Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito...

320

Transcript of Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito...

Page 1: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.
Page 2: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Encontro de Internacionalização do CONPEDI (1. : 2015 : Barcelona, ES) I Encontro de Internacionalização do CONPEDI / organizadores: Jordi Garcia

Viña, Raymundo Juliano Feitosa. – Barcelona : Ediciones Laborum, 2015. V. 10

Inclui bibliografia ISBN (Internacional): 978-84-92602-86-5 Depósito legal : MU 859-2015 Tema: Atores do desenvolvimento econômico, político e social diante do Direito

do século XXI

1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Congressos. 2. Direito do trabalho. 3. Seguridade social I. Viña, Jordi Garcia. II. Feitosa, Raymundo Juliano. III. Título.

CDU: 34

Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito

Todos os direitos reservados e protegidos.Nenhuma parte deste livro, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores.

Produção Editorial: Equipe ConpediDiagramação: Marcos JundurianCapa: Elisa Medeiros e Marcos Jundurian

Impressão:Nova Letra Gráfica e Editora Ltda.CNPJ. nº 83.061.234/0001-76

Editora: Ediciones Laborum, S.L – CIF B – 30585343Deposito legal de la colección: MU 859-2015

1º Impressão – 2015

EDICIONES LABORUM, S. L.CIF B-30585343

Avda. Gutiérrez Mellado, 9 - 3º -21- Edif. CentrofamaTeléfono 968 88 21 81 – Fax 968 88 70 40

e-mail: [email protected]

Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071

E56p

Page 3: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

3

Diretoria - Conpedi

Presidente

Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa - UFRN

Vice-presidente Sul

Prof. Dr. José Alcebiades de Oliveira Junior - UFRGS

Vice-presidente Sudeste

Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim - UCAM

Vice-presidente Nordeste

Profa. Dra. Gina Vidal Marcílio Pompeu - UNIFOR

Vice-presidente Norte/Centro

Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes - IDP

Secretário Executivo

Prof. Dr. Orides Mezzaroba - UFSC

Secretário Adjunto

Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto - Mackenzie

Conselho Fiscal

Prof. Dr. José Querino Tavares Neto - UFG /PUC PR

Prof. Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Caldas - PUC SP

Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches - UNINOVE

Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva - UFS (suplente)

Prof. Dr. Paulo Roberto Lyrio Pimenta - UFBA (suplente)

Representante Discente

Mestrando Caio Augusto Souza Lara - UFMG (titular)

Secretarias

(Diretor de Informática)

Prof. Dr. Aires José Rover - UFSC

(Diretor de Relações com a Graduação)

Prof. Dr. Alexandre Walmott Borgs - UFU

Page 4: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

4

(Diretor de Relações Internacionais)

Prof. Dr. Antonio Carlos Diniz Murta - FUMEC

(Diretora de Apoio Institucional)

Profa. Dra. Clerilei Aparecida Bier - UDESC

(Diretor de Educação Jurídica)

Prof. Dr. Eid Badr - UEA / ESBAM / OAB-AM

(Diretoras de Eventos)

Profa. Dra. Valesca Raizer Borges Moschen - UFES

Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr - UNICURITIBA

(Diretor de Apoio Interinstitucional)

Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira - UNINOVE

Rua Desembargador Vitor Lima, 260, sala 508Cep.: 88040-400

Florianópolis – Santa Catarina - SCwww.conpedi.org.br

Page 5: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

5

Apresentação

Este livro condensa os artigos aprovados, apresentados e debatidos no Iº ENCONTRO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – CONPEDI, realizado entre os dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014, em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona – Espanha. O evento teve como tema os “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI”. Para o evento foram submetidos e avaliados mais de quinhentos artigos de pesquisadores do Brasil e da Europa. Após as avaliações foram aprovados em torno de trezentos artigos para apresentação e publicação.

O principal objetivo do evento foi o de dar início ao processo de internacionalização e fundamentalmente, o de construir espaços para a inserção internacional e divulgação de pesquisas realizadas pelos Pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Direito do Brasil, associados ao CONPEDI. A realização deste primeiro evento procurou estimular o debate e o diálogo sobre questões atuais do Direito envolvendo a realidade brasileira e espanhola.

Os artigos apresentados analisaram o papel dos “Actores del Desarrollo económico, político y social frente al Derecho del siglo XXI” praticamente em todas as áreas do Direito. Considerando a amplitude do tema, as diversas abordagens e buscando uma aproximação entre as áreas de conhecimento optou-se pela organização de seis grupos de trabalhos (GTs), que foram constituídos da seguinte forma: a) Derecho Constitucional, Derechos Humanos e Derecho Internacional; b) Derecho Mercantil, Derecho Civil, Derecho do Consumidor e Nuevas Tecnologías; c) Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social; d) Derecho Administrativo, Derecho Tributario e Derecho Ambiental; e) Teoría del Derecho, Filosofía del Derecho e História del Derecho; f) Derecho Penal, Criminología e Seguridad Pública.

Além da promoção do intercambio entre as Instituições e profissionais da área do Direito do Brasil e Europa, a possiblidade de ampliar e difundir a produção cientifica no âmbito internacional e a melhoria dos indicadores dos Programas de Pós-graduação brasileiros, com a realização do primeiro evento internacional

Page 6: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

6

a atual Diretoria do CONPEDI também cumpre com um de seus compromissos assumidos quando eleitos. A transcendência da realização deste primeiro evento internacional para os pesquisadores brasileiros da área do Direito se reflete no resultado final obtido. A publicação de 15 livros, através da Ediciones Laborum da Espanha em parceria com o CONPEDI, com todos os artigos apresentados e debatidos nos GTs representa uma expressiva conquista que trará importantes resultados para os programas de Pós-graduação brasileiros e, fundamentalmente, para a área do Direito.

Barcelona/Florianópolis, março de 2015.

Os Organizadores

Page 7: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 7

Sumário

(Re) Configurando os Atores do Sindicalismo na Sociedade Informa-cional: Entre as Propostas de Boaventua de Sousa Santos e Antonio NegriOton de Albuquerque Vasconcelos Filho ................................................. 9

A Reconstrução Normativa do Direito Fundamental ao TrabalhoLeonardo Vieira Wandelli e Octávio Campos Fischer ............................. 47

A Subordinação Jurídica no Direito do Trabalho: Pela Necessidade de sua Adequação e Releitura nas Relações de Emprego ContemporâneasLívia Mendes Moreira Miraglia e Gabriela Neves Delgado ..................... 81

Capacidade Profissional e Novas Tecnologias: Uma Releitura dos Benefícios por Incapacidade à Luz do TeletrabalhoCarlos Marden e Konrad Saraiva Mota ................................................. 115

Dignidade Humana: Seguridade e a Solidariedade Entre (Des)Iguais no BrasilEliane Romeiro Costa e Gil César Costa de Paula .................................. 137

Direito ao Trabalho Digno e Renda: Como Fomentadores do Desen-volvimento Econômico e Social Brasileiro no Século XXIRenata Albuquerque Lima e Marcus Mauricius Holanda ....................... 153

Repensando as Estratégias de Proteção pelo Direito do Trabalho: Crise Econômica, Declínio Sindical e Novas Formas de Organização do Trabalho na Economia GlobalizadaAntonio Rodrigues de Freitas Jr. ............................................................ 183

Direito Social do Trabalhador: Salário JustoLucas Gonçalves da Silva e Luciana Aboim Machado Gonçalves da Silva 211

Page 8: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

8 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Estudo Acerca do Assédio Moral no Ambiente de Trabalho na Legis-lação Brasileira e Portuguesa e Propostas de Contribuições RecíprocasLeda Maria Messias da Silva ................................................................ 243

Infradiscriminação: A Discriminação Pré-Contratual Entre os Porta-dores de Diferentes Necessidades EspeciaisMaria Rosaria Barbato e Flávia Souza Máximo Pereira ......................... 275

Interpretação dos Direitos de Seguridade Social: Uma Análise a Partir do Método TeleológicoZélia Luiza Pierdoná ............................................................................ 301

Page 9: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 9

(re) configurando os atores do sindicalismo na sociedade

informacional: entre as propostas de boaventua de sousa santos

e antonio negri

Oton de Albuquerque Vasconcelos Filho1

Resumo

O sindicalismo nasceu como mecanismo de defesa e interesses do proleta-riado. O Direito Sindical cuidou em estabelecê-lo sob dois troncos: o político e o reinvidicativo, tendo o primeiro se atrofiado em face da preponderância do segundo. A década de 70 e seguintes do século XX constituíram um marco para uma ruptura do sistema produtivo como centro de referência do Direito do Tra-balho. As crises do petróleo, a guerra do Camboja, a busca por um novo modelo de Estado, o desenvolvimento da tecnologia da informação e da comunicação, convergiram para que as o trabalho especulativo, o trabalho imaterial ganhassem contornos inimagináveis em um pequeno espaço de tempo. Diante desse novo cenário, buscou a pesquisa analisar a plausibilidade da manutenção preponde- rante de um sindicalismo de raiz obreirista e reinvidicativo. Bem como se há necessidade de reconfiguração daquele e se as constituições contemporâneas as acolhem. Utilizou-se o método dedutivo, privilegiando teses e dissertação do Programas de pós-graduação em Direito UFPE, além da utilização de dados estatísticos fornecidos pela Organização Internacional do Trabalho e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Aponta-se para a necessidade de reconfiguração do modelo sindical de raiz obreirista, prestigiado pelas Constitui-ções dos países estudados, para um modelo de sindicalismo horizontalizado, de essência política-revolucionária.

1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Coordenador e professor do curso de Direito da Universidade de Pernambuco – Unidade Camaragibe. Professor de Direito do Trabalho da Faculdade Asces. Membro do Instituto Ítalo-brasileiro de Direito do Trabalho. Membro da Academia Pernambucana de Direito do Trabalho. Membro da Comissão de Mediação e Arbitragem da OAB/PE.

Page 10: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

10 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Palavras-chave

Sindicalismo Político-revolucionário; Direito Comparado; Sociedade Infor-macional; Sindicalismo Reivindicativo.

Abstract

The syndicalism was born as a defense mechanism and interests of the proletariat. The Syndical Law took care in establishing it under two branches: the political and claim, the first atrophied in the face of the preponderance of the latter. The 70 and following of the twentieth century were a milestone for a breakdown of the production system as a reference center of Employment Law. The oil crises of the war in Cambodia, the search for a new state model, the development of information and communication technology, converged on the speculative work, immaterial labor to gain unimaginable contours in a short time. In this new scenario, the research sought to examine the plausibility of main- taining a leading unionism workerist and vindicating nature. And if there is need for reconfiguration that contemporary constitutions and the host. We used the deductive method, focusing on thesis and dissertation Graduate Programs in Law UFPE, besides using the statistics provided by the International Labour Organization and Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE). Points to the need for reconfiguration of the union model of work root privileged by the constitutions of the countries studied for a model horizontal model syndicalism, political-revolutionary essence.

Key words

Political Revolutionary Syndicalism; Comparative Law; Informational So-ciety; Syndicalism Vindicating.

1. introdução

A exploração do trabalho humano pelo capital constituiu objeto de investiga-ção por correntes do pensamento filosófico de diversos matizes com vistas a libertar os oprimidos, com consequente participação política e reconhecimento de tais atores como sujeitos e não como objetos catalisadores de lucros. Em um

Page 11: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 11

mundo globalizado esse objetivo ganha contornos mais amplos, seja pelo fato do capital transitar em espaço global, seja pelo desenvolvimento da tecnologia, bem como pelo predomínio do capital especulativo sobre o capital produtivo.

O sindicalismo nasceu como mecanismo de defesa e interesses do proleta-riado, parte hipossuficiente na relação jurídica de emprego. O Direito Sindical cuidou em estabelecê-lo sob dois troncos: o político e o reinvidicativo. Com o correr do século XX, o capital mitigou o primeiro, pois constituía este uma ameaça ao próprio sistema. Sendo assim, o modelo sindical industrialista foi gradativamente se curvando de maneira preponderante as pautas reinvindicativas, ou seja, na busca por melhores salários, jornadas de trabalho, estabilidade no emprego, etc., enfim, de todas as parcelas pagas pela própria força de trabalho.

A década de 70 e seguintes do século XX constituiram um marco para uma ruptura do sistema produtivo como centro de referência do Direito do Trabalho, tal como estabelecido no explendor do industrialismo. As crises do petróleo, a guerra do Camboja, a busca por um novo modelo de Estado, o desenvolvimento da tecnologia da informação e da comunicação, convergiram para que o predomí-nio do trabalho especulativo. O trabalho imaterial ganhou contornos inimaginá-veis em um pequeno espaço de tempo. Diante desse novo cenário algumas perguntas surgem: justifica-se o sindicalismo de raiz obreirista e verticalizado em uma sociedade do trabalho em que os trabalhadores vinculados por um elo de emprego cada vez mais perdem relevância na constituição da população economicamente ativa? Em caso negativo, não teria esse órgão de defesa dos trabalhadores que ser reconfigurado para atender as demandas de uma sociedade do trabalho composta de uma multiplicidade de singularidades? As Constitui-ções contemporâneas incorporaram às suas matrizes normativas um modelo de sindicalismo de raiz revolucionária?

As pesquisas do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Fe-deral de Pernambuco concluem que o mundo do trabalho na contemporaneida-de encontra-se firmado por novos atores e que o Direito do Trabalho necessita se adequar a essa nova realidade. Teses e dissertações têm conferido uma nova perspectiva a respeito das fontes do Direito do Trabalho, dos seus princípios, do sindicalismo, dos atos antissindicais, da negociação coletiva e da greve; de maneira que estas temáticas que outrora se encontravam vinculadas à teoria

Page 12: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

12 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

clássica do Direito do Trabalho têm sofrido uma metamorfose para se readequar a uma nova realidade.

O recorte dado no presente estudo se dará na temática relativa ao sindicalismo. O estudo aponta que na sociedade informacional, os sujeitos e mecanismos nele envolvidos encontram-se para além da dogmática jurídica e da doutrina da Organização Internacional do Trabalho.

Para tanto, o estudo aponta uma análise de dados estatísticos oriundos da Organização Internacional do Trabalho – OIT e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE para comprovar a configuração de um novo mundo do trabalho no século XXI e com base nesses números demonstrar as crises do sindicalismo. Por fim, com base na doutrina de Boaventura de Sousa Santos e Antonio Negri o estudo estabelecerá as propostas dos referidos autores no tocante a um novo olhar das lutas coletivas com vistas a proporcionar efetividade das mesmas em uma sociedade globalizada.

Utilizou-se o método dedutivo. No que concerne a bibliografia, houve prevalência de Teses e Dissertações do Programas de pós-graduação em Direito da UFPE, ante aos manuais para que não fosse comprometida a qualidade do presente trabalho acadêmico. A escolha dos países analisados justifica-se na origem e preponderância do modelo de sindicalismo revolucionário, ocorrido na França, Itália, Portugal, Espanha e Brasil, diante da influência comum. Todas as citações, diretas e indiretas indicam a página da obra consultada, exceto aquelas que delas não dispunha.

2. os três movimentos coletivos desenvolvidos em defesa das melhorias das condições de vida e de trabalho e recepcionados pela doutrina jurídico-trabalhista dominante

A doutrina clássica estabelecida nos cursos de Direito do Trabalho prestigia “[...] a história do sindicato e do sindicalismo nos movimentos reivindicativos que se desenvolveram ao longo da história operária” (COSTA, 2012, p. 77).

Nesse contexto, se estabeleceu três movimentos que se revelam na busca por melhores condições de trabalho para os que se encontravam sob a égide da rela-ção jurídica de emprego.

Page 13: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 13

Assim, o primeiro deles teve em seu núcleo a limitação da jornada de trabalho como eixo de proteção para os assalariados que morriam no interior das fábricas em razão das longas jornadas de trabalho.

O Estado era liberal e sua premissa central era a não intervenção estatal em virtude dos seus próprios dogmas, notadamente, o da autonomia da vontade. Desta forma, diante da omissão estatal nos conflitos existentes entre patrão e proletário, e por desejar tutelar o direito de propriedade, o Estado se negava a proteger a classe trabalhadora no interior das organizações produtivas quanto a delimitação da jornada, em um cenário de condições subumanas de trabalho com a dizimação da parte mais fraca na relação jurídica estabelecida.

Dessa forma, os movimentos coletivos organizados se insurgiram contra a omissão estatal, para impedir a exploração do trabalho humano considerando as longas jornadas.

Costa (2012, p. 78) afirma que o segundo movimento tem suas bases na luta por melhores salários. Explica ela que:

A Economia Política Liberal, que também fundamentou o Estado Moderno, desde Adam Smith, tinha como pressuposto a Lei da Oferta e da Procura ou da Demanda. Como base nessa premissa, o salário deveria ser maior, quando houvesse escassez da mão de obra e, menor, quando houvesse abundância de mão de obra. As injustiças instauradas por essa visão macroeconômica, que ampliava o fosso entre ricos e pobres e a degradação psicofísica do operariado, desencadeavam a segunda grande luta operária, ou seja, aquela dirigida a instituir um salário mínimo destinado a suprir as necessidades básicas dos trabalhadores.

O terceiro movimento ganhou força em face de uma nova forma de pensar do Estado. Se no período do liberalismo era patente a sua omissão; considerando a real ameaça do socialismo científico ser estabelecido no mundo, o capitalismo teve que ceder a ideia da regulação da economia por meio das leis do mercado, e formatou uma nova forma de atuar do Estado diametralmente oposta à primeira. Agora o Estado agia em favor da parte mais fraca na relação contratual de em-prego, mitigando desta forma a autonomia da vontade.

No contexto da relação de trabalho, e nesse momento, o agir coletivo se revelava através da luta dos trabalhadores marcada pela necessidade de reconhecimento

Page 14: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

14 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

pela ordem jurídica quanto à necessidade de se conferir segurança no emprego e para isso era necessário a inserção do direito à estabilidade.

Dessa forma, resta evidenciado que as conquistas oriundas do agir coletivo se limitou a tutela dos trabalhadores pelo viés reinvidicatório, em detrimento das lutas políticas.

3. sindicalismo nas constituições brasileira, espa-nhola, portuguesa, francesa e italiana

A doutrina jurídico-trabalhista clássica explica o sindicalismo a partir de um ponto central: a relação jurídica de emprego. Costa (2012, p. 27), após analisar o sindicalismo, chega à seguinte conclusão:

A doutrina clássica propôs diversos conceitos para o sindicato. Alguns doutrinadores criaram sua teoria sob a ótica do emprego; outros utilizaram, como parâmetro, a perspectiva do empregado, mas, também, a do empregador.

Como base nessa premissa, o sindicalismo se firmou, plano teórico, como instrumento de defesa coletiva dos interesses de empregados e empregadores, com o objetivo de melhoramento das condições dos contratos de trabalho, conforme se depreende do pensamento de Costa (2012, p. 40):

O sindicato profissional pode ser melhor precisado como uma associação, que se constitui pela espontânea e livre união, ou sucessiva adesão dos indivíduos, que se encontram no particular estado de trabalhadores subordinados, ou de empregadores; uma é uma associação que representa por via de seus órgãos eletivos internos, todos os indivíduos, que a compõem na qualidade de sócios sindicalizados. É uma associação, que age coletivamente, em nome e por conta dos associados, com o escopo de tutelar-lhes os interesses profissionais comuns, com relação aos próprios sócios, a outras associações ou outros sujeitos jurídicos.

Mas será que a concepção de um sindicalismo obreirista adotada pela doutrina clássica encontra sustentação nas Constituições de países como França, Brasil, Itália, Portugal e Espanha? É uma questão que suscita averiguação.

Page 15: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 15

A partir da criação da Organização Internacional do Trabalho os direitos dos trabalhadores começam a se incorporar as matrizes normativas dos Estados, culminando com a consolidação do Direito do Trabalho. Os países passaram a absorver em suas Constituições os direitos trabalhistas, passando a delimitar nessa nova ordem jurídica um novo ramo autônomo do Direito. Nesse sentido, leciona Delgado (2010, p. 82):

Tal fase se define como o instante histórico em que o Direito do Trabalho ganha absoluta cidadania nos países de economia central. Esse Direito passa a ser um ramo jurídico absolutamente assimilado à estrutura e dinâmica institucionalizadas da sociedade civil e do Estado. Forma-se a Organização Internacional do Trabalho; produz-se a constitucionalização do Direito do Trabalho; finalmente, a legislação autônoma e heterônima trabalhista ganha larga consistência e autonomia no universo jurídico do século XX.

A OIT influenciou a criação de normas trabalhistas no mundo, inclusive regramentos afetos ao sindicalismo. A Constituição Francesa de 1958, em seu Título V, artigo 34, estabelece que os “Estatutos estabelecerão, igualmente, os princípios básicos de [...] Direito do Trabalho, Direito da União de Comércio e Segurança Social” (FRANÇA, 1958).

Do texto constitucional francês, percebe-se que ele não trata o sindicalismo, a exemplo do Brasil, como direito fundamental. Relega ao plano infraconstitu-cional o tratamento da matéria. Talvez essa supressão, no tratamento do sindicalismo, retrate a realidade sindical francesa. Não obstante ser a França, o berço do sindicalismo revolucionário, o país detinha, em 2002, uma das menores taxa de sindicalizados do mundo. Segundo Damásio (2003):

A França, muito mais do que outros países industrializados, conhece mais movimentos sociais decorrentes de contestações das reformas. Isso acontece por causa das origens do sindicalismo, bem como de suas particularidades e de suas evoluções. Comprovando a indiferença, desinteresse e ausência de engajamento dos assalariados, o país é visto como sub-sindicalizado e, até mesmo, ‘a-sindicalizado’, tendo um dos mais fracos sindicalismo do mundo com uma taxa de sindicalização, com relação à população ativa assalariada, de apenas 8% em 2002.

Page 16: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

16 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Em Portugal, a Constituição trata o sindicalismo sob a perspectiva reivin-dicativa. O seu artigo 51 prevê (PORTUGAL, 1976): “Os trabalhadores devem ser livres para formar e operar os sindicatos como condição e garantia da construção da sua unidade para defesa dos seus direitos e interesses”. A concep-ção normativa portuguesa, não transcende o ideal da luta de trabalhadores para além das empresas.

O artigo 54 (PORTUGAL, 1976), confirma essa assertiva quando expres-samente determina que “Os trabalhadores têm o direito de formar comissões de trabalhadores para defesa dos seus interesses e democraticamente intervir na vida da empresa”. Embora se trate, neste particular, de comissões internas de trabalhadores nas empresas, o dispositivo esclarece que quando se menciona, no texto constitucional, o termo trabalhadores, a referência feitas é aos empregados vinculados a empregador.

Do mesmo modo que a portuguesa, a Constituição Italiana consagra, ex-plicitamente, um sindicalismo reivindicativo, cuja finalidade está limitada aos interesses de uma classe trabalhadores subordinados (ITÁLIA, 1948):

Art. 39 Os sindicatos podem ser fixados livremente. Sindicatos registrados são pessoas coletivas. Eles podem, por meio de uma representação unificada que é proporcional à sua participação, entrar em acordos coletivos de trabalho que têm um efeito obrigatório para todas as pessoas que pertencem às categorias referidas no acordo.

A Constituição Espanhola de 1978 cuidou em acolher o sindicalismo no seu texto, atribuindo uma função ampla de defesa dos interesses econômico e sociais das categorias representadas, porém delegou à lei infraconstitucional a competência de delinear os espaços dessa atuação, limitando-a. Seu artigo 7.º (ESPANHA, 1978):

Os sindicatos e as associações patronais podem contribuir para a defesa e promoção dos interesses econômicos e sociais que representam. A sua criação e o exercício de suas atividades deve ser livre na medida em que se respeitar a Constituição e a lei.  A sua estrutura interna e seu funcionamento devem ser democráticos.

Page 17: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 17

A limitação mencionada, se expressa na Lei Orgânica de Liberdade Sindical (LOLS 11/1985), que determina que só podem constituir sindicatos os trabalhadores que esta Lei autorizar. Assim “tanto os sujeitos de uma relação laboral (aqueles que executam atividades por conta alheia) como os indivíduos que participam de uma relação de caráter administrativo ou estatutário a serviço das Administrações públicas” (ROZICKI, 1997, p. 63).

Deste cenário jurídico também de infere que o modelo de sindicalismo preconizado pela Constituição Espanhola delimita a atuação dos sindicatos aos interesses dos trabalhadores subordinados.

A experiência brasileira não se mostra diferente das demais apresentadas. O artigo 8.º da Constituição Federal de 1988 dispõe (BRASIL, 1988):

Art. 8.º - É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas;.

Todas as ordens constitucionais têm como ponto central a consagração de um modelo de sindicalismo voltado à defesa dos interesses dos empregados e das empresas. Um sindicalismo de essência reivindicativa, ao passo que sua finalidade precípua se destina a busca de melhores condições dos contratos de emprego. Essa realidade normativa corrobora a definição de sindicato clássico (ÉFREN,1994, p. 133): “uma associação permanente de assalariados para defender ou melhorar as condições de seus contratos de trabalho”.

Ocorre que, o sindicalismo, tal como concebido nas Constituições analisadas e na doutrina clássica, encontra-se vinculado às relações jurídicas de emprego e seus espaços de atuação não são os mesmos nos quais circula o capitalismo hegemônico, pois o mundo do trabalho contemporâneo se expressa por uma multidão constituída de múltiplas singularidades que encontram-se marginaliza-das pelo Direito do Trabalho.

4. topologia do mundo do trabalho no século xxi no brasil, espanha, frança, portugal e itália

A aferição da População Economicamente Ativa - PEA possibilita a delimitação do número de pessoas ocupadas e desocupadas. A partir desta base é possível

Page 18: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

18 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

a identificação das categorias de ocupação que a constituem. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentam dados relativos à PEA mundial e brasileira.

Segundo o IBGE, os conceitos de população economicamente ativa (PEA), de força de trabalho e de mão-de-obra se equivalem, entretanto, “diferem do de população em idade ativa (PIA): ao contrário do conceito de PIA, os de Força de Trabalho, PEA e mão-de-obra admitem a situação de pessoas desocupadas” (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2013). Para o referido Instituto, (2013):

A noção de PEA foi utilizada na França e Inglaterra desde final do Século XIX. Em 1967, as Nações Unidas recomendou que PEA deveria abranger todas as pessoas, sem distinção de sexo, que constituem a oferta de mão-de-obra, incluindo empregados, trabalhadores autônomos, membros de família não remunerados, empregadores e outros que, embora aptos para o exercício de uma atividade econômica, encontravam-se desempregados durante o período de referência. Estariam excluídos os aposentados, as donas-de-casa, os estudantes, os inválidos, os detentos e aqueles que não trabalham porque vivem de rendas.

Deve-se entender por população economicamente ou força de trabalho “o nú-mero total de trabalhadores, incluindo empregados e desempregados” (MANKIW, 2001, p. 365), em dado período de referência. O IBGE, assim como a OIT, utiliza esse conceito de PEA, que é o mesmo adotado pela doutrina econômica.

O levantamento da situação do trabalho no mundo, realizado pela OIT, agru- pa o trabalho em cinco grandes categorias, são elas: os assalariados, os empregadores, os trabalhadores por conta própria, membros de cooperativas de produtores, trabalhadores familiares e trabalhadores não classificados em nenhuma das divisões anteriormente mencionadas. A Organização Internacional do Trabalho (2013) considera como trabalhador:

Pessoas com trabalho são todas aquelas em idade de trabalhar que, durante um breve período de referência estavam em qualquer das seguintes categorias: a) trabalho remunerado (já trabalhando ou com emprego, porém sem trabalhar) ou b) por conta própria (já trabalhando ou com um empreendimento, porém ainda sem funcionar). Os dados são desagregados por situação na profissão, usando a última versão da Classificação Internacional de Situação

Page 19: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 19

na Profissão (CISP-93). A situação de emprego refere-se ao tipo de contrato de trabalho explícito ou implícito de que a pessoa tem com outras pessoas ou organizações. Os critérios básicos utilizados para definir as diferentes categorias de classificação são o tipo de risco econômico e o tipo de autoridade sobre os estabelecimentos e outros trabalhadores.

Desse modo, o levantamento estatístico realizado pela OIT não é fonte precisa de delimitação da relação jurídica de emprego na composição da força de trabalho. Isto por que, a metodologia descrita admite que, na categoria de assalariados, seja incluído um sem-número de vínculos que não equivalem ao conceito jurídico de empregado, como, por exemplo, os servidores públicos, os militares, os estagiários, os aprendizes, etc.

Entretanto, os dados fornecidos pela organização permitem uma análise par- cial da relação de emprego na composição da força de trabalho dos países estudados, afinal as categorias que agregam os trabalhadores por conta própria, os cooperados, os trabalhadores familiares revelam uma parcela da PEA que não está enquadrada no conceito de empregado, por faltar-lhe o requisito da subordinação jurídica.

tabela 1 – composição dos ocupados na pea

Page 20: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

20 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Fonte: Elaboração própria com base nos dados da OIT2

Os dados indicam que os trabalhadores por conta própria constituíram a categoria que mais cresceu no período de 2001 a 2012. A variação de 22% demonstra que os trabalhadores estão tornando-se empreendedores em detrimento da posição de empregados subordinados. Itália e França são os países com considerável crescimento dessa categoria de trabalhadores.

O cresceimento de apenas 9% no número de assalariados corrobora, no perío-do analisado, que o trabalhador tem buscado postos de trabalhos diversos daqueles típicos do industrialismo. A variação negativa registrada em Portugal, pode ser explicado pelo vertiginoso aumento da massa de desocupados que aumentou de 333.400, em 2001, para 860.100 pessoas em 2012 (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2013).

O caso brasileiro pode ser analisado de maneira mais detalhada. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) fornece dados sobre a população economicamente ativa brasileira de modo mais estratificado. O gráfico a seguir apresenta a população economicamente ativa brasileira, incluindo os desocupados, com a exclusão da categoria dos empregadores.

2 Os dados apresentados na Tabela 1foram extraídos da base de dados da OIT (ILOSTAT).

Page 21: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 21

gráfico 1 - configuração da força de trabalho no brasil em 2010

Fonte: Elaboração própria baseada em dados do IBGE/Censo 2010

Pode-se concluir que o trabalho no Brasil não está centrado na relação jurídica de emprego tal como se verificava no Estado de Bem-estar Social, mas num arranjo diversificado de relações, todas merecedoras de proteção e tratamento pelo Direito do Trabalho, o que atesta que o trabalho subordinado, não se justifica, nos dias atuais, como categoria elementar daquele ramo do Direito.

Nesse último cenário apresentado, o número de trabalhadores vinculados a um empregador por típica relação de emprego corresponde a 42% da PEA brasileira. Assim, patente que mais de 50% da população ocupada está na informalidade, desprotegida, desregulada, enquanto o Direito se mantém insensível às novas configurações do trabalho no contexto de uma sociedade pós-industrializada.

Registre-se também que no âmbito dos 42% (quarenta e dois por cento) dos trabalhadores com carteira assinada, não há como deixar de mencionar os alarmantes números vinculados ao trabalho terceirizado, o que evidencia precariedade nessa massa de trabalhadores formais. Segundo estimativas do Ministério Público do Trabalho, o número de trabalhadores terceirizados formais atingia, em 2011, o montante de 8 (oito) milhões de pessoas, ou seja 9% da PEA (MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, 2011).

5. as crises do capitalismo contemporâneo e suas repercussões nas crises dos sindicatos na ex-periência brasileira

A ruptura social centrada no individualismo, materializada predomi-nantemente pelo trabalho subordinado, tornou-se cada vez mais escasso este

Page 22: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

22 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

modelo de trabalho, sobretudo a partir da década de 80, do século XX. É que surgiram novos sujeitos no mundo do trabalho. Uma coletividade representada pelos excluídos.

A finalidade do sistema sindical, que teve seu nascedouro com a história da luta operária, voltada para a aglutinação da força de trabalho subordinado, já não mais atende ao seu intento, posto que a classe emergente constitui maioria. Assim, o sindicalismo começou a vivenciar um processo de crises em vários aspectos.

A crise da desfiliação encontra-se conectada com o desemprego estrutural, uma característica da sociedade informacional. Esta tensão não existia antes, especialmente no esplendor do Estado do Bem-estar Social e do pleno emprego.

Aquela realidade favorecia a filiação sindical, cujo discurso encontrava-se voltado para a classe operária. Desta forma, o sindicato tornava-se o centro de referência de aglutinação de forças sindicais.

A partir do desemprego estrutural, evidentemente a demanda do emprego, da categoria que Bauman chamava de exército de reserva, ampliou e superou o número de empregos formais. Como consequência, houve um recuo do discurso sindical, por que os trabalhadores pretendiam preservar os seus empregos. A minoria que estava frente a milhares de pessoas que se encontravam diante do mercado informal de trabalho.

Este recuo, em termos numéricos, é o ponto fundamental da crise do sindicalismo, no pós-industrialismo, sendo uma evidência empírica, também já conhecida, inclusive, no próprio meio jurídico.

O gráfico seguinte retrata a evolução das associações de trabalhadores aos sindicatos no período de 2001 a 2012, no Brasil. Demonstra, ainda, o quantitativo de trabalhadores não associados no mesmo período. Os dados referem-se a toda população economicamente ativa no país naquele período.

Page 23: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 23

gráfico 2– evolução da associação sindical no brasil (em milhares)

Fonte: Autoria própria com base nos dados do IBGE.

Enquanto o emprego cresceu quase 60%, no período de 2001 a 2011, a associação a sindicato cresceu apenas 23%, registrando ainda quedas sucessivas a partir do ano de 2008, conforme dados do IBGE (2014).

Outra crise que experimentou o sindicalismo decorreu da supremacia do setor de serviços. É fundamental entender este fenômeno, porque, no clímax do pleno emprego, os grandes sindicatos eram os dos metalúrgicos, camponeses etc., de maneira que as lideranças sindicais aglutinavam milhares de trabalhadores numa fábrica, convencendo-os a lutarem por melhores condições de trabalho junto a classe patronal.

Quando houve a transposição da supremacia do comércio e indústria para o setor de serviços, verificou-se, então, que ele, em si, já estava contaminado pela pulverização. Por esta razão, os grandes comandos sindicais já não tinham como aglutinar trabalhadores, empregados em pequenos negócios e em microempresas.

A esse respeito Andrade (2005, p. 93), assim dispõe:

O setor de serviços tem um peso significativo no setor formal, apresentando um quadro variável que abarca mais de cinqüenta por cento da população ativa e constitui um claro fator de desarticulação do movimento sindical, contrapondo-se à horizontalidade organizacional das relações laborais exercitadas nas empresas da era industrial. Antes, era mais fácil aglutinar

Page 24: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

24 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

operários. Mas com a supremacia do setor de serviços, as categorias profissionais passaram a ter um universo fragmentado, inclusive pela multiplicidade de gêneros empresariais característicos do próprio setor.

Ao analisar o pensamento negriano, Cocco (2014, p. 35) afirma que:

Hoje, as fábricas são as universidades, os escritórios do setor terciário avançado, os museus, os shoppings centers, os hospitais. As linhas de montagem são aquelas dos transportes (púbicos e privados), as redes de logística e, obviamente, todo o sistema de comunicação, que há mais de três décadas é marcada pela convergência digital.

A inserção deste setor de serviços muda o foco, desaglutinando, desestrutu-rando o modelo sindical então operado à época do pleno emprego e das grandes massas que trabalham nas grandes indústrias.

A não inclusão, no sindicalismo, dos novos movimentos sociais, também, faz emergir outra faceta da crise, desencadeada a partir da mudança de paradigma sofrida no mundo do trabalho. Desta forma, faz-se necessária uma adequação no modelo sindical nascido com o industrialismo, para que este se contextualize com o surgimento de novos sujeitos do trabalho.

Empiricamente esta atitude pode ser identificada pelo fato de que os líderes sindicais, na atualidade, representam a minoria no universo de trabalhadores. Agrupar novas entidades sindicais que incluam os novos movimentos sociais – os excluídos do trabalho formal – teria por consequência, o surgimento de novas lideranças. Em resumo: os líderes sindicais, ao não repassarem a memória histórica do sindicalismo para os excluídos, pretendem preservar o poder político no âmbito dos sindicatos em sua concepção clássica.

Observe-se que, no Brasil, o impacto dos novos movimentos sociais da atualidade ainda é visto de forma conservadora pelo próprio Tribunal Superior do Trabalho. Cite, por exemplo, o Movimento dos Sem-Terra. Para a mais alta Corte Trabalhista, este movimento não poderá ser reconhecido como sindicato porque sindicatos são constituídos de obreiros. Mas, a verdade é que os que aderiram aos movimentos sociais contemporâneos querem viver com dignidade,

Page 25: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 25

a partir do trabalho, mas não, do emprego, exclusivamente. O movimento pelo trabalho e pela ética da vida tem sido significativo em história recente.

Além do Movimento Sem-Terra, outro exemplo a ser analisado é o dos cami-nhoneiros. No ano de 2000, eles fecharam na idéia de não transportarem nada. O prolongamento de tal ato poderia levar o país a uma crise no abastecimento.

Ao tratar o tema em Perspectivas do Trabalho e do Sindicalismo no Brasil, enfocando os novos movimentos sociais, Nogueira (2006), apresentou parte da entrevista conferida pelo líder dos caminhoneiros:

O líder da greve do Movimento União Brasil Caminhoneiros Né- lio Botelho, em entrevista à Folha de São Paulo revelou um pouco de sua personalidade e da categoria que dirige. Segundo reportagem: descolado de partidos políticos e de centrais sindicais, ele diz que pretende manter o movimento sem vinculação partidária nem ligação com o restante do enfraquecido movimento sindical brasileiro. Ele mesmo se declara antipartidário afastando, por enquanto, a possibilidade de se candidatar a cargo político [...] o líder rejeitou comparações com o Movimento dos Sem-Terra ou com a greve dos metalúrgicos do fim dos anos 70. Ambos, segundo a avaliação de Nélio Botelho, tiveram repercussões limitadas. Ele dá uma importância aos caminhoneiros muito maior – O caminhoneiro afetou a economia, vai pesar na inflação deste mês. Provou que é a classe com maior poder de fogo no país. Nós podemos parar o país e não há nenhuma força que se compare à nossa.

Sucessivamente é possível identificar a força dos trabalhadores camelôs. Na medida em que se organizarem apresentarão ampla pressão perante o Estado e a sociedade. Em artigo publicado na Revista Eletrônica de Geografia e Ciências Sociais – Scripta Nova – da Universidade de Barcelona, Gonçalves e Thomaz Júnior (2006) ao tematizarem sobre a precarização do trabalho, assim dispõem:

O fenômeno do desemprego e da precarização das condições de trabalho na nova era do capital podem facilmente ser observados na maior parte das cidades brasileiras. É nesse cenário que se tornam mais visíveis a partir do ano de 1990, assumindo dimensões nunca registradas antes. É o caso de lembrarmos o exemplo dos trabalhadores do ABC paulista e da região metropolitana de São

Page 26: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

26 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Paulo – como indicam os dados do Dieese/Seade e do próprio IBGE – da agroindústria canavieira, e exemplarmente lembramos os trabalhadores enquadrados nos limites da precarização, da terceirização e outras experiências autônomas, como os ambulantes, que vão para a camelotagem, ocupações de terra, catação de material reciclável, os trabalhadores nos lixões, particularmente os catadores de papel papelão nos centros urbanos brasileiros, todos trabalham várias horas, em péssimas condições.

Assim os locais escolhidos, geralmente as praças públicas e as calçadas, próxi-mos aos centros comerciais ou a lugares de grande fluxo de pessoas, que reúnem os potenciais compradores, são alvos de disputa entre os próprios trabalhadores, ou seja, destes com os comerciantes legalmente estabelecidos e, não raras vezes, entre os trabalhadores e o poder público.

De acordo com os meios comunicacionais que a humanidade dispõe hoje, é possível falar-se em tempo real no mundo inteiro. Quem lida com a tecnologia da informação e da comunicação verifica que o sindicato tem uma linguagem diferente.

Dentro deste cenário, é vital a necessidade de que os sindicatos adotem um novo tipo de relação com a comunicação virtual e também se proponham a fazer um novo discurso. Tem-se assim que adaptar o discurso do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels e ampliá-lo. É possível juntar músicos, artistas, poetas, poetas populares, camelôs e todos que estão excluídos do mercado formal e construir um novo tipo de preleção. Um discurso para a maioria que vive e pretende viver do trabalho, a fim de ser desencadeada uma nova emancipação social.

Se assim não se posicionar o sindicato, não será preenchido este descompasso de história entre o industrialismo e o pós-industrialismo. Neste contexto, não é possível deixar de abordar o manifesto que envolveu os estudantes na França. O que aconteceu naquele país da Europa, e evidenciado nos demais, é uma pressão dos excluídos pelo direito de ter uma vida digna, pelo exercício do trabalho e o sindicato não pode ficar alheio a estes movimentos.

Outro aspecto relevante: o discurso sindical, ao retomar a sua memória histórica, há de dirigir-se prioritariamente contra o capitalismo hegemônico

Page 27: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 27

– global e excludente – contras as barbáries que se vêm praticando contra a humanidade.

Diz Galbraith (1996, p. 30) que a sociedade, hoje, é do empregado, do desempregado e do não empregável e que não é mais paradigma, não é mais pressuposto, a luta que se dava entre capital e trabalho do ponto de vista do capitalismo e do proletariado.

Aborda, Ricardo Antunes, a questão considerando que a verticalização do sistema sindical é incompatível com o surgimento de novos sujeitos traba-lhadores. O modelo sindical do industrialismo é constituído por categoria: dentro da empresa, por uma indústria ou por ramo de atividade. Estas são as duas consequências do encontro do sindicalismo, sempre voltando para dentro do universo da fábrica, dentro de uma categoria específica ou dentro de um ramo de atividade como, por exemplo, o bancário e o banqueiro, o estabelecimento de ensino e o professor, entre outros (KASSAB, 2004).

Na atualidade, o sindicalismo tem que ter o olhar horizontalizado para a sociedade como um todo. Isto implica o reconhecimento de que há trabalhadores formais, mas que são minorias, e trabalhadores informais precarizados, que são maiorias, além dos excluídos do mundo do trabalho, no sistema capitalista hegemônico.

O referido autor ainda explica (KASSAB, 2004):

O sindicalismo de base taylorista e fordista era de base vertical, as empresas eram verticais. A classe trabalhadora era predominantemente masculina, com contratos relativamente estáveis. Hoje, não. As empresas se horizontalizaram, há um enorme processo de feminização da classe trabalhadora. As dimensões de gênero e geracional (etária) são ainda mais acentuadas que no passado. Algumas empresas “modernas”, por exemplo, só contratam trabalhadores com, 20, 22 anos. Por quê? Essas empresas dizem: eles não têm experiência sindical, não têm experiência fordista, não têm experiência taylorista. É o “proletário ideal” para ser intensamente explorado pelas fábricas nessa onda na qual os direitos estão sendo dilapidados. O desafio é pensar o sindicato horizontal, que contemple essa nova polissemia do trabalho.

Page 28: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

28 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Diante deste quadro, o sindicalismo tem que agrupar todas estas forças hu-manas conectados com uma nova articulação, que não e reducionista, do ponto de vista do obreirismo. É mais ampla e conjugada dentro de um novo modelo discursivo. Em termos práticos, o que está faltando hoje é conscientização para, em um segundo momento, haver uma articulação dirigida a uma nova emancipação social, sem a qual o sindicalismo e o sindicato não têm razão de existir.

6. a aplicabilidade da doutrina de thomas kunh e karl popper no contexto do sindicalismo de raiz obreirista: entre sua refutação e aplicabilidade de um novo paradigma

O surgimento de novos sujeitos do trabalho, a partir da década de 70 do século XX, alterou substancialmente a configuração da população economica-mente ativa, constituindo assim, um novo paradigma.

É importante registrar que, quando o observador encontra-se deparado diante de um paradigma, constitui ele “[...] um pré-requisito para a própria percepção”(KUHN, 2006, p.150). E mais, “[...] o que um homem vê depende daquilo que ele olha como daquilo que a sua experiência visual-conceitual pré- via ensinou a ver. Na ausência de tal treino, somente pode haver o que Willian James chamou de ‘confusão atordoante e intensa’”(KUHN, 2006, p. 150).

Segundo Thomas Kuhn (2006, p. 122) as revoluções científicas encontram-se pautadas nas transições de paradigmas. Para ele (KUHN, 2006, p. 43), o conceito de paradigmas encontra-se estabelecido nas “[...] realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e as soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”.

No contexto do sindicalismo, qualquer sistema normativo deve se adequar as demandas do paradigma vigente, sob pena de esvaziar-se de sentido e padecer de total inefetividade.

Karl Popper ao discorrer sobre a lógica da pesquisa científica, ao criticar o empirismo lógico, propôs que só é possível fazer ciência quando, a partir do seu objeto, pode-se deduzir enunciados que possam levar ao falseamento de uma proposição científica. Segundo Marques (2013, p. 3):

Page 29: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 29

Uma teoria que não é suscetível de refutação não é considerada científica. A irrefutabilidade não é uma virtude, mas sim um vício. [...] A descoberta de novos fatos que estão de acordo com as predições de uma teoria, não confirmam por si só a teoria, mas única e exclusivamente a corroboram. Uma teoria que não é corroborada, quando passam por um teste ou contrastação, isto é, quando uma observação cujo resultado poderia eventualmente refutar a teoria não se confirma, robustece a própria teoria sem, no entanto, a confirmar.

O critério do falseamento, portanto, indica que uma teoria só pode ser considerada conhecimento científico, quando passível de falseamento. O critério do falseamento consiste numa tentativa de refutação de determinada verdade científica, por meio de hipóteses, que se confirmadas refutam a teoria testada, em caso negativo não confirmam a validade da teoria, apenas a enrobustecem. Assim, somente as teorias mais robustas e consistentes conseguem manter o status de conhecimento científico, que nessa lógica ostenta apenas uma presunção relativa de veracidade.

Popper e Khun apresentam proposições que justificam esse estudo. Se o sin-dicalismo, na dogmática jurídica e na literatura clássica, é descrito como um sindicalismo de raiz obreirista vinculado ao emprego fordista-taylorista, na visão de Kuhn poderia estar suplantado por um novo paradigma (os novos sujeitos do mundo do trabalho), na concepção de Popper poderia estar refutado, pois não se sustentaria diante dessa nova realidade. Desse modo se o mundo do trabalho mu-dou essencialmente o objeto do Direito do Trabalho tem que ser este redefinido.

7. os movimentos políticos dirigidos à emancipação social e negligenciados pela doutrina jurídico-trabalhista dominante

Costa (2012, p. 78) ao estudar esses aspectos, estabelece um panorama apontando duas lutas. Na história das organizações sindicais, a primeira luta ocorre no interior das organizações produtivas; e a segunda tem sua marca na emancipação social.

Explica ela que uma se encontra atrelada à outra, mas a segunda goza de uma importância maior porque tem relação com a busca pelo estabelecimento da pró-

Page 30: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

30 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

pria condição de sujeito dos trabalhadores. Assim a luta política foi e ainda conti- nua sendo “[...] negligenciada pela doutrina jurídico-trabalhista” (Costa, 2012, p.79), e aliado ao pensamento de Lira (2008. p. 111-113), é fato que historicamente os movimentos coletivos ou sindicais devem ser estudados primeiro em seu aspecto libertador para depois serem compreendidas as conquistas reinvidicativas3.

Desta forma, é coerente o pensamento de Costa (2012. p. 79-80) quando elucida que a razão pela qual deve existir uma luta nacional e internacional dos trabalhadores é para garantir o acesso universal aos produtos da criação intelectual dos países, tal qual defendida por Marx e Engel, quando se contrapunham, no Manifesto do Partido Comunista, ao papel eminentemente revolucionário da burguesia como instrumento de manutenção do status quo e ao caráter cosmopolita da produção e do consumo.

Sendo assim, não é possível ser estabelecida uma sociedade marcada pela liberdade e igualdade se a parte mais forte é prestigiada pelo capitalismo e pela ordem jurídica, com consequente subordinação da força do trabalho ao capital.

Desta forma, a luta necessária para o estabelecimento de uma sociedade livre, cuja máxima é o reconhecimento dos trabalhadores como sujeitos de direito deveria ter sido a luta política, pois, as necessidades de melhores condições de trabalho, em qualquer dimensão; certamente seria uma derivação de ações coletivas manifestas pela classe trabalhadora, mas, como contra poder capaz de inibir os efeitos do capitalismo hegemônico.

A consequência desse desequilíbrio é refletida no sindicalismo que “[...] enquadra o sindicato em entidade encarregada apenas ou prioritariamente em desenvolver lutas meramente reivindicativas e, muitas vezes, de resultados” (COSTA, 2012. p. 80).

Contemporaneamente, os três movimentos de cunho eminente reinvidicativos tem consequências ainda mais desatrosas pelo fato do mundo do trabalho no

3 Foi exatamente o que fez a professora Fernanda Barreto Lira, ao tratar da greve. Na sua obra, merece destaque o registro do primeiro movimento sindical brasileiro, centrado no anarco-sindicalismo. Muito embora tenha sido o primeiro movimento sindical brasileiro, a doutrina tradicional fala muito pouco sobre ele. Estranha omissão porque, como se pode extrair das descrições e da bibliografia disponibilizada pela aludida professora, o anarco-sindicalismo cumpriu exatamente aqueles dois papéis destinados à luta operária: ser ele, ao mesmo tempo, reformista e revolucionário.

Page 31: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 31

século XXI, não encontrar-se mais centrado no pleno emprego. Desta forma, as lutas propostas no interior das organizações são cada vez mais enfraquecidas por força do crescente esvaziamento dos postos formais de trabalho, com consequente fragmentação da força sindical.

Castells (1999, p. 47), já havia previsto esse panorama quando o estudo concluiu que:

A sociedade, que era de tempo durável; com a inserção da tecnologia, da robótica, da telemática, além de diminuir estes postos de emprego, também provocou um processo de descaracterização das profissões. O tempo não é mais de previsão, o tempo é da imprevisão – nomeadamente de sociedade líquida. Por outro lado, relaciona-se em tempo real, tempo futuro e em dimensão planetária.

Por isso é incompatível falar-se em flexibilização do mercado de trabalho co- mo algo isolado. O que está se desregulamentando, desestruturando-se é o modelo de Estado, o padrão de sociedade em que o trabalho humano subordinado não é mais o ethos fundamental da convivência das pessoas em sociedade. Neste contexto, as multifacetadas formas de trabalho não se enquadram na visão clássica do Direito do Trabalho. Logo, a flexibilização do mercado de trabalho não é causa, mas, consequência desta ruptura.

O foco teórico da atualidade se inverte, para afirmar que quem criou o traba-lho-dever foi o capitalismo. E tal modalidade de trabalho sempre foi degradante e vai continuar sendo. Muda a escravidão, muda o espaço e, também, através do desenvolvimento tecnológico, mas continuará sendo trabalho-sacrifício.

Estas são as razões pelas quais dizer-se que a Revolução Tecnológica trouxe como principal desafio para juristas, sociólogos, antropólogos, enfim, para a ciência de um modo geral, a necessidade de se estabelecer uma modalidade de proteção para trabalhadores que estão na informalidade bem como para os desempregados. Um escudo protetivo capaz de inibir os efeitos maléficos decorrentes do desemprego estrutural. E mais, privilegiar o trabalho livre em detrimento do trabalho subordinado. Este é o desafio teórico-prático do mundo contemporâneo, especialmente no campo do Direito do Trabalho.

Sendo assim, para aonde devem caminhar as lutas libertárias e contra-hegemônicas?

Page 32: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

32 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Costa (2012, p. 75-81) examinou detidamente essa matéria e visualizou três propostas políticas. A primeira e segunda são resultantes do socialismo. Sendo que a primeira funda-se nos pensamentos marxistas ortodoxos, na Revolução Socialista. Nesta proposta, apenas a classe operária estaria legitimada para as lutas e a exploração estaria restrita a ela. Já na segunda, se baseia na revolução desarmada; concebendo o comunismo como processo irreversível em função das contradições do capitalismo e do desmantelamento do binômio Capital versus Trabalho Subordinado.

A terceira proposta se finca no ideário neo-social-democracia, aceitando a impossibilidade da restauração da velha sociedade do trabalho e defendendo a destruição do ultraliberalismo com ressurreição do Estado de Bem-estar Social, além da taxação do capital improdutivo e da criação de uma renda universal garantida que possibilitem a todos os habitantes do planeta uma vida digna – com ou sem trabalho4.

Apesar de encontrarem seu núcleo em fundamentos diversos, existe um aspecto comum nas três, segundo Costa (2012, p. 81):

Em todas elas há uma clara posição do sindicato e do sindicalismo contemporâneos, no sentido de promover lutas sociais libertárias, emancipatórias e contra-hegemônicas e que se voltam para combater o ultraliberalismo global, que espalha miseráveis, patologias sociais e alarmantes desigualdades por todo o planeta.

Contudo, não se pode deixar ignorar que os sujeitos beneficiários dessas lutas não estão limitados àqueles que se encontram vinculados por um elo de subordinação, tendo em vista, como já dito anteriormente, que esses sujeitos e

4 Mas, é preciso lembrar ainda que, se o sindicalismo vinculado às lutas históricas – econômicas e políticas – não abriram mão de lutar por limitação da jornada e salários compatíveis, porque a luta para taxar o capital financeiro internacional, tal como faz a Fundação ATTAC – Associação pela Taxação das Transações Financeiras e a Ação Cidadã – encontra-se, apenas, vinculado à neo-social-democracia, como dizem os marxistas ortodoxos. Não é assim que pensam, por exemplo, François Chesnais, Claude Serfarti e Charles-André Udry, que ainda acrescenta todos os movimentos coletivos contrários às diretrizes do FMI e da OMC, às batalhas de Seattle e tantos outros movimentos antimundialização como sendo constituídos “pelo corpus teórico herdado dos críticos mais incisivos do capitalismo – Marx e Engels) – crítica cuja renovação é indispensável à luz da experiência do século XX e também da evolução do capitalismo e do imperialismo contemporâneo”(ESTEVES, 2010, p. 279).

Page 33: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 33

esse modo de produção não mais constitui o centro de referência na sociedade do trabalho no pós-industrialismo.

Essa nova forma de pensar, discorre Costa (2012, p. 83),

[...] implica manejar uma bibliografia multidisciplinar que, lamentavelmente, não é manejada pela doutrina jurídico-trabalhista. Esta negligência, esta omissão é inaceitável e exige do pesquisador, que tem o Direito do Trabalho como seu objeto de pesquisa e sua profissão de fé, que amplie os seus horizontes e não fique preso às inevitáveis repetições e reproduções de pressupostos ultrapassados e que comprometem este campo do conhecimento jurídico, enquanto ramo de um saber social ou cultural.

D’ Angelo (2010, p. 70) efetivou uma proposta cujo conteúdo advém do campo socialista e da neo-social-democracia e tem por núcleo uma ação alternativa de transição política, a saber: a economia Social e Solidária5.

Já em 2008, quando as liberdades sindicais e os atos antissindicais foram investigados por Vasconcelos Filho (2008, p. 84), o estudo demonstrou

[...] com as novas propostas de trabalho, que não advêm do emprego, também devem nascer os seus respectivos sindicatos, cujo fim maior é o resguardo das liberdades sindicais no cenário das empresas de economia social e solidária. Estas têm como finalidade primeira a inversão de valores estabelecidos pelo modelo de trabalho estabelecido no industrialismo. Aqui, o bem-estar do homem constitui o norte para ser estabelecida uma sociedade justa, e o capital deverá figurar como mero instrumento para materializar tal desígnio, e o Estado deverá ser o agente impulsionador para a realização de tal modelo social.

Sendo assim, é imprescindível a ressurreição da luta política para legitimar a massa trabalhadora, em seu mais amplo sentido, a insurgir-se contra toda ação que destitua esses atores sociais da condição de sujeito. Por derivação, a luta reinvidicativa continuará, agora, reconfigurada em seus sujeitos e âmbitos espaciais.

5 A professora Isabele Moraes descreveu com detalhes estas novas formas de relacionamento trabalhista, que não se encontra respaldado no valor de troca, mas no valor de uso.

Page 34: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

34 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Os movimentos sociais que tomaram as ruas brasileiras em junho de 2013, ilustram bem esta ressurreição. Segundo Lima e Rossato (2013, p. 02), os movimentos que partiram das ruas brasileiras clamaram por direitos sociais. Isto porque, a promessa neoliberal não conseguiu efetivá-los. Da pauta, constavam os direitos sociais, os serviços públicos a preços justos e com qualidade, tudo aquilo que o neoliberalismo prometeu, mas não cumpriu.

8. o movimento sindical contemporâneo: as pro-postas de boaventura de souza santos e antonio negri

O que impressiona, a partir da literatura que foi disponibilizada para a construção do presente estudo, é que existe uma confluência entre as doutrinas anarquistas e marxistas não ortodoxas, no sentido de articular um novo movi-mento antecipatório inteiramente desvinculado da figura do Estado.

