhe dizer que eu também, mas aquilo estava ficando um poucosentimental.

– Boa noite.

Ele veio até mim e me beijou na bochecha.

– Ahn, a propósito, como devo chamá-lo?

– Acho que Francis está bom, não? Durma bem – acrescentou, depois fechoua porta.

Vi que ele tinha colocado minha mochila no chão, ao lado da cama. Tirei aroupa e subi no colchão, que era um daqueles antigos, de crina de cavalo,com uma marca feita por outros corpos, pronto para você afundar nele. Eramaravilhoso. Examinei o teto e as paredes rústicas de madeira para ver sehavia criaturas de muitas pernas, mas não vi nenhuma sob a luz suave doabajur na mesa de cabeceira. Sentia-me mais segura do que nunca, como seantes eu fosse uma mariposa apenas voando em volta da chama que ahipnotiza.

Talvez eu fosse quebrar a cara, mas, antes que pudesse me preocupar de fatocom isso, adormeci.

28

Acordei na manhã seguinte e vi o sol começar a surgir no alto do monteHermannsburg, como uma criança tímida escondida atrás das pernas da mãe.

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Olhei para o relógio e vi que ainda não eram nem seis horas, mas estava cheiade entusiasmo pelo novo dia. Notei que minhas panturrilhas tinham sidotransformadas em pinturas pontilhistas pelos mosquitos, então coloquei umacalça, sem querer que as criaturas me devorassem ainda mais antes quetivesse tomado meu próprio café da manhã.

Quando abri a porta do quarto, um cheiro de pão recém-assado veio dacozinha. De fato, meu avô estava colocando um pão na mesa lá fora, juntocom manteiga, geleia e um bule.

– Bom dia, Celeno. Dormiu bem?

– Muito bem, obrigada. E você?

– Sou uma coruja. Penso melhor depois da meia-noite.

– Eu também – falei enquanto ele se sentava. – Uau, esse pão tem um cheiroincrível. Não sabia que havia uma padaria por aqui – disse.

– Eu mesmo fiz. Sarah comprou a máquina para mim há dez anos. Eucostumava ficar muito tempo aqui, e ela queria ter certeza de que eu teriaalgo para comer caso não conseguisse atirar em um canguru de passagem.

– Já atirou em algum?

– Muitas vezes, mas isso foi há muito tempo. Agora prefiro a praticidade dosupermercado.

Ele colocou uma fatia de pão quente em um prato de metal e o entregou amim. Passei manteiga e geleia por cima e fiquei vendo a mistura penetrar namassa macia.

– Está delicioso – falei, dando grandes bocadas. Ele cortou outra fatia paramim. – Então você realmente morou lá no bush? Não havia nem uma cabanaonde pudesse ficar de vez em quando?

– Sim – respondeu ele. – Fui pela primeira vez, assim como todos os meninosaborígines, quando atingi a maturidade, com cerca de 14 anos.

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– Pensei que você tivesse sido criado como cristão.

– Fui, mas o pastor respeitava nossas tradições e não impedia que asseguíssemos. Nós, em Hermannsburg, tínhamos mais sorte do que a maioria.O

pastor Albrecht até aprendeu a falar arrernte e encomendou uma Bíblia noidioma, para que aqueles que não falassem inglês ou alemão pudessem lê-la eapreciá-la também. Ele era um bom homem, e era um

bom lugar. Tínhamos total liberdade para ir e vir, mas a maioria de nóssempre voltava. Depois de vinte anos em Papunya, eu também voltei. É

como um lar. Agora, quais são seus planos?

– Vim para encontrar minha família, e encontrei você. – Abri um sorriso paraele. – Ainda não pensei em mais nada.

– Que bom. Quero dizer, eu estava pensando se você gostaria de ficar comigopor um tempo. Assim poderíamos nos conhecer melhor. E pintar, é claro. Euestava pensando que talvez pudesse atuar como um guia, ajudá-la a descobrironde seu talento reside. Dei aulas em Papunya por muitos anos, sabe?

– Ahn...

Ele deve ter visto a preocupação em meu rosto, pois logo emendou: –

Bem, mas não se preocupe com isso. Foi só uma ideia.

– Não! É uma ideia fantástica! Quero dizer, uau, sim! É só que... Bem, você étão famoso e tudo mais... Só estou com medo de que possa me achar um lixo.

– Eu nunca pensaria isso, Celeno, você é minha neta, para começo deconversa! Como até hoje não tive chance de contribuir para a sua vida, talvezpossa fazer isso agora e ajudá-la a encontrar seu caminho.

– Talvez você deva ver meu trabalho antes de concordar em me ajudar.

– Se isso a deixa mais feliz, então tudo bem. Temos que ir a Alice para

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comprar suprimentos, e podemos aproveitar para passar na galeria que estáexibindo a sua pintura.

– Está bem, embora você provavelmente vá achar que é um li...

– Shh, Celeno. – Francis levou um dedo aos lábios. – Pensamentos negativostrazem ações negativas.

Tiramos a mesa do café da manhã, deixando-a impecável, sem uma migalhasequer. Meu avô me disse que mesmo o menor farelo traria um exército deformigas. Então fomos até os fundos do estábulo, onde havia uma velhacaminhonete à sombra de uma acácia.

Chegamos à cidade três horas depois, e meu avô nos levou até umsupermercado para comprarmos algumas coisas. Foi um processo lento, jáque toda hora aparecia alguém para bater em seu ombro e dizer bom-dia.Uma mulher até pediu para tirar uma foto com ele, que ficou parado emfrente ao balcão de carne, parecendo envergonhado. Como isso continuoupela cidade, comecei a perceber que meu avô – mesmo que não fosse CliffordPossum – certamente era uma celebridade por ali. Isso se confirmou quandoentrei atrás dele na galeria e todos os artistas lá dentro pararam o que estavamfazendo e olharam para ele de boca aberta. Em seguida, eles se reuniram aoredor dele, falando em outra língua, e Francis respondia fluentemente. Depoisde mais algumas fotos e autógrafos, meu coração bateu acelerado quando eleperguntou a Mirrin, na recepção, onde ela havia pendurado a pintura de suaneta.

– Sua neta? – Mirrin olhou para mim, parecendo nervosa, então balançou acabeça. – Peço desculpas, não está mais aqui.

– Então onde está? – perguntei, o pânico crescendo dentro de mim.

– Ficou pendurada por apenas uma hora ontem até que um casal apareceu e acomprou.

Olhei para Mirrin, perguntando-me se ela estava apenas disfarçando porqueainda não tinha conseguido mandar emoldurá-la.

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– Então agora lhe devo 350 dólares!

– Bem, essa é a melhor razão para eu não poder ver seu trabalho – disse meuavô, com o que parecia ser orgulho em sua voz.

– Celeno tem talento, Sr. Abraham. Comprarei qualquer outra coisa que elapintar.

Alguns minutos depois, com o primeiro dinheiro que já tinha ganhado comuma pintura em mãos, saímos da galeria. Enquanto caminhava pela rua aolado de Francis Abraham, artista renomado e meu avô, senti uma genuínaalegria.

– Certo, vou deixá-la à vontade – disse meu avô, apertando a última porca nocavalete que eu comprara com o dinheiro da venda. – Você tem tudo de queprecisa?

– Tudo e mais um pouco.

Ergui uma sobrancelha. Na mesa dobrável ao meu lado, havia uma novaseleção de aquarelas, tintas a óleo e pastéis, além de vários tipos de pincéisdiferentes.

– Você saberá qual usar – disse ele, colocando a mão em meu ombro. –

Lembre-se de que o pânico reprime seus instintos e a deixa cega.

Ele acendeu uma espiral repelente de insetos junto às minhas pernas paraafastar as moscas, então saiu e eu olhei para a tela em branco à minha frente.

Nunca sentira uma pressão tão intensa para pintar. Abri tubos de tinta a óleolaranja e marrom e misturei-os na paleta.

– Aqui vai – sussurrei.

Então peguei um pincel novinho em folha e comecei a pintar.

Quarenta e cinco minutos depois, eu tinha arrancado a tela do cavalete ejogado no chão porque estava terrível. Em seguida, tentei papel e aquarela,

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usando o monte Hermannsburg como tema para tentar replicar a pintura quefizera há alguns dias, mas foi ainda pior do que a tela, então a descarteitambém.

– Hora do almoço! – gritou Francis da cabana.

– Não estou com fome! – berrei de volta, escondendo a primeira tela sob acadeira e esperando que ele não notasse.

– É só um sanduíche de queijo e presunto – disse ele, entrando na varanda ecolocando o prato no meu colo. – Sua avó sempre dizia que um artista precisade comida para o cérebro. Não se preocupe, não vou ver nada que você pintaraté o final da semana. Então você tem tempo de sobra.

Suas palavras – e um sanduíche incrível – me acalmaram temporariamente,mas, ao fim do dia, eu já estava pronta para pegar

minha mochila e voltar a Alice para afogar as mágoas em algumas garrafasde cerveja. Não ajudou muito entrar para me refrescar junto ao ventilador ever meu avô sentado em um banquinho com uma enorme tela à sua frente.Observei-o misturar cores em sua paleta, então pegar um pincel e preencheroutra seção de pontos intrincados. Em algum lugar na maravilhosa mistura detons delicados de rosa, roxo e verde, eu podia ver a forma de uma pomba,quase imperceptível e composta apenas de uma série de pequenas manchasbrancas.

Ele é um gênio, e não consigo sequer pintar uma parede de cozinha, pensei,enfiando o rosto perto do ventilador para me refrescar. Então meu cabelo seemaranhou nas pás e quase fui escalpelada.

– Sua pintura é brilhante. Simplesmente incrível... Ai! – falei enquantoFrancis trabalhava para tirar meu cabelo das pás do ventilador.

– Obrigado, Celeno. Não trabalhava nela havia semanas, não tinha certeza depara onde estava indo, mas ver você sentada lá fora me deu uma ideia.

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– Está falando da pomba?

– Você viu. – Mesmo que eu não pudesse olhar para ele porque ainda estavatentando soltar o cabelo, percebi que meu avô ficara feliz por eu ter notado. –Acho que vou ter que cortar os últimos pedacinhos.

– Tudo bem, faça isso – encorajei-o, já que meu pescoço começava a doerbastante.

– Certo. – Ele saiu e voltou, brandindo uma grande tesoura de cozinha. –

Você sabe o que impede os seres humanos de atingirem plenamente seupotencial?

– O quê?

Senti sua mão puxar suavemente o emaranhado de cabelo e, então, aproximara tesoura da minha orelha direita. Van Gogh veio à minha mente, masprocurei afastar o pensamento.

– Medo. Você tem que se livrar do medo.

Em seguida, cortou meu cabelo.

Se fora algum tipo de vodu estranho que meu avô fizera comigo, eu não sei,mas acordei ao nascer do sol me sentindo mais calma.

– Estou indo a Jay Creek – disse ele enquanto limpávamos a mesa do café damanhã. – Vou chegar tarde. Qualquer problema, deixei meu número decelular na lareira, tudo bem?

– Aqui tem sinal?

– Não – respondeu ele com um sorriso. – Você consegue um pouquinho pertodo riacho às vezes. – Ele apontou lá para baixo. – Vejo você depois, tudobem?

Ele saiu na caminhonete, que acompanhei com os olhos até parecer apenasuma mancha a distância.

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– Certo, Ci – disse a mim mesma firmemente enquanto prendia a maior telaque eu tinha no cavalete. – Pode acabar sendo um desastre, mas

vamos ser corajosas e tentar.

Então desviei o cavalete da vista do monte Hermannsburg, porque ia procurarme lembrar da imagem em minha mente...

Muito tempo depois, saí do transe e vi que o sol estava se pondo e acaminhonete subia a encosta. Olhei para o que tinha feito até então – eu sótinha um contorno e um pequeno canto pintado, mas o instinto me dizia queestava no caminho certo. Quando a caminhonete se aproximou, tirei a tela docavalete e corri para o quarto, porque realmente não queria que meu avô avisse ainda. Então fechei a porta e coloquei a chaleira no fogo.

– Como foi? – perguntou ele quando chegou à varanda.

– Ah, tudo bem – falei, servindo-lhe uma xícara de café.

– Que bom.

Ele assentiu, mas não disse mais nada.

Na manhã seguinte, levantei ao amanhecer simplesmente porque mal podiaesperar para começar. E assim foi também nas manhãs que se seguiram.

Francis costumava ficar fora durante o dia, mas voltava ao pôr do sol comalgo bom para comer. Depois do jantar, eu desapareceria no quarto paraestudar minha pintura e pensar no que deveria fazer no dia seguinte. Perdi anoção de tempo, já que um dia complementava o outro, e meu celular nãotinha sinal ali.

Cheguei a pensar que Chrissie devia estar pensando que eu fora comida porum dingo ou, mais logicamente, que não queria saber dela depois do queacontecera naquela manhã fatídica, e que Estrela também devia estarpreocupada comigo. Então fui até o riacho em busca de sinal, consegui algo emandei mensagem para as duas: Pintando no Outback.

Tudo bem.

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Meus dedos quase acrescentaram: “PS: Na casa do meu avô”, mas acheimelhor não dizer nada e só acrescentei: Falo qdo voltar. Sem sinal aqui.

Bjs Então, antes que minha mente pudesse vagar até a realidade, voltei para aminha pintura.

Larguei o pincel pela última vez e me alonguei, sentindo o pulso direitoindignado com a maneira com que abusara dos seus músculos. Olhei para oque estava à minha frente, tentada a pegar o pincel de novo e adicionar umapincelada aqui e outra ali, mas eu sabia que era perigoso pintar em excesoalgo que já estava perfeito. Arrastei meus olhos e meu corpo para longe dapintura, e entrei para preparar uma forte xícara de café, então deitei na camacom o frescor do ventilador, sentindo-me totalmente desnorteada.

– Celeno, você pode me ouvir?

– Sim! – gritei.

– São onze e meia e você não se mexeu desde a noite passada, quandocheguei e a encontrei dormindo...

Olhei para o sol forte entrando pela janela e me perguntei por que ele

ainda estava brilhando às onze horas da noite.

– Você dormiu por quase quinze horas. – Meu avô sorriu para mim. –

Aqui, trouxe um café para você.

– Meu Deus! A pintura! Ainda está lá fora?

Pulei da cama, quase derrubando a xícara de café no chão.

– Eu trouxe para dentro... o que foi ótimo, porque choveu um pouco hojecedo. Não se preocupe, desviei os olhos e coloquei um lençol por cima delaenquanto a carregava. – Ele colocou sua mão quente no meu ombro.

– O Dr.

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Abraham diagnostica esgotamento. Eu também ficava assim depois da

“farra de pintura”, como Sarah costumava chamar.

– Sim, bem, não tenho ideia do que produzi, se é bom ou ruim ou...

– Seja o que for, é uma semana de sua vida que não terá sido desperdiçada.Se quiser, podemos dar uma olhada juntos depois de você comer algumacoisa. Vou deixá-la tomar um banho e se vestir.

– Podemos olhar agora? Não aguento de angústia! – expliquei enquanto oseguia até a sala.

– É claro. – Ele indicou o cavalete com um lençol branco jogado sobre a tela.– Não se preocupe, verifiquei se estava seca primeiro. Por favor, mostre suaobra.

– Você provavelmente vai odiar e... eu não sei se está boa ou...

– Celeno, por favor, posso ver logo?

– Tudo bem.

Caminhei até ela e, respirando fundo, tirei o lençol.

Meu avô deu alguns passos para trás – era uma grande tela – e cruzou osbraços no peito enquanto a estudava. Pus-me ao lado dele e fiz o mesmo.

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Ele então deu um passo mais para perto e eu o segui como uma sombra.

– E então? – Ele se virou para olhar para mim, a expressão indecifrável. –

O que você acha?

– Pensei que você é quem deveria me dizer.

– Primeiro quero ouvir o que você tem a dizer sobre ela.

Suas palavras imediatamente me lembraram as aulas de arte, quando umprofessor empregava esse método de autocrítica antes de acabar com a minhapintura.

– Eu... gosto. Para uma primeira tentativa.

– É um bom começo. Por favor, continue. Explique a pintura para mim.

– Bem, tive essa ideia de pegar a paisagem que pintei há algumas semanas,mas, em vez de aquarelas, usar óleos e pontos.

– Certo. – Vi meu avô se aproximar e apontar para o eucalipto e a cascanodosa. – Parecem dois olhos para mim, e lá em cima, na caverna, há umpequeno cirro branco, como um espírito entrando ali.

– Sim – falei, maravilhada por ele ter notado. – Mérope, a sétima irmã meinspirou; quando os olhos do Velho a observam entrar na caverna.

– Achei que fosse algo assim.

– Que bom. – Não aguentava mais. – O que você acha?

– Eu acho, Celeno, que você criou algo único. Também é bonito de se ver eestá, para uma primeira experiência com pontilhismo, muito bem executada.

Principalmente o eucalipto, que, embora seja composto por pontos e pintadoa óleo, definitivamente tem luminosidade. Ele resplandece da pintura, assimcomo o cirro branco.

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– Você gostou?

– Eu não gostei, Celeno, eu adorei. Sim, a questão técnica do pontilhismo,sobretudo onde há mudanças de cor, pode ser melhorada, mas posso lhemostrar como fazer isso. Mas nunca vi nada assim antes. E, se esta é umaprimeira tentativa, mal posso imaginar o que você poderá fazer no futuro.Você percebe que passou seis dias pintando?

– Para ser sincera, perdi a noção do tempo...

– “Em seis dias, o Senhor fez os céus e a terra, mas, no sétimo dia, eledescansou.” Celeno, você encontrou seu próprio “mundo” esta semana, eestou muito orgulhoso de você. Agora venha aqui e me deixe lhe dar umabraço.

Depois disso, e de algumas lágrimas que rolaram pelo meu rosto, Francis saiuda cabana e voltou com duas cervejas. Entregou uma para mim.

– Guardo algumas no fundo do barril de água para ocasiões muito especiais.E esta definitivamente é uma delas. Saúde.

– Saúde!

Brindamos com nossas garrafas e tomamos um gole.

– Meu Deus! Estou bebendo antes do café da manhã!

– Você esquece que é praticamente hora do almoço.

– E estou morrendo de fome – admiti, dando outra olhada na pintura e mesentindo muito orgulhosa.

Durante o almoço, meu avô e eu conversamos mais sobre ela e, depois decomer, sentamo-nos lado a lado em frente a uma nova tela, enquanto ele memostrava sua técnica para pintar os pontos e, em seguida, suavizar as bordas,de modo que, a distância, não parecessem pontos.

– Todo mundo tem sua maneira pessoal de pintar e suas próprias técnicas –explicou ele, enquanto eu tentava colocar os ensinamentos em prátrica –, e

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tenho certeza de que você irá desenvolver as suas.

Realmente é um caso de tentativa e erro, e haverá muitos erros. Faz parte doprocesso, à medida que melhoramos. – Ele se virou e olhou para mim. – Apergunta mais importante a se fazer é se o estilo de pintura em si,independentemente do resultado, parece certo.

– Ah, sim, definitivamente. Quero dizer, gostei muito dele.

– Então você encontrou seu métier. Por ora, pelo menos, porque a vida de umartista é encontrar novas formas de se expressar.

– Você quer dizer que posso ter um momento estranho estilo Picasso algumahora?

Eu ri.

– A maioria dos pintores tem, inclusive eu, mas sempre voltei ao estilo

com o qual me senti mais confortável.

– Bem, certamente tive alguns desses momentos no passado – falei, e conteisobre minha estranha instalação no ano anterior.

– Você não vê que estava usando objetos reais para estudar formas?

Estava aprendendo a posicionar os componentes em uma tela. Todaexperimentação ensina algo.

– Nunca tinha pensado assim antes, mas você tem razão.

– Você é uma artista nata, Celeno, e agora que deu todos esses primeirospassos importantes para encontrar seu próprio estilo, o céu é o limite. Só umacoisa: notei que você ainda não assinou a pintura.

– Nunca assino, geralmente porque não quero que ninguém saiba que foipintada por mim.

– Você quer que saibam que pintou essa?

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– Sim. Eu quero.

– Então é melhor praticar sua assinatura – me aconselhou Francis. – Juro queserá a primeira de muitas.

Mais tarde, peguei um pincel fino e um tubo de óleo preto e parei em frente àpintura, preparando-me para assinar.

Celeno D’Aplièse?

Ceci D’Aplièse?

C. D’Aplièse...?

Então um pensamento me ocorreu e fui até meu avô, que estava sentado navaranda, entalhando um pedaço de madeira.

– O que você está fazendo?

– Tendo um “momento Picasso”. – Ele sorriu para mim. – Vendo que formasposso criar. Não está indo bem. Já assinou sua pintura?

– Não, porque a questão é que “Celeno D’Aplièse” é um nome grande ecomplicado e fico realmente irritada quando todos pronunciam errado o

“D’Aplièse”.

– Você está me perguntando se deveria ter um pseudônimo?

– Sim, mas não sei qual.

– Não me importaria de você usar meu sobrenome, ainda que tenha sidoinventado.

– Obrigada, mas então eu negociaria com seu nome e sendo sua neta e tudomais, e...

– Você quer conquistar as coisas somente por seu talento. Compreendo.

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– Então eu estava pensando que, se seu pai biológico tivesse se casado comsua mãe como ele queria, seu sobrenome teria sido Mercer, não é mesmo?

– Sim, teria.

– E da minha mãe também, pelo menos até ela se casar.

– Certo.

– Então o que você acha de “Celeno Mercer”?

Meu avô olhou ao longe, como se seus pensamentos estivessem voltando portodas as gerações de nossa família. Então me encarou.

– Acho que é perfeito.

Quando acordei na manhã seguinte, senti-me muito estranha. Como se meutempo ali tivesse acabado, e eu devesse ir para outro lugar, embora nãosoubesse onde. E isso significava ter que deixar a realidade inundar tudo devolta para me ajudar a decidir o que exatamente eu iria fazer da minha vida apartir dali. Eu nem sabia qual dia da semana era, muito menos a data, entãofui tomar café da manhã e perguntei ao meu avô, sentindo-me realmenteconstrangida.

– Não se preocupe, perder a noção do tempo significa apenas que você estátotalmente comprometida com o que está fazendo. Hoje é 25 de janeiro.

– Uau – falei, impressionada por ter se passado menos de um mês desde quedeixara a Tailândia.

Ele me encarou com curiosidade.

– Você está pensando para onde vai depois daqui, não é?

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– Sim, um pouco.

– Não preciso lhe dizer quanto gostaria que você ficasse. Não nesta cabana, éclaro... Tenho uma casa muito confortável em Alice, com muito espaço paranós dois. Mas talvez você tenha outros lugares para visitar, outras pessoaspara ver...

– A questão é que... – esfreguei as palmas das mãos na calça, sentindo-meagitada – ... eu não tenho certeza. Algumas situações são um pouco confusas.

– Acho que na vida há sempre momentos assim. Você quer falar sobre isso?

Pensei em Estrela, depois em Ace e Chrissie, e balancei a cabeça.

– Não agora.

– Está certo. Bem, provavelmente vou voltar a Alice mais tarde, já que vocênão quer mais ficar aqui. Até eu estou ansioso por um banho decente!

– Sim, isso parece ótimo – concordei, forçando um sorriso.

– Também tenho alguns álbuns de fotos que poderia lhe mostrar.

– Eu adoraria vê-los.

– Por enquanto, por que você não dá uma volta? É o que sempre faço quandopreciso tomar decisões.

– Está bem, vou fazer isso.

Então saí e, enquanto caminhava, imaginei como seria voltar a Londres como novo estilo que descobrira, pensei em como seria estar em meu beloapartamento, pintando todos os dias, sozinha. Tudo bem que Estrela estaria aapenas uma viagem de trem de distância, e não morando do outro lado domundo, mas eu sabia que ela nunca voltaria por mais do que talvez uma noitepara podermos colocar o papo em dia sobre a vida uma da outra. Ace tambémestava em Londres, detido em

uma prisão horrível junto com assassinos. No mínimo, sentia que lhe devia

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uma explicação, e uma demonstração de apoio.

Se ele acreditaria em mim ou não, isso realmente não importava. Era a coisacerta a fazer.

E ainda havia a “casa casa” – Atlantis, e Ma, que eu não visitava havia quasesete meses –, mas não conseguia imaginar meu futuro lá. Mesmo que um diaquisesse pintar a vista do lago Léman com as montanhas logo atrás.

Isso com relação à Europa. E a Austrália, o país que eu sempre tivera tantomedo de visitar? O fato é que as últimas semanas tinham sido as maisincríveis de toda a minha vida. O pensamento por si só era brega, mas eracomo se eu tivesse renascido. Como se todos os pedaços de mim que não seencaixavam na Europa tivessem sido tirados e reorganizados, de modo aformar um todo melhor. Assim como minha instalação de arte. Eu nuncaconsegui que ela fosse perfeita, mas enfim, eu mesma nunca seria. Porém, eusabia que estava melhor, e isso era o suficiente.

Meu avô, Chrissie... eles também estavam ali. Até agora, eu não precisaraconquistar o amor deles, porque me fora oferecido incondicionalmente, maseu sabia que queria isso no futuro.

E, enquanto estava ali no meio daquele enorme espaço aberto, com o solcastigando minha cabeça sensível, percebi que não havia uma decisão a sertomada.

Então me virei e voltei para a cabana.

– Eu pertenço a este lugar – disse ao meu avô algumas horas depois, em umrestaurante em Alice, saboreando meu novo prato favorito: canguru.

– É

simples assim.

– Fico feliz – respondeu ele, com alegria evidente nos olhos.

– Mas tenho que voltar à Inglaterra para resolver algumas coisas, sabe?

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– Sei. Você precisa amarrar as pontas soltas – concordou. – Talvez seja nossaherança alemã que nos faça querer colocar a casa em ordem antes quepossamos seguir em frente – disse ele com um sorriso.

– Bem, por falar em colocar a casa em ordem, estou planejando vender aminha. Acho que contei que comprei um apartamento com vista para oTâmisa, em Londres, com a minha herança. Mas tem sido um desastre.

– Todo mundo comete erros, faz parte da curva de aprendizado humano,desde que você aprenda mesmo com eles – acrescentou com um suspiro.

– Se quiser voltar para cá, minha casa é sua pelo tempo que precisar.

– Obrigada. – Eu ainda não vira a casa dele em Alice. Ao chegarmos,tínhamos ido direto comer. – Além de colocar meu apartamento à venda,também preciso ver minha irmã para acertar as coisas por lá.

– Isso é mesmo um bom motivo para voltar – concordou ele. – Acho que aspessoas são mais importantes do que as posses.

Terminamos de comer, então entramos na caminhonete para seguir até

a casa de meu avô que ficava no perímetro da cidade, em uma fileira de belascasas brancas em estilo de chalé, com varandas e terraços.

– Ignore o jardim, manter as plantas em ordem realmente não é a minhaespecialidade – observou enquanto caminhávamos até a porta da frente.

– Estrela poderia cuidar disso em poucos dias – comentei, enquanto eleenfiava a chave na fechadura e abria a porta.

Lá dentro, tive imediatamente a impressão de que a pessoa que projetara ointerior quisera levar um pedacinho da Inglaterra para o Outback. Eradefinitivamente muito feminino, com belas cortinas floridas nas janelas,almofadas bordadas à mão adornando um antigo mas confortável sofá evárias fotos nas duas prateleiras que ficavam de cada lado da lareira. Ailuminação também era suave, o brilho dourado emanando de abajures emsuportes de latão.

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De modo geral, apesar daquele cheiro de mofo típico das casas não habitadas,me senti bastante confortável ali.

– Liguei o temporizador do aquecedor de água na última vez que estive aqui,então deve estar fumegante. Vou preparar um banho para você –

disse meu avô.

– Isso seria ótimo, obrigada – falei, pensando na última vez em que estiveraem uma banheira, coberta de pétalas de rosa, com mãos carinhosas em voltada minha cintura.

Como tudo havia mudado desde então...

Depois de um mergulho longo e incrivelmente fantástico na banheira, saí e vique a água estava cor de lama, e cheia de pequenos insetos que deviam terficado presos nas fendas do meu corpo e no meu cabelo enquanto eu estavana cabana. Era bom me sentir limpa, mas eu só tinha roupas sujas para usar.

Voltei à sala enrolada em uma toalha.

– Você teria uma camisa velha para me emprestar? Minhas roupas estãofedendo.

– Posso fazer melhor do que isso. Sua avó tinha mais ou menos o seutamanho, e há um guarda-roupa cheio em nosso quarto.

– Você tem certeza de que não se importa? – perguntei-lhe enquanto o seguiapelo corredor e ele acendia a luz do quarto, antes de abrir um antigo armáriode madeira de cedro.

– É claro que não, não consigo pensar em uso melhor para elas. Ia doá-laspara um bazar de caridade. Escolha à vontade.

Sentindo-me um pouco estranha ao revirar o guarda-roupa de minha falecidaavó, dei uma olhada no que havia ali. Vestidos de algodão com estampadasalegres, saias longas rodadas e blusas com gola de renda, mas também haviaalgumas camisas de linho. Vesti uma delas e voltei para a sala.

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Meu celular tinha sinal de novo, e vi uma mensagem de Talitha Myers, aadvogada em Adelaide, dizendo que descobrira o nome Francis Abraham noslivros contábeis. Fiquei orgulhosa por ter chegado a ele antes dela.

Francis agora estava no banho, então me distraí vendo as fotografias commolduras prateadas. A maior parte era dele e de uma mulher, que imagineiser minha avó. Ela era pequena, pálida e elegante, o cabelo escuro num coqueno alto da cabeça.

Havia outra de uma menina de cerca de 3 anos, sorrindo alegremente para acâmera, e outra da mesma criança, com talvez 11 ou 12 anos, sentada entreminha avó e meu avô.

– Minha mãe.

Engoli em seco. Não encontrei nenhuma outra foto dela com mais de 15

anos, e estava pensando sobre isso quando Francis apareceu na sala.

– Viu as fotos da sua mãe?

– Sim. Qual era o nome dela?

– Elizabeth. Era uma linda garotinha, sempre rindo. Parecia-se muito comSarah.

– Eu vi. E depois que cresceu? – sondei.

Francis suspirou.

– É uma longa história, Celeno.

– Desculpe, é que ainda há tanta coisa que não sei ou não entendo...

– Sim. Bem, por que não preparamos um café? Então podemos conversar.

– Tudo bem.

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Ele voltou alguns minutos depois, e, enquanto tomávamos nossos cafés emsilêncio, eu podia senti-lo reunindo forças para me contar.

– Talvez seja mais fácil começar onde paramos – disse ele, por fim.

– O que você achar melhor. Eu adoraria saber o que aconteceu com Kitty,Charlie e Drummond.

– É claro que sim, e foi através de Kitty que conheci minha esposa, Sarah...

Kitty Porto de Tilbury, Inglaterra Janeiro de 1949

29

– Adeus, querida irmã. Não consigo lhe dizer que alegria foi ter você aquiconosco – disse Miriam junto à entrada da embarcação que logo as separariamais uma vez. – Prometa voltar logo que puder, está bem?

