DADOS DE ODINRIGHT · 2020. 3. 22. · “A terra dos meninos pelados” recebeu o Prêmio de...
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ApresentaçãoVocêjáreparoucomonemsempreestamossatisfeitoscomamaneiracomo
somos?Senossoscabelossãoencaracolados,gostaríamosquefossemlisos;sesão lisos, gostaríamos de ter cachos. Se temos olhos escuros, gostaríamos quefossemclaros;sesãoclaros,invejamososqueostêmescuros.Sesomosmuitoaltos,gostaríamosdesermaisbaixos;sebaixos,desejaríamosseraltos.
Muitasvezesnosidentificamosenosaproximamosdaquelesqueseparecemmais conosco no gosto, nas afinidades... Por isso, procuramos nossos pares:aquelesdosquaisgostamosdeestarperto,aquelesdequemdesejamosreceberafeto.
Nestahistóriafantástica,“Aterradosmeninospelados”,GracilianoRamosaborda esse assunto fundamental na nossa vida: o que é ser diferente?Precisamosseriguaisaosoutrosparasermosaceitos?Asdiferençaspodemnosseparar,criandoconflitos?
Você pode imaginar uma história com um anão que adora chorar e ummenino sardento que quer pintar todomundo? Já sobre amenina Caralâmpianemvamosfalar,vocêvaidescobrirlendoahistóriaeconhecendotodososseuspersonagens. Você vai gostar do Raimundo e de ir com ele até “A terra dosmeninospelados”.
Dapróximavezquealguémdisserquevocêédiferenteouvocêconhecerumamigodiferente,poderáentenderoquefazcadaumdenósserdiferenteevaiacharmuitolegal!
OSEDITORES
ConhecendooescritorGraciliano Ramos de Oliveira nasceu em 27 de outubro de 1892, em
Quebrângulo,Alagoas.CriadonaFazendaPintadinho,nosertãodePernambuco,aos sete anos de idade ingressou no internato Alagoano, em Viçosa, e alipublicou sua primeira obra: o conto "Pequeno pedinte", no jornalzinho “ODilúculo”(quesignificaalvorada)sobassinaturadeG.Ramos.
Em1905,GracilianofoiparaMaceió,sendomatriculadonoColégioQuinzedeMarço.Sobopseudônimo“AlmeidaCunha”—umdoshábitosdoescritoreraaadoçãodepseudônimos—,publicouosoneto“Céptico”(cujagrafiaatualé“cético”esignifica“descrente”).
Ao completar dezoito anos, foi para “Palmeira dos Índios”, em Alagoas,ondepassouaresidir,ajudandoopaiemumapequenalojadetecidos.
Entre 1914 e 1915, então no Rio de Janeiro, trabalhou como revisor nosjornais“CorreiodaManhã,ATarde”e“OSéculo”,sobasiniciaisR.O.(RamosdeOliveira).VoltouaPalmeiradosíndiosondeváriosdeseusfamiliareshaviammorridonumsurtodepestebubônica.
Em7de janeirode1928,GracilianoassumiuaprefeituradePalmeiradosíndios,experiênciaquelheofereceumaterialparaoprimeiroromance,“Caetés”,publicadoem1933.Em1930,renunciouaocargo,sendo,emseguida,nomeadodiretordaImprensaOficialdoEstado,deondesedemitiuemdezembrode1931pormotivospolíticos.
Noano seguinte, começoua colocarnopapel seu segundo romance, “SãoBernardo”, em boa parte escrito na sacristia da igrejaMatriz de Palmeira dosíndios.Em1933,foinomeadoDiretordeInstruçãoPúblicadeAlagoas—cargohojecorrespondenteaodeSecretáriodeEstadodaEducação—,permanecendoaté 1936. Suas idéias políticas, consideradas na época "extremistas", fizeramcomquefossedetidoepreso,semprocessoregular,emváriospresídiosdoRiode Janeiro. Seu drama e dos companheiros de cadeia foram relatados em“Memóriasdocárcere”,publicadopostumamenteem1953.
“Angústia”, lançadoem1936,éconsideradooromancemaiscomplexodeGracilianoRamos,emqueoautorretrataacidadedeMaceiódaépoca.
“A terra dosmeninos pelados”, obra escrita exclusivamente para crianças,foiterminadanosúltimosanosdadécadade30,juntamentecomashistóriasde“Alexandre e outros heróis” e “Pequena História da República”. “A terra dosmeninos pelados” recebeu o Prêmio de Literatura Infantil, concedido pelo
Ministério da Educação, em 1937. Em 1938 o autor escreveu o livro que setornousuaobra-prima:“Vidassecas”,seuquartoeúltimoromance,voltadoparaodramasocialegeográficodesuaregião—oNordeste.
GracilianoRamos—oMestreGraça,comoeracarinhosamentetratado—morreunoRiodeJaneiro,nodia20demarçode1953.
CapítuloUm
Haviaummeninodiferentedosoutrosmeninos.Tinhaoolhodireitopreto,oesquerdoazuleacabeçapelada.Osvizinhosmangavamdeleegritavam:—Ópelado!
Tanto gritaram que ele se acostumou, achou o apelido certo, deu para seassinaracarvão,nasparedes:Dr.RaimundoPelado.Eradebomgênioenãosezangava;masosgarotosdosarredoresfugiamaovê-lo,escondiam-sepordetrásdas árvores da rua,mudavam a voz e perguntavam que fim tinham levado oscabelos dele. Raimundo entristecia e fechava o olho direito. Quando oaperreavamdemais,aborrecia-se,fechavaoolhoesquerdo.Eacaraficavatodaescura.
Nãotendocomquementender-se,RaimundoPeladofalavasó,eosoutrospensavamqueeleestavamalucando.
Estava nada! Conversava sozinho e desenhava na calçada coisasmaravilhosasdopaísdeTatipirun,ondenãohácabeloseaspessoastêmumolhopretoeoutroazul.