A desagregação dos vínculos sociais instituídos pelo Estado Providência, longe de ser um obstáculo às novas insurgências, é ela mesmo o campo explosivo contra o poder dominante das novas insurgências. Ou melhor, é no conjunto de explorados e subjulgados – na multidão – e no seu poder político potencial, ou como sujeito político, que está sendo forjada a nova luta emancipatória.

É justamente na história dos conflitos do século XX que se pode encontrar a formação da massa de produtores exploradores e subjugadores. Para Hardt e Negri (2005, p. 418).

[...] entre as Revoluções de 1917 e 1949, as grandes lutas antifascistas das décadas de 1930 e 1940, e das numerosas lutas de libertação da década de 1960 até as de 1989, as condições da cidadania da multidão nasceram, se espalharam e se consolidaram. Longe de derrotas, as revoluções do século XX fizeram avançar e transformou os termos do conflito de classes, propondo as condições de uma nova subjetividade política, uma multidão insurgente contra o poder imperial. O ritmo estabelecido por esses novos movimentos revolucionários é a batida de uma nova aetas, uma nova maturidade e metamorfose dos tempos.

E ainda aduzem que um dos destaques da constituição da multidão é que se torna um movimento espacial, sem lugar limitado e autônomo. Circulando, a

Page 35: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 35

multidão se reapropria de espaços e constitui-se como sujeito ativo (HARDT; NEGRI, 2005, p. 419).

Em toda a parte a que chegam, e ao longo de seus caminhos, tais movimentos determinam novas formas de vida e comemoração – em toda parte eles criam essa riqueza que, de outra forma, o capitalismo pós-moderno parasitário, não saberia sugar do sangue do proletariado, por que hoje, cada vez mais, a produção tem lugar em movimento e cooperação, em êxodo e comunidade. É possível imaginar a agricultura e a indústria de serviços dos EUA sem a mão-de-obra do imigrante mexicano, ou o petróleo árabe sem palestinos e paquistaneses? Além disso, onde estariam os grandes setores inovadores de produção imaterial, do design à moda, e da tolerância à ciência na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia, sem a mão-de-obra ilegal das grandes multidões, mobilizada em direção aos radiantes horizontes da riqueza e da liberdade capitalistas?

Para responder a esta indagação Hardt e Negri (2005, p.422) reforçam a autonomia potencial da multidão em movimento, para afirmar que:

[...] as migrações em massa tornaram-se necessárias para a produção. Todo caminho é forjado, mapeado e percorrido. Parece que quanto mais intensamente cada um é percorrido, e quanto maior é o sofrimento ali depositado, mais cada caminho se torna produtivo. São esses caminhos que tiram a cidade mundana das nuvens e da confusão que o império lança sobre ela. É assim que as massas ganham o poder de afirmar sua autonomia, viajando e expressando-se por intermédio do aparato da generalizada e transversal reapropriação territorial.

Aí reside a grande contradição do império. Ao mesmo tempo em que precisa imprescritivelmente dessa força de trabalho explorada, ele institui políticas que reprimem tais movimentos, mas não conseguem impedir os fluxos contínuos de populações. Daí a necessidade de isolar e restringir os movimentos espaciais das massas para não deixá-los adquirir legitimidade política.

Segundo os referidos autores (2005, p. 423) o Império pode apenas isolar, dividir e segregar:

O capital imperial de fato ataca os movimentos da turba com incansável determinação: patrulha os mares e as fronteiras; dentro

Page 36: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

36 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

de cada país, ele divide e segrega e, no mundo do trabalho, reforça as divisões e fronteiras de raça, gênero, linguagem, cultura, e assim por diante. Entretanto, precisa ter o cuidado de não restringir demais a produtividade da multidão, porque o império depende desse poder. Os movimentos das massas precisam ter a permissão de se estender cada vez mais na cena mundial, e as tentativas de sufocá-los são realmente paradoxais, manifestações invertidas de força.

Em meio a essa contradição é que nasce a vitalidade política da multidão e sua consciência dirigida contra as operações repressivas imperiais e dar-lhe combate; contrariar e subverter justamente os limites e as segmentações que elas impõem. Esta é, segundo eles, a nova força coletiva de trabalho. “É questão de reunir esses instrumentos de resistência e empunhá-los de comum acordo contra os centros nervosos do comando imperial” (HARDT; NEGRI, 2005, p. 423).

A busca dirige-se a um programa político para a multidão, a partir de uma primeira demanda política que é uma cidadania global.

Para Negri (2014, p. 30), “a multidão é o nome do sujeito que produz tudo: a riqueza, a realidade, o mundo social”, consiste numa “multiplicidade de singularidades irredutíveis”, tornando-se um sujeito coletivo que pode agir em comum, unitariamente, com a simultânea manutenção de suas diferenças”. O conceito de multidão pode ser entendido como a definição de uma classe, tal qual se chamou de proletariado a classe trabalhadora do industrialismo. Entretanto, aquele novo sujeito coletivo – a multidão – não se relaciona com o regime de fábrica, em virtude de sua perda de proeminência e centralidade no mundo do trabalho atual, mas com as “múltiplas formas de produção cooperativa, a ‘classe trabalhadora’ não pode ser adequadamente traduzida nos conceitos reduzidos de operariado e congêneres, caracterizando-se cada vez mais como multidão de singularidades” (NEGRI, 2014, p. 30).

Os desafios por eles apresentados e que interessa ao presente estudo, dizem respeito a uma nova militância de trabalho que se desloca da produção industrial. O sindicato moderno e a constituição dos partidos de vanguarda deram o primeiro tom das lutas operárias. A segunda fase é a dos regimes fordiano e taylorista centrados na massa operária. Tinha como objetivo a criação de uma alternativa real ao sistema de poder capitalista (HARDT; NEGRI, 2005, p. 433).

Page 37: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 37

A organização de sindicatos em massa, a construção do Es-tado do Bem-Estar Social e o reformismo social-democrata resultaram das relações de força que a massa operária definiu e da superdeterminação que ela impôs ao desenvolvimento capitalista. A alternativa comunista atuou nessa fase como um contrapoder dentro dos processos de desenvolvimento capitalista.

Agora, isso não é mais possível. A militância operária ressurge dentro dos regimes informais da produção pós-fordista, enquanto a fadiga do operário social, nele incluindo os diversos fios da chamada força de trabalho imaterial.

Em resumo:

Um poder constituinte que conecta a intelectualidade e a autovalorização das massas em todas as arenas da flexível e nômade cooperação social produtiva é a ordem do dia. O programa do operário social é um projeto de constituição. Na matriz produtiva atual, o poder constituinte do trabalho pode ser expresso como autovalorização do humano (o direito igual de cidadania para todos na esfera indireta do mercado mundial); como cooperação (o direito de comunicar-se, construir línguas e controlar as redes de comunicação); o poder político, ou melhor dizendo, como a constituição de uma sociedade na qual a base do poder é definido pela expressão da necessidade de todos. (HARDT; NEGRI, 2005, p. 433-434)

Aos trabalhadores com atividades transversais e suas características nômades retratadas por Hardt e Negri vêm somar-se os trabalhadores do conhecimento ou do trabalho imaterial. Esta novíssima alternativa de trabalho assume uma importância decisiva no presente estudo, não somente pela sua capacidade e potencialidade articuladoras, mas sobretudo, pela sua potencialidade explosiva.

São eles que manipulam as estratégias políticas da nova empresa, que desmantelam o sistema fordista de produção, que manipulam bancos de dados armazenados nos supercomputadores das grandes corporações, que criam pro-gramas, que põem em funcionamento os fluxos de informação, a manipulação das almas humanas, embora também possam invadir essas mesmas redes, paralisá-las, manipulá-las contra o capitalismo hegemônico. Podem também contribuir para desencadear uma nova postura de sindicato melhor adaptado às relações locais, transnacionais e globais.

Page 38: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

38 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Reportando-se especificamente a democracia sindical, afirma que os intentos para superar o sindicalismo fundado na delegação de poder expõem, primeiro, com militâncias débeis e ainda, fundada em centralização, burocratização ou profissionalização dos dirigentes – estes inclusive despreparados para enfrentar as mutações contemporâneas de caráter sócio-econômico.

Tomando por base o império de Berlusconi, afirmam Lazzarato e Negri (2001. p.57) que, a Benneton, “[...] de fato, é um empresário deveras estranho, para mui- tos, inexplicavelmente, no quadro tradicional da teoria econômica: não tem operários, fábricas nem redes distribuivas”. Por isso, a extração da mais-valia não mais resulta do Direito do Trabalho, mas da exploração de pequenas e médias empresas e da apropriação da subjetividade dos consumidores que se dá por meio dos fluxos – de produção, circulação, consumo, desejo. “O novo capitalismo se constitui sobre a potência dos fluxos, sobre os diferenciais de velocidade de sua circulação, enquanto o empresário é aquele que se define pela capacidade de funcionar como elo e multiplicador de sua velocidade de circulação” (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 51). Produção, pois, de mais-valia, mas produção também de sentido e produção de espaço político. Relação de redes de tipo político que nada tem a ver com os modelos organizacionais pautados em métodos de trabalho da fábrica. Fábrica, pois, imaterial.

Há, aqui, dois aspectos importantes (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 51):

As redes de distribuição também não pertencem à Benetton. A rede de distribuição é organizada, segundo o método franchising. Reencontra-se nesta parte do ciclo produtivo as mesmas carac-terísticas de controle e organização visto funcionar nos fluxos industriais, gestão social e política de mediação da legitimação e da comunicação das redes através da ‘marca’, mais do que vínculos diretos, disciplinares ou administrativos.

O método funciona da seguinte maneira: a casa-mãe passa a oferecer a um determinado comerciante a sua marca e a sua mercadoria. A sua aura, corresponde à sua identidade. Aí se estabelece a simbiose: “o comerciante não é mais o comerciante anônimo, mas o negócio Benneton” (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 60). Ela pré-estabelece regras de estilo e comportamento, e o comerciante deverá honrar a marca. Formas políticas de estabelecer condições sociais das redes produtivas e distributivas.

Page 39: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 39

Eis as razões pelas quais “[...] uma das funções mais importantes exercidas pelo empresário político na ‘construção social do mercado’ consiste na constituição do ‘consumidor” (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 61). Por isso, ela jamais delega a publicidade a agências externas que se dirigem à apropriação do sujeito consumidor, na produção da subjetividade, tal como acontece na ação política.

Impressionam essas afirmações:

Mais precisamente ainda, a publicidade não serve somente para informar sobre o mercado, mas para constituí-lo. Entra em relação ‘interativa’ com o consumidor, voltando-se não só as suas necessidades, mas, sobretudo, aos seus desejos. Não volta somente às suas emoções, mas interpela diretamente a razão ‘política’. Não produz somente o consumidor, mas ‘o indivíduo’ do capitalismo imaterial. (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 63)

Contrapondo-se às doutrinas marxistas e anarquistas, surgem as versões reformistas do estado e da sociedade. Mas esses autores, sobretudo, Boaventura de Souza Santos, não pretendem o retorno do Estado do Bem-estar Social e o pleno emprego. Ao contrário, parte do mesmo caminho: a construção de instâncias emancipatórias.

Nem mesmo as entidades oficiais deixam de ressaltar a importância de contrapor-se ao capitalismo hegemônico, à exclusão social dele decorrente. A Unesco, por exemplo, adverte para os conflitos decorrentes do embate entre lucros econômicos versus conflitos sociais e uma “ética universal na governabilidade do mundo” (GRUPO KRISIS, 1999, p. 77-78).

Estudos patrocinados por esta mesma entidade confirmam que o trabalho subordinado já não representa uma função estruturante, central, mesmo que, no momento, o desemprego haja provocado uma verdadeira desagregação global do vínculo social. A insistência na manutenção desse paradigma, ou seja, o vínculo entre cidadania e estatuto de trabalho, representa um desvio da modernidade.

Assim para Sue (2002, p. 426),

[...] a análise do trabalho está, segundo nos parece, demasiado centrada nos excluídos e no desemprego, quando também existe uma crise de trabalhadores no seio do próprio trabalho: flexibilidade do trabalho provoca uma forma de precariedade

Page 40: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

40 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

que substitui a luta por ‘postos’, o combate pelo ‘seu lugar’. É uma situação nova, que não deixaria de ter efeitos na relação do trabalhador com o valor do trabalho, conforme testemunha o simples exame do estado de tensão social, tornando extremamente pesado no mundo profissional.

Em Boaventura de Souza Santos, aparece o Estado-novíssimo-movimento-social, em que ele parte para a reestruturação do Estado, de um Novo Estado Providência, realçando a necessidade de criar as condições para estabelecer-se, ao lado da democracia representativa, uma verdadeira democracia participativa. Isto se daria por meio do terceiro setor, da articulação desses movimentos não só como espaços privilegiados e como interlocutores válidos.

Dentre os obstáculos para a constituição do Estado-novíssimo-movimento-social, destaca-se a inoperância do movimento sindical, ainda centrado num sistema extremamente burocrático e distanciado dos excluídos, de uma visão global, de uma aversão às novas tecnologias e, sobretudo, o descompromisso com articulações imprescindíveis com o terceiro setor. Admite ele que o sindicato, esse velho protagonista, há de existir, o capitalismo e a sociedade dividida em classes, mas que ele deve juntar-se às forças sociais forjadas no pós-industrialismo. Esta nova capacidade aglutinadora dirige-se à emancipação social e à constituição de um novo Estado, criado a partir de novos paradigmas.

Entre o Estado Empresário e o Estado do Bem-estar Social houve a

[...] refundação democrática da administração pública. O papel do terceiro sector na persecução deste objetivo crucial, mas, ao contrário de que pode parecer, a nova articulação entre o Estado e o terceiro sector não implica a complementariedade entre um e outro e, muito menos, a substituição de um pelo outro (ESPANQUE, 2005, p. 367).

Ao contrário, poderá haver, inclusive, confrontações. O que importa é evitar os fascismos sociais, a partir da via de articulação entre democracias representa-tivas e participativas, a fim de garantir a eficácia do potencial democratizante que existe em cada um deles.

No plano das relações individuais de trabalho, defende uma partilha do trabalho, mas não, a partir da ideia de pleno emprego. Poderia surgir com a

Page 41: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 41

redução da jornada de trabalho e da criação do trabalho social. A redescoberta da democracia do trabalho implica a redescoberta democrática do sindicalismo. Ou melhor, a reivindicação do movimento sindical, para acompanhar o ritmo do desenvolvimento capitalista, a partir do momento em que este se questione.

Aqui também as suas propostas coincidem com as dos anarquistas e dos marxistas. Conforme Espanque (2005, p. 385-386):

Este facto esteve na origem de uma das debilidades do sin-dicalismo. Ao centrar-se prioritariamente nas questões do em-prego e do salário, os sindicatos tenderam a desinteressar-se dos desempregados, das mulheres, dos reformados e dos jovens, à procura do primeiro emprego e, ao fazê-lo, descuraram um campo imenso de solidariedade potencial.

Realça, ainda, que os movimentos emancipatórios conduzem o sindicalismo para uma luta local, transnacional e global (ESPANQUE, 2005, p. 367). E mais:

[...] é que a experiência de trabalho, sendo cada vez mais presente e premente, enquanto prática de vida, será cada vez mais desvalorizada enquanto cultura e ideologia. Será cada vez cercada e relativizada por experiências culturalmente mais valorizadas, tais como a experiência da cidadania contra a exclusão social, da participação contra a alienação, da democracia contra os fascismos privados, dos direitos do consumidor contra um consumo degradado, dos direitos ecológicos e culturais contra a perda da qualidade de vida. Por essa via, far-se-á uma transferência progressiva que a identidade operária produziu: uma ambição de cidadania partilhável por toda a sociedade.

Desse modo, o reconhecimento, apenas, de empregados e empregadores na sociedade informacional não mais atende os anseios para o desenvolvimento político e econômico-social. Deverão ser incluídos os desempregados, os trabalhadores sem-teto, os trabalhadores sem-terra, os não empregáveis, além dos que desejam viver a partir do trabalho livre.

Nesse contexto, as idéias de Negri e Boaventura convergem para propostas dirigidas às novas insurgências da multidão. A palavra de ordem tanto dos movimentos dos trabalhadores organizados como das teorizações está centrada no lema “emancipação social”, que daria por meio de uma articulação local,

Page 42: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

42 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

transnacional e global dirigida contra o modelo de globalização excludente e hegemônico.

Se o capitalismo é global e os meios de comunicacionais também, não faz sentido a existência do sindicalismo sem a ruptura com suas velhas estruturas organizacionais, administrativas, ideológicas, políticas e discursivas. Precisa ele, antes de tudo, articular-se com os novos movimentos sociais que se espalham no mundo. Aliás, esses novos movimentos sociais precisam recepcionar a memória histórica dos movimentos operários, a fim de reunir forças mobilizadoras de novas estratégias de luta dirigidas à emancipação social.

9. conclusões

Diante desse novo mundo do trabalho, constituído por uma “multidão de singularidades” dissociadas de um modelo de produção fordista/taylorista parece não mais se justificar um sindicalismo de raiz obreirista em uma sociedade do trabalho em que os trabalhadores vinculados por um elo de emprego cada vez mais perdem relevância na constituição da população economicamente ativa.

No Brasil o trabalho subordinado ocupa 42% da PEA, e neste percentual, ainda, está incluído todo o trabalho precarizado pela terceirização de mão-de-obra, que correspondem a 9% da população economicamente ativa brasileira. Assim, 66% dos trabalhadores brasileiros estão na informalidade, desprotegidos, desregulados, enquanto o Direito se mantém insensível às novas configurações do trabalho no contexto de uma sociedade pós-industrializada.

A configuração da PEA dos países analisados revela que a massa trabalhadora está se deslocando, em maior escala que as demais categorias, para o contingente de trabalhadores por conta própria, que registrou variação de 22%, de 2001 a 2012, enquanto os assalariados apenas 9% no mesmo período.

Na atualidade, o sindicalismo tem que ter o olhar horizontalizado para a sociedade como um todo. Isto implica o reconhecimento de que há trabalhadores formais, mas que são minorias, e trabalhadores informais precarizados, que são maiorias, além dos excluídos do mundo do trabalho, no sistema capitalista hegemônico.

Page 43: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 43

Esse órgão de defesa dos trabalhadores necessita ser reconfigurado para aten-der as demandas de uma sociedade do trabalho composta de uma multiplicidade de singularidades.

Diante deste quadro, o sindicalismo tem que agrupar todas estas forças humanas conectados com uma nova articulação, que não é reducionista, do ponto de vista do obreirismo. É mais ampla e conjugada dentro de um novo modelo discursivo. Em termos práticos, a conscientização dessa realidade social tem crescido, mas ainda de forma tímida. Sendo assim, faz-se necessário a doutrina trabalhista absorver a necessidade de tutela dos novos sujeitos, para, em um segundo momento, haver uma articulação dirigida a uma nova emancipação social, sem a qual o sindicalismo e o sindicato não tem razão de existir.

As Constituições do Brasil, da França, da Espanha, de Portugal e da Itália conceberam um sindicalismo essencialmente obreirista, estando elas, portando, na via oposta ao florescimento de um sindicalismo político-revolucionário capaz de atender a multiplicidade de sujeitos da sociedade informacional.

10. referências

ANDRADE; E. G. L. Direito do Trabalho e Pós-Modernidade: fundamentos para uma teoria geral. São Paulo LTr, 2005.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http:// www .planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Aces-so em: 10 jun. 2014.

CAUÉLLAR, J. P. (org.). Nossa diversidade criadora. Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento. Campinas: Papirus, 1997.

COCCO, Giuseppe. Do estudo de Espinosa à inspiração na poética de Leopardi, o projeto negriano encontra “o pleno do ser comum” entre o vazio inicial e o nada final. Revista Cult. São Paulo. Ano 17, n. 189, abril de 2014.

COSTA, Emanuelle Bandeira de Moraes. O Sindicato e o Sindicalismo no Contexto da Doutrina Jurídico-trabalhista clássica. 2012. 165 f. Dissertação (Mestrado em Direito) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.

Page 44: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

44 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

DAMÁSIO, Roberta Hundzinki. Sindicalismo. Revista Espaço Acadêmico. Ano 03, n. 26, jul. 2003. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br>. Acesso em: 10 jun. 2014.

D’ANGELO, Isabele Bandeira de Moraes. A subordinação da força de trabalho ao capital: para ampliar os cânones da proteção e o objeto do Direito do Trabalho, a partir da economia social ou solidária. 2010. 188 f. Dissertação (Mestrado em Direito) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 9. ed. São Paulo: LTr, 2010.

ESPANHA. Constituição de 1978. Disponível em: <https://www.constitutepro ject.org/ constitution/ Spain_2011#37>. Acesso em: 10 jun. 2014.

ESPANQUE, E. Reivindicação do Sindicalismo e os novos desafios da emancipação. Boaventura de Souza Santos (org.). In: Trabalhar o mundo – para novos contornos. Coleção: Reinventar a Emancipação Social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

ESTEVES, J. T. A Seguridade social no contexto de uma renda universal garantida: os fundamentos político-jurídicos para uma ética universal na governabilidade do mundo. 2010. 234 f. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010.

FRANÇA. Constituição Francesa de 1958. Disponível em: <https://www.cons tituteproject.org/constitution/France_2008#162>. Acesso em: 10 jun. 2014.

GALBRAITH, J. K. A sociedade injusta. Rio de Janeiro: Campus, 1916.

GONÇALVES, M. A.; THOMAZ JUNIOR, A. Informalidade e precarização do trabalho: uma contribuição a geografia do trabalho. Scripta Nova. Revista Eletrónica de Geografia y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. VI, n. 119 (31), 2002. [ISSN: 1138-9788]. Disponível em: <http://www.ub.es/geocrit/sn/sb119-31.htm>. Acesso em: 29 ago. 2006.

GRUPO KRISIS. Manifesto contra o trabalho. São Paulo: Lab. de Geografia Urbana, 1999.

HARDT, M.; NEGRI A. Império. São Paulo: Record, 2005.

Page 45: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 45

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. PNAD 2012. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/>. Acesso em: 02 nov. 2013.

______. Séries estatísticas. Disponível em: <http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=7&op=0&vcodigo=PD318&t=pessoas-10-anos -ocupadas>. Acesso em: 10 nov. 2013.

ITÁLIA. Constituição Italiana de 1947. Disponível em: <https://www.cons tituteproject.org/ constitution/Italy_2012#145>. Acesso em: 10 jun. 2014.

KASSAB, A. Ricardo Antunes esmiúça o receituário neoliberal. Jornal Unicamp. São Paulo, Edição n. 263, de 23 a 29 de agosto de 2004. Disponível em: <http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/agosto2004/ju236 pag11.html>. Acesso em: 27 ago. 2006.

LAZZARATO, M.; NEGRI A. Trabalho Imaterial – formas de vida e produção de subjetividade. Coleção: Espaços do Desenvolvimento. São Paulo: DP&A Editora, 2001.

LIMA, F. A.; ROSSATO F. C. As manifestações populares brasileiras em junho de 2013: Sua natureza e verdadeiras intenções. Crítica do Direito. 02 de set. a 06 de out de 2013. N. 3 - volume 52 . Disponível em: <http://www.criticadodireito.com.br/>. Acesso em: 07 jun. 2014.

LIRA. Fernanda Barreto. A greve e os novos movimentos sociais. São Paulo: LTr, 2008.

MANKIW, N Gregory. Introdução à Economia. Tradução de Maria José Cyhlar Monteiro. Rio de Janeiro: Campus, 2001.

MARQUES A. A doutrina do falseamento em Popper. 2013. Disponível em: <http:www.cfh.ufsc.br/~wfil/popper5.htm>. Acesso em: 10 jun. 2014.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO (Brasil). Terceirização é tema de fórum no Ministério Público do Trabalho. Brasília, 2011. Disponível em: <http://portal.mpt.gov.br/wps/portal/portal_do_mpt/comunicacao/noti cias/conteudo>. Acesso em :13 jun. 2014.

NEGRI, A. O pensador da potência política. Revista Cult. São Paulo. Ano 17, n. 189, p. 22-41, abr. 2014.

Page 46: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

46 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

NOGUEIRA, A. M. Perspectiva do Trabalho e do Sindicalismo no Brasil. São Paulo, 2000. Disponível em: <http://www.clacso.edu.ar/~libros/anpocs00/gt1>. Acesso em: 29 ago. 2006.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Ilostat. Disponível em: <http://www.ilo.org/ilostat/faces/help_home/Conceptsdefinitions?>. Acesso em: 10 nov. 2013.

SUE, R. Sociedade activa e novas utilizações do tempo. In: As chaves do século XXI. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

PORTUGAL. Constituição Portuguesa de 1976. Disponível em: <https://www.constitute project.org/constitution/Portugal_2005#511>. Acesso em: 10 jun. 2014.

ROCHA, Francisco Canais. Apogeu e declínio do sindicalismo revolucionário. Disponível em: <http://fiequimetal.pt/fstiep/index.php?option=com>. Acesso em: 10 jun. 2014.

ROZICKI, Cristiane. Espanha: a pluralidade sócio-econômica reconhecida. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/download.2.>. Acesso em: 13 jun. 2014.

VASCONCELOS FILHO, Oton de Albuquerque. Liberades sindicais e atos antisindicais. São Paulo: LTr, 2008.

Page 47: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 47

a reconstrução normativa do direito fundamental ao trabalho

Leonardo Vieira Wandelli1

Octávio Campos Fischer2

1. o problema: a centralidade inefetiva do direito fundamental ao trabalho

Ousa-se sustentar que o direito ao trabalho é o mais importante, embora talvez o menos efetivo dos direitos fundamentais. Por isso, vai-se privilegiar, neste espaço, uma abordagem voltada às perspectivas de sua implementação atual na ordem constitucional brasileira vigente, em detrimento dos aspectos relativos ao seu devir histórico e do aporte crítico que o direito ao trabalho, como expressão de necessidades que demandam uma profunda transformação da institucionalidade vigente, traz frente a essa mesma ordem que o consagra.3 Isso não significa, porém, que não seja necessário revolver os elementos de fundamentação desse direito. Ao contrário da clássica afirmação de Bobbio, para quem “o importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los”4, postula-se, na esteira do que foi sustentado por Joaquín Herrera Flores, que já é mais que tempo de parar para refletir como, para proteger os direitos humanos, é indispensável repensar-se a sua fundamentação.5

1 Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná, (2009); DEA em Derechos Humanos y Desarrollo pela Universidade Pablo de Olavide de Sevilla (2006); Mestre em Direito pela UFPR (2003); Professor do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia da Unibrasil e Vice Líder do GP Trabalho e Regulação no Estado Constitucional; Coordenador do Curso de Especialização Capacitação para o Assessoriamento à Jurisdição Trabalhista no TRT-PR; Instrutor colaborador da SDH-CONATRAE; Membro fundador da APDT – Academia Paranaense de Direito do Trabalho; Juiz do Trabalho no Paraná.

2 Doutor em Direito pela UFPR; Professor do Programa de Mestrado em Direitos Fundamen-tais e Democracia da Unibrasil; Desembargador do TJ/PR.

3 A respeito do duplo caráter, normativo-positivo e, ao mesmo tempo, crítico-transformador do direito ao trabalho, ver WANDELLI, Leonardo Vieira. O direito humano e fundamental ao trabalho: fundamentação e exigibilidade. São Paulo, LTr, 2012.

4 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos (trad. Carlos Nelson Coutinho). 10ª ed., Rio de Janeiro, Campus, 1992, p. 37.

5 HERRERA FLORES, Joaquín. Los derechos humanos como productos culturales: crítica delhumanismo abstracto. Madrid, Catarata, 2005, p. 36-38.

Page 48: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

48 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Neste primeiro tópico, procura-se identificar o contexto normativo do direito ao trabalho, cuja importância é desmerecida por um escasso desenvolvimento dogmático, colocando-se a questão das condições para superar-se essa paralisia. No segundo tópico sintetizam-se alguns elementos da reconstrução da fundamen-tação do direito ao trabalho que subsidiarão uma releitura concretizadora cujos contornos gerais se esboçam nos tópicos 3 e 4. No tópico 3, procura-se desenhar a figura complexa de um direito multidimensional, cuja essência é explicitada, no tópico 4, como um direito ao conteúdo do próprio trabalho.

Reiteradamente proclamado nos textos constitucionais e de normas internacionais relativas a direitos humanos, o direito ao trabalho é considerado pela doutrina internacional mais abalizada como “el arquetipo de los derechos sociales”6 ou “o direito social por antonomásia”7 ou ainda “il primo dei diritti sociali”8. Sua centralidade para o discurso jurídico é reiterada na literatura, não só por razões de ordem normativa, mas também por razões de ordem histórica – como primeira bandeira que levou ao constitucionalismo social – e de ordem cultural – pela necessária hierarquia valorativa que assume na “sociedade do trabalho”.9 Sobretudo, tal direito é reconhecido como a condição indispensável para outros direitos humanos, como articulado de modo taxativo na resolução 34/46, de 1979, da Assembléia Geral da ONU: “a fim de garantir cabalmente os direitos humanos e a plena dignidade pessoal, é necessário garantir o direito ao trabalho”.10

6 SASTRE IBARRECHE, Rafael. El derecho al trabajo. Madrid, Trotta, 1996, p. 19.7 “Que el derecho al trabajo ha sido considerado tradicionalmente como el derecho social

paradigmático entre todos los derechos sociales, o el derecho social por antonomasia, no necesita ahora ya particulares justificaciones, pues es un dato adquirido la numerosísima literatura al respecto.” MONEREO PÉREZ, José Luiz e MOLINA NAVARRETE, Cristóbal. El derecho al trabajo, la libertad de elección de prefesión u oficio: principios institucionales del mercado de trabajo, in MONEREO PÉREZ, MOLINA NAVARRETE e MORENO VIDA (dir.), Comentario a la Constitución socio-económica de España, Granada, Comares, 2002, p. 288.

8 GIUBBONI, Stefano. Il primo dei diritti sociali. Riflessioni sul diritto al lavoro tra Constituzione italiana e ordinamento europeo. Disponível em http://aei.pitt.edu/13686/1/giubboni_n46-2006int.pdf.

9 MONEREO PÉREZ e MOLINA NAVARRETE, ob. cit., loc. cit.10 Relevante o art. 13 da Proclamação de Teerã, de 1968, também da AG da ONU, que dispõe:

“Uma vez que os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis, a realização plena dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais,

Page 49: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 49

No dizer de Celso de Albuquerque Mello seria “o direito ao trabalho o mais importante, ou o direito básico dos direitos sociais”11, sendo a condição para os demais direitos sociais. E, sem estes últimos, não há sentido para os direitos individuais clássicos, uma vez que já adquirida a compreensão da interdependência e indivisibilidade dos direitos humanos: “o que interessa a liberdade de expressão se não se têm os direitos à saúde, ao trabalho, à alimentação?”12

Com efeito, no plano internacional há um grande acervo de normas inter-nacionais de direitos humanos em geral e, em especial, de direitos sociolaborais, que se referem explicitamente ao reconhecimento e a formas de implementação do direito ao trabalho. A principiar, o art. 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.13 É relevante que o item I desse dispositivo distingue o direito ao trabalho, como expressão mais geral, de suas expressões parcelares, como o direito à livre escolha de emprego, o direito a condições justas de trabalho e o direito à proteção contra o desemprego. Bem assim, os itens II a IV, consignam o direito à igualdade salarial para igual trabalho, o direito de organização e filiação sindical e, em especial, o direito a uma remuneração que assegure ao trabalhador e sua família uma existência digna. Não se olvide, ainda, o vínculo indivisível firmado, no art. 22 da DUDH, entre os DESCs e a dignidade e o desenvolvimento da personalidade. Em termos dogmáticos, esse desenho de um direito geral, que se desdobra em aspectos parcelares, expressa a pluralidade de dimensões normativas característicado direito ao trabalho, como se verá adiante.

é impossível. O alcance de progresso duradouro na implementação dos direitos humanos depende de políticas nacionais e internacionais saudáveis e eficazes de desenvolvimento econômico e social.”

11 MELLO, Celso de Albuquerque. A proteção dos direitos humanos sociais nas Nações Unidas. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 228.

12 Idem, p. 221. 13 Artigo23. I) Todo o homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições

justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. II) Todo o homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual

trabalho. III) Todo o homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe

assegure, assim como a sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.

IV) Todo o homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses.

Page 50: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

50 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Já o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - PIDESC, de 1966, tratado vigente no âmbito interno brasileiro14 e que deu prosseguimento à positivação dos direitos enunciados na DUDH, assegura o direito ao trabalho em seu art. 6º, elencando, de forma não exaustiva, o direito a trabalhar, à oportunidade de um trabalho livremente escolhido ou aceito, a for-mação profissional, a políticas de desenvolvimento econômico, social e cultural e a “ocupação plena e produtiva, em condições que garantam as liberdades políticas e econômicas fundamentais da pessoa humana”.15

Diversas outras normas e declarações internacionais consagram, com central normatividade, o direito ao trabalho. Pode-se mencionar, exem-plificativamente: o art. 6º16 do Protocolo de São Salvador17; o art. 45, b, da Carta da Organização dos Estados Americanos.18 Dentre as convenções e

14 Protocolo adicional ao Pacto de San José da Costa rica sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, incorporado ao direito interno brasileiro com o Decreto 591, de 06.07.1992.

15 Um amplo leque de implementação desse dispositivo é desenvolvido pelo Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais da ONU, encarregado do controle da implementação do PIDESC, na Observação Geral n° 18, de 24.11.2005, que será referida adiante. Diversas outras normas no âmbito da ONU se reportam ao direito ao trabalho. O art. 8, item 3, a, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; o artigo 5, parágrafo “e”, inciso “i”, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial; o artigo 11, parágrafo 1, item “a”, da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher; o art. 32 da Convenção sobre os Direitos da Criança; os artigos 11, 25, 26, 40, 52 e 54 da Convenção Internacional sobre Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Familiares.

16 Art. 6. 1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, o que inclui a oportunidade de obter os meios para levar uma vida digna e decorosa por meio do desempenho de uma atividade lícita, livremente escolhida ou aceita. 2. Os Estados Partes comprometem-se a adotar medidas que garantam plena efetividade do direito ao trabalho, especialmente as referentes à consecução do pleno emprego, à orientação vocacional e ao desenvolvimento de projetos de treinamento técnico-profissional, particularmente os destinados aos deficientes. Os Estados Partes comprometem-se também a executar e a fortalecer programas que coadjuvem um adequado atendimento da família, a fim de que a mulher tenha real possibilidade de exercer o direito ao trabalho.

17 Ratificado pelo Brasil pelo Decreto Legislativo 56, de 19.04.1995, sendo depositado em 21.08.1996, entrando em vigor, no plano internacional e para o Brasil em 16.11.1999, sendo completado o processo de introdução no direito interno brasileiro pelo Decreto 3.321, de 30.12.1999 (DOU 31.12.1999).

18 “b) O trabalho é um direito e um dever social; confere dignidade a quem o realiza e deve ser exercido em condições que, compreendendo um regime de salários justos, assegurem a vida, a saúde e um nível econômico digno ao trabalhador e sua família, tanto durante os anos de atividade como na velhice, ou quando qualquer circunstância o prive da possibilidade de trabalhar;”

Page 51: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 51

recomendações da OIT19 destaca-se o disposto no art. 1º da Convenção 122 da OIT,20 que dispõe sobre a política de emprego não só quantitativo, mas qualitativo, e que deverá procurar garantir:

a) que haja trabalho para todas as pessoas disponíveis e em busca de trabalho; b) que este trabalho seja o mais produtivo possível; c) que haja livre escolha de emprego e que cada trabalhador tenha todas as possibilidades de adquirir e de utilizar, neste emprego, suas qualificações, assim como seus dons, qualquer que seja sua raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social.

Juntamente com o art. 6º do PIDESC, antes mencionado, o qual ressalta que as condições de trabalho são determinantes para o exercício das liberdades políticas e econômicas fundamentais da pessoa, esse dispositivo forma a base normativa que explicita a projeção do direito ao trabalho sobre o princípio do pleno emprego, ressaltando que este deverá possibilitar ao trabalhador adquirir e utilizar as suas qualificações e dons. Consagra-se aí, em especial, o vínculo do direito ao trabalho com o que denominamos de direito ao conteúdo do próprio trabalho, que, como se explicita adiante, constitui o cerne do sentido desse direito.21

19 É sintomático que, na Declaração de 1998 sobre Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho, a OIT não incluiu nenhuma das Convenções que guardam pertinência mais próxima com o núcleo do direito ao trabalho, como as convenções 122 e 158 e 168. Nessa declaração, adotaram-se quatro princípios e direitos fundamentais do trabalho, correspondentes a 8 Convenções da OIT, que se consideram vinculantes de todos os países membros, independentemente de ratificação: 1) Liberdade de associação e de organização sindical e direito de negociação coletiva (convenções 87 e 98); 2) Eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório (convenções 29 e 105); 3) Abolição do trabalho infantil (convenções 138 e 182; 4) Eliminação da discriminação no trabalho (convenções 100 e 111). Destas, o Brasil ainda não incorporou ao direito interno a Convenção 87.

20 Ratificada pelo Brasil com o Decreto Legislativo 61, de 30.11.1966 e incorporada ao direito interno pelo Decreto 66.499, de 27.04.1970.

21 É essencial, ainda, a adoção, pela OIT, de uma agenda macropolítica de promoção do Trabalho Decente, compreendido como “um trabalho produtivo e adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, sem quaisquer formas de discriminação e capaz de garantir uma vida digna a todas as pessoas que vivem de seu trabalho.” ABRAMO, Laís. Trabalho decente, igualdade de gênero e raça/etinia e desenvolvimento. Brasília, 2006, disponível em http://www.oit.org.br/prgatv/prg_esp/genero/seminariofinal/26/Lais%20Abramo.pdf. PIOVESAN, Flávia, Direito ao trabalho decente e a proteção internacional dos direitos sociais, Cadernos da AMATRA IV, Porto Alegre, ano VI, n. 16 (Nov. 2011), p. 20-54. Para uma análise crítica do conceito de

Page 52: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

52 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

A Constituição brasileira de 1988 é igualmente enfática em assegurar a mais proeminente estatura normativa e hierarquia axiológica ao direito ao trabalho, como expressão da íntima relação que estabelece entre a dignidade humana, o valor do trabalho e os direitos e instituições que afetam a vida daqueles que vivem do trabalho. Designa o trabalho como um direito social fundamental (art. 6º) ao qual acresce, no Título dos Direitos Fundamentais, um amplo rol de direitos e garantias dos trabalhadores (art. 7º) e disposições relativas à liberdade sindical (art. 8º), direito de greve (art. 9º) e participação dos trabalhadores nos colegiados de órgãos públicos de seu interesse (art. 10) e na gestão das empresas (art. 11), além de vários dispositivos esparsos que, em maior ou menor medida, contemplam aspectos do direito ao trabalho e da proteção do trabalho em geral, concretizando-o em normas específicas ou fortalecendo o seu âmbito geral.

Tais dispositivos que consagram direitos e garantias são contextualizados, no plexo constitucional, pela atribuição, ao trabalho, da força jurídica de um valor social elevado à máxima hierarquia e que, junto com a livre iniciativa, é fundamento da República (art. 1o, IV), ao lado e intimamente ligado à dignidade da pessoa humana (art. 1o, III).22 A mesma tríade de valores fundamentais é encontrada no caput do art. 170, que estabelece os princípios da ordem econômica: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios (...)”. Note-se que, sendo o trabalho uma das principais expressões da dignidade humana, a ordem econômica somente se legitima à medida que estiver a seu serviço e não o contrário. Ainda, o art. 193 estabelece que a ordem social “tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. Por fim, o art. 205, ao estatuir a educação como direito de todos e dever do Estado e da família, estabelece os fins da promoção da educação, que associam o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, ressaltando o vínculo existente entre desenvolvimento da personalidade, educação para a cidadania e qualificação para o trabalho.

trabalho decente da OIT, à luz do direito ao trabalho, ver WANDELLI, O direito humano e fundamental ao trabalho, ob. cit., p. 234-235.

22 Sobre o valor constitucional do trabalho e sua vinculação à dignidade da pessoa humana, WANDELLI, Leonardo Vieira. Valos social do trabalho e dignidade na Constituição, in CLÈVE, Clèmerson Merlin. Curso de Direito Constitucional (no prelo).

Page 53: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 53

Do conjunto dos enunciados constitucionais resulta consistente a afirmação de que não há como se conceber a dignidade da pessoa humana, como funda-mento nuclear de todo o ordenamento jurídico, de modo tal que não contemple a intensa vinculação com o trabalho enquanto dimensão essencial dessa dignidade. No dizer de José Afonso da Silva,

isso tem o sentido de reconhecer o direito social ao trabalho, como condição da efetividade da existência digna (fim da ordem econômica) e, pois, da dignidade da pessoa humana, fundamento, também, da República Federativa do Brasil (art. 1o, III).23

Explícito, pois, o vínculo direto entre dignidade e direito ao trabalho. No discurso constitucional, o trabalho excede em muito a dimensão do ter, por meio de benefícios decorrentes da compra e venda da força de trabalho, mas diz respeito diretamente à dimensão do ser, dos aspectos mais essenciais da existência digna, a serviço da qual se coloca a ordem normativa e que se expressam no trabalho.

Pois bem, o conjunto de dispositivos constitucionais e normativas inter-nacionais, associados à identificação doutrinária da primazia do direito ao trabalho no quadro dos direitos, levaria a se supor que daí decorreria um correspondente acervo dogmático e jurisprudencial de concretização de sua força normativa.24Contudo, o cenário empírico jurídico atual prontamente desmente essa suposição. Sequer uma dimensão negativa do direito ao trabalho, como limite às ações do Estado potencialmente violadoras desse direito, vê-se suficientemente desenvolvida no espaço nacional, sendo escassa a produção teórica a respeito e rara a sua aparição nas decisões dos tribunais.25 No âmbito da jurisprudência do

23 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 20a ed., São Paulo, Malheiros, 2002, p. 288-289.

24 Compreende-se por força normativa das normas jurídico-estatais algo que abrange dois aspectos: um, que se refere ao estado de coisas de um certo grau de efetividade social do conteúdo das normas; outro, que diz respeito ao que o jusfilósofo alemão Friedrich Müller denomina concretização, ou seja, a construção social – pelos atores sociais em geral, dentre os quais os profissionais do direito – do sentido das normas a ser considerado judicial e extrajudicialmente. Normas, assim, são resultados de processos estruturados de concretização dos textos produzidos pelo estado democrático de direito, capazes de justificar a tomada de decisão por autoridades. MÜLLER, Friedrich. Discours de la méthode juridique. Paris, PUF, 1996, p. 186 e ss.

25 A respeito, LEDUR, José Felipe. A realização do direito ao trabalho. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999.

Page 54: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

54 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

STF, por exemplo, a maioria das poucas decisões que o abordam fazem referência a uma pequena fração do conteúdo do direito ao trabalho, relativo à liberdade de exercício de profissão. Se ampliarmos o questionamento para além da obrigação de proteção contra violações, incluindo as outras espécies de obrigações do Estado brasileiro para com a efetividade dos DESCs26, ainda menos se encontra em termos de medidas jurídicas concretas que se destinem explicitamente a proteger diretamente o direito ao trabalho, tanto em face de violações de particulares, quanto com o fim de promover as medidas legislativas, administrativas e judiciais para sua implementação. O fato é que o STF, embora tenha desenvolvido alguns aspectos do trabalho como valor constitucional e da liberdade de trabalhar, ainda está por iniciar a tarefa de desenvolver uma doutrina do direito fundamental ao trabalho. Uma inércia jurisprudencial que inclusive contrasta com os desenvolvimentos ainda iniciais, mas relativamente expressivos, que um renovado direito constitucional, absorvido pelos demais campos do direito, vem propiciando no âmbito de outros direitos sociais, especialmente nos direito à saúde e à educação. A percepção de que não há um abismo entre a estrutura normativa de direitos sociais e de direitos civis e políticos vem possibilitando diversos avanços na exigibilidade desses outros direitos que, contudo, não vêm alcançando o direito ao trabalho.27

Fábio Konder Comparato afirma ser o direito ao trabalho “a pedra angular da construção de uma verdadeira sociedade democrática”28, mas a doutrina constitucional brasileira raramente dedica algumas linhas a esse que seria o carro chefe dos direitos sociais, tanto por sua relevância teórica, quanto por sua primazia histórica.29

26 A recomendação 12 do Comitê de peritos do PIDESC explicita três espécies de obrigação do Estado: a) não violar diretamente o direito; b) protegê-lo em face de violações de terceiros; e c) promover todas as medidas legislativas, administrativas e judiciais ao seu alcance para sua efetiva implementação.

27 Um excelente estudo dessas práticas doutrinárias e judiciais em diversos países, embora com a explícita desconsideração do direito ao trabalho, foi feito por ABRAMOVICH, Victor e COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibiles. Madri, Trotta, 2002. Contudo, já na 2a edição da mesma obra, de 2004, os autores passam a relatar também desenvolvimentos dogmáticos em torno do direito ao trabalho.

28 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 345.

29 Dentre as louváveis e recentes exceções da literatura constitucionalista nacional que dedicam

Page 55: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 55

Tem-se aí algo que nos faz refletir sobre o caráter de um constitucionalismo que não se dedica àquilo que Karl Polanyi denominou “as formas de vida do povo comum”: o trabalho.30 Para o psiquiatra francês e principal referência da psicodinâmica do trabalho, Christophe Dejours, as pesquisas que essa disciplina realiza ao redor do mundo têm demonstrado a centralidade do trabalho para a subjetividade. E essa afirmação é válida para o bem e para o mal: pessoas empregadas e desempregadas têm no trabalho uma mediação crucial que pode tanto ser responsável por produzir o melhor em termos de autorrealização e construção da saúde, quanto o pior, em termos de degradação e adoecimento psíquico.31

Tendo-se em conta essa “centralidade do trabalho” que confere ao trabalho uma dimensão antropológica (o que é dizer que o trabalho é indissociável da condição humana), então o direito do trabalho não pode mais ser considerado como um direito especializado. O direito do trabalho toca um direito fundamental.32

No entanto, também entre os juslaboralistas pátrios se repete o mesmo quadro geral de omissão doutrinária quanto ao conteúdo do direito ao trabalho, havendo escassas referências o seu exercício no interior das relações de trabalho33 e poucas monografias dedicadas ao tema.34

tópico específico a respeito, estão o excelente Curso de direito constitucional, de SARLET, MARINONI e MITIDIERO, São Paulo, RT, 2012, p.600-604 e o didático Direito Constitucional, de FERRARI, Regina M. M. N, São Paulo, RT, 2011, p. 761-774, que, com razão, identifica no direito ao trabalho o paradigma de leitura dos direitos sociais.

30 POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. 2ª ed., Rio de Janeiro, Elsevier/Campus, 2012, p. 81.

31 DEJOURS, Christophe. Travail vivant 1: sexualité et travail. Travail vivant 2: travail et émantipation. Paris, Payot, 2009.

32 DEJOURS, Christophe. Apresentação, in WANDELLI, O direito humano e fundamental ao trabalho, ob. cit., p. 15.

33 Sintomaticamente, um dos juslaboralistas nacionais mais argutos dedica excelente obra à análise dos direitos fundamentais nas relações de trabalho, sem, no entanto, qualquer análise específica do direito ao trabalho. ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. 3ª Ed., São Paulo, LTr, 2009.

34 Dentre as exceções, que confirmam a regra, além do nosso WANDELLI, Leonardo Vieira. O direito humano e fundamental ao trabalho: fundamentação e exigibilidade, destacam-se os trabalhos de, LEDUR, José Felipe. A realização do direito ao trabalho, ob. cit., GOMES, Fábio Rodrigues. O direito fundamental ao trabalho: perspectivas histórica, filosófica e dogmático-analítica. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2008. DELGADO, Gabriela

Page 56: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

56 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

É isso a que se chama de centralidade inefetiva do direito ao trabalho. A sua centralidade normativa, conceital e antropológica é inquestionável, mas a sua inaplicação prática é tão evidente quanto.

2. reconstruir a fundamentação do direito ao tra-balho

O déficit de desenvolvimento da força normativa do direito ao trabalho pode ser atribuído a dois principais prejuízos, que constituem verdadeiros obstáculos epistemológicos a serem superados para o seu desvelamento. Ambos os argumentos se apoiam em afirmações parcialmente verdadeiras. No entanto a paralisia que deles decorre é que não se justifica. O primeiro, a afirmação de que, numa sociedade de mercado, o Estado não pode garantir um posto de trabalho a todos,35 porque não seria factível nem obrigar as empresas a isso, nem o próprio Estado empregar diretamente todas as pessoas. O segundo obstáculo é o próprio esvaziamento da percepção da importância do trabalho na sociedade capitalista. Se o trabalho na modernidade é pura degradação, exploração e negação do sujeito trabalhador – e não faltam fundamentos para sustentar essa afirmação –, que “direito masoquista”36 é esse de ser espoliado? O trabalho somente interessaria como via instrumental de obtenção de outros bens, sendo desprovido de um valor próprio. Assim, uma garantia de renda que dispensasse da penitência do

Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo, LTr, 2006. FONSECA, Maria Hemília. O direito ao trabalho: um direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo, LTr, 2009. ALEMÃO, Ivan. Desemprego e direito ao trabalho. São Paulo, Esplanada/ADCOAS, 2002. MORAES FILHO, Evaristo de. O direito ao trabalho. In Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, 11-16 ago. 1974, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Asgráfica, 1974, p. 674.

35 “(...) por la simple razón de que la oferta de trabajo reside mayoritariamente en sujetos privados, cuya decisión de creación de empleo es finalmente libre y no viene determinada, sí impulsada o fomentada en su caso, por la acción de lo poderes públicos.” PALOMEQUE LOPEZ, Manoel-Carlos, Prólogo, in SASTRE IBARRECHE, ob. cit., p. 15.

36 A expressão é de KURZ, Robert. O desfecho do masoquismo histórico – o capitalismo começa a libertar o homem do trabalho. Folha de São Paulo, São Paulo, 20.07.1997, Caderno Mais. Sobre essa perspectiva, ver, ainda, o Manifesto contra o trabalho, elaborado peloGRUPO KRISIS. São Paulo, Conrad, 2003. É de se considerar que a separação do campesinato de seus meios de produção, na Grã-Bretanha dos princípios da revolução industrial, a qual gerou uma súbita ociosidade que engendrou o exército de reserva de força de trabalho, também foi celebrada, à época, como verdadeira emancipação do trabalho. BAUMAN, Zygmunt. La sociedad individualizada. Madrid, Cátedra, 2001, p. 29-30.

Page 57: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 57

trabalho realizaria melhor os anseios humanos que a insistência no direito a algo que não teria em si nenhum ganho antropológico a oferecer. Esses dois obstáculos desafiam o sentido da reivindicação do direito ao trabalho e paralizam o seu desenvolvimento jurídico.

Enfrentar esses dois obstáculos depende de reconstruírem-se os fundamentos do direito ao trabalho, a fim de resgatar a sua importância, vale dizer, em termos constitucionais, a sua fundamentalidade material, de um lado e, de outro, a fim de explicitar e mesmo desvelar o conteúdo desse direito que está obscurecido. Em-bora reconstituir esse esforço de fundamentação ultrapassaria em muito o espaço deste trabalho, cabe incorporar, aqui, os resultados da pesquisa desenvolvida em outro lugar, onde se procurou desenvolver um duplo pilar teórico, que se reporta às teorias das necessidades e às teorias da luta por reconhecimento na reconstrução dos fundamentos do direito ao trabalho.37A partir desses elementos, emerge a formulação de um desenho de nosso direito fundamental apto a resgatar a tensão entre trabalho vivo e força de trabalho subsumida ao capital, mesmo no interior das relações de trabalho existentes e no contexto normativo vigente.

Para pensarmos o que significa o caráter materialmente fundamental de um direito, uma precisão conceitual é indispensável: direitos não são fins em si mesmos. Direitos são mediações para bens38 materiais e imateriais (objetos, atividades e relações). São os bens que nós obtemos por meio dos direitos e não os direitos em si, que satisfazem e transformam as nossas necessidades humanas. Isso se dá porque nós somos sujeitos corporais e necessitados. O direito, como uma produção humana, só tem sentido enquanto é uma mediação para a realização das necessidades da pessoa humana.39 Por isso que nós dizemos que a dignidade da pessoa humana está acima e é o critério de hierarquização de todos os demais valores e instituições.

37 WANDELLI, Leonardo Vieira. O direito humano e fundamental ao trabalho, ob. cit., capítulos 1 a 3.

38 Nesse sentido, HERRERA FLORES, Los derechos humanos como productos culturales, ob. cit., p. 92 e ss. Embora promova a inversão de prioridade entre direitos e bens, o saudoso jusfilósofo sevillano não chega a formular uma teorização explícita sobre necessidades humanas que sirvam como critério de que nem todos os bens valham igual ou sejam igualmente preferíveis, embora suas formulações induzam à necessidade de fazê-lo.

39 HINKELAMMERT, Franz e MORA JIMÉNEZ, Henry. Hacia uma economía para la vida. San José, Costa Rica, DEI, 2005.

Page 58: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

58 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

As necessidades determinam o marco normativo de variabilidade das opções políticas válidas e conectam à realidade da vida concreta dos sujeitos o conteúdo de grande parte dos direitos fundamentais. Explicita-se: não se pretende que a teoria das necessidades resolva todos os problemas de fundamentação dos direitos humanos e fundamentais e, ainda, todos os problemas de exigibilidade jurídica daí decorrentes.40 A satisfação das necessidades não é o fundamento último, nem único, nem suficiente dos direitos e há mesmo direitos legítimos que não têm contrapartida imediata em necessidades. Mas o marco de realização das necessidades é, sim, um fundamento necessário, material e histórico de qualquer sistema normativo globalmente considerado. Tal fundamento se apoia em uma concepção objetiva de necessidades e com pretensão de universalidade, como condições sem as quais há um dano grave e permanente à participação autônoma e crítica em uma forma coletiva de vida, o que as diferencia de meros desejos, preferências, interesses ou utilidades. Mas também é uma concepção que permite criticar normativamente qualquer forma de vida que desborde dos marcos de factibilidade postos a partir da satisfação de necessidades. Consoante o sustentado, pode-se afirmar um princípio normativo de satisfação ótima das necessidades que deve estar presente, de forma necessária, mas não suficiente, na fundamentação dos direitos como um todo e em boa parte de direitos fundamentais específicos, como é o caso do direito ao trabalho, que guarda uma intensa conexão com necessidades humanas.

O trabalho estabelece, com as necessidades, quatro formas de relações: a) o trabalho é, ele mesmo uma necessidade: o humano não se realiza sem o trabalhar, no sentido de fazer atuar, sempre de modo intersubjetivo, sua atividade humana específica, de exteriorizar-se e transformar o mundo humanizando a natureza e a si mesmo, como exercício de autonomia, do desenvolvimento da corporalidade; portanto, essa forma de ver o trabalho também significa valorá-lo como uma capacidade humana sem a qual não é possível uma vida digna;41 b) o trabalho,

40 No mesmo sentido, LUCAS, Javier de; AÑON ROIG, Maria José. Necesidades, razones, derechos. In: Doxa, Cuadernos de Filosofía del Derecho. Alicante, n. 7, 1990, p. 76-77.

41 “El valor de esa capacidad para la vida digna es lo que convierte en un derecho la posibilidad de ejercerla y en un deber político poner las condiciones para que cualquier ciudadano pueda ejercerla. El lenguaje de los derechos, para tener sentido, exige el de las valoraciones y las capacidades, concretamente la valoración de ciertas capacidades como posibilidad

Page 59: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 59

sempre entendido como processo coletivo e inserido na divisão social do trabalho, também produz bens que satisfazem necessidades dos sujeitos viventes ou servem como instrumentos de trabalho; objetos materiais ou imateriais, e ainda atividades e relações interpessoais que são valores de uso para os sujeitos; c) a inafastável atividade do trabalho no ser social determina o caráter histórico das necessidades: mediante o trabalho, no âmbito da divisão social do trabalho, os seres humanos atualizam e criam novas necessidades, que se adicionam ou se chocam com as existentes, exigindo novas valorações, novas relações de preferências dentro de um determinado sistema de necessidades, ou mesmo a alteração global desse sistema de necessidades; a transformação das necessidades é a transformação do próprio homem; d) por fim, se o trabalhar é uma necessidade (a), ao mesmo tempo o trabalho, como conjunto de atividades e relações, também consiste em um bem, um valor de uso, que é diretamente satisfator de necessidades de autorrealização e desenvolvimento da corporalidade, de afirmação identitária, de conquista da saúde, de aprendizado do viver junto, de construção de vínculos de solidariedade e pertencimento, o que implica em que tenha condições de duração, intensidade, segurança acidentária e sanitária e, especialmente, de conteúdo concreto e organização coletiva capazes de favorecer a autonomia dos trabalhadores individual e coletivamente considerados, pela possibilidade de autorrealização e desenvolvimento da personalidade, de manter vínculos de cooperação, pela possibilidade de participação no controle do conteúdo dos processos de trabalho, pela experiência da atividade deôntica de construção de regras técnicas e éticas, formais e informais, de trabalho, pelo fortalecimento e desenvolvimento da identidade e autoestima, mediante a oportunidade de reconhecimento da contribuição singular aportada pelo trabalho realizado e pelo aprendizado privilegiado do viver junto e de participação em uma obra comum, “honrando a vida” pelo trabalho.42

Vivemos em um modelo de sociedade em que o acesso a uma relação de trabalho representa, para uma grande parcela da população, a única ou a principal

irrenunciable en una sociedad justa” CORTINA, Adela e CONILL, Jesus. Cambio en los valores del trabajo. In Sistema: Revista de Ciências Sociais, n. 168-169 (2002), p. 4.