– Você sabe que certamente voltarei, se Deus quiser – respondeu Kitty. –

Adeus, querida, e obrigada por tudo.

Com um último aceno, Miriam desembarcou.

Em volta de Kitty, vários outros parentes relutavam em deixar seus entesqueridos que partiam para a Austrália. Embora tivesse feito essa jornadamuitas vezes ao longo dos últimos quarenta anos, testemunhar a dor daseparação ainda a afetava profundamente.

Sentia-se como se estivesse se afogando em uma tempestade de lágrimasquando os motores do navio rugiram e o apito soou, dando um último aviso.

Em meio à multidão, alguns rostos se destacavam, o desespero claro em suasfeições: uma mulher chorando, inconsolável, abraçada a seu bebê, e umhomem magro e de cabelos grisalhos, o pânico nítido em seu rosto enquantoobservava a prancha ser erguida.

– Onde ela está? Ela deveria me encontrar aqui no navio! Com licença,senhora. – O homem voltou-se para ela. – Por acaso viu uma mulher loura

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embarcar no navio nos últimos minutos?

– Eu não saberia dizer – respondeu Kitty sinceramente. – Havia tantaspessoas entrando e saindo... mas tenho certeza de que ela está em algum lugara bordo.

Ouviram um segundo apito à medida que o barco se afastava da doca, e ohomem olhou para o lado como se pudesse pular.

– Ah, meu Deus, onde você está...?! – gritou para o vento, o som de sua vozabafado pelos motores e o grito das gaivotas.

Outro ser humano destruído pelo amor, pensou Kitty enquanto observava ohomem se afastar, cambaleante. Ele parecia um jovem militar do Exército,com os cabelos prematuramente grisalhos e o olhar assombrado. Ela viramuitos deles na Inglaterra, em sua estadia de um ano. Aqueles que haviamsobrevivido a seis anos de combates podiam ser considerados sortudos – elase sentara ao lado de um capitão do Exército no jantar, que desabafara rindo,contando histórias sobre como tinham se divertido, mas Kitty sabia que eratudo uma farsa. Esses homens nunca se recuperariam completamente, nem osentes queridos que haviam deixado para trás.

Kitty estremeceu com a brisa fria que soprava enquanto se afastavam do

porto de Tilbury e seguiam pelo estuário do Tâmisa. Já do lado de dentro,passou por um corredor acarpetado até chegar à sua cabine. Ao abrir a porta,encontrou um camareiro servindo o chá da tarde na mesa da sala.

– Boa tarde, senhora. Meu nome é James McDowell e atenderei às suasnecessidades durante a viagem. Pensei que gostaria de comer algo, mas nãosabia bem o que seria do seu agrado.

– Obrigada, James – respondeu Kitty, tranquilizada pela voz suave do jovem.– Já esteve na Austrália antes?

– Eu? Não, é uma aventura e tanto, não é? Eu era pajem de um cavalheirorico em Hampshire, mas aí ele morreu, e desde que a guerra terminou aspessoas não precisam mais de pajens, então pensei em tentar a sorte na

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Austrália. A senhora já esteve lá?

– É a minha casa. Moro lá há mais de quarenta anos.

– Então gostaria da sua opinião sobre o que fazer quando chegar. É a terradas oportunidades, pelo que ouvi dizer.

E a terra dos sonhos destruídos, pensou Kitty.

– Sim. – Ela forçou um sorriso. – É verdade.

– Bem, agora vou deixá-la à vontade, senhora. Desfiz seu baú, mas terá queme dizer o que deseja usar esta noite. A senhora tem um convite para jantarcom o capitão, então volto às seis para preparar seu banho.

Se precisar de mim mais cedo, é só tocar a campainha.

– Obrigada, James – disse, enquanto ele fechava a porta da cabine.

Suas feições marcantes e olhos azuis a fizeram se lembrar de Charlie.

Durante aqueles dias sombrios do início da guerra na Europa, dez anos antes,seu filho estivera ocupado em Broome, trabalhando com a Marinhaaustraliana para equipar os lugres requisitados a fim de transportar ossoldados para campos de batalha na África e na Europa.

Logo depois, as tripulações japonesas haviam sido presas, e, sem lugres paranavegar, Charlie escreveu para lhe dizer que parecia que a cidade estavamorrendo lenta e silenciosamente.

Pelo menos Charlie está seguro em Broome, pensara na época. Kitty já haviase mudado para Alicia Hall, em Adelaide, a fim de que o filho e Elise, suaesposa, não se sentissem vigiados, como se uma sombra seguisse cada um deseus movimentos nos negócios e em casa.

Então, em março de 1942, Kitty abriu o jornal e viu as manchetes sobre umataque inesperado na costa noroeste da Austrália. Vítimas em Broome tinhamsido registradas. Quando finalmente conseguiu contato por telefone, nemsequer ficou surpresa ao ouvir que Charlie fora uma delas.

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– Você está determinado a tirar de mim tudo o que amo?! – bradou ela aoscéus, caminhando pelos jardins de Alicia Hall de camisola, enquanto oscriados observavam sua senhora histérica.

Não teve Camira a seu lado para confortá-la, pois ela também deixara Kitty.

Elise sobrevivera ao ataque aéreo, e apenas seis meses depois Kitty

recebeu uma carta da nora anunciando que se casaria com um magnata damineração e se mudaria para Perth. Ela e Charlie não haviam tido filhos, eKitty sentiu-se curiosamente vazia com a notícia. Sabia que empurrara Elisepara cima do filho vinte anos antes, para que ele tirasse Alkina da cabeça.

Duvidava que Charlie tivesse algum dia amado a esposa; simplesmente sedeixara levar pela maré.

Kitty tomava seu chá enquanto o navio a levava, junto com seus pensamentossombrios, cada vez mais para longe da Inglaterra. Tivera quase vinte anospara refletir sobre o mistério de como Camira e a filha haviam desaparecidode Broome em um intervalo de poucos meses. E

muito tempo para repreender-se por nunca confrontar a situação.

Ignorara o óbvio desapontamento de Charlie ao ver Alkina desaparecer nanoite anterior a seu aniversário de 21 anos, e o instinto lhe dizia que os doiseventos estavam relacionados. Ainda sentia falta de Camira, que ficara ao seulado e guardara segredos inimagináveis.

Kitty deu uma mordida no sanduíche, que lhe pareceu tão sem graça e semsentido quanto sua vida desde que todos que amara a haviam deixado. Noentanto, uma luz brilhante chegara do nada à sua vida quatro longos anosapós a morte de Charlie.

Com a perda do filho, ela mais uma vez tornou-se responsável pelo impérioMercer. Tomada pela dor, não conseguira se animar a visitar as minas deopala, dirigir até as vinhas ou olhar os números da fazenda de gado. Nemmesmo abrira os extratos bancários da empresa, empilhados na mesa.Tornara-se praticamente reclusa, a culpa de tudo que fizera e deixara de fazer

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atormentando-a dia e noite.

Durante aqueles anos de trevas, desejara a morte, mas fora covarde demaispara fazer algo a respeito.

Então, certa noite, em 1946, sua empregada bateu à porta do quarto.

– Sra. Mercer, há um jovem lá embaixo que diz que precisa falar com asenhora urgentemente.

– Por favor, você sabe que não recebo visitantes. Mande-o embora.

– Eu tentei, mas ele se recusa. Diz que ficará em frente ao portão até que asenhora o receba. Devo chamar a polícia?

– Qual é o nome dele?

– Sr. Ralph Mackenzie. Ele afirma ser seu irmão.

Kitty procurou se lembrar então de tudo que acontecera ao longo dos anos,tentando descobrir quem seria aquele homem. Um homem com o mesmonome de seu pai...

E então se deu conta.

Kitty levantou-se do elegante sofá de seda e caminhou até uma das grandesjanelas, o navio agora deslizando suavemente para o mar aberto. RalphMackenzie chegara a sua vida no momento certo, um lembrete de ao menosuma boa ação que fizera.

Lembrou-se de descer a imponente escadaria e, ao parar na metade do

caminho, ver um homem alto, segurando ansiosamente o chapéu. Ele ergueua cabeça ao ouvir os passos dela, e, à fraca luz do crepúsculo, Kitty seperguntou se estava vendo uma réplica do pai mais jovem.

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Aquele homem tinha os mesmos olhos azuis carismáticos, o maxilar forte e oespesso cabelo castanho-avermelhado.

– Sr. Mackenzie. Por favor, venha comigo.

Na sala, ele sentou-se nervosamente na beirada do sofá, enquanto a criadaservia chá em duas xícaras.

Ralph pigarreou.

– Minha mãe me falou sobre a senhora. Ela sempre dizia como a senhora foigentil com ela quando estava... grávida de mim. Quando eu lhe disse queviria à procura de uma nova vida aqui na Austrália, ela me deu seu endereço.

Minha mãe o guardou durante todos esses anos, imagine. Nunca pensei que asenhora ainda estaria aqui, mas...

Então ele pegou a cruz de prata que Kitty dera a Annie havia tantos anos.

Ela olhou para a joia e lembrou-se de sua raiva pela traição do pai.

Eles então conversaram, e Ralph lhe contou que tinha sido contador júniorem um estaleiro em Leith. Kitty o convidou para jantar, e ele falou sobrecomo as coisas haviam ficado difíceis desde o fim da guerra, que a esposasofrera quando teve que lhe dizer que fora demitido porque os livros depedidos estavam vazios.

– Foi Ruth, minha esposa, que me incentivou a vir aqui para ver o que aAustrália poderia oferecer a um homem como eu.

Kitty fez, então, a pergunta que estava segurando desde o início da noite:

– Você alguma vez falou com o meu... nosso pai?

– Eu não sabia que ele era meu pai até minha mãe, que Deus abençoe suaalma, morrer. Eu já tinha visto o reverendo McBride quando ela me levava àigreja e nos sentávamos nos últimos bancos. Agora eu entendo por quesempre ficava tão irritada após a cerimônia. Ela me usava para lembrá-lo dopecado que ele havia cometido.

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Ralph ergueu os olhos para Kitty como quem pede desculpas, mas ela apenasassentiu amargamente.

– Quando eu tinha 13 anos – continuou ele –, fui mandado com uma bolsa deestudos para o Fettes College. Foi a melhor chance que tive de melhorarminha situação e construir uma nova vida. Só muito mais tarde descobri quefoi ele, meu pai, que conseguiu a bolsa para mim. Apesar de tudo,agradeçolhe por isso.

Ao final da noite, ela lhe oferecera um emprego como contador das empresasMercer. Seis meses depois, sua esposa, Ruth, viera se juntar a ele.

Kitty afastou-se da visão das ondas cinzentas lá fora, pensando que a chegadade Ralph a Adelaide sem dúvida a salvara. Após a insuportável perda deCharlie, Kitty decidira concentrar sua energia naquele jovem –

seu meio-irmão, dezoito anos mais novo – que aparecera tão inesperadamenteem sua vida.

E, ao longo dos últimos anos, Ralph se provara muito inteligente, ansiosopara aprender. Consequentemente, tornara-se seu braço direito. Ainda que aindústria de pérolas em Broome nunca tenha se recuperado após a guerra, talcomo Charlie havia previsto, os lucros da mina de opala e da vinha cresciama cada dia. Com a dedicação dos dois – irmão e irmã –, as finanças dasempresas Mercer foram lentamente sendo restauradas. A única tristeza eraque Ruth, após anos de tentativa, fora informada recentemente de que nuncapoderia ter filhos. Ralph escrevera a ela na Escócia para dizer que haviamcomprado um cachorrinho, que agora recebia os impulsos maternaisfrustrados de Ruth.

Devido à competência de seu meio-irmão, Kitty voltava para a Austrália pelaúltima vez. Ralph ainda não sabia, mas ela planejava entregar completamenteo negócio a ele quando voltasse, sabendo que o futuro da empresa estaria emboas mãos.

Kitty havia retornado a Leith seis meses antes para o funeral do pai. Elemorrera de velhice, nada mais – ela e Ralph receberam a notícia com ummisto desconfortável de tristeza e alívio carregado de culpa. Durante o tempo

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que ficou com a mãe, Kitty não mencionou uma palavra sequer sobre RalphMackenzie Junior. Também fora à Itália com Miriam, para uma breveexcursão cultural por cidades antigas, e se apaixonara perdidamente porFlorença. Lá, comprara um pequeno mas elegante apartamento, de ondepodia ver o telhado do Duomo. Sua intenção era passar o inverno lá e osverões com a família, na Escócia.

O fato de ter chegado aos 60 anos lhe dera um incentivo; não havia muitacoisa para ela na Austrália, além de lembranças dolorosas. E, depois de tentarpor anos deixar para trás a família Mercer e os fios de seda que pareciam tê-laprendido durante a maior parte de sua vida adulta, agora estava determinada afinalmente fazer isso.

Kitty caminhou até o guarda-roupa para escolher o que usaria no jantar àmesa do capitão naquela noite. Quando chegasse a Adelaide, passaria assemanas seguintes colocando seus negócios em ordem. Isso incluía procurarum advogado para registrar legalmente seu “marido” como morto. A ideia derevisitar a farsa tramada por Drummond provocou um arrepio em seu corpo,mas teria que passar por isso para poder finalmente ir embora e começar denovo.

Enquanto segurava um vestido de noite em frente ao corpo ainda magro,pensou se Drummond realmente estava morto. Muitas vezes, durante aslongas e solitárias noites em que ansiava por seu toque, imaginava que osrangidos das portas e os animais passando pela folhagem no jardim pudessemser o som de seu retorno. No entanto, como poderia esperar que ele voltasse?Fora ela quem o mandara embora.

Talvez, pensou Kitty, voltar para sua terra natal permitisse que a caixa de açoem que colocara seu coração fosse finalmente aberta de novo.

Restava esperar.

À medida que a viagem seguia seu curso, Kitty logo aderiu à sua rotinahabitual a bordo. Desinteressada em socializar com os outros convidados daprimeira classe, fazia caminhadas revigorantes pelo convés e, conformerumavam para o sul, desfrutava do calor agradável do sol em sua pele. Àsvezes, à noite, ouvia o som da música e das gargalhadas vindo de baixo, do

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convés da terceira classe, uma cantoria improvisada para acompanhar umaflauta ou um acordeão. E lembrava-se de como um dia dançara gigas noconvés inferior, o ar cheio de fumaça de cigarro. A camaradagem eracontagiante; seus amigos podiam não ser ricos, mas tinham a verdadeirariqueza de suas esperanças e sonhos.

Kitty percebera havia muito que a riqueza a isolara. Mesmo que parte deladesejasse descer as escadas e se juntar a eles, percebia que, agora, jamaisseria aceita.

– E lá estão todos eles, sonhando que um dia possam estar aqui onde estou –disse com um suspiro quando James chegou para preparar seu banho.

– A senhora vai desembarcar hoje quando chegarmos a Port Said? –

perguntou James enquanto servia sua xícara de chá preto.

– Ainda não pensei nisso – disse ela. – Você vai?

– Com certeza! Mal posso acreditar que estamos chegando ao Egito, a terrados faraós. Para ser sincero, Sra. Mercer, estou ansioso para colocar meus pésem terra firme de novo. Estou me sentindo preso a bordo, e minha amigaStella diz que há coisas para se ver, embora devamos ter cuidado para nãonos afastarmos demais. Vou levar alguns dos órfãos comigo para animá-losum pouco.

– Órfãos?

– Sim, calculo que haja cerca de uma centena deles na terceira classe.

Foram enviados da Inglaterra para encontrar novas famílias na Austrália.

– Entendo. – Kitty tomou um gole de chá. – Então talvez eu me junte a todosvocês.

– Verdade? – James olhou para ela, incrédulo. – Alguns deles fedem, Sra.

Mercer, não há instalações adequadas para o banho em seus aposentos.

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– Tenho certeza de que posso lidar com isso – respondeu ela animadamente.– Então encontro vocês no final da prancha quando o navio ancorar, às dez damanhã.

– Combinado – disse ele –, mas não diga que não avisei.

No dia seguinte, Kitty desceu a prancha de desembarque até Port Said. O

cheiro de fruta podre e corpos não lavados saudaram seu nariz enquantoouvia gritos por todo o porto movimentado. Um fluxo constante de caixotes,animais e seres humanos entrava e saía dos navios a vapor.

James esperava por ela, junto com uma garota ruiva alta e um bando decrianças esfarrapadas.

– Esta é Stella. – James apresentou a jovem, seu chapéu de pala puxado

bem para baixo para proteger a pele branca. – Ela tem feito o melhor quepode para cuidar de alguns dos mais jovens lá embaixo – disse ele, voltando-se para Stella com verdadeira adoração nos olhos.

– Prazer em conhecê-la, Stella. E quais são os seus nomes? – Kitty se curvoupara falar com o mais novo, que não poderia ter mais do que 5

anos.

– Eddie – respondeu por ele outro garoto com um forte sotaque, típico daclasse baixa. – Ele não fala muito.

– E esses são Johnny, Davy e Jimmy, e também Mabel, Edna e Susie... e eusou Sarah – disse uma garota de olhos brilhantes, penosamente magra, compele pálida e cabelos castanhos lisos, que Kitty arriscaria dizer que tinha 14

ou 15 anos. – Todos nós nos adotamos, não é?

– Sim! – respondeu o coro de rostos sujos.

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– Bem, eu sou a Sra. Mercer, e sei de um lugar aqui perto que vende todo tipode doces – anunciou Kitty. – Vamos dar uma olhada?

– Sim!

As crianças comemoraram.

– Venham, então – ordenou Kitty, enquanto, por instinto, pegava o pequenoEddie em seus braços.

– Que bom que a senhora consegue se orientar por aqui, Sra. Mercer.

Nunca vi nada parecido na vida – disse James enquanto seguiam entre oclamor dos vendedores de rua.

Kitty olhou para trás e viu Sarah e Stella dando firmemente as mãos.

– Há muitos negros por aqui, não é, Davy? – Kitty ouviu Johnny sussurrar aseu amigo enquanto os moradores locais passavam por eles com suas vestescoloridas e barretes característicos.

Ela levou o grupo para além das docas em direção à cidade. Lá, conhecia umgrande mercado de rua que vendia temperos com aromas deliciosos, frutas epão sem fermento assado em fornos quentes, o ar em volta tremulando com ocalor.

– Olhem só isso.

Sarah apontou para uma pilha colorida e brilhante de manjar turco comcobertura de açúcar.

– Sim, é uma delícia – disse Kitty. – Eu gostaria... – ela contou as crianças

– ... de oito sacos com três pedaços cada – instruiu ao vendedor atrás da mesade cavalete.

Então gesticulou até o homem entender o que ela queria.

– Aqui, Eddie. Experimente isso.

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Kitty estendeu o doce para o garoto aninhado em seu ombro. Eddie olhoupara o manjar e, com alguma relutância, tirou o polegar da boca e estendeu apequena língua rosada para experimentar a cobertura de açúcar.

– Temos que ficar atentos para ver se não passam mal, Sra. M – disse

Sarah, que estava ao lado de Kitty, distribuindo os sacos de papel. – Elesnunca comeram nada assim na vida.

– Meu Deus, alguns deles estão mesmo muito magros – sussurrou Kitty.

– Eles nos dão comida, senhora. Na verdade, algumas são melhores do que oque eu comia no orfanato. Só que todos passamos um pouco mal com asondas. Principalmente os menores. Ele – disse Sarah, apontando para Eddie,cujo rosto era o retrato da alegria enquanto saboreava o manjar turco – ficourealmente mal.

Eles caminharam pelo mercado, admirando-se com as réplicas de madeiragrosseiramente esculpidas da esfinge e do sarcófago de Tutancâmon.

Pararam em outra barraca, onde Kitty comprou uma laranja fresca para cadaum e todos olharam para a fruta como se fosse o melhor presente que játinham recebido. Voltaram para a prancha pouco antes das quatro horas, osrostos das crianças grudentos de cobertura de açúcar e laranja.

Kitty passou Eddie, adormecido, para os braços de Sarah.

– Obrigada, Sra. M, não vamos esquecer sua gentileza – disse Sarah. – Asenhora fez todos muito felizes hoje. E, se precisar de alguém para remendarseus vestidos elegantes, pode contar comigo. Não cobro tanto quanto os quetrabalham a bordo, e sou muito melhor!

Sarah abriu um sorriso e conduziu as crianças pela escada.

– Pensei que podíamos colocar dois órfãos por noite na minha banheira

– disse Kitty naquela noite, quando James arrumava seu vestido para o jantar.

– É muito gentil da sua parte – James engoliu em seco –, mas não sei como o

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comissário veria o fato de eu trazer passageiros lá de baixo para a primeiraclasse.

– Então você vai ter que descobrir um jeito. Deixe eu lhe dizer uma coisa,James: a chave para a saúde é a limpeza. Desse jeito, a pele daquelas criançasé uma colônia de bactérias. Você quer ser responsável pelo pequeno Eddieser declarado morto antes de chegar à costa da Austrália?

– Bem, não, eu...

– Então tenho certeza de que vai pensar em um plano. Se conseguir isso,posso lhe oferecer um bom trabalho em uma das minhas empresas quandochegarmos a Adelaide. Então, vamos tentar?

– Sim, Sra. Mercer – respondeu ele, inseguro.

Naquela noite, duas crianças chegaram às acomodações de Kitty. Foramapressadas a entrar por James, que então saiu, batendo a porta. Apósexclamações boquiabertas dos dois meninos, que não podiam acreditar quetal luxo e espaço existissem no navio a vapor, Kitty os levou ao banheiro epediu que se despissem.

– Minha mãe dizia para eu nunca tirar as roupas na frente de um estranho.

Jimmy, que tinha 8 anos no máximo, cruzou os braços e balançou a cabeça,negando.

– Eu também, Sra. M – acrescentou Johnny.

– Bem, então por que não deixo vocês aqui sozinhos? Por favor, esfreguem-se bem com o sabão carbólico. – Kitty indicou-o. – Há uma toalha de banhopara cada um. Quando terminarem, haverá um jantar à espera de vocês.

Os meninos bateram a porta do banheiro em seu rosto. Kitty ouviuconversarem aos sussurros, e depois esguichos de água, que acabaramprovocando risadas de alegria.

– Sequem-se rápido, meninos, o jantar está esfriando – disse ela através daporta.

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Eles saíram bem mais limpos, embora Kitty ainda notasse algumas manchasno pescoço. Quando colocou-os sentados à mesa diante de duas grandestigelas de cozido, ela percebeu que um cheiro rançoso ainda emanava de suasroupas não lavadas.

Na manhã seguinte, enquanto James servia seu café, conversaram sobre quaisdois órfãos viriam tomar banho naquela noite.

– É maravilhoso o que está fazendo pelas crianças, Sra. Mercer.

– Seria ainda melhor se pudéssemos arrumar roupas limpas para elas.

Está tão mais quente agora. Tudo de que vão precisar é uma camisa e umcalção, então poderíamos mandar lavar suas roupas atuais. Alguma ideia?

– Sarah é uma ótima costureira. Ela remendou todas as meias dos meninos efez um guarda-roupa completo de roupas com retalhos para a boneca deMabel.

– Excelente. Então vamos colocá-la para trabalhar.

– Ela não tem uma máquina de costura, Sra. Mercer.

– Então precisamos arrumar uma imediatamente. Diga ao comissário que aexcêntrica Sra. Mercer gosta de costurar para passar o tempo.

Tenho certeza de que eles têm algumas na lavanderia.

– Certo, vou ver o que posso fazer. E o material?

– Deixe isso comigo. – Kitty deu uma batidinha no nariz. – E peça a Sarahpara vir me ver esta tarde. Vamos tomar chá juntas e conversar sobre nossoprojeto.

– Então – disse Kitty, levando Sarah até seu quarto e indicando a pilha decamisolas e saias na cama. – Você consegue fazer alguma coisa com isso?

Sarah olhou para o monte de roupas de Kitty, depois virou-se para ela,

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horrorizada.

– Sra. M, essas coisas são muito caras. Eu não poderia cortá-las, seria umsacrilégio.

– Não seja boba, Sarah. Tenho mais roupas do que conseguiria usar, e semprepodemos roubar um lençol ou dois da cama se necessário.

– Se a senhora diz... – replicou Sarah enquanto corria os dedos pela rendadelicada na gola de uma camisola.

– Então está combinado. A máquina de costura chegará mais tarde e vocêpode começar a trabalhar amanhã.

Os olhos azuis de Sarah se arregalaram em seu rosto magro e pálido.

– Mas o que vão dizer sobre o fato de eu estar aqui em cima?

– O comissário não falará absolutamente nada, porque lhe direi que acontratei como minha criada e que você está consertando minhas roupas.Bem, vejo você às nove horas em ponto.

– Certo, Sra. M.

Sarah levantou-se, o vestido que usava frouxo em seu corpo magro.

Quando James a levou de volta, o coração de Kitty ficou devastado ao pensarnaqueles órfãos, enviados sozinhos para o outro lado do mundo.

Kitty só esperava que a vida fosse mais gentil com eles quando chegassem àcosta da Austrália.

No final da semana, todos os órfãos já tinham roupas novas feitas pelos dedoságeis de Sarah. Kitty também gostara da companhia da garota, que ficava àmáquina de costura falando sobre as bombas que caíram no East End durantea guerra como se estivesse se lembrando de uma caminhada no parque.

– A última matou dez em nossa rua, incluindo minha mãe. Nós estávamos noporão porque as sirenes tinham sido disparadas, então ela percebeu que havia

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deixado seu tricô lá em cima e voltou para buscá-lo bem quando a bombacaiu no nosso telhado. Fui retirada dos escombros sem um arranhão. Eu sótinha 6 anos na época. O homem que me ouviu chorando disse que foi ummilagre.

– Meu Deus! – exclamou Kitty com um suspiro. – Para onde você foi depoisdisso?

– Minha tia me levou para sua casa até que meu pai voltasse da guerra naFrança. Só que ele nunca voltou, e minha tia não podia me manter, então fuilevada para um orfanato. Não foi ruim lá, porque todos nós nos ajudávamos.É

o que a gente tem que fazer, não é, Sra. M?

– Sim.

Kitty engoliu com dificuldade; um nó se formara em sua garganta. Ela estavaadmirada com a bravura e a positividade de Sarah.

– Todo mundo diz que é possível construir uma nova vida na Austrália.

Como é lá, Sra. M?

Imenso... Desolador... Extraordinário... Cruel...

– É sem dúvida a terra das possibilidades. Tenho certeza de que você se sairámuito bem lá, Sarah. Quantos anos você tem, a propósito?

– Quinze, Sra. M, e, sendo útil assim com minhas mãos, espero conseguir umemprego e ganhar algum dinheiro. E conhecer um rapaz. – Ela riu, o rostoadquirindo o mais pálido rubor. – Certo, esses são os últimos. –

Sarah tirou um calção de baixo da agulha da máquina e deu uma sacudidapara endireitá-lo. – Deve dar bem em Jimmy, desde que ele não perca maispeso.

– Muito bem. A costura está ótima. – Kitty pegou o calção das mãos deSarah, depois dobrou-o e colocou-o cuidadosamente na pilha com o

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restante das roupas. – Você pode levar todas elas e distribuí-las.

– Sim, mas preciso ter cuidado para que não sejam roubadas. Também estavapensando se poderia pegar aquele pedaço de lençol que sobrou e costuraralguns lenços para animar uma amiga. Ela chora muito, sabe –

acrescentou, à guisa de explicação. – Muitos lá embaixo choram.

– É claro que pode, e obrigada, Sarah, por todo o seu trabalho. Aqui está oseu pagamento. – Kitty pegou uma blusa bordada e uma saia, que, nomomento, ficariam muito largas no corpo magro de Sarah. – Você pode fazeralguma coisa para ajustá-las para você?

– Ah, Sra. M... – Estendeu a mão para tocar o tecido macio. – Eu não poderiaficar com elas, não lá embaixo, pelo menos. Ficariam imundas em cincosegundos.

– Então vamos ajustá-las para você e elas podem ficar aqui comigo atédeixarmos o navio. Você vai precisar estar linda para atrair o tal rapaz, afinal.

– Obrigada, Sra. M, a senhora é o nosso anjo da guarda – disse Sarahenquanto pegava a pilha de roupas e o lençol extra e se dirigia para a porta.

– Até mais tarde.

– Bem que eu queria ser – murmurou Kitty, fechando a porta.

30

Apesar do olhar de reprovação do comissário, Kitty insistiu que seu pequenogrupo de órfãos fosse se juntar a ela quando o navio se aproximou do portode Adelaide, onde todos desembarcariam. Ela pediu um último banquete, quetodos devoraram avidamente, seus olhos procurando o horizonte de vez emquando para ver pela primeira vez o lugar onde sua nova vida começaria.

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Jimmy foi o primeiro a avistar a terra e, ao seu grito, todos foram correndo sedebruçar nas grades para ver melhor.

– Meu Deus!

– Vejam só aquelas colinas! São verdes, e não vermelhas!

– Onde estão as casas e a cidade? Não parece haver nada ali.

Kitty levantou Eddie em seus braços e acariciou seus cabelos macios.

– Você consegue ver a areia, Eddie? Talvez eu possa levá-lo lá um dia parafazer um castelinho.

Como de costume, Eddie não respondeu. Kitty abraçou com mais força seucorpo frágil enquanto ele se aconchegava em seu ombro.

James apareceu para dizer que as crianças tinham que voltar ao andar debaixo e se preparar para o desembarque.

– Haverá alguém lá para recebê-los? – perguntou Kitty, enquanto ele oslevava até a porta.

– Aparentemente, alguns funcionários os levarão para conhecer suas novasfamílias. Ouvi dizer que parece um mercado de carne... os meninos maisfortes são escolhidos primeiro, assim como as meninas mais novas e maisbonitas.

– E o que acontece com aqueles que são escolhidos?

– Não sei, Sra. Mercer – respondeu James.

Mas Kitty notou que ele sabia.

– Agora, então – disse ela, virando-se para o agitado grupo de rostosanimados que a encarava com tanta confiança –, vou dar a cada um de vocêsum cartão com meu nome e endereço. Moro muito perto do centro deAdelaide, e, se algum de vocês precisar da minha ajuda, deve vir me procurarem Alicia Hall. Entendido?

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– Sim, Sra. M – responderam em coro.

– Bem, então, adeus.

Kitty beijou suas cabeças limpas e reluzentes e os viu deixarem a cabine

pela última vez.

– E Deus abençoe a todos – murmurou, as lágrimas enchendo seus olhos.

De volta a Alicia Hall, Kitty começou a fazer os últimos acertos com relaçãoà sua vida na Austrália. Passou uma longa tarde com seu advogado, o Sr.Angus, explicando que todos os negócios da família Mercer deveriam sertransferidos para Ralph e uma quantia de dinheiro investida em ações parasustentá-la na velhice. O dinheiro deveria ser transferido para uma instituiçãode caridade no caso de sua morte.

– Também quero declarar meu marido oficialmente morto, dado que ele jáestá desaparecido há 37 anos – disse ela, o rosto sem expressar uma únicaemoção.

– Entendo. – O Sr. Angus bateu sua caneta no mata-borrão. – Isso não deveser um problema, Sra. Mercer, mas vou precisar de algum tempo para reuniras evidências.