CapítuloDois
Umdiaemqueelepreparava,comareiamolhada,aserradeTaquaritueorio das Sete Cabeças, ouviu os gritos dosmeninos escondidos por detrás dasárvoresesentiuumbaquenocoração.
—Quemraspouacabeçadele?perguntouomolequedotabuleiro.—Comobotaramosolhosdeduascriaturasnumacara?berrouoitalianinho
daesquina.—Eramelhorquemedeixassemquieto,disseRaimundobaixinho.Encolheu-se e fechou o olho direito. Em seguida, foi fechando o olho
esquerdo,nãoenxergoumaisarua.Asvozesdosmolequesdesapareceram,sóseouviaacantigadascigarras.Afinalascigarrassecalaram.
Raimundo levantou-se, entrou em casa, atravessou o quintal e ganhou omorro.AícomeçaramasurgirascoisasestranhasquehánaterradeTatipirun,coisas que ele tinha adivinhado, mas nunca tinha visto. Sentiu uma grande
surpresaaonotarqueTatipirunficavaalipertodecasa.Foiandandonaladeira,masnãoprecisavasubir: enquantocaminhava,omonte iabaixando,baixando,aplanava-secomoumafolhadepapel.Eocaminho,cheiodecurvas,estirava-secomo uma linha. Depois que ele passava, a ladeira tornava a empinar-se e aestradaseenchiadevoltasnovamente.
CapítuloTrês
— Querem ver que isto por aqui já é a serra de Taquaritu? pensouRaimundo.
—Comoéquevocêsabe?roncouumautomóvelpertodele.O pequeno voltou-se assustado e quis desviar-se, mas não teve tempo. O
automóvelestavaaliemcima,peganãopega.Eraumcarroesquisito:emvezdefaróis,tinhadoisolhosgrandes,umazul,outropreto.
—Estoufrito,suspirouoviajanteesmorecendo.Mas o automóvel piscou o olho preto e animou-o comum riso grosso de
buzina:—Deixedebesteira,seuRaimundo.EmTatipirunnósnãoatropelamosninguém.
Levantouasrodasdafrente,armouumsalto,passouporcimadacabeçadomenino,foicaircinqüentametrosadianteecontinuouarodarfonfonando.Umalaranjeiraqueestavanomeiodaestradaafastou-separadeixarapassagemlivreedissetodaamável:—Fazfavor.
—Nãoseincomode,agradeceuopequeno.Asenhoraémuitoeducada.—Tudoaquiéassim,respondeualaranjeira.—Estásevendo.Apropósito,porqueéqueasenhoranãotemespinhos?—EmTatipirunninguémusaespinhos,bradoualaranjeiraofendida.Como
sefazsemelhanteperguntaaumaplantadecente?—Équesoudefora,gemeuRaimundoenvergonhado.Nunca andei por estas bandas.A senhoramedesculpe.Naminha terra os
indivíduosdesuafamíliatêmespinhos.—Aquieraassimantigamente, explicouaárvore.Agoraoscostumes são
outros. Hoje em dia, o único sujeito que ainda conserva esses instrumentosperfuranteséoespinheiro-bravo,umtiposelvagem,demausbofes.Conhece-o?
—Eunãosenhora.Nãoconheçoninguémporestazona.—Ébomnãoconhecer.Aceitaumalaranja?—Seasenhoraquiserdar,euaceito.
A árvore baixou um ramo e entregou ao pirralho uma laranja madura egrande.
—Muitoobrigado,donaLaranjeira.Asenhoraéumapessoadireita.Adeus!Temabondadedemeensinarocaminho?
—Éessemesmo.Váseguindosempre.Todososcaminhossãocertos.—Euqueriaverseencontravaosmeninospelados.—Encontra.Váseguindo.Andamporaí.—Unsquetêmumolhoazuleoutropreto?—Semdúvida.Todagentetemumolhoazuleoutropreto.—Poisatélogo,donaLaranjeira.Passebem.—Divirta-se.
CapítuloQuatro
Raimundo continuou a caminhada, chupando a laranja e escutando ascigarras,umascigarrasgraúdasquepassavamsobreenormesdiscosdeeletrola.Osdiscosgiravam,soltosnoar,ascigarrasnãodescansavam—ehaviaemtodaa parte músicas estranhas, como nunca ninguém ouviu. Aranhas vermelhasbalançavam-seem teiasqueseestendiamentreosgalhos, teiasbrancas,azuis,amarelas,verdes,roxas,cordasnuvensdocéuecordofundodomar.Aranhasemquantidade.Osdiscosmoviam-se,sombrasredondasprojetavam-senochão,asteiasagitavam-secomoredes.
Raimundo deixou a serra de Taquaritu e chegou à beira do rio das SeteCabeças, onde se reuniam os meninos pelados, bem uns quinhentos, alvos eescuros,grandesepequenos,muitodiferentesunsdosoutros.Mas todoseramabsolutamentecalvos,tinhamumolhopretoeoutroazul.
CapítuloCinco
Oviajanterondouporaliunsminutos,receosodepuxarconversa,pensandonos garotos que zombavam dele na rua. Foi-se chegando e sentou-se numapedra,queseendireitoupararecebê-lo.Umrapazinhoaproximou-se,examinou-lhe,admirado,aroupaeossapatos.Todosaliestavamdescalçosecobertosdepanosbrancos, azuis, amarelos,verdes, roxos, cordasnuvensdocéue cordofundodomar,inteiramenteiguaisàsteiasqueasaranhasvermelhasfabricavam.
—EuqueriasaberseistoaquiéopaísdeTatipirun,começouRaimundo.—Naturalmente,respondeuooutro.Dondevemvocê?Raimundoinventouumnomeparaacidadedelequeficouimportante:—VenhodeCambacará.Muitolonge.—Jáouvimosfalar,declarouorapaz.Ficaalémdaserra,nãoéisto?—Éissomesmo.Umaterradegentefeia,cabeluda,comolhosdeumacor
só.Fizboaviagemetivealgumasaventuras.—EncontrouaCaralâmpia?—Éumalaranjeira?—Quelaranjeira!Émenina.— Como ele é bobo! gritaram todos rindo e dançando. Pensa que a
Caralâmpiaélaranjeira.