42 Aqui, a contribuição seminal da obra de Christophe DEJOURS. Travail vivant 1: sexualité et travail. Travail vivant 2: travail et émantipation. Paris, Payot, 2009. Trabalho, necessidades e reconhecimento estão indissoluvelmente ligados, tanto no plano mais geral da sociedade, quanto no plano localizado da empresa.

Page 60: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

60 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

via de se alcançarem bens essenciais sem os quais não se pode falar de vida com dignidade. Mas, como se salientou, o trabalho não é só uma mediação instrumental para a obtenção de outros bens. Sobretudo, o próprio trabalho humano é um bem com valor de uso. O conteúdo da atividade de trabalho e da organização coletiva de trabalho, como um conjunto de atividades e relações, é um bem que realiza necessidades essenciais do humano em termos de desenvolvimento da personalidade, de autorrealização, de exteriorização e humanização do mundo, de construção da identidade e conquista da saúde, de pertencimento, de aprendizado ético e político do viver junto.

É aqui neste último ponto que entra em cheio a temática da luta por reconhecimento na perspectiva iluminada não só pela teoria social,43 mas sobretudo a partir das ciências clínicas do trabalho, em especial a psicodinâmica do trabalho. Para esta, o que mobiliza as pessoas a dedicarem-se ao trabalho, enfrentando os obstáculos e assumindo os riscos daí decorrentes, é a possibilidade de, ao fazer um trabalho bem feito, participando da realização de uma obra comum, reconhecer-se e ser reconhecido como alguém útil, que pertence a uma comunidade de trabalho e que deixa nela a marca da sua contribuição singular. Isso depende do olhar do outro, na forma de julgamentos de reconhecimento material e simbólico da contribuição aportada por meio do fazer. Para que a dinâmica contribuição-reconhecimento se realize, são necessárias condições relativas à atividade e à organização do trabalho, pois o reconhecimento somente é possível se há um coletivo de trabalho em que seja possível a dinâmica contribuição-reconhecimento.44 Essas condições dizem respeito à possibilidade de cooperação entre os trabalhadores, transparência, confiança, solidariedade, liberdade e tempo disponível, para que se desenvolva uma prática deliberativa participativa informal de construção de acordos, arranjos normativos, regras de

43 HONNETH, Axel. Trabalho e reconhecimento: tentativa de uma redefinição. In Civitas: Revista de Ciências Sociais, v. 8, n. 1, jan-abr. 2008, p. 46-67. Idem, Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (trad. Luiz Repa). São Paulo, Editora 34, 2003. RENAULT, Emmanuel. Reconnaissance et travail , in Travailler 2/2007 (n° 18), Paris, Martin Média, p. 119-135.

44 DEJOURS, Addendum, in LANCMAN e SNELWAR, (orgs). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3ª Ed., revista e ampliada, Rio de Janeiro, FIOCRUZ/Paralelo 15, 2011, p. 85-93. Idem, A saúde mental entre impulsos individuais e requisitos coletivos, in LANCMAN e SNELWAR, ob. cit., p. 426.

Page 61: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 61

trabalho e de convivência e arbitramento de conflitos no trabalho, de modo a viabilizar a cooperação e a retribuição simbólica da contribuição aportada ao coletivo, na forma de reconhecimento do fazer.

Caso obliterada a dinâmica contribuição-reconhecimento, em qualquer das pontas, seja pelo impedimento a uma efetiva contribuição, seja por inviabilizadas as condições para as práticas de reconhecimento, resta abalada a construção da identidade no campo social. O sofrimento, que é inerente a toda experiência de trabalho, não ganha sentido para o sujeito e torna-se patogênico. Suicídios e as patologias do assédio no trabalho45 são apenas as formas mais eloquentes dos sintomas de uma era em que o apagamento da solidariedade, o cinismo, a falta de confiança e a exacerbação da concorrência no mundo do trabalho estão na base da degradação da vivência social e das possibilidades de ação política.

De fato, as pesquisas das ciências clínicas do trabalho nos mostram que o trabalho, em sentido concreto, jamais é neutro em relação à saúde psíquica e tem um papel fundamental para a sociabilidade e o aprendizado político. A precariedade material e existencial da maior parte das experiências de trabalho atuais não nos autoriza a descartá-lo. Ele pode gerar o pior, em termos de opressão, alienação, exploração, de degradação do sujeito, de adoecimento, acidentes e de produção de uma subjetividade alienada que engendra uma racionalidade do cinismo, destrói os vínculos de solidariedade e esvazia a ação pública. De fato é esse o resultado efetivo de grande parte das experiências atuais de trabalho. Mas ele também é um mediador privilegiado para o melhor, em termos de desenvolvimento da personalidade, construção da identidade e conquista da saúde, da autonomia, da formação de vínculos de pertencimento e solidariedade e de aprendizado ético e político. O trabalho é o grande mediador privilegiado e não substituível da realização do ego, para além da esfera erótica, no campo social.46 A sua degradação não prova a sua desnecessidade, mas, ao contrário, releva a urgência do resgate dessas condições.

Em virtude disso, é indispensável não se perder de vista o vínculo material-mente fundamental do trabalho com a subjetividade, com a organização social

45 Um bom estudo a respeito se encontra em POHLMANN, Juan Carlos Zurita. Assédio moral organizacional: identificação e prevenção. Curitiba, UNIBRASIL (dissertação de mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia), 2013.

46 DEJOURS, Travail vivant, ob. cit., passim.

Page 62: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

62 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

e política. Poucas outras dimensões da vida objeto da preocupação do direito são tão essenciais à dignidade. Compreender não só o quão importante é aquilo que aí se joga (fundamentalidade material), mas, ainda, o “como” se estabelecem concretamente essas mediações do trabalho com a subjetividade e as condições necessárias para que isso ocorra é o que nos permite buscar, do ponto de vista jurídico, o que, afinal de contas, é devido em face da consagração do direito fundamental ao trabalho.

É claro que o direito ao trabalho expressa necessidades que não podem ser inteiramente realizadas nos limites da institucionalidade vigente. Isso lhe dá o caráter daquilo que Agnes Heller denominara de necessidades radicais, ou seja, necessidades cuja realização implica transcender a sociedade atual.47 Contudo, daí não decorre que não haja espaços parciais de realização do trabalho como necessidade ainda nos limites das relações de trabalho assalariada e nas outras formas secundárias de trabalho que se subsumem sob o capital. São esses espaços de irredutibilidade do trabalho vivo que possibilitam a fundamentação material de um direito ao trabalho vigente.

Primordialmente, essa centralidade do trabalho na vida das pessoas, que se pode dizer uma centralidade antropológica do trabalho, deve corresponder uma centralidade juridica no quadro conceitual e prático do direito, como condição e expressão da dignidade. Como mediação para as necessidades humanas, o direito deve, antes de tudo, proteger aquilo que é essencial nas suas vidas e a ciência juridica não pode alcançar essa percepção, senão em diálogo sério com as demais ciências.48 A partir desse diálogo é que se pode afirmar o “como” o trabalho pode

47 HELLER, Agnes. Teoria de las necesidades em Marx, Barcelona, Península, 1978, p. 87-113, resgata, a partir de Marx, como a condição do trabalho na sociedade capitalista aponta para necessidades radicais de superação dessa sociedade, justamente porque, engendrando a alienação do trabalho, nega a realização das necessidades humanas.

48 Em sua célebre conferência sobre a atualidade da filosofia, de 1966, Theodor Adorno sustentava que os problemas filosóficos estavam irremediavelmente imbricados nas discussões das diversas ciências especializadas e que não lhe restava escolha senão utilizar todo o material abundante trazido nesses acirrados debates. De certa forma, pode-se sustentar que também uma dogmática jurídica pós-metafísica, por lidar com os problemas sociais vitais em nível concreto, onde a realidade se apresenta em sua inteira complexidade, tem também a obrigação de buscar a síntese das múltiplas determinações que incidem sobre a realidade concreta, alimentando os sentidos jurídicos com as questões desenvolvidas nas demais ciências, levando-as a sério, a fim de ultrapassar a mera aparência cotidiana das representações

Page 63: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 63

e deve corresponder à realização de necessidades humanas indispensáveis à vida digna.

O direito humano e fundamental ao trabalho é, então, a primeira mediação jurídica que funda o discurso do direito sobre o campo vital do trabalho, sobre os modos sociais pelos quais as pessoas aplicam e desenvolvem a suas capacidades em uma atividade produtiva com valor de uso. Em nossa compreensão, esse direito tem um caráter multidimensional, mas cujo centro, que estava oculto, se expressa na ideia de um direito ao conteúdo do próprio trabalho, como se explicita na sequência.

3. um direito fundamental multimensional

Tanto direitos a bens sociais, como trabalho ou saúde, quanto direitos a bens de liberdade, como livre locomoção, por exemplo, dependem de condições fáticas de realização que implicam medidas de prestação fática e jurídica (proteção e organização) e medidas de abstenção (não obstaculizar a atuação, não violar a situação ou não afetar ou suprimir posições jurídicas existentes), que nem sempre são suscetíveis de definição precisa e se sujeitam a implementação progressiva. O ponto que aqui interessa afirmar, para o fim de definirem-se as potencialidades eficaciais do direito ao trabalho, está em que tanto direitos sociais quanto direitos civis, caso se queira continuar com essa nomenclatura tradicional, incluem, do ponto de vista subjetivo, direitos a prestações, que implicam medidas promotoras das suas condições fáticas de realização, direitos a abstenções e a medidas de proteção.49 Desta forma, conforme observa Vieira de Andrade, em um mesmo direito fundamental podem-se encontrar combinados direitos a abstenções, direitos a prestações positivas, jurídicas ou materiais, direitos potestativos de interferir na esfera de outrem, os quais são dirigidos, na condição de sujeitos passivos, tanto ao legislador, à administração, ao judiciário ou a entidades

intuitivas dos fenômenos. Nada justifica o reducionismo de um saber jurídico autorreferente, que se contenta com a mera evocação mítica de conceitos fundamentais sobre a vida concreta, que constitui o seu campo de aplicação.

49 SARLET, Ingo W. e FIGUEIREDO, Mariana, Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações, in SARLET e TIMM, (org), Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2008, p. 14.

Page 64: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

64 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

privadas.50 Portanto, como ressaltam Abramovich e Courtis, a disposição de um direito entre os direitos civis e políticos ou direitos econômicos sociais e culturais tem um valor meramente classificatório, mas uma conceitualização rigorosa com base no caráter das obrigações dele decorrentes, positivas, ou negativas, apre-sentará um gradiente contínuo, em que ora estará presente um maior grau de obrigações negativas, ora um maior grau de obrigações positivas.51

Na verdade, como ressalta Peter Häberle, a compreensão de “um direito ao trabalho de múltiplas dimensões, com garantias conexas” e projeções sobre diver-sos outros direitos fundamentais e sobre vários ramos do direito ordinário, v.g. além do direito do trabalho, o previdenciário, tributário, administrativo, etc., forma uma estrutura complexa que “relativiza a dicotomia (supostamente clássica) entre os direitos de liberdade e os direitos fundamentais sociais, na mesma medida em que o ‘trabalho’ e a ‘proteção do trabalho’ penetram nas dimensões dos direitos fundamentais”.52

A Constituição de 1988 dotou de caráter formalmente fundamental o direito ao trabalho, ao passo que se encontram vigorosas razões para sustentar a sua fundamentalidade material. Daí se extrai que também o direito ao trabalho está sujeito à aplicabilidade imediata de que trata o art. 5o, § 1o, da Constituição.53 A circunstância de que, muitas vezes, as normas relativas aos direitos sociais se expressam em termos que podem tornar difícil a tarefa de definir o que, aqui e agora, é devido como conteúdo do direito à saúde, à educação ou ao trabalho, também é comum a qualquer outro texto normativo que, para sê-lo, precisa sempre, antes, ser interpretado, não sendo essa uma característica especial no caso dos assim chamados direitos sociais. O que essa objeção, aplicável a todos os direitos, ressalta, com razão, é que a densificação dogmática do conteúdo dos direitos constitui um dos aspectos essenciais para o desenvolvimento da sua força normativa.

50 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976, Coimbra, Almedina, 1987, p. 188. A respeito, também SARLET, Ingo, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 166-241. ABRAMOVICH, Victor e COURTIS, Christian. Los derechos socials como derechos exigibiles. Ob. cit., p. 19-64.

51 ABRAMOVICH e COURTIS, ob. cit., p. 27.52 HÄBERLE, Peter. El estado constitucional (trad. Hector Fix-Fierro). México, D.F. /Lima,

UNAM/PUC-Peru, 2003, p. 255-256.53 SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais, ob. cit., p. 297.

Page 65: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 65

Trata-se, então de compreender que, em torno de “um” direito ao trabalho como um todo, enfeixa-se, como já sugerido nos diversos dispositivos norma- tivos internacionais referidos no primeiro tópico, um complexo de posições jurí-dicas subjetivas tanto de caráter prestacional (prestações fáticas e normativas54), quanto de caráter defensivo, bem como direitos de proteção que veiculam os diversos aspectos de conteúdo do âmbito de proteção do direito. Da mesma forma, valorizando-se a linguagem adotada pelos órgãos de controle da aplicação de normas internacionais, emanam, desse mesmo direito, obrigações ao Estado e aos particulares, de respeitar, proteger, e implementar55, que configuram a sua dimensão objetiva.

O direito ao trabalho é um direito multidimensional que envolve diversos aspectos de conteúdo e diferentes capacidades eficaciais. Em 2005 o CDESC, da ONU, que é o órgão responsável pelo controle da aplicação do PIDESC, elaborou a Observação Geral n. 18 que descreve, embora de modo parcial, segundo segundo o que ora se sustenta, diversas das dimensões do direito ao trabalho. Esse plexo configura aquilo que Robert Alexy denomina de um “direito fundamental como um todo”, que reflete o conjunto de posições jurídicas definitivas e prima facie adscriptas a um dispositivo de direito fundamental e relacionadas entre si.56

Essa noção de um feixe integrado de conteúdos e de posições jurídicas par-celares constitui um elemento essencial para a efetividade do direito ao trabalho. Pode-se falar de um certo grau de efetividade atual de alguns de seus aspectos parcelares. Pense-se, por exemplo, em diversos dos dispositivos decorrentes dos incisos do art. 7º da Constituição que desenvolvem normativamente aspectos da proteção constitucional ao trabalho, como o direito ao salário mínimo (art. 7º, IV) e à redução dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII). Mas a falta de uma dogmática globalmente compreensiva do direito ao trabalho como um

54 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 428. VIEIRA DE ANDRADE, ob. cit., p. 192.

55 Cf. as Observações Gerais n. 3 e 18 do Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais da ONU. Também ABRAMOVICH e COURTIS, ob. cit., p. 31.

56 ALEXY, Teoría de los derechos fundamentales, ob, cit, p. 240-245. Também adotando essa mesma denominação e apontando para o direito ao trabalho como feixe de posições jurídicas que se abre estruturalmente em uma dimensão objetiva e subjetiva, GOMES, Fábio, ob. cit., p. 89-95.

Page 66: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

66 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

todo, referido no art. 6º, faz degradar-se a sua capacidade normativa própria, para além desses segmentos mais específicos expressamente positivados. Daí que, a par desse desenvolvimento segmentado do direito ao trabalho, é indispensável uma perspectiva de conjunto, para resgatar o seu sentido de integridade que ilumina setores ainda não desenvolvidos normativamente, mediante incidência direta, assim como contribui para melhor compreender aqueles aspectos parcelares. Bem assim, torna possível atentar-se para as relações de integração com diversos outros direitos fundamentais, como o direito à saúde, direito ao lazer, direito à locomoção, direito à alimentação ou o direito ao livre desenvolvimento da personalidade.57 Como ressalta Galtung, a segmentação dos direitos, sem uma perspectiva de integração, invalida a realização das necessidades humanas a que eles se referem, pois estas não são passíveis desse fracionamento.58

Para melhor compreender, então, esse verdadeiro “megadireito”, sem perder-se de vista tanto o aspecto de integração quanto o aspecto de especificação, três diferentes perspectivas analíticas, poderiam ser encetadas. Do ponto de vista estrutural, caberia diferenciar as dimensões objetiva e subjetiva do direito ao trabalho, o que envolve o tema dos sujeitos passivos vinculados.59 Do ponto de vista dos seus titulares, pode-se distinguir uma dimensão individual de uma coletiva do direito ao trabalho, da qual podem ser destacadas a função limitadora e integradora do direito ao trabalho sobre o princípio de pleno emprego, a contenção e procedimentalização das dispensas coletivas e o direito a uma organização saudável do trabalho.60 Já do ponto de vista do âmbito de conteúdo do direito ao trabalho, cumpre diferencia-lo, desde logo, de outras

57 Nesse sentido, Renata Dutra propugna por uma “releitura do rol de direitos fundamentais (...) vislumbrando (...) um complexo de direitos sociais relacionados à subjetividade dos trabalhadores, que viabilize a proteção da sua dignidade contra as novas formas de exploração engendradas pelo capital”. Na compreensão da autora, os direitos sociais relacionados ao trabalho transcendem direitos de retribuição e de manutenção da integridade física, envolvendo direitos de afirmação da identidade e de proteção da subjetividade no trabalho. DUTRA, Renata Queiroz. Direitos fundamentais sociais à afirmação da identidade e à proteção da subjetividade no trabalho. In: Revista do Tribunal Superior do Trabalho, vol 78, n. 4 (out-dez-2012), São Paulo, Lex-Magister, p. 256-287.

58 GALTUNG, Johan. Direitos humanos: uma nova perspectiva, Lisboa, Instituto Piaget, 1998, p. 154-155.

59 Ver, a respeito, WANDELLI, O direito humano e fundamental ao trabalho, ob. cit., p. 239-247

60 Sobre os conteúdos coletivos do direito trabalho, ver WANDELLI, ob. cit., p. 258-288.

Page 67: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 67

figuras jurídicas afins, como o dever de trabalhar, a liberdade de profissão e o direito a trabalhar, que, embora muitas vezes amalgamadas nos textos legislativos, mantendo pontos de contato com o direito ao trabalho, constituem conceitos jurídicos distintos ou parcelares, ou mesmo manifestações rudimentares ao longo do seu desenvolvimento histórico, não se reduzindo, o direito ao trabalho, a qualquer delas. Essencialmente, o “direito de trabalhar” consiste em uma degradação do direito ao trabalho, correspondendo ao direito de competir no mercado de trabalho.61

Contudo, nos limites deste espaço, esses diversos aspectos não poderão ser desenvolvidos. Opta-se por salientar o aspecto que se considera o núcleo de sentido do direito ao trabalho, que é o que denominamos de direito ao conteúdo do próprio trabalho.

Para tanto, seria importante, primeiro, visualizarmos a figura formada pelo conjunto das diferentes posições jurídicas que podem ser adscriptas ao nosso direito fundamental. A imagem desse desenho poderia ser visualizada na forma de um cone semi-submerso, com três estágios, cada qual com um grau maior de amplitude e menor visibilidade:

A) O DIREITO AO TRABALHO NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO ASSALARIADAS. Neste setor, que corresponderia à parte mais estreita e visível do direito ao trabalho, além do direito ao conteúdo do próprio trabalho, adiante explicitado, podem ser identificadas diversas outras dimensões de conteúdo construídas doutrinária e jurisprudencialmente.62 Dentre elas, ganha destaque o direito a um padrão jurídico fundamental de proteção ao trabalho; direito à proteção em face da despedida; o direito a uma organização saudável do trabalho; igualdade de tratamento nas oportunidades de trabalho; direito ao desenvolvimento profissional e de apropriação intelectual e econômica do produto do trabalho.

B) O DIREITO AO TRABALHO NAS FORMAS NÃO ASSALARIADAS DE TRABALHO. Nos termos do art. 6º da Constituição, qualquer pessoa com

61 Idem, ibidem, p. 247-258.62 Para uma ampliação do exame das dimensões parcelares do direito ao trabalho no âmbito das

relações assalariadas, ver WANDELLI, O direito humano e fundamental ao trabalho, ob. cit., p. 258-332.

Page 68: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

68 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

capacidade é titular do direito ao trabalho.63 Isso implica que não se justifica relegar à mera contratualidade civil, alijando de todo o plexo normativo de proteção ao trabalho, parcela que hoje representa em torno de 20% da população ocupada,64 sob formas não assalariadas de trabalhar. Isso inclui diversos dos direitos que o art. 7º, assegura a todos os trabalhadores e que não sejam exclusivamente pertinentes à relação de emprego, tais como o direito a não ser discriminado na relação de trabalho, inclusive em matéria de remuneração, na contratação ou na terminação do contrato; o direito a uma contraprestação correspondente à satisfação de um conjunto básico de necessidades que demandem custo financeiro, quando se tratar de trabalhador autônomo economicamente dependente, o que pode ser traduzido na forma de um valor mínimo por hora trabalhada65; o direito à irredutibilidade da contraprestação pelo trabalho66; direitos previdenciários e de proteção à saúde no trabalho; direito ao meio ambiente do trabalho saudável; proteção em face da automação; direitos de organização sindical e negociação coletiva; entre outros. Em especial, isso implica o direito a que haja uma justificativa especial para a outorga de tratamento normativo diferenciado entre as diversas formas de trabalho, notadamente para a exclusão de direitos assegurados ao trabalho assalariado.

C) O DIREITO AO TRABALHO COMO PRIMEIRO DIREITO HU-MANO E FUNDAMENTAL. Nessa dimensão, o direito ao trabalho assume criticamente a reivindicação de um direito anterior e para além de todas as formas tipicamente capitalistas de trabalhar e que surge a partir da experiência de negatividade experimentada com a expropriação e degradação do trabalho vivo. Nos dois primeiros níveis antes mencionados, cuida-se de um direito ao trabalho que pressupõe a presença ou a possibilidade de formas de trabalho inerentes ao modo de produção atual. Já neste terceiro nível, cuida-se de um direito à possibilidade de vida plena pelo trabalho não reduzido ao trabalho

63 SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais, ob. cit., p. 187 e 232. GOMES, ob. cit., p. 146-149.

64 No Brasil, segundo os dados da PNAD-IBGE, a proporção de trabalhadores por conta própria não vem aumentando, nos últimos 10 anos, experimentando inclusive pequena redução, mas mantendo-se acima dos 20% da População Ocupada. http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/protabl.asp?c=2268&z=pnad&o=3&i=P

65 Nesse sentido, DELGADO, Gabriela, Direito fundamental ao trabalho digno, ob. cit., p. 229.

66 Idem, ibidem, loc. cit.

Page 69: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 69

abstrato, o que, diante da forma social capitalista, implica uma interpelação, desde a dimensão radical do trabalho como necessidade humana, de toda a ordem societária vigente, impulsionando não só no sentido do contínuo aprimoramento de suas instituições, mas também de sua profunda transformação.

Em todas essas dimensões, o centro de sentido do direito ao trabalho está na compreensão de que aquele que trabalha tem, no trabalho, uma mediação essencial para realização das necessidades humanas e para a construção da identidade, estabilização da saúde, o aprendizado ético e político, a construção de vínculos de solidariedade. Por isso, o trabalhar, mesmo nas relações assalariadas, assim como nas formas não assalariadas de trabalho, não é só o desincumbir-se, pelo trabalhador, da obrigação assumida pelo contrato com aquele que contratou seu trabalho. Mas é, ao mesmo tempo, nesse mesmo ato, o exercício de um direito fundamental cuja realização depende de condições que concernem ao conteúdo da atividade e da organização do trabalho, contrarrestando, juridicamente, o direito do empregador sobre essa mesma atividade e organização.

Daí que o ponto central da reconstrução do direito humano e fundamental ao trabalho está na compreensão do direito ao conteúdo do próprio trabalho.

4. o direito fundamental ao conteúdo do próprio trabalho

Normalmente, o direito ao trabalho é visto mais como um direito à relação contratual de compra e venda da força de trabalho, na qual o trabalho ocorre – de onde derivam condições releventíssimas ao trabalhador – que, propriamente, um direito ao trabalho. O trabalho em si, na sua tríade relacional subjetividade – relação consigo – objetividade – relação com os instrumentos e o mundo – e intersubjetividade – relação com o outro –, que é a estrutura essencial do trabalhar, parece ter sido excluído do objeto desse direito fundamental que leva o seu nome.

O que se pode chamar de um direito ao trabalho digno não pode se reduzir a um posto de trabalho em que se assegurem mínimos de subsistência e se evitem as formas mais graves de degradação.67 Muito além disso, aquele que trabalha tem

67 Essa visão, em certo sentido minimalista de “trabalho digno”, substituído pelo “trabalho decente”, encontra-se expressada no parágrafo 7 da Observação Geral 18 do CDESCs da

Page 70: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

70 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

um direito ao conteúdo do próprio trabalho em sentido concreto, o que implica condições positivas e negativas da atividade, da organização e do ambiente de trabalho necessárias a que o trabalho possa gerar o melhor, em vez de gerar o pior. Uma dimensão fundamental da existência humana, cuja negligência denuncia qualquer sistema jurídico.

Nós nos acostumamos a pensar que aquele que trabalha tem interesse apenas nas condições e benefícios econômicos que o trabalho propicia como contraprestação. Quando muito, nós reconhecemos que o trabalho não deve ferir a pessoa física ou moralmente. Mas nós naturalizamos a ideia de que quem trabalha não tem interesse no próprio trabalho. Recebendo a contraprestação, na forma de salário e os demais benefícios e não sendo danificado pelo trabalho, o ato em si de trabalhar e a organização do trabalho interessam apenas ao empregador. É isso que consagra a noção de alteridade, ou de alienidade do proveito abrigada pelo direito do trabalho. Quem trabalha, trabalha para o outro, não para si mesmo. Diz Pontes de Miranda: “a alienidade do proveito ou do que se espera seja proveito, põe fora do campo conceitual o que A faz para si mesmo”.68

Com isso, nós apagamos o fato de que aquele que trabalha não só está se desincumbindo de uma obrigação de prestação que interessa ao empregador, mas, nesse mesmo ato de trabalho, no desempenhar a sua atividade que se insere na organização do trabalho, o trabalhador também está exercendo um direito fundamental. Um direito que, como visto, é absolutamente essencial para a autorrealização, o desenvolvimento da personalidade, a conquista da identidade e da saúde, para a construção de vínculos de pertencimento e solidariedade,

ONU, vez que o conteúdo do trabalho digno, é visto apenas em termos de limites negativos de respeito à integridade física e mental e não do ponto de vista do interesse subjetivo positivo do trabalhador quanto ao conteúdo do seu trabalho, aspetos que, por sua vez, estão presentes na Convenção 122 da OIT: “7. El trabajo, según reza el artículo 6 del Pacto, debe ser un trabajo digno. Éste es el trabajo que respeta los derechos fundamentales de la persona humana, así como los derechos de los trabajadores en lo relativo a condiciones de seguridad laboral y remuneración. También ofrece una renta que permite a los trabajadores vivir y asegurar la vida de sus familias, tal como se subraya en el artículo 7 del Pacto. Estos derechos fundamentales también incluyen el respecto a la integridad física y mental del trabajador en el ejercicio de su empleo.”

68 Apud CHAVES JUNIOR, José E. R. Justiça do trabalho, tutela penal e garantismo. In: DELGADO, Gabriela et al. (orgs.). Dignidade humana e inclusão social. São Paulo: LTr, 2010. p. 130.

Page 71: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 71

para o aprendizado ético e politico. Tudo isso acontece no trabalho e depende das condições que aí se verifiquem. A precarização do trabalho assalariado, aprofundada sob o influxo neoliberal, não atinge apenas as condições de compra e venda da força de trabalho, mas as próprias condições existenciais: é a precarização do próprio ser genérico humano.69 Daí que o direito ao conteúdo do próprio trabalho, juridicamente falando, contra-arresta, relativiza, o direito do empregador sobre a atividade e a organização do trabalho.

Não se trata de anular o direio do empregador de organizar a produção, mas de resgatar a tensão que aí se estabelece entre os direitos de propriedade e de livre iniciativa com o direito ao trabalho e os demais direitos a ele conexos. Quem trabalha não só trabalha para outrem, mas também trabalha para si mesmo, consigo mesmo e com outrem. Daí que se sustenta que o direito ao trabalho inclui, como sua dimensão central, que afeta a compreensão de todas as demais, o direito ao conteúdo do próprio trabalho: à atividade e às condições da organização do trabalho.

Essa percepção é radical, uma verdadeira Revolução Copernicana do Direito do Trabalho, para tomar de empréstimo a célebre expressão aplicada por Luiz Edson Fachin ao Direito Civil constitucionalizado. Isto porque obriga juridi-camente a abrir-se o espaço da empresa, da organização do trabalho, dos métodos de gestão e da atividade individual e coletiva de trabalho, até então reservados ao arbítrio e à soberania absoluta do empregador. Se a atividade de trabalho e a organização de trabalho, onde as pessoas que trabalham passam a maior parte do seu tempo de vigília, realizam, a par do interesse do empregador, também necessidades fundamentais protegidas pelo direito fundamental ao trabalho, recupera-se o espaço da organização do trabalho como espaço de cidadania.

Daí que, sendo o trabalhar não só o desincumbir-se de uma obrigação, mas também o exercício de um direito fundamental, o tempo e espaço humano do trabalhar, ainda que sujeito à conformação pelo empregador, não pode ser visto exclusivamente no interesse deste, sem conexão com as demais dimensões da vida do trabalhador e com a própria complexidade do trabalhar.

69 ALVES, Giovanni. Dimensões da precarização do trabalho. Bauru, Praxis, 2013, p. 86.

Page 72: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

72 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Aliás, não é no caráter negativo do trabalho sobre a corporalidade do tra-balhador, no cerceamento decorrente da disponibilidade para o empregador, que se deveria fundar o conceito de duração do trabalho – o tempo de trabalho nunca deixa de ser tempo de vida do trabalhador –, mas a partir da integração da corporalidade no processo de produção material e imaterial, em seus diversos aspectos. A compreensão do tempo de trabalho como tempo à disposição do empregador ratifica a separação entre tempo de trabalho e tempo de vida, favorecendo a suspensão, durante o tempo de trabalho, do exercício do direito fundamental ao conteúdo do próprio trabalho. O tempo em que o empregado cumpre a sua obrigação de disponibilidade à organização produtiva deve também comportar a realização do direito fundamental ao trabalho. É um tempo de vida em que se dá a atividade laborativa, que interessa tanto ao empregador quanto ao trabalhador.

O direito ao conteúdo do próprio trabalho, assim concebido, é muito mais amplo e profundo que o direito à ocupação efetiva, consagrado no art. 4.2, a, do Estatuto dos Trabalhadores da Espanha, no sentido de dar trabalho e permitir sua execução normal.70 Trata-se de uma ocupação qualificada, de modo que o trabalho seja capaz de permitir o desenvolver das capacidades humanas, em termos de conteúdo signficativo, potencialidade para o desenvolvimento das próprias capacidades e dons (art. 1º da Convenção n. 122 da OIT) e que diz respeito ao conteúdo da atividade de trabalho, bem como as condições da organização do trabalho para que seja possível reconhecer-se e ser reconhecido con a contribuição dada pelo trabalho bem feito o que se sintetiza em uma “ocupação plena e produtiva, em condições que garantam as liberdades políticas e econômicas fundamentais da pessoa humana” (art. 6º do PIDESC).

Conforme demonstram os estudos das ciências clínicas do trabalho, há diver-sos métodos gerenciais altamente em voga nas últimas décadas que degradam

70 Para uma perspectiva restrita do direito à ocupação efetiva, ver GUANCHE MARRERO, Alberto. El derecho del trabajador a la ocupación efectiva. Madrid, Civitas, 1993. SASTRE IBARRECHE, El derecho al trabajo, ob. cit., p. 183-192. MONEREO PEREZ e MOLINA NAVARRETE, ob. Cit., p. 328-329. Reconhecendo, na literatura nacional, a obrigação patronal de “dar trabalho ao empregado e a de possibilitar a execução normal de sua prestação, proporcionando-lhe os meios adequados para isso” ver SÜSSEKIND, Arnaldo et alii. Instituições de direito do trabalho. 16a ed., São Paulo, LTr, 1996, p. 256.

Page 73: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 73

o trabalho como exercício de um direito fundamental.71 Esses métodos, muitas vezes vistos como inocentes ou mesmo “modernos”, cortam o vínculo com o trabalho bem feito, ao centrarem a avaliação do trabalho apenas na performance em termos de resultados, eliminam as condições para o reconhecimento pelos pares do trabalho realizado, desmontam os mecanismos coletivos de construção de regras técnicas e éticas do ofício e degradam o tecido social e a solidariedade no interior da organização, ao promoverem a competição entre colegas, setores, filiais, ao inviabilizarem a construção de um sentido de pertencimento e a perspectiva de fazer parte da obra comum. Reside, nesses aspectos, boa parte de tudo aquilo que pode ser considerado fundamental para a pessoa humana no trabalho – a centralidade antropológica do trabalho – e que deve corresponder ao reconhecimento de seu caráter fundamental para a dignidade humana – a sua centralidade jurídica. Isso implica rever-se a própria compreensão do direito do trabalho como um todo, para além da regulação das condições de compra e venda da força de trabalho. O próprio trabalho – atividade e organização – deve vir compor o centro de um direito do trabalho.

A partir daí, cabe desenvolver limites negativos e conteúdos obrigatórios, extraídos dos elementos de fundamentação coligidos e das normas a eles referidos. É importante compreender que esses critérios relativos ao direito conteúdo do próprio trabalho não esgotam as exigências advindas de outros direitos e deveres juridicamente reconhecidos. Há inúmeros outros conteúdos que correspondem ao âmbito de proteção dos direitos à saúde, ao meio ambiente do trabalho, aos direitos de personalidade, ao direito de não discriminação, aos demais direitos fundamentais do trabalho e direitos previstos na legislação ordinária, e também aos outros setores do direito ao trabalho que não se inserem nessa expressão específica do direito ao conteúdo do próprio trabalho. Neste, inserem-se deveres positivos e negativos da atividade e da organização do trabalho que poderiam ser assim distribuídos:

71 DEJOURS, Christophe. BÈGUE, Florence. Suicide et travail: que faire? Paris, PUF, 2009. SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro, Record, 2006, p. 16 e ss. Para uma ampla interpretação dos impactos dos processos de transformação ideológica no mundo do trabalho sobre o Direito do Trabalho brasileiro, RAMOS FILHO, Wilson. Direito Capitalista do Trabalho: história, mitos e perspectivas no Brasil. São Paulo, LTr, 2012.

Page 74: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

74 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

A) LIMITES NEGATIVOS AO CONTEÚDO DO TRABALHO

- Vedação de um conteúdo do trabalho com esvaziamento significativo, seja por ausência de tarefas, de utilidade das tarefas ou de total falta de controle sobre a própria atividade.

- Limites quanto à invariabilidade excessiva, ou excesso de fragmentação, sobrecarga ou extensão excessiva da jornada ou métodos de remunera-ção que induzam à autointensificação.72

- Limites aos métodos de gestão e organização do trabalho que bloqueiem a cooperação entre os trabalhadores (vertical e horizontal) e com usu-ários e clientes (transversal) assim como métodos que inviabilizem a dinâmica contribuição-reconhecimento, inclusive por promoverem a disputa competitiva no lugar da cooperação.

- Adequação dos limites à singularidade de cada trabalhador e ao contex-to de trabalho.

72 Recente decisão do TRT da 15ª Região reconheceu: EMENTA: “AÇÃO COLETIVA. INTERESSE INDIVIDUAL HOMOGÊNEO. LEGITIMIDADE ATIVA DO MI-NISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. CORTADOR DE CANA. PAGAMENTO POR PRODUÇÃO. PROIBIÇÃO. SINGULARIDADE DA ATIVIDADE. POS-SIBILIDADE. RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E AO VALOR SOCIAL DO TRABALHO. (...) 3. A proibição do pagamento por produção, no caso específico dos cortadores de cana, é medida impeditiva de retrocesso social. Como é sabido, nesse caso existe um estímulo financeiro capaz de levar o trabalhador aos seus limites físicos e mentais para que, mesmo assim, aufira salário mensal aviltante e incapaz de suprir as necessidades básicas próprias e as de sua família. 4. Não se deve concluir pela proibição do pagamento por produção para todas as profissões, mas tão somente para aquelas cujas peculiaridades as tornem penosas, degradantes e degenerativas do ser humano. É o caso dos cortadores de cana, embora não exclusivamente. 5. Deve-se entender, de uma vez por todas, que o cortador de cana remunerado por produção não trabalha a mais porque assim deseja. Muito pelo contrário: ele trabalha a mais, chegando a morrer nos canaviais, unicamente porque precisa. Sua liberdade de escolha, aqui, é flagrantemente tolhida pela sua necessidade de sobreviver e prover sua família. 6. A dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho, Fundamentos da República Federativa do Brasil, devem impedir a manutenção de uma situação que remonta aos abusos cometidos durante a 1ª Revolução Industrial, de modo que a coisificação do ser humano que trabalha nos canaviais é realidade que não se admite há muito tempo.” TRT 15ª Região, 6ª Turma, 11ª Câmara, Proc. Nº0001117-52.2011.5.15.0081, Rel. Des. Hélio Grasseli. Caberia refletir, à luz das ciências clínicas do trabalho, que a autointensificação gerada pelo pagamento por produção está associada às péssimas condições de trabalho, de modo que a intensificação resulta de uma resposta subjetiva de defesa frente à sobrecarga psíquica do trabalho.

Page 75: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 75

B) CONTEÚDOS OBRIGATÓRIOS DA ATIVIDADE E ORGANI-ZAÇÃO

- Mecanismos, espaços e tempos, assim como condições de transparên-cia, confiança e liberdade, para que haja cooperação e participação deliberativa na atividade deôntica formal e informal de regulação do trabalho.

- Mecanismos adequados de reconhecimento material e simbólico da contribuição singular.

- Um grau razoável de autonomia e flexibilidade dos procedimentos la-borativos.

- Conteúdo significativo e moral da atividade a realizar e das práticas organizacionais.

- Conhecimento do conteúdo do próprio trabalho individual e coletivo.

- Perspectivas de desenvolvimento profissional.

- Condições de continuidade e integração social e psicoafetiva em termos igualitários com o coletivo de trabalho.

Esses elementos somente aparecem como mediações essenciais para as necessidades das pessoas a partir da compreensão da própria função psíquica, moral e política do trabalho e dos mecanismos que são necessários para essa função. É certo que cada aspecto acima mencionado demandaria inúmeros esclarecimentos que aqui não se terá condições de desenvolver, tratando-se mais de descortinar uma primeira percepção desse aspecto central. Abre-se aí todo um campo para novas pesquisas e trabalho jurídico em cooperação.73 Mas a sua simples visualização já permite projetar um amplo espectro de efetividade possível

73 Embora sem identificar o vínculo direto com o direito ao Trabalho, Renata DUTRA, ob. cit., p. 280, sustenta que uma revisão da compreensão dos direitos sociais pode apontar para “o direito à afirmação da identidade pelo trabalho, o direito à manutenção da saúde mental, sem imposição de práticas estressantes ou assediadoras, a regulamentação do ritmo do trabalho dentro da jornada, o direito à desconexão do trabalho nos momentos de lazer, o direito ao estabelecimento de relações laborais saudáveis com colegas e gerentes, dentro outros que se apresentem como resposta às novas formas de ofensa à subjetividade daquele que trabalha frente aos excessos nocivos da organização produtiva”.

Page 76: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

76 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

do direito ao trabalho que se encontrava obscurecido, embora para esse ponto já apontassem diversos dispositivos normativos relativos ao direito ao trabalho, mas que precisavam ser compreendidos a partir de um esforço de fundamentação mais amplo.

5. conclusões

Em que pesem todas as limitações do campo jurídico, os três níveis do direito ao trabalho acima desenvolvidos articulam-se em uma recuperação reconstrutiva do sentido do trabalho como direito, em que as categorias jurídicas ganham em capacidade de estar a serviço da reapropriação do trabalho pelos sujeitos concretos. No lugar da figura opaca e esmaecida de um direito sempre vindicado como essencial, mas pouco definido, sugem, agora, os contornos muito mais nítidos de um verdadeiro “megadireito”, multidimensional, tendo no seu centro o direito ao conteúdo do próprio trabalho. Há muito o que fazer a este respeito e aqui apenas se indicaram alguns caminhos possíveis. Mas cuida-se de dar cobro a que essa é uma tarefa da qual não estão alijados os profissionais do direito, inclusive no labor dogmático e no debate e julgamento de questões que chegam ao Judiciário. Em suma, trata-se de saber até que ponto se pode levar adiante e tomar seriamente a compreensão constitucional de que o fundamento maior do direito é a dignidade das pessoas frente às instituições, ao direito, ao mercado e não o inverso.

6. referências

ABRAMO, Laís. Trabalho decente, igualdade de gênero e raça/etinia e desenvolvimento. Brasília, 2006, disponível em http://www.oit.org.br/prgatv/prg_esp/genero/seminariofinal/26/Lais%20Abramo.pdf.

ABRAMOVICH, Victor e COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibiles. Madri, Trotta, 2002.

ALEMÃO, Ivan. Desemprego e direito ao trabalho. São Paulo, Esplanada/ADCOAS, 2002.

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993.

Page 77: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 77

ALVES, Giovanni. Dimensões da precarização do trabalho. Bauru, Praxis, 2013.

BAUMAN, Zygmunt. La sociedad individualizada. Madrid, Cátedra, 2001.

BAYLOS GRAU, Antonio e PÉREZ REY, Joaquín. El despido o la violência del poder privado. Madrid, Trotta, 2009.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos (trad. Carlos Nelson Coutinho). 10ª ed., Rio de Janeiro, Campus, 1992.

CHAVES JUNIOR, José E. R. Justiça do trabalho, tutela penal e garantismo. In: DELGADO, Gabriela et al. (orgs.). Dignidade humana e inclusão social: caminhos para a efetividade do direito do trabalho no Brasil. São Paulo, LTr, 2010, p. 126-142.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001.

CORTINA, Adela e CONILL, Jesus. Cambio en los valores del trabajo. In Sistema: Revista de Ciências Sociais, n. 168-169 (2002), p. 3-15.

DEJOURS, Christophe. Travail vivant 1: sexualité et travail. Travail vivant 2: travail et émantipation. Paris, Payot, 2009.

DEJOURS, Christophe. BÈGUE, Florence. Suicide et travail: que faire? Paris, PUF, 2009.

DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo, LTr, 2006.

DUTRA, Renata Queiroz. Direitos fundamentais sociais à afirmação da identidade e à proteção da subjetividade no trabalho. In: Revista do Tribunal Superior do Trabalho, vol 78, n. 4 (out-dez-2012), São Paulo, Lex-Magister, p. 256-287.

FERRARI, Regina M. M. N. Direito Constitucional. São Paulo, RT, 2011.

FONSECA, Maria Hemília. O direito ao trabalho: um direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo, LTr, 2009.

GALTUNG, Johan. Direitos humanos: uma nova perspectiva, Lisboa, Insti-tuto Piaget, 1998.

Page 78: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

78 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

GIUBBONI, Stefano. Il primo dei diritti sociali. Riflessioni sul diritto al lavoro tra Constituzione italiana e ordinamento europeo. Disponível em http://aei.pitt.edu/13686/1/giubboni_n46-2006int.pdf.

GOMES, Fábio Rodrigues. O direito fundamental ao trabalho: perspectivas histórica, filosófica e dogmático-analítica. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2008.

GRUPO KRISIS. Manifesto contra o trabalho. São Paulo, Conrad, 2003.

GUANCHE MARRERO, Alberto. El derecho del trabajador a la ocupación efectiva. Madrid, Civitas, 1993.

HÄBERLE, Peter. El estado constitucional (trad. Hector Fix-Fierro). México, D.F./Lima, UNAM/PUC-Peru, 2003.

HELLER, Agnes. Teoria de las necesidades em Marx, Barcelona, Península, 1978.

HERRERA FLORES, Joaquín. Los derechos humanos como productos culturales: crítica delhumanismo abstracto. Madrid, Catarata, 2005.

HINKELAMMERT, Franz e MORA JIMÉNEZ, Henry. Hacia uma economía para la vida. San José, Costa Rica, DEI, 2005.

HONNETH, Axel. Trabalho e reconhecimento: tentativa de uma redefini-ção. In Civitas: Revista de Ciências Sociais, v. 8, n. 1, jan-abr. 2008, p. 46-67.

______.Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (trad. Luiz Repa). São Paulo, Editora 34, 2003.

KURZ, Robert. O desfecho do masoquismo histórico – o capitalismo começa a libertar o homem do trabalho. Folha de São Paulo, São Paulo, 20.07.1997, Caderno Mais.

LANCMAN, Selma e SZNELWAR, Laerte Idal (Orgs.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3ª Ed., revista e amplia-da, Rio de Janeiro, FIOCRUZ/Paralelo 15, 2011.

LEDUR, José Felipe. A realização do direito ao trabalho. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999.

Page 79: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 79

LUCAS, Javier de; AÑON ROIG, Maria José. Necesidades, razones, derechos. In: Doxa, Cuadernos de Filosofía del Derecho. Alicante, n. 7, 1990, p. 55-81.

MELLO, Celso de Albuquerque. A proteção dos direitos humanos sociais nas Nações Unidas. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro, Renovar, 2003.

MONEREO PÉREZ, José Luiz e MOLINA NAVARRETE, Cristóbal. El derecho al trabajo, la libertad de elección de prefesión u oficio: principios institucionales del mercado de trabajo, in MONEREO PÉREZ, MOLINA NAVARRETE e MORENO VIDA (dir.), Comentario a la Constitución socio-económica de España, Granada, Comares, 2002.

MORAES FILHO, Evaristo de. O direito ao trabalho. In Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, 11-16 ago. 1974, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Asgráfica, 1974.

MÜLLER, Friedrich. Discours de la méthode juridique. Paris, PUF, 1996.

PIOVESAN, Flávia, Direito ao trabalho decente e a proteção internacio- nal dos direitos sociais, Cadernos da AMATRA IV, Porto Alegre, ano VI, n. 16 (Nov. 2011), p. 20-54.

POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. 2ª ed., Rio de Janeiro, Elsevier/Campus, 2012.

RAMOS FILHO, Wilson. Direito Capitalista do Trabalho: história, mitos e perspectivas no Brasil. São Paulo, LTr, 2012.

ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. 3ª Ed., São Paulo, LTr, 2009.

SARLET, Ingo W.A eficácia dos direitos fundamentais. 7ª ed., Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2007.

SARLET, Ingo W. e FIGUEIREDO, Mariana, Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações, in SARLET e TIMM, (org), Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2008.

Page 80: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

80 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

SARLET, I.; MARINONI, L.G.; e MITIDIERO. Curso de direito consti-tucional. São Paulo, RT, 2012.

SASTRE IBARRECHE, Rafael. El derecho al trabajo. Madrid, Trotta, 1996.

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 20a ed., São Paulo, Malheiros, 2002.

SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro, Record, 2006.

SÜSSEKIND, Arnaldo et alii. Instituições de direito do trabalho. 16a ed., São Paulo, LTr, 1996.

VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na consti-tuição portuguesa de 1976, Coimbra, Almedina, 1987.

WANDELLI, Leonardo Vieira. O direito humano e fundamental ao traba- lho: fundamentação e exigibilidade. São Paulo, LTr, 2012.

Page 81: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 81

a subordinação jurídica no direito do trabalho: pela necessidade de sua

adequação e releitura nas relações de emprego contemporâneas

Lívia Mendes Moreira Miraglia1

Gabriela Neves Delgado2

Resumo

O objetivo central do presente artigo é rever a tutela protetiva do Direito do Trabalho a partir da análise dos pressupostos fático-jurídicos da relação de emprego na contemporaneidade. Afirma-se ser possível, por meio de uma hermenêutica constitucional conectada à realidade social vigente, estabelecer parâmetros de adequação e de atualização conceitual da relação de emprego. Tendo em vista que a subordinação é a pedra de toque da relação de emprego e que sua conceituação é controversa, concentra-se a abordagem nesse pressuposto. A doutrina e a jurisprudência tentam compreender e precisar o conceito de subordinação, buscando adequá-lo à realidade social, de modo a incluir no campo de incidência da tutela protetiva trabalhista os trabalhadores que se enquadram no conceito de empregado. Para tanto, é indispensável estar atento às mudanças nas estruturas e nas organizações empresariais, bem como às novas formas de contratação de mão de obra. Inicia-se pela sua concepção clássica, indispensável para se fixar as premissas necessárias à sua compreensão, condição imprescindível para a sua adequação e releitura. Analisa-se a subordinação subjetiva, a objetiva e a crise da subordinação na contemporaneidade, procedendo-se ao estudo das no- vas abordagens realizadas pela doutrina e pela jurisprudência brasileiras nos últi- mos anos, destacando-se aquelas que objetivam ampliar a rede de proteção trabalhista. Em seguida, passa-se à análise de outras possibilidades de ampliação

1 Professora Adjunta de Direito do Trabalho da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Advogada.

2 Professora Adjunta de Direito do Trabalho da Universidade de Brasília - UnB. Doutora em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Advogada.

Page 82: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

82 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

do conceito de relação de emprego na contemporaneidade por meio da subordi-nação jurídica. Elege-se as teorias da dependência econômica e do trabalho por conta alheia, com fulcro na doutrina espanhola, a fim de permitir uma releitura e adequação do conceito de subordinação na atualidade. Por fim, propõe-se, com base nas teorias alicerçadas um novo conceito de subordinação, capaz de am-pliar a concepção da relação de emprego na contemporaneidade, permitindo a realização do escopo primordial do Direito do Trabalho de proteção do traba-lhador hipossuficiente.

Palavras-chave

Direito do Trabalho contemporâneo; Conceito de empregado; Subordinação jurídica; Releitura e adequação; Formas de ressignificação.

Abstract

The central objective of the present article is to review the protection of Labor Law from the examination of the conceptual relationship of the employment in the contemporary world. This will based on a constitutional hermeneutics connected to the social reality and that can establish parameters for adequacy and update the conceptual relationship of employment. Having in view that the juridical subordination is the cornerstone of the employment relationship and that its conceptualization is controversial, the focus will be the analysis of this element. The doctrine and the jurisprudence have been trying to comprehend and establish the idea of juridical subordination, trying to adequate it to the current social context, in order to include in Labor law protective spectrum more workers. For that it´s important to be regardful of structural and organizational changes and of the new working arrangements. The analysis begins with the study of classical subordination concept, which is indispensable to understand the element and to purpose an adequacy and new meaning to the employment relationship. The article brings an evolution of the conceptual relationship of employment by studying the subordination by three perspectives: the subjective, then the objective and then the crisis of the conceptualization of the element, detaching some of the Brazilian contemporary theories of the subordination. The next step is to examine other possibilities to expand the concept of employment relationship in the contemporary world, based on the contextualization of juri-

Page 83: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 83

dical subordination. Therefore, the theories of economic dependency and “alienidad”, based on the Spanish doctrine are investigated aiming to allow a new perception of employment relation in the contemporaneity. The goal is always to highlight the theories that try to enlarge the range of protection of Labor Law. Based on all these theories, the article proposes a new conception for juridical subordination, that is be capable of built a new idea of employment relationship, allowing Labor Law to realize its primary goal that is to protect the worker.

Key words

Contemporary Labor Law; Concept of employee; Juridical subordination; Necessity of adequation; Means of ressignification.

1. introdução

O objetivo central do presente artigo é rever a tutela protetiva do Direito do Trabalho a partir da análise dos pressupostos fático-jurídicos da relação de emprego na contemporaneidade.

Afirma-se ser possível, por meio de uma hermenêutica constitucional conectada à realidade social vigente, estabelecer parâmetros de adequação e de atualização conceitual da relação de emprego.

Desse modo, procede-se à abordagem do pressuposto da subordinação, iniciando-se pela sua concepção clássica, fixando as premissas necessárias à sua compreensão, condição imprescindível para a sua adequação e releitura.

Importa frisar que a subordinação é considerada a pedra de toque do conceito de relação empregatícia. O pressuposto da subordinação é o mais relevante para a caracterização e definição do empregado. Não obstante, é também o de definição mais controvertida.

A doutrina e a jurisprudência veem tentando compreender e precisar o conceito de subordinação, buscando adequá-lo à realidade social, de modo a incluir no campo de incidência da tutela protetiva trabalhista os trabalhadores que se enquadram no conceito de empregado. Para tanto, é indispensável estar atento às mudanças nas estruturas e nas organizações empresariais, bem como às novas formas de contratação de mão de obra.

Page 84: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

84 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Sendo assim, passa-se a analisar as possibilidades de releitura do pressuposto da subordinação, trazendo à baila as diversas teorias que visam a garantir-lhe conceito mais amplo e abrangente efetivando, assim, a finalidade teleológica do Direito do Trabalho de proteção do trabalhador, em uma perspectiva progres- sista e inclusiva.

2. o conceito clássico do pressuposto da subor-dinação na relação de emprego: o início da his-tória

Faz-se necessário realizar uma breve análise histórica acerca da evolução do conceito de subordinação. O objetivo é demonstrar que a adequação proposta é viável e pode ser implementada mediante exercício hermenêutico inclusivo do sistema constitucional de proteção trabalhista, pautado nos comandos constitucionais de valorização do trabalho e da dignidade do ser humano.

A expansão e a generalização do Direito do Trabalho deram-se, como ensina Ribeiro de Vilhena, em razão da evolução do conceito de subordinação (VILHENA, 2005, p. 516-520).

No início do século XX, o conceito de subordinação jurídica começou a ser esboçado. Tal pressuposto era denominado também como “dependência pessoal” ou “dependência hierárquica” (CATHARINO, 1982, p. 204-205).

A subordinação era então considerada em seu aspecto subjetivo, de modo que apenas se falava em relação de emprego se observada a presença de controle rígido e direto do empregador sobre o empregado (MARTINI, 1912, p. 103).

Nas décadas de 1960 e 1970, no auge da vigência do Estado de Bem Estar Social nos países capitalistas centrais, avançou-se para o conceito de subordinação objetiva, identificando-se o empregado como aquele que tem participação integrativa na atividade do credor do trabalho. Ou seja, a perspectiva passou a ser a da “atividade de trabalho” e não a da “pessoa do trabalhador” (VILHENA, 2005, p. 516-520).

Perceba-se que no Brasil não houve tempo suficiente para a consagração legislativa da subordinação objetiva, tendo-se firmado apenas como critério

Page 85: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 85

jurisprudencial e doutrinário, uma vez que a partir do final da década de 1970 observou-se a ruptura com o ideal expansionista e progressista das relações sociais.

A crise inaugurada pela alta do preço do barril do petróleo e disseminada pela ausência de respostas rápidas e eficientes do modelo vigente levou à criação de um novo paradigma, pautado na hegemonia neoliberal.

O movimento de expansão do Direito do Trabalho se estagnou por meio do aparecimento de novas formas de “relações de trabalho” que não se enquadravam no conceito de “relação de emprego” e que, portanto, não estariam abarcadas pelo manto protetivo do ramo justrabalhista.

Em relação à relação de emprego, houve a retomada da ideia de subordinação subjetiva, aplicando-se o conceito formulado nos moldes da fábrica taylorista-fordista.

A retomada da concepção subjetivista da subordinação ocasionou (e ainda ocasiona) a expulsão de milhares de indivíduos da posição de empregados para a posição de cooperados, terceirizados, autônomos (muito embora, na maioria das vezes, esses não sejam, de fato, autônomos), entre outros3.

O que se observa contemporaneamente no Brasil é que o momento atual de flexibilização trabalhista tem, regra geral, implicado na exclusão do trabalhador do campo de incidência da legislação protetiva trabalhista.

Ocorre um movimento de exclusão e expulsão dos trabalhadores dos antigos postos de trabalho com a sua recolocação no mercado de trabalho fora do campo de incidência da tutela justrabalhista e com precária proteção social.

Os trabalhadores que trabalham nestas condições (ocupações ilegais ou flexíveis, com parca proteção do sistema justrabalhista) se preocupam apenas e tão-somente com a manutenção da vida, no sentido de garantia da sua sobrevivência mínima.

Esses trabalhadores não possuem acesso ao patamar constitucional de direitos fundamentais que lhes deveria ser assegurado.

3 Sobre o tema, as autoras já se pronunciaram em artigo específico. Ver: DELGADO, Gabriela Neves; MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira. A tendência expansionista do Direito do Trabalho: breve análise a partir do fundamento de proteção ao trabalho previsto na Constituição Federal de 1988. IN: COUTINHO, Grijalbo Fernandes; FAVA, Marcos Neves. O que estão fazendo da nova competência da Justiça do Trabalho? Análise crítica da jurisprudência do STF, do TST e do STJ após a EC 45/2004. São Paulo: LTr, 2011, p. 59-79.