– De que evidências você precisa? Ninguém o vê nem ouve falar dele hádécadas.

– É claro. É simplesmente a burocracia de se declarar alguém morto inabsentia. Temos que mostrar ao tribunal que fizemos todas as tentativaspossíveis de encontrar seu marido, ainda que a maior probabilidade seja queele, de fato, esteja morto. Iniciarei o processo imediatamente.

– Obrigada.

Seu irmão Ralph voltou da mina de opala em Coober Pedy, e os dois sesentaram para discutir os negócios.

– Considerando a crise financeira atual na Europa, eu diria que estamos indo

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bastante bem. É um bom momento para expandir, Kitty. Quando eu estavaem Coober Pedy, ofereceram-me terras baratas. Acho que será um excelenteinvestimento.

– Confio em seu julgamento, Ralph, mas nós temos fundos?

– Nós certamente teríamos se vendêssemos a fazenda de gado Kilgarra.

Estive olhando as contas... Você deve se lembrar de que o antigoadministrador morreu há algum tempo, não? O administrador substituto nãoparece ser tão regular com seus relatórios mensais. Acho que eu deveria ir atéo Norte ver o que está acontecendo.

– Isso é mesmo necessário?

– Receio que sim, já que não obtive nenhuma resposta aos meus últimostelegramas.

– Eu nunca estive lá – disse Kitty, sabendo muito bem por que não. – É

tão afastada.

– Parece mais perto agora, já que dá para pegar o trem afegão para AliceSprings. Kilgarra fica a apenas dois dias de viagem de charrete, mas eu teriaque partir em breve.

– Claro.

– Há também a questão das propriedades em Broome. Vendi todas elas, comocombinamos, mas ainda temos o escritório, os armazéns e, é claro, a casa.Você quer mantê-la? Sei quantas lembranças deve lhe trazer.

– Sim – respondeu ela, surpreendendo-se –, mas as instalações comerciaispodem ser vendidas. Agora, querido Ralph, quero lhe contar meus planospara o futuro.

Kitty viu o rosto de Ralph exibir o mais completo espanto quando ela disseque passaria todo o império Mercer para ele.

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– Vou receber uma modesta pensão a partir do lucro dos negócios, mas tenhomeu próprio dinheiro e, além disso, não precisarei de muita coisa.

E há também, é claro, Alicia Hall. Pretendo passá-la para você.

– Tem mesmo certeza, Kitty? Você me conhece há menos de três anos e...

– Ralph – Kitty pousou a mão gentilmente em seu braço –, você é meu irmão,sangue do meu sangue. Não consigo pensar em ninguém melhor para cuidardos negócios no futuro. Você se provou um gerente talentoso, com umaótima cabeça para os negócios. Tenho certeza de que saberá enfrentar atempestade das mudanças que sinto que está vindo para a Austrália. E, naverdade, ficarei bem feliz em passar as rédeas. Tenho sido a responsávelacidental pelos negócios já faz muito tempo.

– Então, obrigado, Kitty. Fico honrado com a sua confiança em mim.

– Está resolvido. Acho que... – Kitty olhou ao longe. – Acho que vou mepreparar para ir embora até abril. Mas tenho uma viagem que prometi a mimmesma que faria e ainda não fiz quando vim para cá pela primeira vez aindajovem.

– Para onde?

– Ayers Rock. Acredita que nunca fui lá, depois de todos esses anos? –

Kitty sorriu para ele. – Então você terá companhia no trem. Irei com você atéAlice Springs.

Enquanto fazia seus últimos preparativos para deixar a costa da Austrália,Kitty percebeu que havia poucas coisas que desejava levar para a Europa –quase tudo em Alicia Hall fora escolhido por Edith, sua sogra. Osdocumentos estavam sendo preparados para ela passar os negócios para onome de Ralph quando voltasse da viagem a Alice Springs. O Sr. Angusinformou-lhe que as coisas estavam se encaminhando bem para registrar amorte de Andrew in absentia e Kitty escrevera uma breve declaração sobre oestado mental do “marido”

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depois que o Koombana afundara, esperando que fosse o suficiente paraconvencer um juiz.

Ela recebeu o certificado de óbito de “Andrew” pelo correio duas semanasdepois, e ficou sentada olhando para ele com uma mistura de horror e alívio.Ao sair para a varanda, olhou para o exato lugar em que vira Drummond pelaprimeira vez quando tinha apenas 18 anos.

– Acabou – murmurou para si mesma. – Finalmente.

Uma estranha sensação de paz tomara conta dela quando ouviu a campainhatocar, enquanto comia sozinha a sobremesa. Então, perguntando-se quempoderia ser tão tarde da noite, ouviu Nora, sua criada aborígine, atender aporta da frente.

– Desculpa, Sra. Mercer – disse Nora aparecendo à porta da sala de jantaralguns segundos depois –, há uma mendiga que diz precisa ver a senhora. Eladiz senhora dá seu endereço. Chama Sarah. Deixa ela entrar?

– Sim, é claro.

Kitty levantou-se da mesa.

– Tem jovem com ela também – acrescentou Nora sombriamente enquantoKitty a seguia pelo corredor.

– Sra. M! Graças ao bom Deus encontramos a senhora!

Sarah, se era magra antes, agora parecia um fantasma de seu antigo eu.

Ela se atirou nos braços de Kitty.

– Ah, Sra. M...

Então Kitty notou Eddie, que estava escondido atrás de Sarah, os olhosarregalados enquanto olhava para o candelabro que pendia do alto tetoabobadado.

– Meu Deus, o que aconteceu? – Kitty puxou Eddie para junto dela, com

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Sarah ainda agarrada. – Por que não nos sentamos e vocês me contam tudo oque houve?

Conduziu ambos em direção à sala e sentou-se entre os dois.

– Ah, Sra. M, nós passamos por momentos terríveis no orfanato.

– Orfanato?

Kitty podia ver que Sarah estava à beira das lágrimas.

– Sim, porque era tudo mentira, entende? Os outros foram levados porfamílias, mas não havia ninguém esperando por mim e por Eddie. Fomoslevados com um monte de outras crianças para um lar administrado porfreiras.

– Você está com fome? – perguntou Kitty.

– Estamos morrendo de fome, Sra. M!

Kitty tocou a sineta e pediu a Nora que enchesse um prato com pão e friospara seus convidados. Depois de ver os dois enfiarem a comida na boca comose fossem catadores famintos, Kitty pediu a Sarah que lhe contassedetalhadamente o que acontecera.

Então Sarah começou a narrar a história de sofrimento que se passara noorfanato São Vicente de Paula.

– Eles nos faziam trabalhar como escravos, Sra. M, e, se recusássemos,acabávamos apanhando ou tínhamos que ficar em silêncio por horas eninguém podia falar conosco. Nem nos deixavam sair da cama para ir aobanheiro depois que as luzes se apagavam. O pequeno Eddie não tinhaescolha e molhava a cama... todos os pequenos molhavam... e entãoapanhavam por causa disso. Todos nós com idade suficiente para segurar umesfregão e um balde devíamos acordar antes do amanhecer para começar alimpar, e tudo que tínhamos para comer era pão velho. –

Sarah parou um pouco para respirar, o rosto contraído de fúria. – E o pior,Sra. M, eram aquelas freiras... elas se diziam Irmãs de Misericórdia, mas não

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tinham misericórdia nenhuma. Uma delas, a irmã Maria, escolhia uma dasmeninas pequenas todas as noites, levava para um

quarto e... Ah, Sra. M, nem consigo dizer!

Sarah cobriu o rosto com as mãos. A cada palavra que ela dizia, o horror deKitty aumentava.

– Onde fica esse lugar?

– Em Goodwood. Erramos o caminho algumas vezes antes de chegar aqui,mas calculo que fique a uma meia hora seguindo direto. Se não puder nosdeixar aqui, entendemos, mas nenhum de nós vai voltar para lá. Nunca –acrescentou Sarah com firmeza.

Kitty virou-se para ver Eddie, que dormia profundamente aninhado em seubraço.

– Acho que já passou da hora de vocês dois estarem na cama, não é?

– A senhora quer dizer que podemos ficar? Só por esta noite, é claro, mas,por favor, Sra. M, não diga a ninguém que estamos aqui se vierem nosprocurar. A freira disse que acabaríamos na prisão se tentássemos fugir.

Sarah então bocejou, seu pequeno rosto em formato de coração quasedesaparecendo por trás de sua boca.

– Não vou chamar a polícia, Sarah, eu juro. Venha, vamos colocar vocês doisna cama. Conversaremos melhor amanhã.

Kitty levou-os para cima, carregando Eddie no colo, e conduziu-os até oquarto onde Drummond e Andrew dormiam quando crianças. Deitou Eddieem uma das camas completamente vestido, cobriu-o com um lençol, e disse aSarah para ficar na outra.

– Obrigada, Sra. M, nunca vou esquecer o que a senhora fez por nós estanoite. Nunca – murmurou Sarah enquanto seus olhos se fechavam.

– Minha querida – sussurrou Kitty, fechando a porta. – Eu nunca poderia

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fazer o suficiente.

– Não consigo acreditar – disse Ruth, a esposa de Ralph, na tarde seguinte,enquanto tomavam limonada na varanda e viam Eddie brincar com Tinky,um king charles spaniel. – Tem certeza de que essa garota não estáexagerando?

– Absoluta. Passei muito tempo com ela durante minha viagem até aqui, eacredito em cada palavra que ela disse.

– Mas são freiras... mulheres que entregaram suas vidas para fazer o trabalhode Deus.

– Pela minha experiência, entregar a vida a Deus não significanecessariamente agir em Seu nome – replicou Kitty, vendo Eddie tentar pegaruma borboleta.

– O que você vai fazer com eles? – perguntou Ruth.

– Ainda não decidi. Com certeza não os mandarei de volta para o lugar deonde vieram – respondeu Kitty enquanto observavam Eddie correr pelojardim atrás da borboleta.

Sua risada se interrompeu abruptamente quando tropeçou em um pedaçopedregoso de terreno e caiu.

Antes que ele tivesse tempo de gritar de dor, Ruth já estava de pé correndoem sua direção, os braços ao redor dele enquanto o colocava

sentado no joelho. A criança enterrou o rosto em seu peito enquanto elamurmurava palavras de conforto. Uma ideia começou a se formar na mentede Kitty.

– Ahn, Sra. M, fiz isso para a senhora como forma de agradecer.

Sarah entregou timidamente a Kitty um quadrado de tecido, uma ponta

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bordada com as iniciais dela entrelaçadas a um intrincado padrão de ramos derosas.

– É lindo, Sarah, obrigada. Você é uma jovem muito talentosa.

– Não é o que a irmã Agnes costumava me dizer – resmungou Sarah. – Eladizia que eu era uma infeliz miserável, assim como todos os outros.

– Posso lhe garantir que não é, Sarah – respondeu Kitty com firmeza.

– Eu estava pensando em ir à cidade hoje para tentar arrumar um emprego decostureira. Ganhar algum dinheiro para sustentar Eddie e eu. A senhora sabede alguma coisa?

– Talvez, Sarah, mas acho você muito jovem para trabalhar em tempointegral.

– Não tenho medo de trabalho duro, Sra. M.

– Bem, na verdade, queria lhe perguntar se você estaria disposta a me ajudarpor um tempo. Tenho muitas coisas para organizar antes de partir para aEuropa e preciso fazer uma viagem até o norte da Austrália.

Como Nora é necessária aqui, preciso de alguém que me ajude com minhasroupas e tudo mais. Tenha em mente que é uma longa viagem, primeiro detrem, depois de charrete.

– Ah, Sra. M, eu a seguiria até o fim do mundo, de verdade. Está falandosério?

– Sempre falo sério, Sarah, posso lhe assegurar.

– Então eu adoraria, Sra. M. Mas... – Sarah pareceu abatida. – E quanto aEddie? Ele não é forte como eu. Não tenho certeza se ele aguentaria nosacompanhar até lá.

Kitty sorriu.

– Deixe Eddie comigo.

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– Eu estava pensando, Kitty... já que você vai ficar longe com Ralph duranteas próximas semanas, decidiu o que fazer com Eddie?

Ruth olhou carinhosamente para ele, sentado ao seu lado, completamentefascinado por um quebra-cabeça que ela lhe dera.

– Sabe, Ruth, você leu meus pensamentos, porque realmente não tenhocerteza do que vou fazer – disse Kitty. – Não gostaria de devolvê-lo aoorfanato de jeito nenhum...

– Não, isso não! Eu estava conversando com Ralph ontem à noite e achamosque seria uma boa ideia ele ficar comigo enquanto vocês estão fora, sabe?

– Que ótima ideia! Mas não será uma imposição?

– Imposição nenhuma. Ele é um amor de criança, e sinto que está começandoa confiar em mim.

Os olhos de Ruth se encheram de ternura quando Eddie a cutucou para lhemostrar o quebra-cabeça pronto.

– Sim, acho que sim. Bem, se você tem certeza...

– Absoluta. Seria bom ter um homem em casa para me proteger enquantoRalph estiver lá no norte com você.

Ruth sorriu.

– Se Eddie está feliz, então eu também estou.

– O que você acha, Eddie? – Ruth tocou o braço do menino. – Você gostariade morar na minha casa por um tempo?

– Sim, por favor! – disse Eddie, estendendo os braços para Ruth, que o puxoupara junto dela.

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– Bem, então acho que a decisão está tomada – Kitty conseguiu dizer apesardo nó que sentia na garganta.

Era a primeira vez que ouvia Eddie falar.

31

Cinco dias depois, Kitty e Sarah deixaram Adelaide com Ralph no início damadrugada a caminho de Port Augusta, onde embarcaram no trem afegão,sua bagagem cuidadosamente arrumada em seus vagões-dormitórios peloscarregadores. Durante a viagem de três dias, eles se acomodaram a umarotina tranquila, acompanhada pelo barulho rítmico do trem, que os levavaatravés do deserto vermelho cada vez mais acidentado e vazio. Kitty estavafeliz por ter levado Sarah, não só por sua natureza prática, mas também peloentusiasmo – seu constante prazer a cada curva da viagem a ajudava a ver apaisagem com outros olhos.

Eles passavam as longas tardes no vagão de observação, o rosto de Sarahcolado à janela enquanto anunciava cada nova visão e som para sua senhora.

– Camelos! – exclamou ela boquiaberta, apontando para uma fila delesserpenteando pela paisagem.

– Sim, o camareiro mencionou que provavelmente estão viajando paraencontrar o trem na próxima estação – disse Ralph sem erguer os olhos deseus papéis.

E, de fato, quando pararam em Oodnadatta, Sarah observou, extasiada, oscameleiros afegãos, com seus turbantes brancos e vestes ondulantes,receberem suprimentos do trem e armazenarem-nos em seus própriosvigorosos e elegantes transportes do deserto.

Tendo Sarah ao seu lado, Kitty também observou o cenário cambiante demontanhas vermelhas, salinas reluzentes e rios azul-celeste, admirando-seque, após todas aquelas décadas na Austrália, tivesse sempre ignorado ointerior do país.

Em Alice Springs, eles desceram em uma plataforma cheia. Parecia que toda

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a cidade fora receber o trem. Passaram espremidos por entre a multidãobarulhenta e Ralph conseguiu uma charrete para levá-los à rua principal dacidade.

Foram deixados em frente ao orgulhosamente intitulado Springs Hotel.

Enquanto o condutor vinha atrás com suas malas, entraram em uma recepçãoescura e empoeirada.

– Não é exatamente o tipo de lugar a que a senhora está acostumada, não é,Sra. M? –sussurrou Sarah em seu ouvido.

Enquanto isso, Ralph perguntava à proprietária, a Sra. Randall – uma mulhergrisalha que parecia se banhar em gim regularmente –, se havia algum quartovago. Havia, e cada um deles recebeu uma chave.

– O banheiro é lá fora, e há um barril d’água para se lavar.

– Obrigada.

Kitty meneou a cabeça para a mulher e Sarah fez uma careta para mostrar oque pensava das instalações sanitárias.

– Minha nossa, até mesmo o orfanato tinha um banheiro interno –

sussurrou ela.

– Tenho certeza de que vamos sobreviver – disse Kitty enquanto subiam asescadas de madeira.

Estavam os três exaustos naquela noite e jantaram cedo no pequeno salão doandar de baixo.

– A Sra. Randall me disse que a fazenda de gado Kilgarra fica a dois dias deviagem, então vou procurar alguém para me levar até lá. Vocês vão meacompanhar? – perguntou Ralph.

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– Não – disse Kitty com firmeza. – Só temos dez dias aqui e quero ver AyersRock. Tenho certeza de que você conseguirá me informar sobre a situação,Ralph. Agora acho que vou me retirar. A viagem me deixou esgotada.

Em seu quarto simples no andar de cima, deitou-se no colchão duro de crinade cavalo e olhou pela vidraça coberta de poeira do lado de fora como umasegunda pele. Ela sabia que Drummond não estaria na fazenda de gado – elenão teria arriscado ser reconhecido. No entanto, por mais que a lógica lhedissesse que ele poderia ser encontrado em qualquer lugar naquela vastapaisagem, estar ali no Outback fazia com que ele parecesse perto, de algumaforma.

Este é o lugar dele , a terra dele ...

– Kitty – disse severamente a si mesma. – Você acabou de conseguir que elefosse declarado morto. Além disso, é muito provável que ele não passe de ummonte de ossos a esta altura...

Após essa conversa séria consigo mesma, Kitty rolou para o lado e enfimadormeceu.

Em frente ao hotel, na manhã seguinte, Ralph parecia bastante nervososentado em uma charrete com seu condutor aborígine.

– Será uma aventura e tanto para contar a Ruth e Eddie depois, não é? –

disse, abrindo um sorriso tenso para Kitty e Sarah. – Se Deus quiser, vereivocês duas no final da semana. Certo, vamos andando.

O condutor deu um tapinha no cavalo, e então a charrete seguiu pela ruaempoeirada.

– Antes ele do que eu, Sra. M. Minha nossa, como é quente! – Sarah seabanou. – Estava pensando em ir ao vendedor do outro lado da rua comprarum tecido para fazer chapéus de pala para nós duas, com uma tela paramanter essas malditas moscas longe do meu rosto.

– Boa ideia – concordou Kitty. – Sugiro que passemos o dia aqui na cidade e

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viajemos para Ayers Rock amanhã.

– Está certo, Sra. M. Quando eu voltar, farei o melhor que puder para

lavar suas roupas de baixo naquele barril lá fora.

Depois de dar a Sarah algumas moedas, viu a menina desaparecer em meio àrua lotada. O lugar fervilhava com uma mistura de brancos e aborígines, aestrada cheia de homens a cavalo, charretes e um ou outro carro. A cena alevou de volta aos seus primeiros dias em Broome – uma misturamulticultural de humanidade, determinada a construir seu caminho em umambiente hostil e implacável.

Após almoçar e já desacostumada àquele calor sufocante, Kitty voltou para ohotel e se refugiou sob o ventilador de teto. Quando anoiteceu e o calor dodia diminuiu, resolveu dar uma volta lá fora ou então não conseguiria dormirnaquela noite. Ao chegar à pequena recepção lá embaixo, a Sra.

Randall ergueu os olhos enquanto conversava com um homem no balcão.

– Boa noite, Sra. Mercer. Marshall diz que estará aqui amanhã bem cedo paralevá-las a Rock. É melhor viajar antes de o sol estar alto, então ele sugere quesaiam às quatro da manhã. Tudo bem para a senhora?

– Obrigada. Está perfeito.

Kitty tinha acabado de girar a maçaneta da porta quando a Sra. Randallacrescentou: – São só as duas para o jantar esta noite, não é? Talvez o Sr.

D aqui possa se juntar às senhoras.

– Eu...

O homem se virou e agora olhava fixamente para ela, os olhos azuisarregalados, sua pele parda, com uma penugem de barba grisalha.

Kitty agarrou a porta da frente em busca de apoio, seu olhar incapaz de deixaro dele.

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– É claro que, se preferirem comer separadamente, posso cuidar disso.

A Sra. Randall parecia confusa enquanto seus dois hóspedes continuavam ase encarar.

– A dama decide – disse ele por fim.

Kitty tentou dar uma resposta, mas seu cérebro simplesmente não funcionava.

– A senhora está bem? Está com uma cor estranha.

– Sim... – Ela tentou tirar a mão da maçaneta, mas sabia que poderia cair sefizesse isso. Com grande esforço, girou-a para abrir a porta. – Vou dar umavolta.

Na rua, Kitty começou a caminhar depressa e às cegas para longe do hotel.

Não pode ser... Não pode ser...

– Kitty!

Ao som da voz dele, ela começou a correr. Entrou em uma viela estreita, semse importar aonde estava indo desde que ele não pudesse alcançá-la de jeitonenhum.

– Pelo amor de Deus! Eu poderia ultrapassá-la mesmo que só tivesse umaperna!

– Maldito! Maldito seja! – praguejou ela, sufocando em meio àquele calor

escaldante.

Kitty diminuiu a velocidade quando começou a ver manchas roxas e a mãofirme de Drummond agarrou seu braço. À beira do desmaio, ela se curvou,ofegante como um cão asmático, sem escolha a não ser deixar que ele asustentasse.

– Sente-se. Vou pegar um pouco de água. – Ele ajudou-a a se acomodarsuavemente na soleira de uma porta. – Espere aqui, eu já volto.

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– Não quero que você volte... Vá embora, vá embora... – gemeu Kitty, com acabeça entre os joelhos e tentando não desmaiar.

– Aqui, beba isso.

Com os olhos fechados, ela sentiu o cheiro do uísque antes de vê-lo.

– NÃO! – Ela bateu na caneca metálica, que saiu voando, depois caiu nochão e rolou, derramando seu conteúdo. – Como ousa!

– Como ouso o quê?

– Oferecer-me bebida! Eu preciso de água!

– Também tenho aqui.

Kitty pegou o cantil que ele lhe ofereceu e bebeu avidamente.

Respirando fundo enquanto se abanava com o chapéu, seus sentidos foramlentamente retornando.

– O que você está fazendo aqui? – indagou ela, ofegante.

– Venho aqui há quase quarenta anos. Prefiro pensar que sou eu quemdeveria lhe fazer essa pergunta.

– Não creio que seja da sua conta...

– Você está certa como sempre, mas devo alertá-la de que nossa cena aolongo da rua principal de Alice Springs logo estará na boca de todos.

Posso sugerir que continuemos esta conversa em algum lugar maisreservado?

– Você vai me acompanhar de volta ao hotel – disse ela, permitindo que ele alevantasse e sentindo olhares sobre os dois –, e então vai embora.

– Rá! Você está no meu território. É você quem deveria ir embora.

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– Veremos – retrucou Kitty.

Não falaram mais até chegar ao hotel. Ele parou junto à porta e virou-se paraela.

– Sugiro que, para manter as aparências, jantemos juntos esta noite.

Estamos dividindo um teto sob o olhar atento da fofoqueira da cidade. –

Ele indicou a Sra. Randall, parada atrás do balcão da recepção, observando-osatravés da vidraça coberta de poeira da porta da frente. –

E mais tarde, quando ela estiver dormindo, geralmente por volta das nove emeia, depois de algumas garrafas de bebida, nós conversamos.

– De acordo – disse Kitty enquanto ele abria a porta.

– Tudo bem, querida? – perguntou a Sra. Randall quando entraram narecepção.

– Sim, obrigada. O calor do dia deve ter me afetado.

– Com certeza, querida, acontece com todos nós, não é, Sr. D?

A Sra. Randall piscou para ele.

– Certamente, Sra. R.

– Então, decidiram se vão jantar juntos? – perguntou a Sra. Randall.

– É claro – respondeu ele. – A Sra. Mercer e eu nos conhecemos há muitosanos. Seu marido era um... grande amigo meu. Será um prazer pôr a conversaem dia, não é verdade, Sra. Mercer?

Kitty podia ver que pelo menos parte dele estava achando graça naquelafarsa. Com vontade de estrangulá-lo, ela conseguiu dizer um sim sufocado,então subiu o mais calmamente possível as escadas até o quarto.

– Meu Deus! – disse, ofegante, ao bater a porta, e depois trancou-a por

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precaução.

Então se deitou na cama para acalmar o coração acelerado.

Você o amou um dia...

Kitty se levantou alguns minutos depois e ficou andando pelo quarto comoum animal enjaulado. Observou seu rosto no pequeno espelho, cruzado porlinhas pretas chanfradas que prejudicavam seu reflexo.

Deu uma pequena risada pelo fato de o destino tê-la levado para um lugaronde mal havia um conforto feminino para fazê-la cheirar melhor ou parecermelhor para ele. Mesmo que, é claro, ela não quisesse e isso não devesseimportar... Ridicularizando-se por sua vaidade, mas, ainda assim, chamandoSarah no quarto ao lado, pediu-lhe que separasse sua blusa de musselina azulfavorita e fizesse algo com sua juba de cabelos castanho-avermelhadosgrisalhos, que haviam se tornado tão indisciplinados quanto uma criançamimada e pendiam como cachos sujos bagunçados sobre seu rosto.

– Acho que combina perfeitamente com a senhora – comentou Sarahenquanto tentava torcê-lo para prender os fios. – Faz com que pareça anosmais jovem.

– Vamos jantar com um velho amigo do meu marido – anunciou Kitty,acrescentando um pouco de batom para fazer a boca parecer mais cheia.

Então, quando começou a borrar o contorno dos lábios, limpou-obruscamente.

– A Sra. Randall mencionou que um cavalheiro jantaria conosco esta noite.

Não sabia que era um velho amigo seu. Qual é o nome dele?

Kitty engoliu em seco.

– Todos aqui o chamam de Sr. D.

Ele esperava por elas no salão, e Kitty pôde perceber por sua pele limpa erosto recém-barbeado que também havia feito um esforço para se arrumar.

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– Sra. Mercer. – Ele se levantou, então se curvou para beijar sua mão. –

Que coincidência.

– De fato.

– E quem é ela?

Sua atenção se voltou para a jovem.

– Esta é Sarah. Eu a conheci a bordo do navio na minha viagem de volta àAustrália alguns meses atrás. É minha dama de companhia.

– Como vai, senhor?

Sarah se curvou em uma reverência desnecessária.

– Muito bem, obrigado. Vamos sentar? – sugeriu ele.

Então, sussurrou ao ouvido de Kitty: – Você realmente se supera na arte derecolher desprivilegiados.

Durante o saboroso ensopado, que o “Sr. D” lhes informara ser de canguru,Kitty recostou se e observou Drummond encantar Sarah. Ela mesma estavafeliz por terem outra pessoa presente, o que tirava a atenção dela. Seuestômago estava tão contraído que, a cada garfada que engolia, parecia que iaexplodir.

– Então, para onde vocês vão a partir daqui? – perguntou ele a Sarah.

– Vamos ver um grande rochedo no meio do deserto amanhã – informouSarah alegremente, tomando outro gole da cerveja que Drummond insistiraque experimentasse. – A Sra. M quer vê-lo por algum motivo.

Parece uma enorme distância a percorrer para ver um pedaço de pedra, seentende o que quero dizer.

– Entendo, mas confie em mim: quando chegar lá, vai entender. Sem dúvidaé especial.

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– Bem, se vamos acordar às quatro, eu vou para a cama. A senhora vem, Sra.M?

– Ela vai subir depois de tomar um café, não é, Sra. Mercer?

Drummond a encarou.

– Tudo bem. – Sarah deu um de seus enormes bocejos e levantou-se da mesa.– Vejo a senhora amanhã bem cedo.

Kitty a viu sair cambaleando do salão.

– É um costume seu embebedar moças? Sarah ainda não tem 16 anos! –

sussurrou.

Drummond ergueu o copo de cerveja.

– A você, Kitty. Juro que não mudou nada desde a primeira vez que a vi. O

que é, muitas vezes me perguntei, que a deixa tão brava?

Kitty balançou a cabeça, odiando como, após todos aqueles anos, Drummondpodia reduzi-la a uma mistura de insegurança e fúria. Mais uma vez, sentiuum impulso desenfreado de bater nele.

– Como você se atreve a falar assim comigo?!

– “Assim” como? Você quer dizer, não como o resto dos lacaios que securvam e se arrastam aos pés da famosa Kitty Mercer, que sofreu umatragédia familiar tão grande, mas, contra todas as probabilidades, se tornou amaior comerciante de pérolas de Broome? Respeitada e reverenciada portodos, apesar de seu sucesso tê-la privado de qualquer forma de amor em suavida?

– Basta! – Kitty levantou-se instintivamente da cadeira, não desejando dar àSra. Randall mais fofocas para espalhar pela cidade e sabendo que estavaprestes a explodir. – Boa noite.

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Ela caminhou em direção à porta.

– Estou impressionado com seu autocontrole. Eu esperava um soco aqualquer momento.

Kitty suspirou profundamente, muito cansada e confusa para continuarlutando.

– Boa noite, Drummond.

Ela subiu as escadas até seu quarto e fechou a porta. Tirou a blusa azul e,repreendendo-se pelo impulso que a levara a usá-la, deitou-se na cama.

Pela primeira vez em muito tempo, chorou.

Quando estava se acalmando e pensando que poderia cochilar, ouviu umabatida tímida à porta. Ela se sentou, completamente acordada.

– Quem é?

– Eu – veio um sussurro através da madeira.

Kitty saiu depressa da cama, sem ter certeza se tinha trancado a porta quandoentrou. A resposta estava diante dela quando Drummond entrou, parecendotão arrasado quanto ela se sentia.

– Perdoe-me, Kitty. – Ele fechou a porta e trancou-a firmemente. – Vim medesculpar. Não me comporto como um idiota assim com mais ninguém. Foium choque ver você. Eu... não sabia... não sei – corrigiu-se –

como lidar com isso.

– Somos dois. E você está certo, este território é seu. Sou eu quem devo irembora. Vou a Ayers Rock amanhã, depois vou voltar a Adelaide o maisrápido possível.

– Não há necessidade disso.

– Receio que haja. Deus do céu, se alguém me reconhecer, ou você, juntos...

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Acabei de receber a certidão de óbito de Andrew.

– Então você finalmente me matou. – Por fim, ele se levantou, olhou para elae abriu um sorriso fraco. – Não importa, Kitty. Por aqui, sou simplesmenteconhecido como Sr. D: um vaqueiro que nunca permanece em um mesmolugar por mais de algumas semanas. Já ouvi sussurrarem por aí que sou umex-condenado, que fugiu da prisão de Fremantle.

– Você certamente poderia passar por um.

Kitty olhou para seu cabelo ainda espesso e escuro, grisalho em algumaspartes, o rosto marcado mais pelo sol do que pela idade, e o peito largocomplementado por braços grossos e musculosos.

– Ora, ora, não vamos começar a trocar insultos de novo. – Ele abriu umsorriso discreto. – Começarei nossa nova trégua dizendo que você não pareceter envelhecido um dia sequer. Continua linda.

Kitty tocou os cabelos grisalhos, constrangida.

– Sei que você está sendo gentil, mas aprecio o gesto.

O silêncio pairou entre os dois enquanto uma vida inteira de lembrançaspassava diante dos olhos de ambos.