CapítuloSeis
Raimundolevantou-se trombudoesaiuàspressas, tãoencabuladoquenãoenxergouorio. Iacaindodentrodele,masasduasmargensseaproximaram,aágua desapareceu, e o menino com um passo chegou ao outro lado, onde seescondeupordetrásdumtronco.Aterraseabriudenovo,acorrentezatornouaaparecer,fazendoumbarulhogrande.
—Porqueéquevocêseesconde?perguntouotroncobaixinho.Estácommedo?
— Não senhor. É que eles caçoaram de mim porque eu não conheço aCaralâmpia.
Otroncosoltouumarisadaepilheriou:—Deixedetolice,criatura.Vocêseafogandoempoucaágua!Ascrianças
estavambrincando.Éumagenteboa.—Sempreouvidizerisso.Masdebicaramcomigoporqueeunãoconheçoa
Caralâmpia.—Bobagem.Deixedemelindres.—Émesmo, concordouRaimundo.Eupensavanosmolequesque faziam
troçademim,emCambacará.Osenhorestádescansando,hein?—É.Estouaposentado,jávividemais.Raimundolevantou-se:—Bem,seuTronco.Euvouandando.— Espera aí. Um instante. Quero apresentá-lo à aranha vermelha, amiga
velhaquemevisitasempre.Estáaqui,vizinha.Esterapazénossohóspede.
CapítuloSete
A aranha vermelha balançou-se no fio, espiando o menino por todos oslados.O fio se estirou até queobichinho alcançouo chão.Raimundo fezumcumprimento:—Boatarde,donaAranha.Comovaiasenhora?
—Assim,assim,respondeuavisitante.Perdoeacuriosidade.Porqueéquevocêpõeessestroçosemcimadocorpo?
—Quetroços?Aroupa?Poiseuhaviadeandarnu,donaAranha?Asenhoranãoestávendoqueéimpossível?
—Não é isso, filho de Deus. Esses arreios que você usa são medonhos.Tenhoaliumastúnicasnogalhoondemoro.Muitobonitas.Escolhauma.
Raimundochegou-seàárvorepróximaeexaminoudesconfiadounsvestidosfeitos daquele tecido que as aranhas vermelhas preparam.Apalpou a fazenda,tentourasgá-la,chegou-aaorostoparaverseeratransparente.Nãoera.
—Eunemseisepodereivestiristo,começouhesitando.Nãoacredito...—Queéquevocênãoacredita?perguntouaproprietáriadaalfaiataria.—Asenhoramedesculpa,cochichouRaimundo.Nãoacreditoqueagente
possavestirroupadeteiadearanha.— Que teia de aranha! rosnou o tronco. Isso é seda e da boa. Aceite o
presentedamoça.—Entãomuitoobrigado,gaguejouopirralho.Vouexperimentar.
CapítuloOito
Escolheuumatúnicaazul,escondeu-senomatoe,passadosminutos,tornouamostrar-sevestidocomooshabitantesdeTatipirun.Descalçou-seesentiunospés a frescura e amaciez da relva.Lá emcimaos enormesdiscos de eletrolagiravam; as cigarras chiavammúsicas em cima deles,músicas como ninguémouviu;sombrasredondasespalhavam-senochão.
— Este lugar é ótimo, suspirou Raimundo.Mas acho que preciso voltar.Precisoestudaraminhaliçãodegeografia.
NistoouviuumaalgazarraeviuatravésdosramosapopulaçãodeTatipirun
correndoparaele:—CadêomeninoqueveiodeCambacará?Erammilharesdecriaturasmiúdas,decincoadezanos, todascobertasde
teiasdearanha,descalças,umolhopretoeoutroazul,ascabeçaspeladasnuas.Nãohaviapessoasgrandes,naturalmente.
—CadêomeninoqueveiodeCambacará?—Quenegóciotêmcomigo?resmungouopequenoalarmado.Pareceuma
procissão.—Pareceum“meeting”,disseumarãquepuloudabeiradorio.—Pareceumteatro,cantouumpardal.Raimundopôs-searir:—Quepassarinhobesta!Elepensaqueteatroégente.Teatroécasa.—Euestoufalandonossujeitosqueestãodentrodoteatro,pipilouopardal.—Bem,issoéoutracantiga,concordouRaimundo.
CapítuloNove
—CadêomeninoqueveiodeCambacará?gritavaopovaréu.—Essatropanãosabegeografia,disseRaimundo.Cambacaránãoexiste.—Eporqueéquenãoexiste?perguntouarã.—Nãoexistenão,sinhaRã.Foiumnomequeeuinventei.—Poisfazdecontaqueexiste,ensinouabicha.Sempreexistiu.—Asenhoratemcerteza?—Naturalmente.—Entãoexiste.Arãfechouoolhopreto,abriuoazulefoidescansarnumapoçad'água.—CadêomeninoqueveiodeCambacará?—Estouaqui,pessoal,bradouRaimundo.Queéquehá?Oriosefechouderepenteeamultidãopassouporelenuminstante.Depois
asmargensseafastaram,aáguatornouaaparecer.—Queriointeressante!exclamouRaimundo.Deveterummaquinismopor
dentro.— Por que foi que você fugiu de nós? perguntou o rapazinho que tinha
faladosobreaCaralâmpia.—Espereaí.Eujádigo.Comoéoseunome?—Pirenco.—Quenomeengraçado!Pirenco!Nãoháninguémcomessenome.