Page 86: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

86 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Todavia, é importante ressaltar que o Direito deve garantir não apenas a sobrevivência, mas sim a vivência digna de todas as pessoas. No que tange ao Direito do Trabalho isso significa alargar o seu campo de proteção, a fim de tutelar o maior número possível de trabalhadores hipossuficiente.

Não obstante, deve-se salientar ainda que, embora pareçam ser a maioria, sabe-se que em muitos casos os chamados “informais”, “autônomos”, freelancers e “prestadores de serviços”, por exemplo, representam, na realidade, verdadeiros empregados, sendo imprescindível destituir a máscara falaciosa de “relação de trabalho”, por meio de políticas públicas de promoção do pleno emprego e da fiscalização e atuação conjunta e eficaz dos órgãos do Ministério do Trabalho e do Emprego, do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho.

Nesse sentido, é necessário, em um primeiro e mais premente momento concretizar a ampliação da tutela trabalhista pela via interpretativa, com vistas a garantir o efetivo acesso dos indivíduos a um posto de trabalho digno.

A releitura e a consequente redefinição do conceito de relação de emprego é indispensável para a concretização e realização da própria ideia de Justiça. Essa deve ser a primeira medida para a inclusão dos trabalhadores que foram marginalizados pelo sistema capitalista de produção ao serem expulsos do manto protetivo do Direito do Trabalho por não se incluírem na definição clássica da relação de emprego.

Nesse sentido, passa-se à análise do conceito de subordinação no ordenamento jurídico pátrio contemporâneo, a fim de fixar as premissas necessárias para a sua reformulação permanente.

3. o conceito clássico da subordinação no ordena-mento jurídico brasileiro

Estabelece a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que é empregado “toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário” (art. 3º)4.

4 O elemento da pessoalidade, que compõe o tipo jurídico da relação de emprego, aparece no caput do art. 2º da CLT.

Page 87: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 87

Todavia, a CLT não define o que seja dependência - conceito denominado majoritariamente pela doutrina de “subordinação jurídica”. E ainda que a doutrina forneça os instrumentais necessários à definição da relação de emprego, identificando e precisando cada um de seus elementos fático-jurídicos, caberá ao intérprete, diante de cada caso concreto, verificar a existência ou não da relação empregatícia.

Maranhão assim explica a subordinação:

O empregador, que exerce um empreendimento econômico, reúne, em sua empresa, os diversos fatores de produção. Esta, precisamente, sua função social. Desses fatores, o principal é o trabalho. Assumindo o empregador, como proprietário da empresa, os riscos do empreendimento, claro está que lhe é de ser reconhecido o direito de dispor daqueles fatores, cuja reunião forma uma unidade técnica de produção. Ora, sendo o trabalho, ou melhor, a força de trabalho, indissoluvelmente ligada a sua fonte, que é a própria pessoa do trabalhador, daí decorre, logicamente, a situação subordinada em que este terá de ficar relativamente a quem pode dispor do seu trabalho (SUSSEKIND; MARANHÃO; VIANA; TEIXEIRA, 2004, p. 237).

É de se ver que prevalece o entendimento de que a subordinação jurídica caracteriza-se pelo poder que o empregador tem de determinar, por meio da intensidade de suas ordens, o modo da prestação de serviços a que se submete o obreiro.

O empregado se obriga a deixar-se dirigir pelo empregador, de acordo com os fins da atividade econômica. A subordinação implica no direito do empregador de exercer o seu poder diretivo sobre a realização dos serviços do empregado. Assim, cabe-lhe dirigir, comandar, controlar e até mesmo aplicar penas disciplinares. O empregado, por seu turno, tem o dever de obediência, lealdade e diligência (SUSSEKIND; MARANHÃO; VIANA; TEIXEIRA, 2004, p. 242).

Mas essas obrigações do empregado e do empregador possuem limites, calcados, em especial, nos princípios constitucionais de valorização do trabalho e da dignidade da pessoa humana. Desse modo, cabe ao empregado resistir às ordens e aos comandos que sejam ofensivos à sua dignidade. Além disso, é pos-sível ao empregado recorrer aos diversos instrumentos jurídico-institucionais

Page 88: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

88 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

para assegurar a aplicação das regras protetivas trabalhistas (SENA; DELGADO; NUNES, 2010).

Barros defende que para a caracterização da subordinação jurídica não é neces-sário que os poderes de comando e de vigilância do empregador sejam constantes. Basta que se verifique “a possibilidade de o empregador dar ordens, comandar, dirigir e fiscalizar a atividade do empregado”. Desse modo, a autora afirma que “nem sempre a subordinação jurídica se manifesta pela submissão a horário ou pelo controle direto do cumprimento de ordens” (BARROS, 2007, p. 260).

Ou seja, o que se percebe atualmente é ainda a preponderância da utilização da concepção clássica de subordinação jurídica em detrimento da matriz objetiva em uma perspectiva excludente e reducionista da tutela protetiva trabalhista.

Todavia, o conceito clássico de “subordinação” não pode ser considerado suficiente para regular a nova dinâmica das relações de emprego contemporâneas.

É preciso readequar e ampliar o conceito de relação de emprego, por meio de uma hermenêutica constitucional atual e possível, a fim de que o Direito do Trabalho seja capaz de cumprir a sua finalidade precípua de proteção dos trabalhadores.

Ressalve-se, que o presente artigo rejeita a criação de um terceiro gênero.

Compreende-se que o momento atual é o de reforçar os limites do Direito do Trabalho. Deve-se identificar, da forma mais precisa possível, quem são os seus destinatários para que se possa efetivar o programa constitucional de valorização do trabalho e do próprio trabalhador, garantindo assim o caráter progressista e modernizante do Direito do Trabalho, algo essencial para a concretização do desenvolvimento social e para a consolidação do Estado Democrático de Direito no Brasil.

4. algumas possibilidades de releituras do pressu-posto da subordinação na contemporaneidade

Mas, afinal, como se conceitua a subordinação contemporaneamente?

Consoante se aduziu anteriormente, a subordinação, tal como vem sendo compreendida em sua concepção subjetivista clássica, não se adéqua à realidade

Page 89: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 89

social contemporânea. Dessa forma, torna-se essencial promover a sua releitura e conferir-lhe novo conteúdo condizente com os preceitos constitucionais da valorização do trabalho e da dignidade humana, a fim de cumprir o programa estabelecido pela Constituição de 1988, no sentido de garantir desenvolvimento socioeconômico, no contexto do Estado Democrático de Direito.

Vilhena assevera que a subordinação “é um desprendimento de fundo his-tórico e corresponde ao pensamento jurídico dominante no modo de equacionar as forças jurídicas conflitantes de uma época” (VILHENA, 2005, p. 512-513).

Em outras palavras, cabe ao intérprete adequar o conteúdo jurídico dos conceitos da relação de emprego de acordo com a situação histórica vigente, haja vista que o Direito deve ser reflexo dos anseios e objetivos de uma determinada sociedade em um dado momento histórico.

Nesse sentido, doutrinadores, juristas e intérpretes do Direito do Trabalho têm se debruçado sobre o conceito de subordinação, a fim de garantir-lhe pertinência em face da realidade social cambiante.

Inicialmente, ressalte-se que todas essas teorias caminham no mesmo sentido do que se propõe esta tese: o de ampliação do conceito de relação de emprego, objetivando incluir na esfera de tutela do Direito do Trabalho trabalhadores hipossuficientes para os quais a proteção ainda se justifica e que, em face das mudanças tecnológicas e estruturais do mundo moderno, não se enquadram no conceito clássico de subordinação5. (Grifo nosso)

Vilhena defende a superação da acepção subjetivista da subordinação jurí-dica (cujo traço marcante é a condição de dependência), em favor da dimensão objetiva, de modo que a subordinação seja definida “como a participação integrativa da atividade do trabalhador na atividade do credor de trabalho” (VILHENA, 2005, p. 526).

5 Algumas das ideias expostas nesse item 3 foram desenvolvidas de forma mais aprofundada pelas autoras em artigo específico. Ver: DELGADO, Gabriela Neves ; MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira. A tendência expansionista do Direito do Trabalho: breve análise a partir do fundamento de proteção ao trabalho previsto na Constituição Federal de 1988. IN: COUTINHO, Grijalbo Fernandes; FAVA, Marcos Neves. O que estão fazendo da nova competência da Justiça do Trabalho? Análise crítica da jurisprudência do STF, do TST e do STJ após a EC 45/2004. São Paulo: LTr, 2011, p. 59-79. (Grifo nosso)

Page 90: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

90 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

No entanto, é de se destacar que a conceituação objetiva do elemento da subordinação jurídica, por si só, não se afigura satisfatória para a regulamentação do mundo trabalhista atual, pois “tende a enquadrar como subordinadas situações fático-jurídicas eminentemente autônomas” (DELGADO, Maurício, 2006, p 164).

Barros alerta para o fato de que a “subordinação objetiva não vem sendo admitida como critério autônomo para definir a existência de um contrato de trabalho”. Conclui que “a par da participação integrativa do trabalhador na atividade empresarial ele deverá estar sujeito ao poder diretivo e disciplinar conferido ao empregador” (BARROS, 2007, p. 261-262).

Maurício Delgado propõe a readequação do conceito clássico de subordinação jurídica, mediante a atenuação do “enfoque sobre o comando empresarial direto, acentuando, como ponto de destaque, a inserção estrutural do obreiro na dinâmica do tomador de seus serviços” (DELGADO, Maurício, 2006, p 164).

Assim, elege a subordinação estrutural, definindo-a como “a que se manifesta pela inserção do trabalhador na dinâmica do tomador de seus serviços, independentemente de receber (ou não) suas ordens diretas, mas acolhendo, estruturalmente, sua dinâmica de organização e funcionamento” (DELGADO, Maurício, 2006, p 164).

Na mesma direção, Mendes e Chaves Júnior propõem a reformulação do conceito clássico de subordinação jurídica, a partir do conceito de subordinação estrutural-reticular. Desse modo, articulam a noção de subordinação estrutural proposta por Maurício Delgado, com a feição reticular da reorganização produtiva, mitigando, sem desprezar, a ideia de atividade preponderante do empregador (MENDES; JUNIOR, 2007, p. 197-218).

Ainda em consonância com a ideia de readequação do conceito de subordi-nação jurídica, Porto desenvolve a concepção de subordinação integrativa, nos seguintes termos:

(...) presente quando a prestação de trabalho integra as atividades exercidas pelo empregador e o trabalhador não possui uma

Page 91: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 91

organização empresarial própria, não assume os riscos de ganhos ou perdas e não é proprietário dos frutos do seu trabalho, que pertencem, originariamente, à organização produtiva alheia para a qual presta a sua atividade (PORTO, 2008, p.6-30).

O conceito da autora parte da noção de subordinação objetiva, procurando conjugá-la com critérios que excluam a autonomia. Identificada a subordinação objetiva, o intérprete deve proceder à análise dos indícios de caracterização da autonomia que, caso estejam presentes, afastam a existência da relação de emprego. A autora cita como indícios da ausência da autonomia do trabalhador a prestação de serviços para uma organização produtiva alheia; a pertença dos frutos do seu trabalho originariamente ao empregador; a ausência de uma organização empresarial própria, de modo que o trabalhador não assuma os riscos do empreendimento, cabendo-lhes exclusivamente ao tomador (PORTO, 2008, p. 25-26).

Sendo assim, forçoso asseverar que a análise da existência da subordinação jurídica só poderá ser feita diante do caso concreto, avaliando-se as premissas e as variáveis apresentadas.

Porto considera que o método mais racional é “verificar, primeiramente, se a subordinação em sua dimensão clássica faz-se presente” e, apenas em caso negativo, deve-se partir para a análise da presença da subordinação na dimensão integrativa (PORTO, 2008, p.26).

O que se percebe é que o conceito de subordinação subjetiva não deve ser completamente rechaçado ou superado.

Presente a subordinação subjetiva, caracterizada está a relação empregatícia, haja vista que o controle direto do empregador ainda é sim uma face relevante da subordinação e se encontra presente em muitas das relações trabalhistas.

Assim, pode-se aduzir que a subordinação caracteriza-se pela efetiva inserção do trabalhador na dinâmica empresarial, à qual ele se submete, uma vez que não possui organização empresarial própria. Sob a perspectiva do empregador, a verificação da subordinação implica na existência de um poder (ainda que potencial) de dirigir o modo da prestação dos serviços (ainda que tal direção não se consubstancie em um controle direto).

Page 92: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

92 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

5. outras possibilidades: as teorias da dependência econômica e do trabalho por conta alheia - instrumentos para a ampliação do conceito de relação de emprego na contemporaneidade

Saliente-se, inicialmente, que as possibilidades estudadas neste ponto coadunam-se com o escopo desta pesquisa no sentido de elastecimento do conceito de relação de emprego, com vistas a ampliar o perímetro protetivo do Direito do Trabalho brasileiro.

Consoante mencionado anteriormente, a pesquisa não se propõe a analisar possibilidades que culminem na criação de um terceiro gênero de relação de trabalho, haja vista que se compreende que tal proposta não se coaduna com os princípios constitucionais do trabalho e com o programa constitucional brasi- leiro de edificação do Estado Democrático centrado na valorização do ser humano.

Por fim, buscou-se ter cautela ao se eleger as ideias centrais a serem aqui estudadas, de modo que a ampliação proposta não seja tão abrangente a ponto de inserir no conceito de relação de emprego, relações que não sejam, de fato, caracterizadas pela hipossuficiência do trabalhador.

Nesse sentido, cumpre destacar a lição de Catharino, pois embora o autor te-nha escrito em outro contexto e para tempos passados, seu pensamento encaixa-se perfeitamente à atualidade, haja vista que ainda hoje se pode afirmar que “a expansão protecionista do Direito do Trabalho não parou ainda”. Todavia, já alertava o autor que a elasticidade do conceito de subordinação não pode ser tamanha, a ponto de atuar de “maneira centrípeta”, atraindo para o âmbito de pro- teção do Direito do Trabalho aqueles que não são empregados. O autor entendia, ainda, que não há como proceder-se a um tratamento unitário e genérico de toda espécie de trabalho humano, sendo necessário dividir os trabalhadores entre os que são empregados e os que não são (CATHARINO, 1982, p. 153-154).

O objetivo deste artigo é o de propor diretrizes de tutela trabalhista para os tra-balhadores que se enquadram no conceito de empregado contemporaneamente formulado. Assim, excluem-se da tutela trabalhista aqueles que, sendo senhores do destino de seu labor, ofertam-no livremente no mercado de trabalho, ou seja, os autônomos.

Page 93: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 93

5.1. a dependência econômica: critério de aprimora-mento do pressuposto da subordinação nas situa-ções fronteiriças

Tendo em vista que a Consolidação das Leis do Trabalho não aduz ex-pressamente o elemento da subordinação, referindo-se apenas à dependência, cumpre fazer uma breve análise desse conceito.

Leciona Catharino que a dependência econômica é critério que se liga à evolução histórica do Direito do Trabalho, haja vista que esse surgiu para compensar as desigualdades econômicas, “para reduzir ou evitar coação econômica, viciadora da vontade dos mais fracos em face dos economicamente poderosos” (CATHARINO, 1982, p. 201).

Lembra De La Cueva que a dependência econômica, como elemento essen- cial para a existência de uma relação de trabalho, remonta aos tempos do feudalismo, quando o servo era um autêntico dependente econômico do senhor (DE LA CUEVA, 1981, p. 201-202).

Na jurisprudência, o critério desenvolveu-se tendo como ponto de partida a figura do trabalhador em domicílio e do “infortúnio do trabalho” (legislação acidentária), uma vez que, sendo mais amplo do que o da subordinação jurídica, permitiu trazer para a área de proteção da legislação trabalhista esse tipo de trabalhador (CATHARINO, 1982, p. 201).

De acordo com Cesarino Junior, a “jurisprudência foi forçada a evoluir no sentido de ampliar o conceito de subordinação jurídica ou hierárquica até confundi-lo com o da própria dependência econômica” ( CESARINO JUNIOR, 1938, p. 78).

Entende Catharino que tal concepção relaciona-se com o “expansionismo da própria disciplina”. Explica que o critério de dependência econômica é bifronte, haja vista que pode ser aferido em relação a ambos os contratantes, embora de forma mais intensa em relação ao trabalhador. Assim, ensina que a dependência econômica pode, excepcionalmente, servir de substrato à subordinação jurídica, “pois o empregador é subordinante por ser economicamente forte, dono de meios de produção” (CATHARINO, 1982, p. 201-203).

Page 94: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

94 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Explica Cesarino Junior que “a teoria da dependência econômica se explicaria pela própria evolução do contrato de trabalho”. Lembra o autor que a afirmação individualista cunhada pela Revolução francesa de igualdade e liberdade entre as partes, garante ao empregado o “direito de... morrer de fome” (CESARINO JUNIOR, 1938, p. 80).

A desigualdade econômica existente entre o empregado e o empregador implica, sempre ou quase sempre, aceitação das condições impostas pela parte mais forte - o empregador -, haja vista que o empregado não dispõe de outro recurso que não a sua força de trabalho. Nesse sentido, Cesarino Júnior leciona que:

(...) é preciso notar que, se o fundamento da proteção dispensada aos trabalhadores foi a sua dependência econômica, nem por isto se pode esquecer que tal proteção, na legislação social, é dispensada a eles na qualidade de trabalhadores economicamente dependentes, e não apenas na de pessoas economicamente dependentes (CESARINO JUNIOR, 1938, p. 80).

O autor aduz ainda que há casos de contrato de trabalho sem a dependência econômica, de modo que o trabalhador pode ter outros meios de subsistência e até mesmo outros empregos sem que isso desnature a existência da relação empregatícia. Portanto, o autor refuta a teoria da dependência econômica como único e principal critério distintivo e caracterizador da relação empregatícia (CESARINO JUNIOR, 1938, p. 80-81).

No mesmo sentido, Maranhão afirma que o critério de dependência econômica nem sempre é válido, pois essa pode existir sem contrato de trabalho (e até entre empregadores, como ocorre, por exemplo, no grupo econômico do artigo 2º, parágrafo 2º da CLT) e pode existir contrato sem essa dependência. E nesse ultimo caso, explica que a independência financeira do empregado não descaracteriza a relação empregatícia (SUSSEKIND; MARANHÃO; VIANA; TEIXEIRA, 2004, p. 237).

Para Cuche, a subordinação não pode ser considerada critério exclusivo para a definição da relação empregatícia. Defende o autor que o critério da dependência econômica seja utilizado de forma complementar a fim de garantir a caracterização do contrato de trabalho toda vez que a execução do contrato consubstancie uma

Page 95: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 95

situação de dependência econômica ou de subordinação do empregado em face do tomador de serviços (CUCHE, 1913, Apud CATHARINO, 1982, p. 202).

Elenca o autor dois critérios para a configuração da dependência econômica, a saber:

que o trabalhador tenha no seu trabalho a fonte única ou principal de sua subsistência; que viva do seu trabalho, e que a remuneração que recebe não ultrapasse em muito suas necessidades e às da sua família; 2) que aquele que remunera o trabalho absorva, por assim dizer, integral e regularmente, a atividade do trabalhador, como tal, sendo necessário que o credor de trabalho tome tempo integral do empregado, a ponto de não ter necessidade, nem possibilidade, de oferecer seus serviços a outro(s) empregador(es) (CUCHE, 1913, p. 412-413, apud CATHARINO, 1982, p. 202).

O autor exclui a possibilidade de o empregado ter mais de um emprego e do trabalho a tempo parcial, embora permita que tenha outros meios de sobrevivência (CUCHE, 1913, p. 412-413, apud CATHARINO, 1982, p. 202).

Zinguérevitch entende que a dependência econômica e a subordinação jurídica, em regra, coexistem. E afirma que “as pessoas dependentes encontram-se privadas da liberdade econômica, no sentido de que, sem o seu trabalho assalariado, cairiam na miséria”, de modo que bastaria a dependência econômica para caracterizar o contrato de trabalho (Zinguérevitchl apud CATHARINO, 1982, p. 203).

Ensina Catharino que a concepção de dependência econômica como critério definidor da relação empregatícia pode provocar a exclusão do conceito de empregado daquele que divide seu tempo para dois ou mais empregadores dos quais recebe igual remuneração e dos que são considerados altos empregados, uma vez que seu salário ultrapassaria as meras necessidades pessoais e de sua família ou daqueles trabalhadores que possuíssem outro meio de subsistência (loteria, casamento, herança etc.) (CATHARINO, 1982, p. 203).

A teoria da dependência econômica foi elaborada para proteger legalmente os “trabalhadores economicamente dependentes, mas juridicamente quase independentes”. Havia um intento humanitário. Nessa esteira, ensina o autor:

Page 96: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

96 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Afinal, o grau de dependência econômica, do máximo, resultante da necessidade - que exclui a liberdade, a um mínimo - que a favorece e até transmuda a dependência econômica em independência licenciosa, não deve deixar de ser considerado, seja para a diversificação legislativa protetora, seja para determinar exclusões, seja, enfim, para impor repressão. Assim o exige o princípio da igualdade jurídica, constitucionalmente consagrado ( CATHARINO, 1982, p. 204).

Nessa trilha, relata Teyssié que o critério da dependência jurídica foi utilizado pela Corte de Cassação francesa em 1922, para configurar a existência da relação de emprego entre um artista e seu tomador de serviços. Os juízes franceses das instâncias inferiores haviam concluído pela insuficiência do conceito clássico de subordinação para a tutela do caso (TEYSSIÉ, 1998).

Assim, entendeu a Corte que não eram excludentes da relação empregatícia a propriedade dos instrumentos de trabalho pelo artista e o auxílio de terceiros para a realização da atividade. Perceba-se que a Corte francesa empregou também neste caso, um sentido mais amplo à pessoalidade, na mesma esteira daquilo que foi proposto no capítulo anterior desta tese (TEYSSIÉ, 1998).

Wank leciona que, “no passado, o tribunal superior alemão se referia à dependência econômica” como critério para a configuração da relação empregatícia. Explica ainda que tal critério foi abandonado sem nenhuma razão aparente (WANK, 2012. p. 139).

De La Cueva ensina que a lei mexicana de 1931 (superada pela nova lei promulgada em 1971) referia-se aos termos “direção” e “dependência”. A primeira significava a relação técnica entre o trabalhador e o empregador, obrigando-o a prestar os serviços de acordo com os direcionamentos e instruções que recebia. Já a dependência dizia respeito à relação econômica estabelecida entre as partes, haja vista que a subsistência do trabalhador dependia do empregador. Aduz o autor mexicano que tal interpretação gerava repercussões negativas, excluindo do conceito de empregado todos aqueles que tivessem outra fonte de renda ou que possuíam uma jornada reduzida (DE LA CUEVA, 1981, p. 201).

É de se ver que havia uma interpretação restrita do conceito de relação empregatícia fomentada, muito provavelmente mais pela incidência da ideologia liberal vigente do que pelo conteúdo desses elementos.

Page 97: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 97

O autor ensina que a legislação mexicana substituiu a ideia de prestação de serviços sujeitos à direção e à dependência do empregador pela noção de trabalho subordinado, objeto do direito especializado. Consoante a lição de De La Cueva embora atualmente a lei se limite a proteger o empregado, isso não a engessa. Assim, cabe ao legislador a criação de outras regras jurídicas protetivas e, inclusivas, no sentido de progredir em direção à uma “legislação do trabalho unitária” (DE LA CUEVA, 1981, p. 154).

Entende-se que, embora o conceito de dependência pareça estar superado atualmente pela doutrina e pela jurisprudência, ele pode ser utilizado, em especial nos casos dúbios, para atrair para o campo de incidência do direito trabalhista, o trabalhador economicamente dependente.

De acordo com Catharino, a falta de adjetivação do conceito de dependência aduzido na legislação brasileira, poderia permitir a ampliação do conceito legal em um sentido de “movimento centrípeto” autorizando, assim, considerar-se empregado todo aquele trabalhador que esteja sob dependência do empregador. Para o autor, isso permite que o intérprete possa ser “instrumento eficaz de uma política social extensiva, sem incorrer em centrifugismo”. Assim, “havendo trabalho remunerado dependente, quem se dispõe a prestá-lo empregado é” (CATHARINO, 1982, p. 164).

Ao analisar o direito alemão, destaca Vilhena que a marca da dependência econômica se faz presente na figura dos “assemelhados ao empregado” (arbeitnehmerähnliche persone), definidos como “aqueles que frequentemente se encontram em situação de carência econômica tal qual o empregado tutelado”. Assim, também farão jus à mesma proteção trabalhista deferida aos empregados (VILHENA, 2005, p. 545-546).

Wank denomina-os ausi-employees ou self-employed in situation of economic or other dependency, caracterizando-os como aqueles que gerenciam seu próprio negócio, sendo especializados em um determinado serviço, realizando suas atividades sem o auxílio de terceiros e prestando serviços para um ou alguns poucos tomadores. Quanto ao último aspecto, também são considerados quasi-employee aquelas pessoas que possuem metade de sua renda proveniente de um só tomador (WANK, 2012, p. 141).

Page 98: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

98 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

O autor entende que tais trabalhadores devem ser considerados autônomos (self-employee) em uma situação específica, merecendo tratamento legal dife-renciado. Ao contrário do que muitos autores e juristas entendem, defende Wank que tais trabalhadores não possuem proteção suficiente, pois a Corte alemã e mesmo os doutrinadores negam, na maioria dos casos concretos, a possibilidade de aplicação dos direitos trabalhistas garantidos aos empregados a esses traba-lhadores. E conclui que, embora a analogia possa ser metodologicamente correta, a equiparação dos direitos é uma questão legislativa (WANK, 2012, p. 33).

Segundo Wank a doutrina e a jurisprudência prendem-se a critérios incertos acerca da figura do empregado. A Corte alemã recusa-se a estabelecer um critério definidor da relação empregatícia, pois entende que tal circunstância depende de cada caso concreto. Embora se possa encontrar até trinta e seis diferentes critérios para distinguir a figura do empregado, ao se proceder a uma análise mais detalhada da jurisprudência alemã, conclui-se que ela tende a caracterizar como empregado aquela pessoa “pessoalmente dependente”, submetida a ordens de outrem (WANK, 2012, p. 31).

É de se ver que tal concepção aproxima-se da noção clássica da subordinação, de modo que o autor propõe uma reformulação de seu conceito, com base no critério da dependência econômica, no intuito de ampliar a concepção de empregado no Direito do Trabalho alemão (WANK, 2012, p. 138).

Segundo Wank, os trabalhadores dividem-se em empregados (employees) e autônomos (self-employed). Ensina que o autônomo necessita de pouca proteção trabalhista e previdênciária, pois pode arcar com os riscos do seu trabalho e da sua vida, enquanto que o empregado precisa da tutela protetiva trabalhista de forma integral, haja vista não ter nenhuma chance econômica por si só. Continua ressaltando que para o autônomo real, e não aqueles empregados “disfarçados”, as condições de trabalho são instituídas pelo contrato de trabalho (WANK, 2012, p. 25-30).

Explica Wank que, embora a concepção de dependência pessoal ainda preva-leça nas cortes alemãs, a nova teoria do “risco do empreendedor”, no sentido de que a subordinação deve ser reformulada, a fim de ser compreendida como a ausência de liberdade empresarial e de assunção econômica do resultado ao trabalhador (WANK, 2012, p. 31).

Page 99: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 99

Assim, o empregado seria aquele trabalhador pessoal e economicamente dependente do seu tomador (WANK, 2012, p. 142).

Nessa trilha, também caminha o Direito do Trabalho português, consoante ensina Abrantes:

Várias legislações têm tentado estender a protecção própria do ordenamento juslaboral a trabalhadores não juridicamente subordinados, mas economicamente dependentes, relativamente aos quais se impõe a mesma ideia de debilidade contratual nele presente. Trata-se aí de relações de trabalho formalmente au-tônomas que se encontram materialmente próximas das relações de trabalho subordinado, induzindo idênticas necessidades de protecção. São aquelas relações em que o trabalhador se encontra economicamente dependente daquele que recebe o produto da sua actividade - acabando a autonomia por assumir aí um carácter marcadamente formal (podendo ser encarada, não tanto como uma decisão do prestador de trabalho, mas antes como uma opção de gestão dominante) (ABRANTES, 2004, p. 94).

Nesse sentido, registra Porto alguns exemplos de legislações estrangeiras atuais que preveem expressamente a dependência econômica como indicador da existência da relação de emprego. Nesse sentido, a autora elenca o Código do Trabalho do Panamá6e a legislação trabalhista da África do Sul (PORTO, 2009, p. 65).

No Direito do Trabalho brasileiro, cumpre destacar a lição de Catharino no sentido de que a dependência econômica não deve ser considerada em sua acepção técnica e absoluta, de modo que não é indispensável que o empregado tenha apenas um emprego e uma única fonte de renda. A dependência econômica deve ser considerada em sua concepção relativa, “bastando que o salário seja o principal

6 Dispõe o art. 65 da lei panamenha, traduzida por Porto: “Art. 65. Existe dependência em qualquer dos seguintes casos: 1. Quando as quantias que percebe a pessoa natural que presta o serviço ou executa a obra constituem a sua única ou principal fonte de renda; 2. Quando as quantias a que se refere o inciso anterior provêm direta ou indiretamente de uma pessoa ou empresa, ou como consequência de sua atividade. 3. Quando a pessoa natural que presta o serviço ou executa a obra não goza de autonomia econômica e se encontra vinculada economicamente à atividade que desenvolver a pessoa ou empresa que pode ser considerada como empregador. No caso de dúvida sobre a existência de uma relação de trabalho, a prova da dependência econômica determina que se qualifique como tal a relação existente”.

Page 100: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

100 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

meio de vida, e a absorção parcial e predominante do seu tempo disponível para o empregador” (CATHARINO, 1982, p. 203).

Também nessa trilha, Uriarte e Alvarez:

Se o que está acontecendo é uma fuga mais ou menos injustificada do âmbito protetor do Direito do Trabalho, o natural seria ‘perseguir os fugitivos’, estender o âmbito de aplicação do Direto do Trabalho, ultrapassando o limite burlado da subordinação jurídica. A subordinação jurídica, interpretada com a amplitude do princípio protetor, do princípio da primazia da realidade não é suficiente para solucionar a maior parte dos casos de ‘fuga’ em sentido favorável à tutela? E isto sem esquecer: que os critérios da subordinação econômica e da proteção do contratante fraco são complementares e não substitutos da dependência jurídica (URIARTE; ALVAREZ, 2002. p. 35-36).

Para Machado, “as novas modalidades contratuais e as novas formas de empre-go, indiscutivelmente, impõem um trabalho pessoal com grande dependência econômica em relação ao tomador do trabalho” (MACHADO, 2011, p. 125).

Porto assevera que o critério da dependência econômica pode ser utilizado como “presunção relativa da existência do vínculo empregatício”. Explica que não deve ser considerado “definidor da subordinação, mas sim, como um dos indí-cios que a revelam no caso concreto” (PORTO, 2009, p. 64).

Em síntese, a partir das lições doutrinárias ora apresentadas, é que se propõe que, nas situações fronteiriças, onde não se possa identificar com clareza a subordinação jurídica, ou em que exista dúvida real acerca de sua existência, tome-se como critério para a consolidação da relação de emprego, o critério da dependência econômica. Em outras palavras, da hipossuficiência em face do tomador de serviços.

Nesse sentido, é o conceito de hipossuficiente de Cesarino Junior:

Aos não proprietários, que só possuem sua força de trabalho, denominamos hipossuficentes. Aos proprietários de capitais, imóveis, mercadorias, maquinaria, terras, chamamos de hipersuficientes. Os hipossuficientes estão, em relação aos auto-suficientes, numa situação de hipossuficiência absoluta, pois dependem, para viver e fazer viver sua família, do produto do seu

Page 101: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 101

trabalho. Ora, quem lhes oferece oportunidade de trabalho são justamente os auto-suficientes (CESARINO JUNIOR, 1980, p. 44-45).

Registre-se que não se está a defender a hipótese de que o trabalhador somente será empregado caso seja economicamente dependente do seu tomador de serviços. Existem autônomos que dependem para a sua sobrevivência do trabalho que ofertam ao tomador ou tomadores de seus serviços e nem por isso podem ser considerados empregados. São detentores da sua força de trabalho e senhores do destino dos seus frutos, haja vista possuírem autonomia suficiente para ofertá-la e usá-la da maneira que lhes aprouver.

Por outro lado, existem empregados que não dependem financeiramente de seu empregador para a sua sobrevivência. Mas esse fato, por si só, não é capaz de afastar a incidência da relação de emprego. Embora possam ter outros meios de sobrevivência (o que é algo cada vez mais raro para a imensa maioria da população na sociedade brasileira, diga-se de passagem), os trabalhadores serão considerados empregados caso se observe a presença dos pressupostos da relação de emprego. Tais trabalhadores não possuem autonomia suficiente para impor o valor econômico do seu trabalho ou para negociar as condições da formação e execução do contrato.

Sendo assim, serão considerados hipossuficientes, no contexto da relação empregatícia, haja vista que é o empregador quem determina, além do modo da prestação de serviço, também as condições financeiras daquele contrato, que possui, em qualquer caso, impacto econômico sobre a vida do trabalhador.

Ao se equiparar hipossuficiência e dependência econômica, não se pretende imprimir-lhes o sentido de ser o trabalho a única fonte de renda para a subsis-tência do empregado e de sua família.

As expressões aproximam-se no que diz respeito à impossibilidade de o empregado determinar livremente o destino que lhe aprouver ao resultado do seu trabalho (a sua obra). Nas relações de emprego, cabe ao tomador de serviços definir o valor econômico da energia psicofísica empregada pelo trabalhador para atingir o resultado contratado (a obra).

No que cinge ao resultado do labor ou “a obra”, é de se ver que no trabalho au-tônomo essa pertence ao trabalhador, sendo ele o responsável pela sua colocação

Page 102: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

102 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

no mercado, cabendo-lhe ainda a fixação do preço. Há uma identificação do trabalhador e seu trabalho, haja vista que o resultado deste lhe pertence.

Na relação de emprego, “a obra” não pertence mais ao trabalhador, de modo que ocorre uma ruptura entre o homem trabalhador e o seu trabalho. A energia psicofísica empregada na execução da tarefa não resulta em um produto de sua propriedade. Os frutos do seu trabalho são de propriedade do tomador de serviços, a quem cumpre colocar “a obra” no mercado, fixando-lhe o preço.

Segundo ensina Viana, a dependência econômica pode ser compreendida sob dois aspectos. O aspecto micro diz respeito à dependência do empregado ao seu tomador para garantir a sua sobrevivência e foi nesse sentido que a própria ideia de subordinação emergiu, haja vista que, àquela época, a subordinação econômica equivalia à subordinação jurídica. Nesse sentido micro, o Direito do Trabalho somente se justificaria para a proteção desses trabalhadores, deixando fora do seu campo de abrangência aqueles trabalhadores que não dependam economica-mente do seu trabalho para sobreviver. Consoante já se aduziu anteriormente, não é esse o sentido que se pretende afirmar (VIANA, 1996, p.132).

O aspecto macro da dependência econômica pode ser entendido no sentido de que é considerado dependente aquele que não possui os meios de produção. Essa seria a verdadeira hipossuficiência da classe trabalhadora face ao capital, uma vez que se faz presente em toda e qualquer relação empregatícia (VIANA, 1996, p.132).

Tal ideia aproxima-se da noção de alienidade, haja vista que estabelece a hipossuficiência sempre que presente o trabalho por conta alheia, sendo este compreendido como aquele desempenhado pelo trabalhador que não detém os meios de produção e que será, portanto, considerado hipossuficiente ou dependente economicamente face ao seu tomador.

É sob esta ótica que se compreende a hipossuficiência e a dependência econômica.

Esclareça-se, mais uma vez que, na hipótese de se verificar no caso concreto a subordinação clássica ou a subordinação objetiva, resta configurada a relação empregatícia, de modo que não é necessário valer-se da teoria da dependência econômica ou hipossuficiência.

Page 103: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 103

Consoante já se asseverou pretende-se propor modelos para auxiliar, nos casos situados nas zonas grises (aqueles em que não é possível verificar-se com clareza a subordinação), de modo a possibilitar a tutela trabalhista plena a todos aqueles que se enquadram no conceito contemporâneo de empregado.

Nesse sentido é que se pretende resgatar a teoria da dependência econômica como critério de aprimoramento do pressuposto da subordinação nas situações fronteiriças. Ressalte-se, todavia, que tal critério não pode ser considerado pressuposto da caracterização da relação de emprego, sendo utilizado apenas e tão somente nos casos fronteiriços em que seja realmente necessário.

5.2. o trabalho por conta alheia na doutrina espa-nhola: uma breve análise

Na doutrina espanhola, erige-se a teoria sobre a propriedade dos frutos do trabalho como elemento caracterizador da relação de emprego.

Inicialmente, cumpre destacar que essa teoria não se distancia muito da teoria da dependência econômica e das teorias que propõem a (re)leitura do conceito de subordinação, de modo que se justifica seu estudo no presente capítulo.

Segundo Olea, precursor da ideia do trabalho por conta alheia, a “relação de trabalho para terceiros implica situação jurídica de dependência do trabalhador relativamente ao empresário”. Completa acentuando que a dependência é característica “essencial do contrato de trabalho”, sendo que a espécie de trabalho “dependente” é o objeto do Direito do Trabalho (ALONSO OLEA, 1969, p. 32).

Explica o autor que essa dependência deve ser compreendida como “um mero ‘estado’, dentro de um quadro orgânico de funções e de competência, dentro de um ‘círculo rector’ ou de uma ‘esfera organizativa’, ligando-se ao trabalho prestado a organizações” (ALONSO OLEA, 1969, p. 33).

De acordo com Olea:

O Direito do Trabalho, como disciplina autônoma, surgiu e se fundamenta sobre a existência, como realidade social, generalizada e básica para a vida em sociedade, do trabalho produtivo, livre e por conta alheia. (...) A causa do contrato de trabalho - obtenção onerosa dos frutos do trabalho de terceiro, não se confunde com

Page 104: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

104 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

seu objeto. A primeira, o contrato de trabalho a compartilha com outros contratos. O poder de direção e subordinação ou dependência derivam da causa contratual e, como esta, aparecem em outros contratos. Disso decorre que a subordinação não pode ser definidora do contrato de trabalho. Tanto o poder de direção como a subordinação do trabalhador podem ser considerados requisitos da organização da empresa, no que, aliás, se confundem com toda e qualquer organização hierarquizada com vistas à obtenção de um fim. (ALONSO OLEA, 1969, p. 177-178).

E continua o autor, concluindo que a realidade social não está dissociada da jurídica e nem esta pode ser compreendida como uma “superestrutura” daquela. Assim, entende que “o contrato de trabalho está na essência mesma da liberdade e da alienação do trabalho”, de modo que “quando esses dois caracteres se relacionam com o trabalho humano e produtivo, desta realidade passa a fazer parte sua forma jurídica de configuração contratual” (ALONSO OLEA, 1969, p. 25).

Olea entende que no “estado original” ou de “pura natureza”, os frutos do trabalho são revertidos para o seu executor. Todavia, o Direito do Trabalho ao apreender a realidade social deve considerar a transformação operada no sentido de que, os frutos do trabalho passam a ser “atribuídos inicial e diretamente a pessoa distinta da que executa o trabalho” (ALONSO OLEA, 1969, p.177-178).

Nessa trilha, dissertam Olea e Baamonde ao tratar da configuração do contrato de trabalho para distingui-lo do trabalho por conta própria: “os serviços se prestam por conta alheia, isto é, prestam-se pelo trabalhador a outra pessoa, o empresário, que adquire, em virtude do contrato tanto o direito ao trabalho quanto a titularidade originária sobre os frutos deste trabalho” (ALONSO OLEA; BAAMONDE, 1999. p 58) 7.

Os autores elegem a “relação de alienidade” ou o “trabalho por conta alheia” como critério definidor da essência do contrato de emprego. Assim, a subordi- nação seria identificada pelo fato de os frutos do trabalho do empregado pertencerem, originariamente, ao seu empregador, devendo a ele ser entregues ou colocados a sua disposição, em razão do pacto firmado entre as partes contra-

7 No original: “Los servicios se prestan por cuenta ajena, esto es, se prestan por el trabajador a otra persona, a um otro ajeno, el empresário, que adquiere, em virtud del contrato, tanto el derecho al trabajo prestado como la titularidad originaria sobre los frutos de este trabajo”.

Page 105: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 105

tantes. Ou seja, os frutos pertenceriam, desde o início da sua produção, ao em-pregador e não ao trabalhador (ALONSO OLEA; BAAMONDE, 1999. p 58).

Essa situação seria suficiente para distinguir o trabalho subordinado, ou seja, o emprego, do trabalho por conta própria, ou seja, autônomo. Isso porque, neste último, é o trabalhador quem detém a propriedade sobre os frutos de seu trabalho. Olea faz alguns apontamentos. O primeiro é o de que se o terceiro ao qual se destina o resultado do trabalho estiver integrado à comunidade familiar do trabalhador, havendo com ele laços familiares, o trabalho permanece sendo por conta própria (ALONSO OLEA; BAAMONDE, 1999. p 26).

O segundo apontamento diz respeito ao momento em que o trabalho é atribuído ao terceiro. O autor entende que essa atribuição deve ser a priori ou “inicial”. Desse modo, não sendo possível ao trabalhador designar os destinos do resultado de seu trabalho, uma vez que este pertence, ab initio, ao empregador, restaria configurada a relação de emprego (ALONSO OLEA; BAAMONDE, 1999. p 41-42)

O terceiro cinge-se à expressão “resultado”. Explica Olea que esse “resultado” deve englobar “toda a atividade produtiva do homem, seja intelectual ou manual, tenha valor por si mesmo ou o fossem no conjunto do trabalho de um grupo de homens”. Por fim, o quarto e o último apontamentos de Olea centram-se no terceiro destinatário dos frutos do trabalho. Esse poderá destinar os frutos do trabalho que lhe pertencem a outrem, atuando apenas como intermediário (ALONSO OLEA; BAAMONDE, 1999. p 26).

Assim conclui que:

(...) a grande singularidade do trabalho como objeto de um contrato - e do Direito do Trabalho que tem o próprio contrato como núcleo - está em que, em tal trabalho, está inserido o sujeito que o executa. Este é o sentido jurídico da alienação que deriva do fato de trabalhar para uma terceira pessoa que, por força do contrato, possui um título prévio que torna exigível a prestação do trabalho e em virtude do qual faz seus os frutos dele resultantes, que careceriam de valor se considerados isoladamente, em virtude da divisão do trabalho. Nisto consiste juridicamente a alienação do trabalho ou o trabalho por conta alheia (ALONSO OLEA, 1969, p. 148).

Page 106: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

106 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Para Botija, o conceito de trabalho para fins de proteção da lei é o trabalho que se realiza para outro e sobre sua pessoal e imediata direção. Ou por cuenta ajena. O autor chama atenção para o fato de que o “contratista” não pode se enquadrar como empregado, embora realize uma obra por conta de outra pessoa. O “contratista” seria aquele que “busca un lucro no sólo en el empleo de instrumentos, bienes materiales y a veces la colaboración de otras personas” (BOTIJA, 1960, p. 29).

Seria, no Direito do Trabalho brasileiro, o empreiteiro que, na verdade, é autônomo, pois não se subordina ao “dono da obra” e tem ampla liberdade para oferecer seus serviços no mercado de forma independente, fixando o preço da sua mão de obra.

No mesmo sentido, registre-se o caso dos agentes, representantes, comissionistas, entre outros, que embora desempenhem serviços por conta de outra pessoa, possuem negócio próprio. Nessa hipótese, percebe-se que o trabalhador organiza sua atividade com autonomia suficiente para sobrepor-se ao conceito de empregado e enquadrando-se no conceito de empresário ou comerciante (BOTIJA, 1960, p. 29).

Deve-se distinguir entre trabalho autônomo livre e não autônomo. Para ser empregado não é necessário que o contrato indique a forma, os requisitos circunstanciais e temporais, bastando que exista a possibilidade de poder mandar (poder diretivo em potencialidade) por parte do tomador de serviços. Isso bastaria, segundo o autor, para caracterizar a situação de dependência (BOTIJA, 1960, p. 30).

Botija cita uma resolução do Ministério do Trabalho espanhol, de 25 de janeiro de 1945, que assim define a dependência:

dependência laboral não é a que se observa pela continuidade nas relações de convivência humana e sim aquela especifica e concreta, em virtude da qual, uma pessoa, sob as ordens da outra, e em beneficio desta, consagra toda ou parte da sua atividade a produzir uma obra ou realizar um serviço sob a disciplina de empresa. Tradução nossa. (BOTIJA, 1960, p. 30) 8.

8 No original: dependencia laboral no es la que se da de continuo en las relaciones de convivencia humana, sino aquella outra especifica y concreta, por virtude de la cual, uma persona, a las órdenes de outra, y en beneficio de ésta, consagra toda o parte de su actividad a producir una obra o realizar un servicio bajo una disciplina de empresa.

Page 107: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 107

A independência técnica existente em algumas relações de trabalho não afasta a existência de vínculo empregatício, sendo que este restará configurado se presente a “condição de dependência e subordinação quando os trabalhadores devam realizar por conta e em serviço do empregador as tarefas por ele designadas”. Tradução nossa. (BOTIJA, 1960, p. 31) 9.

Critica a doutrina espanhola por não enfatizar a dependência, ressaltando que a jurisprudência anglo-saxônica centra-se, principalmente, sobre o controle exercido pelo empresário sobre as atividades do trabalhador; e que para os alemães, a dependência é o ponto essencial da relação de trabalho (BOTIJA, 1960, p. 31).

Explica Botija que “a dependência significa que uma pessoa está submetida à vontade de outra, mas não por meio de uma submissão psicológica, de uma vinculação social, de uma obediência pessoal cega, mas sim que é um critério funcional que unifica ou coordena atividades diversas”. Tradução nossa. (BOTIJA, 1960, p. 32)10.

Não existe trabalho subordinado quando se participa “en la ordenación y disposición del próprio trabajo”. “La subordinacion y la dependência implican, por ultimo, uma potestade de mando, com todas las consecuencia de las potestades jerárquicas”. E aqui, Botija identifica o seu conceito e o conceito de hipossuficiência de Cesarino Junior (BOTIJA, 1960, p. 30).

Na mesma toada, refere-se Caracuel à “alienidade” enquanto principal característica da relação empregatícia. Segundo ele, “alienidade” é composta por três dimensões, sendo que qualquer uma delas basta para configurar sua existência (CARACUEL, 1989, p. 302).

A primeira dimensão, a “alienidade no mercado”, é definida pelo autor como a “desconexão jurídica entre o trabalhador e o destinatário final do produto (bem ou serviço) do seu trabalho”. A relação empregatícia, segundo o autor, nasce quando “um terceiro (empregador) coloca-se entre o trabalhador e o seu

9 No original: “condición de dependência y subordinacion, em cuantos estos professionales deben realizar por cuenta y en serviço de aquélla (empregador) las tareas que se les asigne”.

10 No original: “la dependência significa que una persona está sometida a la voluntad de otra, pero no através de una sumisión psicológica, de una vinculación social, de una obediência personal ciega, sino que es una supeditación funcional que unifica o coordina atividades diversas”.

Page 108: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

108 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

cliente”, permitindo, assim, o nascimento da relação jurídico trabalhista entre o empregador e o empregado (CARACUEL, 1989, p. 302).

Desse modo, a “alienidade no mercado” pode ser considerada uma estrutura tripolar, haja vista que leva em consideração o trabalhador, o empregador (datore di lavoro) e o destinatário do bem ou serviço. No caso do contrato de trabalho, tem-se que o trabalhador não se vincula juridicamente ao destinatário do seu labor, mas sim ao empregador, que intermedia essa relação. E é isso que, segundo Caracuel, caracteriza o trabalho por conta alheia, diferenciando-o do trabalho por conta própria (alteritá). Nesse, o fruto do trabalho pertence ao trabalhador, responsável também por inseri-lo no mercado sem a existência de qualquer intermediário entre ele e o seu cliente (CARACUEL, 1989, p. 302).

A segunda dimensão diz respeito à “alienidade para a disposição da força de trabalho”. Nessa dimensão enquadra-se o empregado doméstico, haja vista que aqui não se exige a formação de uma relação tripolar. A “alienidade para a disposição da força de trabalho” também permite que o médico que labore em domicílio para uma companhia de seguros seja considerado empregado dessa (CARACUEL, 1989, p. 303-304).

Assim, é de se ver que tal dimensão caracteriza-se pelo fato de o empregado inserir-se no âmbito e na dinâmica empresarial do tomador de serviços, sujeitando-se ao seu comando sobre o modo da prestação de serviços. Ou seja, refere-se à subordinação objetiva.

Por fim, Caracuel ensina que a alienidade é um “macro-conceito” que possui seis manifestações. São elas: a) a “alienidade dos meios de produção sob o ponto de vista do trabalhador”; b) a “alienidade no uso da força de trabalho (também denominada de dependência ou subordinação); c) a “alienidade no resultado” (que pode ser identificada como a alienidade dos frutos do trabalho, consoante a doutrina de Olea); d) a “alienidade no mercado”; e) a “alienidade na utilidade patrimonial” e; f ) a “alienidade nos riscos da atividade”. (CARACUEL, 1989, p. 303-304).

Percebe-se que tais dimensões auxiliam e permitem a distinção entre o trabalho “por conta alheia” ou trabalho subordinado e o trabalho autônomo. Assim, considera-se empregado aquele que, não sendo detentor dos frutos do seu

Page 109: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 109

trabalho, precisa, em regra, de um terceiro para inseri-lo no mercado, sujeitando-se às ordens desse terceiro (empregador) sobre o modo da prestação de serviços. Note-se que o empregado insere-se na dinâmica empresarial sem, contudo, participar dos riscos do empreendimento.

Ao se construir o raciocínio aqui esposado, conclui-se que uma das soluções possíveis e desejáveis no sentido de ampliação da vocação expansionista do Direito do Trabalho se faça pela consolidação da teoria do trabalho por conta alheia. Ou seja, o trabalho realizado em prol de outrem que lhe assume os riscos, a direção e a quem pertence o produto resultado desse labor é o que deve ser tutelado e protegido pelo Direito do Trabalho. É esse o trabalhador hipossuficiente para o qual o Direito do Trabalho foi criado e para quem se justifica a sua existência.

Adverte Davies que mesmo essa teoria pode não funcionar em todas as circunstâncias. Isso porque, atualmente, cada vez mais se observam empregados que compartilham a propriedade do empreendimento (share ownership) ou recebem em razão do seu desempenho (performance-related pay schemes) ou, ainda, são encorajados pelo empregador a se associarem ao negócio, assumindo parte dos riscos (DAVIES, 2004, p. 86).

Tais situações relatadas pela autora, contudo, não afastam a pertinência e a adequação da tese do trabalho alheio. Especialmente em face da realidade brasileira, onde tais hipóteses tendem a configurar fraude à legislação trabalhista na tentativa de acobertar a existência de uma verdadeira relação empregatícia.

No que diz respeito ao Direito do Trabalho brasileiro, cumpre destacar, con-soante anteriormente assinalado, a novel redação do parágrafo único do art. 6º da CLT que, em sua parte final, menciona o trabalho alheio como elemento con- figurador da subordinação jurídica caracterizadora da relação empregatícia11.

Ao analisar a concepção de trabalho alheio em Olea, assim conclui Oliveira:

O esqueleto geral do assalariamento é a relação de trabalho entre um proprietário e outro não-proprietário, na qual há uma dependência estrutural e prévia do segundo para com o primeiro.

11 Art. 6º Parágrafo único. “Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.

Page 110: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

110 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

É esta dependência prévia a tônica do regime do assalariamento, pois quem vende trabalho e não mercadoria (vendida somente pelo proprietário) é assalariado. Quem vende trabalho é sempre subsumido ao seu comprador, pois vende algo que, por ser uma parte de um produto qualquer, somente se concretiza quando for vendida, isto é, quando colocada em ação na produção. A venda de trabalho (força de trabalho) é, assim, sempre dependente no capitalismo (OLIVEIRA, 2011, p.229).

O autor pugna pela (re)significação do conceito de dependência econômica por compreendê-lo mais eficaz do que a subordinação jurídica. Explica que não se trata de uma luta pela prevalência de um ou de outro, mas sim “da defesa da ideia, muitas vezes intencionalmente omissa no discurso da subordinação jurídica, acerca da detenção da propriedade e da apropriação do trabalho”. Entende que a ampliação do conceito de dependência econômica permite inserir na esfera da tutela protetiva do Direito do Trabalho, por exemplo, os trabalhadores precários (OLIVEIRA, 2011, p.197-198).

Defende que a dependência econômica, compreendida em uma “perspectiva objetiva estrutural”, é capaz de oferecer respostas mais eficientes aos novos modos de organização empresarial e de controle da força de trabalho, desvelando o poder punitivo e a fiscalização, que, muitas vezes, se encontram ocultos sob a noção de subordinação (OLIVEIRA, 2011, p.197-198).

Assim, conceitua o autor a relação empregatícia, partindo da noção de dependência econômica, atrelando-a a concepção de trabalho alheio, de forma a compreender o “trabalho dependente” como:

(...) aquele em que há apropriação do resultado do trabalho pela empresa (trabalho por conta alheia), como resultado da coação ao trabalho pelo despossuimento e das limitações à manifestação de vontade pela dependência prévia e estrutural ao contrato de trabalho. O manejo deste conceito aberto exige uma aplicação mais integrativa do que subsuntiva (OLIVEIRA, 2011, p.197-198).

Diante de todas essas considerações, forçoso concluir pela necessidade de revisão e readequação do conceito de subordinação jurídica.

Disserta Wank:

Page 111: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 111

Enquanto não houver um conceito claro e definido de empregado, tem-se um convite aos empregadores para promoverem relações empregatícias “disfarçadas”, dificultando a sua solução tanto para as pessoas envolvidas quanto para as autoridades responsáveis. Para reduzir essas fraudes trabalhistas, é necessário criar uma definição que seja capaz de delimitar precisamente a relação empregatícia real e a relação empregatícia “disfarçada”. Tradução nossa. (WANK, 2012, p. 11)12.

Forçoso concluir, então, que o conceito de relação de emprego deve refletir a realidade vigente, de modo a possibilitar a tutela protetiva de todos aqueles que se enquadrem na concepção de empregado.

6. conclusões

Mas, afinal, quem é empregado?

Diante de todas as considerações expostas ao longo deste artigo, caminha-se na direção no sentido de afirmar que todo aquele que trabalha por conta alheia deve ser considerado empregado.

A tutela protetiva trabalhista limita-se, pois, àqueles que, não sendo senhores do destino do seu trabalho, vinculam-se ao tomador de serviços, verdadeiro proprietário do resultado da sua atividade laboral.

Registre-se que não se pretende rechaçar a existência dos demais pressupostos configuradores da relação empregatícia, de modo que o trabalho por pessoa física, desempenhado com onerosidade, pessoalidade, não eventualidade e subordinação (seja ela subjetiva, objetiva, estrutural, integrativa ou reticular) continua a ser objeto precípuo do Direito do Trabalho brasileiro. E também não se pretende des-cartar a utilização da dependência econômica como critério de aprimoramento da subordinação nos casos fronteiriços. O que se pretende, na realidade, é reforçar

12 No original: “As long as there is no clear concept and clear definition of an employee, it is an invitation for employers to create disguised employment relationship and it is a great difficulty for a person involved and for authorities to handle these cases. So to diminish disguised employment relationship it is necessary to create a definition which is able to give a boarderline between real employment relationship and disguised employment relationship. With the existing and prevailing definition in labour law this is impossible, because, as shown above, everything depends on the facts of the case”.

Page 112: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

112 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

que o “trabalho prestado por conta alheia” é conceito estrutural para o Direito do Trabalho.

Enfim, o Direito do Trabalho deve vestir-se de novas roupagens que sejam capazes de efetivamente inserir o homem trabalhador na sociedade capitalista contemporânea, de modo que presente a onerosidade, a não eventualidade (compreendida de forma igual a todos os trabalhadores), a pessoalidade (que nas zonas fronteiriças apreende-se como pessoalidade prevalente) e a subordinação (seja denominada de clássica, estrutural, integrativa ou reticular ou, ainda, derivada da hipossuficiência econômica nos casos situados nas zonas grises) configurado estará o vínculo jurídico de emprego.

7. referências

ABRANTES, José João. Estudo sobre o Código do Trabalho. Coimbra: Coimbra Editora, 2004.

ALONSO OLEA, Manoel Alonso. Introdução ao Direito do Trabalho. 2ª ed. Porto Alegre: Sulina, 1969.

ALONSO OLEA, Manuel; BAAMONDE, Maria Emilia Casas. Derecho Del Trabajo. 17ª ed. Madrid: Civitas, 1999.

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2007.

BOTIJA, Eugenio Perez. Curso de Derecho del Trabajo. 6ª ed. Madrid: Editoral Tecnos S.A., 1960.