– Então, aqui estamos – falou Drummond depois de algum tempo.

– Sim, aqui estamos – repetiu ela.

– E devo dizer-lhe, caso não tenha outra chance, que não houve um dia

sequer em quase quarenta anos em que não tenha pensado em você.

– Com raiva, provavelmente. – Kitty lançou-lhe um sorriso irônico.

– Sim – ele riu –, mas apenas com relação ao meu próprio comportamentoimpetuoso, que fez da minha vida nada além de uma farsa vazia.

– Você parece muito bem, devo dizer. Mal posso acreditar que tem mais de

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60 anos.

– Bem, meu corpo sabe – respondeu ele, com um suspiro. – Atualmente andoperturbado pelos caprichos da idade. Minhas costas doem como o diabo apósuma noite no chão, e meus joelhos rangem toda vez que monto meu cavalo.Esta vida é para os jovens, Kitty, e já não sou mais um deles.

– O que você vai fazer?

– Não tenho a menor ideia. O que vaqueiros cansados fazem na velhice?

Parando para pensar, acho que não conheço nenhum. Normalmente jáestamos mortos aos 50. Mordidos por uma cobra, de disenteria ou na ponta dalança de um negro. Tive sorte nesse aspecto. Talvez porque tenha desistidode me importar se vivia ou morria depois da última vez que a vi, então ovelho lá em cima me manteve vivo para me punir. Bem...

– Ele bateu nas coxas. – Aqui estamos. E quanto a você?

– Vou embora da Austrália para sempre depois que voltar a Adelaide.

– Para onde você vai?

– Para casa ou, pelo menos, para a Europa. Comprei um apartamento naItália. Como você, sinto que a Austrália é para os jovens.

– Ah, Kitty, como ficamos tão velhos? – Drummond balançou a cabeça. –

Ainda me lembro de você aos 18 anos, cantando a plenos pulmões noEdinburgh Castle Hotel, completamente bêbada.

– E de quem foi a culpa?

Ela o fitou.

– Minha, é claro. Como está Charlie? Conheço um homem da MissãoHermannsburg que disse ter estudado com ele, e esperava que aparecesse umdia para visitá-lo.

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– Você deve estar falando de Ted Strehlow.

– Ele mesmo. O camarada é um doido de pedra, mas o encontro de vez emquando em suas viagens pelo Outback. Ele é um antropólogo antiquado, estáestudando a cultura aborígine.

– Sim, estive com ele uma vez em Adelaide. Infelizmente, deve fazer tempoque você não vê o Sr. Strehlow. Charlie morreu sete anos atrás no ataquejaponês a Roebuck Bay.

– Kitty, eu não sabia! – Drummond caminhou na sua direção e sentou-se nacama ao lado dela. – Meu Deus, eu não sabia. Perdoe-me por minhainsensibilidade.

– Então – Kitty estava determinada a não chorar –, não tenho nada que meprenda à Austrália, e é por isso que vou para casa. – Depois de uma pausa, elaolhou para ele. – É tão errado, não é?

– O quê?

– Que você e eu ainda estejamos aqui na Terra, enquanto meu filho e tantosoutros que amamos não estejam mais conosco.

– Sim.

Ele estendeu a mão para cobrir a dela.

Kitty sentiu o calor de Drummond percorrer sua pele e percebeu que a mãodele fora a última a tocá-la desse jeito em quase quarenta anos.

Passou a própria mão em volta da dele.

– Você nunca se casou novamente?

– Não – disse Kitty.

– Com certeza houve muitos pretendentes.

– Alguns, sim, mas, como você pode imaginar, eram todos caçadores de

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fortunas. E você?

– Deus do céu, não! Quem iria me querer?

Outro silêncio prolongou-se entre eles, sentados ali, de mãos dadas,contemplando os segredos que haviam guardado um do outro, masapreciando o momento que compartilhavam.

– Preciso mesmo me recolher ou não serei ninguém de manhã – disse Kittypor fim.

No entanto, seu corpo não fez nenhuma menção de soltar a mão dele.

– Você se lembra de Alkina? – perguntou em meio ao silêncio.

– Lembro.

– Ela desapareceu na véspera do aniversário de 21 anos de Charlie. E

então Camira infelizmente fez o mesmo alguns meses depois, quando euestava na Europa.

– Sério?

– Sim. Fred também foi embora depois disso. Saiu por aí e nunca maisvoltou. E não tive mais notícia de nenhum deles. Devo ter feito algo muitoruim na vida. Todo mundo que eu amo sempre acaba me abandonando.

– Eu não abandonei. Você é que me mandou embora, lembra?

– Drummond, você sabe que eu não tinha escolha. Eu...

– Sim, e vou me arrepender de minhas ações até o dia da minha morte.

Tenha certeza de que já vivi o bastante para chegar lá.

– Nós dois tivemos culpa, Drummond, não se engane.

– Mas foi bom sentir-se vivo, não foi?

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– Foi, sim.

– Aquelas lembranças me ajudaram a permanecer vivo em muitas noiteslongas e frias no Never Never. Kitty...

– Sim?

– Tenho que lhe perguntar uma coisa. – Drummond passou a mão pelocabelo, estranhamente nervoso. – Eu... ouvi rumores de que você ficougrávida depois que fui embora.

– Eu... Como você soube?

– Você sabe como as notícias viajam pelo Outback. Kitty, o bebê era meu?

– Sim.

A palavra saiu em uma enorme bolha de tensão liberada, Kitty finalmentecontando o segredo que guardara durante todos aqueles anos.

– Não há dúvidas?

– Nenhuma. Eu tinha... sangrado depois de Andrew viajar. – Um leve ruborcorou o rosto de Kitty. – Antes de você e eu...

– Sim. Então – Drummond engoliu em seco –, o que aconteceu com nossobebê?

– Eu o perdi. Por sete meses, eu o senti dentro de mim, uma parte de você,uma parte de nós, mas entrei em trabalho de parto muito cedo e ele nasceumorto.

– Era um menino?

– Sim. Eu o chamei de Stefan, em homenagem a seu pai. Senti que era certodentro das circunstâncias. Ele está enterrado no cemitério de Broome.

Kitty chorou. Lágrimas intensas, sufocantes, enquanto seu corpo expressavatudo o que guardara por tanto tempo. Para a única outra pessoa que poderia

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entender.

– Nosso bebê e Charlie, os dois viraram cinzas. Meu Deus! Às vezes os diaspareciam tão sombrios que eu me perguntava qual era a razão disso tudo.

Bem – Kitty usou o lençol da cama para secar os olhos –, agora estou sendoautoindulgente; não tenho o direito de viver quando meus dois filhos estãomortos.

– Meu Deus, Kitty... – Drummond passou o braço em volta do ombro trêmulodela. – Que devastação o amor pode causar na vida de pobres humanos comonós.

– Um pouco de amor – murmurou Kitty, a cabeça apoiada no peito dele –, efomos os dois destruídos.

– Você deve se reconfortar com o fato de que nada na vida é tão simples.

Se Andrew não tivesse me pedido para buscar a Pérola Rosada, teria sido elequem voltaria para você vivo, e eu estaria morto no fundo do oceano.

Devemos tentar ser responsáveis por nossas ações, mas não podemos serpelas ações dos outros. Elas têm um jeito insidioso de se emaranhar comouma trepadeira em nossos destinos. Tudo na Terra tem ligação com outrascoisas.

– Isso é terrivelmente profundo – sussurrou Kitty com um vago sorriso.

– E, felizmente, acredito que seja verdade. Foi tudo o que me impediu de meatirar do topo de Ayers Rock.

– Mas aonde isso nos levou? Nenhum de nós tem família para quem passar oque aprendeu. Para os Mercers, é o fim da linhagem.

Houve uma longa pausa antes de ele responder: – Kitty, suplico que confieem mim uma última vez. Preciso levá-la a um lugar antes de você partir.Precisa vir comigo amanhã.

– Não, Drummond, passei os últimos quarenta anos da minha vida desejando

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ir a Ayers Rock e farei isso dentro de algumas horas. Nada irá me dissuadir.

– E se eu jurar que a levo lá no dia seguinte? Além do mais, desse jeito vocênão precisaria se levantar antes das oito, considerando que já passa de uma damanhã. Eu lhe imploro, Kitty. Você tem que vir.

– Por favor, Drummond, você jura que não é perda de tempo?

– Juro, mas precisamos ir assim que possível. Antes que seja tarde.

Kitty olhou para a expressão séria no rosto dele.

– Aonde vamos?

– A Hermannsburg. Você precisa conhecer uma pessoa.

32

– Sra. M! São mais de oito horas! Não devíamos nos levantar às quatro?

A senhora disse que viria me acordar.

Kitty despertou, vendo o rosto ansioso de Sarah pairando sobre ela.

– Houve uma mudança de plano – disse com voz rouca. – O Sr. D vai noslevar a Hermannsburg hoje.

– Isso é bom, não é?

Sarah esperou pela confirmação.

– Sim.

– O que é Hermannsburg? – perguntou a jovem, dobrando as roupas queKitty deixara no chão na noite anterior.

– É uma missão cristã. O Sr. D achou que estaria muito quente para fazermosa viagem a Ayers Rock hoje. Ele diz que Hermannsburg é bem mais perto.

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– Não gosto de pregadores fanáticos – disse Sarah. – Eles costumavam noscontar histórias sobre o pequeno Senhor Jesus no orfanato, diziam quedeveríamos rezar pela nossa salvação. Mas só consigo pensar que ele nãodurou muito, não é mesmo, senhora? Embora fosse o filho de Deus. – Sarahestava parada junto aos pés da cama, as mãos nos quadris.

– A que horas partimos?

– Às nove em ponto.

– Então vou buscar uma bacia de água fresca para a senhora se lavar direitoantes de sairmos, porque só o Senhor sabe quando teremos outra chance.Gosto do seu amigo, aliás. É bom ter alguém para nos proteger por aqui, nãoé?

– Sim.

Kitty conteve um riso.

– A senhora acha que ele me deixaria conduzir a charrete um pouco?

Sempre adorei cavalos, desde que um mascate apareceu na casa da minha tiae me levou para dar uma volta.

– Tenho certeza de que podemos arranjar isso – disse Kitty, caindo de voltano travesseiro enquanto Sarah deixava o quarto.

– O que eu estou fazendo...? – lamentou-se quando os acontecimentos deapenas algumas horas antes voltaram até ela.

Você está vivendo, Kitty, pela primeira vez em anos...

Lá embaixo, ela se forçou a tomar um café forte e a comer pão enquantoSarah tagarelava:

– O Sr. D disse que nos encontra lá fora quando terminarmos o café.

Devemos levar uma muda de roupa por causa da poeira, mas ele estácuidando dos suprimentos. Estou feliz que ele esteja indo, Sra. M, ele parece

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ser um homem autossuficiente. É um pouco como o Oeste

selvagem aqui, não é? Uma vez vi um filme que mostrava cavalos galopandopelo deserto. Nunca pensei que eu mesma veria isso.

Do lado de fora, Drummond esperava com uma charrete, e as duas subiramno banco. Kitty mencionou que Sarah gostaria de conduzir o cavalo emalgum momento e colocou-a entre os dois.

– Certo. Lá vamos nós.

Drummond bateu de leve nas costas do cavalo e eles saíram trotando pelarua.

Kitty ficou muito feliz em deixar Drummond encantar Sarah com suasaventuras no Outback. Ela observava o cenário, que, à medida que saíam dacidade, adquiria um tom de vermelho vibrante, a cadeia de montanhasarroxeada logo atrás. Sarah com frequência o indagava a respeito de algumacoisa, e ele pacientemente indicava as variedades de arbustos, árvores eanimais enquanto ela absorvia com avidez as informações.

– E aquele ali é um eucalipto branco, também chamado de “goma fantasma”– Drummond indicou uma árvore de casca branca a distância.

– É

sagrada para os aborígines, e você pode usar a casca para tratar resfriados...

O sol castigava, e Kitty estava feliz com seu chapéu de pala de algodão comvéu. Após algum tempo, o barulho ritmado dos passos seguros do cavalo afizeram cair no sono.

– Vire à esquerda aqui.

Foi despertada pela voz de Drummond: – Não, esquerda, Sarah.

O cavalo se agitou, e Kitty acordou e viu Sarah conduzindo a charrete parauma entrada, além da qual havia uma série de construções caiadas de branco.

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– Bem-vinda a Hermannsburg, dorminhoca. – Drummond sorriu, oferecendo-lhe a mão para ajudá-la a descer. – Sua Sarah tem potencial para ser uma boaamazona. Você nem se mexeu quando entreguei as rédeas a ela.

– Ah! E eu adorei, Sra. M! Gostaria de montá-lo.

Sarah olhou com ar de súplica para Drummond.

– Há muitos cavalos aqui, tenho certeza de que alguém a levará para cavalgarantes de irmos embora. Agora vamos ver se o pastor está aí.

Drummond passou com elas por algumas cabanas em direção a uma áreacentral que fervilhava de vida. A maioria dos rostos era aborígine, garotas devárias idades, todas vestidas de branco, o que Kitty achou ridículo em razãoda poeira vermelha que já havia soprado para cima de suas próprias roupas.

Havia homens sentados em frente a um grande galpão aberto, esticandocompridos pedaços de couro bege de vaca e pendurando-os para secar ao sol.

– Esse é o curtume; a missão vende o couro. Ali fica a escola, a cozinha, a

capela...

– Minha nossa, é uma aldeia!

Kitty seguiu seu dedo pelas cabanas, ouvindo o doce som de jovens vozescantando um hino na capela.

– De fato. E uma tábua de salvação para o povo arrernte local.

– Essas crianças... – disse Kitty, apontando para um grupo de pequeninossendo conduzidos para fora da sala de aula. – Elas foram trazidas para cácontra a vontade das mães porque são mestiças?

– Não. O protetorado não é bem-vindo aqui. Essas pessoas vêm por suaprópria vontade para aprender sobre Jesus e, ainda mais importante, paraforrar a barriga com uma boa refeição – explicou Drummond com umarisada.

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– Muitas estão aqui há anos. O pastor permite que elas pratiquem sua própriacultura além do cristianismo.

Ao ouvir o riso das crianças, Kitty se emocionou.

– É a visão mais bonita que já presenciei: duas culturas trabalhando emharmonia. Talvez haja esperança para a Austrália, afinal.

– Sim. E veja quem está lá. – Drummond indicou um homem alto ecorpulento arrastando uma mesa para uma cabana. – O filho mais famoso deHermannsburg, Albert Namatjira. Demos sorte de encontrá-lo aqui. Elecostuma sair por aí para pintar.

– Aquele é Namatjira?

Kitty estreitou os olhos contra o sol, impressionada que o artista aboríginemais famoso da Austrália estivesse a poucos metros de distância.

– É, sim. Um sujeito interessante. Se você for uma boa menina, eu aapresento a ele mais tarde. Agora vamos encontrar o pastor.

Foram até um bangalô baixo afastado dos outros, e Drummond bateu à porta.Um homem branco baixo e forte recebeu-os com um sorriso.

Apesar do calor, usava vestes pretas e uma gola clerical branca, e óculosredondos sem aro descansavam sobre seu grande nariz.

– Sr. D, que prazer inesperado – disse ele, dando tapinhas cordiais nas costasde Drummond. Falava inglês com forte sotaque alemão.

– Pastor Albrecht, esta é a Sra. Kitty Mercer, de Adelaide e depois deBroome – apresentou Drummond. – Ela estava muito interessada em verHermannsburg pessoalmente, já que ouvira falar da missão através do filho,que estudou com Ted na escola e na universidade.

– Verdade? – Os olhos do pastor Albrecht examinaram Kitty como se aavaliasse para um lugar no Reino dos Céus. – Infelizmente Ted não está aqui.

Atualmente, ele se encontra em Camberra, trabalhando em um projeto de

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pesquisa na universidade, mas é um prazer recebê-la, Sra. Mercer. E a

-senhorita?

– Esta é Sarah, uma amiga da Sra. Mercer – respondeu Drummond.

– Como vai?

Sarah, parecendo nervosa diante das vestes clericais, fez uma reverência.

– Vocês estão com sede? Minha esposa acabou de fazer uma jarra de cordialde quandong.

Albrecht, mancando um pouco, levou-os até uma pequena sala, o mobiliárioeduardiano parecendo deslocado na cabana simples. Quando todos receberamum copo da bebida rosada, sentaram-se.

– Então, como andam as coisas por aqui desde a minha última visita? –

perguntou Drummond.

– Os altos e baixos de sempre – disse o pastor. – Graças ao Senhor, nãotivemos outra seca, mas Albert teve seus problemas, como sabe.

Também houve um assalto há algumas semanas. Os ladrões levaram tudo docofre, e lamento dizer que a caixa de metal que me deu há tantos anos,quando trouxe Francis, foi com eles. Torço para que não houvesse nada departicularmente valioso ali. Francis me contou que sua avó ficou aliviada, poralgum motivo.

Kitty viu Drummond ficar pálido.

– Não, não era nada valioso – disse, de maneira casual.

– Bem, você talvez fique satisfeito em saber que a justiça foi feita. Eramladrões de gado que andavam roubando os cofres das fazendas por aqui.

Foram encontrados mortos a tiros perto de Haasts Bluff. Quem os matoufugiu com os bens roubados. Peço desculpas, Sr. D.

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– Então a maldição continua... – murmurou Drummond.

Ouviram, então, uma batida à porta. Uma jovem colocou a cabeça para dentroda sala e falou em alemão com o pastor.

– Ah, o coro vai cantar! – exclamou Albrecht. – Sim, vamos dar uma volta,obrigado, Mary. E você pode encontrar Francis para mim? Ele estavaajudando Albert mais cedo.

– Mas é claro – disse Drummond, sorrindo –, onde mais estaria Francis?

Quando os quatro cruzaram o pátio em direção à capela, Drummond ficoupara trás com o pastor e os dois falaram em voz baixa por trás de Kitty eSarah. Quando chegaram, Kitty notou a expressão séria de Drummond.

– Por favor.

O pastor indicou um banco rústico de madeira na parte de trás da igreja e osquatro se sentaram.

A capela era simples, sua única decoração uma grande pintura de Cristo nacruz. Parados em frente a ela, havia talvez trinta meninas e meninosimaculadamente vestidos, os rostos ansiosos de expectativa enquantoesperavam que o pastor indicasse que deveriam começar.

Kitty fechou os olhos quando a linda melodia de “Abide with Me” foicantada em alemão pelo coral aborígine. No final, os quatro bateram palmasentusiasmadamente.

– Não sou muito de hinos, mas esse canto foi lindo, Sra. M, ainda que eu nãotenha entendido uma palavra do que eles estavam dizendo – disse

Sarah.

– Danke schön, Mary, Kinder.

O pastor levantou-se e os três fizeram o mesmo. Kitty viu que uma senhoraem uma cadeira de rodas de madeira tinha sido levada para a parte de trás dacapela por um homem de cabelos grisalhos. Com eles, havia um belíssimo

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jovem, os cabelos em um lindo tom de mogno, pele cor de caramelo e olhosenormes, que, ao se aproximar, Kitty percebeu serem de um azulsurpreendente e incomum, com pequenos pontos âmbar nas íris. Mas aquelesolhos, no entanto, não estavam voltados para ela, mas fixos em Sarah, ao seulado. Sarah o encarava de volta também abertamente.

– Que lindo jovem – murmurou Kitty, enquanto esperavam o coro sair àfrente deles.

– É, sim. E um artista muito talentoso também. Francis seguiu Namatjira poraí como um cachorrinho desde que aprendeu a andar – disse Drummond.

Kitty desviou os olhos de Francis e virou-se para a mulher na cadeira derodas. A mulher olhou para ela e Kitty teve que agarrar o banco para sefirmar.

Embora a mulher estivesse excessivamente magra, a pele marcada pela idade,Kitty conhecia aquele rosto tão bem quanto o seu.

– Minha nossa, não pode ser! – sussurrou para Drummond. Então olhou parao velho que empurrara a cadeira de rodas lá para dentro. – E aquele é Fred!

– Sim, mas foi por causa de Camira que eu a trouxe aqui. Ela não tem muitomais tempo de vida. Vá até lá e dê um oi.

– Camira? – Kitty caminhou em direção a ela, as pernas tremendo. – É

você mesmo?

– Sra. Kitty? – sussurrou Camira de volta, igualmente surpresa.

Fred olhou boquiaberto para ela de trás da cadeira de rodas.

– Agora, Francis, esta aqui é Sarah – disse Drummond, vendo a emoçãotomar conta do rosto das duas mulheres. – Ela adora cavalos... Você lheensinaria a montar?

– É claro, Sr. D – concordou Francis hesitantemente em inglês, mas, quandochamou Sarah para acompanhá-lo, seu rosto mostrou a todos quanto

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apreciaria aquilo.

– Eu e o Sr. D temos alguns assuntos a tratar – disse o pastor Albrecht. –

Fred, por que não se junta a nós? Deixemos as duas senhoras sozinhas.

Quando os homens saíram, Kitty inclinou-se e passou os braçoscarinhosamente em torno da querida amiga.

– Para onde você foi? Senti tanto a sua falta, eu...

– Sente também, Sra. Kitty, mas coisas acontecem, não é?

Kitty soltou o corpo emaciado e pegou a mão de Camira.

– Que coisas aconteceram?

– Primeiro senhora me diz como está aqui. Sr. Drum foi lá encontrar

senhora?

– Não, fui eu que o encontrei. Ou nos encontramos.

Kitty explicou a história o mais rápido que pôde, desesperada para saber porque Camira a deixara tantos anos antes.

– Vê? Eles lá no céu quer os dois juntos.

– Não é bem assim. Vou partir para a Europa de vez muito em breve –

disse Kitty depressa. – E ninguém deve saber a verdade, Camira.

– Para quem aqui eu conta? – Camira deu uma risada rouca. – O que Sr.

Drum disse?

– Absolutamente nada, nem mesmo que você estava aqui. Por favor, queridaCamira, diga-me por que você e Alkina foram embora. Conte-me tudo.

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– Tudo bem, mas longa história, Sra. Kitty, então senhora senta e eu conta.

Kitty se sentou. Entre algumas pausas para respirar, ficou sabendo da verdadesobre o relacionamento de Charlie com a filha de Camira.

– Ah, meu Deus. – Ela enterrou o rosto nas mãos. – Por que eles não meprocuraram? Eu teria aprovado o casamento deles.

– Sim, mas minha filha, mulher decidida. Não quer viver no mundo dosbrancos e ser tratada como dingo sarnento de rua. – Camira suspirou. –

Ela ama Charlie, Sra. Kitty, tanto que deixa ele. Senhora entende?

– Entendo, é claro que sim, mas eu poderia ter anunciado o noivado deles etoda a cidade teria visto que eles tinham o meu apoio.

Houve uma pausa quando os olhos de Camira encontraram a pintura de Jesusna frente da igreja.

– Sra. Kitty, algo mais fez ela fugir.

– O quê?

Os olhos expressivos de Camira imploravam que Kitty pensasse, que dissesseas palavras por ela.

– Não! Você quer dizer que ela estava grávida?

– Sim. Quatro meses quando foi embora.

– Charlie sabia?

– Sim, ele sabe. Ele quer procurar ela, me implora para dizer onde ela vai,mas eu não sei. Depois senhora vai para Europa, ele sente que não podepartir.

Uma noite, eu sei que ela morta. Charlie e eu, nós chora juntos.

– Ah, Deus, onde ela morreu?

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– Lá no Never Never. – Camira apoiou a cabeça no braço de Kitty. – Amorcausa grande problema. Sr. Drum, ele vem até Broome para me ver e contar.E

eu vem com ele para cá. Fred aparece alguns meses depois. – Camira revirouos olhos. – Eu sente cheiro dele antes de ver.

– Mas se Alkina morreu, então por que...

– Ela morre, sim, mas bebê vivo. Sr. Drum, ele encontra bebê comcameleiros, e traz ele para Hermannsburg. Ele salva vida do bebê. Ele é

homem milagroso. – Camira assentiu veementemente. – Ancestrais ajuda eleencontrar meu neto.

A cabeça de Kitty não parava de girar com o que Camira lhe contava.

Havia tantas perguntas para as quais queria respostas que mal sabia por ondecomeçar.

– Mas como ele sabia que o bebê era de Alkina?

– A pérola ruim. Minha filha, uma vez, vê eu verificar se ainda está enterradaonde eu deixa. Ela pega para vender por dinheiro para ela e para o bebê. Sr.Drum, ele vê pérola ruim com o bebê e olhos do bebê.

Como olhos da mãe. Ele vai me ver e me traz aqui para cuidar do bebê.

– Então você não contou a Charlie que ele era pai? – Kitty tentou controlar araiva que crescia dentro de si. – Que o bebê do meu filho estava vivo? MeuDeus, Camira, por que você não me contou?!

– Talvez eu comete erro, mas Charlie amigo de Elise, e eu acha melhor elenão saber. Ele cuidando grandes negócios, e minha filha morta. Co-mo elepodia criar bebê? Senhora longe na Europa. Sim, sabe depois Charlie morretambém. Tão triste, mas agora estão juntos lá com ancestrais.

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Então foi tudo para melhor, sim?

Os olhos de Camira imploravam a Kitty para concordar, mas ela se levantoue começou a andar de um lado para outro da nave estreita da capela.

– Eu realmente não sei, Camira. Sinto como se não houvesse tido a chance dedecidir nada. Sinto-me... – Kitty torceu as mãos – ...

completamente enganada.

– Sra. Kitty, todos nós ama senhora, nós quer fazer a melhor coisa.

– Quantas decisões erradas vêm do amor... – Kitty suspirou.

Enquanto fazia o possível para se controlar na frente de uma mulher queamava e que, pela óbvia fragilidade, estava em suas últimas semanas de vida,outro pensamento lhe ocorreu.

– O que aconteceu com o bebê? – perguntou ela, preparando-se para maisnotícias ruins.

Camira finalmente abriu um largo sorriso.

– Ele doente quando bebê, mas agora ele menino grande e forte. Eu faz omelhor para criar ele bem por nós duas. – Então, ela riu. – Sra. Kitty acaba deconhecer nosso neto. Chama Francis.

Drummond viu Kitty empurrando a cadeira de rodas de Camira para osestábulos, sem saber como teria reagido às notícias. Virou a cabeça ao ouviras risadas vindo de Sarah, enquanto ela se esforçava ao máximo paraconduzir o cavalo relutante em um círculo, Francis segurando a ponta dacorda por baixo.

– Ele continua querendo seguir em frente! Nós podemos? Por favor!

– Só se eu subir com você – disse Francis.

Com o passado e o presente a ponto de colidir, Drummond refletiu sobre aspalavras de Sarah, pensando se eram uma metáfora adequada. Tantos

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humanos perambulavam em círculos, desejando um futuro que tinham medodemais de agarrar.

– Vamos, então! Suba a bordo! – gritou Sarah.

Francis soltou a corda e encaixou seu corpo comprido atrás dela no -

cavalo.

– Eu diz a ela, Sr. Drum, não acha ela muito feliz, não é mesmo? –

murmurou Camira quando Fred pegou a cadeira de rodas das mãos trêmulasde Kitty.

Ela o cumprimentou, então olhou para o jovem a cavalo.

– Talvez eu fiz coisa errada – continuou Camira, enquanto viam Francis seesforçar para impressionar uma dama.

Com a mão possessivamente em torno da cintura de Sarah, suas coxas fortescontrolando os movimentos do cavalo, ele saiu em um galope rápido.

Sarah praguejou, mas os espectadores podiam ver a pura alegria dos dois porestarem vivos, com todo o futuro pela frente.

Kitty virou-se para Drummond e finalmente falou: – Então é meu neto queestou vendo a galopar pelo campo com minha dama de companhia?

– Sim, é ele mesmo. Está com raiva?

– Quando uma decisão é tirada de suas mãos, quando se é deixadocompletamente no escuro, é claro que há raiva.

– Você tem que perdoá-la, Kitty. Camira só fez o que achou melhor na época.

Drummond preparou-se para o ataque verbal. No entanto, ao olhar paraFrancis e Sarah, Kitty ficou em silêncio. Por fim, ela disse: – Obrigada.

– O quê?

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– A resposta educada seria “Sinto muito”, como você bem sabe, mas, umavez que você aparentemente salvou a vida do nosso neto – Kitty colocou amão no ombro de Camira –, posso ignorar seu péssimo uso do idioma, sódesta vez.

– Fico feliz em ouvir isso – disse Drummond, e abriu um sorriso para ela.

– Já posso ver Charlie nele – afirmou Kitty com um suspiro, os olhos azuisbrilhando com as lágrimas não derramadas. – Sua energia, sua gentileza... –Ela levou a palma da mão ao rosto de Drummond. – Cometi tantos erros navida...

– Shh, Kitty. – Drummond pegou sua mão e a beijou. Então pressionou atesta contra a dela. – Eu amo você – sussurrou. – Nunca deixei de amar.

– Receio que eu sinta o mesmo – sussurrou ela de volta.

– Já é hora, não é? Para nós dois.

– Sim – respondeu Kitty. – Acredito que sim.

Camira virou a cabeça e viu os braços do Sr. D envolverem Kitty ternamente,trazendo-a para junto de si. Olhou então para o campo, onde seu neto gritavade alegria, deixando a garota assumir as rédeas do cavalo e segurando-afirmemente enquanto galopavam pelo campo.

Camira fechou os olhos e sorriu.

– Fiz melhor possível.

Ceci Alice Springs, Território do Norte Janeiro de 2008

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– Então essa é a história de como conheci minha Sarah. Parece ridículo, masrealmente foi amor à primeira vista para nós dois.

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Eu poderia dizer que galopamos em direção ao pôr do sol no primeiroinstante em que nos conhecemos.

Os olhos de Francis se enevoaram com a lembrança.

– Ela não voltou para Adelaide com Kitty?

– Não. Continuou em Hermannsburg comigo. Ficaram felizes em tê-la por lá,com suas habilidades de costura. – Francis mostrou as capas de almofadasbordadas. – E seu jeito natural com os pequenos. Ela nasceu para ser mãe. Aironia é que levamos anos para ter nosso próprio filho.

– Minha mãe? – sussurrei.

– Sim. Infelizmente, os médicos nos disseram que ela era a única criança quepoderíamos ter. Nós dois a adorávamos. – Francis se esforçou para conter umbocejo. – Desculpe-me, está ficando tarde.

Antes que ele se levantasse, havia mais uma pergunta que eu precisava fazerantes de ir dormir.

– E quanto a Kitty e Drummond?

– Essa história teve um final feliz. Ele foi com Kitty quando ela partiu para aEuropa. Só Deus sabe como conseguiu um passaporte, uma vez que haviasido declarado oficialmente morto, mas, conhecendo-o, ele provavelmentepagou para forjarem um. Também dava para fazer esse tipo de coisaantigamente. – Francis sorriu. – Eles foram viver em Florença, onde ninguémconhecia seu passado, e viveram felizes juntos pelo resto de suas vidas. Kittynunca chegou a conhecer Ayers Rock, veja só. Ela ficou em Hermannsburgaté pouco antes de minha avó morrer.