—EusouPirenco,replicouooutro.— Pois sim. Não discutamos. Vamos ao caso do rio. Tem algum
maquinismopordentro?—Nãotemmaquinismonenhum,disseumagarotadetúnicaamarela.Todos
osriossãoassim.—Claro!concordouPirenco.EssaéaTalima.—Prazeremconhecê-la,Talima.Vocêébonita.—Eboa, interrompeuummenino sardento.Meiodesparafusada,masum
coraçãozinhodeaçúcar.AquelaéaSira.—Otroncomefalouemvocêstodos.Comovai,Sira?—Porquefoiquevocêfugiudagente?Raimundoficouacanhado,asorelhaspegandofogo:—Sei lá!Burrice. Julgueique estivessem troçandodemim.Eunão tinha
obrigaçãodeconheceraCaralâmpia.QueméaCaralâmpia?—Ondeandaráela?inquiriuosardento.—Sumiu-se,explicouTalima.Foiumameninaquevirouprincesa.—Caso triste, gemeuumacriaturamiúda, dedois palmos.Quandopenso
quepodeteracontecidoalgumadesgraça...
CapítuloDez
Talimabaixou-seeconsolouoanão:—Calaaboca,nanico.Nãohádesgraça.—Imaginemqueelaencontrouoespinheiro-bravoeespetouosdedos.—Encontrounada!—PodetercrescidoeidomoraremCambacará.— Não foi não, informou Raimundo. Não vi lá ninguém destas bandas.
Comoéafiguradela?—Éumameninapálida,altaemagra.—Princesa?—É.Sempretevejeitodeprincesa.Agoravirouprincesaelevousumiço.—Queinfelicidade!choramingouoanão.—Vamos procurar a Caralâmpia, convidou Talima. Deixe de choradeira,
nanico.—Jádeixei,murmurouoanãozinhoenxugandoosolhos.Saíramtodos,gritando,pedindoinformaçõesapausebichos.Osardentoia
devagar,distraído.PuxouRaimundoporumbraço:—Eutenhoumprojeto.—Estou receando que anoiteça, exclamouRaimundo. Se a noite pegar a
gente aqui no campo...Eramelhor entrar em casa e deixar aCaralâmpia paraamanhã.
—Omeuprojetoécurioso, insistiuosardento,masparecequeestepovonãomecompreende.
—Ésempreassim,disseRaimundo.Faltarámuitoparaosolsepôr?
CapítuloOnze
Oanãozinhobateunapernadele:—Nósnosesquecemosdeperguntarcomoéquevocêsechama.— Raimundo. Sou muito conhecido. Até os troncos, as laranjeiras e os
automóveismeconhecem.—Raimundoéumnomefeio,atalhouPirenco.—Muda-se,opinouoanão.
—EmCambacaráeumechamavaRaimundo.Eraomeunome.—Issonãotemimportância,decidiuTalima.FicasendoPirundo.—Pirundonãoquero.—EntãoéMundéu.—Tambémnãopresta.Mundéuéumageringonçadepegarbicho.—PoisficaRaimundomesmo.—Estádireito.Euqueriasabercomoagentesearranjadenoite.—Quenoite?—Anoite,aescuridão,issoquevemquandoosolsedeita.—Besteira! exclamouo anão.Umapessoa taluda afirmandoque o sol se
deita!Quemjáviusolsedeitar?—EssacoisaquechegaquandoaTerravira,emendouRaimundo.Anoite,
percebem?QuandoaTerraviraparaooutrolado.—Elevemcheiodefantasias,asseverouTalima.Escute,Fringo.ElecuidaqueaTerravira.
CapítuloDoze
Fringo,ummeninopreto,estirouobeiçoebocejou:—Ilusões.—Qualnada!Vira.EmCambacaráninguémignoraisto.Váláepergunte.
Viraparaumlado—tudoficanoclaro,agente,asárvores,asrãs,ospardais,osrioseasaranhas.Viraparaooutro lado—nãosevênada,éaquelepretume.Natural.Todososdiassedá.
—Éengano,interrompeuFringo.—Nãohánoite?—Háoquevocêestávendo.—Nãoescurece,osolnãomudadelugar...—Nadadisso.—Estábom.Precisoconsertaromeuestudodegeografia.Continuaramamarcha,andarammuito,enenhumanotíciadeCaralâmpia.O
solpermanecianomesmoponto,nomeiodocéu.Nemmanhãnemtarde.Umatemperaturaamena,invariável.
—Devehaverummaquinismoderelógioláporcima,calculouRaimundo.Vãoverqueeleperdeuacordaeparou.
—Querouviromeuprojeto?interrompeuosardento.
—Vamoslá,acedeuRaimundo.Masantesmetireumadúvida.Vocêsnãodescansamnunca?
—Descansamos,explicouooutro.Quandoagenteestáfatigada,deita-seefechaumolho.
—Oolhopretoouoazul?—Issoéconforme.Fecha-seumolho.Ooutroficaaberto,vendotudo.
CapítuloTreze
—Poiseuachoqueestáchegandoahoradevoltaredescansar.—Voltarparaonde?—Voltarparaabeiradorio,entraremcasa,dormir.—Nãovaleapena.Sequerverorio,étocarparaafrente.OriodasSete
Cabeças faz muitas curvas. Adiante aparece uma delas. Aqui nós nuncavoltamos.Voucontaromeuprojeto.
—Ébom.Conte.Masandandoàtoa,semdestino,comoéquevocêsentramemcasa?
—Entraremcoisanenhuma!Agentesedeitanochão.—Macio,realmente.Eascasas?—Nãoentendo.—PoisvouchamaroPirenco.Venhacá,seuPirenco.Ondeestãoascasas?Talimaencolheuosombros:—EleveiodeCambacarácheiodeidéiasextravagantes.—Perguntasinsuportáveis,acrescentouSira.Raimundoobservouosquatrocantos,nãoviunenhumaconstrução.—Estábem,nãoteimamos.Vocêsdormemnomato,comobichos.—Descansamosàsombradessasrodasquegiram,disseFringo.— Debaixo dos discos de eletrola. Sim senhor, bonitas casas. E quando
chove?—Quandochove?—Sim.Quandovemaágualádecima,vocêsnãoseensopam?—Nãoaconteceisso.Raimundoabriuabocaedeuumapancadanatesta:— Que lugar! Não faz calor nem frio, não há noite, não chove, os paus
conversam.Istoéumfimdemundo.