CARACUEL,Manuel-Ramón Alarcón. Dipendenza e alienità nella discussione spagnola sul contrato di lavoro. In: PEDRAZZOLI, Marcello. Lavor subordinato e dintorni: comparazioni e prospettive. Bologna: Società editrice il Mulino, 1989.

CATHARINO, José Martins. Contrato de emprego. (com comentários aos art. 442/510 da CLT). 2ª ed. Guanabara: Edições trabalhistas S.A, 1965.

______. Compêndio de Direito do Trabalho. v. I. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1982.

Page 113: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 113

CESARINO JUNIOR, Antônio Ferreira. Natureza jurídica do contrato individual de trabalho. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco F. (editor), 1938.

______. Direito social brasileiro. 6ª ed. 2º v. São Paulo: Saraiva, 1970.

DAVIES, Anne C. L. Perspectives on labour law. Cambridge: University Press, 2004, p. 84.

DE LA CUEVA, Mario. El nuevo derecho mexicano del trabajo. Tomo I. 7ª ed. Mexico: Editorial Porrúa, 1981.

DELGADO, Gabriela Neves; MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira. A tendência expansionista do Direito do Trabalho: breve análise a partir do fundamento de proteção ao trabalho previsto na Constituição Federal de 1988. In: COUTINHO, Grijalbo Fernandes; FAVA, Marcos Neves. O que estão fazendo da nova competência da Justiça do Trabalho? Análise crítica da jurisprudência do STF, do TST e do STJ após a EC45/2004. São Paulo: LTr, 2011.

DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos da reconstrução. São Paulo: LTr, 2006.

DELGADO, Maurício Godinho. Relação de emprego e relações de trabalho: a retomada do expansionismo do direito trabalhista. In: Dignidade humana e inclusão social: caminhos para a efetividade do Direito do Trabalho no Brasil. São Paulo: LTR, 2010.

MACHADO, Sidnei. A noção de subordinação jurídica: uma perspectiva reconstrutiva. São Paulo: Ltr, 2011.

MARTINI, Alexis. La Notion du Contrat de Travail: étude jurispruden- tielle, doctrinale et législative. Paris: Éditions des “juris-classeur”, 1912.

MENDES, Marcus Menezes Barberino; JÚNIOR, José Eduardo de Resende Chaves. Subordinação estrutural-reticular: uma perspectiva sobre a segurança jurídica. Revista do TRT da 3ª Região, n. 76, jul-dez 2007. p. 197-218.

OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. A (re)significação do critério da dependência econômica: uma compreensão interdisciplinar do

Page 114: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

114 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

assalariamento em crítica à dogmática trabalhista. (tese) Doutorado. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2011.

PORTO, Lorena Vasconcelos. A necessidade de uma releitura universalizante do conceito de subordinação. Revista Magister de Direito Trabalhista e Previdenciário, Porto Alegre, n. 24, maio/junho de 2008, p. 6-30.

SENA, Adriana Goulart de; DELGADO, Gabriela Neves; NUNES, Raquel Por-tugal. Dignidade humana e inclusão social: caminhos para a efetividade do Direito do Trabalho no Brasil. São Paulo: LTr, 2010.

SUSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANA, Segadas; TEIXEIRA, Lima. Instituições de Direito do Trabalho. v. I. 21ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: LTr, 2004.

TEYSSIÉ, Bernard. Le statut social de l´artise. Paris: Universidade de Paris II, 1998 (tese de doutorado). Disponível em: www.u-2.paris2.fr/theses. Acesso em: 20.10.2010.

URIARTE, Oscar Ermida; ALVAREZ, Oscar Hernández. Considerações sobre os questionamentos acerca do conceito de subordinação jurídica. Revista Synthesis: direito do trabalho material e processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 35, p. 33-36, 2002.

VIANA, Márcio Túlio. Direito de resistência: possibilidades de autodefesa do empregado. São Paulo: LTR, 1996.

VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Relação de emprego: estrutura legal e supostos. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2005.

WANK, Rolf. Diversifying Employment Patterns – the Scope of Labor Law and the Notion of Employees. Disponível em: http://www.jil.go.jp/english/events_and_information/documents/clls04_wank2.pdf. Acesso em: 20.04.2012. p. 139.

WANK, Rolf. Worker´s Protection National Study for Germany for the ILO. Disponível em: http://ilo-mirror.library.cornell.edu/public/english/dialogue/ifpdial/downloads/wpnr/germany.pdf. Acesso em: 01.06.2012.

Page 115: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 115

capacidade profissional e novas tecnologias: uma releitura dos

benefícios por incapacidade à luz do teletrabalho

Carlos Marden1

Konrad Saraiva Mota2

Resumo

O presente artigo tem por objetivo investigar o impacto que a figura do teletrabalho causa sobre o regime aplicável aos benefícios por incapacidade pagos pela Previdência Social. Para tanto, apresentar-se-á inicialmente uma análise da disciplina legal da incapacidade laboral, com o intuito de expor o quadro geral no qual se articulam os benefícios por incapacidade. Por meio da utilização de um método predominantemente descritivo e explicativo, com amparo em uma pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, verificar-se-á que a questão da incapacidade laboral está tão relacionada com a capacidade residual do segurado quanto com a gravidade da lesão em si. Em seguida, expor-se-á o conceito de teletrabalho, mostrando como a absorção que o mercado promove das novas tecnologias tem alterado substancialmente o perfil dos postos de trabalho disponíveis. Diante disso, far-se-á uma releitura o conceito de (in)capacidade laboral, a partir da maneira como o teletrabalho amplia de forma considerável as possibilidades de aproveitamento do trabalhador. Por fim, mostrar-se-á como o instituto da readaptação profissional tende a adquirir crescente destaque como um elemento que pode moderar a mudança de perspectiva que o teletrabalho há de promover nos benefícios previdenciários relacionados à incapacidade.

1 Procurador Federal. Graduado, Especialista em Processo Civil e Mestre em Ordem Jurídica Constitucional pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Doutor em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas. Professor do curso de pós-graduação lato sensu em Direito do Curso Pro Labore.

2 Juiz do Trabalho. Graduado, Especialista em Direito e Processo Administrativos e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Doutorando em Direito do Trabalho na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas. Professor do curso de graduação e pós-graduação lato sensu da Universidade de Fortaleza - UNIFOR.

Page 116: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

116 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Palavras-chave

Direito previdenciário; Direito do Trabalho; Incapacidade laboral; Tele-trabalho.

Abstract

This paper aims to investigate the impact that the telework causes in rules about disability benefits paid by Social Security. At first, it will be present an analysis of the legal discipline of work disability, in order to expose the general framework about disability benefits. Through a predominantly descriptive and explanatory method, based on a bibliographic and jurisprudential research, it will be verified that the inability for work is associated with both the residual ability as the severity of the injury itself. Then it will be exposed the concept of telework, by showing how the absorption of new technologies by the market has substantially changed the available jobs. Therefore, it will be done a new reading about the (in)ability for work, from the way that telework significantly expands the possibilities of use the worker. Finally, it will show how the institute of professional rehabilitation tends to have a big importance as an element that can moderate the change of perspective that will promote in the disability benefits.

Key words

Social security law; Labor Law; Disability benefits; Telework.

1. introdução

Disciplinada pelos artigos 194 a 204 da Constituição Federal de 1988, a seguridade social se apresenta como um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Especificamente no que tange à previdência social, esta compreende uma rede de proteção àqueles que desenvolvem atividade remunerada (ou que se filiam facultativamente ao sistema), tendo por objetivo oferecer-lhes suporte na hipótese de ocorrência de algum fato gerador que impeça a continuidade do desenvolvimento de sua atividade laboral.

Apesar de serem vários os fatos geradores capazes de dar origem à percepção de um benefício previdenciário (maternidade/paternidade; idade avançada;

Page 117: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 117

morte; reclusão etc.), merece destaque especial os eventos relacionados ao comprometimento da capacidade laboral do segurado, na medida em que se relacionam não apenas com 03 (três) benefícios específicos (aposentadoria por invalidez, auxílio-doença e auxílio-acidente), mas também com as figuras da reabilitação e da readaptação profissional.

De fato, a importância da incapacidade laboral é tamanha, que, ainda em 1891, a aposentadoria por invalidez foi o primeiro benefício previdenciário a merecer referência constitucional expressa3. Desde então, a disciplina legal da incapacidade do segurado foi objeto de grande atenção do direito previdenciário e assim permanece até os dias atuais, quando se encontra inserta em um complexo sistema, no qual se trata detalhadamente da repercussão previdenciária de eventual incapacidade do segurado.

Tal modelo (previdenciário dos benefícios por incapacidade) funciona em busca de uma sintonia fina que garanta plena proteção ao trabalhador incapa-citado, ao mesmo tempo em que assegure que somente aqueles efetivamente incapazes serão afastados de suas atividades laborais. Qualquer ruído que se verifique neste ajuste inevitavelmente há de provocar uma distorção no sistema, seja o abandono do segurado incapaz à própria sorte ou uma desnecessária dependência dos benefícios custeados pela sociedade.

Acontece que a questão envolvendo a incapacidade laboral do segurado está direta e umbilicalmente ligada à questão de sua capacidade laboral residual, de maneira que, aqui, existe um ponto de tangência entre o direito previdenciário e o direito do trabalho. Tal ponto adquire especial importância numa era de transformações tecnológicas (nas quais as possibilidades de trabalhar se ampliam significativamente); o que faz com que, apesar de ter pouco mais de 20 (vinte) anos, a legislação previdenciária tenha envelhecido rapidamente.

Por tal motivo, o presente artigo se propõe a analisar como o direito previdenciário será afetado pela incorporação que o direito do trabalho faz das novas tecnologias. Em especial, mantendo em foco o objetivo deste trabalho,

3 Segundo o artigo 75 da Constituição de 1891: “A aposentadoria só poderá ser dada aos funcionários públicos em caso de invalidez no serviço da Nação”. (BRASIL, 1891).

Page 118: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

118 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

interessa saber se o surgimento e a expansão do teletrabalho exigem uma releitura da estrutura da capacidade laboral e, em hipótese positiva, qual a dimensão e de que forma deve-se colocar em pauta o esquema geral dos benefícios por incapacidade.

Para tanto, num primeiro momento, será apresentada a disciplina legal dos benefícios por incapacidade, com o intuito limitado de mostrar como o direito previdenciário tenta lidar com a ameaça à capacidade laboral do segurado, bem como com o delicado equilíbrio que se estabelece entre as situações específicas que permitem a percepção dos variados benefícios por incapacidade. Feito isto, analisar-se-á o surgimento do teletrabalho, apresentando não apenas o conceito, mas também as principais características de tal instituto, com o objetivo de mostrar como ele altera sensivelmente as possibilidades laborais do trabalhador.

Por fim, demonstrar-se-á que a incorporação das novas tecnologias pelo di-reito do trabalho exige uma releitura da disciplina da (in)capacidade laboral no direito previdenciário, notadamente no que diz respeito aos institutos da aposentadoria por invalidez e da readaptação profissional. Uma vez que tais institutos são delimitados a partir da questão da existência de eventual capacidade residual do segurado, não há como continuar a tratar do tema ignorando toda a evolução tecnológica que marca a sociedade do século XXI.

Efetivamente, na sociedade contemporânea, a tecnologia da informação acaba por se espalhar, permeando todos os tipos de ambiente, inclusive o jurídico. Viver num mundo no qual os computadores, os celulares e a internet fazem parte do cotidiano impõe uma abertura de horizontes até então desconhecidos. Nas linhas que se seguem, pretende-se investigar como esse fenômeno se mostra em uma das muitas interseções existentes entre o direito do trabalho e o direito previdenciário.

2. disciplina legal da (in)capacidade laboral: uma apresentação

Toda a lógica da estrutura previdenciária está diretamente relacionada com o exercício da atividade remunerada (mesmo a condição de segurado facultativo é marcada pela ausência de tal atividade). Por tal motivo, assume especial importância a disciplina legal daquelas situações nas quais a capacidade laboral do segurado se

Page 119: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 119

encontra comprometida (ou ameaçada), na medida em que o comprometimento (temporário ou definitivo) de tal capacidade se apresenta como um obstáculo (às vezes intransponível) para que o segurado continue a desenvolver normalmente a sua atividade remunerada. Em termos de panorama geral, pode-se dizer que, uma vez que o exercício da atividade remunerada seja interrompido pela perda da capacidade, o segurado virá a receber temporariamente o benefício de auxílio-doença, cuja manutenção estará condicionada à realização periódica de perícias médicas que acompanhem a evolução do quadro clínico do segurado.

Tal benefício será pago até que seja verificada a ocorrência da consolidação das sequelas da doença (ou do acidente), quando, então, a perícia médica da previdência social terá 03 (três) alternativas de encaminhamento do segurado: a) aposentá-lo por invalidez, em caso de perda total da capacidade laboral; b) reeencaminhá-lo à atividade habitual, sem percepção de nenhum benefício, em caso de recuperação total da capacidade laboral; ou c) reencaminhá-lo à atividade habitual, percebendo auxílio-acidente, caso tenha havido comprometimento parcial da capacidade laboral e a incapacidade seja decorrente de acidente de qualquer natureza.

Este esquema básico, entretanto, merece algumas considerações, para melhor delinear seu funcionamento. Em primeiro lugar, deve-se dizer que, conforme expressamente previsto no artigo 43, §1° da Lei n° 8.213 de 19914, é possível que haja percepção de aposentadoria por invalidez mesmo sem ser antecedida de auxílio-doença, naqueles casos em que, já na primeira perícia médica, for possível constatar a incapacidade total e definitiva para o trabalho. Outra observação relevante diz respeito ao fato de que, durante a percepção do auxílio-doença, o segurado está obrigado não apenas a comparecer perante as perícias médicas que lhe forem agendadas, mas também a submeter-se ao tratamento médico recomendado pela previdência social, desde que este esteja disponível

4 Redação do dispositivo: “Concluindo a perícia médica inicial pela existência de incapacidade total e definitiva para o trabalho, a aposentadoria por invalidez será devida: a) ao segurado empregado, a contar do décimo sexto dia do afastamento da atividade ou a partir da entrada do requerimento, se entre o afastamento e a entrada do requerimento decorrerem mais de trinta dias; ou b) ao segurado empregado doméstico, trabalhador avulso, contribuinte individual, especial e facultativo, a contar da data do início da incapacidade ou da data da entrada do requerimento, se entre essas datas decorrerem mais de trinta dias.” (BRASIL, 1991)

Page 120: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

120 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

gratuitamente no Sistema Único de Saúde e se relacione à transfusão de sangue ou à intervenção cirúrgica, casos nos quais o segurado tem direito a recusar o tratamento recomendado.

Uma terceira consideração relevante refere-se àquelas situações nas quais a incapacidade do segurado não irá ser superada com a mera passagem do tempo, quando, então, lhe será devido o serviço de reabilitação profissional. Tal figura deve ser compreendida como um gênero dentro do qual se inclui tanto a reabilitação profissional em sentido estrito quanto a readaptação profissional. No primeiro caso, fala-se de um tratamento que seja capaz de recuperar plenamente a capacidade laboral do segurado para a mesma atividade que ele exercia, como no caso de uma fisioterapia, por exemplo. No segundo, fala-se de uma situação na qual não é mais possível ao segurado exercer a mesma atividade laboral, motivo pelo qual ele deve ser submetido a um programa de treinamento que tem por objetivo adaptá-lo ao exercício de outra atividade laboral, conforme previsto no artigo 62 da Lei n° 8.213 de 19915. Em ambos as hipóteses, ser-lhe-á assegurado o pagamento do benefício de auxílio-doença, enquanto se submete ao tratamento e/ou treinamento recomendado pela previdência social.

Em resumo, portanto, pode-se dizer que, uma vez que o segurado encontre-se com a sua capacidade laboral comprometida, a previdência social privilegiará a alternativa de pagar-lhe apenas um benefício temporário, enquanto se restabelecem as condições para que ele possa retomar o exercício normal de sua atividade remunerada. Por tal motivo, o segurado encontra-se obrigado a submeter-se ao tratamento médico recomendado (nas condições já expostas) e a comparecer periodicamente à perícia médica que irá acompanhar a evolução de seu quadro clínico, até que se constate a consolidação das sequelas e a recuperação (ainda que parcial) da sua capacidade laboral. Caso a situação clínica o exija, a previdência social pode submeter o segurado inclusive à reabilitação profissional, com a finalidade de assegurar que ele possa retomar o pleno exercício de sua atividade remunerada.

5 Redação do dispositivo: “O segurado em gozo de auxílio-doença, insusceptível de recuperação para sua atividade habitual, deverá submeter-se a processo de reabilitação profissional para o exercício de outra atividade. Não cessará o benefício até que seja dado como habilitado para o desempenho de nova atividade que lhe garanta a subsistência ou, quando considerado não-recuperável, for aposentado por invalidez.” (BRASIL, 1991).

Page 121: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 121

Não sendo possível ao segurado a recuperação plena de sua capacidade labo-ral, ele pode ou não fazer jus ao recebimento de uma aposentadoria por invalidez. Aqui, 03 (três) situações distintas se apresentam: a) se o segurado puder retomar a sua atividade remunerada habitual, mas perdeu parte da capacidade para desenvolvê-la, deverá receber uma indenização mensal na forma de auxílio-acidente (caso a origem da incapacidade seja acidentária); b) se o segurado não puder retornar à sua atividade remunerada habitual, mas tem capacidade laboral residual, será submetido a uma readaptação profissional, a fim de que possa exercer outra atividade (dentro da mesma empresa e sem prejuízo de sua remuneração); ou c) se o segurado não puder retornar à sua atividade remunerada habitual e não tiver capacidade laboral residual, será aposentado por invalidez.

Percebe-se, portanto, que, no que se refere aos benefícios de incapacidade, a lógica do direito previdenciário é a de pagar um benefício temporário e privilegiar a todo custo a possibilidade de o segurado retornar normalmente à sua atividade re-munerada habitual, se possível com a recuperação total de sua capacidade laboral, ainda que isso exija um procedimento de reabilitação profissional. Somente se falará em percepção permanente de um benefício previdenciário nos casos em que o segurado não puder recuperar a sua capacidade laboral, situações em que a prioridade é mantê-lo no mercado de trabalho (percebendo apenas um auxílio-acidente), reservando-se a aposentadoria por invalidez para aquelas contingências nas quais o segurado não apenas não possa retomar a sua atividade habitual, mas também não tenha capacidade para exercer qualquer outra atividade remunerada. Mesmo nestes acontecimentos extremos, a aposentadoria por invalidez deve ser submetida à revisão a cada 02 (dois) anos, nos termos do artigo 211 da Instrução Normativa n° 45 de 2010 do Instituto Nacional do Seguro Social6.

A partir destas considerações, é possível perceber que a previdência social deve-rá analisar a situação do segurado que teve a sua capacidade laboral comprometida e que o seu enquadramento dependerá diretamente da avaliação de elementos como eventual perda da capacidade laboral, capacidade laboral residual e possibilidade

6 Redação do dispositivo: “A aposentadoria por invalidez decorrente de ação judicial submetida a procedimento de revisão, a cada dois anos, em atendimento ao disposto no art. 71 da Lei 8.212, de 1991, na forma e condições fixadas em ato conjunto com a Procuradoria-Geral Federal”. (BRASIL, 2010).

Page 122: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

122 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

de submetê-lo à reabilitação e à readaptação profissional. Por isso, para que o segurado faça jus à percepção de algum benefício previdenciário, é imprescindível que todos esses elementos sejam analisados no caso concreto, conforme prevê a súmula n° 47 da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, ao dispor que, “uma vez reconhecida a incapacidade parcial para o trabalho, o juiz deve analisar as condições pessoais e sociais do segurado, para a concessão da aposentadoria por invalidez.” (BRASIL, 2011).

Ora, é exatamente nesse ponto que se insere a discussão a respeito do teletra-balho (dentro de um contexto mais amplo de incorporação de tecnologias ao direito do trabalho), na medida em que sua propagação passa a oferecer novas perspectivas do ponto de vista da reabilitação e da readaptação profissional, recomendando que se lance um novo olhar sobre esse modelo previdenciário dos benefícios por incapacidade. Por tal motivo, o próximo tópico será dedicado a analisar a referida figura, com o intuito de obter as bases sobre as quais se pretende construir um novo paradigma de interpretação da (in)capacidade laboral do segurado, à luz de sua capacidade residual para o desenvolvimento de atividades remuneradas vinculadas às novas tecnologias.

3. teletrabalho contemporâneo: os contornos do trabalho à distância como resultado das ino-vações tecnológicas

A composição orgânica do trabalho7 é indissociável do contexto produtivo no qual se concretiza. Enquanto atividade geradora de riquezas, o trabalho conserva íntima relação com o correspondente modelo de execução. No paradigma capi-talista, a interlocução entre trabalho e sistema de produção torna-se ainda mais evidente. Basta perceber as mudanças no modo de ser e realizar o trabalho ao longo dos últimos séculos. Diversamente do estilo concentrado prevalente nas grandes fábricas fordistas, o trabalho se faz hoje multifuncional e descentrali-zado. Antes, serial; agora, fragmentado. Multiplicam-se as demandas. Adaptam-se novos produtos a novas (des)necessidades. O trabalho sofre conformações e, ao

7 O termo trabalho é utilizado aqui no sentido atribuído por Hanna Arendt (2014, p. 97-114) como atividade ou ação, e não como resultado ou produto dessa ação (obra).

Page 123: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 123

mesmo tempo, fragiliza-se frente ao avanço tecnológico. Na era da informação, encurtam-se as distâncias e o trabalho fica cada vez mais rarefeito. Diluído em escala globalizante.

As inovações tecnológicas têm sido determinantes na transformação estrutural do clássico modelo técnico-industrial de produção, transportando o arranjo organizacional para além das divisas do estabelecimento. Tal realidade viabiliza o implemento do teletrabalho ou trabalho à distância, que, ampliando o conteúdo do antigo trabalho em domicílio, é prestado essencialmente fora do espaço físico empresarial, por intermédio das recentes ferramentas de informação e comunicação. E o que, afinal, caracteriza o teletrabalho?

Hernandez Nieto (2002, p. 190) afirma que o teletrabalho supõe a execução de um trabalho à distância, longe do local onde normalmente se desenvolve, devendo agregar-se a isso o fato de ser prestado mediante o uso das tecnologias da informação e comunicação8. Para o autor (2002, p. 193), concorrem três requisitos na caracterização do teletrabalho: primeiramente o trabalho em si; em segundo lugar, o fato de ser realizado em local distinto à empresa; e, em terceiro, o uso de meios informáticos e de telecomunicações9. Winter (2005, p. 57-58), apoiada no magistério de Escudero Rodríguez, aponta o teletrabalho como fenômeno circunspeto pelos seguintes elementos independentes: a) espacial, dada sua realização em local diverso do centro de funcionamento do empreendimento empresarial; b) qualitativo, pois se aperfeiçoa através de equipamentos tecnológicos e de telecomunicação; e c) quantitativo, na medida em que se define pelo valor da prestação (análise de resultados).

O elemento espacial, nada obstante sua notoriedade, não é suficiente para imprimir individualidade à nova figura. Isto porque, o trabalho realizado no

8 Por tanto, podemos afirmar en un principio que el teletrabajo va a suponer ejecutar el trabajo a distancia, lejos del lugar normal donde se desarrolla el mismo, como es la empresa o centro de trabajo; sin embargo dicha expresión quedaría incompleta, si la misma no se presta utilizando las tecnologías de la información y de la comunicación (TIC), dato que va a ser relevante para considerar una actividad profesional como teletrabajo.

9 Observamos, que en todas las definiciones anteriores, concurren tres elementos, primero, el trabajo en sí; segundo, el trabajo realizado en lugar distinto a la empresa o centro de trabajo y en tercer lugar, la nota esencial que ha dado lugar a la aparición de tal vocablo en el mundo laboral, trabajo realizado a través de los medios informáticos, es decir de las telecomunicaciones.

Page 124: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

124 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

domicílio do trabalhador – e, portanto, fora do estabelecimento do tomador – remonta épocas que antecedem o próprio trabalho assalariado, nas quais o artesão produzia na pequena oficina familiar. Mesmo com o surgimento da dependência funcional e o empenho de concentração do operário no pátio fabril, o trabalho em domicílio não foi eliminado10. Entretanto, é patente a amplitude que o elemento espacial assimilou na alta modernidade, indo além do trabalho em domicílio para alcançar o trabalho em telecentros (espaços que pertencem à empresa, mas se situam fora do seu ambiente tradicional), o teletrabalho “nômade11” (sem local definido ou itinerante) e até mesmo o teletrabalho transnacional (abrangendo vários países).

Na verdade, o que transparece determinante na atual “roupagem” do tele-trabalho é o uso das conquistas tecnológicas como estratégia de controle ou coordenação do trabalho à distância. Trata-se de uma sofisticada feição do proces-so produtivo, que combina automação do trabalho manual e desconcentração do trabalho técnico especializado12. É, portanto, o permeio das inovações tecno-lógicas (especialmente nos campos da telecomunicação e da informática) que diferencia o antigo trabalho em domicílio do novel trabalho à distância.

Por sua abrangência e expansão, o fenômeno do teletrabalho ganhou destaque em diversos países13, merecendo a edição da Convenção nº 177 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), seguida da Recomendação nº 184 do mesmo organismo internacional, ambas datadas de 199614. Contudo, em razão da abertura normativa característica dos documentos internacionais, os preceptivos da OIT acabaram não adquirindo o devido respaldo regulatório, com

10 Tanto é verdade que o artigo 6º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), na sua redação originária, já consagrava o trabalho em domicílio, inclusive com a potencialidade de configurar relação empregatícia.

11 Expressão cunhada por Paolo Pizzi (1997).12 Advirta-se não ser apenas o trabalho técnico passível de realização à distância, mas sem

dúvida é a modalidade que mais tem sido objeto do teletrabalho hodierno.13 Winter (2005, p. 65) destaca Portugal, Espanha, França, Itália, Alemanha, Finlândia, Canadá,

Estados Unidos e Japão como exemplos de países adotaram amplamente o teletrabalho nos seus respectivos sistemas produtivos.

14 Disponíveis em <http://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=1000:12000:0::NO:::> Acesso em: 02 jun. 2014.

Page 125: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 125

ratificação de apenas dez Estados nacionais15. Alguns países, apesar de não serem signatários da Convenção nº 177 da OIT, possuem regramento interno específico acerca do tema. É o caso de Portugal, cujo artigo 165º do Código do Trabalho considera teletrabalho “a prestação laboral realizada com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação.” (PORTUGAL, 2009).

Em julho de 2002, os Estados que compõem a União Europeia assinaram em Bruxelas o Acordo-Quadro Europeu sobre teletrabalho, voltado à regulamentação de questões ligadas às condições de emprego dos teletrabalhadores, sua segurança, saúde e formação de direitos coletivos. O acordo é tido como o marco europeu do teletrabalho, justificado pelo crescimento no nível de incidência do fenômeno entre os países membros do bloco comunitário16.

No Brasil, a Lei nº 12.551 de 201117 incluiu o parágrafo único no artigo 6º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), equiparando os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão aos meios pessoais e diretos, para fins de subordinação. É bem verdade que aludida previsão não contempla a tipologia do teletrabalho em sua completude, mas decerto alarga a possibilidade de reconhecimento da relação de emprego.

Entender a natureza jurídica do teletrabalho – se vínculo empregatício ou trabalho lato sensu – é temática que desafia importante reflexão. Rodrigues Pinto (2000, p. 117) alude que o teletrabalhador tanto pode ser considerado empregado como trabalhador autônomo. Certamente, a ampliação do conceito de dependência (entendida num parâmetro estrutural18) favorece o reconhecimento

15 São eles Albânia, Argentina, Bélgica, Bósnia, Bulgária, Finlândia, Irlanda, Holanda, Tajiquistão e a antiga República Iugoslava da Macedônia. Disponível em <http://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=1000:11300:0::NO:11300:P11300_INSTRUMENT_ID:312322> Acesso em: 02 jun. 2014

16 Mais informações disponíveis em: <http://www.eurofound.europa.eu/pubdocs/2009/961/pt/1/EF09961PT.pdf> Acesso em: 04 jun. 2014.

17 Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12551.htm#art1> Acesso em: 02 jun. 2014.

18 Para melhor esclarecimento sobre a dependência estrutural ver ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de. O teletrabalho e a subordinação estrutural. In REIS, D. M.; MELLO, R. D.; COURA, S. B. C. (coor.) Trabalho e justiça social: um tributo a Maurício Godinho Delgado. São Paulo, LTr, 2013, p. 203-209

Page 126: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

126 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

da telessubordinação, conferindo status de empregado ao teletrabalhador. Por outro lado, a legislação brasileira não veda o teletrabalho autônomo, salvo quando utilizado com desiderato fraudulento.

Winter (2005, p. 128-133) elenca vantagens e desvantagens do teletrabalho. Do ponto de vista dos trabalhadores, aponta como vantagens o aproveitamento laboral de deficientes e pessoas situadas em regiões distantes dos grandes centros, o aumento do contato com a família e a flexibilidade no tocante aos prazos e horários de trabalho. Já as desvantagens residiriam no isolamento do teletrabalhador e sua marginalização frente às demandas coletivas, além do enfraquecimento das organizações sindicais. Ademais, dentro de uma sociedade em cujo trabalho forma subjetividades, o fato de o teletrabalhador conservar-se na residência acaba comprometendo sua afirmação comunitária. A permanência domiciliar é vista como descomprometimento, gerando o que Morais (1998, p. 51) denomina “síndrome de temor aos perigos da ociosidade”. Concebe-se uma ideologia de vergonha, já que “não sair para o trabalho” é interpretado socialmente como “ser desocupado e improdutivo”.

Na perspectiva do tomador/empregador, Winter indica como vantagens do teletrabalho uma maior fluidez organizacional, com redução de custos mobiliá- rios, imobiliários e operacionais. As desvantagens estariam na dificuldade de controle à distância, bem como na contenção de abusos por parte dos teletraba-lhadores.

Finalmente, relevante dizer que o teletrabalho é tido como resultado do fenômeno contemporâneo da flexibilização. Por vezes utilizada em sentido pejorativo, a flexibilização ganha prestígio no segmento empresarial como enge-nho de reestruturação produtiva. Pauta-se na fórmula adotada pelo capitalismo moderno que visa, dentre outras coisas, reduzir a rigidez do modelo trabalhista clássico.

A flexibilização não se contrapõe apenas ao rigor normativo sedimentado pelo Direito do Trabalho; questiona toda a matriz orgânica que deu origem ao modelo de produção tradicional, na medida em que “prega maior liberdade de gestão da empresa, com redução da intervenção ao mínimo necessário, e adoção de mecanismos revogáveis a qualquer tempo, conforme as necessidades da produção e do mercado.” (ROBORTELLA, 1994, p. 94). Romita esclarece que a flexibilização irradia-se em várias direções, apoiando-se no discurso de

Page 127: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 127

enfrentamento das crises econômicas globais, o que “cobre um vasto espectro, desde uma flexibilidade das relações sociais (eliminação da rigidez jurídica), passando pela flexibilidade do aparato produtivo (automação) e chegando a flexibilidade na utilização da força de trabalho.” (ROMITA, 1998, p. 114).

É exatamente na flexibilidade da força de trabalho que o teletrabalho ganha seu espaço, inserindo-se no processo progressivo e tendencialmente irreversível de expansão tecnológica e adequação dos métodos de execução do labor humano. Trata-se, pois, de uma realidade. Um acontecimento cujo arquétipo precisa ser detalhadamente estudado, haja vista as diversas repercussões que pode ensejar.

4. (in)capacidade laboral: uma releitura à luz do teletrabalho

Especificamente no que interessa ao objeto do presente artigo, a investigação do teletrabalho ficará limitada às repercussões que seu surgimento e propagação desencadeiam no âmbito do direito previdenciário, notadamente naquilo que se relaciona com a questão da incapacidade do trabalhador e as perspectivas para sua reabilitação e/ou readaptação. Como é evidente a partir da breve apresentação que aqui se fez do teletrabalho, a incorporação de novas tecnologias vai expandir as possibilidades de aproveitamento do trabalhador, mudando radicalmente a forma como se concebe a sua capacidade laboral residual. Far-se-á, portanto, uma reconstrução do esquema geral dos benefícios por incapacidade, incorporando-lhe a figura do teletrabalho.

Num primeiro momento (aquele no qual o segurado sofre um acidente ou é acometido por uma doença), não há muito impacto direto. Uma vez ocorrendo incapacidade superior a 15 (quinze) dias, a previdência social continuará obrigada a acolher o segurado (no caso do empregado, somente a partir do décimo sexto dia) e a lhe garantir o pagamento de um auxílio-doença, pelo menos até que aconteça a consolidação das sequelas. Da mesma forma, pouca importância terá a figura do teletrabalho, caso aconteça de, por ocasião da consolidação das sequelas, o segurado recuperar completamente a sua capacidade laboral, voltando a estar plenamente apto para o exercício da mesma atividade remunerada que originalmente exercia.

Page 128: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

128 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Por outro lado, a situação muda sensivelmente quando acontecer de o segura-do não recuperar naturalmente (ou mediante tratamento) a sua plena funciona-lidade, pois aqui todas as alternativas levarão em conta a existência (ou não) de capacidade laboral residual. Em primeiro lugar, deve-se analisar a possibilidade de o segurado não se recuperar naturalmente nem responder ao tratamento, mas encontrar-se em uma situação na qual a capacidade laboral plena ainda pode ser restituída mediante reabilitação profissional. Tradicionalmente, esta é uma situação muito específica, na qual se paga auxílio-doença ao segurado enquanto ele passa por um procedimento (como uma fisioterapia, por exemplo) que permita o seu retorno à atividade que exercia anteriormente. Trata-se de uma série limitada de casos, nos quais a reabilitação profissional pode assegurar que consolidação das sequelas não impeça o desenvolvimento da atividade remunerada habitual.

Quando se faz uma reflexão à luz da tecnologia da informação e do teletrabalho, entretanto, a coisa muda de figura. Em primeiro lugar, porque muitas vezes a atividade habitual do segurado pode ser ligada ao uso de computadores e de internet, o que vai fazer com que, mesmo uma perda significativa de capacidade laboral não seja suficiente para afetar a sua capacidade de desenvolver a atividade habitual. De fato, dado o esforço físico bastante limitado exigido para lidar com a informática, somente perdas bem específicas de capacidade laboral iriam vir a impedir o desempenho de tais atividades. Por outro lado, deve-se levar em consideração que a atividade do segurado pode ser desenvolvida até mesmo à distância, naqueles casos em que a presença física na empresa não é elemento essencial do exercício da atividade remunerada.

Nestas situações, a reabilitação profissional por meio da capacitação em uso de tecnologia da informação pode alcançar uma série de segurados que antes nunca seriam reabilitados. Num mercado de trabalho no qual muitas atividades podem ser desenvolvidas à distância, mesmo um segurado impossibilitado de se deslocar até a empresa pode conservar capacidade laboral para a sua atividade habitual, desde que se valha do teletrabalho para desempenhar as suas funções, o que, inclusive, não significa que haverá qualquer perda na qualidade do labor. Na verdade, diante da incorporação das inovações tecnológicas pelo mercado de trabalho, o teletrabalho pode se apresentar como uma oportunidade tanto para a empresa quanto para o próprio empregado. De toda forma, mediante o

Page 129: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 129

uso do teletrabalho, preserva-se a capacidade laboral do segurado, é mantido o exercício da atividade remunerada específica e não há qualquer prejuízo para a produtividade da empresa.

Uma situação diferente se apresenta quando a perícia médica da previdência social constatar que não há possibilidade de reabilitação profissional em sentido estrito, mas existe uma possibilidade de readaptação profissional. Neste ponto, o espectro de aplicação do teletrabalho é bem significativo. Se é verdade que a previdência social deve evitar a concessão da aposentadoria por invalidez do segurado quando for possível readaptá-lo, então a questão que se coloca aqui é a seguinte: apesar de não ser mais capaz de desenvolver a sua atividade habitual, pode o segurado ser readaptado para exercer outra atividade dentro da mesma empresa? Em praticamente todos os casos, tal resposta irá depender fundamentalmente da familiaridade que o segurado tenha com a informática e a da sua capacidade de lidar com computação.

De fato, poucas empresas hoje em dia estão isentas de alguma dependência da informática (e da internet), de maneira que é praticamente impossível que não exista uma ocupação para aquele segurado que domine computação e (internet). O procedimento de readaptação, portanto, que sempre exigiu uma investigação minuciosa da situação concreta da empresa e da capacidade pessoal do segurado (para tentar buscar um ponto de convergência entre qual necessidade da empresa poderia ser atendida por aquele segurado), agora encara uma situação oposta, na qual uma única forma de treinamento (tendente a promover a familiaridade do segurado com a tecnologia da informação) é suficiente para expandir em nível exponencial a capacidade laboral residual de praticamente qualquer segurado, sendo isto, por si só, suficiente para que ele possa exercer nova função dentro da empresa a qual está vinculado.

Efetivamente, é difícil (mas não impossível) imaginar um grau de incapaci- dade a partir do qual o segurado não esteja passível de readaptação profissional mediante treinamento nas áreas de informática e internet. As premissas do raciocínio são as seguintes: a) uma vez devidamente treinada, quase qualquer pessoa tem capacidade para usar o computador; e b) hoje em dia, praticamente nenhuma empresa pode prescindir de pessoas que tenham pelo menos familiari-dade com a tecnologia da informação. Tomando-se como verdadeiras as afirma-

Page 130: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

130 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

ções anteriores (e não parece que seu conteúdo seja objeto de maiores controvér-sias), a previdência social tem todos os motivos para investir num procedimento de readaptação profissional que seja capaz de readaptar o segurado a exercer funções relacionadas com as novas tecnologias.

Neste ponto, merece um destaque especial a questão do teletrabalho, na medida em que possibilita que o trabalho seja desenvolvido, mesmo que o segurado não tenha como deslocar-se para a sede da empresa. Deve-se destacar que, na prática, existem 02 (duas) situações diferentes: a da empresa que tem empregados trabalhando à distância e a daquela que terceiriza atividades que não precisam ser desenvolvidas na sede. Em ambos os casos, haverá um novo horizonte para a readaptação profissional. Caso a empresa já tenha empregados realizando teletrabalho, então, em muitos casos, será possível readaptar o segurado para que exerça a sua atividade também à distância, valendo-se exclusivamente de meios eletrônicos. Caso a empresa não possua empregados nesta condição, mas terceirize esse tipo de função, é possível se realizar uma readaptação, que teria como consequência compelir a empresa a reabsorver parte da atividade terceirizada. Neste último caso, em vez de terceirizar a função, a empresa teria que efetivá-la diretamente, com o objetivo de realocar o trabalhador readaptado.

Num primeiro momento, essa solução pode parecer um pouco exagerada, mas a verdade é que, segundo a legislação vigente, a empresa é obrigada a aceitar a readaptação do seu empregado; motivo pelo qual não parece que ela poderia se furtar a recebê-lo, ainda que fosse readaptado para uma função de teletrabalho que vem sendo terceirizada (como telemarketing, por exemplo)19. Ao analisar este ponto, é imprescindível se ter em mente que todo o esquema dos benefícios por incapacidade passa pela compreensão de que a prioridade máxima é resgatar a capacidade laboral do segurado, para que ele possa permanecer no mercado de trabalho e preservar a sua dignidade. Sendo assim, a

19 Explicam Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari que “o Programa de Reabilitação profissional só alcança pleno êxito na reintegração ao trabalho com a participação efetiva da comunidade, principalmente das empresas, das escolas, dos familiares e do próprio reabilitando. Para tanto, a Lei do RGPS prevê a obrigação de que as empresas mantenham em seus quadros funcionais um percentual de empregados reabilitados ou portadores de deficiência (artigo 93).” (2011, p. 718).

Page 131: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 131

disciplina da readaptação deve sempre ter como foco a reintegração do segurado no mercado de trabalho, como forma de evitar o seu afastamento de toda e qualquer atividade remunerada.

A readaptação profissional, portanto, tem uma função social consistente em evitar que os segurados sejam desnecessariamente afastados de suas atividades remuneradas, o que poderia colocar em xeque a própria dignidade pessoal do trabalhador. É nesse sentido que André Studart Leitão e Rogério Grieco Sant’Anna Meirinho (2014, p. 472) afirmam que

Reconhecendo a dinâmica do mercado de trabalho, sobretudo diante da seletividade e exigência cada vez maiores a que estão submetidos os candidatos a empregos, o legislador ordinário estabeleceu uma norma de inclusão social que se reveste de verdadeira ação afirmativa.

Isto posto, resta estabelecido que a aposentadoria por invalidez só é devida ao segurado que perder total e definitivamente a capacidade laboral para desen-volver a atividade remunerada que habitualmente exercia, salvo se for possível a sua readaptação para outra atividade dentro da mesma empresa. Percebe-se, então, que uma política de investimento da readaptação profissional envol- vendo informática e teletrabalho terá como resultado a limitação da concessão de aposentadoria por invalidez, na medida em que raríssimos serão os casos nos quais o segurado não goza de capacidade laboral residual suficiente para que passe por um treinamento que possa torná-lo apto a trabalhar com tecnologia da informação, principalmente nos casos em que o trabalho pode ser realizado à distância.

Destaque-se, aqui, a título de arremate, que não se trata de uma reflexão que se apresente com o objetivo de dificultar cada vez mais a concessão da aposentadoria por invalidez. O benefício previdenciário conserva a sua relevância e importância e continua a ser devido sempre que o segurado encontrar-se com sua capacidade laboral totalmente comprometida, hipótese em que não deve ser desamparado pelo Estado. Entretanto, não é possível que continue a se tratar dos benefícios por incapacidade da mesma forma como acontecia no século passado, quando a perda da capacidade laboral específica restringia significativamente as perspec- tivas de reaproveitamento do trabalhador. A tecnologia da informação é uma realidade que veio para ficar e todas as probabilidades apontam para sua expansão.

Page 132: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

132 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Por tal motivo, mostra-se imprescindível a reabertura do diálogo entre o direito do trabalho e o direito previdenciário, para que o primeiro apresente as suas novas configurações (oriundas da incorporação das evoluções tecnológicas) e o segundo possa se modernizar adequadamente. Se o século XXI é o século da tecnologia da informação, tem que ser também o século no qual um direito previdenciário atualizado está apto a lidar com segurados que são provenientes de um mercado de trabalho caracterizado pela extrema informatização, o que faz com que seja imprescindível uma releitura permanente de institutos até então sedimentados. Somente com uma sintonia entre o direito previdenciário e o direito do trabalho é que será possível lidar de maneira devida com a questão dos benefícios por incapacidade. Este artigo é uma contribuição na busca desta afinação dos institutos.

5. conclusões

O avanço de novas tecnologias, notadamente no campo da microeletrônica e das telecomunicações, abre um leque de novas possibilidades e, paralelamente, de diferentes abordagens sobre fatos relevantes tanto para o direito do trabalho como para o direito previdenciário. Ao se falar em teletrabalho e no uso indissociável das ferramentas tecnológicas para sua execução, a caracterização da incapacidade laboral deve passar por uma necessária releitura.

Isto porque, os benefícios por incapacidade, especialmente a aposentadoria por invalidez, pressupõem que o segurado não possua aptidão laborativa residual e não possa desenvolver tal aptidão através da readaptação profissional. Assim, somente será aposentado por invalidez o segurado que, considerado inapto para suas atividades habituais, não possa readaptar-se em uma nova função junto ao empregador.

Acontece que, atualmente, praticamente todas as empresas dependem – de forma direta ou indireta – do uso corrente de mecanismos da informática e da internet, permitindo a desconcentração produtiva e o exercício de atividades laborativas fora das dependências do estabelecimento empresarial. Destarte, estando o trabalhador familiarizado com aludidos mecanismos, o espectro de capacidade residual e/ou readaptação é substancialmente elastecido.

Page 133: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 133

Isso não significa dizer que a concessão dos benefícios por incapacidade deve ser dificultada. A previdência social, porquanto dotada de natureza securitária, tem o dever de acolher o segurado e, atendidos os requisitos legais, resguardá-lo diante das contingências sociais geradoras de benefícios. Por outro lado, não pode a previdência ignorar as novas tecnologias no trato da incapacidade laborativa, já que a prioridade máxima é o resgate da capacidade do segurado.

Ressalte-se que o teletrabalho, a princípio, não é menos dignificante do que o trabalho realizado na sede da empresa, nem tampouco diminui o rol de direitos a serem auferidos pelo teletrabalhador, que pode tranquilamente ser tido como empregado, desde que preenchidos os requisitos de existência do contrato de emprego.

O abandono de uma interpretação tradicional da legislação previdenciária brasileira à luz do teletrabalho e das possibilidades trazidas pela tecnologia da informação se faz premente, de modo que os avanços contemporâneos e as variadas formas de desempenho laboral que ele viabiliza não sejam ignorados, sob pena relegar à inatividade segurados que, a rigor, podem ser aproveitados do mercado de trabalho contemporâneo.

6. referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Rapouso. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

BALERA, Wagner. Sistema de seguridade social. São Paulo: LTr, 2000.

BRASIL. Instituto nacional do seguro social. Instrução normativa nº 45 de 2010. Brasília: Diário Oficial da União de 11 de agosto de 2010. Disponível em: <http://www3.dataprev.gov.br/sislex/paginas/38/inss-pres/2010/45_1.htm> Acesso em: 16 jun. 2014.

BRASIL. Presidência da república. Decreto-lei nº 5.452 de 1943: consolida- ção das leis do trabalho. Rio de Janeiro: Diário Oficial da União de 09 de agosto de 1943. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm> Acesso em: 02 jun. 2014.

BRASIL. Presidência da república. Decreto nº 3.048 de 1999: consolidação das leis do trabalho. Rio de Janeiro: Diário Oficial da União de 09 de agosto

Page 134: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

134 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

de 1943. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm> Acesso em: 02 jun. 2014.

BRASIL, Presidência da república. Constituição da república dos Estados Uni-dos do Brasil de 1891. Rio de Janeiro: Diário Oficial da União de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm> Acesso em: 16 jun. 2014.

BRASIL. Presidência da república. Constituição Federal de 1988. Rio de Janei-ro: Diário Oficial da União de 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm> Acesso em: 02 jun. 2014.

BRASIL. Presidência da república. Lei n° 8.213 de 1991: Plano de Benefícios da Previdência Social. Rio de Janeiro: Diário Oficial da União de 24 de julho de 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm> Acesso em: 02 jun. 2014.

BRASIL. Turma nacional de uniformização dos juizados especiais federais. Súmula nº 44 de 2011. Brasília: Diário Oficial da União de 14 de dezem-bro de 2011. Disponível em: < https://www2.jf.jus.br/phpdoc/virtus/sumula.php?nsul=44&PHPSESSID=43p651tvpelr3mnqk5k8p7k504> Acesso em: 16 jun. 2014.

CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. São Paulo: Conceito Editorial, 2011.

DIAS, Eduardo Rocha; MACÊDO, José Leandro Monteiro de. Curso de direi-to previdenciário. 2. ed. São Paulo: Método, 2010.

ESCUDERO RODRÍGUEZ, R.: Teletrabajo. In AA.VV. Descentralización productiva y nuevas formas organizativas del trabajo, X Congreso Nacional de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social, MTAS, Madrid, 2000, p. 761 a 871

HERNÁNDEZ NIETO, Juan Antonio. El teletrabajo em España em los albores del siglo XXI. In Revista universitaria de ciencias del trabajo. n. 02. Valladolid: Universidad de Valladolid, 2002, p. 183-211. Disponível em: <http://www.ruct.uva.es/pdf/RUCT2.pdf> Acesso em: 02 jun. 2014.

Page 135: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 135

IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.

LEITÃO, André Studart; MEIRINHO, Augusto Grieco Sant’Anna. Manual de Direito Previdenciário. São Paulo: Saraiva, 2014.

MORAIS, José Luis Bolzan de. A subjetividade do tempo: uma perspectiva transdisciplinar do direito e da democracia. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1998.

PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de direito individual do trabalho. 4. Ed. São Paulo: LTr, 2000.

PIZZI, Paolo. Brevi considerazioni sulla qualificazione giuridica del telelavoro. Revista giuridica de lavoro e dela previdenza sociale. [Itália]: Ediesse. Ano XL VIII, n.2, trimestrale. Aprile/giugno 1997.

PORTUGAL. Assembleia da República. Lei nº 7 de 2009: Código do Trabalho. Lisboa: Diário da República, 1ª série, n. 30 de 12 fev. 2009. Disponível em: <http://dre.pt/pdf1s/2009/02/03000/0092601029.pdf> Acesso em: 02 jun. 2014.

ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim. O moderno direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1994.

ROMITA, Arion Sayão. Direito do trabalho: temas em aberto. São Paulo: LTr, 1998.

RUPRECHT, Alfredo. Direito da seguridade social. São Paulo: LTr, 1996.

WINTER, Vera Regina Loureiro. Teletrabalho: uma forma alternativa de em-prego. São Paulo: LTr, 2005.

Page 136: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.
Page 137: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 137

dignidade humana: seguridade e a solidariedade entre (des)iguais no brasil

Eliane Romeiro Costa1

Gil César Costa de Paula2

Resumo

A Constituição brasileira de 1988 sistematizou direitos públicos subjetivos para a universalização da proteção social. Promovendo democracia social, desigual e carente de harmonização,as políticas públicas e os direitos securitários no Brasil, em defesa da dignidade humana e existencial, encontram-se em fase de efetivação.Este trabalho analisa os valores éticos da Seguridade Social e o direito fundamental aos serviços de atendimento integral e universalizante para o cidadão.

Palavras-chave

Direitos Sociais Fundamentais; Dignidade humana e existencial; Segurança e solidariedade universal.

Resumen

La Constitución brasileña de 1988 sistematizó los derechos públicos subje-tivos de protección social universal. La promoción de la democracia social, la desigual y falta de armonización de la política pública y el seguro de los derechos de los trabajadores en Brasil, en defensa de la dignidad humana y existencial, están en el proceso de ejecución.Este analiza los valores éticos de la Seguridad Social y el derecho fundamental a los servicios de universalización plena a los ciudadanos.

Palabras clave

Derechos sociales fundamentales: La dignidad humana y existencial: La seguridad y la solidaridad universal.

1 Professora Dra. PPGDRI, Puc, Goiás.2 Professor Dr. PPGDRI, Puc, Goiás.

Page 138: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

138 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

1. do seguro social à seguridade social na cons-tituição de 1988

O seguro social integrou a proteção ao trabalhador nas primeiras Constitui-ções do Brasil. James Malloy (1986,112-113) esclarece que desde o início da história da política social o sistema brasileiro apresentava-se bastante desigual ligando a massa dos benefícios à contribuição e esta por sua vez dependia da renda do trabalho. O resultado era óbvio os que contribuíam mais tiravam mais do sistema. A situação era a seguinte: as transferências de renda eram horizontais, dentro dos grupos de renda: dos sadios para os doentes, dos jovens para os velhos, e não havia uma redistribuição vertical de um nível de renda para outro grafando padrões desproporcionais que vigoram no atual modelo. Comparando a evolução da proteção social entre países na America Latina (152-153) Malloy registrou a seguinte disposição da cobertura: primeiro o setor público depois trabalhadores privados urbanos e por último rurais e domésticos,como também no Brasil, a distinção entre programas do setor publico e privado, especialmente os militares e funcionários públicos que formaram nível mais vantajoso de proteção social que os trabalhadores da iniciativa privada, os celetistas.

A partir deste rápido resumo da origem do seguro social atingi-se a Seguri- dade Social amparado no artigo 194 da Constituição Federal de 1988 e na legislação infraconstitucional que rege o sistema de seguro social brasileiro, a Lei 8.212 e 8.213 de 1991.

Os dizeres da atual Carta Constitucional brasileira enunciam que a Segurança Social compreende conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. A concepção securitária expõe a densidade dos principios constitucionais que registram o grau de valor aplicável aos preceitos da universalidade da cobertura e do atendimento;da uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas; e da seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços.

Acresce a finalidade do instituto de segurança social brasileiro expresso na Lei nº 8.212/1991 - Art. 3º:

Art. 3. A Previdência Social tem por fim assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade,

Page 139: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 139

idade avançada, desemprego involuntário, encargos de família e reclusão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente.

A primeira fase da Constituição Federal de 1988, esboçou tratado de uniformização dos direitos políticos face a transição democrática; a segunda fase, a ênfase na extensão dos direitos sociais, gerais, implantação das políticas sociais dos mínimos existenciais, além dos cortes de pobreza relativa e absoluta para o alcance das políticas aos mais necessitados. Neste contexto, inseriu-se os direitos dos idosos sem renda e dos deficientes inválidos destinando-lhes o Benefício Programado e Continuado-BPC; promoveu-se a extensão de outros programas assistenciais como Bolsa Escola, Bolsa Família, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, salário-família, auxílio–funeral, pensão por morte, e das políticas de inclusão e proteção previdenciária baseadas no benefício de salário-mínimo.

A dignidade humana e a percepção de benefícios do Sistema Social definiram a pauta da política social nas primeiras décadas da última Constituição. Contudo, não avançamos muito em dignidade existencial, pois coexiste a ambiguidade da noção de necessidade a ser protegida integralmente pelo segurado ou pelo gestor público-segurador?

Passados 25 anos da Carta de 1988 a previdência social não é a esculpida no texto original.Tais reformas promoveram alterações incluindo a necessidade de definição de um valor ideal a ser garantido pelo Estado. A opção do benefício com base na média aritmética das contribuições não atestam por si só a dignidade previdenciária na percepção de justo e digno benefícios. A justa renda decorrente do seguro social e o quantum da prestação securitária que cabe ao segurado basea-se também num mínimo vital. A garantia constitucional expressa como menor renda do Sistema de seguridade social o direito ao salário- mínimo tanto para o beneficio assistencial para idosos e deficientes sem renda quanto para os regimes públicos de previdência social. Portanto, adotou-se a justiça aplicável aos ramos da Seguridade Social brasileira ao mínimo existencial não redutível às necessidades individuais base para a dignidade humana.

Compreendemos que não apenas sofrem divergências interpretativas os preceitos constitucionais de solidariedade e Seguridade,mas também padece o conteúdo de necessidade individual ou coletiva face a privatização do seguro social

Page 140: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

140 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

e da saúde no Brasil. Por que a privatização enfraquece o ideal de solidariedade como principio fundamental do ordenamento jurídico, as políticas sociais com base nos artigos acerca do mínimo vital, reproduziram a natureza igualitária da necessidade individual tendo como foco o pretexto de previsão orçamentária do salário-mínimo contido no artigo 7o. da Constituição.

Ademais do contexto constitucional universalista explicito,outras neces-sidades individuais - não coletivas - devem ser recepcionadas pelas políticas públicas. Essas necessidades embasam o que se denomina dignidade existencial. As políticas sociais devem ser complementares ao ditado como mínimo vital orçamentário,estando vinculadas, garantindo o mesmo acesso à justiça, sem alegações de ausência de previsão orçamentária ou fugas burocráticas. Expressando de outra maneira e com base na dignidade humana,o cidadão contribuinte ou beneficiário, tem a necessidade da celeridade na concessão da prestação. Para isso defendemos que Emenda Constitucional reescreva no texto original da Constituição Federal, no artigo 194 da Seguridade, no incisos I o acréscimo:- universalidade e celeridade da cobertura e do atendimento às populações urbanas e rurais,assim como seletividade, distributividade e celeridade na prestação dos benefícios e serviços. A partir deste comando constitucional redigido, o operador e o ordenamento jurídico não somente identificariam as diferenças em senhas ou filas preferenciais, como também reflete serviço público mais humanizado e digno, cujo foco é o social individualizado. O conceito da necessidade identificada como prioridade no agir administrativo da Seguridade da Previdência, da Saúde e da Assitência.

1.1. trabalho (antes ) e previdência (depois)

Representando o sistema previdenciário e seus regimes contributivos as regras para as aposentadorias estão contidas nos artigos 40, 201 e 21 da Constituição Federal de 1988. O sistema jurídico brasileiro esboçou três regimes de natureza contributiva submetidos aos princípios financeiro e atuarial: o regime universal dos trabalhadores da iniciativa privada- Regime Geral; o regime dos funcionários públicos,servidores estatutários, civil e militar-Regime Próprio; e o regime das contas previdenciárias privadas, denominado Regime de Previdência Complementar.

Page 141: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 141

Fruto da concepção alemã de proteção ao trabalho mediante contribuição, a característica comum entre os regimes atuais reside na relação jurídica entre segurado e autarquia para a cobertura de um risco decorrente de evento imprevisível e que tenha causado impedimento ao trabalho como a doença, a invalidez, a velhice, e a morte.

Das espécies de aposentadoria a eminentemente por tempo de contribuição não integra o fator risco, mas o cumprimento dos anos de contribuição, e por seu turno, também acompanha a aposentadoria do professor de ensino in-fantil,fundamental ou médio, decorrente dos tempo de atividade de magistério.