– Kitty lhe contou naquele dia que era sua avó também? E que Drummondera seu tio-avô?

– Não, ela deixou isso para Camira, que me contou toda a história em seuleito de morte. Depois que foram para a Itália, Drummond e Kittymantiveram contato regularmente comigo e com Sarah, e em 1978, quando

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morreu, Kitty nos deixou seu apartamento em Florença. Nós vendemos oapartamento e compramos este lugar. Kitty havia deixado a casa de Broomepara Lizzie, além das ações, que renderam uma quantia considerável ao longodos anos para sua mãe, Ceci.

– E o que aconteceu com Ralph Junior e sua família em Alicia Hall? –

perguntei.

– O querido tio-avô Ralph... – disse Francis com um sorriso. – Ele era umbom homem; leal e confiável até o fim. Sua família sempre nos recebeu bemem Alicia Hall nas raras ocasiões em que viajávamos para Adelaide.

O

pequeno Eddie também se saiu muito bem. Ele se desenvolveu sob oscuidados carinhosos de Ruth e Ralph e, assim que percebeu que estavaseguro, começou a falar. Sarah, que manteve contato com ele até o dia de suamorte, sempre dizia que ele não calou mais a boca desde então! Era muitointeligente e se tornou um advogado muito bem-sucedido. Só se aposentou noano passado. Talvez, um dia, eu possa levá-la para visitá-lo em Alicia Hall.

– Sim, pode ser. Então... – Eu precisava fazer a pergunta. – Minha mãetambém morreu?

– Sim. Sinto muito, Celeno.

– Bem, imagino que não se possa sofrer por alguém que nunca se conheceu,não é? – falei por fim. – E meu pai? Quem era?

– Ele se chamava Toba e sua mãe o conheceu enquanto ainda morávamos emPapunya, quando tinha apenas 16 anos. Papunya era uma aldeia cheia depessoas ligadas às artes e um polo para as comunidades indígenas locais dePintupi e Luritja. Sua mãe se apaixonou por ele, mas era um... homeminadequado. Ele era um pintor aborígine talentoso, mas muito propenso àbebida e a envolver-se com outras mulheres. Quando ela disse que estavagrávida de você, nós – Francis entrelaçou os dedos de tensão – sugerimos quenão levasse a gravidez adiante. Peço desculpas, Celeno, mas é a verdade.

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Engoli em seco.

– Eu entendo. De verdade. Era como a sua história se repetindo.

– É claro que sua mãe se recusou a nos ouvir. Se não lhe déssemos permissãopara se casar, ela fugiria com ele. Elizabeth sempre foi impulsiva, massuponho que seja um traço de família. – Ele me lançou um sorriso irônico.

– Infelizmente, nem Sarah nem eu pensávamos que ela cumpriria a ameaça,então ficamos firmes. Um dia depois, os dois foram embora e... –

sua voz falhou – ... nós nunca mais a vimos.

– Isso deve ter sido terrível para vocês. Não havia como encontrá-la?

– Como você já percebeu, é bem fácil desaparecer aqui. Mas todos estavamde olho nela, e, durante anos, Sarah e eu viajamos por todo o Outback,seguindo possíveis pistas. Então, um dia, simplesmente não aguentávamosmais, e resolvemos finalmente desistir.

– Compreendo. Muita dor quando as pistas não deram em nada.

– Exatamente, mas então, quando Sarah ficou gravemente doente há doisanos, ela me implorou para tentar de novo, então contratei um detetiveparticular. Seis meses depois que ela morreu, recebi uma ligação dizendo queele havia encontrado uma mulher em Broome que afirmava ter estadopresente no seu nascimento. Admito não ter ficado

muito esperançoso... Eu já encontrara muitos becos sem saída antes. Noentanto, essa mulher sabia o nome da sua mãe: Elizabeth, em homenagem àamada rainha inglesa de Sarah.

– Elizabeth...

Experimentei dizer o nome em voz alta pela primeira vez.

– Esta mulher tinha sido enfermeira do hospital em Broome e pude ver a dataem que Lizzie havia chegado lá nos registros do hospital, aparentemente emtrabalho de parto. A data batia certinho.

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– Certo. Essa mulher mencionou meu pai?

– Ela disse que Lizzie estava sozinha. Lembra que eu disse antes que Kittydeixou a casa de Broome para Lizzie? Sua mãe já tinha ido lá com a gente eprovavelmente pensou que era o ninho de amor perfeito para ela e aqueletraste. Só posso imaginar que ele a tenha abandonado em algum momentoentre Papunya e Broome. No estado de Lizzie, e considerando osdesentendimentos em casa, ela provavelmente pensou que não tinhaalternativa senão continuar em Broome sozinha.

– Então o que aconteceu depois que eu nasci?

Francis levantou-se, foi até uma escrivaninha e pegou um arquivo.

– Aqui está a certidão de óbito da sua mãe. A data corresponde a sete diasapós seu nascimento. Lizzie teve uma grave infecção pós-parto. A enfermeirame contou que ela simplesmente não era forte o bastante para lutar contraisso.

Perdoe-me, Celeno, não havia maneira fácil de dar essa notícia.

– Tudo bem – murmurei, olhando para o atestado. Já passava das duas damanhã, e as palavras pareciam um monte de rabiscos confusos. – E

quanto a mim?

– Bem, é aí que a história fica um pouco melhor. A enfermeira relatou que,depois que sua mãe morreu, eles a mantiveram no hospital o máxi-mo quepuderam, esperando encontrar uma família que a adotasse.

Ficou óbvio para mim quando conversei com ela que a enfermeira gostava devocê. Ela disse que você era um bebê muito bonito.

– Bonito? – disparei. – Eu?

– Aparentemente, sim – disse Francis com um sorriso. – No entanto, depoisde alguns meses, eles não tinham escolha senão cuidar dos preparativos paraentregá-la a um orfanato local. É triste dizer que, mesmo apenas 27 anosatrás, não havia ninguém que quisesse adotar um bebê mestiço.

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Enquanto a papelada estava sendo processada, ela falou que um cavalheirocom roupas caras aparecera no hospital. Pelo que ela lembra, ele fora aBroome procurar um parente, mas encontrara a casa em questão vazia. Umvizinho lhe informara que o antigo proprietário havia morrido, mas que umajovem morara lá por algumas semanas. O vizinho também lhe contara que agarota estava grávida e que ele deveria tentar o hospital. Quando a enfermeiraconheceu o homem e lhe disse que Lizzie havia morrido e deixado você paratrás, ele se ofereceu para

adotá-la na hora.

– Pa Salt – falei, ofegante. – O que ele estava fazendo em Broome?

Procurando por Kitty?

– A mulher não conseguiu lembrar o nome dele – continuou Francis –, mas,dadas as circunstâncias, sugeriu que ele a levasse de volta para a Europa ecompletou as formalidades da adoção por lá. O homem deixou com ela onome de um advogado na Suíça. – Francis procurou no arquivo. – O Sr.Georg Hoffman.

– O bom e velho Georg – comentou, desapontada com o fato de Pa terconseguido esconder sua verdadeira identidade novamente.

– Foi para o Sr. Hoffman que escrevi quando estava tentando localizá-la.

Eu disse que você tinha uma herança a receber: o dinheiro e a propriedadeque Kitty tinha deixado para sua mãe, e que eram seus por direito como filhade Lizzie. O dinheiro da venda da casa de Broome somado ao das açõesderam uma quantia considerável, como você sabe.

O Sr. Hoffman respondeu confirmando que seu cliente realmente a adotara, eque você estava bem. E

prometeu que qualquer fundo seria transmitido diretamente a você.

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Instruí o advogado em Adelaide para transferir o dinheiro e também lhe deiuma fotografia minha com Namatjira, para ser enviada junto com opagamento.

– Por que não uma foto de Sarah e Lizzie?

– Celeno, eu não queria perturbar sua vida se você não quisesse serencontrada. Do mesmo jeito, eu sabia que se quisesse realmente me encontraraqui na Austrália, não demoraria até que alguém reconhecesse Namatjira eseu nome no carro na fotografia e a mandasse na direção de Hermannsburg. –Francis abriu um pequeno sorriso de prazer. – Meu plano funcionou!

– Funcionou, mas a princípio eu não viria, sabe.

– Eu já havia decidido que, se você não aparecesse dentro de um ano, entrariaem contato com Georg Hoffman para encontrá-la. Você poupou meus velhosossos desse esforço, Celeno. – Ele pegou minhas mãos e segurou-as. – Sãotantas coisas para você absorver, e tantas delas perturbadoras... Você estábem?

– Sim. – Respirei fundo. – Estou feliz por saber de tudo agora. Isso significaque posso voltar para Londres.

– Certo.

Pude ver que ele estava pensando se eu tinha mudado de ideia.

– Não se preocupe – acrescentei rapidamente. – Como eu disse, só precisoacertar umas coisas antes de me mudar para cá de vez.

Ele apertou ainda mais minhas mãos.

– Você vem mesmo morar na Austrália?

– Sim, quero dizer, você e eu devemos ficar juntos. Somos os últimos dalinhagem Mercer, não somos? Os sobreviventes.

– Sim, é verdade. Mas não quero que você sinta que me deve, ou ao seupassado, qualquer coisa, Celeno. Se você tiver uma vida em Londres, não

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faça a coisa errada por culpa. O passado se foi. É o futuro que importa.

– Eu sei, mas pertenço a este lugar – falei, me sentindo mais certa do quejamais me sentira com relação a qualquer coisa na vida. – O passado é quemeu sou.

Acordei na manhã seguinte como se estivesse com uma terrível ressaca

– causada por sobrecarga de informações, e não álcool. Fiquei deitada noquarto com as belas cortinas floridas, sob a colcha de retalhos que, semdúvida, minha avó Sarah costurara durante muitas noites quentes e úmidas aliem Alice.

Fechei os olhos, pensando na grande decisão que tomara no dia anterior e nosonho estranho que acabara de ter, quando minhas mãos formigaram.

Parecia que toda a angústia e a dor precisavam ser libertadas para não meenvenenarem por dentro.

E eu sabia como fazer isso.

Saí da cama e vesti uma roupa da minha avó: uma blusa e uma bermuda largaembaixo, que fazia minhas pernas parecerem dois suportes de abajur muitogrossos para os abajures no alto.

Francis tomava café da manhã na cozinha em uma mesa posta para dois.

– Você por acaso tem uma tela sobrando? Tipo, a maior possível? –

perguntei a ele.

– Claro. Venha comigo.

Fiquei feliz por ele ter entendido a minha urgência sem precisar de explicaçãoe o segui até uma estufa utilizada como depósito. Coloquei minha tela e ocavalete em uma parte sombreada do jardim de trás, e Francis me emprestouseus pincéis especiais de zibelina. Selecionei o tamanho certo e comecei amisturar as tintas. Assim que o pincel tocou a tela, aquela estranha sensaçãoque às vezes me dominava enquanto eu estava pintando me dominou, e,

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quando me dei conta, a tela estava cheia e o céu, escuro.

– Celeno, está na hora de entrar – chamou Francis da porta dos fundos. –

Os mosquitos vão comer você viva aí fora.

– Não olhe! Ainda não está terminada!

Tentei pateticamente cobrir a enorme tela com as mãos, embora eleprovavelmente já a tivesse visto através da janela da sala.

Ele atravessou o gramado para passar os braços em volta de mim e meabraçou com força.

– É uma necessidade, não é?

– Definitivamente – falei com um bocejo –, não conseguia parar. Esta é paravocê, aliás.

– Obrigado, vou guardar com todo o carinho.

Eu estava sentada havia muito tempo e minhas pernas não funcionavamdireito, então Francis me ajudou a levantar e deixou que eu me apoiasse

nele como se fosse uma velhinha.

– Provavelmente é terrível – comentei ao me jogar, exausta, em uma poltronana sala.

– Talvez seja, mas já sei onde vou pendurá-la. – Ele apontou para o espaçosobre a lareira. – Quer comer alguma coisa?

– Estou cansada demais para comer, mas poderia tomar uma xícara de cháantes de ir para a cama.

Meu avô então me trouxe o chá, apoiou minha tela nova na frente da lareira, esentou para estudá-la.

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– Já decidiu como vai chamá-la?

– Os pescadores de pérolas – falei, surpreendendo-me, já que costumava serpéssima para escolher títulos. – É sobre, bem... nossa família. Eu sonhei queestava em Broome, nadando no mar. Havia muitos de nós e todosprocurávamos por uma pérola e...

– Então é uma lua no centro? – interrompeu Francis, analisando a pintura.

– Você sabe que minha mãe se chamava Alkina, que significa lua.

– Talvez eu soubesse, talvez não – ponderei –, mas o círculo brancorepresenta a beleza e o poder da fertilidade feminina e da natureza, o ciclointerminável da vida e da morte. Em outras palavras, é a história da nossafamília.

– Eu adorei – disse Francis, observando as formas grandes e impetuosas domar abaixo da lua, com pequenos pontos perolados sob as ondas, no fundo domar. – E sua técnica já está se aprimorando. Isso é realmente impressionantepara um dia de pintura.

– Obrigada, mas é um trabalho em progresso – comentei, bocejando de novo.– Acho que vou me deitar agora.

– Antes de ir, queria lhe dar uma coisa. – Ele enfiou a mão no bolso e puxouuma pequena caixa de joias. – Agarrei-me a ela desde que Sarah morreu, masestava esperando para dar a você.

Ele colocou-a em minha mão, e a abri nervosamente. Lá dentro havia umpequeno anel, com uma pedra âmbar bem lisa.

– É o anel que meu pai, Charlie, deu a Alkina um dia antes de ela o deixar

– disse Francis.

Segurei a joia junto à luz e o âmbar brilhava numa linda cor de mel. Haviauma pequena formiga suspensa no meio, como se tivesse acabado de ser pegadurante um passeio. Eu mal podia acreditar que tinha milhares de anos. Ouque eu tivera aquele sonho vívido sobre o pequeno inseto na palma da minha

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mão.

Era exatamente como aquele.

– Camira levou com ela para Hermannsburg depois que Alkina morreu –

continuou Francis. – E, no dia em que lhe contei que queria me casar comSarah, ela me deu.

– Uau. – Peguei o anel e coloquei-o no anelar da mão direita. – Obrigada,

Francis.

– Não precisa me agradecer – disse ele, sorrindo. – Agora é melhor você sedeitar antes que acabe dormindo aqui. Boa noite, Celeno.

– Boa noite, Francis.

Fomos até a cidade na manhã seguinte, já que Francis sugerira que eu levassea tela que havia pintado no bush para mostrar à Mirrin, e porque eu precisavair a uma agência de viagens reservar meu voo para casa.

– Ida e volta? – perguntou a mulher atrás da tela do computador, e ficou àespera.

– Sim – respondi com firmeza.

– E a data de retorno?

– Preciso de cerca de uma semana lá, então seria dia 6 de fevereiro.

– Você tem certeza de que é tempo suficiente? – indagou Francis. – Leve otempo que for necessário. Posso cobrir o custo extra de um bilhete flexívelpara você.

– Só preciso de uma semana – respondi, e continuei com a reserva.

No final das contas ele acabou pagando por tudo, porque meu cartão decrédito enfim decidiu entregar-se à exaustão. Obviamente tinha chegado ao

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limite e eu não poderia pagá-lo até ir para casa e passar no banco.

Quase morri de vergonha quando foi recusado. Sempre fora minha regra deouro nunca pedir dinheiro emprestado.

– Não é problema nenhum, Celeno – disse ele quando deixamos a agênciacom o bilhete –, um dia vai tudo para você de qualquer maneira. Pense nissocomo um adiantamento.

– Você já me deu tanto... – falei, envergonhada. – Talvez com o que Mirrinme oferecer pela pintura eu possa lhe pagar.

– Como você desejar – respondeu Francis.

Na galeria, Mirrin olhou a tela e assentiu com aprovação.

– É muito boa.

– Mais do que boa. – Francis olhou para ela. – Eu diria que é excepcional.

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– Tentaremos colocá-la à venda por mil dólares.

– Dobre esse valor – respondeu Francis. – E minha neta fica com 65%.

– Nunca damos mais do que sessenta, o senhor sabe disso.

– Tudo bem, então vamos levá-la para a Many Hands Gallery, no final da rua.

Francis fez menção de pegar a tela, mas Mirrin o deteve.

– Tudo bem, só porque é o senhor, mas não deve contar aos outros artistas.

– Ela se encolheu de repente e levou a mão à barriga, coberta por um caftãluminoso. – O camaradinha está pronto para vir – disse, esfregando a lateral.– E ainda não encontrei ninguém para me substituir. Desse jeito, vou ter obebê em cima da mesa!

Um pensamento me ocorreu.

– Você precisa de alguém para cobrir sua licença-maternidade?

– Sim, mas é tão difícil encontrar a pessoa certa... Os artistas precisam

saber que podem confiar em você, e você precisa entender o que estãocriando e incentivá-los. E, além disso, ser capaz de negociar, emborafelizmente nem todos sejam assim como o Sr. Abraham.

Mirrin ergueu uma sobrancelha.

– Pode ser que eu conheça alguém – falei, o mais casualmente que minhaempolgação permitia. – Você se lembra da garota que veio comigo háalgumas semanas?

– Chrissie? A garota quase tão linha-dura para negociar quanto seu avô?

– Sim. Ela estudou história da arte na faculdade – exagerei – e sabe tudo quehá para saber sobre arte aborígine, principalmente Albert Namatjira.

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E

sobre várias outras escolas também – acrescentei, por precaução.

– Ela está trabalhando em uma galeria no momento?

– Não, ela está no ramo do turismo, então está acostumada a lidar comestrangeiros e, como você sabe, é de origem aborígine, então os artistas iriamgostar dela.

– Ela fala arrernte?

O rosto de Mirrin se iluminara.

– Não sei dizer, mas ela com certeza fala yawuru. E, como você viu, não sedeixa ser enrolada quando se trata de venda.

– Ela está procurando emprego?

– Sim.

Vi que Francis me observava, achando graça enquanto eu promovia aquelapessoa de quem ele só ouvira falar brevemente.

– Não vou mentir para você, Celeno, o dinheiro não é bom – disse Mirrin.

– Ninguém está na arte pelo dinheiro, não é? As pessoas fazem isso por amor– repliquei.

– Alguns estão. – Ela olhou para o meu avô. – Bem, diga a ela para vir mever. Depressa – continuou, encolhendo o corpo de novo. – Estarei aqui todosos dias desta semana.

– Tudo bem. Você pode me dar seu telefone? Vou pedir para ela ligar ecombinar com você.

Ela então anotou o número, e deixei a galeria muito entusiasmada.

– Então, quem é exatamente essa Chrissie? – perguntou Francis enquanto

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voltávamos para a caminhonete.

– Uma amiga – falei, enquanto subia no banco do passageiro.

– Onde ela mora?

– Broome.

– Não é um pouco longe para ela vir trabalhar aqui todos os dias? –

perguntou enquanto saía da vaga no estacionamento e nos dirigíamos paracasa.

– Sim, mas, se ela conseguir o emprego, tenho certeza de que estaria dispostaa se mudar. Ela adorou o lugar quando estivemos aqui juntas há algumassemanas. É uma pessoa brilhante, muito inspiradora e completamenteapaixonada pela arte. Você a adoraria. Não tenho dúvida.

– Se você gosta dela, Celeno, tenho certeza de que também vou gostar.

– Vou ligar para ela assim que chegar em casa. Ela vai ter que vir para cá omais rápido possível. É uma pena eu ter acabado de reservar o meu voo epartir amanhã.

– Foi você que insistiu em um bilhete não reembolsável – ele me lembrou.

– Bem, se ela conseguir o emprego, talvez possamos dividir um apartamentona cidade.

Minha mente imediatamente correu para um futuro com Chrissie, nós duasenvolvidas com arte.

– Ou você poderia vir morar comigo e cuidar da casa para o seu velho avô –sugeriu Francis quando o carro virou na entrada da casa.

– Isso também seria bom – falei, sorrindo para ele.

– Diga a ela que há uma cama aqui. Ela vai precisar de um lugar para passar anoite quando vier conversar com Mirrin. Aproveito e dou a ela algumas

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lições de arrernte – acrescentou enquanto destrancava a porta e eu corria parapegar meu celular na sala.

– Isso seria ótimo, obrigada – agradeci, e liguei para Chrissie.

Ela atendeu no segundo toque.

– Olá, sumida – disse Chrissie. – Pensei que você tivesse desaparecido daface da Terra.

– Mandei uma mensagem para você dizendo que estava no bush pintando –falei, sorrindo, porque estava muito feliz em ouvir a voz dela.

– Com o meu avô – acrescentei, por via das dúvidas.

– Caramba! Então você é parente do Namatjira?

– Não, embora meu avô também seja um artista.

– Qual é o nome dele?

– Francis Abraham.

Ela ficou um tempo em silêncio.

– Você está brincando comigo!

– Não, por quê? Já ouviu falar dele?

– Só um pouquinho, Ci! Ele estava em Papunya com Clifford Possum epintou a Roda do fogo e...

– Sim, é ele mesmo – interrompi seu discurso. – Ouça, você pode fugir umdia ou dois do trabalho e vir para Alice?

– Eu... Por quê?

Expliquei, e a frieza que havia em sua voz quando atendeu se desfez.

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– Isso parece ótimo, embora ela não vá me oferecer o emprego quandodescobrir que eu trabalho no balcão de informações turísticas do aeroporto deBroome. Você fez parecer que sou a curadora de um grande museu dacapital!

– Onde está o seu otimismo? É claro que ela vai contratar você! – eu arepreendi. – Vale a pena tentar, e meu avô avisou que você pode dormir nacasa dele.

– O problema, Ci, é que não sei se tenho a grana para a passagem. Gastei

todo o meu dinheiro extra na última vez que fui para Alice.

– Porque você pagou o hotel, sua boba – lembrei a ela. – Espere um -

minuto...

Perguntei ao meu avô se Chrissie podia usar seu cartão de crédito parareservar o voo em troca dos dólares que eu ainda tinha da venda da minhaprimeira pintura.

– É claro – concordou ele, me entregando o cartão. – Diga a ela que eu a pegono aeroporto.

– Muito obrigada – falei e dei as boas notícias a Chrissie.

– Estou sonhando? Quando você não entrou em contato, fiquei com medo detê-la espantado...

– Desculpe por não ter ligado. As coisas estavam agitadas por aqui e –

engoli em seco – eu só queria um tempo para pensar melhor nas coisas,sabe...

– Compreendo. Não importa agora – disse ela depois de uma pausa. –

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Você pode me contar tudo quando eu chegar aí.

– Na verdade, não vou poder, porque volto para a Inglaterra amanhã.

– Ah.

Ela ficou em silêncio.

– É uma passagem de ida e volta, Chrissie. Tenho que ir em casa resolverumas coisas, colocar meu apartamento para vender e ver a minha família.

– Você quer dizer que vai voltar?

– Sim, é claro que vou, assim que eu puder. Vou morar aqui em Alice. E...

seria ótimo se você estivesse aqui também.

– Você está falando sério?

– Nunca digo o que não quero dizer, você deveria saber disso. De qualquerforma, você vai ter o meu avô para lhe fazer companhia quando chegar, epelo jeito vai ficar muito mais animada em ver o Sr. Abraham do que em mever – provoquei-a.

– Você sabe que não é verdade. Quando você volta?

– Daqui a cerca de uma semana. Agora ligue para Mirrin, depois reserve umvoo. Vou lhe mandar o número do meu avô para você passar os detalhes paraele.

– Está bem. Sinceramente, Ci, não sei como agradecer.

– Então não agradeça. Boa sorte e vejo você em breve.

– Sim. Sinto sua falta.

– Também sinto sua falta. Tchau.

Desliguei o telefone e pensei que realmente sentia falta dela. Ainda havia um

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longo caminho pela frente porque eu não sabia bem como seria a relaçãoentre nós, mas não importava porque eu estava seguindo em frente. De umaforma ou de outra, durante as últimas semanas, estava sendo bem melhor sereu.

Pela graça de Deus...

– Sou o que sou – sussurrei, e sabia que tinha aprendido uma coisaimportante: eu certamente era bicultural, possivelmente bissexual, masdefinitivamente não queria estar sozinha.

– Tudo certo? – Francis entrou na sala.

– Espero que sim, ela vai reservar o voo e, em seguida, avisá-lo do horário daaterrissagem.

– Perfeito – disse ele. – Estou com fome, e você?

– Faminta, na verdade.

– Vou preparar algo com ovos então.

– Está bem, vou arrumar minhas coisas.

– Certo. – Ele parou no corredor. – Chrissie sabe cozinhar?

Ao me lembrar de seus bolos caseiros, assenti.

– Sim, ela cozinha.

– Que bom. Estou feliz por você ter encontrado alguém, Celeno – disse ele,enquanto seguia pelo corredor.

– Cuide-se, está bem? – disse meu avô, me abraçando no saguão de embarquedo aeroporto, e pensei como era bom ter duas pessoas que realmente nãoqueriam que eu deixasse a Austrália.

– Pode deixar.

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– Aqui, reuni alguns documentos para você. – Ele me entregou um grandeenvelope de papel pardo. – Aí dentro está a sua certidão de nascimento...

Consegui no escritório de registros públicos em Broome quando visitei a ex-enfermeira. Se estiver falando sério sobre vir morar aqui para sempre...

– É claro que estou!

– Então sugiro que solicite seu passaporte australiano o mais rápido possível.O formulário está aí também, assim como a certidão de nascimento da suamãe.

– Certo – assenti, e guardei o envelope na parte da frente da mochila,tentando não amassá-lo. – Mande um oi para Chrissie por mim, está bem?

Espero que você goste dela.

– Tenho certeza de que vou gostar.

– Obrigada por tudo – acrescentei, quando a chamada de embarque foianunciada no alto-falante. – Odeio aviões.

– Talvez deixe de odiar quando um deles a estiver trazendo de volta paracasa. Adeus, Celeno.

– Tchau, Francis.

Com um aceno, eu me afastei, preparando-me para a longa viagem atéLondres.

34

Quando saí do aeroporto de Heathrow, o ar gelado de Londres me atingiucomo um bloco de gelo. Todos à minha volta estavam completamenteagasalhados com seus casacos e cachecóis grossos, e o ar frio fazia meusolhos e nariz doerem. Puxei o gorro do casaco sobre a cabeça e chamei umtáxi, esperando ter dinheiro suficiente na carteira para chegar a Battersea.

Quando o taxista parou em frente ao meu prédio, entreguei-lhe uma nota e

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algumas moedas, então saí. As luzes de Natal que eu deixara para trás tinhamsido substituídas por uma melancolia de fim de janeiro, e eu me sentia tiradade um filme em cores e mergulhada num preto e branco.

Subi de elevador os três andares até meu apartamento. Destranquei a porta efiquei assustada ao ver que todas as luzes lá dentro estavam acesas. Queidiota da minha parte não apagá-las antes de sair, pensei ao bater a porta,percebendo que o apartamento estava muito mais quente do que atemperatura para a qual eu ajustara o termostato. O cheiro do ar era doce,como um bolo gostoso, e não abafado como eu esperava. Na verdade, era ocheiro de Estrela.

Eu mandara uma mensagem para ela durante minha escala em Sydney,dizendo que estava voltando para casa e desembarcaria naquele dia, eperguntando se tinha tempo para me encontrar na semana seguinte.

Precisava

lhe dizer que ia vender o apartamento, porque, mesmo que eu fosse aproprietária, ali também era a casa dela.

Fiz uma careta ao ver o espantalho de Guy Fawkes ainda no ateliê, sentadoem cima do tambor de óleo como se fosse um trono, então segui para acozinha e vi, horrorizada, que a luz do forno estava acesa. Eu já ia desligá-loquando ouvi a porta da frente se abrir.

– Ci! Você já chegou! Ah, droga! Pensei que ia levar uma eternidade parapassar pela imigração e pelo trânsito de Londres...

Virei-me para ver Estrela, seu rosto e a metade superior de seu torsoescondidos atrás de um enorme buquê de lírios, que ela me ofereceu.

– Acabei de sair para comprar essas flores de boas-vindas – disse ela,ofegante. – Elas deveriam estar em um vaso na mesa, mas não importa.

Ah, Ci, é tão bom ver você...

Durante o abraço que se seguiu, alguns dos lírios foram esmagados, mas

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nenhuma de nós se importou.

– Uau! – disse ela, afastando-se e colocando os lírios na mesa de centro. –

Você está incrível. Seu cabelo está mais claro e mais comprido.

– Sim, é aquele sol na Austrália. Você também está ótima. Cortou a franja!

Eu sabia que a franja comprida servia para ela se esconder. Agora que estavamais curta, seus belos olhos azuis brilhavam em seu rosto como safiras.

– Sim, estava na hora de mudar. Ouça, por que você não sobe e toma umbanho? Vou preparar o jantar.

– Eu vou, mas, primeiro... estou sentindo cheiro de bolo?

– Sim, de limão. Quer uma fatia?

– Se eu quero? Venho sonhando com uma fatia do seu bolo desde que fuiembora.

Ela me entregou uma fatia perfeita, e dei uma mordida. Terminei em questãode segundos e, com outra fatia na mão, levei minha mochila para cima, ondevi que o quarto estava impecavelmente arrumado, os lençóis recém-trocados.Entrei no banheiro, me enfiei embaixo do chuveiro potente e concluí que erabom estar em casa.

Quando desci, Estrela me esperava com uma cerveja.

– Saúde – falei, e bati minha garrafa contra a taça dela de Chardonnay.

– Bem-vinda ao lar – disse Estrela. – Fiz seu prato favorito. Deve estar prontoem cerca de vinte minutos.

– Torta de bife e rim? – confirmei, vendo a massa crescer no forno.

– Exatamente. Então, vamos lá, quero saber tudo que aconteceu com vocênos últimos meses.

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– Uau, é uma pergunta e tanto. Quanto tempo você tem?

– A noite toda.

– Você vai dormir aqui? – perguntei, surpresa.

– Se estiver tudo bem por você...

– É claro que sim, Sia! Esta é... foi... sua casa também, lembra?

– Eu sei, mas...

Ela suspirou e foi colocar alguns raminhos de brócolis para cozinhar.

– Olha, antes que diga qualquer coisa, eu só quero me desculpar –

disparei. – Fui um verdadeiro pé no saco no outono passado... na verdade,provavelmente, durante a maior parte da minha vida.

– Não foi, não, sua boba. E sou eu quem precisa se desculpar. Eu deveria terestado ao seu lado quando você estava passando por aquela fase difícil nafaculdade. – Estrela mordeu o lábio inferior. – Fui realmente egoísta e mesinto péssima por isso.

– Sim, fiquei bem magoada na época, mas isso me deu o empurrãozinho deque eu precisava. Agora vejo que você tinha que fazer isso, Sia. A maneiracomo nós éramos, a maneira como eu era... bem, não era muito saudável.Você precisava sair e ter sua própria vida. Se você não tivesse feito isso, eunão teria encontrado a minha.

– Você conheceu alguém? – Ela se virou para mim. – É o Ace, não é?

Vocês dois pareciam tão bem na praia de Phra Nang...