CapítuloQuatorze
—Querouviromeuprojeto?segredouomeninosardento.—Ah!sim.Ia-meesquecendo.Acabedepressa.—Euvouprincipiar.Olheaminhacara.Estácheiademanchas,nãoestá?—Paradizeraverdade,está.—Éfeiademaisassim?—Nãoémuitobonitanão.—Tambémacho.Nemfeianembonita.—Válá.Nemfeianembonita.Éumacara.—É.Umacaraassimassim.Tenhovistonaspoçasd'água.Omeuprojetoé
este:podíamosobrigartodaagenteatermanchasnorosto.Nãoficavabom?—Paraquê?—Ficavamaiscerto,ficavatudoigual.Raimundo parou sob um disco de eletrola, recordou os garotos que
mangavamdele.
CapítuloQuinze
A cigarra lá de cima interrompeu a cantiga, estirou a cabecinha. Era umacigarragordaetinhaumolhopreto,outroazul.
—Qualéasuaopinião?perguntouosardento.Raimundohesitouumminuto:—Nãoseinão.Elescaçoamdevocêporcausadasuacarapintada?—Não.Sãomuitoboaspessoas.Massetivessemmanchasnorosto,seriam
melhores.Aaranhavermelhadeuumbalançonofioechegouaodiscodeeletrola:—Quehistóriaéaquela?—Palavreadoà-toa,explicouadonadacasa.— À-toa nada! bradou o sardento. Cigarra e aranha não têm voto. Cada
macaco no seu galho. Isto é um assunto que interessa exclusivamente aosmeninos.
—Euaquirepresentoaindústriadostecidos,replicouaaranhaarregalandooolhopretoecerrandooazul.
—Eeusouartista,acrescentouacigarra.Palavreadoà-toa.
Raimundo esfregou as mãos, constrangido, olhou os discos e as teiascoloridasqueseagitavam.
— Parece que elas têm direito de opinar. São importantes, são umassabichonas.
—Direitodedizerbesteiras!resmungouosardento.—Nãosenhor.Acigarratemrazão.Palavreadoà-toa.—Entãovocêachaomeuprojetoruim?—Parafalarcomfranqueza,euacho.Nãoprestanão.Comoéquevocêvai
pintaressesmeninostodos?—Ficavamaiscerto.—Ficavanada!Elesnãodeixam.—Erabomquefossetudoigual.— Não senhor, que a gente não é rapadura. Eles não gostam de você?
Gostam.Nãogostamdoanão,doFringo?Estáaí.EmCambacaránãoéassim,aborrecem-meporcausadaminhacabeçapeladaedosmeusolhos.Tinhagraçaqueoanãoquisessereduzirosoutrosaotamanhodele.Comohaviadeser?
—Euseilá!rosnouosardentoamuado.Ocasodoanãoédiferente.Parecequeninguémmeentende.Vamosprocurarosoutros?
CapítuloDezesseis
Deixaram a artista e a representante da indústria dos tecidos, andaramcinqüenta passos e foram encontrar os meninos brincando na grama verde,fazendoumbarulhodesesperado.
—Istoéagradável,murmurouRaimundo.Tudoalegre,cheiodesaúde...Apropósito,ninguémadoeceemTatipirun,nãoéverdade?
—Adoececomo?—Julgoquevocêsnãovãoaodentista,nãosentemdordebarriga,nãotêm
sarampo.—Nadadisso.—Nãoenvelhecem.Sãosempremeninos.—Decerto.—Eujápresumia.Poisé,meucaro.Boaterra.Massetodosfossemcomoo
anãozinhoetivessemsardas,avidaseriaenjoada.Osardentopigarreou:—Édifícilagenteseentender.
Ascriançasdançavamecantavam,enfeitadasdeflores,agitandopalmas.—VivaaprincesaCaralâmpia!gritavam.VivaaprincesaCaralâmpia,que
levousumiçoeapareceuderepente.Caralâmpiaestavanomeiodobando,vestidanumatúnicaazuladacordas
nuvensdocéu,coroadaderosas,umbrochedevaga-lumenopeito,pulseirasdecobras-de-coral.
—Credoemcruz!gemeuRaimundo assombrado.Tire essa bicharia de cima do corpo,menina. Isso
morde.Ovaga-lumetremelicou,brilhantedeindignação:—Écomigo?—Nãosenhor,éconosco,informaramascobras.Aquiloéumselvagem.Na
terradeleascoisasvivasmordem.—VivaaCaralâmpia!repetiaamultidão.VivaaprincesaCaralâmpia!— Onde já se viu cobra servir de enfeite? suspirava Raimundo. Que
despropósito!—Deixedisso,criatura,aconselhouFringo,omeninopreto.Vocêseespanta
detudo.VenhafalarcomaCaralâmpia.—Euseiláfalarcomprincesa!exclamouRaimundoencabulado.—Elaéprincesadementira,explicouTalima.Éprincesaporquetemjeito
deprincesa.Veja,Caralâmpia.EsteéoPirundo,queveiodeCambacará.—Pirundonão.FicouestabelecidoqueeumechamoRaimundomesmo.—É.FicouestabelecidoqueelesechamaRaimundomesmo.—Aproxime-se,convidouCaralâmpia.
CapítuloDezessete
Ohóspedechegou-seaela,desconfiado,espiandoascobrinhascomorabodo olho. Curvou-se num salamaleque exagerado: — Como vai vossaprincesência?