Mas a aposentadoria por velhice, atualmente, por força da Emenda Cons-titucional n. 20 /98, idade avançada, combina contribuição e idade mínima, ou seja, no Regime Geral, 60 anos mulher e 65 anos homem e 15 anos de contribuição para as atividades urbanas, e 55 anos mulher e 60 anos homem e 15 anos de contribuição para as atividades rurais. No Regime da administração pública há a aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade. E no regime - privado não há idade mínima ou máxima, mas o contrato firmado e o montante capitalizado.

Traçado o perfil do sistema de proteção social brasileiro, onde residiria ofensa à dignidade humana? Ela teria se alicerçado na ideia de crise na previdência social? Na insuficiência salarial do segurado? Na pobreza e desassistência aos idoso? Naqueles que não trabalham?

Em primeiro lugar,a noção de crise na previdência social não é velha ou nova. É permanente com a longevidade do Sistema. Iniciada no modelo dos anos 1920, das CAPS-Caixas, da Lei Eloi Chaves e com mais de 90 anos, o seguro social no Brasil convive com a crise decorrente do projeto esculpido por Bismarck: o modelo da contribuição proporcional aos salários e da sustentabilida-de das gerações. Em segundo lugar, o direito do trabalho no Brasil contém mecanis-mos de subordinação, mas também de supersubordinação submetidos por traba- lhadores mais fragilizados no processo produtivo tanto pela insuficiente formação profissional quanto pelo acesso ao conjunto de proteção das normas trabalhistas.

A supersubordinação parte da percepção do mundo do trabalho no Brasil esboçada Jorge Luiz Jorge Luiz Souto Maior (2008, 162, 167). Explicando o caráter de parassubordinação ou supersubordinação, o jurista redesenha o direito e a justiça do trabalho elucidando que:

Page 142: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

142 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

as garantias trabalhistas, encontrando solo fértil, vai se aprofundando e ganhando sofisticação. Conta-se que algumas empresas,quando querem reduzir o custo do trabalho, em vez de providenciarem uma dispensa coletiva, que é sempre custosa e juridicamente arriscada, procu- ram criar desconfortos para a execução do serviço, cortando benefícios”.

O novo conceito de supersubordinação é acrescida pelo jurista como meca-nismo de inferiorização do trabalhador:

proteção jurídica daquele a que se atribui o nome de parassubordinado, ... acaba sendo,necessariamente, inferior que a dos subordinados. O capital, que é quem controla a forma de correlação entre si e o trabalho, sabendo do parâmetro jurídico intermediário criado, no qual os direitos trabalhistas são menos evidentes, trata,então, de transferir todos os antigos empregados para a “nova” situação. Assim,do ponto de vista geral, em vez de se ampliar o leque social de incidência do Direito do Trabalho, caminha-se em direção contrária.... Na perspectiva da teoria da parassubordinação há, por certo, o reconhecimento da existência de um movimento de fuga da configuração darelação de emprego, mas a teoria, em vez de servir para apontar os equívocos da situação, do ponto de vista da preservação do pacto do Estado Social Democrático de Direito, simplesmente acaba representando uma mera adaptação à situação imposta pelos arranjos econômicos. Assim, até se tenta fazer uma leitura correta da realidade, mas comete-se o sério equívoco de apenas legitimá-la, oferecendo-lhe um tipo jurídico específico. Essa legitimação, por óbvio, não inverte o caminho acima destacado. Vai na mesma linha da regressão de direitos, pois, como dito, o parassubordinado, coerentemente com a sua nomenclatura, não se equipara ao subordinado,possuindo, por isso mesmo, direitos trabalhistas menores, atraindo o grave problema da indefinição quanto aos seus direitos. Assim, tais direitos nem são direitos, são dádivas que a jurisprudência lhe concede, mas que, ao mesmo tempo, pode não conceder porque não está juridicamente obrigada a fazê-lo. A parassubordinação, desse modo, exerce uma função de evitar, criando um obstáculo teórico, que o Direito do Trabalho atinja por completo os novos modos que o capital encontra para explorar o trabalho.

A desproporção de direitos oriundos das categorias profissionais reforçam o caráter desagregador entre os trabalhadores. Reafirmando a concepção utilitária da previdência focada na prática da maior contribuição gerando o melhor beneficio na velhice, ordena a renda da previdência em camadas superiores e

Page 143: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 143

inferiores de benefícios e, provoca,por conseguinte, a regressão da solidariedade universalizante como vetor construtor da Seguridade Social.

Em terceiro lugar, a pobreza no Brasil está desarmonizada num Estado do bem-estar com mais de 90 anos. Não estamos enfocando a pobreza genérica e estrutural, mas inserimos a presença da pobreza entre os segurados da previdência social, e o estado de miséria comprovada entre assistidos do Benefício de Prestação Continuada - BPC, do ramo da Assistência Social. Em outras palavras, o elogio ao salário mínimo não abastece a dignidade existencial.

Em quarto lugar, a longevidade alcançada pelos brasileiros com mais de 75 anos combinada com a precariedade e lentidão da oferta em serviços de saúde e de assistência social ofendem e espedaçam a dignidade humana não somente na velhice como no processo de envelhecimento o qual almejam e desejam todos estarem incluídos.

Segundo a Tabua Completa de Mortalidade -2010, IBGE disponível no site oficial - no qual nos termos do Decreto 3.266/99, dispõe no artigo 2º: Compete ao IBGE publicar, anualmente, até o primeiro dia de dezembro, no Diário Oficial da União, a tábua completa de mortalidade para o total da população brasileira”, os dados estatísticos informam que:

referente ao ano anterior.”a esperança de vida ao nascer, para ambos os sexos, foi de 73,48 anos, ou seja, 73 anos,5 meses e 24 dias. Ao longo da década de 2000, este indicador experimentou um incremento de 3,03 anos, correspondendo a 3 anos e 10 dias. Ao ultrapassar os riscos de morte e sobrevivendo, por exemplo, até os 40 anos de idade em 2010, o brasileiro teria, em média, mais 37,74 nos, podendo atingir uma vida média de 77,74 anos. Ao considerar os sexos masculino e feminino, as respectivas vidas médias aos 40 anos seriam de 75,15 e 80,22 anos. (Grifos nossos)

2. direitos fundamentais - dignidade e justiça - ajudar pobres, para quê?

Em a Arte de Ignorar pobres, o crítico ao liberalismo John Kenneth Galbraith (2011, 27, 28) enumerou argumentos e concepções liberais contrárias à política de proteção à pobreza. Resumidamente, impera o argumento de que medidas de

Page 144: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

144 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

assistência provocam desincentivos ao trabalho transferem rendimentos do rico para o preguiçoso e encorajando a ociosidade.

Assim, ao tomar dinheiro dos pobres e dá-los aos ricos, aumentamos o esforço e estimulamos a economia”. A segunda concepção nesta grande tradição secular é argumentar que qualquer forma de ajuda pública ao pobre apenas o prejudica. Destrói a moral. Estimula pessoas a afastarem-se do emprego proveitoso.

Os direitos sociais originam-se dos direitos à igualdade e à liberdade,não sendo menos importantes que os direitos civis e políticos. Como dimensões evolutivas dos direitos humanos, os direitos sociais expressam a democracia social redistributiva. Os direitos sociais como direitos fundamentais pertencem à dimensão institucional, dos elegíveis valores da comunidade e constitucionalmente sancionados, e imperantes ao desenvolvimento da personalidade. Onde não há direitos sociais, compromete-se a igualdade, a liberdade, revelando a precariedade das instituições democráticas e realizando o desequilíbrio humano e social.

Acerca da dignidade esta integra a proteção em todas as suas dimensões: econômicas, sociais ou culturais (Antonio Pérez Luño, 1984). Para Luño, o Esta-do social de Direito deve assumir a responsabilidade na cobertura de prestações e serviços públicos adequados para suprir as necessidades vitais do cidadão. Chamado de Estado Assistencial, o Estado do bem-estar é fruto de conquistas históricas das classes trabalhadoras, e não se apresenta somente como provedor moral,mas por autênticos deveres jurídicos.

Amartya Sen (2000, 236), reconhece o contraste da prosperidade com a fome.Distingue a fome de um só indivíduo e fomes coletivas. O autor reflete que nas sociedades contemporâneas aceita-se e tolera-se a fome como inerente ao mundo moderno. Neste sentido, também outras questões sociais como o problema da velhice desamparada é transferida para o indivíduo como único gestor de sua penúria. Deslocando-se para o campo privado da responsabilização das mazelas e necessidades individuais, torna-se totalmente compatível a fome na velhice pela omissão do poder público dado desníveis de bens sociais oferecidos como serviços de para a promoção de igualdade e dignidade entre cidadãos.

Examina o professor indiano que uma sociedade capaz de prevenir fomes coletivas e se omite é injusta de forma significativa. A ideia de injustiça reside

Page 145: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 145

em uma concordância arrazoada e não de um padrão definível universalmente. Assim, a liberdade contrasta com igualdade material em relação a quê ou a quem ou quanto dividir. Logo,são questões para o princípio da igualdade e para a política previdencial-assistencial definir quem é o necessitado, quem é o mais pobre ou o excluído das políticas públicas,quais os critérios de seleção, qual medida mais justa:se a pobreza ou a necessidade, ou mesmo se todos os cidadãos conhecem todos os seus direitos.

Ao se avaliar a justiça pela desigualdade de rendas, o bem-estar social ou padrões de vida ou a qualidade de vida entre gerações percebe-se a formação de grupos que envelhecem ou que são idosos com ou sem previdência, ou seja aposentados e não aposentados; com assistência ou sem assistência social,ou seja incluídos ou excluídos dos programas de proteção social não contributivos. A observação denuncia a diversidade entre camadas sociais na velhice formadas não somente pelas diferenças de gênero, idade, diferenças físicas, escolaridade, graus de acesso à saúde pública ou privada, e ou o tamanho da prole que dará suporte financeiro ao idoso. A eliminação de níveis crônicos de desigualdade do sistema deverá objetivamente responder: Há mesma liberdade entre mulheres com filhos e sem filhos ou entre mulheres com filhos e homens sem filhos? Quem é o mais pobre: pessoa que recebe salário mínimo? Sujeito que tem maior renda, mas gasta com problemas crônicos com a saúde?

Dworkin (2010,304-305), atesta que a instituição de direitos aliada às ideias de dignidade humana (associada a Kant) e de igualdade política como direitos de igual consideração é prática complexa e problemática tornando difícil a tarefa governamental em assegurar o bem-estar geral. Assim, para Dworkin,

se os direitos tem sentido, a violação de um direito importante também deve ser uma questão muito séria, significa tratar um homem menos que um homem ou menos digno de consideração que outros homens. A instituição de direitos baseia-se na convicção de que isso é uma grave injustiça.

Acresce em outro trecho:

Se queremos que nossas leis e nossas instituições jurídicas forneçam as regras básicas a partir das quais essas questões venham a ser discutidas, essas regras não devem ser as leis do mais forte que a classe

Page 146: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

146 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

dominante impõe aos mais fracos... A parte principal do direito- a parte que executa as políticas sociais, econômicas e externas – não pode ser neutra. Deve afirmar, em sua maior parte, o ponto de vista da maioria sobre a natureza do Bem comum. (314)

Some-se a estes argumentos ainda a discussão sobre a pertinência da constituição de um fundo público para amparar os trabalhadores, como ensina Evilásio Salvador:

Na construção do Estado Social, o fundo público exerceu uma função ativa nas políticas macroeconômicas, e é essencial tanto na esfera da acumulação produtiva quanto no âmbito das políticas sociais, particularmente da seguridade social. Com isso, ainda hoje, o fundo público tem papel relevante para a manutenção do capitalismo na esfera econômica e na garantia do contrato social. O alargamento das políticas sociais garante a expansão do mercado de consumo, o que viabilizou o compromisso de pleno emprego nos países centrais no período de 1945 a 1975. O fundo público também comparece como financiador de políticas anticíclicas nos períodos de refração da atividade econômica.

No Brasil, o fundo público ganhou contornos restritivos, tanto pela ótica do financiamento como pela dos gastos sociais, muito aquém das já limitadas conquistas da social-democracia ocorrida nos países desenvolvidos. Até mesmo as “reformas” realizadas por dentro do capitalismo central não lograram o mesmo êxito em nosso país, uma vez que a estruturação das políticas sociais foi marcada por componentes conservadores, que obstaculizaram avanços mais expressivos nos direitos da cidadania. ( SALVADOR, 2010, p. 27).

Sobre a importância da seguridade diz o autor:

No capitalismo, o fundo público é essencial para viabilizar a acumulação produtiva, e exerceu função ativa nas políticas macroeconômicas durante a edificação do Estado Social nos países desenvolvidos.

A não institucionalização da seguridade social e de seu orçamen-to, conforme previsto na Constituição de 1988, o financiamento regressivo do fundo público e adoção de políticas econômicas, particularmente as políticas monetárias e fiscal que beneficiam o

Page 147: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 147

capital portador de juros e impõem restrições para universalização e expansão das políticas sociais, são determinantes na configuração do atual Estado Social no Brasil. Um Estado Social que não reduz a desigualdade social, pois é sustentado pelos trabalhadores e pelos mais pobres, que não faz redistribuição de renda e com políticas sociais de padrão restritivo e básico, não universalizando direitos. (p. 394)

Para a implementação da seguridade social torna-se necessário asseguarar os recursos, segundo o autor:

A vinculação de recursos às políticas sociais é uma importante conquista da Constituição de 1988. A década de 1980 foi marcada pela luta contra a ditadura e pelas reivindicações e pressões dos trabalhadores e movimentos sociais. A convocação de uma Assembléia Constituinte, eleita em 1986, permitiu que diversas demandas de expansão dos direitos sociais e políticos fossem incorporadas a Carta Magna. Para que fossem efetivados na prática, surgiu a idéia da vinculação de receitas. Também uma questão relevante para o controle social da seguridade social é a vinculação dos recursos nos fundos das políticas do sistema, mas especificamente no Fundo Nacional da Saúde, no Fundo do Regime Geral da Previdência Social e no Fundo Nacional de Assistência Social. (P. 264)

É a própria configuração do capital que detrmina o padrão de acumuluação e de investimentos na seguridade, como diz CASTEL:

Estamos sem dúvida, diante de uma bifurcação: aceitar uma sociedade inteiramente submetida às exigências da economia ou construir uma figura do Estado social a altura dos novos desafios. A aceitação da primeira parte da alternativa não pode ser excluída. Mas poderia custar o desmoronamento da sociedade salarial, isto é, desta montagem inédita de trabalho e de proteções que teve tanta dificuldade para se impor. [p. 35].

No que tange à sociedade salarial, o autor trata da diferença da questão social na fase do capitalismo industrial para o anterior, aduzindo, portanto, que a questão social torna-se a questão de qual lugar os contingentes mais dessocializados podem ocupar na sociedade industrial, aduzindo com muita propriedade que a questão

Page 148: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

148 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

social se põe explicitamente às margens da sociedade mas questiona o conjunto da sociedade. Neste sentido, a resposta à questão será o conjunto dos dispositivos montados para promover sua integração. Assim sendo, o lugar do social é visto entre a organização política e o sistema econômico, deixando clara a necessidade de construir sistemas de regulação não-mercantil com a finalidade de tentar preencher esse espaço. Neste ponto, surge a questão do papel que o Estado é chamado a desempenhar. O autor chama de Estado social à intervenção do Estado na interseção do mercado e do trabalho. Ademais, no pós-guerra, a articulação do econômico e do social parecia ter encontrado uma solução satisfatória o bastante para que fosse considerada definitiva.

O modo de gestão política associou as sociedades privada e social, o desenvolvimento econômico e a conquista dos direitos sociais, o mercado e o Estado. Neste contexto se instalou o Estado social, cuja intervenção se desdobrou em 03 (três) direções: a garantia da proteção social generalizada, a manutenção do equilíbrio macroeconômico e a busca de um compromisso entre os diferentes implicados no processo de crescimento. Trata-se da instauração de uma regulação circular onde o

[...] Estado dirige a economia. Constrói uma correspondência entre objetivos econômicos, objetivos políticos, objetivos sociais. Circularidade de uma regulação que pesa sobre o econômico para promover o social e que faz o social o meio de tirar de apuros a economia quando esta se abate” [ p. 487].

O autor em seu capítulo VIII, A nova questão social, analisa o tema numa perspectiva histórica, enfatizando as relações presentes.

A questão social é analisada tendo como ponto de partida o enfraquecimento da condição salarial. A novidade não diz respeito, apenas, ao fim do quase pleno-emprego. O trabalho é mais que o trabalho e, o não trabalho é mais que o desemprego. Surgimento de um perfil de trabalhadores sem trabalho. A precarização do trabalho consiste num processo central, comandado pelas novas exigências tecnológicas-econômicas da evolução do capitalismo moderno [p. 526]. A exclusão não é uma ausência de relação social, mas um conjunto de relações sociais particulares da sociedade tomada como um todo [p. 569].

Page 149: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 149

A Desestabilização dos estáveis. Vem confirmar a idéia de que a questão social não se refere, apenas, em denunciar a exclusão; Instalação na precariedade; Déficit de lugares ocupáveis na estrutura social. Lugares, entendidos como posições às quais estão associados uma utilidade social e um reconhecimento público. [p. 529].

Trabalha com a idéia de Estado social, como princípio de governo da sociedade, a força motriz que deve assumir a responsabilidade pela melhoria progressiva da condição de todos [p. 498]. Enfatiza que este Estado inexiste, é um modo ideal.

Elenca 03 (três) características do movimento que predominava na sociedade salarial, quais sejam:

O caráter não acabado. O trabalhador fazia carreira na empresa – presença do CDI [Contrato de trabalho por tempo indeterminado]. O autor assevera que, nos anos de 1950 e 1960, o CDI se tornou norma e traduzia quase que uma garantia de segurança ao emprego/trabalho. No entanto, quando a conjuntura muda, a seguridade desaparece e o contrato por prazo indeterminado deixa de ser uma garantia legal. Assim sendo, os trabalhadores ingressam para o status de precariedade.

3. conclusões

Optamos por desenhar uma cultura de seguridade e solidariedade que tenderá a abandonar o conceito orçamentário rumo à necessidade individual objetiva em detrimento de riscos genéricos de cobertura securitária. Expliquemos: para o avanço da dignidade na seguridade urge que novas necessidades sejam assimiladas no rol protetivo para a garantia da gestão do processo de envelhecimento e da ve- lhice. Por que a velhice? A velhice no Brasil alcançou visibilidade demográfica tornando imprescindível o serviço de cuidadores de idosos inseridos obriga-toriamente nos programas e políticas de Seguro Social,e sem ônus para o contribuinte. Portanto, impera a necessidade em harmonizar a justiça previden-ciária não face ao seguro, mas ao beneficio digno. Em primeiro lugar por que o seguro social brasileiro se tornou mais complexo após as reformas paramétricas face a longevidade, o gênero, a flexibilidade de trabalho e emprego, a compensação financeira entre regimes via os CTCs - certidão de tempo de contribuição. Em

Page 150: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

150 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

segundo lugar por que o trabalho super subordinado encontra-se estampado tanto no envelhecimento ativo, acrescidos de pedidos de desaposentação, quanto no envelhecimento desassistido socialmente. E em terceiro lugar por que os atuais atuários dos regimes previdenciários - cuja atuação pauta-se em analisar a massa segurada dos Regimes Próprios e distribuí-los em grupos por idade ou data de ingresso no serviço público - são cobrados para bater metas atuariais e não solidarizar ou universalizar a seguridade.

Concluindo, cuidar da herança recebida implica em recriar modelos de solidariedade já na administração, no atendimento, no balcão, eliminando o dano moral e a violação de direito social fundamental. Portanto, é da responsabilidade dos operadores do Direito Previdenciário que o cálculo justo, ideal e digno,da renda na inatividade e a celeridade na concessão dos benefícios integrem os direitos fundamentais do cidadão reafirmando a dignidade e a igualdade relevantes ao processo de envelhecimento humano de um pais.

Reconhece-se a presença de impacto ou conflito de gerações ou crise de gerações, que apesar do termo crise que provoca desequilíbrio fiscal, a crise é permanente integrando a historia social dos direitos democráticos. Assim, a previdência social no Brasil atingido mais de 90 anos e integrando o Sistema de Seguridade inserido na Constituição Federal de 1988, se encontra na adolescência, e, portanto,nem tão criança e nem tão semelhante aos pais. Tão jovem e com novas necessidades a serem protegidas e reconhecidas.

O lado mais frágil da solidariedade, o lado do segurado que dependerá do avanço contínuo das políticas dos demais ramos do Sistema de Solidariedade, da Assistência Social e dos Programas e Políticas Integrais do Sistema de Saúde. Gozar da inatividade com saúde ou da inatividade com doença requer a presença permanente do Estado. Se Assistência não é Previdência. Previdência não pode ficar desassistida da Saúde. O custo da Solidariedade é a insegurança da sociedade não apenas centrada no argumento do orçamento ou do mínimo vital,mas no sentido amplo de futuro da vida em coletividade. Os impactos da agenda pública na solidariedade da Seguridade e dos Regimes de Previdência deverá reconhecer que haverá a necessidade de ajustes no sistema contributivo de benefícios sem perda da dignidade da cobertura.

Page 151: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 151

Pelo exposto,defendemos o caráter aberto das necessidades básicas, que pressupõe o surgimento de outras necessidades não previstas pelo texto original da CF de 1988, em que urge a crítica e o avanço da Seguridade.

4. referências

BARROSO, Luis Roberto. “Aqui, lá e em todo lugar”: A dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional. In: Revista dos Tribunais.Ano 101- maio 2012, vol. 919, p. 127-196.

BARROSO, Marcelo. Direitos previdenciários expectados. A segurança na relação Jurídica Previdenciária dos Servidores Públicos. Curitiba: Juriá, 2012.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

GALBRAITH, John Kenneth. L´art d`ignorer les pauvres. France: Le monde Diplomatique, 2011.

MALLOY, James. Política de Previdência social no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

Pilares do Direito do Trabalho.Ives Gandra Martins Filho, Nelson Mannrich, Ney Prado ( coordenadores). São Paulo: Lex Magister Editora, 2013.

Previdência do Brasil é a 2o. mais frágil, diz estudo. Aposentadoria Precoce é um dos motivos. Do “Agora”. Folha de São Paulo, 28, de abril de 2014.

Proposta FIPE/PROSEG para a Reforma da Seguridade e da Previdência Social. Versão para debate. FIPE,1993.

SANDEL, Michel J. Justiça: O que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civili-zação Brasileira, 2012.

_______. O que o dinheiro não compra: Os limites morais do mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

SEGATTO, Cristiane. O lado oculto das contas de hospital. In: Revista Época. Ideias. Dilemas da Saúde. 12 maio, 2014. n.832. p.60-82.

SCHWARTZMAN, Simon. Pobreza, exclusão social e modernidade: uma intro-dução ao mundo contemporâneo. São Paulo: Augurium Editora, 2004.

Page 152: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

152 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Record, 2001.

_______. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. As tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

_______. A cultura do novo capitalismo. Rio: Record, 2006.

SILVA, Luiz Jacintho da. Exclusão e desigualdade social em saúde pública: pontos para debate.: In: Hexapolis:desigualdades e rupturas sociais em metrópoles contemporâneas: São Paulo, Paris, Nova Yorque, Varsóvia, Abidjan, Antananarivo. Maura Pardini Bicudo Véras ( ed. e org). São Paulo: Educ,2004. p. 117-126.

SILVA, Marleth. Quem vai cuidar dos nossos pais? A inversão de papéis quando a idade avança. Rio de Janeiro: Record, 2013.

SOUSA SANTOS, Boaventura. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: Reconhecer para libertar.Os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Boaventura Sousa Santos (org). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 429-458.

SOUTO MAIOR, Jorge Luis. Supersubordinação. Invertendo a lógica do jogo. Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v.48, n.78, p.157-193, jul./dez. 2008.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social; uma crônica do salário, Petropólis, Vozes, 1998.

EVILÁSIO SALVADOR: Fundo Público e Seguridade Social no Brasil – São Paulo: Cortez, 2010.

Page 153: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 153

direito ao trabalho digno e renda: como fomentadores do desenvolvimento econômico e social brasileiro no século xxi

Renata Albuquerque Lima1

Marcus Mauricius Holanda2

Resumo

Na atual conjuntura brasileira, verifica-se que o desenvolvimento social não está acompanhando de forma ordenada o crescimento econômico, apresentando uma lacuna entre essas vertentes. Tem-se como fomentadores do desenvolvimento social o acesso ao trabalho digno e a renda equitativa, de modo a retirar o trabalhador da linha de pobreza. Para tanto, inicialmente, o presente artigo faz um comparativo existente entre o Estado globalizado e neoliberal em contraposição ao Estado de bem estar social, criticando o primeiro Estado, ao passo que o segundo proporciona melhores condições ao desenvolvimento do trabalhador, garantindo trabalho digno e renda. Posteriormente, faz-se um apanhado sobre a intrínseca relação entre o crescimento econômico e social e o acesso ao trabalho e à renda. Em momento subsequente, busca-se compreender o fenômeno do crescimento econômico no Brasil, e a relação entre o trabalho e a renda como fator de eliminação da pobreza. E, por último, relaciona-se o direito ao trabalho digno com o a teoria do mínimo existencial. Examinam-se meios de concretização dos fundamentos e objetivos previstos na Constituição Brasileira de 1988. De acordo com a metodologia empregada, a pesquisa é documental, cujo campo de investigação dá-se em doutrinas internacionais e nacionais e no

1 Renata Albuquerque Lima é Doutora em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Professora Efetiva do Curso de Direito da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. Advogada

2 Marcus Mauricius Holanda é Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Mestre em Direito Constitucional - UNIFOR. É especialista em Direito do Trabalho e Processual Trabalhista pela Universidade Christus; Professor Titular do Curso de Direito da Faculdade Luciano Feijão. Advogado

Page 154: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

154 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

ordenamento jurídico brasileiro. O referencial teórico dá-se por intermédio da inferência de doutrinas especializadas.

Palavras-chave

Desenvolvimento Econômico e Social; Trabalho digno; Renda.

Abstract

In the current Brazilian situation, it appears that social development is not keeping an orderly economic growth, presenting a gap between these strands. The access to decent work and fair income are promoters of social development. Also, taking out the workers from the poverty line is the goal of the State. With this purpose, initially, this article compares the existing globalized and neoliberal State as opposed to the State of social welfare, criticizing the first one, while the second provides good conditions for development of the employee, ensuring decent work and income. After that, it brings an overview on the intrinsic relationship between economic and social growth and access to work and income. In the next moment, the work studies the phenomenon of economic growth in Brazil, and the relationship between work and income as a factor of poverty elimination. And, finally, this paperwork relates to the right to decent work with the theory of the minimum existential. It also examines ways of achieving the goals and foundations under the Brazilian Constitution of 1988. The methodology used is through the analysis of documents, whose field research takes place in international and national doctrines along with the Brazilian legal system. The theoretical framework is given through the inference of specialized doctrines.

Key words

Economic and Social Development; Decent work; Income.

1. introdução

Observa-se que na disposição constitucional, a ordem social brasileira insere os valores sociais do trabalho como âmago da República, colocando como objetivos constitucionais a erradicação da pobreza e da marginalização como forma de reduzir as desigualdades sociais e regionais. Dessa maneira, verifica-se

Page 155: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 155

a convergência necessária entre a efetiva concretização da redução da pobreza através do acesso à dignidade do trabalho e à renda.

A República Federativa do Brasil não tutela somente o trabalho, mas a livre iniciativa como forma de atingir os objetivos constitucionais demarcados. Mas, como corporificar a conciliação dos propósitos do capital e do trabalho? O panorama Constitucional brasileiro não deixa margem a dúvidas que ambos, o crescimento econômico e o desenvolvimento social, este último fundamentado através do trabalho e da renda, devem estar em equilibro como forma de eliminação da desigualdade social e redução da pobreza.

Quanto à metodologia, assinala-se a pesquisa bibliográfica, através de um estudo descritivo-analítico, ao que se consigna ao material pesquisado: legislações, doutrinas jurídicas e jurisprudências especializadas mais adequadas ao objeto do estudo.

Quanto à abordagem, é qualitativa, porquanto a tarefa é humanística, voltada, nomeadamente, aos profissionais do Direito, e por último, quanto aos objetivos, tem-se a livre metodologia descritiva e exploratória, sob o escopo de identificar, analisar e reger os institutos no ordenamento jurídico em face da experiência laboral brasileira.

2. o estado globalizado e neoliberal x estado de bem estar-social

Com o surgimento da economia neoliberal e o desenvolvimento econômico ocorrido na segunda metade de século XX, os países industrializados descen-tralizaram a produção para países periféricos e subdesenvolvidos. Impondo uma nova ideologia já devidamente formatada aos interesses econômicos dos países desenvolvidos, como fórmula a ser seguida para o caminho do desenvolvimento.

O neoliberalismo tem como princípio a redução do Estado como instrumento político e econômico, onde o próprio mercado trataria de realizar o equilíbrio desejado. A tendência de substituir a ordem espontânea e complexa por plane-jamentos realizados pelo homem como forma de controle social e econômico acabaria por resultar em um empobrecimento e na servidão. (HAYEK, 1990, p. 132).

Page 156: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

156 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

A redução do controle do Estado como instrumento de gestão econômica e política faz parte da proposta neoliberal, e o fracasso de sucessivos planos econômicos para combate a inflação gera severas desconfianças na capacidade do Estado em relação à sua função sobre a economia, onde deve reduzir o controle, como forma de estimular as reformas necessárias que surgiriam pela livre competição. (SODRÉ, 1995). Assim, o fundamento do Estado neoliberal era a separação do Estado e Sociedade, traduzindo-se em “em garantia da liberdade individual. O Estado deveria reduzir ao mínimo a sua ação, para que a sociedade pudesse se desenvolver de forma harmoniosa”. (SARMENTO, 2006 p. 13).

Antônio José Avelãs Nunes (2003) afirma que a globalização é também um fenômeno de cunho cultural e ideológico, onde o imperialismo industrial tenta submeter ao mundo uma ditadura de pensamento único, que deveriam ser aplicadas como produtos prontos para que pudessem ter nível de desenvolvimento equiparado aos países industrializados.

A ideia neoliberal não é deixar as coisas sem controle, mas as forças da concorrência no mercado criariam o equilíbrio necessário para orientar os esforços individuais. Nesse sentido, o modelo adotado nas relações de trabalho mantém as características coerentes com os princípios de não interferência do Estado na ordem econômica e social, para que os indivíduos tenham liberdade como interlocutores sociais e ajustem as suas normas trabalhistas e as formas de solução de seus conflitos. (NASCIMENTO, 2011, p.139).

Adam Smith (1981, v. 1), como defensor da liberdade da economia, e criador da teoria da “mão invisível”, argumenta que a economia tem condições de se autorregular e acredita na liberdade de pactos, ou seja, que, nas relações de trabalho, a liberdade de contrato não necessitava ser igual para todos. Dessa forma, cada trabalhador teria liberdade para celebrar, conforme sua conveniência. Daí “os operários pretendem obter o máximo possível, os patrões procuram pagar-lhes o mínimo possível”.

Milton Friedman (1984, p. 39) deu sustentação científica para o pensamen-to neoliberal, em contraponto com a atuação do Estado intervencionista que promoveria o bem-estar social. Sustentava, ainda, que, no neoliberalismo, o bem-estar social poderia ser preservado e ampliado. Dessa forma, a reabertura dos

Page 157: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 157

mercados entre países e a maior integração econômica e tecnológica são fatores primordiais para a política neoliberal.

A expansão da economia em escala mundial veio dar novo conceito à expansão do capitalismo, em busca de ocupar mais espaços geográficos e econômicos. (GADELHA, 1997). Essa economia veio a ser chamada de globalização, não é de origem recente, mas sim originada de um processo histórico, que vem se desenvolvendo e progredindo, tomando as feições atuais.

Para Habermas (1995, p. 98) o conceito de Globalização seria o avanço e a re-tirada dos limites, entre países, cultural e econômico. Entre as suas diversas faces, o fenômeno da globalização pode ser definido como o aumento das relações em escala mundial que ligam regiões distantes, de tal forma que os acontecimentos locais são “modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice versa”. (IANNI, 2003, p. 243).

O fenômeno da globalização da economia pode ser caracterizado como a criação de uma vinculação mundial de sistemas nacionais e tem como ideologia matricial o neoliberalismo ou no dizer de Antônio José Avelãs Nunes (2003, p.67) “O neoliberalismo é a matriz ideológica da globalização”, onde há criação de um mercado comum e interligado, eliminando todas as barreiras para o livre comércio e produção de bens, onde exista o domínio de um “pensamento único”.

De acordo com Renata Albuquerque Lima (2014, p. 46), no mundo globa-lizado, o esvaziamento do Estado significa, para a democracia, o enfraquecimento da capacidade do sistema político para: a) regular o trabalho (daí a flexibilização dos direitos trabalhistas, a volatilidade do capital em busca de trabalhadores me-nos onerosos e o surgimento de formas novas e fragmentárias de prestação de serviços, terceirizado e informatizado); b) promover o bem-estar social (daí a expansão dos serviços privados de saúde e educação, a “guerra fiscal” internacio- nal pela atração de capitais e o declínio da arrecadação de tributos e da implementação de políticas sociais); c) garantir a segurança pública e controlar a violência (daí o crescimento da impunidade, da violação dos direitos humanos e do descrédito da política e da justiça).

É de suma importância a análise da globalização e do neoliberalismo para en-tender a ampliação dos abismos sociais, do processo de concentração de rendas,

Page 158: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

158 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

de reduzir a intensidade e a duração das crises cíclicas próprias do capitalismo, e motivadas pelo objetivo de salvar o próprio capitalismo”.

Carlos Roberto Winckler e Bolivar Tarragó Moura Neto (1992, p. 111) demonstram que, com o crescimento econômico após a Segunda Guerra Mundial, foram manifestadas preocupações distributivas, com fundamento na responsabilidade social do empregador e do Estado.

Paulo Bonavides (2001) entende o Welfare State como uma transformação estrutural do Estado estendendo a sua influência onde antes era controlado pela iniciativa privada:

Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional, ou fora deste, os direitos do trabalho da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, receber com justiça a denominação de Estado Social. (BONAVIDES, 2001, p.183-186)

Verifica-se, portanto, que é o conjunto de políticas de entrelaçamento entre garantias individuais e o mercado, em busca de equilíbrio, como forma de evitar o comportamento mercadológico inadequado ao desenvolvimento social. Vera Maria Ribeiro Nogueira (2001, p. 99) lembra que as teorias explicativas sobre a gênese e desenvolvimento do Welfare State são diversas, mas que este se constitui como elemento estrutural do capitalismo, como um esforço para a reconstrução econômica e da democracia liberal.

Vale ressaltar, conforme lembra Anthony Giddens (1996, p. 156), que os objetivos estruturais do Estado do Bem Estar Social seriam “definir um papel central para o trabalho nas sociedades industriais, como uma forma de viver;

Page 159: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 159

promover a solidariedade nacional”. Já Sônia Draibe (2003, p.64) demonstra a dificuldade entre o equilíbrio das politicas econômicas com a aplicação das políticas sociais, principalmente nos casos dos países latino-americanos, inclusive no Brasil.

A ligação do Welfare State com o capitalismo é histórica, onde as demandas democráticas atuam com um papel estabilizador na tensão entre a democracia e o mercado. Surgem políticas de bem-estar juntamente com a expansão capitalista. (Winckle; Moura Neto 1992, p.112)

Nesse sentido, Fábio Guedes Gomes (2006, online) entende o Estado de bem-estar social, como antagônico à politica econômica neoliberal, a fim de enfrentar os efeitos da estrutura de produção capitalista. Considera um conjunto de serviços e benefícios sociais para garantir uma “harmonia entre o avanço das forças de mercado e uma relativa estabilidade social, suprindo a sociedade de benefícios sociais”, ou seja, criando condições aos indivíduos para que exista um mínimo de base material e níveis de padrão de vida, para que consigam “enfrentar os efeitos deletérios de uma estrutura de produção capitalista desenvolvida e excludente”. (GOMES, 2006, online).

No mesmo viez, importa lembrar a conclusão de Paulo Bonavides (2009, p.189) quando afirma que, no Estado Social, ambas as partes envolvidas lucram: o trabalhador, por observar que suas reivindicações são atendidas e os capitalistas, pois sua sobrevivência fica “afiançada” no ato de sua humanização.

Do exposto, verifica-se que as estruturas sociais equilibradas são pressupostos básicos para o desenvolvimento econômico, por mais que pareça ser antagônico, o sistema globalizado liderado pelo capitalismo deve coexistir com o Estado do Bem-Estar social, como engrenagem de um sistema complexo.3

3 Corrobora, nesse sentido, Maria Aparecida Alkimin (2008, p. 27). Em sua obra, afirma que a “exploração capitalista do trabalho humano que provocou a crise ou revolução de valores em consequência da escravidão econômica, e certo que em detrimento dos valores social e humano do trabalho, influenciou o surgimento do Direito do Trabalho, através da intervenção do Estado tutelar que buscou estabelecer a igualdade jurídica entre o capital e o trabalho, ou mesmo o equilíbrio entre o capital e o trabalho, visando ao interesse social e coletivo, em oposição ao interesse do capitalismo, marcando a decadência do Estado Liberal, substituído pelo Estado protetor-intervencionista e do Bem-Estar Social”.

Page 160: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

160 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

3. disparidades entre o crescimento econômico e desenvolvimento social no brasil

O grande desafio dos países inseridos nesse ambiente da globalização é como enfrentar e reduzir os efeitos das crises do capitalismo, e encontrar um ponto de equilíbrio entre as políticas econômicas e políticas sociais. Assim, tratando-se de países latino-americanos, a exemplo do Brasil, a política econômica tem preponderância sobre a política de proteção social, tendo em vista a forte pressão sofrida por referidos países pelos organismos internacionais. Nesse sentido, vale ressaltar o pensamento de Sônia Draibe (1988, p.64) onde afirma que com “certa independência das orientações político-ideológicas, os governos contemporâneos tornaram-se todos eles prisioneiros do difícil dilema entre a nova política econômica e a política de proteção social”.

De acordo com dados do Banco Mundial (2013), a população brasileira, no ano de 2012, é superior a cento e noventa e oito milhões de pessoas, e o seu Produto Interno Bruto (PIB) se encerrou com um crescimento de 0,8%, demonstrando um péssimo desempenho da economia desde a crise de 2009, ficando o resultado abaixo de 2011. Mas, mesmo assim, a economia brasileira é a sétima maior economia mundial, estando em patamar bem superior ao do Índice de Desenvolvimento Humano4, encontrando-se este em 85º classificação. (BANCO MUNDIAL, 2013/ PNUD, 2013). Abaixo, juntou-se uma tabela demonstrando um paralelo entre o desenvolvimento econômico e o índice de desenvolvimento humano dos países, dentre eles o Estado brasileiro.

4 “O objetivo da criação do Índice de Desenvolvimento Humano foi o de oferecer um contraponto ao Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento. Criado por Mahbub ul Haq com a colaboração do economista indiano Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1998, o IDH pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvimento humano. Apesar de ampliar a perspectiva sobre o desenvolvimento humano, o IDH não abrange todos os aspectos de desenvolvimento e não é uma representação da ‘felicidade’ das pessoas, nem indica ‘o melhor lugar no mundo para se viver’. Democracia, participação, equidade, sustentabilidade são outros dos muitos aspectos do desenvolvimento humano que não são contemplados no IDH. O IDH tem o grande mérito de sintetizar a compreensão do tema e ampliar e fomentar o debate”. (PNUD, 2013).

Page 161: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 161

tabela 1 - tabela comparativa entre desenvolvimento econômico e o idh 2013

PAÍSDesenvolvimento

Econômico

Índice de Desenvolvimento

Humano

Estados Unidos 1º 3º

Japão 2º 10º

China 3º 101º

Alemanha 4º 5º

França 5º 20º

Reino Unido 6º 26º

Brasil 7º 85º

Fonte: Banco Mundial/ PNUD/ONU (2013)

É de se perceber a grande disparidade existente entre o desenvolvimento econômico brasileiro e o seu desenvolvimento humano. Enquanto, o Brasil ocupa uma posição de destaque no campo econômico, não se pode dizer o mesmo, em se tratando de desenvolvimento social. É errôneo pensar em desenvolvimento de um país, tendo por base apenas a sua economia. Pelo contrário, deve-se levar em consideração o equilíbrio entre esses dois fatores, conforme se pode depreender do pensamento de Bresser Pereira (1977, p. 21) onde corrobora que “não tem sentido falar-se em desenvolvimento apenas econômico. Se o desenvolvimento econômico não trouxer consigo modificações de caráter social e político, será porque de fato não tivemos desenvolvimento”.

O que acontece frequentemente em países subdesenvolvidos são reduções com gastos públicos sociais, sendo estas diretrizes emanadas dos organismos financeiros internacionais como forma de conter o gasto público, tendo como finalidade a redução do déficit fiscal. Portanto, os governos dos países subdesenvolvidos e periféricos foram submetidos a repassar os recursos para pagamento das dívidas fiscais, e para isso ocorre o arroxo dos gastos sociais. Raquel Sosa Elízaga (2011, p. 156) trata desse assunto de forma clara e precisa, senão veja-se referido comentário:

Page 162: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

162 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Tal como ha sido ampliamente documentado por distintos analistas económicos y políticos, el ciclo neoliberal se inicia en América Latina a partir de la segunda mitad de la década de los setenta. La llamada crisis de la deuda externa fue la ocasión de que se sirvieron los organismos internacionales para imponer rígidas medidas económicas, entre las que destacan: la privatización de la mayor parte de las empresas estatales; la reducción del déficit fiscal mediante la drástica reducción del gasto público; la transferencia neta de recursos por la vía de la exportación y el pago de la deuda externa; y el apoderamiento de vastos sectores de la economía y de la política pública por empresarios nacionales y extranjeros bajo su tutela y protección. Es ampliamente reconocido que el ajuste estructural significó la caída más violenta de la actividad económica y pública social de nuestros países en la historia contemporánea. El efecto más grave que se produjo, sin embargo, fue una transformación radical de las relaciones entre el Estado y la sociedad. Sometidos a la presión y supervisión constante del Fondo Monetario Internacional, los gobiernos de la región se vieron compelidos a transferir crecientes recursos al pago de la deuda externa y diminuir radicalmente el gasto público social5.

E é essa a eterna missão do Estado capitalista, em que este tem que conciliar duas funções opostas, que é a de acumular riquezas, demonstrando um perfil totalmente monetarista e lucrativo, mas sem esquecer que deverá desempenhar também uma harmonia social (O’CONNOR, 1977, p. 19). Já Paulo Bonavides (2009), em seu posicionamento peculiar, avalia que a melhor forma de atuação do Estado é através de seu perfil social, pois para este doutrinador, ambos os lados

5 Tradução direta: Como tem sido amplamente documentado por vários analistas econômicos e políticos, o ciclo neoliberal começa, na América Latina a partir da segunda metade dos anos setenta. A chamada crise da dívida externa foi a oportunidade de que se serviram as agências internacionais para impor rígidas medidas econômicas, entre as quais: se destacam a privatização da maioria das empresas estatais; a redução do déficit fiscal, cortando drasticamente os gastos públicos; a transferência líquida de recursos através da exportação e o pagamento da dívida externa; A apreensão de vastos setores da economia e das políticas públicas por empresários nacionais e estrangeiros sob sua tutela e proteção. É amplamente reconhecido que o ajuste estrutural significou a queda mais violenta de atividade econômica, pública e desenvolvimento social de nossos países na história moderna. O efeito mais grave ocorreu, no entanto, foi uma transformação radical das relações entre o Estado e a sociedade. Sob pressão e constante supervisão do Fundo Monetário Internacional, os governos da região foram obrigados a transferir crescentes recursos para pagar a dívida externa.

Page 163: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 163

saem ganhando, tanto o detentor da força de trabalho, como também o detentor das forças de produção (BONAVIDES, 2009, p. 189).

Dessa forma, pode-se verificar que o fenômeno da globalização é inevitável e toda Nação está inserida nesse contexto. Entretanto, é necessário para que ocorra o equilibro entre o desenvolvimento econômico e social de um país, sejam realizadas políticas públicas ou programas de ação governamental em três campos interligados: econômico, social e político. (COMPARATO, 2003, p. 395-396).

Corroborando essa linha de raciocínio está Gina Pompeu e Mariana Andrade (2011, p. 8015-8016), para quem: “o Estado deve, operar como mecanismo de ação coletiva da sociedade, visando à equalização de condições sociais para fortalecimento dos cidadãos até o ponto em que se tornem aptos ao desenvolvimento político e econômico de modo autônomo e independente”.

Este modelo de Estado deve orientar as relações políticas, sociais e principalmente econômicas de sua sociedade, não a deixando totalmente livre, como pregado pelo modelo Liberal, mas, de certa forma, regulando a atividade econômica. Portanto, compactua-se com o pensamento de Francis Fukuyama (2005), no sentido de retomar um modelo de Estado que se mostre forte, eficiente e, acima de tudo, soberano, onde “somente os Estados são capazes de fazer agregar e distribuir poder legítimo. Este poder é necessário, em termos nacionais, para fazer com que as leis sejam cumpridas, e no plano internacional, para preservar a ordem mundial. (FUKUYAMA, 2005, p. 156-157)

Assim, cabe chamar a atenção para o perfil a que o Estado se deve adaptar no atual momento histórico, cujas características predominantes são a moderniza-ção e o desenvolvimento econômico, tornando-se metas primordiais a serem discutidas e perseguidas por todo país que não queira naufragar, diante dos abalos que aludido processo ocasiona, muitas vezes inesperadamente. Portanto, deve-se buscar ao máximo o desenvolvimento econômico, pois, de certa forma, estará contribuindo para propulsionar também o desenvolvimento social, conforme pensamento de Friedrich August Von Hayek, em sua famosa obra, O caminho da servidão:

Pode parecer muito nobre dizer: ‘deixemos de lado a economia, vamos construir um mundo decente’. Na realidade, porém, essa

Page 164: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

164 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

é uma atitude de todo irresponsável. Com a situação mundial que conhecemos, e existindo a convicção generalizada de que as condições materiais devem ser melhoradas em certos pontos, a única possibilidade de construirmos um mundo decente está em podermos continuar a melhorar o nível geral de riqueza. Pois a moderna democracia entrará em colapso se houver a necessidade de uma redução substancial dos padrões de vida em tempo de paz, ou mesmo uma estagnação prolongada das condições econômicas. (HAYEK, 1990, p. 190).

Amartya Sen (2000, p. 29)6 afirma em relação ao desenvolvimento,7 onde não estando este diretamente ligado ao conceito de crescimento econômico, mas, pelo contrário, está umbilicalmente vinculado à ideia de bem-estar, de dignidade das pessoas, e, principalmente, da liberdade do homem. Portanto, em se tratando do desenvolvimento, tem que se pensar na situação das empresas, no sentido de fomentar o crescimento econômico e social em um contexto de responsabilidade social (LIMA, 2014, p. 66).

4. conflito entre o crescimento econômico e a po-breza no brasil

Mesmo estando o Brasil, posicionado entre as maiores economias mundiais, sofre ainda com os efeitos da concentração de renda, gerando um elevado nível de pobreza. O desenvolvimento social não teve o mesmo desempenho da economia, criando desigualdades sociais. O abismo social toma contornos não condizentes com o tamanho da economia em termos globais. (HOLANDA, 2014, p. 78)

Dentre os diversos problemas econômicos e sociais, tem-se com maior relevância a pobreza. Dessa maneira, as discussões sobre a condução da economia

6 De acordo com Amartya Sen (2000, p. 29), “o desenvolvimento tem de estar relacionado, sobretudo com a melhoria da vida que levamos e das liberdades que desfrutamos.”

7 “A teoria de desenvolvimento como liberdade, criada pelo economista Amartya Sen, surge como um contraponto às concepções mais restritivas de desenvolvimento que resistem até a década de 1960 e que atrela a noção de desenvolvimento a crescimento econômico. A nova concepção relaciona o progresso de determinado país à sua capacidade de promoção da liberdade, do bem-estar e da dignidade das pessoas, e não mais ao simples crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) ou ao aumento de rendas pessoais. Esta nova perspectiva de ética econômica e de desenvolvimento influencia também a criação de uma nova teoria de justiça que está embasada nos ideários de liberdade e de equidade. (MAILLART; SANCHES, 2011, p. 3963).

Page 165: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 165

e a análise de indicadores exercem influência na escolha de diretrizes para alcan-çar os objetivos constitucionais, qual seja, alcançar um nível de sobrevivência mínimo com dignidade.

Raúl Prebisch (1962, p. 136-137) assenta na ideia que, do “ponto de vista do desenvolvimento econômico, a elevação máxima do padrão de vida depende da produtividade”, o aumento do consumo seria importante para o crescimento da indústria. Mas Amartya Sen (2000, p. 29-30) afirma que o valor mínimo para que se possa viver com dignidade, não repousa na posse de mercadorias e sim, na própria vida em si mesma.

Celso Furtado (2000) assevera que o desenvolvimento possui dimensões tais como o incremento e a eficácia do sistema social e de produção e a “satisfação de necessidades elementares da população”, além da competição na utilização de recursos escassos. Essa última considera-se, ainda, “a mais ambígua, pois aquilo a que aspira um grupo social pode parecer para outros simples desperdício de recursos. Daí que essa terceira dimensão somente chegue a ser percebida como tal, se incluída num discurso ideológico”. (FURTADO, 2000, p.22).

Conforme dados do Banco Mundial (2013), o Brasil apresenta diferenças re-gionais extremas, especialmente em indicadores sociais como saúde, mortalidade infantil e nutrição. A pobreza (percentual de pessoas vivendo com US$ 2 diários) mesmo com uma diminuição substancial, de 21% da população, em 2003, para 11%, em 2009, e a extrema pobreza (pessoas vivendo com US$ 1,25, por dia) também diminuiu: de 10%, em 2004, para 2,2%, em 2009, mesmo assim permanece em situação fora dos objetivos constitucionais. (BANCO MUNDIAL, 2013). A desigualdade se mantém em dissonância para um país considerado de renda média.

O que se percebe é que o país se encontra no mesmo patamar no quesito percentual de pobreza a 4 dólares/dia, junto com o Peru, que se encontra na 50ª posição na economia mundial, Colômbia em 31ª posição e Venezuela em 30ª. Países com economias menores, mas estão em condições similares ao Brasil, em relação à pobreza. Interessante observar que a Argentina se encontra na 45º colocação no IDH, possuindo a 26ª maior economia, mas tem índices de pobreza bem menores, em situação relativa ao índice de pobreza, colocando o

Page 166: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

166 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

país em situação confortável em relação aos vizinhos na América Latina. (PNUD\BANCO MUNDIAL, 2013).

A pobreza possui várias dimensões, não seria apenas a ausência de rendimento, mas outras deficiências sociais, tais como educação e saúde. O relatório do PNUD (2013) estima que “10% da população mundial seja portadora de algum tipo de deficiência, o que pode limitar seu padrão de vida, independentemente do rendimento”. A desigualdade pode ocasionar a redução do índice de desenvolvimento humano, pois os índices de pesquisa contemplam vários fatores, não somente o desempenho econômico.

Antônio Augusto Cançado Trindade (1997, p. 24-25) ao afirmar que o desenvolvimento econômico não seria “um fim em si mesmo”, mas um meio de “realizar objetivos sociais mais amplos como imperativos de justiça social”. Os direitos seriam indissociáveis e indivisíveis, assim a tendência de separar o desenvolvimento econômico do desenvolvimento social deve ser encerrada por não comportar tal divisibilidade. (TRINDADE, 1997, p. 282).

5. o direito ao trabalho digno e o mínimo existen-cial

A conquista do homem na construção dos direitos e garantias fundamentais com fulcro na democracia e sua manutenção é sem, dúvida, o objetivo constante da sociedade. Embora se observe que o sistema de exercício do poder político no Brasil, sofre muitas críticas, como o fato de não preservar as conquistas democráticas. Daí, a ausência de efetividade da democracia brasileira, apesar de, formalmente, a Constituição Federal fazer constar um rol de direitos e garantias fundamentais8.

Na economia neoliberal o que se espera alcançar é o desenvolvimento econômico das empresas envolvidas, utilizando-se de seu principio base que é a própria redução do Estado, em face dos interesses econômicos. O próprio

8 Uma definição mínima sobre democracia na vida contemporânea é a que apresenta Norberto Bobbio (1989, p. 18), “o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos”. Além disso, assevera o autor que o exercício do poder deve ficar “dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos ‘invioláveis’ do indivíduo”.

Page 167: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 167

mercado consegue realizar o equilíbrio almejado. Dessa forma, tira do Estado o controle da economia e aposta no mercado como regulador social, eliminando de vez a possibilidade de empobrecimento do trabalhador, ocasionado, pelo controle estatal. (HAYEK, 1990).

O Estado mínimo mantém funções meramente normativas e administra-doras; com isso a proposta neoliberal não é ausência de controle e sim, controle reduzido, deixando o mercado criar o equilíbrio. Ocorre que, no plano ideal, poderia ser interessante, mas o que se observa é o aviltamento do trabalho, em condições precárias, além de uma exploração que não condiz a um Estado Democrático de Direito que instituiu a Dignidade da pessoa humana como fundamento da República.

Vê-se, portanto, que a democracia nos estados neoliberais não representa um Estado Democrático autêntico, pois verifica-se um abismo entre a aplicabilidade de suas instituições e a realidade. “A desvalorização dos valores, as glórias do individualismo, a busca da felicidade confundida com o bem-estar, a prevalência dos interesses privados e dos cálculos utilitaristas sempre tingidos de preocupa-ções econômicas” (GOYARD-FABRE, 2003, p. 346) são a verdadeira face da democracia no sistema neoliberal, o ser humano é relegado a plano secundário.

Conforme Abbagnano (1982, p. 965), o trabalho é a atividade que, utilizan-do ou modificando a natureza, supre as necessidades humanas. Dessa forma, o trabalho ocupa a condição de um mecanismo necessário para a garantia da espécie humana, vale dizer. Trabalho é a força motriz necessária para que a humanidade consiga alcançar os seus objetivos, porém a grande preocupação é como é exercido esse trabalho, em que condições se apresentam e se está dentro dos padrões mínimos de segurança e integridade física e mental.

O trabalho deve estar compatível com os valores da sociedade, não importa o quão complexo seja, mas interessa se ele é exercido dentro de padrões que asseguram a integridade do trabalhador, protegendo-o de problemas que pode-riam ser resolvidos, se a proteção deste estivesse realmente sendo praticada.

O ser humano destina a maior parte de sua vida no ambiente de trabalho, produzindo riquezas, e ainda é o responsável único pela manutenção da vida no planeta, influenciando, sobremaneira, as questões das condições de trabalho e do

Page 168: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

168 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

seu perfeito equilíbrio laboral, superando o interesse individual, em virtude do interesse social da coletividade.

Na Constituição Federal de 1988, o trabalho passa a ter uma previsão cons-titucional como um direito social, trazendo garantias ao trabalhador, difundindo em seu texto a importância de se resguardar o trabalho e aquele que o exerce. Prioriza o valor do trabalho humano sobre os valores da economia. A valorização do trabalho humano bem como o valor social do trabalho passaram a constituir pré-requisitos para o crescimento econômico, cabendo ao Estado, prover as medidas necessárias para garantir e proteger o trabalhador em sua dignidade como ser humano.

A liberdade e a igualdade são valores fundantes da democracia, sendo esta uma construção histórica, conquistadas através de lutas em busca de melhores condições de trabalho e dignidade. 9 (IHERING, 2004, 32). Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 protege o trabalho como forma de prover a dignidade da pessoa humana.

A Constituição Federal como norma hierárquica superior encontra-se em posição topo do sistema legal e, portanto, todo o fundamento jurídico deve ser buscado em seu bojo. A supremacia da constituição é elemento de suporte para a análise interpretativa. Nesse sentido Konrad Hesse (1991, p. 24) leciona que a constituição está ligada a uma realidade histórica, não podendo ser dissociada da realidade de seu tempo, sendo decisivo considerar essa associação, fator fundamental para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição.

Com semelhanças com a Constituição do México10 e a de Weimar, na Alemanha, inclui em seus textos, direitos e garantias fundamentais ao novo

9 Nesse sentido assevera Ihering (2004) “Todas as grandes conquistas que a história do direito revela – a abolição da escravatura, a servidão pessoal, a liberdade de aquisição da propriedade imóvel, a liberdade de profissão e de culto, só foram conseguidas após lutas renhidas e contínuas, que duraram séculos. Por vezes, são torrentes de sangue, derramado pelos direitos subjetivos calcados aos pés, as marcas que assinalam o caminho trilhado pelo direito, na busca dessas conquistas”. (IHERING, 2004, p.32).

10 O artigo 123 da Constituição do México possui a seguinte redação: “Toda persona tiene derecho al trabajo digno y socialmente útil; al efecto, se promoverán la creación de empleos y la organización social para el trabajo, conforme a la ley”. (Todas as pessoas têm direito ao

Page 169: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 169

Estado Democrático, imprimindo uma “latitude sem precedentes aos direitos sociais” (BONAVIDES, 2010, p. 370-374). A Constituição Brasileira traz como fundamento da República, além da dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Constitui objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a garantia do desenvolvimento nacional. Comprova-se a direção tomada pelo constituinte, trazer uma constituição onde a livre iniciativa e os valores sociais do trabalho devem estar em plena sintonia como forma de preservar a dignidade.