– Ahn, não, não é o Ace, mas... – Eu não me sentia nem um pouco

preparada para aquela conversa, então mudei de assunto: – Como está oMouse?

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– Ele está bem – respondeu ela enquanto tirava a torta salgada do forno ecomeçava a servir o jantar. – Vamos conversar enquanto comemos, está bem?

Ao contrário do normal, Estrela falou a maior parte do tempo, enquanto eudevorava toda a comida que cabia na minha barriga. Ouvi tudo sobre HighWeald – a “Mouse House”, como eu a apelidara mentalmente –, e que estavaem reforma, então ela, Mouse e o filho dele, Rory, se hospedaram na fazendaem frente.

– Vai levar anos para ser restaurada, é claro. A propriedade é tombada, eMouse é arquiteto, então tem que ser tudo perfeito.

Estrela revirou os olhos, e fiquei feliz ao ver neles um vislumbre daimperfeição de Mouse. Isso o tornava mais humano, de alguma forma.

– Mas você está feliz com ele?

– Ah, sim, embora ele possa ser incrivelmente obsessivo, principalmentequando se trata de torres de chaminés e arquitraves. Rory e eu simplesmentesaímos para dar uma volta e o deixamos sozinho com essas coisas. E quandoele está na cama e Mouse continua estudando diferentes tipos de cúpula dechaminé, eu escrevo.

– Começou seu romance?

– Sim. Quero dizer, ainda não avancei muito, apenas cerca de oitenta páginas,mas... – Estrela levantou-se e começou a tirar os pratos. – Fiz pavê de xerezpara sobremesa. Parece que você precisa se alimentar melhor.

– Escute, aqui está uma mulher que comeu um canguru inteiro de uma só vez– brinquei. – E a sua família? Já teve notícias da sua mãe depois que ela foipara os Estados Unidos?

– Ah, sim – disse Estrela, trazendo o pavê. – Mas agora quero ouvir sobresuas aventuras. Principalmente com Ace. Como você o conheceu? Como eleera?

Então contei a ela e, ao fazer isso, me lembrei de como ele tinha sido gentil

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comigo. E fiquei triste novamente por ele pensar que eu tivera a intenção detraí-lo.

– Você vai vê-lo na prisão? – perguntou.

– Ele provavelmente me mandaria embora – falei, raspando o resto do pavêda tigela. – Mas acho que posso tentar.

– A questão é... ele fez aquilo?

– Acho que sim.

– Mesmo que tenha feito, como Mouse disse, é difícil que tenha sido sozinho.Por que ninguém mais do banco se entregou?

– Porque eles não querem passar os próximos dez anos na prisão, né? –

Revirei os olhos para ela. – Ele disse algo sobre uma mulher chamada Lindasaber a verdade, quem quer que seja essa Linda.

– Você não acha que devia descobrir o que houve? Talvez ele o perdoasse

se você tentasse ajudá-lo.

– Não sei, porque, quando paro para pensar, foi como se Ace tivesse aceitadoa situação, desistido.

– Se eu fosse você, ligaria para o banco e pediria para falar com Linda.

– Talvez, mas pode haver mais de uma.

– Então não foi amor nem nada?

Estrela continuou a sondar.

– Não, embora eu realmente tenha gostado dele. Ele era atencioso, sabe?

Foi ele quem encomendou a biografia de Kitty Mercer... a pessoa que Padisse na carta que eu deveria investigar. Ace leu o livro para mim depois que

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eu contei que era disléxica.

– Sério? Uau, isso não parece nada com o Ace sobre quem temos lido nosjornais. Eles o fizeram parecer um completo cretino: um bêbado mulherengoque só se preocupava em ganhar mais milhões. Bem diferente, hein?

– Ele não era assim de jeito nenhum. Não quando o conheci, pelo menos.

Ace só bebeu uma taça de champanhe durante todo o tempo que fiquei comele.

Sorri ao me lembrar daquela noite.

– Então esse é o Ace. Agora, e a sua família biológica? Você conseguiuencontrá-los?

– Sim, encontrei, embora a maioria deles já tenha morrido. Minha mãe comcerteza... e meu pai, bem, quem sabe onde ele está.

– Sinto muito, Ci. – Estrela estendeu a mão para pegar a minha. – É assimcom o meu pai biológico também.

– Mas tudo bem, porque a pessoa que eu encontrei é fantástica. É meu avô.

Ele é artista... e bem famoso, aliás.

– Ah, Ci, estou tão feliz por você!

– Obrigada. É bom achar alguém que compartilha o mesmo sangue que o seu,não é?

– Sim. Continue, conte-me tudo sobre como o encontrou e quem você é.

Então eu contei. Os olhos de Estrela ficaram arregalados enquanto euexplicava tudo até aquele momento.

– Então você tem sangue japonês, aborígine, alemão, escocês e inglês.

Ela contou as nacionalidades nos dedos.

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– Sim. Não é de admirar que sempre tenha sido confusa.

Sorri.

– Acho bem exótico, principalmente se comparado a mim, que tenhoascendência apenas inglesa. É tão estranho que sua avó e minha mãe tenhamvindo do East End londrino, não é? E aqui estamos, morando a apenas algunsquilômetros do rio perto de onde nasceram.

– Sim, acho que sim.

– Você trouxe alguma foto das suas pinturas?

– Esqueci, mas acho que Chrissie fotografou a primeira que eu fiz com a

minha câmera. Vou mandar revelar o filme.

– Quem é Chrissie?

– Uma amiga que fiz na Austrália. – Eu ainda não podia lhe falar sobreChrissie; não fazia ideia de como colocar em palavras. – Na verdade, Sia,acho que preciso descansar. É tipo meio-dia na Austrália e não dormi muitono avião.

– É claro. Pode subir que eu vou depois que ligar o lava-louça.

– Obrigada – falei, aliviada por escapar de mais conversas.

Com o barulho reconfortante de Estrela limpando lá embaixo, deitei na cama,puxando o edredom macio para me cobrir.

– É tão bom ter você de volta, Ci... – disse Estrela quando entrou no quarto.

Então tirou a roupa, deitou na cama ao lado da minha e apagou a luz.

– Sim, é ótimo. Melhor do que pensei que seria – falei, com sono. – Só queriapedir desculpas novamente se fui uma pessoa muito difícil ao longo dos anos.

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Não pretendia ser. Está tudo lá dentro de mim, só que às vezes simplesmentesai da maneira errada, mas estou aprendendo, juro que estou.

– Shh, Ci, não precisa se desculpar. Sei quem você é por dentro, lembra?

Durma bem.

Na manhã seguinte, acordei junto com Estrela, o que geralmente nuncaacontecia. Andei pelo apartamento, tentando decidir o que levaria para aAustrália comigo, enquanto minha irmã estava lá fora na varanda,embrulhada no roupão e falando ao telefone. Quando ela finalmente entroupara tomar o café da manhã, tinha um olhar satisfeito no rosto, e imaginei queestivera falando com Mouse. Para me fazer sentir melhor, uma mensagem deChrissie surgiu em meu celular: Oi, Ci! Espero que seu voo tenha sido bom.A entrevista na galeria foi assustadora.

Vou ter notícias amanhã, cruze os dedos! Sinto sua falta!

– Então, você decidiu o que vai fazer agora que está de volta? –

perguntou Estrela enquanto tomávamos café da manhã.

Os ovos Benedict estavam tão bons que quase me fizeram mudar de ideia equerer ficar.

– Bem, eu ia falar com você sobre isso, Sia. Estou pensando em vender esteapartamento.

– Sério, por quê? Pensei que você adorasse tudo aqui.

Estrela franziu a testa.

– Adorava, quero dizer, adoro, mas vou me mudar para a Austrália.

– Meu Deus! É verdade? Ah, Ci... – Os olhos de Estrela se encheram delágrimas. – É tão longe...

– Fica só a um dia de avião – brinquei.

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Tentei disfarçar meu choque por ela parecer sinceramente chateada.

Apenas algumas semanas antes, eu tinha certeza de que ela teria ficado felizem me ver pelas costas.

– Mas e as aranhas por lá? Você sempre teve pavor delas.

– Ainda tenho, mas acho que posso lidar com isso. O mais estranho é que nãovi nem umazinha enquanto estive lá. Olha, Estrela, lá é... o lugar a que eupertenço. Quero dizer, mais do que qualquer outro lugar. E Francis, meu avô,não está tão jovem. Está sozinho desde que a esposa morreu, e quero passar omáximo de tempo possível com ele.

Estrela assentiu lentamente, enxugando as lágrimas com a manga do -

casaco.

– Eu entendo, Ci.

– Há também alguma coisa lá que me inspira a pintar. Talvez seja minhaparte aborígine, mas quando eu estava no bush era como se eu simplesmentesoubesse o que fazer sem ter que pensar.

– Você se aproximou da sua musa. Esse é realmente um bom motivo para semudar para o outro lado do mundo – concordou com tristeza.

– Sim, quero dizer, eu estava tão perdida quando saí de Londres, não sabia oque queria pintar, mas, quando Chrissie me levou aos eucaliptos com acordilheira MacDonnell por trás, algo mágico aconteceu. Ela vendeu essapintura dois dias depois por 600 dólares!

– Uau, isso é incrível, Ci! Então, quem é essa Chrissie? Ela mora no lugarpara onde você está indo?

Estrela me observava.

– Ahn, não agora, mas talvez se mude para lá nas próximas semanas.

– Para estar perto de você?

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– Sim, não, mais ou menos... Ela talvez consiga um emprego em uma galeriade arte, e... – eu continuava a mexer a cabeça como se fosse um daquelescachorros na janela traseira de um carro – somos realmente grandes amigas.Ela é ótima, muito positiva, sabe? Teve uma vida difícil, tem uma pernaartificial e...

Percebi que estava falando bobagens sem parar e que provavelmente já haviame entregado.

– Ci – uma mão gentil pousou em meu pulso –, Chrissie parece incrível, erealmente espero conhecê-la um dia.

– Eu também espero, porque as coisas pelas quais ela passou... bem, isso mefez perceber quanto eu estava ficando mimada. Nós tivemos essa infânciamágica em Atlantis, protegidas de tudo, mas Chrissie realmente teve que lutarpara chegar aonde está agora.

– Compreendo. Ela faz você feliz?

– Sim – consegui dizer depois de uma pausa. – Faz.

– Então, ela é sua pessoa “especial”?

– Talvez, mas está tudo muito no começo, e... Meu Deus! – Bati na mesa como punho. – Por que não consigo falar nada direito? Será que é porque estou devolta?

– Ei, Ci, sou eu, Sia. Nós nunca precisamos de palavras, lembra? Agoratambém não.

Suas mãos começaram a se mover na linguagem de sinais que tínhamos

inventado ainda crianças quando não queríamos que nossas outras irmãssoubessem o que estávamos falando.

Você a ama?

Ainda não tenho certeza. Talvez.

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Ela ama você?

Sim, respondi por sinais, sem parar para pensar.

– Então fico muito feliz por você! – disse ela em voz alta e se levantou damesa para me dar um grande abraço.

– Obrigada – murmurei –, mas, sabendo como eu sou, é bem possível queacabe dando tudo errado.

– É o que eu penso todos os dias a respeito de Mouse. Chama-se confiança,não é?

– Sim.

– E lembre-se – continuou ela, afastando-se para olhar para mim –, o quequer que aconteça, sempre teremos uma à outra.

– Obrigada.

Estreitei os olhos para conter as lágrimas.

– Agora – disse ela, sentando-se de novo –, fiz algumas pesquisas sobre a talLinda.

– Ah, é? – perguntei, tentando me recompor.

– Sim.

Estrela colocou um nome e um número na minha frente. Olhei para o queestava escrito ali.

– Há três Lindas no banco. Considerando que uma delas trabalha nodepartamento de alimentação e a outra só está lá há dois meses, a candidatamais provável é Linda Potter. Ela era a assistente do CEO do banco, DavidRutter.

– Sério? Como você descobriu?

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– Liguei para o banco e pedi para falar com Linda. Cada vez que ligava,fingia que tinha falado com a Linda errada e eles me passavam para as outrasem seus departamentos. Finalmente, cheguei ao escritório do CEO... LindaPotter aposentou-se recentemente, ao que parece.

– Certo.

– E então...?

Estrela me encarou.

– “E então” o quê?

– Se Ace disse que Linda sabia, e essa Linda era assistente do CEO, ela deviaestar por dentro de tudo o que acontecia na empresa. Os assistentes sempresabem – disse ela com confiança.

– Ok...

Assenti, perguntando-me aonde ela queria chegar.

– Ci, acho mesmo que você deveria falar com Ace e perguntar sobre Linda.Além disso, não se trata apenas dele, mas de você também! Ele pensa que foivocê que o entregou à imprensa. Com certeza você quer acertar as coisasantes de partir para a Austrália, não é?

– Sim, mas não há provas, não é? O filme estava na minha câmera, e eu oentreguei ao segurança para revelar.

– Então você deveria contar isso a ele pessoalmente. E também perguntar porque ele não está fazendo nenhum esforço para se defender.

– Uau, você está mesmo envolvida nisso, não é?

– Eu simplesmente não gosto que as pessoas sejam acusadas de algo que nãofizeram. Menos ainda quando se trata da minha irmã – disse, com veemência.

– Estou tentando aprender a manter a boca fechada – falei, dando de ombros.

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– Bem, pelo menos uma vez na vida, estou dizendo as palavras para você.

E eu acho que você deveria ir.

Vi então que ela havia mudado nos últimos meses. A velha Estrela teriapensado em tudo isso e guardado para ela, nunca teria dito em voz alta.

Enquanto eu sempre falava demais. Talvez estivéssemos nos ajustando aestarmos separadas uma da outra.

– Tudo bem – concordei. – Sei que ele está na prisão Wormwood Scrubs.

Vou descobrir quais são os horários de visita.

– Promete? – perguntou.

– Prometo.

– Bom. Preciso sair daqui a pouco para pegar Rory na escola.

– Certo. Mas, antes de ir, será que você pode me ajudar a preencher meupedido de passaporte australiano? Meu avô me deu todos os documentos deque preciso, mas você sabe como me dou bem com formulários.

– Claro.

Fui buscar o envelope e Estrela apareceu com uma caneta preta paracomeçarmos a preenchê-lo. Espalhamos os documentos na mesa da cozinha edemos uma rápida olhada na certidão de nascimento da minha mãe, antes deEstrela pegar a minha.

– Então você nasceu em Broome, no dia 5 de agosto de 1980 – leu ela, acabeça baixa, concentrada, enquanto procurava mais detalhes na certidão. –Ah, meu Deus! Ci, você já viu isso aqui?

– Ahn... não. Meu avô me deu o envelope na hora em que vim embora.

– Então você não viu qual era o seu nome original?

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Ela apontou e eu me inclinei para dar uma olhada.

– Minha nossa!

– Isso mesmo, Srta. Pearl Abraham! – disse Estrela, então começou a rir.

– Pearl, argh – disse, gemendo. – E eu que sempre reclamei de Celeno...

Desculpe, Pa.

Então acabei caindo no riso com Estrela, tentando imaginar esse outro euchamado Pearl. Simplesmente não era possível. No entanto, de muitasmaneiras, era perfeito, pois significa “pérola”.

Quando nos acalmamos, coloquei a certidão de nascimento de volta no

envelope.

– E, por falar em certidões de nascimento, minha mãe vem para cá daqui aalguns dias. E também Ma – disse Estrela.

– Ah, isso é fantástico! – exclamei, pensando que me pouparia a viagem atéGenebra. – Elas estão vindo se conhecer?

– Mais ou menos – respondeu Estrela. – Quando minha mãe verdadeira meencontrou, ela entrou em contato com alguns dos outros membros da famíliadela. Há vários que ainda moram no East End. Vamos todos a uma festa-surpresa para um parente nosso. Minha mãe disse há algum tempo quegostaria de conhecer a mulher que me criou e agradecê-la pessoalmente, eesse era o momento perfeito para convidar Ma. Eu adoraria que vocêconhecesse minha mãe também. Contei a ela tudo sobre você.

– Como ela é?

– Adorável, adorável mesmo. Ela não vai trazer seus outros filhos desta vez,mas logo irei à Nova Inglaterra conhecer meus dois meios-irmãos e minhameia-irmã. Certo, você precisa assinar aqui. – Estrela indicou o espaço. –Deve incluir também uma cópia de seus documentos de adoção oficiais. Dêuma ligada para o tio Georg Hoffman. Ele tinha os meus.

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– Então, como estão as outras irmãs? Não ouvi mais nada delas desde ahistória do jornal.

– Bem, Maia começou a ensinar inglês para crianças em uma favela no Rio, eAlly me contou na semana passada que sua barriga está ficando maior a cadadia, mas ela parece bem. Liguei para Tiggy logo depois do ano-novo. Elemudou de emprego e está trabalhando em uma propriedade não muito longedo santuário de animais. Ela também quer reunir todas nós em Atlantis para oaniversário da morte de Pa, em junho. E não tenho nenhuma notícia deElectra há um tempo, nem a tenho visto nos jornais, o que é incomum. A irmãfamosa agora é você. –

Ela riu. – A propósito, quando você volta para a Austrália?

– Na próxima quarta, de manhã cedo.

– Tão rápido? – Estrela parecia triste. – A festa é na terça à noite. Será quevocê consegue ir?

– Provavelmente não. Vou ter que arrumar as malas. Essas coisas... –

acrescentei inutilmente.

– Compreendo. Então talvez possamos fazer uma pequena reunião dedespedida antes da festa. Aí você poderia conhecer minha mãe e ver Ma.

– Se você puder abrir mão de Ma por uma noite, posso buscá-la em -

Heathrow e ficar com ela na segunda, aí na terça você passa aqui e vocês vãojuntas para a festa.

– Parece perfeito! Obrigada, Ci. Agora preciso pegar minhas coisas. Por quevocê não liga para Wormwood Scrubs enquanto isso e vê como funcionam asvisitas? Deixei o número na mesa.

Estrela subiu as escadas para arrumar a bolsa e eu fui até o telefone, sabendoque ela não me deixaria em paz se eu não ligasse. A

recepcionista do outro lado da linha foi atenciosa, embora tenha me

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pressionado para saber minha ligação com o preso.

– É um amigo – informei.

Então ela pegou minha data de nascimento, meu endereço e disse que euprecisaria apresentar algum documento para entrar.

– Conseguiu? – perguntou Estrela, descendo as escadas com a bolsa quelevara para passar a noite.

– Sim, mas receio que eu não vá poder usar aquele short curto apertado quevocê sabe que eu amo. É contra as regras da prisão.

– Certo. – Estrela sorriu. – Quando você vai vê-lo?

– Marcaram para amanhã, às duas da tarde. Talvez eles possam tirar aquelasfotos de prisioneira para o meu novo passaporte enquanto eu estiver lá. –Estremeci. – É estranho pensar em Ace como um preso.

– Imagino. Tem certeza de que vai ficar bem sozinha no apartamento, Ci?

Estrela colocou a mão em meu ombro.

– Claro que vou. Sou uma garota crescida agora, lembra?

– Bem, depois me conte como foi com Ace. Amo você, Ci. A gente se vêsemana que vem.

Realmente senti como se estivesse em um filme quando passei pelas torres doportão da Scrubs, como os outros visitantes na fila a chamavam. Lá dentro,cada um de nós era meticulosamente revistado, assim como nossas bolsas.Por fim, fomos levados a uma grande sala cheia de mesas e cadeiras deplástico, e, na verdade, não era tão deprimente quanto eu imaginava que seria.Alguém obviamente se esforçara para impedir que os prisioneiros e seusvisitantes cortassem os pulsos colocando cartazes alegres nas paredes.Quando todos nos sentamos em diversas mesas, leram uma relação de coisaspermitidas e proibidas e depois, finalmente, os presos entraram.

Meu coração batia como um tambor enquanto eu procurava por Ace na fila.

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Quando uma voz familiar disse “Oi” no meu ouvido, percebi que nem o haviareconhecido. Seu cabelo tinha sido cortado bem curto, ele estava recém-barbeado e dolorosamente magro.

– O que você está fazendo aqui? – perguntou ele ao se sentar.

– Eu... Bem, só pensei que, como estava de volta à Inglaterra, deveria vir vê-lo.

– Certo. Você é minha primeira visitante. Fora meu advogado, é claro.

– Bem, sinto muito.

O silêncio pairava entre nós enquanto Ace olhava para as mãos, para aesquerda, para a direita, para o alto... Na verdade, para qualquer coisa quenão fosse eu.

– Por que você fez isso, Ceci? – perguntou por fim.

– Eu não fiz nada! Foi o que vim lhe dizer. Foi Po, o segurança. Acho que elefoi subornado por um cara chamado Jay. Alguém no Railay Beach Hotel medisse que sabia quem você era. Eu não queria preocupá-lo, então não faleinada na época. Quero dizer, eu não tinha ideia de quem

era você de qualquer jeito, então não acreditei nele.

– Ah, dá um tempo, Ceci – zombou ele –, aquela foto veio diretamente da suacâmera. Deixei que fosse tirada porque confiava em você, pensei quefôssemos amigos.

– E éramos! Você foi muito bom para mim! – insisti, então tentei manter avoz baixa quando vi outras pessoas olhando para nós. – Eu nunca teria feitonada para trair você. Po deve ter feito mais uma cópia das fotos e dado a Jay.

De qualquer forma, é a verdade. Foi isso que aconteceu.

– Sim, bem... – Ace parecia olhar ao longe. – Tinha que acontecer algumahora, imagino. Eu sabia que não poderia ficar escondido para sempre.

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Você só acelerou o inevitável.

– É importante para mim que você acredite no que estou dizendo. Quase tiveum treco quando cheguei à Austrália e todas as minhas irmãs me mandarammensagens dizendo que eu estava na primeira página dos jornais!

Você acha que eu queria isso?

– O quê? Estar envolvida com o criminoso mais notório do momento?

– Exatamente!

– Várias garotas iriam querer.

– Bem, “várias garotas” não sou eu – falei com firmeza, tentando manter acalma.

– Não – concordou ele após algum tempo. – Você está certa. Eu realmentepensei que você fosse diferente, que poderia confiar em você.

– E poderia... pode! Olhe só, vamos esquecer isso. Se não quiser acreditar emmim, é com você, mas não sou mentirosa. Estou aqui porque queria perguntarse você precisava de alguma ajuda. Eu poderia testemunhar sobre o seucaráter ou algo assim.

– Obrigado, Ci, mas, graças à mídia, não há redenção possível para a minhareputação, e eu mereço isso. Tenho certeza de que você leu sobre as coisasque aprontei no passado. Não que tivessem alguma coisa a ver com o queaconteceu no banco, mas pareço ser o homem mais odiado da Grã-Bretanhano momento.

– A boa notícia é que sou disléxica, lembra? Não consigo ler direito.

Finalmente, ele abriu um leve sorriso.

– É verdade.

– Quem é Linda Potter?

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Ele olhou em meus olhos pela primeira vez.

– O quê?

Eu soube na hora que Estrela havia encontrado a mulher certa.

– Linda Potter. Você me contou uma noite que ela “sabia”. Então, o que elasabe?

– Nada, ela não é ninguém.

– Bem, eu sei que ela é alguém, porque trabalhava como assistente do CEOdo Berners Bank.

– Apenas... não se meta nisso, Ceci. Está bem? – disse ele com os dentescerrados.

– Ela sabe de alguma coisa? Ace, por que você não me deixa ajudar?

– Escute – pediu ele, inclinando-se em minha direção –, o que está feito estáfeito, ok? O que quer que aconteça, eu vou me dar mal. Fui eu que fiz isso,ninguém mais.

– Devia haver outras pessoas que também sabiam.

– Já falei, deixa isso pra lá.

Eu o vi levantar a mão para chamar um dos policiais, um desses brutamontesque você não gostaria de encontrar em um beco tarde da noite. O homem veioaté nós.

– Quero voltar para minha cela agora – avisou Ace.

– Tudo bem, rapaz. O tempo acabou, senhorita – disse o guarda para mim.

Ace levantou-se.

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– Obrigado por tentar ajudar, Ci, mas não há mesmo nada que você possafazer, acredite.

Do lado de fora da prisão, à espera do ônibus que me levaria de volta aocentro de Londres, percebi que Estrela estava certa. Mesmo que, a longoprazo, isso não levasse Ace a lugar algum, eu tinha que lhe mostrar que pelomenos alguém se importava.

Eu sabia como era se sentir como um cão sarnento.

35

O jet lag não parecia querer me deixar em paz, então acordei cedo novamentena manhã seguinte. Primeiro liguei para Ma e disse que esperaria emHeathrow, segunda à tarde, seu avião vindo de Genebra.

Então, às nove horas em ponto, liguei para o número do Berners Bank queEstrela havia deixado comigo.

– Olá, posso falar com Linda Potter, por favor?

– Infelizmente ela saiu – disse uma voz feminina entrecortada. – Você é asenhora que ligou há alguns dias?

– Sim, eu estava apenas... – pensei rapidamente – ... tentando contactá-laporque ela ficou de vir à minha festa de aniversário hoje à noite e não tivenotícias dela.

– Bem, seria melhor procurá-la em casa.

– Sim, mas... – Eu parei, pesquisando em minhas células cerebrais por cadafilme de suspense que vira para saber o que dizer. – Estou no local agora e elanão está atendendo o celular. Não tenho o número fixo dela comigo...

Você tem aí?

– Sim, espere um minuto.

Prendi a respiração.

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Então ela voltou e deu o número.

– Muito obrigada – falei, enquanto anotava. – É um aniversário muitoespecial e não seria o mesmo sem ela.

– Compreendo. Isso provavelmente a animará um pouco. Tchau.

– Tchau.

Fiz uma dancinha da vitória pela ampla sala de estar antes de me acalmar eenfim ligar para o número de Linda. Meu coração batia acelerado quandosoaram os toques da chamada, então por fim caiu numa secretária eletrônica eeu desliguei. Telefonei para Estrela, já que não tinha ideia do que fazer emseguida.

– Tudo bem – disse minha irmã. – Você precisa do endereço dela. Espere umminuto.

Eu podia ouvi-la conversando ao fundo com uma voz masculina grave eaveludada.

– Ci, vou passar você para o Orlando, irmão do Mouse. Ele é um detetivenato.

– Srta. Celeno?

– Sim, mas pode me chamar de Ceci.

– Meu Deus, eu adoraria que aqueles abençoados com nomes incomunsrealmente os usassem. Se alguém à exceção do meu sobrinho ousasse mechamar de Lando, eu ficaria devastado pelo resto do ano. Bom, a Srta.

Estrela me disse que você precisa do endereço de uma pessoa.

– Preciso – respondi, tentando sufocar uma risadinha pela maneira antiquadacomo ele falava.

– Bem, acabei de verificar no computador e o código de discagem 01233

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me diz que sua mulher misteriosa é de Kent. Na verdade – ele fez uma pausae pude ouvi-lo digitando –, para ser mais preciso, Ashford. Uma cidadezinhaagradável, coincidentemente bem próxima daqui. Bem, agora estou buscandono registro eleitoral on-line daquela área por uma Linda Potter. Aguarde uminstante enquanto eu... Ah, sim! Aqui está ela: The Cottage, Chart Road,Ashford, Kent.

– Vou ditar para você, Ci – disse Estrela, voltando para a linha. – Você vai lávê-la? Fica a uma hora de trem da estação Charing Cross.

– Ela pode não estar lá.

– Ou estar escondida. Espere...

Aguardei o final de uma discussão entre Orlando e Estrela.

Estrela voltou ao telefone: – É uma curta viagem de High Weald até Ashford.Que tal se nós formos vigiar a casa para você?

– Você realmente não precisa fazer isso, Sia, não é um caso de vida ou mortenem nada assim.

– Talvez seja para Ace, Ci. Poderíamos verificar se há algum sinal demorador antes de você vir aqui.

– Tudo bem – concordei.

Perguntei-me se a vida de Estrela era tão monótona que tinha que -

preenchê-la com missões estranhas como tentar encontrar uma mulher quenenhuma de nós conhecia só pela chance remota de ajudar um homem queestava preso por fraude e que nunca mais queria me ver.

– Vamos lá então na hora do almoço – disse Estrela. – Orlando pode ser meuvigia.

Os dois riam como crianças pregando peças no Halloween, então agradeci edesliguei.

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Dez minutos depois, a campainha tocou. Era o corretor de imóveis que eucontactara para vender o apartamento.

Cumprimentamo-nos e ele começou a andar pelo lugar, assentindo eresmungando. Por fim, veio até mim e soltou um suspiro dramático.

– Qual é o problema?

– Bem, você deve saber a situação do mercado imobiliário em Londres nomomento, não?

– Não, eu não faço ideia.

– Para dizer sem rodeios, é péssima.

E, então, o mesmo homem que me vendera o apartamento exaltando suasvirtudes passou a me explicar por que ninguém mais iria querer comprá-lo,sem dúvida não pelo preço que eu pagara.

– O mercado foi invadido por novos apartamentos às margens dos rios, e umterço deles atualmente está vazio. É o mercado subprime nos Estados Unidosque faz isso, é claro, mas tudo tem um efeito indireto.

Meu Deus!

– Você poderia dizer na minha língua por quanto acredita que eu deveriacolocá-lo à venda?

Ele disse um valor, e quase lhe dei um soco.

– Isso é 20% menos do que eu paguei por ele!

– Infelizmente, Srta. D’Aplièse, o mercado imobiliário é regido por suaspróprias leis. Baseia-se em sentimento, algo escasso no momento, aocontrário dos apartamentos às margens dos rios. As coisas vão melhorar, éclaro, como sempre acontece em Londres. Se eu fosse você e não precisassedo dinheiro, desistiria por enquanto e colocaria para alugar.

Em seguida, discutimos por quanto eu poderia alugá-lo. Era dinheiro

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suficiente para manter meus jantares simples à base de canguru por anos eanos. Ele explicou que seu escritório cuidaria de tudo, então assinamosalguns papéis e trocamos um aperto de mão. Entreguei-lhe uma chave reservae, quando o estava levando à porta, meu celular tocou.

– Sia? – atendi sem fôlego.

– Estamos aqui.

– Onde é “aqui”?

– Sentados em frente à casa de Linda Potter. Ela está lá dentro.

– Como você sabe?

– Orlando bateu à porta e, quando ela abriu, se anunciou como candidatoconservador local desta área. Então me apresentei como secretária dele, e orosto dela se iluminou. Ela me contou que um dia foi “secretária particularde... um homem muito importante”.

– Ah – falei. – Só isso?

– Espere, Ci, deixe-me contar o resto. Perguntei, então, se estava aposentada.Ela assentiu. “Tive que deixar o trabalho antes da hora”, foram suas palavras.Orlando e eu achamos que quiseram se livrar dela.

– Talvez estivesse apenas na época de ela se aposentar.

– Ela não parece ter nem 50 anos.

– Ah. O que você acha que eu deveria fazer?

– Venha vê-la. Posso pegá-la na estação de Ashford amanhã, desde que nãoseja depois das três e meia, porque é quando busco Rory na escola.

– Você quer dizer que será minha parceira nessa missão?

– É para isso que servem as irmãs, não é?