—Princesênciaétolice,declarouPirenco.—Toliceéamarrarcobrasnosbraços, replicouRaimundo.Onde jáseviu
semelhantedisparate?—Acabemcomisso,ordenouCaralâmpia.Vamosdeixardeencrenca.Por
queéquenãopodehaverprincesência?Issoéumaarengabesta,Pirenco.Raimundobateupalmas:
—Apoiado.Seháexcelência,háprincesênciatambém.Estácerto.— Claro! concordou Talima. Se há Raimundo e Pirenco, há Pirundo
também.Pirundoestácerto.—Nãosenhora.Pirundoestáerrado.—Poisestá,concedeuTalima.— Está mesmo. Para que dizer que não está? triunfou Raimundo. Então
vocêéprincesa,hein?Comofoiquevocêvirouprincesa?—Virando,respondeuCaralâmpia.Agenteviraedesvira.— Logo vi, murmurou Raimundo. Pois é. Uma terramuito bonita a sua,
princesa Caralâmpia. Estou com vontade dememudar para aqui. Se eu vier,trago o meu gato. É um gato engraçado, diferente de vocês, com dois olhosverdes.Emedroso,temmedoderato.
—Comoéqueelesechama?perguntouaprincesa.—Nãotemnomenão.Maseuvoubotarumnomenele.—BotePirundo,sugeriuTalima.— Boto nada! Vou procurar um nome bonito na geografia. A propósito,
aquelerioquefechaémesmooriodasSeteCabeças?—Semdúvida,informouSira.—PorqueéqueelesechamariodasSeteCabeças?—Porquesechama.Sempresechamouassim.—Muitoobrigado.Eupodiabotaressenomenomeugato.Maselesótem
umacabeça.—Bobagem!exclamouPirenco.GatodasSeteCabeças!Quemjáviuisso?
BoteTatipirun.—Tatipirunébonito,murmurouaprincesa.— Pois fica sendo Tatipirun. Quando eu vier, trago Tatipirun. Ele vai
estranharemiarnoprincípio,depoisseacostuma.Vamosbrincardebandido?— Aqui ninguém conhece esse brinquedo não, respondeu Sira. Vamos
correr,saltar,dançar.—Issoécacete.—Poisvamosfazeroanãovirarpríncipe.—Nãodouparaissonão,protestouoanãozinho.Émelhorconversarcom
osbichos.Vamosprocurarumbichoquesaibahistóriascompridasebonitas.
CapítuloDezoito
Partiram. Caminharam bem meia légua e encontraram uma guaribacabeluda, que andava com as juntas perras, escorada num cajado, óculos nofocinho,acabeçapesadabalançando.Raimundoavizinhou-sedela,curioso:—Comoé,sinhaGuariba?Asenhora,comessacara,deveconhecerhistóriaantiga.Espicheunscasosdasuamocidade.
—Eunãotiveissonão,meufilho.Semprefuiassim.—Assimcorocaereumática?estranhouRaimundo.—Assimcomovocêsestãovendo.— Foi nada! A senhora antigamente era aprumada e vistosa. Sapeque aí
umasguerrasdoCarlosMagno.—Euseilá!Estouesquecida.Souumaguaribapaleolítica.—Paleoquê?—Lítica.AprincesaCaralâmpiaarrepiou-se:—Quebarbaridade!Elaestámaluca.—Nãoestánão,atalhouRaimundo.Meutiodizessasatrapalhadas.Éumhomemqueestudoumuito,
andounaarcadeNoéetemóculos.Direitinhoaguariba.Édotempodelaeusapalavrõesdifíceis.
—Tragatambémessequandosemudarparaaqui,lembrouTalima.—Elenãovemnão.Enãovaleapena.Éumsujeitoranzinzaepaleocomo?—Lítico,respondeuaguariba.—Issomesmo.Nãovemnão.Eleseenjoademeninos,sógostadelivros.
Umtiposabidocomonuncaseviu.—Não serve, decidiu Talima. Tem a palavra, sinha Guariba. Conte uma
história.
CapítuloDezenove
—Euconto,balbuciouobichoacocorando-se.Foiumdiaummeninoqueficou pequeno, pequeno, até virar passarinho. Ficou mais pequeno e virouaranha.Depoisviroumosquitoesaiuvoando,voando,voando,voando...
—Edepois?perguntouSira.Aguaribavelhabalançavaacabeçatremendoerepetia:—Voando,voando,voando...Fringoimpacientou-se:
—Queamolação!Elapegounosono.Tinhapegadomesmo.Efalavadormindo,numagemedeira:—Voando,voando,voando...—Vamosembora,pessoal,convidouSira.Elanãoacabahoje.Obichocomeçouachorar.—Souumaguaribapaleo...— Já sabemos, interrompeu Caralâmpia. Toca para frente, povo. Que
significaráaquelenomeencrencado?—Vou perguntar ameu tio, prometeuRaimundo.Quando eu voltar aqui,
explicoavocês.
CapítuloVinteAguaribapaleolíticaficoutiritando,acocorada,agemer.— Dorminhoca! rosnou Sira. Que teria acontecido ao menino que virou
mosquito?—Parecequetornouavirarmenino,disseFringo.—Nãodácerto,gritouoanãozinho.Émelhorcontinuarmosquito.—Vamosconsultaraguariba?—Nãoconvém,interveioaprincesaCaralâmpia.Elaperdeuabola.Voando,
voando...Nuncavianimaltãoidiota.—Nãosenhora,protestouRaimundo.Éumbichosabido.Meutioéaquilo
mesmo, sabidoque fazmedo.Masnão faladireito.Resmunga.Eengancha-senasperguntasmaisfáceis.Agentequersaberumacoisa,eelesesaicomumascompridezas, que dão sono. Vai resmungando, resmungando e muda no fim,acabadizendoexatamenteocontráriodoquedissenoprincípio.
— Isso é insuportável, bradou Pirenco. Não tolero conversa fiada, panosmornos.