Corrobora-se a intenção Constitucional não só de garantir o valor social do trabalho, mas também, além da dignidade humana, tem como fundamento a livre iniciativa, ou seja, busca efetivar os seus objetivos de maneira conjunta, a busca pelo crescimento social, em consonância com o crescimento econômico.

Na esteira dos princípios decorrentes do Estado Democrático de Direito, cumpre assinalar a justiça que engloba a existência de um mínimo essencial. Atilio Borón (1994, p. 13) assevera que o Estado Democrático não convive de forma pacífica onde os extremos sejam a realidade, dessa maneira, afirma que “a generalização da extrema pobreza e sua contrapartida, o fortalecimento da plutocracia, são incompatíveis com seu efetivo funcionamento. Quando os pobres se transformam em indigentes e os ricos em magnatas, sucumbem a liberdade e a democracia”.

O desenvolvimento econômico deve vir acompanhado de desenvolvimento social, havendo o equilíbrio entre os interesses. O desenvolvimento social equilibrado deve vir acompanhado de políticas de proteção, não somente para a coletividade que sofre os efeitos das políticas de mercado, mas para como forma evitar as tendências “antropofágicas” do mercado possibilitando melhores condições de desenvolvimento (KUTTNER, 2004). A ordem econômica e social deve se estabelecer racionalmente, livre e humana. (CHOMSKY, 2003).

Destarte, faz-se necessário ressaltar, conforme Goyard-Fabre (2003, p. 348), que não se deve esquecer que a liberdade democrática não equivale à indepen-dência anárquica do indivíduo, necessita de controles sociais e políticos e a liber-dade só ganha sentido dentro de uma democracia limitando a natureza humana.

trabalho digno e socialmente útil; sendo assim, serão promovidos a criação de empregos e a organização social para o trabalho, de acordo com a lei).

Page 170: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

170 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

A democracia apresentada no sistema neoliberal não apresenta uma demo-cracia de fato, ora a liberdade por si só não é garantidora da igualdade, liberdade e autonomia, faz parte de um campo limitado da existência humana, a esperança da liberdade é a sua força profunda contra a servidão. (GOYARD-FABRE, 2003, p. 348-349).

A Constituição garante aos direitos sociais um patamar mínimo de proteção, tanto que reconhece como direitos fundamentais. A importância desse reconhecimento se observa, quando a própria Constituição proíbe qualquer deliberação cujo objeto seja a proposição de emenda a fim de abolir os direitos e garantias individuais.11

A dignidade como elemento que qualificador do ser humano, o respeito, deve ser reconhecida e promovida. Como valor absoluto, devem ser observadas as condições mínimas para que se possa ter uma existência honrada de vida. Jonh Rawls (1997, p. 80) assevera que esse mínimo existencial deve ser assegurado, e criado um sistema de prevenção com subvenções especiais para casos de doença e desemprego.

Friedrich August Von Hayek (1990, p.127-128) comenta que deve ser garan-tido um mínimo necessário como forma de preservar a saúde e a capacidade para o trabalho. Explica que determinar um padrão a ser assegurado seria uma tarefa difícil, mas, o mínimo essencial que crie condições para o labor é fundamental. Não se justificando a ausência do Estado em realizar a proteção do indivíduo contra as eventualidades.

A defesa do mínimo realizada por Hayek (1990) não se torna contraditória por ser ele um defensor das teorias neoliberais, pois a sobrevivência e a manutenção do potencial do trabalho é a máquina que impulsiona a indústria capitalista, sendo necessário a sua proteção, ao menos no que diz respeito ao mínimo essencial. Entente que a garantia de renda mínima é essencial para aqueles que são incapazes de obtê-la.

John Rawls (1997, p.05), em sua obra “Uma teoria da justiça”, faz renascer o debate em torno da teoria do contrato social, assumindo a ideia que a sociedade

11 Constituição Federal de 1988 traz a seguinte previsão: “Art. 60. § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV - os direitos e garantias individuais”.

Page 171: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 171

seria uma associação de certa forma autossuficiente de pessoas, com existência de regras, porém marcada por conflitos de interesses, exigindo um conjunto de princípios, “para escolher entre várias formas de ordenação social que determinam essa divisão de vantagens para selar um acordo sobre as partes distributivas adequadas. Esses princípios são os princípios da justiça social”.

Rawls (1997, p.64) afirma que, pelos princípios da justiça, as pessoas devem ter direitos e liberdades iguais, e para os membros menos favorecidos, “as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável”, como benefícios compensatórios. Dessa forma admite que o Estado fiscalize a atividade econômica, a fim de garantir a distribuição equitativa de oportunidades, estabelecendo medidas protetivas, incluindo a necessidade de o governo garantir um mínimo social (RAWLS, 1997, p. 303-304).

A implementação do mínimo existencial poderia garantir que as pessoas obtivessem pelo menos, o básico, como forma de obter a subsistência mínima, com o fim de implementar a dignidade, Ricardo Lobo Torres (2001, p. 268) afirma: “A retórica do mínimo existencial não minimiza os direitos sociais, senão que os fortalece extraordinariamente na sua dimensão essencial, dotada de plena eficácia”.

Daniel Sarmento (2006, p.107), afirma que, mesmo que os poderes públicos se abstenham de violar os direitos fundamentais, cabe ao Estado assegurar “as condições materiais mínimas para o exercício efetivo das liberdades constitucio-nais, sem as quais tais direitos, para os despossuídos, não passariam de promessas vãs”. Estado deve realizar procedimentos, de “modo que propicie a proteção e efetivação mais ampla possível aos direitos fundamentais.”

Percebe-se que, na Constituição brasileira, o mínimo existencial é “composto de quatro elementos, três materiais e um instrumental, a saber: a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à justiça”. Constituindo, dessa, maneira o “núcleo da dignidade da pessoa humana e exi- gível diante do Poder Judiciário” (BARCELLOS, 2002, p. 258), sendo reconhe-cida a esses elementos eficácia jurídica positiva. Entende-se, portanto, que o Esta- do deve guiar-se de forma a propiciar que o cidadão tenha o mínimo de condições, como forma de garantir sua sobrevivência digna.

Page 172: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

172 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Em contraponto à questão da proteção Constitucional que tenha o dever de garantir o mínimo existencial,12 verifica-se o pensamento de Clèmerson Merlin Clève (2006, p.38), que assevera que “os direitos sociais não têm a finalidade de dar ao brasileiro, apenas, o mínimo”. Pois entende que as normas sociais “recla-mam um horizonte eficacial progressivamente mais vasto, dependendo isso apenas do comprometimento da sociedade e do governo e da riqueza produzida pelo país”. Dessa forma, a Constituição, conforme explica, passa a “ideia de máximo, mas de máximo possível”.

A forma como a constituição foi concebida, colocando o trabalho humano em um plano de destaque, seja fundamental ou como objetivo da república, na ordem econômica e social, mostra que esses elementos estão intrinsecamente ligados ao princípio da dignidade humana, desde o seu nascimento, estão ligados um ao outro, não há como existir dignidade sem trabalho e, da mesma forma, o inverso é verdadeiro, a sua existência está condicionada de forma que sempre devem coexistir simultaneamente.

Para existir a dignidade nas relações de trabalho, faz-se necessário que se cumpram todas as regras estabelecidas no ordenamento jurídico brasileiro, como, por exemplo, as regras do direito do trabalho, criando condições para que o trabalhador possa exercer uma ocupação que lhe permita juntamente com a sua família subsistir com dignidade. Nesse contexto, Dalmo de Abreu Dallari (1998, p. 20) afirma que o “trabalho permite à pessoa desenvolver sua capacidade física e intelectual, conviver de modo positivo com outros seres humanos e realizar-se integralmente como pessoa”. Para um trabalho digno, o empregador deve oferecer condições ideais para o labor. A preservação da saúde do trabalhador, da sua dignidade e de sua vida são fatores importantes que devem ser observados e aplicados, como uma troca justa: o empregador tem a execução de suas atividades e o trabalhador a sua dignidade.

12 Mesmo entendendo que, em matéria de direitos sociais é dever do Estado garantir o máximo, Clèmerson Merlin Clève (2006, p. 38) realiza o conceito de mínimo existencial, que seria “o mínimo necessário e indispensável, do mínimo último, aponta para uma obrigação mínima do poder público, desde logo sindicável, tudo para evitar que o ser humano perca sua condição de humanidade, possibilidade sempre presente quando o cidadão, por falta de emprego, de saúde, de previdência, de educação, de lazer, de assistência, vê confiscados seus desejos, vê combalida sua vontade, vê destruída sua autonomia, resultando num ente perdido num cipoal das contingências, que fica à mercê das forças terríveis do destino.”

Page 173: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 173

Outro fator que é importante para o trabalhador é a justa remuneração, para que sirva como meio de subsistência própria e de sua família, como um dos principais direitos do trabalhador. O desrespeito à justa remuneração causa-lhe danos; deve ser garantido um valor mínimo que permita a subsistência digna do trabalhador. (BRITO FILHO, 2004). O trabalhador tem direito também a justas condições de trabalho, principalmente no que se refere à limitação da jornada de trabalho. Vê-se a importância dessa limitação, pois sem uma mínima proteção, a tendência é que os tomadores de serviço explorem os trabalhadores com jornadas de trabalho excessivas e negação do direito ao descanso.

Não há trabalho digno sem que existam as condições adequadas à preservação da vida e da saúde do trabalhador, sem justas condições para o trabalho, principalmente no que tange às horas de trabalho e aos períodos de repouso, sem justa remuneração pelo esforço empregado. Deve o Estado, tomar as medidas de proteção e fiscalização em benefício do trabalhador (BRITO FILHO, 2004). Negar o trabalho nas condições mínimas exigidas pela legislação, é negar os direitos do trabalhador, sendo, portanto, ficar contra os princípios básicos que os regem, principalmente da dignidade.

A erradicação dessa forma indigna de trabalho passa, forçosamente, pelo combate à pobreza, conquistando esse objetivo, certamente existirá uma evolução em todos os aspectos sociais, a qualidade de vida será elevada. As dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores para prover a sobrevivência de sua família certamente serão menores, não sendo necessário sair em busca de melhores condições de trabalho, para dar uma forma digna de vida para a sua família.

No Brasil, a legislação pátria protege a dignidade, mas não garante a eficácia aos trabalhadores, principais vítimas dessa crise social. O oferecimento do traba-lho com condições mínimas não é realidade para muitos – o Brasil apresenta diversas formas de exploração do trabalho, normalmente decorrente da ganância e da incapacidade de alguns tratarem com respeito e dignidade os seus semelhan-tes. Maria da Conceição Meirelles Mendes (2009, p. 182) aduz ser necessário uma rede de proteção social reforçada, “necessária a um Estado de estrutura econômica capitalista, como um patamar mínimo civilizatório que humaniza as relações de produção contra a exploração das forças de mercado”.

Page 174: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

174 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Não existe justificativa suficiente para, em nome da maior lucratividade, da produção mais eficiente, aceitar a precarização do trabalho, principalmente com a aplicação de formas de exploração do ser humano. Por fim, não existe justificativa para retirar o único bem que o homem possui, que é a sua dignidade e a sua vida.

Dessa maneira o Estado é responsável por criar mecanismos de proteção do ser humano e sua dignidade. Prover a seguridade da dignidade é uma tarefa primor-dial para a evolução social, porquanto, é inerente ao ser humano, acompanhando-o por toda a existência, não bastando, pois, o formalismo de seu reconhecimento, mas a verdadeira eficácia para a proteção do ser humano, como quer José Afonso da Silva (1998, p. 93-95).

Paulo Bonavides (1989, p. 53) diz que os direitos sociais constitucional- mente protegidos devem abranger um mínimo de garantia e que esse mínimo assegure a dignidade da pessoa humana. Importa salientar que a proibição do retrocesso é um mecanismo de defesa e garantia do mínimo existencial ou núcleo essencial dos direitos fundamentais, abrangendo tudo que esse núcleo assegura para a certeza de uma vida digna.

Nesse sentido Cristina Queiroz (2006, p.67) afirma que o princípio da proibição do retrocesso social “determina que uma vez consagradas legalmente as prestações sociais, o legislador não poderá depois eliminá-las sem alternativas ou compensações”. Os direitos constitucionalmente garantidos não poderão so- frer um retrocesso.13

O princípio da proibição de retrocesso dos direitos sociais deriva de uma ma-turidade do pragmatismo jurídico e uma segurança tal que se não pode evoluir. Então que, pelo menos, seja estático, jamais um retrocesso, muito embora o princípio implique justamente em uma projeção prospectiva na aplicação desses direitos, manifestamente nos direitos trabalhistas, de modo que exista renda com-patível com a realização do trabalho e que possibilite a eliminação da pobreza.

13 Conforme Cristina Queiroz (2006, p. 71), a expressão “proibição do retrocesso social” não é considerada a mais correta, juridicamente poderia ser substituída por outros conceitos como, por exemplo, a ”segurança jurídica” ou a “proteção da confiança”. Dessa maneira, quando violados, se apresentariam como indicadores de um retrocesso social constitucionalmente ilegítimo.

Page 175: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 175

6. conclusões

Reunidos os aspectos da pesquisa, com pertinência crítica e valorativa, reafirma-se, que o acesso ao trabalho digno e a renda, é um importante instrumento para a concretização das potencialidades humanas e como fomentadora do desenvolvimento social, ensejando a noção de harmonia entre o crescimento econômico e social.

A busca de mecanismos para auferir lucro faz parte da própria essência do mercado, porém a exploração exacerbada do ser humano não condiz com os ditames democráticos brasileiros. O trabalho, a renda e o lucro fazem parte do capitalismo e devem coexistir com os direitos trabalhistas. O desenvolvimento resulta do trabalho. Este permite ao homem desenvolver suas potencialidades. Assegurar o direito a uma renda compatível com suas necessidades torna-se necessário.

A dignidade pro labore não é mera expressão da personalidade, vale dizer, das competências e das habilidades angariadas pelo trabalhador ao longo de sua existência, é, também, um efetivo conjunto de esforços, do capital, do Estado e da sociedade civil que desassolem a antiga reificação do trabalhador para um estado de plenitude e pluralismo na busca de seu bem-estar vocacional e produtivo de mercado.

A proteção ao trabalhador, como sujeito, deve ser efetivada, pois os direitos fundamentais dotados na própria força normativa constitucional, devem ser perseguidos. Deve coexistir o lucro das empresas e os direitos dos trabalhadores, pois ambos são mecanismos do mesmo sistema, porquanto, complementares. O desenvolvimento deve coexistir com o trabalho digno, os quais permitam ao trabalhador exercer suas atividades com segurança, respeito e direito a uma renda compatível, que ofereça as condições mínimas de sobrevivência digna.

Somos direcionados a um novo momento, em que o lucro por si, não seria o seu único objetivo, mas o crescimento social compatível com o crescimento do mercado, contribuindo para a eliminação das desigualdades. Não se quer que as empresas deixem o seu lucro, mas, que mudem de postura, possibilitando a conciliação entre o lucro e desenvolvimento social.

A conquista do ser humano na construção dos direitos sociais deve ser man-tida e os objetivos constitucionais devem ser efetivados. Permitindo a realização

Page 176: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

176 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

do trabalho como fonte de erradicação da pobreza e eliminação das desigualdades sociais. O trabalho deve ser compatível com os valores constitucionais, devendo ser protegido contra práticas de exploração desenfreada. Entende-se que, a pro-teção e o acesso ao trabalho garantem o provimento da dignidade do trabalhador.

O Estado democrático não tem convivência pacífica com os extremos, ou seja, não permite a possibilidade de desigualdades de modo a tornar incompa-tíveis os objetivos democráticos. O respeito ao cidadão e a possibilidade de lucros, são necessidades que devem partilhar dos mesmos objetivos.

7. referências

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

ALKIMIN, Maria Aparecida. Violência na relação de trabalho e a proteção à personalidade do trabalhador. Curitiba: Juruá, 2008.

AURELIANO, Liliana; DRAIBE, Sônia Miriam. A especificidade do Welfare State brasileiro. In: MPAS/CEPAL. Economia e desenvolvimento - reflexões sobre a natureza do bem-estar. Brasília: MPAS/ CEPAL, 1989. v. I. p.85-187.

BANCO MUNDIAL. América Latina e Caribe: Indicadores de desenvolvi- mento 2013. Disponível em: <http://www.worldbank.org/pt/country/brazil> Acesso em: 10 maio, 2014.

BARCELLOS, Ana Paula de. Eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

BENEVIDES, Claudia do Valle. Um Estado de Bem-Estar Social no Brasil? Niterói - RJ: Universidade Federal Fluminense, 2011. Mestrado em Direito. (Dissertação), 2011.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

BONAVIDES, Paulo. Direito constitucional. 25. ed. atual. São Paulo: Ma-lheiros, 2010.

Page 177: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 177

BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. Brasília, DF: OAB, 1989.

BORON, Atilio A. Estado capitalismo e democracia na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado,1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 10 jul. 2013.

BRESSER-PEREIRA Luiz Carlos. Desenvolvimento e crise no Brasil. São Pau- lo: Brasiliense, 1977. p. 21.

BRIGGS, Asa. The welfare state in historical perspective. In: PIERSON, C.; CASTLES, F. (Org.). The Welfare State Reader. 2. ed. Cambridge: Polity Press, 2006. Disponível em: <http://books.google.ca/books?hl=pt-BR&id=kSwy6f0PghMC&q=BRIGGS#v=snippet&q=BRIGGS&f=false> Acesso em: 25 maio. 2014.

BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho decente: uma análise jurídica da exploração, trabalho forçado e outras formas de trabalho indigno. São Paulo: LTr, 2004.

CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas? Tradução de Pedro Jorgensen Jr. 3. ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 2003.

CLÈVE, Clèmerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revis- ta de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 54, p. 38, jan./mar. 2006.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Moderna, 1998.

DRAIBE, Sonia; HENRIQUE, Wilnês. Welfare State, crise e gestão da crise. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo: ANPOCS, v.3, n. 6, p.53-78, 1988.

Page 178: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

178 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

DRAIBE, Sonia. A política social no período FHC e o sistema de proteção social. Revista Tempo Social. Vol 15. Ano 2.São Paulo. Nov. 2003

ELÍZAGA, Raquel Sosa. Desigualdad, exclusión y pobreza en américa latina: la inmensa deuda social del neoliberalismo. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, Fortaleza, Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, v. 11, n. 11, p. 155-166, 2011.

FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. Tradução de Luciana Carli. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

FUKUYAMA, Francis. Construção de Estados. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

FURTADO, Celso. Introdução ao desenvolvimento - Enfoque histórico-es-trutural. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

GADELHA, Regina Maria A. Fonseca. Globalização e crise estrutural in globalização, metropolização e políticas neoliberais. São Paulo: EDUC, 1997. p. 51.

GIDDENS, Anthony. Para além da esquerda e da direita. São Paulo: UNESP, 1996.

GOMES, Fábio Guedes. Conflito social e welfare state: Estado e desenvolvi- mento social no Brasil. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v.40, n.2, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003476122006000200003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 25 maio. 2014.

GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? Tradução de Claudia Berli-ner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção: Justiça e Direito).

HABERMAS, Jürgen. O Estado-Nação frente aos desafios da globalização. No-vos Estudos, CEBRAP, São Paulo, p.87-101, nov. 1995.

HAYEK, Friedrich August von. O caminho da servidão. Tradução e revisão Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. 5. ed. Rio de Janei-ro: Instituto Liberal, 1990.

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Fer-reira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991.

Page 179: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 179

HOLANDA, Marcus Mauricius. Análise constitucional do acesso ao traba- lho digno, como instrumento do desenvolvimento econômico e social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

IANNI, Octavio. Teorias da globalização. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 2004.

KEYNES, John Maynard. Liberalism and Labour. Essays in Persuasioll. New York/London: W. W. Norton, 1963, p. 344-345. Disponível em: < http://gutenberg.ca/ebooks/keynes-essaysinpersuasion/keynes-essaysinpersuasion-00-h.html > Acesso em: 05 jul. 2013.

KUTTNER, Robert. O papel dos governos na economia global. In: HUTTON, Will; GIDDENS, Anthony. No limite da racionalidade. Tradução Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Record, 2004.

LIMA, Renata Albuquerque. A atuação do Estado brasileiro e a crise empre-sarial na perspectiva da lei de falências e de recuperação de empresas. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2014.

MAILLART, Adriana Silva; SANCHES, Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini. Teoria de justiça de Amartya Sen: Da ética econômica ao desenvolvimento como liberdade. In: Anais do XX Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011. p. 3963.

MENDES, Maria da Conceição Meirelles. Os direitos sociais trabalhistas e o princípio da proibição do retrocesso social. Mestrado em Direito constitucional. (Dissertação). Fortaleza: UNIFOR, 2009.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito contemporâneo do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2011.

NOGUEIRA, Vera Maria Ribeiro. Estado de bem-estar social: origens e desen-volvimento. Katálysus, local, n.5, jul./dez. 2001.

NUNES, Antonio José Avelãs. Neoliberalismo e direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

Page 180: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

180 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

O’CONNOR, James. EUA: A crise fiscal do Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

POMPEU, Gina Marcílio Vidal; ANDRADE, Mariana Dionísio de. AYN RAND revisitada e a materialização dos direitos sociais. In: Anais do XX Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011.

PREBISCH, Raúl. O desenvolvimento econômico da américa latina e alguns de seus problemas principais. In: CEPAL. Boletín económico de América Latina, Santiago do Chile, v. VII, n. 1, 1962. Publicação da Organização das Nações Unidas, n° de venda: 62.II.G.I.

PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO – PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano 2013. A ascensão do Sul: Progresso humano num mundo diversificado. ONU, 2013. Disponível em: < http://www.pnud.org.br> Acesso em: 25 jul. 2013

QUEIROZ, Cristina. O princípio da não reversibilidade dos direitos fun-damentais sociais. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Forense, 1997. p.80.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

SCHWARTZMAN, Simon. Pobreza, exclusão social e modernidade: uma introdução ao mundo contemporâneo. São Paulo: Augurium, 2004.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Tei- xeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SEN, Amartya. Que significa ser humano? In: PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO – PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano, 2013. A ascensão do Sul: Progresso humano num mundo diversificado. ONU, 2013. Disponível em: <http://www.pnud.org.br> Acesso em: 25 jul. 2013, p. 24.

SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 212, p. 88-94, abr./jul.1998.

Page 181: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 181

SMITH, Adam. Riqueza das nações. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981. v. 1. p.176.

SODRÉ, Nelson Wernek. A força do neoliberalismo. São Paulo: Graphia Editorial, 1995.

TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multifuncional na era dos direitos. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 268.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional de direitos humanos. Porto Alegre: Sérgio Antônio Faoris, 1997. v. 1. p. 22-23.

WINCKLER, Carlos Roberto; MOURA NETO, Bolívar Tarragó. Welfare state à brasileira. Indicadores Econômicos FEE, Porto Alegre, v.19, n.4, p.108-150, 1992.

Page 182: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.
Page 183: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 183

repensando as estratégias de proteção pelo direito do trabalho: crise

econômica, declínio sindical e novas formas de organização do trabalho

na economia globalizada

Antonio Rodrigues de Freitas Jr.1

Resumo

O artigo reexamina os marcos da história econômica e social do Ocidente, desde a consolidação do welfare state até seu declínio, indicando o presente esgotamento das estratégias convencionais de proteção do trabalhador. Parti-cularmente para o Brasil, em que o modelo de regulação jurídica do trabalho foi instituído durante os anos trinta do século XX. Para determinar o conteúdo e o sentido da mudança jurídica necessitamos levar em conta os fatores que causaram o declínio do welfare state. E isso em razão do fato de que o welfare state foi não apenas o mais conhecido projeto político como aquele que chegou mais perto de conciliar democracia e distribuição de renda.

Palavras-chave

Proteção social; Direito do trabalho; Regulação jurídica do trabalho; Efeitos jurídicos da globalização; Crise do sindicalismo.

Abstract

The article reviews the milestones of economic and social history of the West, since the rise of welfare state until its decline, indicating the need for changes in the legal strategies for protection of workers. This is true particularly for Brazil, in which the legal frame devoted do labor regulation was established during the thirties of the 20th century. In order to determine the content and direction of

1 Professor Associado da Faculdade de Direito da USP, regendo disciplinas na Graduação e nas Áreas de Direitos Humanos e de Direito do Trabalho junto ao Programa de Pós-Graduação dessa unidade é Procurador Legislativo do Município e Diretor-Executivo da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo.

Page 184: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

184 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

legal change we need to take into account the factors that caused the decline of the welfare state. And that on account of the fact that the welfare state was not only the best known political project as one that came closest to reconcile democracy and income distribution.

Key words

Social protection; Labor law; Legal regulation for work; Legal effects of globalization; Union decline.

1. introdução

A estratégia analítica desta leitura consiste em reexaminar os marcos da ascensão e do declínio do modelo de proteção social subjacente à experiência do Estado-Providência ou welfare state como se tornaria mais conhecido.

Embora o Brasil esteja séculos de distância de algo que se pudesse qualificar como Estado de Bem-estar, chama atenção o fato de que as promessas de proteção social, constantes da Constituição brasileira de 1988, tenham sido inspiradas no repertório de direitos e no desenho institucional e político do welfare state, em especial no de sua apresentação europeia.2

Mais curiosa ainda parece ser a mistura, pelo Constituinte de 1988, de direi- tos sociais de inspiração no welfare state, e direitos sindicais radicado nos fundamentos do corporativismo de Estado dos anos 1930 do século XX. Uma mistura que, como veremos, aparece no cenário político brasileiro como hori-zonte à transição política para a democracia, coincidentemente, num momento em que economia brasileira passaria por duas décadas de recessão, moratória de dívida externa e hiperinflação.

De qualquer modo, porém, repensar as relações entre o direito do trabalho e a história social do Ocidente, permite-nos refletir: 1) em que medida faz sentido

2 A rigor, a literatura caracteriza a experiência dos países europeus como sendo aquela que caracteriza o welfare state. O caso norte-americano, particularmente durante os anos 1930 a 1940 do século XX, conquanto exiba diversas coincidências com a experiência europeia, ante as especificidades do papel do Estado na economia e da ausência de um forte sindicalismo programático, muitos autores tendem a qualificá-lo como uma espécie de welfare state mitigado.

Page 185: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 185

continuar buscando construir um welfare state para o Brasil, quando os países, que o experimentaram em sua plenitude, já não mais a ele se apegam? 2) será possível construir um welfare state num pais como o Brasil, que ainda não foi capaz de virar a página do modelo sindical e do modelo autoritário de proteção trabalhista construído nos anos 1930 do século passado? 3) além da crise do welfare state, que outros fatores estão a exigir um esforço de atualização e aperfeiçoamento do direito do trabalho, a partir sobretudo do fim dos oitenta do século XX?

É conhecida a tradição da literatura no campo do direito do trabalho, de con-ferir franco destaque à observância dos fatores históricos que o influenciaram. Algo que só encontra paralelo, talvez, na tradição do direito romano e no direito internacional.

Será o direito do trabalho “mais histórico” que outros ramos do direito?

Tudo indica que não: contingência e variação na história caracterizam todos os ramos do direito.

Se o direito do trabalho não é “mais histórico” que outros ramos do direito, para melhor compreender sua especificidade (seus princípios, sua mecânica de in-terpretação, etc.), é, porém, indispensável ter presentes certos fatores históricos. E isso numa intensidade talvez não tão necessária para o domínio de outras áreas da dogmática jurídica.

Diversos fatores explicam essa particularidade do direito do trabalho.

Embora o ser humano “trabalhe” desde sempre, 1) o “trabalho”, de que se ocupa o direito do trabalho, não existiu sempre, mas foi produto de um conjunto de fatores que caracterizam o que se convencionou chamar de modernidade 2) o ser humano, tutelado pelo direito do trabalho, é o homem “juridicamente livre” para “negociar” sua força de trabalho e não o escravo ou o servo, que foram a regra em outras formações sociais3; 3) a organização do trabalho, de cuja regulação

3 “La Révolution jette les bases juridiques du capitalisme en France: elle libère l’activité économique et le recours au travail d’autrui, autorizant la libre exploitation de cellui-ci et la constitution d’un marché du travail. Le Code Civil de 1804 recueille son héritage. 1) le régime corporatif est supprimé et la loi d’Allarde des 2-17 mars 1791 consacre la liberté du travail aussi bien indépendant que dépendant (dans les ateliers, les fabriques ou chez des ‘maîstres’.” (PÉLISSIER, SUPIOT, JEAMMAUD, 2008, p.9)

Page 186: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

186 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

se ocupam as normas trabalhistas, tornou-se, na modernidade, essencialmente 3.1). urbana, e 3.2) coletiva4

Por esses motivos é que se deve ressaltar que o disposto no Código de Hamu-rabi sobre o trabalho humano, cuja origem remonta a dezessete séculos antes de Cristo, diz muito pouco, se é que diz algo, respeitante ao que hoje se conhece como direito do trabalho5.

Acima de tudo, o que lhe confere maior nitidez e especificidade é ter o direito do trabalho surgido e se desenvolvido por função dos conflitos e das “irritações” produzidos sobre o sistema jurídico, por movimentos sociais que, em sua origem, postularam um projeto global de transformação do sistema político e jurídico.6

4 “En dehors de situations marginales, comme celle du particulier utilisant les services d’un(e) employé(e) de maison, l’employeur exploite une entreprise dont les salariés constituent le personnel. Si cet employeur est une personne physique, les qualités d’employeur et de chef d’entreprise se confondent. Si les salariés sont au service d’une personne morale (société, association, etc.), ces qualités se trouvent dissociées: l’employeur est cette persone morale, tandis que le chef d’entreprise est la personne physique (présidente, gérant, etc.) qui represente cette entité et assure à titre principal sa direction, excerçant en son nom et pour son compte les droits contractuels et pouvoirs del’employeur. Par ailleurs, de rapprots collectifs se nouent ou son établis para la loi au plan de l’entreprise. De plus, travaileurs salariés et employeurs sont organisés en groupements ou syndicats, ou représentés par ceux-ci, dans le cadre de leur profession ou brance d’activité. (...) L’objet du droit du travail s’élargit ainsi des rapports individuels aux rapports collectifs dans le cadre de l’entreprise, de la branche d’activité, ou à l’échelle de l’économie nationale tout entière. (PELISSIER, SUPIOT, JEAMMAUD, 2008, p 2-3)

5 Em sua obra de síntese MOAES FILHO (1986, 51) foi bastante eloquente a esse respeito: “Como não nos cansamos de repetir, a história do direito do trabalho, propriamente dito, começa somente depois da Revolução Francesa, durante o século XIX. Antes, o que houve foi pré-história. Confundem os autores a história das formas do trabalho humano, a sua regulação jurídica, com as atuais leis sociais, que também dizem respeito ao desempenho das tarefas econômicas em sociedade, mas com outro espírito, com outra intenção, com finalidade diversa (...) O direito do trabalho sé se tornou possível num regime político-social de formal liberdade, de respeito – pelo manos jurídico – à livre manifestação de vontade.”

6 A partir de uma perspectiva explicitamente inspirada na contribuição do sociólogo alemão Nicklas Luhmann, CAMPILONGO (2011, pp 195 e ss), tratando das relações entre interpretação jurídica e movimentos sociais, apresenta uma recuperação reflexiva da célebre contraposição entre o pandectismo da jurisprudência dos conceitos (PUCHTA, VON GERBER, o primeiro JHERING) e jurisprudência de interesses (HECK, VON RÜMELEIN e o JHERING da maturidade). Para o que importa aqui, Campilongo retira uma estimulante hipótese para a compreensão da tensão entre conceito e interesse que, no fundamental, sintetiza a principal tensão do direito moderno até nossos dias: a tensão entre um modelo que se pretende “científico”, conceitual, lógico e fechado X um modelo que se abre a uma utilização mais finalística, tecnológica e pragmática. Em outros termos,

Page 187: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 187

Não que outros ramos do direito não tenham sofrido o impacto dos movi- mentos sociais. O direito ambiental e o da relação de consumo, por exemplo, também refletem reequilíbrios do sistema jurídico como resposta à ação de movimentos sociais. A diferença é terem, esses chamados “novos movimentos sociais”, atuado “sem uma teoria global que reflet(isse) sobre essas ações, diferen-temente do que ocorreu, em geração anterior, com os movimentos socialistas” (CAMPILONGO, 2011, p. 158).

Sintetiza a específica historicidade do direito do trabalho uma célebre formulação que intitula um dos conhecidos trabalhos de Jean CRUET (1966): “os delitos operários de ontem como elementos dos direitos operários de hoje”. Por outro lado, a circunstância de ter sido produto de lutas sociais, inscritas no quadro mais amplo da utopia revolucionária, parece explicar boa parte da crise, por que também passará o direito do trabalho, a partir do esgarçamento das utopias socialistas simbolizado pela queda do Muro de Berlin.

Importa pôr em destaque que, apesar da vitalidade e do alto grau de organização e de elaboração político-doutrinária exibido por alguns setores do movimento

modelos de interpretação que enfatizam, respectivamente, o ângulo interno e o externo do direito. Voltaremos a esse problema mais adiante. Por ora registre-se apenas uma interessante hipótese de trabalho sugerida por CAMPILONGO (2011, p.217): “Traduzido em termos de teoria dos sistemas, pode-se redescrever a distinção entre conceito e interesse como forma auto/heterorreferência. Como em qualquer forma, um dos lados não existe sem o outro, que é sempre subentendido. A auto-referência (os conceitos jurídicos) permite o fechamento operacional do direito. Possibilita sua autonomia, redundância, consistência, formação de estruturas que poderão ser lembradas no futuro. Contudo, o direito não atua apenas de modo fechado. Ele é simultaneamente e paradoxalmente um sistema aberto. Somente existe enquanto diferença em relação a um entorno. E é através da combinação da observação do ambiente com a observação do próprio sistema que o direito evolui”. MORAES FILHO (1986, 38-39) , por premissas metodológicas bem diferentes, e focalizando em especial o direito do trabalho, afirma que em “nenhum outro ramo jurídico encontramos essas tarefas de mediador, de compromisso, de transição e de transação, entre duas classes sociais em confronto (...)”. ROUDIL (1980, pp 31-32) enfatiza que, «en se plaçant ainsi sur la schène politique, le prolétariat stimulera la formation d’une réglementation atténuant le rigueurs de l’exploitation. Non pas q’un droit fût recherché comme tel – la perspective se situe bien au-delà, elle est plus fondamentale – mais il apparaît comme un dérivé de l’action engagée. Pour sa part, la bourgeoisie trouve dans le droit un moyen de définir l’usage socialement tolérable du travail. Néanmoins, le seuil de tolérance n’est pas conçu à l’avance : il est empiriquement déterminé par la lutte du mouvement ouvrier et la résistance de la classe dominante. D’où la création constante de droit, mais avec de fortes variations d’amplitude selon les périodes et dans les avantages qu’il procure à l’un ou l’autre des antagonistes”.

Page 188: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

188 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

socialista e do movimento operário em seus primórdios (como foi o caso dos socialistas austríacos e da socialdemocracia alemã), somente nas primeiras déca-das do século XX alguns deles finalmente alcançariam êxito.

Chama a atenção que a primeira grande vitória da revolução, em nome do proletariado, ocorreu num país ainda não industrializado, com um proletariado pouco numeroso e situado fora do Ocidente Europeu: a Rússia dos Romanov. Com a soberania do Tsar já fragilizada pelo movimento de 1905, a Revolução Soviética finalmente se consolida sob a liderança da minoria bolchevista em outubro 1917.

Encontrava-se em pleno curso a I Grande Guerra, que devastaria a Europa durante o curto intervalo compreendido entre 1914 e 1918, produzindo em torno de 10 milhões de mortos e milhões de feridos e mutilados. (HOBSBAWM, 1995, pp. 55-58) Com o término da Guerra sepultaram-se ainda os horizontes de estabilidade nas fronteiras dos impérios coloniais, impondo-se, às ambições de nova partilha do planeta, o reconhecimento dos trabalhadores como atores políticos relevantes. Tenhamos presente que o êxito da revolução soviética tornou crível e ameaçadora a iminência de novas vitórias socialistas, impondo às elites vitoriosas a inclusão da questão social na agenda da reconstrução europeia.

2. do liberalismo imperial à democracia social: três momentos do estado-providência

Após o término da I Grande Guerra inicia-se o que se pode considerar como o primeiro momento do Estado-Providência. Esse itinerário será interrompido com a emergência dos totalitarismos no período inter-Guerras, retornando mais adiante, já sob o signo da bipolaridade que se instalará num mundo dividido entre o Ocidente e os países ao leste da Cortina de Ferro7. Temos, a partir de meados dos anos quarenta, um segundo momento do Estado-Providência, com sua forte consolidação e expansão. Com o prolongamento dos efeitos das crises do petróleo em 1973 e 1979, partir da segunda metade dos anos oitenta do século XX, o Estado-Providência entra no que se pode chamar de um terceiro momento,

7 Estados integrantes da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e das oito repúblicas socialistas do Leste Europeu.

Page 189: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 189

revelador de seus limites, sua aptidão para também produzir crises econômicas e insatisfações sociais, bem como, a partir de 1989 (com a queda do Muro de Berlim), certa exaustão de sua centralidade porque já fora de horizonte qualquer ameaça de revoluções socialistas.

2.1. primeiro momento

Há tratados de paz e verdadeiros tratados “de guerra”. O Tratado de Versalhes, subscrito em 1919, a exemplo dos tratados de 1648 em Westphalia, foi talvez um bom exemplo de tratado de guerra8 Também como na “paz” de Westphalia, a humilhante rendição imposta à Alemanha, em 1919, em lugar de compromissar os signatários com a paz, viabilizando mecanismos políticos para sua estabili-dade, parece ter servido mais como antevéspera da conflagração de 1939-1945. É amplamente aceito, entre observadores desses confrontos, que nas assimetrias e imperfeições do tratado de 1919 residem alguns dos principais fatores que ensejariam, em pouco tempo, a deflagração da II Grande Guerra.9

O economista inglês John Maynard Keynes, que integrou a delegação britânica na Conferência de Paz de que resultaria o Tratado de Versalhes foi, possivelmente, a voz mais abalizada entre os severos críticos de suas assimetrias. Logo em 1919, Keynes publica seu conhecido “As Consequências Econômicas da Paz”, que alcançaria grande repercussão e edição em vários idiomas, já no curso

8 Refere-se, aqui a tratados “de guerra”, não propriamente para designar aqueles nos quais os signatários ajustam compromissos recíprocos de aliança para defesa comum (NATO, Tríplice Aliança, etc.). De modo diverso, tenho em mente aquela espécie de tratados em que se celebra mais o êxito dos vencedores, que o horizonte de paz alcançado com o término da guerra. Exemplo muito semelhante ao de Versalhes, são os tratados de 1648 em Westphalia. À semelhança de Versalhes em 1919, os tratados de Westphalia mais reverenciaram a traição da França à causa imperial católica, enalteceram a humilhação da Casa de Habsburgo e o esfacelamento do Sacro Império Romano-Germânico, que eventuais predicados pacificadores decorrentes do término da Guerra dos Trinta Anos.

9 Para HOBSBAWM (1995, pág. 42-43), “não é necessário entrar em detalhes da história do entreguerras para ver que o acordo de Versalhes não podia ser a base de uma paz estável. (...) a situação mundial criada pela Primeira Guerra era inerentemente instável, sobretudo na Europa, mas também no Extremo Oriente, e portanto não se esperava que a paz durasse. A insatisfação com o status quo não se restringia aos Estados derrotados, embora estes, notadamente a Alemanha, sentissem que tinham bastantes motivos para ressentimento, como de fato tinham”.

Page 190: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

190 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

dos anos vinte do século XX, e o faria viver duas décadas de forçado afastamento das atividades públicas. Nessa obra, Keynes afirma que:

o Tratado não inclui cláusulas para a recuperação econômica da Europa - nada que transforme em bons vizinhos os Impérios Centrais derrotados, nada que estabilize os novos Estados da Europa, nada que tente recuperar a Rússia; nem promove, de qualquer maneira, a solidariedade econômica compacta entre os Aliados; em Paris, sequer se atingiu um acordo para restaurar as finanças desordenadas da França e da Itália, ou para ajustar os sistemas do Velho Mundo aos do Novo. (KEYNES, 1985, pág. 54)

Por outro lado, Versalhes constitui uma novidade entre acordos de pós-guerra: a inclusão da temática trabalhista no rol dos compromissos firmados em tratados internacionais. A Parte XIII do Tratado (arts. 387 a 399) dispôs sobre a criação da Organização Internacional do Trabalho – OIT, então constituída por três órgãos: a Conferência, o Conselho de Administração e o Secretariado. Nota característica da OIT foi, desde o início, sua composição seguindo o parâmetro do “tripartismo”, isto é, colegiados deliberativos (Conferência e Conselho) compostos por representantes de empregadores, de empregados e represen- tantes governamentais10.

As novidades da Liga das Nações, idealizada por inspiração de um conhe- cido argumento racionalista, externado por Immanuel Kant na obra “A Paz Perpétua” de 1795, não se limitaram à criação da OIT. Outras temáticas foram objeto dos organismos que a compunham, como o Comitê para Refugiados, Comitê para Estudo do Estatuto da Mulher, Comissão da Escravatura (visando à sua erradicação em escala planetária), a Organização de Saúde e o Conselho Permanente do Ópio. Suas fragilidades, que explicam em parte seus principais insucessos, residiram em não congregar algumas daquelas que seriam as nações mais ricas e poderosas após a I Guerra: os Estados Unidos, a União Soviética (que só a integraria em 1934), a humilhada Alemanha (que a ingressaria somente pelo Tratado de Locarno, de 1925) e a Turquia. Consumado o fracasso, a Sociedade extingue-se em 1942 sem ter sido jamais integrada pelos Estados Unidos da América.

10 A OIT nasce como agência da extinta Sociedade ou Liga das Nações, cuja criação foi disposta na Parte I do Tratado de Versalhes.

Page 191: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 191

Os últimos anos dessa década produziriam ainda dois marcos da afirmação do direito do trabalho: a Constituição do México de 1917, e a Constituição de Weimar de 1919.

À Constituição do México de 1917 atribui-se o pioneirismo de incluir, entre seus artigos, expressas disposições contendo direitos trabalhistas. Em seu conhecido art. 123, contento trinta e um incisos, figuravam regras referentes à limitação de jornada, trabalho noturno, salário mínimo, organização sindical, direito de greve, solução de conflitos trabalhistas e proteção previdenciária. A estratégia de produzir legitimidade política, mediante a inclusão de regras e princípios de proteção trabalhista e previdenciária na dicção do texto da Constituição, amplamente difundida com as Constituições do segundo pós-Guerra, é conhecida como “constitucionalismo social”.

Já a Constituição da República Alemã de Weimar, de 1919 , de forma um tanto mais genérica e imprecisa, também exibe diversos artigos contendo disposições semelhantes aos da Constituição mexicana. Embora muitos autores a incluam na linhagem do constitucionalismo social, o Texto revela, sob o ângulo sistêmico, um programa político mais ambicioso e peculiar. Patenteia-se uma estratégia de legitimação que compreende o reconhecimento dos trabalhadores como atores políticos relevantes. Isso desde a instituição de conselhos de empresa com participação de trabalhadores (art. 165), passando pela permissão de expropriação e socialização de empresas, da criação de unidades produtivas segundo preceitos do “coletivismo” e com a participação de trabalhadores e empresários (art. 156), indo até a previsão de que o trabalho seria posto “sob a proteção particular do Estado” (art. 157).

Resta claro que em Weimar não se pretendeu apenas a “constitucionalização de direitos sociais”. Nela se procurou fundar um modelo gradual, progressivo e concertado de socialismo11: com 1) proeminência do Estado na regulação da

11 It was through this strategic realignment that socialism eventually embraced the welfare state as the focus of its long-term project. It is in this sense that social democracy becomes synonymous with welfare-statism”. (ESPING-ANDERSEN, 1990, pág. 45) Em sentido um tanto diverso, q.v. EWALD (1986, pág. 531) para quem “l’État providence ne soit ni la correction de l’État liberal ni une etape de transition vers un État socialiste, qu’il constitue donc une réalité sui generis». (ou seja) «une realité irreductible au liberalisme et dont l’avenir socialiste».

Page 192: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

192 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

economia e na distribuição social da riqueza, 2) previsão da participação dos trabalhadores, como classe, nas instâncias públicas e privadas de decisão; e 3) preservação, embora mitigada, da propriedade privada e do mercado.

Weimar lança as bases de um novo modelo de pacto político, fundado no com- promisso entre preservação da ordem jurídico-democrática e distribuição da riqueza por meio do Estado. Grosso modo: um projeto político-constitucional tipicamente europeu, fundado na ambição de reunir, sob o manto arbitral do Estado, o capital e o trabalho.

Num cenário mundial, contaminado como vimos pela exacerbação de con-flitos entre Estados e entre classes (I Grande Guerra, Revolução Soviética, etc.), e por projetos políticos a germinar utopias totalitárias, o pacto de Weimar surge num momento em que não estavam ainda dadas as condições para a sua consolidação. Tenderia a não durar no tempo, como de fato não durou, sepultado logo mais pelo insucesso econômico e pelo advento da tormenta nazista.

De qualquer modo, embora antes do seu tempo, Weimar prenuncia os fundamentos do pacto político denominado, mais tarde, Estado-Providência (também chamado Estado de Bem-estar Social ou welfare state)

A evolução do Estado-Providência, como projeto político e social, sempre es- teve associada, em grande medida, à redução da oportunidade de revolução, por parte das organizações de trabalhadores, mediante a intervenção do Estado na eco-nomia, como instrumento de distribuição da riqueza e de regulação do mercado.

Algo como um pacto entre as organizações de trabalhadores (que aceitariam as regras da competição eleitoral e da propriedade privada), e as elites empresa- riais (que consentiriam com um gradual, mas contínuo, processo estatal de distribuição de rendas e de aceitação de direitos sociais).12 Nesse amálgama

12 “To Eduard Heiman (1929), one of the foremost theoreticians among his contemporaries, social policy was Janus-faced: it may very well be a means to prop up and save the capitalist system, but at the same time it is also a foreign body, threatening to emasculate the rule of capital. Armed with this kind of analysis, socialism could also defend the gradualist strategy against the more apocalyptic scenario presented in revolutionary communist dogma. (…) It is in the quality and arrangement of social rights, not in their existence per se , that we can identify a distinct socialist approach. In contrast to the conservative models, dependence on family, morality, or authority is not the substitute for market dependence (…) And, in

Page 193: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 193

deveriam estar presentes ao menos os seguintes fatores: 1) organizações de traba- lhadores fortes e potencialmente ameaçadoras à ordem política, 2) empresariado em condições materiais de tolerar contínuos, ainda que graduais, encargos distributivos, 3) Estado forte para intervir na economia e promover o reco-nhecimento de direitos, embora sob governos, em geral gabinetes parlamentares de coalizão, ambíguos em seus compromissos de classe.

Fica evidente que o Estado-Providência, resultado da convergência de deter-minados fatores políticos, não foi um fenômeno social que se materializou apenas pela vontade de governantes. Não foi criado pela dicção da norma jurídica, nem pela construção pretoriana simpática aos princípios doutrinários do “Estado Democrático de Direito”. Não resultou de uma doutrina de justiça e sim de um imperativo de estabilidade política para a ordem democrática, num determinado momento da história da Europa ocidental.

Por ser um projeto político de preservação e de aprofundamento da agenda democrática, o Estado-Providência também não resistirá à sombra do período totalitário, que marcará a Europa por duas décadas, a partir de meados dos anos vinte do século XX. Tampouco guarda semelhança com os modelos autori- tários e impositivos de colaboração de classes, característicos das experiências políticas e das doutrinas corporativistas também desse período13.

Por esse motivo, como veremos logo mais, o apogeu do Estado-Providência so-mente ocorrerá com a reconstrução europeia, após o término da II Grande Guerra.

2.2. o intervalo inter-guerras

No decorrer do período inter-Guerras (1919-1939), uma única experiência merece ser lembrada, cronologicamente situada entre o primeiro e segundo mo-mento do Estado-Providência: a América de Franklin Delano Roosevelt14.

contrast to liberalism, socialism’s aim is to maximize and institutionalize rights” (ESPING-ANDERSEN, 1990; pp. 45-47)].

13 Retornaremos ao detalhamento deste período na Leitura 2, focalizando a influência do corporativismo europeu sobre o direito do trabalho na história brasileira.

14 Alçado à Presidência norte-americana em 1933, o democrata Roosevelt governa os Estados Unidos, com três reconduções sucessivas (possível até a Emenda XXII de 1951), até seu falecimento em 1945.

Page 194: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

194 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Muito semelhante à experiência europeia do Estado-Providência, guarda com essa, porém, significativas diferenças (não por acaso, chamada por alguns de “welfare state mitigado”). A começar pelo fato de se tratar de um regime presidencial típico, não europeu, um país com escassa tradição de legislação trabalhista e que jamais esteve sob a ameaça de revolução protagonizada por organizações trabalhistas. Mas a principal diferença talvez decorra do fato de que o Estado norte-americano, conquanto tenha crescido em seu tamanho e em suas atribuições econômicas e sociais, jamais adquiriu a centralidade ocupada pelo Estado nas formações europeias caracterizadas pelo Estado-Providência.

Trata-se de uma tentativa, que se revelará exitosa, de aplicação de medidas econômicas inspiradas no intervencionismo preconizado pelo economista britânico John Maynard Keynes, para controlar a imensa crise econômica que assolou os Estados Unidos, a partir da crise da Bolsa de Nova York de 1929 (o chamado “New Deal”).

Mas não só. As inovações institucionais e jurídicas introduzidas por Roosevelt foram além da mera restauração econômica, produzindo uma transformação política de grande alcance e ineditismo. Isso para uma América até então essencialmente individualista, e num Estado até então refém da crença em supostas virtudes autorregulatórias do mercado.

Do ponto de vista do direito do trabalho, as iniciativas legislativas de Roosevelt também merecem realce. Antes de sua ascensão à Presidência, a legislação trabalhista americana se resumia a alguns poucos, tímidos e dispersos documentos legais. O único digno de realce apareceu já sob o signo da reação à crise econômica, que se estenderia desde 1929: a Norris-La Guardia Act (Anti-Injuction Act -1932)15.

15 Uma Lei que se explicava mais pelo propósito de pôr termo à utilização das ordens de injunction, originariamente previstas pela Sherman-Act de 1890, para reprimir os movimentos trabalhistas. A Sherman-Act de 1890, lei pioneira de direito econômico, fora concebida para coibir práticas anti-concorrenciais e promover a tutela do mercado para a livre concorrência. Por criação pretoriana, fixada no precedente caso Danbury Hatters, em 1909, seria largamente empregada para coibir greves e movimentos trabalhistas, sob o fundamento de que constituíam práticas atentatórias aos princípios da concorrência entre empregadores. (ATLESON, 1984, pp. 44-47).

Page 195: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 195

O documento legal pioneiro da Era Roosevelt foi a Wagner Act (1935), que criou uma série de institutos promocionais para a negociação coletiva do trabalho, entre os quais a exigência da conduta de “boa fé” para empresários, e instituiu uma agência reguladora das relações trabalhistas (National Labor Relations Board). 16 Logo após, já no chamado “segundo estágio” do New Deal, em agosto de 1935, é publicada a Social Security Act, instituindo um programa previdenciário extensivo a idosos e a desempregados, inicialmente no importe de 2% sobre a folha de pagamento.17 Já no “terceiro estágio” do New Deal, o Governo institui o salário mínimo e detalha disposições referentes ao trabalho infantil por meio da Fair Labor Standards Act (1938).

Com o término da II Guerra algumas das conquistas trabalhistas da Era Roosevelt sofreriam em breve certo retrocesso (de que são exemplares algumas disposições da Taft-Hartley Act - 1947), emendando a Lei Wagner de 1935. Portanto, já num cenário conservador de hostilidade à ação sindical, o qual dominaria o direito norte-americano durante a chamada “Guerra Fria”. Não, porém, ao ponto de restabelecer integralmente o quadro institucional anterior a 1929.

2.3. segundo momento

A partir do término da II Grande Guerra, a reconstrução da Europa e do Japão será considerada imperativo estratégico para a consolidação da hegemonia norte-americana, protagonizando os interesses do Ocidente no cenário da “guerra fria”18.

16 Em 1937 a Suprema Corte declarou a constitucionalidade da Lei Wagner no caso NLRB X Jones and Laughlin Steel Co.

17 Hoje atingindo algo em torno de 10,4%, mediante contribuições do empregado (4,2) e do empregador (6,2).

18 Por “Guerra Fria” denominou-se o período de competição entre Estados Unidos da América e União Soviética, pelo controle geopolítico do planeta então marcado pela bipolaridade entre ambos. Isso ocorreu após o término da II Grande Guerra e a explicitação da chamada “doutrina Truman” (1947), que preconizava o bloqueio da expansão soviética, estendendo-se até o início da chamada Era Gorbatchev, na segunda metade dos anos oitenta. O fim da bipolaridade, entretanto, somente se consolidará com a desagregação do domínio soviético, marcada pela queda do Muro de Berlim (1989), pela independência das oito Repúblicas do Leste Europeu, e pela extinção formal da União Soviética com a subsequente independência das quinze Repúblicas que a integravam.

Page 196: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

196 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Essa percepção orientou o empenho norte-americano em investir aproxi-madamente 70% dos 13 bilhões de dólares de empréstimo, para o extraordinário patrocínio da reconstrução europeia, que viria a ser conhecido como o Plano Marshall19. Quantia menos expressiva seria devotada pelos Estados Unidos ao Japão, ao menos até a eclosão da Guerra da Coréia, em meados de 1950, quando novamente se restaura grandeza estratégica do Japão para a estabilidade geopo-lítica da Ásia, então contaminada pela bipolaridade da “guerra fria”.

Numa competente e conhecida resenha da literatura sobre o nascimento e os sinais de exaustão do Estado-Providência, DRAIBE e HENRIQUE (1988, pp. 54-55) observam que a maioria das economias capitalistas teria experimentado, no pós-guerra, um crescimento econômico inusitado, que viria acompanhado pela expansão de programas e sistemas de bem-estar social. Para a maioria dos analistas, observam, teria ocorrido:

uma parceria bem-sucedida entre a política social e a política econômica, sustentada por um consenso acerca do estímulo econômico conjugado com segurança e justiça sociais. Teria havido mesmo um ‘círculo virtuoso’ entre a política econômica keynesiana20 e o welfare state: aquela regula e estimula o crescimento econômico; este por sua vez, arrefece os conflitos sociais e permite a expansão de políticas de corte social, que amenizam tensões e, no terceiro momento, potenciam a produção e a demanda efetiva

Os fundamentos da regulação estatal da economia estão, de fato, entre as proposições do repertório de John Maynard Keynes. É importante ter presente, entretanto, que muitas das experiências de Estado-Providência foram além do que o economista britânico preconizara. O próprio KEYNES (1982, pág. 288), em sua obra teórica mais conhecida, pontificava que “fora a necessidade de um controle central para manter o ajuste entre a propensão de consumir e o estímulo para investir, não há mais razão para socializar a vida econômica.”

Cabe esclarecer que a extraordinária expansão, no plano do reconhecimento dos direitos sociais, promovida pelo Estado-Providência, observou predominan-temente uma técnica peculiar. Se em outras formações históricas os direitos sociais

19 Em referência ao Secretário de Estado norte-americano, George Marshall.20 Referente à doutrina do economista britânico John Maynard Keynes.

Page 197: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 197

foram reconhecidos especialmente mediante a produção de leis, dispositivos constitucionais e jurisprudência, no Estado-Providência o processo de expansão obedeceu à estratégia do fomento da chamada autonomia privada coletiva21. Ou seja, pelo estímulo, por parte do Estado, à produção de entendimentos negociais entre trabalhadores (por seus sindicatos ou centrais sindicais), e empregadores (por suas entidades de classe), sob a forma, seja de convenções coletivas, seja de protocolos ou compromissos em nível de pactos sociais. (FREITAS JR., 1993; GAROFALO, 1990).

As normas trabalhistas de estímulo ao reconhecimento de direitos sociais, por meio da negociação coletiva, são habitualmente designadas normas de direito promocional (GIUGNI, 1997, pp. 90 e ss.), Em lugar de prescrever direitos trabalhistas imediatamente exigíveis pelos trabalhadores, o conteúdo das normas de direito promocional contempla incentivos, facilidades, institutos procedimentais, direitos negociais e legitimação, às organizações representativas de trabalhadores e de empregadores, para que essas, no exercício da autonomia coletiva, produzam negócios jurídicos coletivos (acordos e convenções coletivos, pactos, etc..). Por esse motivo as normas de direito promocional, no âmbito da dogmática jurídica, são também chamadas normas instrumentais ou normas de direito-meio. São os negócios jurídicos coletivos, esses sim que contém cláusulas dispondo sobre direitos imediatamente exigíveis pelo trabalhador e oponíveis ao empregador.