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– Sim. Obrigada, Sia. Tchau.

Em seguida, fui arrumar desanimadamente minhas coisas no apartamento,mas, à medida que a tarde passava, comecei a sofrer com aquela terrívelsensação de estar sozinha. Estrela agora tinha sua família e seus amigos, e eutambém, só que os meus estavam do outro lado do

mundo. Desabei no sofá, me sentindo muito para baixo. Então, como pormagia, meu celular tocou.

– Alô?

Depois de uma longa pausa, uma voz familiar disse: – Ci? Sou eu, Chrissie.

– Oi! Como você está? – perguntei.

– Ótima, estou ótima. Seu avô mandou um abraço.

– Mande outro para ele. Como estão as coisas?

– Bem, só queria que você fosse a primeira pessoa... ou, na verdade, asegunda pessoa a saber, já que contei ao seu avô... que me ofereceram oemprego na galeria!

Chrissie deu um grito de alegria e eu sorri.

– Que notícia maravilhosa!

– Eu sei! Não é? A grana é ridícula, claro, mas seu gentil avô me convidoupara ficar com ele até eu conseguir economizar algum dinheiro para ter meupróprio lugar. Não estou brincando, Ci, ele é o meu novo melhor amigo, masnós dois sentimos muito a sua falta.

– Sinto falta de vocês também.

– Então estou prestes a ligar e deixar meu emprego em Broome. Você achaque é a coisa certa a fazer?

– Chrissie, estou prestes a largar minha vida aqui na Inglaterra. Claro que é!

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É o que você quer fazer.

Ela ficou em silêncio por alguns segundos.

– Então você vai mesmo voltar?

– Claro que vou – falei com firmeza.

– Então eu vou.

– O quê?

– Deixar meu trabalho, sua tonta! E quanto ao Ace? Você foi vê-lo?

– Sim, ontem. Ele está mal.

– Ah, mas você definitivamente vai voltar?

– Eu não acabei de dizer isso?

– Sim, disse. Escute, a ligação está custando uma fortuna ao seu vovô, entãoboa noite. Estou com saudades.

– Eu também.

Dei uma volta pelo apartamento e reguei as plantas de Estrela. Era umapequena tarefa que eu poderia fazer por ela, que fazia tanto por mim.

Isso me levou a pensar em quanto eu dependia dela, e como já voltara acontar com a ajuda dela para realizar as coisas em que não era boa.

Mais tarde, na cama, resolvi que, se fosse mesmo visitar Linda, iria por contaprópria.

Após a curta viagem de trem a Ashford na manhã seguinte, peguei um táxipara o endereço que Orlando me dera.

– Chegamos, senhorita – disse o taxista, apontando para a casa.

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Pedi para ele passar por ela e virar na rua seguinte.

– Se eu não voltar em dez minutos, você pode ir embora e eu ligo depois

para chamá-lo – avisei, deixando com ele mais 5 libras.

Caminhei pela rua e parei o mais casualmente possível em frente à casa, emmeio a uma fileira de residências semelhantes. “The Cottage”, lia-se em umapequena placa de madeira no portão. Atravessei a rua e vi que o jardimfrontal estava impecável. Abri o portão e segui para tocar a campainha,tentando pensar no que diria. Antes de chegar lá, a porta se abriu.

– Se você está aqui para me convencer a apoiá-la nas eleições do conselholocal, não estou interessada.

A mulher estava prestes a bater a porta, mas estendi a mão para mantê-

la aberta.

– Não, sou Ceci D’Aplièse, amiga do Ace, da Tailândia...

– O quê? – A mulher olhou para mim. – Deus do céu! É você?

– Sim.

A porta ainda estava parcialmente aberta pela minha mão e, enquanto elaolhava para mim, boquiaberta, observei seu cabelo castanho cortado de umjeito prático que não a favorecia, sua blusa elegante e o que Estrela e euchamaríamos de saia de velha, porque o tecido ia pouco além dos joelhos. Elaainda estava sem palavras, então continuei: – Eu só queria conversar comvocê.

Vi quando ela desviou seus olhos castanhos, olhando de um lado para outrolá fora.

– Como você me encontrou?

– No cadastro eleitoral. Vi Ace na prisão. Ele acha que fui eu que mandei afoto para os jornais, mas não tive nada a ver com isso. Acredito de coração

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que, no fundo, ele seja uma boa pessoa. E – engoli em seco – ele me ajudouquando eu precisei. Sinto que Ace não tem amigos no momento, e ele precisamuito de alguns.

Eu estava ofegante com o esforço de tentar dizer a coisa certa.

Por fim, ela assentiu.

– É melhor você entrar.

– Obrigada.

Entrei e ela fechou firmemente a porta, depois trancou.

– Ninguém mais sabe que você está aqui, não é?

– Ninguém – confirmei.

Seguimos então por um corredor estreito até uma sala, onde eu ficaria commedo até mesmo de pensar em tomar uma bebida, porque o líquido poderiase derramar sobre a reluzente superfície envernizada da mesinha de centro.No sofá, as almofadas estavam simetricamente posicionadas em forma de V.

– Por favor, sente-se. Aceita uma xícara de chá? – perguntou a mulher.

– Não, obrigada, estou bem – falei, sentando-me cautelosamente. – Não voudemorar.

Linda sentou-se na poltrona em frente e me encarou por um tempo, depoisdesviou os olhos de repente turvos, como se estivesse prestes a

chorar.

– Então... – disse ela baixinho, obviamente tentando se recompor. – Você énamorada de Anand?

Levei um instante para registrar que ela se referia a Ace por seu verdadeironome.

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– Eu não iria tão longe, mas fizemos companhia um ao outro, sim. Apropósito, por que ele me disse que seu nome era Ace?

– Foi um apelido que ele recebeu no pregão, porque sempre ganha. Um ásdos lances, sabe? Ou, pelo menos, ganhava... Por que exatamente você estáaqui?

– Olha, eu me importo com ele, ok? E uma noite ele mencionou seu nome.

Ele disse: “Linda sabe.” Eu não entendi sobre o que ele estava falando naépoca, mas agora entendo e, como vou me mudar para a Austrália, pensei quedeveria pelo menos encontrá-la antes de partir.

– Ele é um ótimo rapaz, sabe? – comentou Linda, depois de uma longa pausa.

– Sim. Ele me acolheu quando eu não tinha para onde ir. Nem sei o que eudeveria lhe perguntar, mas...

Percebi que Linda estava distante, encarando o vazio. Então me sentei eesperei que ela falasse.

– Ele veio para a Inglaterra quando tinha 13 anos, para o internato –

disse ela alguns instantes depois. – Fui eu quem o recebi na chegada do aviãode Bangcoc e o levei para a escola Charterhouse, que é aqui perto.

Ele era tão pequeno na época, não parecia ter mais do que 9 ou 10 anos, umbebê na verdade. Havia recentemente perdido a mãe, mas era tão corajosoque nem chorou quando o apresentei ao superior da casa e depois o deixei lá.Deve ter sido um choque e tanto sair de Bangcoc e vir para um internato nafria e cinzenta Inglaterra.

Vi, então, Linda parar e suspirar profundamente antes de dizer: – Os garotospodem ser tão cruéis, não é?

– Não sei dizer, para ser sincera. Tenho cinco irmãs.

– É mesmo? – Ela abriu um discreto sorriso. – Você é sortuda. Sou filhaúnica. Enfim, eu costumava ligar para ele toda semana, só para ver se estava

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bem. Ele sempre parecia alegre ao telefone, mas eu sabia que as coisas nãoeram fáceis. Ocasionalmente, no início, eu ia até lá aos domingos e o levavapara almoçar. Ficamos próximos e, depois de algum tempo, com a permissãodo pai dele, ele vinha ficar comigo durante os feriados. No entanto, isso tudoé passado.

Ficamos em silêncio por um tempo, eu tentando entender aquela história comminha mente limitada, sem sucesso. Eu tinha certeza de que Ace deixaraclaro que nem conhecera o pai, no entanto Linda acabara de falar dele. Seráque tinha algum parentesco com Ace? Será por isso que cuidara dele quandoera mais jovem?

– Você não era secretária do CEO no Berners Bank? – perguntei.

– Era, sim. Como você já deve saber, muita coisa mudou lá nos últimos

meses. Agora estou oficialmente aposentada.

– Ah, isso é legal.

– Não, não é – sibilou Linda. – É horrível! Não sei o que fazer em casa o diatodo. Ainda assim, tenho certeza de que vou acabar me acostumando, mas ébem difícil quando sua rotina é tirada de você de uma hora para outra, não é?

– É, sim – respondi. – Você se aposentou porque o banco foi comprado?

– Em parte, sim, mas a verdade é que David achou que seria melhor se eudesaparecesse.

– David?

– O CEO. Durante trinta anos, eu trabalhei para aquele homem, vivi para elee meu trabalho. E agora... – Ela deu de ombros. – Bem, aí estamos.

Você tem certeza de que não gostaria de uma xícara de chá?

– Estou bem, de verdade. Seu chefe ainda trabalha lá, não é?

– Ah, sim – disse ela, assentindo com veemência. – Ouvi dizer que ele agora

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tem uma nova versão de mim chamada Deborah. Ela é muito...

loura, aparentemente. Não que isso seja importante – acrescentou Lindadepressa. – Tenho certeza de que ela é muito eficiente.

– Linda – comecei, pensando que aquilo não estava nos levando a lugaralgum, além de deixá-la mais chateada. – O que você sabe sobre Ace?

Haveria algo em que pudesse ajudá-lo?

– Ah, eu sei tudo sobre Anand – disse ela devagar. – Sei exatamente como elegostava que afagassem seu cabelo para pegar no sono, que ele é um poucosurdo de um ouvido por causa de uma lesão no rúgbi e que ele adora meusbiscoitos caseiros.

– Quero dizer: você sabe de alguma coisa que possa ajudar na defesa dele nojulgamento que se aproxima? – perguntei. – Para... ahn... reduzir sua sentençaou algo assim?

Ela mordeu o lábio e seus olhos se encheram de lágrimas mais uma vez.

– Sabe, é quase meio-dia e eu gostaria de um pouco de xerez. Você aceita?

– Ahn, não, obrigada.

Linda se levantou e foi até um aparador, de onde pegou uma garrafa e umcopo bem pequeno que encheu com um líquido marrom.

– Minha nossa, eu não bebo xerez na hora do almoço há muitos anos.

Saúde.

– Saúde – respondi.

Para alguém que dissera que não bebia, Linda virou o copo com bastanterapidez.

– Assim é melhor. Minha nossa, dá para entender por que as pessoasprocuram o álcool, principalmente quando estão sob pressão. Anand estava

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bebendo quando você o viu na Tailândia?

– Não. Nada além de uma taça de champanhe na véspera de ano-novo.

– Isso é maravilhoso. Ele nunca foi de beber antes de começar a trabalharcom o pregão. O problema é que o consumo de álcool em excesso é um

rito de passagem na cidade, e ele queria se enturmar com os colegasinvestidores.

Ninguém quer ser diferente, não é?

– É verdade – concordei.

– Eu disse a David desde o início que achava um erro empregar Anand nobanco logo depois de ele ter saído da escola, mas ele já podia ver comoAnand era talentoso. Anand não queria isso. Ele mesmo me revelou, sentadobem aí onde você está agora, mas David exercia uma influência enorme sobreele – afirmou, com um suspiro.

– Você está me dizendo que seu chefe forçou Ace a se tornar investidor?

– perguntei, ainda mais confusa.

– Praticamente. Anand estava tão admirado com ele que teria feito qualquercoisa que David pedisse.

– Por quê?

Linda ergueu as sobrancelhas.

– Ele deve ter lhe contado, não? Do contrário, você não estaria aqui.

– Me contado o quê?

– David é o pai de Anand.

– Ah. – Engoli em seco, tentando absorver as implicações do que ela dissera.– Não, ele não me contou.

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– Eu, ah, droga, eu imaginei que ele... – Linda enterrou o rosto nas mãos.

– Ninguém mais sabe sobre isso, entende... o laço de sangue.

– Sério? Por que não?

– David era paranoico com relação à sua reputação na cidade. Não queria queninguém soubesse que tinha um filho ilegítimo. E, claro, ele já estava casadoquando Anand nasceu, tinha uma criança pequena com a esposa.

– Certo. Ace sabe que David é seu pai?

– É claro que sabe, e é por isso que estava tentando lhe agradar o tempo todo.David fez o que devia para aplacar sua culpa trazendo o filho para aInglaterra e colocando-o em uma excelente escola britânica quando soube quea mãe de Anand havia morrido. Então ofereceu-lhe um emprego no banco,como eu contei, com a condição de que ninguém soubesse de seu parentesco.

– Você quer dizer que David tinha vergonha do filho mestiço?

– Ele se orgulhava de ser um cavalheiro inglês por excelência. E sempre seapresentara como um perfeito homem de família.

– Minha nossa – falei em voz baixa, me beliscando para lembrar que esse tipode coisa inacreditável ainda acontecia. – Então Ace estava desesperado paraimpressionar o pai? Até mesmo a ponto de fazer negócios fraudulentos?

– Ficou claro desde o início que Anand era tão talentoso quanto seu pai jáfora, razão pela qual David o havia empregado. No intervalo de dois anos, elefora promovido algumas vezes e era o investidor mais bem-sucedido doBerners. Havia apenas três palavras que importavam no pregão: lucro, lucro elucro. E Anand conquistava mais do que todos eles.

– O pai estava orgulhoso dele?

– Sim, muito, mas então Anand teve uma onda de azar e, em vez de encarar asituação calmamente, entrou em pânico. Foi aí que imagino que ele tenhacomeçado a trapacear. O problema é que, mesmo que você diga que só vaicorrer o risco uma vez para cobrir as perdas e não ser pego, você acaba

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fazendo isso de novo. Torna-se viciante, e Anand também era viciado noselogios e na atenção do pai.

– Meu Deus, isso é tão triste... – Balancei a cabeça, realmente sentindo muitopor Ace. – Linda, você acha que David sabia o que Ace estava fazendo?

Quero dizer, com certeza ele devia saber. Perdeu tanto dinheiro...

Linda levantou-se para servir-se de outro copo de xerez e tomou um grandegole.

– Não sei ao certo. O que eu sei é que David deveria estar ao lado dele agora.É o filho dele, pelo amor de Deus! E eu não ficaria surpresa se Davidsoubesse dos apuros em que Anand havia se metido. Afinal, ele é o CEO. Atéme perguntei se ele tinha dado algum dinheiro para Anand

“desaparecer”

convenientemente na Tailândia.

– Nossa, que confusão! – exclamei, suspirando.

– É, sim. Meu pobre garoto... Eu... – Os olhos de Linda se encheram delágrimas. – Eu nunca tive filhos, mas amei Anand como se fosse meu, Ceci.Eu estava lá quando os pais dele não estavam, ajudando-o durante os anosdifíceis da adolescência.

– Então por que você não foi vê-lo na prisão?

– David disse que eu não podia, que era para eu ficar longe.

– Para ninguém saber do seu envolvimento com Ace e David nem chegar àverdade sobre o relacionamento deles?

– Sim, embora não haja como comprovar. O nome de David nem sequeraparece na certidão de nascimento de Anand.

Senti uma onda de raiva crescer dentro de mim.

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– Existem testes de DNA. Lamento dizer isso, mas David parece um grande...– escolhi a palavra menos agressiva em que pude pensar – ...

idiota.

Ace precisa de todo o apoio que puder agora. Ele está passando por tudo issototalmente sozinho.

– Você está certa sobre David – disse Linda, com amargura. – Foramnecessários trinta anos para que eu finalmente visse isso. O problema é queeu o adorei desde o primeiro momento em que comecei a trabalhar comodigitadora júnior no banco e, quando ele finalmente me contratou comosecretária, foi o dia mais feliz da minha vida. Eu lhe dei tudo. Onde quer queestivesse, a qualquer hora do dia ou da noite, eu estava lá para resolver eorganizar sua vida. E não só a dele, mas a daquela mulher arrogante econdescendente com quem se casou e seus dois filhos mimados que nuncatrabalharam a sério na vida. Eu estava apaixonada

por ele, entende? – confessou. – Não é um clichê? A secretária apaixonadapelo chefe! E agora ele me pôs de lado junto com Anand.

Você acredita que ele nem teve a consideração de me contar quando asdemissões foram anunciadas, depois que o banco foi comprado por Jinqíanpor 1 libra? Fui mandada para o RH, junto com os outros funcionários.

Àquela altura, eu queria estrangular aquele cretino com as minhas própriasmãos.

– É porque você sabia demais.

– Eu era a sombra dele, a lembrança do que ele realmente é. Ele é pai deAnand, Ceci. Devia estar lá para apoiá-lo nessa hora de necessidade, e elesabe disso.

– Você já pensou em contar a verdade à mídia?

– É claro que sim, sempre! Sonho com o olhar de David se eu fizer isso!

Ela deu uma risadinha e tomou o resto do xerez.

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– E...?

– Eu... simplesmente não posso. Não sou uma pessoa rancorosa. E issoseria... rancor, porque não traria nada positivo, além da humilhação públicade David.

– Isso para mim já é bastante coisa – comentei.

– Não, Ceci. Tente entender que a única coisa que me resta é a minhaintegridade. E não permitirei, nunca, que ele também comprometa isso.

– Mas e quanto a Ace? – insisti. – Entendo que você esteja dizendo que elefez todas as coisas erradas por vontade própria, mas certamente, quando issofor a julgamento, se alguém estiver lá para explicar por que aconteceu,poderia ajudá-lo, não? Afinal, você o conhece desde que ele era jovem, etambém trabalhou no banco, então poderia ser uma testemunha de caráter. Euestou disposta a ser uma!

– É muito gentil de sua parte, querida. O problema é que o pagamento domeu acerto de contas depende de eu ficar de boca fechada. Tive que assinaruma cláusula concordando que não falaria nem com a mídia nem com oadvogado que defende Anand.

– Isso é chantagem, Linda!

– Sei disso, mas, sem querer parecer egoísta, esse dinheiro do acordodemissional é tudo o que tenho para viver até poder retirar minha pensãodaqui a sete anos.

– Certamente você pode conseguir outro emprego, não? Quero dizer, pareceque você era uma ótima secretária.

– Ah, Ceci, você é gentil, querida, mas já tenho 48 anos. Os chefes queremmulheres jovens, não de meia-idade como eu.

– Você não pode... ahn... chantagear David de volta? Quero dizer, vocêtrabalhou para ele por todos esses anos. Deve saber de coisas contra ele.

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– Com certeza sei. Coisas que eu poderia falar aos jornais. Para começar, seusintermináveis casos, que sempre encobri quando a esposa ligava para oescritório. E era muito extravagante. Só o melhor servia, e ele

moveria céus e terras para conseguir. Sabe, mesmo no dia em que seuprecioso banco estava prestes a ser vendido por 1 libra, me mandou a HattonGarden para pegar uma pérola que vinha procurando havia anos.

Ele finalmente a localizara e enviara a Londres em um jato particular.

Levei 1 milhão de libras em dinheiro em um táxi para encontrar ointermediário. David parecia uma criança no dia de Natal quando voltei aoescritório com ela. Vi quando ele abriu a caixa e tirou a pérola.

Segurou-a contra a luz, e era realmente enorme, e tinha um tom rosadobonito, mas David parecia mais apaixonado por aquela joia do que jamaisfora por um ser humano.

Engoli em seco, então olhei para Linda em estado de choque. Com certezanão podia ser o que eu pensava que era...

– Ahn... De onde veio a pérola? Você sabe?

– Da Austrália. Aparentemente, ficou perdida durante anos.

– A pérola... David disse se tinha um nome? Por ser tão especial?

– Sim, ele a chamava de Pérola Rosada. Por quê?

“Os espíritos acham homens gananciosos e os matam...”

– Ah, nada. – Senti uma vontade enorme de rir histericamente, mas Linda nãoentenderia, então me controlei. – Tenho mesmo que ir agora, mas por que nãolhe dou meu número e mantemos contato?

– Sim, eu adoraria – disse ela.

Trocamos nossos telefones, então me levantei e caminhei rapidamente até aporta antes que a represa explodisse dentro de mim.

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– Foi bom falar com alguém que compreende e que se importa com Anandcomo eu – comentou ela, pousando a mão em meu braço. –

Obrigada por ter vindo.

– Por favor, Linda, mesmo que você não possa ir ao tribunal falar por ele,pense em visitá-lo na prisão. Ele precisa de você. Você é... bem, como sefosse a mãe dele.

– Sim, você está certa. Vou pensar nisso, querida. Agora, tchau.

Lá fora, caminhei pela rua e por uma viela estreita até encontrar uma áreaarborizada. Sentei-me em um banco e soltei o que sabia ser uma risadainadequada, mas não podia evitar. Se o pai de Ace tinha mesmo comprado aamaldiçoada Pérola Rosada, o que definitivamente parecia ter acontecido,então ela não poderia ter ido parar em uma casa mais merecedora.

Não que eu quisesse que ele morresse, é claro... bem, não muito, pelo menos.

Estremeci de frio e peguei o celular para ligar para o taxista. Quando o carrochegou, entrei e liguei de novo para a Scrubs para agendar outra visita.

Quando cheguei em casa, percebi que me sentia muito mais calma comrelação à situação do Ace. Tive a forte sensação de que os “ancestrais”

estavam cuidando de tudo e o destino de David Rutter já havia sido traçado.

Quando fui recepcionar Ma em Heathrow, vi-a sair pelo setor dedesembarque parecendo muito elegante apesar da longa viagem. Abricaminho em meio à multidão para chegar até ela e lhe dei um forte abraço.

– Chérie, você está maravilhosa! – disse Ma enquanto me beijava nasbochechas.

– Obrigada, estou me sentindo mesmo muito bem – eu disse, e passei o braçopelo dela.

Pegamos um táxi para Battersea e a levei para o meu apartamento.

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– Mon dieu! É deslumbrante.

Ma estava no meio da sala, gesticulando com os braços para indicar o enormeespaço.

– É legal, não é?

– Sim, mas Estrela me falou que você vai vender.

– Não mais. O corretor me disse que os preços dos imóveis despencaramdesde que eu comprei, então vou alugar. Ele ligou mais cedo hoje. Jáencontrou inquilinos para o apartamento. Posso pegar seu casaco?

– Obrigada.

Ma o tirou e me entregou, então sentou-se e alisou a saia de tweed.

Estava impecável como sempre, e isso me reconfortava, pois ela não mudaranada.

– Posso preparar uma xícara de chá? – perguntei.

– Eu adoraria. Recuso-me a comer ou beber qualquer coisa em aviões.

– Não culpo você – concordei, indo ligar a chaleira. – Mas provavelmentemorreria de fome a caminho da Austrália se não comesse nada.

– Ainda não acredito que você fez todas essas viagens sozinha. Sei comoodeia voar. Estou orgulhosa de você, chérie.

– Bem, viver é enfrentar seus medos, não é?

– É isso mesmo. E você fez um progresso incrível.

– Estou tentando. – Levei uma xícara de seu chá Darjeeling favorito para amesa de centro e me sentei ao lado dela no sofá. – É ótimo ver você.

Obrigada por ter vindo, Ma.

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– Bem, mesmo que Estrela não tivesse me convidado para vir à Inglaterraantes, eu não teria deixado você ir embora para a Austrália sem visitá-la.

Estou tão feliz que tenha vindo... E é bom estar longe de Atlantis por algunsdias. Então... – Ela tomou um gole do chá. – Conte-me tudo.

– Há muito que contar.

– Temos bastante tempo. Só comece do início.

Então eu contei, sentindo-me envergonhada e sem graça a princípio, porquepercebi que nunca tinha estado sozinha com Ma sem Estrela ao meu lado.Mas esse era outro passo que eu tinha que dar, agora que eu era eu mesma.Ma era a melhor ouvinte que eu poderia esperar, e segurava minha mãodurante as partes mais emotivas, o que era bom, porque havia várias.

– Ah, você esteve em uma jornada e tanto, chérie. E eu adoraria conhecer seuavô – disse Ma depois que contei tudo.

– Ele é especial, sim. – Fiz uma pausa, porque precisava encontrar as palavrascertas e não me atrapalhar com elas. – Você sabe, Ma, todas essas coisas... ascoisas por que Estrela, Maia, Ally e eu passamos...

realmente me fizeram pensar.

– É mesmo?

– Sim. Sobre o que é realmente ser um pai. Os laços de sangue são mesmo omais importante?

– O que você acha , chérie?

– Que foi muito, muito bom conhecer o meu avô, mas que só o acrescentei àfamília que já tenho. Eu não precisava ou queria substituir você e Pa por umanova versão. É um pouco como meu amigo Ace, aquele que está na prisão.Ele tinha uma mãe na Tailândia que realmente amava, mas ela morreu. Entãoele arrumou outra mãe aqui, por acaso, que realmente torce por ele, assimcomo você torce por todas nós.

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– Obrigada, chérie. Faço o melhor que posso.

– Ma... – Dessa vez fui eu que peguei sua mão. – Não foi difícil para você veralgumas de nós sairmos e encontrarmos nossas outras famílias?

Quero dizer, você nos criou desde que éramos bebês.

– Ah, Ceci, sabe que você é a única que pensou em me fazer essa pergunta?Eu agradeço, chérie. E, sim, você está certa. Vi todas vocês crescerem desdebebês, honrada pela confiança que seu pai depositou em mim.

Para qualquer pai, é difícil ver os filhos deixarem o ninho e talvezencontrarem novas famílias do passado ou no presente. Mas o fato deestarmos aqui juntas, esta noite, de você querer me ver, já é suficiente paramim, sinceramente.

– Sempre vou querer vê-la, Ma. Você é... demais!

Olhamos uma para a outra, sem saber direito se devíamos rir ou chorar, entãodecidimos rir. Por fim nos abraçamos e apoiei minha cabeça no ombro dela,como fazia quando era pequena.

Olhei para o telefone, vi que passavam das nove horas e percebi que Madevia estar morrendo de fome. Liguei para pedir comida, e saboreamos umdelicioso curry verde tailandês.

– Então você vai para a Austrália na quarta? – indagou Ma.

– Sim, Ma. Posso lhe perguntar uma coisa? – disparei de repente.

– Claro que pode, chérie.

– Você acha que Pa escolheu cada uma de nós por um motivo especial?

Ou será que foi aleatório? No meu caso, por exemplo, por que ele estaria emBroome pouco depois de eu ter nascido e precisando de um lar?

Ma baixou a colher e o garfo.

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– Chérie, eu responderia essa pergunta se pudesse. Como você sabe, seu paiviajava muito, e não sei se havia um plano. Todo bebê que chegava a Atlantisera uma surpresa para mim, principalmente você, Ceci, já que,

apenas seis meses antes, Estrela se juntara a nós. Sim... – disse ela,balançando a cabeça e tomando um gole de vinho. – Você foi a maiorsurpresa de todas.

– Fui?

– Foi. – Ma sorriu para mim. – Também acho que nós, humanos, desejamosacreditar que exista um plano. E talvez exista, mas, segundo a minhaexperiência, nem sempre é algo feito pelo homem.

– O que você está dizendo é que o destino ou um poder superior leva você atélá?

– Sim – disse Ma, assentindo com veemência. – Acredito mesmo que sejaverdade. Isso aconteceu comigo, com certeza. – Ma limpou a boca com oguardanapo, então disfarçadamente secou os olhos. – A bondade dosestranhos... – sussurrou, então respirou fundo. – Você me dá licença para eume recolher? Pelo que Estrela me contou, teremos uma grande noite amanhã.

– Você está falando da festa para a mãe biológica dela?

– Sim e, é claro, sua despedida – lembrou Ma.

– Ah, sim.

Eu estava tão atarefada com tudo que vivia esquecendo que ia embora de vezem pouco mais de 24 horas.

– E vou finalmente conhecer o Mouse – continuou Ma. – Você já esteve comele?

– Uma vez, sim. Ele é... um cara legal – consegui dizer. – Fico realmente

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feliz que Estrela esteja tão realizada.

No quarto de hóspedes do andar de cima, que nunca tinha sido usado, foirealmente estranho mostrar a Ma onde ficavam as toalhas e como funcionavao chuveiro, como se eu fosse a adulta, e ela, a criança.

– Obrigada, Ceci. Você está sendo uma anfitriã maravilhosa, e espero que,um dia, me convide para visitá-la na Austrália.

– É claro, Ma. – Sorri. – Sempre que quiser.

– Boa noite, chérie. – Ma me beijou nas bochechas. – Durma bem.

36

Surpreendi Ma no dia seguinte com minha nova rotina de acordar cedo, edepois de um rápido café da manhã juntas com croissants e café, deixei-a àvontade para se preparar para a festa e peguei o ônibus para WormwoodScrubs.

Ace desabou na cadeira de plástico à minha frente, parecendo irritado.

– Pensei que havia lhe dito para me deixar em paz – reclamou ele, cruzandoos braços na defensiva.

– Bem, olá para você também – respondi. – Adivinha quem conheci ontem?

– Ceci, não me diga que você...

– Sim. Encontrei Linda, conversamos, e ela o ama tanto... – disparei,inclinando-me na mesa em sua direção. – Ela me contou a verdade sobre seupai, e ele tem que ajudá-lo, e... Ele sabia o que você estava fazendo?

Porque, se sabia, então...

– Pare! Você não sabe do que está falando – sibilou ele, seus olhos irritados

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parecendo fendas. – É muito mais complicado do que você imagina...

– Eu sei. Linda me contou, mas David é seu pai, e isso não é nadacomplicado. E ele deveria ajudá-lo, como seu pai e seu ex-chefe, porque euacho que ele sabia, e você o está protegendo. Não é justo!

Ace me olhou por um instante, então me entregou silenciosamente um lençoda caixa na mesa entre nós. Eu nem percebera que estava chorando, masimagino que os guardas estivessem acostumados com isso no centro devisitantes.

– Ceci – disse Ace mais gentilmente. – Tive muito tempo para pensar desdeque vim para cá, e também quando estava na Tailândia com você.

Eu sabia que teria que enfrentar o que fiz alguma hora, e é o que estoufazendo. Se o meu pai sabia ou não, ou mesmo se ele é meu pai, é irrelevante.Fui eu que apertei aquelas teclas no computador para fazer os negóciosilegais. Também percebi que meu pa... que David nunca me amou ou seimportou comigo.

Embora, para ser justo, ele não se importe muito com qualquer coisa que nãoseja dinheiro.

– Concordo – falei com veemência.

– Então, ele e o que eu fiz me fizeram perceber exatamente quem eu

estava me tornando e quem não quero ser. De certa forma, toda essaexperiência me salvou. O advogado me disse que posso fazer faculdadeenquanto estiver preso. Acho que vou fazer filosofia e teologia. Tenho apenas28 anos. Vou ter muito tempo para construir uma vida diferente quando sairda prisão.

– Bem, essa é uma atitude positiva – comentei, começando a entender ocomportamento dele e admirando-o muito.

– E, a propósito, sei que você não me entregou, Ceci. Soube que aquela fototem copyright em nome de um tal de Jay. Você estava certa e peço desculpas

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por pensar que havia sido você. Tenho muitas lembranças felizes de nós doisna praia de Phra Nang e quero guardá-las assim.