—Nemeu,concordouTalima.Pãopão,queijoqueijo.—Precisovoltareestudaraminhaliçãodegeografia,suspirouRaimundo.—Demoreumpouco,pediuTalima.VamosouviraCaralâmpia.Poronde
andouvocêquandoesteveperdida,Caralâmpia?ACaralâmpiacomeçouumahistóriasempénemcabeça:—Andeinumaterradiferentedasoutras,umaterraondeasárvorescrescem
comasfolhasparabaixoeasraízesparacima.Asaranhassãodotamanhodegente,easpessoasdotamanhodearanhas.
—Quemmandalá?Sãoasaranhasouagente?perguntouRaimundo.—Nãomeinterrompa,respondeuCaralâmpia.Osgurisqueeuvitêmduas
cabeças,cadaumacomquatroolhos,doisnafrenteedoisatrás.—Quefeiúra!exclamouPirenco.—Nãosenhor,sãomuitobonitos.Têmumabocanopeito,cincobraçose
umapernasó.—Éimpossível,atalhouFringo.Assimelesnãocaminham.Sóseforcom
muleta.— Que ignorância! tornou Caralâmpia. Caminham perfeitamente sem
muleta,caminhamassim,olhe,assim.Pôs-seasaltarnumpé:—Paraqueduaspernas?Agentepodiavivermuitobemcomumapernasó.
Tentaramandarcomumpé,mascansaramlogoesentaram-senagrama.
CapítuloVinteeUm—Precisovoltar,murmurouRaimundo.Oanãozinhochegou-seaeleesoprou-lheaoouvido:—Tudoaquiloémentira.EstaCaralâmpiamente!...Siraagastou-se:—Mentenada!Porqueéquenãoexistempessoasdiferentesdenós?Sehá
criaturascomduaspernaseumacabeça,podehaveroutrascomduascabeçaseumaperna.Esteanãoéburro.
— Estão mexendo comigo, choramingou o anãozinho. Mexem comigoporqueeusoumiúdo.
AprincesaCaralâmpiapuxou-oporumbraço,deitou-onocoloeembalou-o:
—Nãochore,nanico.Naterraqueeuvisiteininguémchora,apesardetodosterem oito olhos, quatro azuis e quatro pretos. As árvores têm as raízes paracima, as folhas para baixo e dão frutas no chão. Os frutos são enormes, aspessoassãocomoasaranhas.
—Ondeficaessaterra,Caralâmpia?perguntouosardento.—Nãomuitolonge,nofimdomundo,respondeuaprincesa.Agentechega
lávoando.— Como o mosquito da guariba, interrompeu o anão. Desconfio disso.
Gentenãovoa.—Oranãovoa!exclamouRaimundo.EmCambacaráoshomensvoam.—Voamdeverdadeoudementira?inquiriuTalima.— Voam de verdade. Antigamente não voavam, mas hoje andam pelas
nuvens em aviões, uns troços de metal que fazem zum... Certamente aCaralâmpiaviajounumdeles.
—Nãofoinão,disseCaralâmpia.Entreinumautomóvel.—Osautomóveisaquiandampelosares,eusei,confirmouRaimundo.—Poisé.Entrei,mexinumaalavanca,oautomóvelsubiu,subiu,passoua
lua,osoleasestrelas.—Echegouàterradosmeninosdumapernasó,grunhiuoanãozinho.Não
creio.— Coitado, murmurou Talima. Este anão é um infeliz. Não faça caso,
Pirundo.
—Asenhorametrocasempreonome.EujálhedisseummilhãodevezesquemechamoRaimundo.
CapítuloVinteeDois—Issomesmo.Fiquecomagente.Aquiétãobom...—Não posso, gemeuRaimundo. Eu queria ficar com vocês,mas preciso
estudaraminhaliçãodegeografia.—Énecessário?—Seilá!Dizemqueénecessário.Parecequeénecessário.Enfim...nãosei.AíRaimundoentristeceueenxugouosolhos:—É uma obrigação. Vou-me embora. Vou commuita saudade,mas vou.
Tenho saudade de vocês todos, as pessoasmelhores que já encontrei.Vou-meembora.
—Volteparaviverconosco,pediuCaralâmpia.—É, pode ser. Se acertar o caminho, eu volto. E trago omeu gato para
vocês verem. Não deixe de ser princesa não, Caralâmpia. Você fica bonitavestida de princesa. Quando eu estiver naminha terra, hei deme lembrar daprincesaCaralâmpia,quetemumbrochedevaga-lumeepulseirasdecobras-de-coral. E direi aos outros meninos que em Tatipirun as cobras não mordem eservem para enfeitar os braços das princesas. Vão pensar que é mentira,zombarãodosmeusolhosedaminhacabeçapelada.EuentãoensinareiatodosocaminhodeTatipirun,direiqueaquiasladeirasseabaixameosriossefechamparaagentepassar.
Raimundoafastou-selentoeprocurouorientar-se.Osoutrososeguiramdelonge, calados.Andaram até o rio.Lá estavam àmargem, perto do tronco, ossapatosearoupa.
O garoto escondeu-se no mato, vestiu-se de novo, tornou a pendurar noramoatúnicaazulqueaaranhalhetinhadado.
—Devolução?perguntouobichinho.—É,donaAranha.Muitoobrigado,nãoprecisomaisdela.—Quer dizer que volta paraCambacará, não é? coaxou a rã na beira da
poça.—Volto,simsenhora.Voltocompena,masvolto.—Faztolice,exclamouotronco.Ondevaiacharcompanheiroscomoesses
queháporaqui?—Nãoachonão, seuTronco.Seiperfeitamentequenãoacho.Mas tenho
obrigações,entende?Precisoestudaraminhaliçãodegeografia.Adeus.
CapítuloVinteeTrêsAtravessou o rio com um passo. As crianças peladas foram encontrá-lo.
Caminharam algum tempo e chegaram à serra de Taquaritu. Aí Raimundo sedespediu:— Adeus, meus amigos. Lembrem-se de mim uma ou outra vez,quandonãotiverembrinquedos,quandoouviremasconversasdascigarrascomasaranhas.Fiqueigostandomuitodelas,fiqueigostandodevocêstodos.Talvezeunãovolte.Vouensinarocaminhoaosoutros,falareiemtudoisto,naserradeTaquaritu, no rio das Sete Cabeças, nas laranjeiras, nos troncos, nas rãs, nospardais e na guariba velha, pobrezinha, que não se lembra das coisas e ficarepetindoumpedaçodehistória.Querobemavocês.VouensinarocaminhodeTatipirun aos meninos da minha terra, mas talvez eu mesmome perca e nãoacertemaisocaminho.Nãotornareiaveraserraquesebaixa,orioquesefechapara a gente passar, as árvores que oferecem frutos aos meninos, as aranhasvermelhasquetecemessastúnicasbonitas.Nãovoltarei.Maspensareiemvocêstodos,noPirencoenoFringo,noanãozinhoenosardento,naSira,naTalima,naCaralâmpia.Vocêmetrocasempreonome,Talima.Eeuquerobemavocê,andoaté com vontade de virar Pirundo, para não teimarmos se ainda nos virmos.Lembre-sedoPirundo,Talima.Longedaqui,fechareiosolhosevereiacoroaderosasnacabeçadaCaralâmpia,obrochedevaga-lume,aspulseirasdecobras-de-coral. Adeus, meus amigos. Que fim terá levado o menino da guariba?Quandoummosquitozumbirpertodemim,pensareinele.Podeserqueestejazumbindo o menino que a guariba deixou voando. Pobre da guariba. Estábalançandoacabeça,falandosó,enãoacorda.Euvoltoumdia,venhoconversarcom ela, ouvir o resto da história do menino que virou mosquito. E hei deencontraraCaralâmpiacomasmesmasrosasnacabeça,ovaga-lumeacesonopeito, ascobras-de-coralnosbraços.Vouprestar atençãoaocaminhoparanãome perder quando voltar. E trarei unsmeninos comigo.Osmeninosmelhoresqueeuconhecervirãocomigo.Seelesnãoquiseremvir,tragoomeugato,queémanso e há de gostar de vocês. Adeus, seu Fringo.Adeus, seu Pirenco. Sira,Caralâmpia,todos,adeus!Nãoéprecisoquemeacompanhem.Muitoobrigado,nãoseincomodem.Euacertoocaminho.Adeus!Lembre-sedoPirundo,Talima.
RaimundocomeçouadesceraserradeTaquaritu.Aladeiraseaplanava.Equandoelepassava,tornavaainclinar-se.Caminhoumuito,olhouparatrásenãoenxergouosmeninosquetinhamficadoláemcima.Iatãodistraído,comtantapena,quenãoviualaranjeiranomeiodaestrada.Alaranjeiraseafastou,deixouapassagemlivreeguardousilêncioparanãointerromperospensamentosdele.
Agora Raimundo estava no morro conhecido, perto de casa. Foi-sechegando,muitodevagar.Atravessouoquintal,atravessouo jardimepisounacalçada.
As cigarras chiavam entre as folhas das árvores. E as crianças queembirravamcomelebrincavamnarua.
FIM
FalandodeNovela
Vocêacaboude lerovolumedaColeção“LiteraturaemMinhaCasa”quetrazanovela“Terradosmeninospelados”,deGracilianoRamos.Seráqueestanovela tem alguma relação com as novelas apresentadas pela televisão? Nofundo, são parecidas, pois são narrativas ordenadas, cheias de fatos humanosfictícios.Sãocomonovelosdelinha,quevãosedesenrolando,emcapítulos,ouempartes,evãocontandosobreoenvolvimentodaspersonagens,osconflitoseassoluções.
Contudo, você vai ver com a leitura do glossário que a novela é umamodalidadeliterária,maislongaqueocontoemaiscurtaqueoromance.
Esperamos que você possa tirar proveito das informações sobre algunselementosdaliteraturaquereservamosparaestapartefinaldaobra.
—A“antagonista”: é a personagem que atua como adversária ou opositora da
personagemprincipal.
—E“enredo”:conjuntodefatosquecompõemaaçãodeumaobradeficção.“escritor”:profissionalquesededicaacomposiçõesdetextosliterários.
—F“ficção”:algoimaginário,fantasioso,criado.Sãoconsideradosliteraturade
ficçãooconto,anovelaeoromance.
—N“narrador”:aquelequenarrafatosoueventosemumanarrativa.Éumdos
componentesdeumaobraliterária,podendoparticiparounãodoenredo.“novela”: expressão literária apresentada em forma de narração curta e
ordenada,quesegueumenredo.“novelista”:quemescrevenovela.
—P“prosa”: é o texto livre, que não vem escrito em versos. É uma obra
organizadaemparágrafos,comumtextoqueocupaalinhaatéofim.“prosador”:pessoaqueescreveemprosa.“protagonista”:éapersonagemprincipaldeumahistória,queéocentrodos
conflitos.Podeserumserhumano,animalouobjeto.
LembrançadeGracilianoRamos
ConheciGracilianoRamosemMaceió,quandoeueramenino.AsuamãodeSecretáriodaEducaçãodoEstadodeAlagoaspousou,numgestodeinusitadocarinho e discreto estímulo, emminha cabeça de primeiro da aula, no GrupoEscolarDr.PedroII.Foiomeubatismoliterário.AovirparaoRio,em1943,eleabriuaportadesuacasaparamim,estabelecendo-se,então,umconvívioquedurou até a sua morte. Foi e era um grande escritor, mestre de sua arteirrepreensível, que trouxe para o Brasil e a língua portuguesa as históriasagoniadasdosertãoalagoano,odramaanônimoepungentedasvidassecaseohorrordosquesãoencarceradossemculpa.Sualiçãodevidaéperpétua.Hojeeleéumdosnossosclássicos—istoé,umescritorindispensávelquedeveserlidonasescolaseàvidainteira.
LêdoIvo(daAcademiaBrasileiradeLetras)