– Eu também. – Engoli em seco. – Escute, estou me mudando para aAustrália amanhã. Quando sair da prisão, venha me visitar. Talvez vocêpossa começar sua nova vida por lá. É a terra das oportunidades, lembra?

– Quem sabe? Vamos manter contato, com certeza. Por sinal, você descobriumais sobre Kitty Mercer?

– Melhor. – Eu sorri. – Encontrei minha família.

– Fico feliz por você, Ceci. – Pela primeira vez, o rosto dele se iluminou emum largo sorriso. – Você merece.

– Escute, preciso ir agora, mas vou mandar meu novo endereço assim que meestabelecer por lá.

– Promete?

Ele segurou minha mão quando me levantei.

– Prometo. Ah, e a propósito – sussurrei –, não se preocupe com seu pai.

Tenho a sensação de que ele vai receber tudo o que merece.

Passei a tarde empacotando o resto das minhas coisas em sacos de lixo, poisEstrela guardaria em High Weald. Então saí para comprar tudo que eu sabiaque não encontraria em Alice Springs, como feijão cozido Heinz e umagigantesca barra de chocolate Cadbury’s Fruit and Nut. Estrela, sua mãe eMouse deveriam chegar ao apartamento às seis horas para meu coquetel dedespedida, antes de seguirem para o East End. Comprei três garrafas de

champanhe e algumas cervejas para desejar boa viagem a eles... e a mim.

Quando cheguei em casa, carregada de sacolas de compras, vi que Ma tinhatomado o lugar de Estrela e usava seu avental branco, primorosamenteamarrado na cintura. Ela me cumprimentou à porta com um olhar dedesespero.

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– Mon dieu! Tem alguma pâtisserie aqui perto? Os canapés que tentei fazerderam errado. Está vendo?

Ela apontou para uma massa verde em formato estranho – e, na verdade,bastante artístico – que parecia ter sido pisoteada.

– Tudo bem, Ma. Trouxe algumas tortilhas e molho.

– Ah, Ceci, estou tão envergonhada! Você me desmascarou.

Ela sentou-se à mesa da cozinha e enterrou o rosto nas mãos.

– Desmascarei?

– Mais oui! Sou francesa, mas tudo que cozinho é um desastre! A verdade éque tenho me escondido por trás de Claudia todos esses anos. Se tivessedependido de mim alimentá-las, vocês teriam morrido de fome...

ou envenenadas!

– Sinceramente, Ma, não importa. Nós amamos você de qualquer maneira,mesmo que seja uma péssima cozinheira. – Contive um riso diante de suaexpressão angustiada. – Todos temos pontos fortes e fracos, lembra? É o quevocê sempre falou – acrescentei, despejando as tortilhas numa tigela ecolocando o champanhe e as cervejas na geladeira.

– É, chérie, e você está certa, preciso me aceitar.

– Sim.

Vi que ela precisava de um abraço, então me aproximei para oferecer um.

– Ah, Ceci, acho que, de todas as minhas meninas, neste momento é vocêquem me deixa mais orgulhosa, sabia? – disse ela, acariciando meu cabelo.

– Por quê?

– Porque sabe como ser você mesma. Agora vou subir e me preparar para afesta.

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Todos chegaram logo depois das seis, e vi que a mãe de Estrela, Sylvia, eraliteralmente uma versão mais velha da filha, com roupas mais caras.

Ela era realmente doce e me disse que tinha ouvido muitas coisas boas a meurespeito, antes de me dar um abraço.

– Obrigada por cuidar dela quando eu não pude – sussurrou em meu ouvido.

Gostei dela na mesma hora, e fiquei feliz por Estrela ter mais alguém que aamasse tão intensamente quanto eu.

Mouse parecia o grosseirão de sempre, e decidi que, se fosse escalar umapessoa para fazer o papel do Sr. Darcy daquele romance de Jane Austen deque Estrela falava o tempo todo, eu o escolheria. Precisava admitir que eleera bonito, para quem gostava do tipo, mas um pouco reservado, como amaioria dos aristocratas ingleses que conheci. Então lembrei-me que,tecnicamente, eu também era descendente de um aristocrata escocês e mesenti um pouco mais no mesmo nível.

Fiquei vendo Sylvia falar com Ma e me perguntando como Ma se sentia emrelação a isso. Então fechei os olhos e visualizei um coração humanobatendo.

Eu o vi se expandir, abrangendo todas as novas pessoas que eu amava. E

entendi que o coração tinha uma capacidade infinita de se expandir. E, quantomaior ficasse, mais saudável e feliz batia dentro de você. E, o melhor de tudo,meus dedos formigaram, e eu soube imediatamente qual seria a inspiraçãopara minha próxima pintura.

Despertei do meu devaneio quando Ma colocou uma taça de champanhe

na minha mão. Percebi que todos tinham ficado em silêncio e se reuniam aomeu redor, observando-me com expectativa.

– Ahn... – murmurei estupidamente, ainda atordoada.

Ma veio em meu resgate.

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– Eu gostaria de dizer – começou – que estou tão orgulhosa de você, Ceci,por ter ido tão longe em sua jornada! Chérie, você é talentosa e corajosa, eseu coração é sincero. Espero que a Austrália lhe dê tudo o que você estáprocurando em sua vida. Todos sentiremos sua falta, mas entendemos quenossa pequena pomba deve voar. Bon voyage!

– Bon voyage!

Todos brindaram.

Então me afastei e os observei, aquela reunião eclética de pessoas que tinhamse entrelaçado pelo amor. E eu sempre faria parte dessa colcha de retalhos dehumanidade, mesmo que estivesse voando para o outro lado do mundo no diaseguinte.

– Você está bem?

Estrela me cutucou.

– Sim, estou. – Engoli em seco. – Sua família é ótima, aliás.

Mouse apareceu ao lado dela.

– Precisamos ir agora ou vamos nos atrasar. Desculpe, Ceci.

– Tudo bem. – Estrela olhou para mim com ar infeliz. – Ci, tem certeza deque não quer ir à festa com a gente?

– Tenho, não se preocupe comigo. Ainda preciso arrumar umas coisas.

Foi só uma infeliz coincidência de datas.

– Eu deveria ficar aqui com você esta noite. – Estrela mordeu o lábio quandoMouse lhe entregou o casaco. – Ah, Ci, não tenho ideia de quando nosveremos de novo...

Sylvia veio despedir-se de mim e me desejar sorte, então foi a vez de Ma.

– Adeus, chérie, prometa-me que vai se cuidar e manter contato.

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Ma então me deu um abraço, e vi Estrela vestir o casaco e voltar em minhadireção.

– Querida, vamos chegar atrasados. – Mouse segurou seu braço e levou-afirmemente para a porta. – Tchau, Ceci.

– Eu amo você – disse Estrela para mim através de sinais.

– Amo você também – respondi com sinais.

A porta se fechou com um estrondo, e fiz o máximo para não cair no choro.

Odiava Mouse por não nos permitir pelo menos um adeus adequado.

Coloquei os copos e os pratos no lava-louça, contente com a distração, depoisfui para o ateliê e desmontei minha instalação, levando peça a peça para orecipiente de lixo comum fora do prédio.

– Você vai para o lixo – disse ao Sr. Guy Fawkes enquanto o enfiava ládentro e batia a tampa.

Lá em cima, no apartamento, reguei as plantas de Estrela pela última vez.

Ela me entregara sua chave mais cedo, implorando-me para garantir que

os novos inquilinos cuidassem de seus “bebês”, como as chamava.

– Uau, é certamente o fim de uma era – murmurei enquanto caminhava peloapartamento, o silêncio em volta me lembrando do motivo que me levara àAustrália.

Em seguida, coloquei o agasalho e enfrentei o ar frio da noite na varanda.

Pensei em Linda e na vida que nunca havia tido; em como a passara amandoalguém que nunca a amaria. Senti-me um pouco melhor, então, porque, aocontrário dela, eu tinha um futuro à minha frente com pessoas que de fato me

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amavam. O que ele poderia me trazer, eu ainda não tinha certeza, mas estavalá, bem na minha frente, para que eu o escrevesse. Ou, mais precisamente,pintasse.

Olhei para cima, encontrei a pequena constelação e lembrei como as SeteIrmãs brilhavam mais sobre Alice.

Minha nova casa.

Quando o táxi chegou, às cinco da manhã do dia seguinte, o céu ainda estavaescuro e deprimente. No fim das contas, eu nem me preocupara em ir deitar,esperando que isso me ajudasse a dormir no avião depois.

Enquanto nos afastávamos do meu apartamento, uma mensagem apitou emmeu celular: Ceci, aqui é Linda Potter. Pensei muito e resolvi visitar Anand.Você estava certa, ele precisa da minha ajuda e farei o que puder.

Deus a abençoe e boa viagem para a Austrália.

Fui inundada de alívio e orgulho, porque conseguira fazer Linda mudar deideia. Eu, com minhas palavras desajeitadas... conseguira mesmo fazer adiferença.

Despachei minhas três malas em Heathrow e caminhei para o setor deembarque, me perguntando se me lembraria desse momento pelo resto davida, por ser tão marcante. Então pensei que não era nunca dos grandesmomentos que eu me lembrava; eram sempre as pequenas coisas, escolhidasaleatoriamente por alguma alquimia estranha, que ficavam no meu álbum defotografias mental.

Revirei a parte da frente da mochila procurando por meu cartão de embarque,e minha mão passou pelo envelope de papel pardo que um dia contivera aspistas do meu passado.

– Meu Deus! – exclamei, respirando fundo, quando entreguei o cartão deembarque à mulher.

Parecia quase uma reprise de dois meses antes.

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A mulher acenou com a cabeça para mim enquanto o pegava, parecendo meiosonolenta, o que era justo, pois ainda não eram nem sete horas da manhã.

Eu já ia entrar quando ouvi uma voz atrás de mim: – Ceci! Pare!

Estava tão cansada que achei que estivesse sonhando.

– Celeno D’Aplièse! Arrête! Pare!

Então me virei e lá estava Estrela.

– Ah, meu Deus, Ci! – disse minha irmã, ofegante, ao chegar ao meu lado.

– Pensei que você já tivesse ido. Por que raios você não estava atendendo otelefone?

– Desliguei quando saí do táxi – respondi. – O que você está fazendo aqui?

– Não nos despedimos direito ontem à noite. E eu não poderia deixá-la irembora sem lhe dar um abraço, dizer quanto vou sentir sua falta e –

Estrela limpou o nariz na manga – agradecer tudo que você fez por mim.

Ela então me abraçou mais forte do que nunca, como se não pudesse suportarme largar. Permanecemos assim por um tempo, depois me afastei, sabendoque, se não fizesse isso, ficaria para sempre.

– É melhor eu entrar – murmurei, a voz rouca de emoção. – Muito obrigadapor vir.

– Você pode sempre contar comigo, querida Ci.

– Você também. Tchau, Sia.

– Tchau. Mantenha contato, está bem? E promete que vai voltar a Atlantispara o primeiro aniversário de morte de Pa, em junho?

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– É claro.

Soprei um último beijo para Estrela, então me virei e passei pela área decontrole de segurança e em direção ao meu futuro.

Tiggy Terras Altas, Escócia

Janeiro de 2008

37

– Tem certeza de que quer sair mais tarde de novo, Tig? Está chegando umanevasca! – disse Cal.

Ele observava o belo céu azul pela janela da nossa cabana, o sol do meio-diairradiando seu brilho sobre a camada permanente de neve que cobria o chãodurante todo o inverno. A vista era de um cartão de Natal perfeito.

– Sim! Não podemos nos arriscar, Cal, você sabe.

– Acho que nem mesmo o Abominável Homem das Neves sairia esta noite–murmurou ele.

– Você prometeu que vigiaríamos até que as coisas se acalmassem –

implorei. – Olha, levo o rádio comigo e entro em contato com você se houveralgum problema.

– Tig, você acha mesmo que vou deixar uma garota pequena como vocêandar por aí sozinha em uma tempestade de neve enquanto um caçadorlunático com uma espingarda ronda a propriedade? Não seja maluca –

grunhiu Cal, o rosto avermelhado expressando irritação e, por fim,conformidade. – Só umas duas horas, está bem? Depois disso, vou arrastarvocê de volta pelo cabelo.

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Não quero que tenha hipotermia de novo. Entendido?

– Obrigada, Cal – respondi aliviada. – Sei que Pegasus está em perigo.

Eu... simplesmente sei.

A neve caíra intensamente e o telhado de lona se curvara por causa do peso.Eu me perguntava se acabaria desabando e seríamos enterrados vivos.

– Agora, vamos embora, Tig – disse Cal. – Estou completamente entorpecidoe vai ser muito difícil voltar de carro para a cabana. A nevasca diminuiu umpouco e precisamos chegar em casa quanto antes.

– Cal tomou um último gole de café morno do cantil e então me ofereceu.

– Beba isso. Vou limpar a neve do para-brisa e ligar o motor para iresquentando.

– Está bem – concordei com um suspiro, sabendo que não adiantaria discutir.

Tínhamos ficado no abrigo por mais de duas horas, apenas observando a nevecair. Cal saiu e foi em direção ao Land Rover, estacionado além de umafloramento rochoso no vale atrás de nós. Olhei pela pequena janela enquantotomava o café, depois apaguei o lampião e saí. Não precisava

da lanterna, já que o céu clareara e agora reluzia com milhares de estrelas, aVia Láctea claramente visível acima de mim. A lua, que dali a dois diasestaria cheia, brilhava, iluminando o imaculado manto branco que cobria ochão.

O silêncio absoluto que vinha logo após a queda da neve era tão profundoquanto o tapete cintilante que cobria meus pés e boa parte da minhapanturrilha.

Pegasus.

Chamei-o mentalmente, procurando por ele em torno dos vidoeiros quemarcavam nosso lugar especial. Ele era um magnífico cervo branco, que euvira pela primeira vez quando me juntara a Cal em suas rondas pela

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propriedade para contar os cervos. Pegasus pastava em meio a um grupo decervos vermelhos e, a princípio, pensei que a neve lhe cobria o corpo.

Gritara por Cal e lhe passara os binóculos, mas, quando finalmenteconseguira focá-

los, o rebanho de cervos havia se afastado para o alto da colina, camuflando acriatura mística e rara que corria em algum lugar no meio deles.

Cal não acreditara em mim.

– Os cervos brancos são como o Velo de Ouro, Tig. Todos procuram por eles,mas trabalho nesta propriedade há anos e nunca vi um.

Ele voltara, então, para o Land Rover e havíamos seguido em frente.

No entanto, eu sabia que tinha visto o cervo, então insisti em voltar aobosque com Cal no dia seguinte, e sempre que eu podia depois disso.

Minha paciência foi por fim recompensada um dia quando estava agachadaatrás de uma moita de tojo, com os binóculos voltados para os vidoeiros. Eu ovira, miraculosamente sozinho na neve um pouco à minha esquerda, longedos outros e talvez a apenas 3 metros de mim.

– Pegasus – eu sussurrara, o nome vindo à ponta da minha língua como setivesse estado sempre lá.

E então, como se soubesse que era assim que se chamava, o cervo levantou acabeça e olhou para mim. Mantivemos contato visual por talvez apenas cincosegundos antes que Cal chegasse ao meu lado e exclamasse de espanto,maravilhado com o fato de a “minha fantasia”

ser real.

Aquele momento foi o início de um caso de amor, uma alquimia forte eestranha que nos conectava. Eu me levantava ao amanhecer, quando sabiaque os rebanhos ainda se abrigavam dos ventos fortes no fundo do vale, e iade carro até as árvores que proporcionavam alguma proteção contra o frio.

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Dentro de alguns minutos, como se sentisse minha presença, Pegasusaparecia.

A cada dia, ele se aproximava um pouco mais e, seguindo sua deixa, eutambém. Eu sentia que ele começava a confiar em mim e, à noite, sonhavaem um dia poder tocar o pelo cinza-claro aveludado de seu

pescoço, mas…

No meu antigo santuário de animais, minha habilidade natural de conectar-me com os jovens cervos, órfãos ou feridos, levados até nós em busca decuidados, era uma vantagem. Ali, em Kinnaird, os animais eram selvagens,vivendo como a natureza pretendera e vagando pela propriedade de quase 10mil hectares com mínima interferência dos humanos – exceto pelo abateorganizado que estes promoviam, tanto de cervos quanto de corças, para finsde controle da população.

Durante a temporada de caça, empresários ricos chegavam à propriedade empasseios corporativos organizados e pagavam preços exorbitantes paraextravasar sua agressividade por meio da caça, depois iam para casa pendurara cabeça de um cervo na parede como troféu.

– Não há muitos predadores naturais, Tig.

Cal, o guia da propriedade, com seu jeito meio rude e um sotaque escocêscarregado que escondia um amor genuíno pela imensidão natural que elelutava para proteger, fizera o possível para me consolar quando entrei pelaprimeira vez na despensa e encontrei quatro peles sangrentas penduradaspelos cascos.

– Nós, humanos, tomamos o lugar deles – acrescentou Cal. – É a ordemnatural das coisas. Você sabe que devemos controlar a população.

Obviamente eu sabia dessa questão, mas isso não facilitava em nada asituação quando eu me deparava com uma vida mutilada, destruída por umabala feita pelo homem.

– É claro que com Pegasus é diferente, pois é um espécime raro. Juro que

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ninguém vai tocar nele enquanto eu estiver por aqui.

Eu não sabia como a notícia de que um cervo branco fora avistado emKinnaird chegara à imprensa, mas alguns dias depois um jornalista localvencera o caminho traiçoeiro até nossa porta. Eu implorara enlouquecida aCal que negasse a existência de Pegasus e dissesse que era apenas um boato,sabendo que a cabeça de um cervo branco seria irresistível para qualquercaçador, que a venderia pela melhor oferta.

Era por isso que eu estava ali de pé às duas da manhã em uma congelantepaisagem sombria. Cal e eu havíamos construído um abrigo primitivo pertodo bosque para vigiarmos. Toda terra na Escócia era aberta ao público, e nãotínhamos ideia de quem poderia rondar a propriedade quando estivesseescuro.

Caminhei lentamente em direção às árvores, implorando ao cervo queaparecesse para eu poder voltar para casa e dormir tranquila, sabendo que eleestava seguro por mais uma noite.

Ele apareceu do nada, uma visão mística erguendo a cabeça em direção à lua,depois se virou, os olhos castanhos profundos fixos em mim. Então começoua andar, hesitante, em minha direção, e eu também me aproximei.

– Ah, Pegasus querido... – sussurrei, e imediatamente vi uma sombra surgirna neve atrás das árvores.

O vulto ergueu a espingarda.

– Não! – gritei em meio ao silêncio.

A figura estava atrás do cervo, a arma apontada e pronta para disparar.

– Pare! Fuja, Pegasus!

O cervo se virou e viu o perigo, mas então, em vez de fugir para um lugarseguro, começou a correr para onde eu estava. Um tiro foi disparado, depois

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mais dois, e de repente senti uma dor aguda na lateral do corpo.

Meu coração bateu de um jeito estranho, depois disparou tanto que fuitomada pela tontura.

Meus joelhos cederam e desabei no manto de neve.

Fez-se silêncio novamente. Tentei manter a consciência, mas não conseguiamais lutar contra a escuridão, nem mesmo por Pegasus.

Algum tempo depois, abri os olhos e vi um rosto amado e familiar acima demim.

– Tiggy, meu amor, você vai ficar bem. Fique comigo agora, está ouvindo?

– Sim, Pa, é claro que sim – sussurrei enquanto ele acariciava meu cabelocomo fazia quando eu era pequena e estava doente.

Fechei os olhos mais uma vez, sabendo que estava segura em seus braços.

Quando acordei de novo, senti alguém me levantar do chão. Procurei por Pa,mas tudo que vi foi o rosto desesperado de Cal esforçando-se para me levar aum lugar seguro. Quando virei a cabeça para olhar as árvores, vi o corpocaído de um cervo branco, o sangue respingado pela neve ao redor.

E soube que ele se fora.

Nota da autora

A alegria de escrever a série As Sete Irmãs é que cada irmã – e sua jornada –é totalmente diferente da anterior. E isso nunca ficou mais evidente do quequando terminei a história de Estrela e comecei a pensar na de Ceci. Percebique tinha tanto medo de embarcar nela quanto a própria Ceci. Eu tambémestava reticente em viajar para a Austrália – uma das poucas grandes regiõesque eu nunca visitara, principalmente devido às suas perigosas aranhas. Noentanto, assim como Ceci e as outras irmãs, eu tinha que superar meusmedos, então embarquei naquele avião e fui fazer a pesquisa necessária. E, noprocesso, me apaixonei por esse país incrível e complexo.

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Principalmente pelo Never Never – a vasta área em torno de Alice Springs,mais conhecida como The Alice, que, para minha imensa alegria, descobri sero Templo das Sete Irmãs dos mitos e lendas das Plêiades.

Aprender não só sobre a beleza, mas também sobre o pragmatismo de umacrença e cultura que mantiveram a população aborígine viva por mais decinquenta mil anos em um ambiente implacável, foi talvez o momento emque mais tive consciência das minhas limitações nas diversas viagens depesquisa que fiz pelo mundo.

Sou uma romancista, mas levo minhas pesquisas tão a sério quanto qualquerhistoriador, porque a história, e o efeito que ela tem sobre a vida não só dasirmãs, mas também sobre nós, no presente, é a minha paixão. As narrativasdo naufrágio do Koombana e da Pérola Rosada foram retiradas de relatosverdadeiros, embora a pérola tenha sido vista pela última vez na fatídicaviagem do Koombana a Broome – o restante neste livro é apenas fictício.

Mesmo que todos os detalhes sejam checados várias e várias vezes, entendoque cada relato de um evento histórico é subjetivo simplesmente porque todavisão escrita ou falada é humana. Portanto, qualquer erro na interpretação dosfatos em A irmã da pérola é apenas meu.

Agradecimentos

Muitas pessoas contribuíram para a pesquisa deste romance, e souimensamente grata a cada uma delas.

Em Adelaide, meu velho amigo e inquilino londrino, Mark Angus, que foimeu guia turístico, motorista e fonte de conhecimento, principalmente comrelação ao melhor vinho australiano! Em Broome, Jay Bichard, do PearlLuggers Tour, e os funcionários da Broome Historical Society e da YawuruSociety. Em Alice Springs, agradeço muitíssimo a Phil Cooke e Alli Turner,que viajaram de Brisbane para nos acompanhar em nossa turnê de pesquisa.A viagem para Hermannsburg através do Never Never é algo que nuncaesquecerei. Agradeço a Adam Palmer e Lehi Archibald, na The TelegraphStation, e Rodney Matuschka, na Missão Hermannsburg. E a vários homens emulheres aborígenes que conhecemos em nossa jornada, que não quiseram terseus nomes citados, mas me ajudaram a formar uma imagem de sua vida e

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cultura.

Na Tailândia, sou imensamente grata a Natty, que deu o seu melhor para memanter sã e refrescada quando eu estava escrevendo o passado de Kitty e atemperatura atingiu 45 graus, pifando o ar-condicionado. E a Patrick, doRayavadee Villas, na praia de Phra Nang, que afugentou os macacos e mealimentou e hidratou.

Também agradeço muitíssimo a Ben Brinsden, que pacientemente me ajudoua compreender os desafios da dislexia.

Meus maiores agradecimentos vão para Olivia Riley, minha fantásticaassistente e companheira, que atravessou a Austrália comigo e incentivou asempre ir em frente. Com ela ao meu lado, nada era um grande problema. Eurealmente não poderia ter feito isso sem você, Livi.

Sou grata também a todos os meus fantásticos editores ao redor do mundo,que apoiaram tanto a mim quanto a série As Sete Irmãs desde o início,mesmo me achando louca de embarcar em um projeto tão grande.

Jez e Catherine, na Pan Macmillan, no Reino Unido; Knut, Pip e Jorid, naCappelen Damm, na Noruega; Georg, Claudia e a equipe da Goldmann, naAlemanha; Donatella, Antonio, Annalisa, Allessandro, na Giunti, na Itália;Marite e Una, na Zvaigzne ABC, na Letônia; Jurgita, na Tyto Alba, naLituânia; Fernando, Nana e “Os Irmãos”, na Arqueiro, no Brasil; Marie-Louise, Anne e Jakob, na Rosinante, na Dinamarca, apenas para citar alguns.Todos vocês se tornaram meus amigos e compartilhamos muitas risadasquando os visitei. Obrigada, obrigada, obrigada, por serem os padrinhos tãoatenciosos e sábios para as irmãs e para mim.

Sou extremamente grata a Ella Micheler, Susan Moss, Jacquelyn Heslop,Lesley Burns e, claro, Olivia Riley – que formam a “Equipe Lulu” –, queforneceram um trabalho de pesquisa vital, assessoria editorial e domésticanos bastidores ao longo de um ano caótico. Obrigada a todas pela paciência ea disponibilidade irrestrita, quando eu e minha vida

ficamos cada vez mais atribuladas. E a Stephen – meu marido, agente,conselheiro e melhor amigo –, eu simplesmente não conseguiria fazer isso

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sem você.

Harry, Bella, Leonora e Kit, estou tão orgulhosa... Vocês me fazem gritar dealegria, frustração e felicidade, e nunca deixam de me trazer à realidade.

Amo todos vocês.

Por fim, como sempre, aos meus leitores em todo o mundo: vocês carregamminhas irmãs em seus corações, riem, amam e choram com elas como euquando estou escrevendo suas histórias. Simplesmente porque nós – e elas –somos humanos. Obrigada.

Lucinda Riley

Abril de 2017

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Sobre a autora

LUCINDA RILEY nasceu na Irlanda e, após uma carreira inicial como atrizde cinema, teatro e televisão, escreveu seu primeiro livro aos 24 anos.

Suas obras já foram traduzidas para mais de 30 idiomas e venderam mais de10

milhões de exemplares em todo o mundo. Ela está na lista de autores maisvendidos do The Sunday Times e do The New York Times.

Lucinda atualmente está escrevendo a série As Sete Irmãs, inspirada namitologia da famosa constelação. Os três primeiros livros, As Sete Irmãs, Airmã da tempestade e A irmã da sombra, ficaram em primeiro lugar na listade mais vendidos em toda a Europa, e os direitos para uma série de televisãojá foram adquiridos por uma produtora de Hollywood.

Quando não está escrevendo, viajando ou correndo atrás dos filhos, ela adora

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ler livros de outros autores, com uma taça ou duas de Provençal rosé.

www.lucindariley.com

CONHEÇA OS OUTROS LIVROS DA SÉRIE

As Sete Irmãs

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Nos anos 1920, Izabela Bonifácio é a jovem mais bela do Rio de Janeiro.

Contudo, sendo filha de um cafeicultor rico, porém não aceito pela sociedade,ela não tem a chance de escolher o próprio futuro e é pressionada pelo pai ase casar com Gustavo, membro de uma das mais tradicionais famíliascariocas.

Ávida por conhecer o mundo, Izabela convence o noivo a deixá-la primeiro ira Paris. Imersa numa cidade repleta de cultura e romance, ela conhece ojovem escultor Laurent Brouilly, que a faz questionar se realmente desejavoltar ao Brasil.

Um século à frente dela, Maia D’Aplièse acaba de deixar para trás um antigonamorado e pousar no Rio de Janeiro. Seguindo as pistas pensadas por seupai adotivo para que ela conhecesse as próprias origens, logo Maia descobreque sua história se conecta com a de Izabela e que as decisões de ambasespelham anseios que o tempo não foi capaz de calar.

Com total domínio da narrativa, Lucinda Riley captura o leitor na históriadessas duas mulheres afastadas pelo tempo, mas que se veem obrigadas afazer escolhas que vão definir suas vidas para sempre.

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A irmã da tempestade

Na Noruega do fim do século XIX, a grande novidade da música erudita é asuíte Peer Gynt, do maior compositor do país. Anna Landvik, uma cantorarecém-descoberta no interior, torna-se a grande sensação da capital aofascinar as plateias com sua voz cristalina, cantando a história de uma mulherdisposta a esperar pela volta do amado, um homem de má reputação que aabandonou depois de seduzi-la.

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Cinco gerações depois, Ally D’Aplièse recebe uma carta escrita pelo paiadotivo, recém-falecido. No texto, ele menciona um romance biográficosobre Anna Landvik e sugere que a chave para o passado de Ally está naNoruega.

Então, deixando tudo para trás, ela decide embarcar numa jornada deautoconhecimento em busca de sua origem. Só não imagina as surpresas queo destino lhe reservou...

Com sensibilidade e uma trama bem construída, Lucinda Riley guia o leitorpelo mundo da música e o faz testemunhar as alegrias e angústias de umamulher em busca de si mesma e de seu lugar no mundo.

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A irmã da sombra

Para Flora MacNichol, Esthwaite Hall é o lugar mais perfeito em todo o reinode Eduardo VII: cercado pela natureza, tem recantos isolados para seusmomentos de contemplação e cenários ideais para seus desenhos talentosos.

Flora aprecia essa solidão, certa de que viverá reclusa e solteira, até que seuspais resolvem enviá-la a Londres para trabalhar. De repente, nessa nova

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jornada, a jovem se vê dividida entre o amor por um homem e o dever paracom os parentes e sente-se como um peão num jogo em que todos conhecemas regras, menos ela.

Um século depois, Estrela D’Aplièse tem a mesma sensação ao seguir aspistas deixadas pelo pai adotivo. À medida que conhece a família Forbes-Vaughan, que administra uma antiga livraria londrina, ela percebe que hámuitos segredos a desvelar sobre as próprias origens e sobre seus novosamigos.

Com requintes de detalhes históricos e uma trama apaixonante, Lucinda Rileymais uma vez cria personagens comoventes e destemidos que levarão o leitorpor uma viagem de gerações.

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CONHEÇA OUTRO LIVRO DA AUTORA A árvore dos anjos Trinta anosse passaram desde que Greta deixou de morar no solar -

Marchmont, uma bela e majestosa residência na região rural do País de Gales.

A convite de seu velho amigo David, ela decide retornar ao lugar paracomemorar o Natal. Porém, devido a um acidente de carro, Greta não temmais lembranças da época em que vivia na propriedade, assim como de boaparte de seu passado.

Durante uma caminhada pela paisagem invernal de Marchmont, ela encontrauma sepultura no bosque, e a inscrição na lápide coberta de neve se torna afagulha que a ajudará a recuperar a memória.

Contudo, relembrar o passado também significa reviver segredos dolorosos emuito bem guardados, como o motivo para Greta ter fugido do solar, quemela era antes do acidente e o que aconteceu com sua filha, Cheska, uma jovemde beleza angelical... mas que esconde um lado sombrio.

Da aclamada autora da série As Sete Irmãs, A árvore dos anjos é uma históriatocante sobre amores e perdas, sobre como nossas escolhas de vida podemtanto definir quem somos como permitir um novo começo.

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Sumário

Créditos

Personagens

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Kitty

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Ceci

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Broome

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Ceci

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Kitty

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Broome

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Never Never

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Ceci

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Tiggy

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Nota da autora

Agradecimentos

Bibliografia

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