2.4. terceiro momento

O sucesso alcançado pelo Estado-Providência, nas três décadas que seguintes ao término da II Guerra, fez com que muitos observadores acreditassem que o itinerário de crescimento econômico, prosperidade cultural e expansão de direitos sociais, consistiria num processo irreversível.

21 A literatura de Direito Coletivo do Trabalho, também chamado Direito Sindical, define autonomia privada coletiva como o poder, que se confere aos grupos sociais (“coletiva”), de regulamentar os próprios interesses. Algo na linha da atribuição pelo direito contemporâneo, da autonomia privada, aos grupos sociais (trabalhadores, associações empresariais, de consumidores, etc.). Para a noção de autonomia coletiva, além do clássico PERSIANI (1972), veja ainda NASCIMENTO (1995, pp. 594-595) e MAGANO (1984, pp. 188 e ss.).

Page 198: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

198 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Em meados dos anos setenta do século XX já estariam dados os indícios de que esses prognósticos, demasiadamente otimistas, não se confirmariam.

A primeira das duas crises do petróleo dessa década, em 1973, evidenciou muitas das fragilidades do crescimento capitalista no pós-guerra, algumas das quais intimamente relacionadas à definição do petróleo como matriz energética. Um combustível fóssil até então relativamente barato, mas que por razões tecnológicas, econômicas e geológicas, era produzido predominantemente no Oriente Médio. Seis anos após a Guerra dos Seis Dias, a deflagração de uma segunda ofensiva militar por Israel (conhecida como Guerra do Yom Kippur), em 1973, provocou uma extraordinária e súbita elevação do preço do barril, como retaliação por parte dos países integrantes do cartel de produtores de petróleo (Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP, criada com o Tratado de Bagdá em 1960). Já a segunda das crises dessa década ocorreu em 1979 e teria suas causas relacionadas à deposição do Xá Reza Pahlevi e a Revolução Islâmica no Irã, um dos países integrantes da OPEP.

Para além dos efeitos econômicos imediatos, as crises de 1973 e 1979 tornar-se-iam marcos do final da exuberante e persistente expansão econômica experimentada pelos países capitalistas do Ocidente, desde o segundo pós-guerra. Estava evidente, portanto, que a economia poderia ter – como de fato teve – um momento de estagnação; com evidentes efeitos sobre o processo de distribuição de renda, oportunidades e direitos, característico do Estado-Providencia.

Por outro lado, no interior das próprias economias nacionais dos Estados capitalistas, a persistência de estagnação econômica pautaria a centralidade de inúmeras medidas voltadas à promoção do equilíbrio fiscal e à intensificação da eficiência do aparelho burocrático do Estado. Isso importaria, em grande medida, na adoção de duas ordens de ajustes: 1) revisão de benefícios sociais relacionados notadamente à aposentadoria, por função da rápida elevação da expectativa de vida e dos efeitos que a diminuição de postos de trabalho ocasionou sobre a capacidade contributiva dos trabalhadores em atividade e, 2) tratamento dos custos e dos sinais de ineficiência na máquina pública, geometricamente crescentes por decorrência da expansão das políticas sociais que, no Estado-Providência, executavam-se diretamente pelo aparelho do Estado.

Page 199: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 199

Na primeira dessas ordens é evidente que as iniciativas de ajuste encontrariam e obstáculos severos das próprias organizações de trabalhadores (sindicatos e partidos de esquerda), que constituíam um dos – senão o mais importante dos - pilares de sustentação das coalizões parlamentares.

Na segunda delas – custos e ineficiência da máquina – qualquer medida teria pela frente a firme resistência corporativa de funcionários – então em número e dotados de capacidade de ação política bastante apreciáveis. Mas não é só. Em alguns serviços públicos (transporte, saúde terapêutica, etc.) um ganho de eficiência, em escala relevante, implicaria algum tipo de parceria com a iniciativa privada. Em razão do prolongamento da crise, dos custos do emprego formal, e da elevada tributação (própria à grandeza das ambições distributivas e compensatórias do Estado-Providência), o empresariado perderia considerável capacidade de investimento, além da inibição previsível para investir junto a um Estado agigantado e acuado pelo quadro de crescente desequilíbrio fiscal.

Um dos mecanismos de legitimação característicos do Estado-Providência consiste precisamente na sua aptidão para assimilar, de modo crescente e variado, novas demandas por políticas públicas. Lembre-se que o “pacto” em que se origina o Estado-Providência não implicou o “compromisso com as regras do jogo”, em troca de um pacote delimitado e predefinido de benefícios sociais. A contrapartida consistiu na aceitação de um itinerário progressivo de concessões (“conquistas sociais”). Se num primeiro momento foram assimiladas demandas por trabalho decente e estável (demandas de primeira ordem22), num segundo aparecem demandas referentes a saúde, educação, moradia e segurança. Satisfeitas essas demandas, à custa de nova expansão na carga tributária, surgem demandas relacionadas a lazer, cultura, equilíbrio urbano, ambiental, etc.. Essa trama espiralada e crescente de demandas, a partir do momento em que o Estado passa a exibir limites em sua capacidade de promover elevação na carga fiscal, acabou por engendrar um processo vicioso de desalento e, paradoxalmente, de crise de legitimidade. Uma crise que se explica não pelas “conquistas sociais” reconhecidas, mas por aquelas que o Estado teria dificuldade em satisfazer. Esse fenômeno, sob

22 Chamam-se aqui de demandas de primeira ordem as reivindicações preexistentes ao compromisso (pacto) que origina o Estado-Providência.

Page 200: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

200 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

dois ângulos distintos, seria capturado por autores diferentes, como O’CONNOR (1977) e HABERMAS23 (1987), por intermédio, respectivamente, das noções de “crise fiscal” e de “esgotamento das energias utópicas”.

A utopia de uma sociedade do trabalho perdeu sua força persuasiva — e isso não apenas porque as forças produtivas perderam sua inocência ou porque a abolição da propriedade privada dos meios de produção manifestamente não resulta por si só no governo autônomo dos trabalhadores. Acima de tudo, a utopia perdeu seu ponto de referência na realidade: a força estruturadora e socializadora do trabalho abstrato”. (HABERMAS, 1987, p. 106)

O itinerário percorrido pelo Estado-Providência, na direção do atendimento de demandas crescentemente abstratas, produziria o paradoxo de evidenciar a limitação e a finitude do próprio Estado, como instrumento de produção de bem-estar imaterial. E com essa finitude, seu desencantamento como leito de utopias, crenças, desejos e expectativas.

3. crise da proteção social num século que se nega a começar

Nas três décadas, que se seguem à crise do Estado-Providência e à derrocada do regime soviético (1980 a 2010, aproximadamente) veremos a economia do Ocidente exibir sucessivos episódios de crise, e uma forte reabilitação de doutrinas conservadoras por alguns chamadas “neoliberais”24.

23 “(...) Os legitimistas são hoje os verdadeiros conservadores, que gostariam de consolidar o já conquistado. Eles esperam encontrar novamente o ponto de equilíbrio entre o desenvolvimento do Estado social e a modernização via economia de mercado. O equilíbrio rompido entre a orientação democrática dos valores de uso e a moderada autodinâmica capitalista deve ser restaurado. Esta programática fixou-se na preservação das conquistas do Estado social. Mas ela desconhece os potenciais de resistência que se acumulam no rastro de uma progressiva erosão burocrática dos mundos da vida comunicativamente estruturados livres da ordem natural de desenvolvimento; tampouco leva a sério os deslocamentos das bases sociais e sindicais em que as políticas do Estado social puderam se amparar até agora. Tendo em vista o realinhamento do corpo de eleitores e o enfraquecimento da posição sindical, essa política vê-se ameaçada por uma corrida desesperada contra o tempo”. (HABERBAS, 1987, pp. 106-110)

24 Período que muitos autores apontariam como caracterizado pelo domínio político de lideranças conservadoras (tendo Ronald Reagan e Margaret Thatcher por pioneiros, respectivamente nos

Page 201: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 201

Num primeiro momento a crise envolveu países situados na semi-periferia do capitalismo (México, Brasil, Rússia, Israel, Coréia, Peru Argentina, etc.); muitos dos quais imersos num processo asfixiante de endividamento e de in- flação descontrolada.

Ao término dessas três décadas de modesto crescimento, quando não de verdadeira estagnação econômica no coração do capitalismo, a economia norte-americana sofre um sério abalo no sistema de crédito, iniciado com a crise nas carteiras de crédito habitacional. Momento dramático, dessa que foi a mais severa crise da economia norte-americana desde 1929, deu-se com o anúncio da concordata do Lehman & Brothers em setembro de 2008. Instituição sesquicentenária, aparentemente sólida, um banco de investimento com negócios de vulto em diversos outros países, e que se somaria a outros bancos de considerável importância, como o Bear Stearns e o Merrill Lynch. A tragédia foi momentaneamente contida pelos empréstimos concedidos pelo Departamento do Tesouro norte-americano, mas revelaria, junto à elevação do desemprego e o crescente endividamento do país - há anos envolvido com elevados custos de guerra (Irã-Iraque, Afeganistão, Iraque, etc.) - um quadro de onerosa e imprevisível recuperação.

Logo em seguida à crise norte-americana (e em grande medida estimulada por ela), a União Europeia em 2011 será desafiada pela necessidade de socorrer algumas economias integrantes do sistema monetário do Euro (Grécia, Portugal, Espanha e Itália), impondo limites ao crescimento de todas as economias envolvidas, em especial para a Alemanha e França.

Tudo somado às dificuldades econômicas enfrentadas pelo Reino Unido em 2010 e à crise japonesa decorrente de catástrofes climáticas em 2011, temos em 2011 o início da década caracterizada por uma desafiadora agenda de ajustes nas economias centrais do capitalismo, que exibe fortes sinais de que pode produzir um quadro de recessivo.

Ajustes decorrentes da necessidade de fazer frente a um quadro de crise que não mais se explica como efeito da crise do Estado-Providência, mas que, por outro lado, também não se apresenta como fruto de um cenário econômico de

Estados Unidos e no Reino Unido) e pelo sucesso, ainda que um tanto fugaz, de doutrinas econômicas que, sob o signo da exaustão do Estado-Providência, postularam uma espécie de retorno ao liberalismo econômico em sua acepção mais ortodoxa e anti-intervencionista.

Page 202: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

202 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

contornos relativamente estáveis. Algo como se vivêssemos, por trinta anos, a transição inconclusa para um século que resiste em começar.

É bem verdade que alguns países conseguiram reorganizar suas economias e puderam experimentar um expressivo crescimento econômico no início do Século XXI. Esse o caso da China, do Brasil, e da Índia. Um crescimento, porém, que de- verá encontrar limites decorrentes do quadro de ajustes a que se referiu, mesmo que em meio a esses movimentos, possam-se ver indícios da superação do absoluto domínio econômico norte-americano que remonta ao final da II Grande Guerra.

4. dois desafios ao direito do trabalho: crise eco-nômica e transformações na organização do trabalho

4.1. trabalho e crise econômica

O direito do trabalho não sairia ileso dessas crises.

Costuma-se afirmar – e com boa dose de razão – que o direito do trabalho e os direitos sociais, em geral, têm sua condição de possibilidade indexada à economia. Com efeito, conquistas trabalhistas dependem de ambientes econômicos nos quais se realizem excedentes25. Não quer isso dizer, por outro lado, que um ambiente econômico favorecido pelo crescimento traga como subproduto, invariavelmente, expansão de direitos sociais, redução da desigualdade, nem mesmo automático alívio da pobreza. Vimos, por exemplo, como o crescimento econômico do primeiro período da Revolução Industrial trouxe poucos benefícios sociais e muita pobreza absoluta.

Importa realçar que fatores originados com 1. a crise do Estado-Providência e 2 as crises econômicas das últimas três décadas, impuseram ao direito do trabalho uma agenda defensiva.

25 Excedentes podem provir da própria empresa, mediante ganhos de produtividade, ou do ambiente, resultado de ofertas a preços menores, ou da decisão de consumidores pela compra apreços mais elevados. Excedentes podem “ser partilhados segundo modalidades diversas: a empresa pode guardar o excedente não modificando os seus preços. Neste caso, põe-se a questão da partilha entre detentores de capitais e assalariados. Se os salários aumentarem, o excedente reverte para os trabalhadores; se os lucros crescerem, os detentores dos capitais recebem uma fração do excedente. A empresa também pode aplicar o excedente em benefício de seu ambiente (fornecedores e clientes)”. (GÉLÉDAN e BRÉMOND, 1988, pág. 80).

Page 203: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 203

Seja em países que viveram os anos de ouro do Estado-Providência, seja na-queles como o Brasil (em que vigora o padrão do constitucionalismo social, acompanhado de uma forte tradição de regulação dos direitos sociais por meio de leis), o direito do trabalho aparece acuado.

Acusado de rigidez excessiva, e de ocasionar elevado custo, sob a forma de be-nefícios e tributos, não faltam até mesmo vozes que o responsabilizem pelo déficit concorrencial frente a produtos fabricados em países com reduzida “proteção trabalhista”.

Não é aqui o momento de abrir a discussão sobre esse fenômeno26, nem tampouco acerca de seu verdadeiro alcance. O ponto a destacar consiste no fato de que o direito do trabalho, malgrado a incorporação de algumas novas áreas de proteção27, tem revelado um quadro de estagnação, quando não de verdadeiro retrocesso.

26 No que se refere especialmente aos tributos e encargos que incidem sobre o fator trabalho, algumas das quantificações correntes apontam para algo em torno de 102% sobre o valor do custo líquido do trabalho no caso do Brasil, sendo certo que o que se mostra ainda mais grave é a rigidez com que dita carga tributária é aplicada. Seguindo o roteiro de José (PASTORE, 1995), é interessante notar, à maneira de comparação, que na Europa aproximadamente a metade dos tributos e encargos, que totalizam algo em torno de 60%, é negociável; nos Estados Unidos da América, de uma carga total de 40%,15% é composto de tributos e encargos negociáveis; no Japão a carga de tributos e encargos incidente sobre o fator trabalho gira em torno de 12%; e nos chamados Tigres Asiáticos o percentual é de apenas 10%. De qualquer modo, a despeito da grande contribuição oferecida pela sistematização de José Pastore, relativamente à rigidez com que se apresenta a imposição dos encargos e tributos incidentes sobre o fator trabalho, com vistas particularmente em suas quantificações para o caso brasileiro, não poderia passar sem registro que vêm sofrendo robustas objeções a partir, notadamente, de premissas de natureza conceitual. O que se observa é que, na composição do percentual final, incluem-se indistintamente encargos sociais indiretos (destinados a organismos paraestatais de promoção e de assistência social), e “encargos sociais” que constituem, em verdade, modalidades de remuneração diretamente disponibilizada ao trabalhador. Consideram-se, aqui, especialmente as objeções externadas por Anselmo Luis dos Santos (SANTOS, 1996, pp. 221-252), que, a exemplo de outros investigadores ocupados com o problema (FARIA, 1996, pp. 127-160), têm contribuído para erradicar, das urgentes iniciativas de reexame dos custos indiretos do trabalho, as fortes tintas retóricas com que, costumeiramente, o tema vem sendo tratado pela pena dos adversários da proteção jurídica dos direitos sociais.

27 Como, por exemplo, a incorporação dos direitos de personalidade (direito à honra, à privacidade, à intimidade), direitos anti-discriminatórios e proteção jurídica ao meio ambiente do trabalho.

Page 204: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

204 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

4.2. organização do trabalho e direito

Por outro lado, o direito do trabalho tem sofrido, a partir dos anos oitenta do século passado, os efeitos de alterações estruturais no modelo de organização e de aproveitamento do trabalho humano.

Tais alterações estão ligadas ao que se convencionou chamar de erosão do modelo ou paradigma fordista28 de organização empresarial.

Esse modelo – tipicamente industrial – era caracterizado pela generalidade, pelo gigantismo organizacional, pela complexidade dos sistemas hierárquicos internos e pela ambição de autossuficiência no suprimento da cadeia produtiva.

Esse modelo exibe seus primeiros sinais de exaustão com a crise da IBM norte-americana, em meados dos anos oitenta. A partir de então, a organização dos processos produtivos passou a seguir um itinerário marcado pela fragmentação e pela dispersão, em unidades produtivas autônomas, dotadas de crescente vocação para a especialidade e para a otimização dos resultados gerenciais num cenário de competitividade internacional.

Esse foi – e em certa medida continua a ser – o pano-de-fundo de muitas das tendências e estratégias gerenciais que habitaram o imaginário da eficiência empresarial no decorrer dessas três décadas, dando ensejo à difusão de uma grande variedade de técnicas formuladas em torno de ideias tais como terceirização, downsizing29, qualidade total, administração participativa, etc.

Importa pôr em evidência que esse processo de fragmentação da empresa fordista veio a ser um fenômeno pautado por parâmetros de competitividade internacional. Objetivando metas de economicidade sobre custos de mão de obra e de infraestrutura, muitas das etapas produtivas e de serviços migraram, de regiões situadas em economias centrais, para países de economias periféricas ou semiperiféricas do capitalismo.

28 Em alusão ao empresário norte-americano Henry Ford, que protagonizou uma experiência empresarial caracterizada pelo gigantismo, pela ambição de autossuficiência como estratégia de redução de custos e de defesa de crises cíclicas da economia.

29 Termo pelo qual se passou a designar a meta de “enxugamento” e redução no tamanho das empresas.

Page 205: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 205

Nessa medida, a referência no Estado-Nação, o gigantismo e a concentração, que simbolizavam a pujança e a força da empresa fordista, cederam rapidamente lugar ao cosmopolitismo, à agilidade, à especialização, de modo que o núcleo da empresa dos anos noventa deixou de ser espacialmente localizável seguindo a regra da situação da sede e/ou matriz, e passou a ser identificável somente mediante operações conceituais concernentes ao poder de controle acionário e ao domínio tecnológico.

quadro comparativo entre o modelo fordista e o modelo emergente de empresa

CRITÉRIOS MODELO FORDISTA MODELO EMERGENTE

Tamanho da empresa

tendencialmente agigantada

tendencialmente pequena

Campo de atuação

generalizante especializada

Estruturação interna

estratificada em diversos níveis hierárquicos

reduzidos níveis de estratificação

Critério de eficiência

autossuficiência agilidade e adaptabilidade

Perfil do cliente

mercados nacionais mercado global

Estratégia de enfrentamento de crises

desenvolvimento de tecnologias de longa maturação, estoques de insumos e matéria prima

downsizing, conquista de novos setores de mercado e desenvolvimento de tecnologias de curta maturação

Políticas de Recursos Humanos

concentração física de numerosos trabalhadores, especialização de funções e remuneração atraente

polivalência do pessoal ocupado, terceirização de atividades não estratégicas e remuneração seletiva

Page 206: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

206 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Outro fator relevante que a conspirar pelo aprofundamento desse quadro de transformações consiste na debilitação do poder sindical.

Diante de um cenário marcado pela 1) dispersão global das etapas do processo produtivo, acompanhada pela 2) exaustão do modelo de empresa fordista com a emergência de um novo conceito de organização empresarial e de relações do trabalho, pelo 3) crescimento do desemprego estrutural30, aliado à progressiva precarização dos vínculos de trabalho31; e 4) à estagnação relativa do número de postos de trabalho disponíveis na indústrias32, instaura-se um capítulo de de-clínio jamais visto na história do sindicalismo. (FREITAS, 1999, pp. 79 e ss.)

Um declínio que se manifesta, quer sob o ângulo da capacidade de arre-gimentação dos sindicatos, quer sob aquele do arrefecimento de seu poder de conflito.

Bastam os dados referentes à evolução da taxa de sindicalização, para que se possa ter uma ideia das proporções desse declínio:

tabela ii: evolução da taxa de sindicalização em países escolhidos

1970 1980 1990

Espanha 27.4 25 11

França 22.3 17.5 9.8

Itália 36.3 49.3 38.8

Alemanha 33 35.6 32.9

30 Denomina-se desemprego estrutural aquele ocasionado pela desnecessidade de trabalho humano, gerada por fatores persistentes da economia, tais como a incorporação de tecnologias ou o declínio de certas atividades.

31 Por precarização designa-se, em geral, duas ordens de alteração sobre os chamados empregos formais nesse período: 1) ausência de caracterização jurídica na forma de vínculo de emprego (de forma lícita ou não), e 2) diminuição sobre a duração do trabalho, quer em número de horas, quer na própria vigência do vínculo.

32 Fenômeno que se tornaria conhecido como “terciarização do trabalho; ou seja, perda relativa da capacidade de oferta de postos de trabalho no setor industrial, em comparação ao número de postos ofertados pelo setor de serviço (setor “terciário” da economia, segundo certa categorização da economia política).

Page 207: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 207

1970 1980 1990

Inglaterra 44.8 50.4 39.2

Estados Unidos 23.2 22.3 15.6

Fonte: OCDE

5. conclusões

O direito do trabalho caracterizou-se por se consolidar e se expandir pro-tagonizado pelos movimentos socialistas e pela ação dos sindicatos num ce-nário típico de simbiose. Com o esgotamento do apelo socialista revolucionário, associado ao declínio da força dos sindicatos a partir dos anos oitenta do século XX, o direito do trabalho mostrou-se também fragilizado.

Esse fenômeno não traria maiores preocupações, quanto à promoção da dignidade do trabalhador, fosse outra a realidade econômica e política dos dias atuais.

A crise do Estado-Providência enquanto formação política (e seu arrefeci-mento como horizonte de possibilidades programáticas), associada à crise econômica nos principais países de economia capitalista (crônica no decorrer das últimas três décadas, e agudizada pelos efeitos da economia norte-americana a partir de 2008), faz temer pelo futuro do trabalho.

É bem verdade que tais fatores não parecem ameaçadores no curto prazo, nem se mostram aptos a contaminar a economia brasileira num horizonte perceptível. Uma economia que vem experimentando, a partir dos últimos dez anos, períodos de contínuo, embora moderado, crescimento e algum avanço no plano da distribuição de renda.

Não é menos certo, porém, que o Brasil não está nem pode ficar isolado no ce-nário econômico internacional. A crescente globalização econômica, exacerbada no curso das últimas três décadas, faz com que qualquer país, que ambicione atuar no contexto internacional, fique atento para as variáveis dominantes em escala planetária. Não apenas como expectador passivo, mas como Estado que se adianta em ensaiar medidas profiláticas visando à redução das chances de ser afetado por esse ambiente.

Page 208: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

208 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Por fim, permanece necessária uma ampla revisão em muitos dos institutos de direito do trabalho no Brasil. É difícil comemorar, num ramo jurídico caracterizado pela constante transformação, setenta anos de uma legislação ainda prisioneira dos mesmos fundamentos que a justificaram à sombra dos anos trinta.

Resta saber se nossas lideranças políticas serão capazes de consumar o “início” do século XXI, conferindo para o trabalho um tratamento jurídico adequado e contemporâneo. Não só para ser um passo eficaz, mas para que o seja na direção da dignidade humana.

6. referências

ATLESON, James B. Collective Bargaining in Private Employment. In ATLESON, James B. et. al. Labor Relations and Social Problems. Washington: The Bureau of National Affairs, 1984, 44-64.

CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais – Hermenêutica do Sistema Jurídico e da Sociedade. Tese apresentada ao concurso de Professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Ex. mimeo: 2011.

CRUET, Jean. Os Delitos Operários de Ontem como Elementos do Direito Operário de Hoje. In MACHADO NETO, A.L. e MACHADO NETO, Zaidé (orgs). O Direito e a Vida Social. São Paulo: EDUSP – Companhia Editora Nacional, 1966.

DRAIBE, Sônia. HENRIQUE, Wilnês. Welfare State, crise e gestão da crise: um balanço da literatura internacional. Revista Brasileira de Ciências Sociais. ANPOCS: vol. 3 (n. 6); 53-78, 1988.

ESPING-ANDERSEN, Gøsta. The Three Worlds of Welfare Capitalism. Princeton: Princeton University Press, 1990.

EWALD, François. L’État providence. Paris: Bernard Grasset, 1986.

FARIA, José Eduardo. Democracia e Governabilidade: os Direitos Humanos à luz da Globalização In FARIA. PUCEIRO. OLGIATI. TRUBECK et. alii.; FARIA org. Direito e Globalização Econômica: implicações e perspectivas. São Paulo: Malheiros ed.; 1996, 127-160.

Page 209: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 209

FREITAS JR., Antonio Rodrigues de. Conteúdo dos Pactos Sociais. São Paulo: LTr, 1993.

_______. Direito do Trabalho na Era do Desemprego: instrumentos jurídicos em políticas públicas de fomento à ocupação. São Paulo: LTr, 1999.

GAROFALO, Mario Giovanni. Naturaleza Jurídica de la Concertación Social. In AVILÉS, Ojeda. et al. AVILÉS, Ojeda org. La Concertación Social tras la crisis. Barcelona: Arie, 1990.

GÉLÉDAN, Alain. BREMOND, Janine. Dicionário das Teorias e Mecanismos Económicos. Lisboa: Livros Horizontes, 1988.

GIUGNI, Gino. (1997). Diritto Sindacale. Bari: Cacucci, 1997.

HABERMAS, Jüergen. A Nova Intransparência: a Crise do Estado de Bem-estar Social e o Esgotamento das Energias Utópicas. Revista do CEBRAP. Vol 18, (setembro); pp. 103-114, 1987.

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

KEYNES, John Maynard. Notas finais sobre a filosofia social a que poderia levar a Teoria Geral. In Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo: Atlas; 1982.

_______ A Europa depois do Tratado (1919) In. Consequências Econômicas da Paz. Tradução conforme seleção e organização de SZMERECSÁNYI, Tamás. Keynes. São Paulo: Ática, pp. 54-69, 1984.

MAGANO, Octavio Bueno. Direito Coletivo do Trabalho. Manual de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1984.

MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução ao Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1986.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 1995.

_______. Fundamentos do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1970.

O’CONNORR, James. A crise do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

Page 210: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

210 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

PASTORE, José. O ‘Custo Brasil’ na Área Trabalhista: proposta para Modernização das Relações de Trabalho. (ex. mimeo), 1996.

PÉLISSIER, Jean. SUPIOT, Alain; JEAMMAUD, Antoine. Droit du Travail. Paris: Dalloz, 2008.

PERSIANI, Mattia. Saggio sulla autonomia privata collettiva. Padova: Cedam, 1972.

ROUDIL, A.. La Genèse du Droit du Travail. In COLLIN, Francis. JEAMMAUD, Antoine. LYON-CAEN, Gérard. ROUDIL, A. Et al. Le Droit Capitaliste du travail. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1980.

SANTOS, Anselmo Luis dos. Encargos Sociais e Custos do Trabalho no Brasil. In MATOSO et. alii., id. organizador. Crise e Trabalho no Brasil. São Paulo: Scritta; 221-225, 1996.

Page 211: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 211

direito social do trabalhador: salário justo

Lucas Gonçalves da Silva1

Luciana Aboim Machado Gonçalves da Silva2

Resumo

A redução dos postos de trabalho, possibilitada pela evolução tecnológica e a reengenharia produtiva das empresas, e a conseqüente elevação no índice de desemprego constituem um entrave ao exercício da liberdade contratual do empregado, ante a ampliação do temor dos empregados de perda do emprego, ou melhor, das condições financeiras de sobrevivência próprias e da família. Se o empregado não pode negar a proposta salarial do empregador, significa que ele perdeu um ingrediente essencial da liberdade. A despeito da valorização constitucional do trabalho, a fria e inexorável linguagem dos fatos indica que este, ainda nos dias de hoje, muitas vezes é visto como força anônima necessária para a produção, continuando a existir problemas coincidentes com os revelados na primeira metade do século XIX, em que se via o trabalho como uma mercadoria e o salário, o seu preço pago com vistas ao custo de produção, como preconizado pela “lei de bronze”, de sorte a gerar em certos setores da sociedade miséria e mortes. Partindo da visão kantiana de “homem como um fim em si mesmo e não como meio”, devem-se dar novos rumos às relações de trabalho, não permitindo prevalecer o capitalismo selvagem predador do ser humano. É a partir da concepção pós-positivista do Direito que se esgrime a força normativa dos princípios ético-

1 Professor Adjunto da Universidade Federal de Sergipe, Coordenador e Professor do Mestrado em Direito da UFS, Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro do grupo de pesquisa “Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas: as teorias e a prática” da UFS.

2 Professora Adjunta da Universidade Federal de Sergipe, Professora do Mestrado em Direito da UFS, Pós-graduada em Direito do Trabalho; Pós-graduada em Direito Processual Civil; Mestre em Direito do Trabalho, todos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Doutora em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - FDUSP. Líder do grupo de pesquisa “Eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações privadas: as teorias e a prática. Vice-Presidente da Asociación Iberoamericana de Derecho de Trabajo y de la Seguridad Social - AIDTSS.

Page 212: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

212 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

constitucionais, direcionando-os para a transformação da realidade sociolaboral. As noções puramente dogmáticas da economia clássica, em que o salário era apenas considerado como o preço do trabalho, não encontram albergue nos vigentes preceitos normativo-constitucionais, que atribuem uma perspectiva social ao salário. Nesses termos, por ser o salário justo um direito social do trabalhador, fundamentado nas diretrizes axiológicas de nossa Lei Fundamental, deve ser tutelado pelo Estado, atores sociais e organismos internacionais.

Palavras-chave

Salário justo; Função social do salário; Justiça contratual.

Resumen

La reducción de los puestos de trabajo, posibilitada por la evolución tecnológica y la reingeniería productiva de las empresas, y la consecuente elevación en el tasa de desempleo constituí un obstáculo al ejercicio de la libertad contractual del empleado, delante de la ampliación del temor de los empleados de pierda del empleo, o mejor, de las condiciones financieras de supervivencia propias y de sus familias. Si el empleado no puede negar la propuesta salarial del empleador, esto significa que él ha perdido un ingrediente esencial de su libertad contractual.

Con respecto a la valorización constitucional del trabajo, el frío y inexorable lenguaje de los hechos indica que el trabajo, aún en los días de hoy, muchas veces es visto como fuerza anónima necesaria para la producción, continuando a existir problemas coincidentes con los revelados en la primera mitad del siglo XIX, donde se miraba el trabajo como una mercancía y el salario y su precio pago teniendo en vista el costo de la producción, como preconizado por la “ley del bronce”, de suerte a generar en ciertos sectores de la sociedad miseria y muertes. Partiendo de una visión Kantiana del “hombre como un fin en si mismo y no como un medio”, se debe dar nuevos rumbos a las relaciones de trabajo no permitiendo prevalecer el capitalismo salvaje. Es a partir de la concepción pos-positivista del Derecho que si esboza la fuerza normativa de los principios ético-constitucionales, los enderezando para la transformación de la realidad socio-laboral. Las nociones puramente dogmáticas de la economía clásica, en que el salario era apenas considerado como el precio del trabajo no encuentran

Page 213: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 213

cabida en los vigentes preceptos normativo-constitucionales que atribuí una perspectiva social al salario. En eses términos, por ser el salario justo un derecho social del trabajador fundamentado en las directrices axiológicas de nuestra Ley Fundamental, debe ser tutelado por el Estado, actores sociales y organismos internacionales.

Palabras clave

Salario justo; Función social del salario; Justicia contractual.

1. introdução

As atrocidades e abusos cometidos, desde os últimos séculos, aos seres hu-manos, em todo o mundo, tem despertado uma “consciência jurídica universal” para intensificar o processo de humanização do Direito contemporâneo. É nesse condão de “cosmopolitismo ético dos direitos humanos”3 que exsurge o direito social do trabalhador ao salário justo.

Todavia, o quadro da realidade sociolaboral hodierna coincide, em muitas situações, com a época do liberalismo econômico, caracterizada pela utilização abusiva de mão-de-obra e aviltamento da contraprestação salarial.

Malgrado essa identificação empírica no universo trabalhista, os sistemas jurídicos atuais – pós-guerra - incorporam valores ético-sociais, imprimindo significativa relevância aos direitos fundamentais.

Nesse diapasão, emerge a necessidade de se conceber eficácia ao direito social do trabalhador ao salário justo. A princípio, podemos pensar que é impossível a implementação deste direito social, sendo escassa a sua disseminação na doutrina e jurisprudência brasileira. Não raro ouvimos abordagens do tipo: “salário justo é uma utopia!”; “salário justo é um projeto irrealizável...”.

3 Oscar Vilhena VIEIRA, tratando a respeito, diz que o processo de globalização está associado aos direitos humanos, dando ensejo a uma via de duas mãos, em que ocorre uma internacionalização do direito constitucional na mesma medida em que há uma constitucionalização do direito internacional. (Realinhamento Constitucional. In: Direito Global. SUNDFELD, Carlos Ari e VIEIRA, Oscar Vilhena. (coords.). São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 29.)

Page 214: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

214 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

As nossas inquietudes ante as circunstâncias de trabalho vivenciadas por inúmeros trabalhadores, especialmente os trabalhadores imigrantes, como bolivianos no bairro Bom Retiro (São Paulo) e os que labutam no corte de cana-de-açúcar com jornadas de trabalho exaustivas e salários ínfimos, freqüentemente demonstradas em diversos documentários e reportagens veiculados na mídia, bem como a consciência de que um dos papéis do estudioso do Direito é ser instrumento de provocação para metamorfoses no seio social, efetivando os valores – que a humanidade incorporou em seu processo civilizatório – vazados na Lei Fundamental, fizeram-nos investigar este tema na esperança de lançar semente no mundo do Direito.

Mas, quais os fundamentos jurídicos para dizer que o salário justo é um direito humano do trabalhador? Como implementar este direito nas relações de trabalho? As respostas para estas indagações estarão nos tópicos que seguem.

2. escorço histórico sobre o desenvolvimento do direito ao salário justo

O trabalho, disponibilizado pelo empregado no transcurso do contrato de trabalho, insere-se na organização empresarial como um fator de produção, de modo que o montante relativo à sua retribuição reflete no custo do processo produtivo a par de constituir a renda do trabalho paga ao empregado, que, via de regra, configura-se como único meio de subsistência do empregado e sua família.4

Destarte, o salário constitui fonte de renda do trabalho5 e rendimento da empresa perante o qual o Estado e a sociedade não podem ser indiferentes, tendo em vista o reflexo desse instituto jurídico-laboral em diversos fatores socioeconômicos.

Nessa mira, o Estado, intervindo nas relações laborais, passou a assegurar ao empregado o direito social ao salário justo, que teve seu embrião, em nosso

4 A fazer essa distinção do salário pela ótica do empregado e do empregador são os escólios de Héctor-Hugo BARGABELATA. Derecho del Trabajo. Montevideo: Fundación de Cultura Universitaria, 1978, p. 210.

5 Segundo Alberto Montoro BALLESTEROS, é relevante distinguir renda do trabalho e renda do trabalhador, significando a primeira a compensação econômica obtida pelo trabalhador em razão do esforço e rendimento do trabalho e a segunda o conjunto de percepções que o trabalhador obtém, seja da empresa como salário ou indenização, seja de outros organismos em razão do trabalho. (Supuestos filosófico-jurídicos de la justa remuneración del trabajo, p. 116.)

Page 215: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 215

pensar, no instituto da “lesão enorme”, aplicável aos contratos de compra e venda quando os pequenos proprietários de terra, ante a generalizada crise econômica, viam-se obrigados a vender suas terras por preço vil.6

Esse instituto do direito romano facultava ao alienante do bem, vendido a valor menor do que a metade do preço real, a possibilidade de requerer o desfazimento do negócio com a devolução da coisa e a restituição do preço ou o complemento do preço com o propósito de conservar o contrato.7

Nessa senda, os teólogos escolásticos passaram a preconizar o salário justo através de um paralelo com o justo preço do instituto da “lesão enorme”.8 Enrique de Langestein (século XIV), San Antonino de Florencia (século XV), Luis Molina (século XVI) e outros escolásticos do século XVII indicavam a via judicial para obter a reparação devida de quem se lhes pagava um salário injusto, ou seja, sempre que a lesão equivalesse à metade do salário justo.9

Esse processo de reconhecimento do direito ao salário justo, contudo, sofreu solução de continuidade durante o Estado Liberal. Todavia, no porvir do século XIX, com vistas à questão social vivenciada na Revolução Industrial, em que o salário era visto como preço da mercadoria ditado pela lei da oferta e da procura, voltou-se a aclamar um salário justo para a classe operária.

Nessa bandeira, a doutrina social da Igreja Católica, através da encíclica “Rerum Novarum”, que reconhece a necessidade de se intervir nas relações sociais de modo novo (“res novae”), proclamou o direito do trabalhador ao salário justo, ensejando um povir de consolidação deste direito, em perspectiva universal, através dos tratados internacionais de direitos humanos.

Sob o esteio da concepção ético-jurídica do salário, emerge, assim, o direito social do trabalhador ao salário justo, como fruto legítimo do trabalho, sem o qual os empregados não podem tomar parte na sociedade como efetivos “cidadãos sociais”.

6 SANTOS, Antonio Jeová. A lesão em seus elementos objetivo e subjetivo. Função social do contrato, p. 150.

7 Ibidem, p. 152.8 LOPEZ, Justo. El salario. Buenos Aires: Ediciones Juridicas, 1988, p. 50.9 Ibidem, p. 50-51.

Page 216: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

216 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

3. aspectos teóricos do direito ao salário justo

Por configurar o salário justo10 uma expressão vaga, de conteúdo aberto e atrelado às circunstâncias do caso concreto, algumas críticas lhe são dirigidas, prejudicando, na concepção positivista de alguns doutrinadores11, a sua aceitação como instituto jurídico, ou melhor, como princípio regente das relações laborais.

Reconhecemos que quando se vale da expressão “justiça” não se está diante de uma questão na qual se possam utilizar as técnicas demonstrativas, como se dá nas ciências exatas. Empregam-se, neste tema, “técnicas argumentativas que não são coercitivas, mas que poderiam tender a mostrar o caráter razoável das concepções apresentadas”.12

Destarte, ante a impossibilidade de se estabelecer legalmente um critério objetivo, aritmético, para a acepção do salário justo, importa aplicar o princípio da razoabilidade13 no preenchimento do seu conteúdo jurídico, permitindo ser adaptado à realidade social cambiante.

10 Convém informar que a expressão “salário justo” não é utilizada pela doutrina e legislação nacional e estrangeira de forma uniforme, ora se alterando o adjetivo para: “salário eqüitativo”, “salário condigno”, “salário digno”; ora se modificando o substantivo para: “retribuição justa”, “remuneração justa”; ora se valendo de substantivos e adjetivos diversos: “retribuição digna”. Preferimos a designação “salário justo” por entender que melhor demonstra a sua composição de parcelas de natureza salarial habitualmente pagas pelo empregador ao empregado.

11 Dorval de LACERDA expressa que “o salário, para ser justo, deve corresponder às necessidades para manutenção do operário e de sua família, mas também deve ser proporcional ao trabalho prestado. Qual será, entretanto, essa proporção? E, inversamente, do resultado da produção, qual será a quota que é lícita ao empregado reter? Eis uma questão delicada e que ainda não foi satisfatoriamente resolvida. É tão importante que justifica a afirmação de Méliton MARTIN, (Le travail humanis, p. 84): ‘logo que a experiência houver determinado a forma prática da retribuição, o problema social estará resolvido’.” (O Contrato Individual de Trabalho, 1939, p. 194. Apud NASCIMENTO, Amauri Mascaro. O Salário. Ed. fac-similada (1932). São Paulo: LTr, 1996, p. 27.) Discordamos desses posicionamentos, pois entendemos não ser condizente com a visão pós-positivista do sistema jurídico que aproxima Direito e Moral, sendo repleto de normas jurídicas de conteúdo aberto e fluido.

12 MAIOR, Jorge Luiz Souto. O direito do trabalho como instrumento de justiça social, p. 88.13 Segundo ensina Luis RECASÉNS SICHES, é missão precípua do magistrado interpretar a

lei de modo que chegue, em todo o caso, à conclusão mais justa (mais razoável para resolver o problema, de modo que o que não for razoável e proporcional não será jurídico, isto é, estará em desconformidade com o Direito, constituirá uma medida desequilibrada, inconsistente, arbitrária e destituída de adequação e bom senso. (Introducción al Estudio del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2006, p. 246). Nessa mira, oportuno se faz ressaltar as lições de Chaïm PERELMAN: “Todo direito, todo poder legalmente protegido é concedido com vistas a certa finalidade: o detentor desse direito tem um poder de apreciação quanto ao modo

Page 217: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 217

Pelo fato de a norma consagradora do salário justo ensejar o preenchimento extralegal do seu conteúdo aberto e fluido, cumpre perquirir sobre sua funcio-nalidade no sistema jurídico, vale dizer, se este preceito normativo consiste em uma cláusula geral ou em um conceito jurídico indeterminado.14

Vale recordar que a diferença entre cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados consiste na ausência, apenas nas primeiras, de previsão legal das conseqüências jurídicas, dando ensejo à criação judicial da solução que lhe pareça mais adequada e eqüitativa ao caso concreto.15

Destarte, depreendemos que o salário justo se apresenta como um conceito jurídico indeterminado, ou seja, um conceito carente de especificação legal, cuja intelecção pode ser aferida pelo juiz no caso concreto16, que aplica a solução prevista na lei, quer seja corretiva e/ou supletiva do salário.

Na direção de trazer luzes para a implementação jurídica do salário justo, cumpre gizar alguns conceitos que foram explanados por doutrinadores pátrios e estrangeiros acerca do sentido de salário justo.

como o exerce. Mas nenhum direito pode ser exercido de uma forma desarrazoada, pois o que é desarrazoado não é direito.” (Ética e direito, p. 436-437.)

14 Importa salientar que a previsão em normas jurídicas de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, revelando um avanço social no Código Civil de 2002, não constitui novidade para o Direito do Trabalho, posto que são inúmeras as normas trabalhistas de conteúdo aberto, sendo voltadas a atingir a igualdade material nas relações de emprego.

15 Merecem destaque as lições de Vargas VALÉRIO: “A principal diferença das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados (ambos com descrição aberta e vaga, sujeitos a preenchimento por valores jurídicos e extrajurídicos) é a que as primeiras, por simples diretivas, não trazem a conseqüência jurídica, propiciando ao juiz criar a solução que lhe pareça mais adequada, é norma em branco; os segundos (também abertos e vagos) diferem, porque o juiz, ao preencher o conceito, já tem a conseqüência legal fixada. Na primeira, o juiz funciona como criador da conseqüência jurídica, com base na equidade, no segundo, essa criação do direito aplicável é impossível, por já prevista a solução.” (Cláusulas gerais e conceitos indeterminados como meios de interpretação e de integração do Direito do Trabalho. In Justiça do Trabalho e Dignidade da Pessoa Humana: algumas relações do Direito do Trabalho com os Direitos Civil, Ambiental, Processual e Eleitoral. João Humberto CESARIO, (coord.). São Paulo: LTr, 2007, p. 147.)

16 Como bem salienta Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, não há supor que a inteligência judicial seja, de direito, e muito menos de fato, desamparada de luzes bastantes para extrair dos preceitos vagos e fluidos a dimensão que tem. (Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. Revista de Direito Público, n. 57-58. São Paulo: RT, 1981, p. 249.)

Page 218: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

218 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Hugo Mansueti, Eugenio Luis Palazzo e Guillermo Schinelli 17 lecionam que o salário justo é o eqüitativo, que permite sustentar dignamente o trabalhador e sua família, mas que, por sua vez, tem em conta o desempenho do trabalhador.

Por sua vez, Evaristo de Morais Filho18 explicita que, em geral, os autores costumam chamar de salário justo, principalmente na França, àquele em que o empregado recebe bastante para o seu sustento e da sua família, mas como compensação de índole econômica entre a prestação e a contraprestação que leva em conta a proporcionalidade entre o trabalho e o montante a receber.

Para Amauri Mascaro Nascimento19, salário justo não é o vital20, mas sim “o efetivamente contraprestativo do valor do trabalho prestado segundo um critério de justiça social e um princípio de equidade”.

Ao distinguir salário mínimo, salário vital e salário justo, Américo Plá Rodríguez21 expõe que o primeiro (conceito puramente formal e jurídico) “é o salário menor que o ordenamento jurídico permite fixar”; o segundo (conceito econômico e humano) “é aquele salário suficiente para que uma pessoa possa viver; e o terceiro (conceito com conotações morais) “é aquele que deve se pagar ao trabalhador, em estrita justiça”. Complementa esses conceitos dizendo que não basta pagar o salário vital nem sequer o salário mínimo para que o empregador cumpra com suas obrigações de justiça, porque pode suceder que, em rigor, deva-se pagar um salário ainda superior, que seria o justo, o moralmente obrigatório.

Por ser o salário justo um conceito jurídico indeterminado, dotado de plas-ticidade, inferimos ser aquele que se afere pela consonância da renda do trabalho, avaliada em cada caso concreto, com os valores ético-jurídicos plasmados na Lei Fundamental.22

17 Curso de Derecho Constitucional. La Constitución como garantía. Los derechos y deberes del hombre, p. 302.

18 Contrato de Trabalho, 1944, p. 81. Apud NASCIMENTO, Amauri Mascaro. O Salário, p. 28.19 Teoria geral do direito do trabalho, p. 307. 20 Salário vital é o necessário para a satisfação das necessidades básicas do trabalhador e sua

família, previsto em lei ou convenções coletivas como níveis mínimos obrigatórios de salários. (Ibidem, p. 307.)

21 Curso de Derecho Laboral, vol. II, tomo III (El Salario). Montevideo: Ediciones IDEA, 1994, p. 88-91.

22 A propósito, Luís Roberto BARROSO ensina que, com a nova interpretação constitucional, o papel do juiz é de co-participante no processo de criação do direito, completando o trabalho

Page 219: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 219

4. o direito ao salário justo nos tratados inter-nacionais

As atrocidades e abusos cometidos, desde os últimos séculos, aos seres huma-nos, em todo o mundo, tem despertado uma “consciência jurídica universal” para intensificar o processo de humanização do Direito contemporâneo.

É nesse condão de “cosmopolitismo ético dos direitos humanos”23 que exsurge o “Direito Internacional dos Direitos Humanos” que “não se reduz, em absoluto, a um instrumental a serviço do poder; seu destinatário final é o ser humano, devendo atender a suas necessidades, entre as quais a realização da justiça”24.Destarte, importante se faz imergir na análise dos diplomas internacionais de direitos humanos que versam sobre o direito social do trabalhador ao salário justo.

Insta observar como um dos pioneiros e, certamente, mais importante diploma internacional, por seu impacto universal, a fazer referência ao salário justo é a Declaração Universal dos Direitos Humanos25 no art. 23, §3°:

Toda pessoa que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como a sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.26

do legislador, ao fazer valoração de sentido para as cláusulas gerais ou os conceitos jurídicos indeterminados. (Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. Revista da Escola Nacional da Magistratura. Ano 1, n.° 2, outubro de 2006, p. 33.)

23 Oscar Vilhena VIEIRA, tratando a respeito, diz que o processo de globalização está associado aos direitos humanos, dando ensejo a uma via de duas mãos, em que ocorre uma internacionalização do direito constitucional na mesma medida em que há uma constitucionalização do direito internacional. (Realinhamento Constitucional. In: Direito Global. SUNDFELD, Carlos Ari e VIEIRA, Oscar Vilhena. (coords.). São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 29.)

24 “...no se reduce, en absoluto, a un instrumental a servicio del poder; su destinatario final es el ser humano, debiendo atender a sus necesidades, entre las cuales la realización de la justicia.” Tradução livre. (TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. La nueva dimensión de las necesidades de protección del ser humano en el inicio del siglo XXI. 2ª ed. San José, Costa Rica: Impresora Gossestra Internacional, 2003, p. 68.)

25 A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada e proclamada pela Resolução 217-A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10.12.1948, sendo assinada pelo Brasil em 10.12.1948. (Ibidem, p. 345.)

26 Ibidem, p. 354.

Page 220: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

220 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Nessa esteira, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - PIDESC27, com um extenso catálogo de direitos, enuncia, no art. 7º, alínea “a”, o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, com uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores um salário eqüitativo e uma remuneração igual por um trabalho de igual valor.28

Já no âmbito da estrutura normativa do Sistema Regional Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, importa salientar que o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, denominado de “Protocolo de San Salvador”29, faz menção ao direito em apreço no art. 7° ao prever uma “remuneração que assegure, no mínimo, a todos os trabalhadores condições de subsistência digna e decorosa para eles e para suas famílias e salário eqüitativo e igual por trabalho igual, sem nenhuma distinção”.30

No que pertine especificamente à normatização internacional trabalhista, ressalta-se que a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em matéria do direito ao salário justo, que se constitui corolário do trabalho decente31, há alguns anos a OIT vem empregando esforços nesse sentido.

É de se assinalar que a Comissão Mundial sobre a Dimensão Social da Globalização afirmou que o trabalho decente deve ser incorporado progres-sivamente às estratégias nacionais de desenvolvimento.32

27 O PIDESC, adotado pela Resolução 2.200-A (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 16.12.1966, pelo Brasil foi assinado em 24.1.1992, aprovado pelo Decreto Legislativo n. 226, de 12.12.1991, e promulgado pelo Decreto n. 591, de 6.7.1992. (Ibidem, p. 346.)

28 Ibidem, p. 375.29 O “Protocolo de San Salvador”, adotado pela Assembléia Geral da Organização dos Estados

Americanos em 17.11.1988, foi assinado pelo Brasil em 21.8.1996, aprovado pelo Decreto Legislativo n. 56, de 19.4.1995, e promulgado pelo Decreto n. 3.321, de 30.12.1999. (Ibidem, p. 348.)

30 Ibidem, p. 469.31 A OIT diz que “trabalho decente é um trabalho produtivo e adequadamente remunerado,

exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, sem quaisquer formas de discriminação, e capaz de garantir uma vida digna a todas as pessoas que vivem de seu trabalho”. Disponível em: http://www.oitbrasil.org.br/trab_decente_2.php. Acesso em: 12 out. 2013.

32 Por uma globalización justa: el papel de la OIT: Comisión Mundial sobre la Dimensión Social de la Globalización. Genebra: OIT, 2004.

Page 221: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 221

Um artigo sem autoria da revista “Trabajo” da OIT registra que o conceito de Trabalho Decente foi formulado como uma maneira de identificar as prioridades da Organização, reformando e modernizando seu enfoque para o século XXI.33

Nessa senda, para se implementar um trabalho decente é fundamental proporcionar aos trabalhadores um salário justo que, a despeito de se constituir em um dos elementos do custo de produção empresarial que interessa à economia, configura retribuição do trabalho humano, que não pode mais ser considerado uma mercadoria34 ou um aspecto de luta pela sobrevivência dos mais aptos.

A partir desse consenso internacional de reconhecimento do direito ao salário justo, impende adotar, nessa era de capitalismo globalizado, mecanismos jurídicos para sua eficácia no mundo real, tornando-se possível alcançar um desenvolvimento econômico sustentável de todas as nações através do trabalho produtivo includente e eqüitativo.

5. o direito ao salário justo positivado no direito estrangeiro

Ao incursionar em algumas ordens jurídicas estrangeiras e perquirir sobre a previsão normativa a respeito do salário justo, infere-se que a Itália e a Argentina apresentam uma concepção avançada sobre o tema, posto que não se limita a identificação do salário justo ao salário mínimo, sendo relevante ressaltar algumas lições a este respeito.

Comentando o art. 3635 da Constituição Italiana, Iolanda Piccinini36 ensina:

33 El trabajo decente, centro de atención. In: Revista Trabajo de la OIT n. 57, septiembre 2006. Ginebra: OIT, 2006, p. 5

34 A Conferência Internacional do Trabalho, em 1944, elaborou a Declaração de Filadélfia, que constitui anexo à Constituição da OIT, reafirmando, dentre os princípios fundamentais sobre os quais repousa a OIT, que “o trabalho não é uma mercadoria”. (Arnaldo SÜSSEKIND, Convenções da OIT e outros tratados, 3ª ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 20)

35 Art. 36. “Il lavoratore ha diritto ad una retribuzione proporzionata alla quantità e qualità del suo lavoro e in ogni caso sufficiente ad assicurare a sé e alla famiglia un’esistenza libera e dignitosa.” Disponível em: http://www.senato.it/documenti/repository/costituzione.pdf. Acesso em 20.12.13.

36 Equità e Diritto del Lavoro, p. 137-138.

Page 222: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

222 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

O primeiro parágrafo do art. 36 da Constituição proclama o direito a uma retribuição proporcional à quantidade e à qualidade do trabalho prestado e, em cada caso, suficiente a assegurar ao trabalhador e a sua família uma existência livre e digna.[...]

Superada a tese minoritária a favor da programaticidade dessa norma constitucional, prevalece a orientação que reconhece a preceptividade. As conseqüências de tal posição são notórias: se a aplicação é imediata e direta, a cláusula concernente a uma retribuição que o juiz julgue inadequada, isto é, insuficiente ou não proporcional, é nula, porque em contraste com o art. 36, o qual atribui ao titular um direito subjetivo perfeito. Se abre, então, o espaço para a determinação eqüitativa do juiz.37-38

37 Il primo comma dell’art. 36 Cost. proclama il diritto ad uma retribuzione proporzionata alla quantità e alla qualità del lavoro prestato e, in ogni caso, sufficiente ad assicurare al lavoratore e alla sua famiglia un esistenza libera e dignitosa.[...] Superata la tesi minoritária a favore della programmaticità della norma costituzionale, prevale l’orientamento che ne riconosce la precettività. Le conseguenze di tale posizione sono note: se l’applicazione è immediata e diretta, la clausola concernente uma retribuzione che il giudice ritenga inadeguata, cioè insufficiente o non proporzionta, è nulla, perchè in contrasto con l’art. 36, il quale attribuisce al titolare um diritto soggettivo perfetto. Si apre, allora, lo spazio per la determinazione equitativa del giudice. Tradução livre.

38 Nessa diretriz, são as lições de Guiuseppe BRANCA: “(...) Il problema della retribuzione equa e sufficiente, di gran lunga il più rilevante nell’esperienza giurisprudenziale di queti trent’anni, è anche il più presente nel dibattito constituzionale. (...) due criteri guida posti allá base della determinazione del compenso dei lavoratori: la sufficienza a soddisfare lê loro necessita personali e familiari, e la proporzionalità alla quantità e qualità del lavoro, che corrispondono a due funzioni fondamentali da aassicurare alla retribuzione: quella di mínimo vitale- sia pure storicamente inteso – e quella di compenso adeguado alle diverse caratteristiche intrinseche del lavoro (che non vuol dire necessarioamente una concessione allá lógica mercantilistica dello scambio)” (Comentario della Costituzione. Tomo I, art. 36. Bologna: Nicola Zanichelli Editore, 1979) De igual modo, a respeito do art. 36, par. 1, da Constituição Italiana, Giuseppe VERGOTTINI ensina: “L’articolo 36, 1º comma, prevede il diritto a una retribuzione giusta. Due sono i criteri fissati: quello della professionalità per cui la retribuzione deve essere equivalente alla quantità e qualità del lavoro svolto e quello della sufficienza che impone una misura mínima di livello retributivo tale da assicurare al lavoratore e alla sua famiglia una esistenza libera e dignitosa. La disposizione in tema di giusta retribuzione è stata considerata dalla giurisprudenza come immediatamente precettiva, senza bisogno di attendere disposizioni di legge attuative.” (Diritto Costituzionale. Italia: CEDAM, 2000, p. 364.) Ademais, ressalta-se, nessa linha, os ensinamentos de Livio PALADIN comenta que “a differenza di altri diritti sociali, che non si concretano indipendente da leggi ordinarie attuative della Costituzione, le proposizioni costituzionali riguardanti la giusta retribuzione sono state súbito considerate – tanto in dottrina (Mortari) quanto in sede di giustizia civile – immediatamente precettive e dunque operative: con la conseguenza che i giudice competenti in materia ne hanno fatto senz’altro applicazione, per risolvere varie specie di controversie

Page 223: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 223

Em atenção ao art. 14 bis da Constituição Argentina, Livellara39 diz que a expressão “retribuição justa” é muito ampla e a norma constitucional não revela ‘o que é’ nem ‘quando é’ justa uma retribuição. Esse autor registra, ainda, a inexistência de problema quanto a isto, pois durante a elaboração desse texto constitucional ficou clara a adoção da tese cristã sobre o ‘salário justo’.

Em outra passagem, esse autor40 complementa a lição, afirmando que, pela reforma constitucional de 1994, com a constitucionalização dos tratados e declarações de direitos humanos pela disposição no artigo 75, inciso 22, o alcance da garantia constitucional à ‘retribuição justa’ (art. 14 bis, CN) se viu complementada com base aos conteúdos específicos desses instrumentos internacionais, uma vez que se incorporou ao texto constitucional o conceito de “progresso econômico com justiça social”, dando conteúdo para aquele direito social.

Justo Lopez41 informa que os juristas argentinos costumam salientar que o preceito constitucional – art. 14 bis - relativo ao direito do trabalhador a uma remuneração justa resulta aplicável no país, principalmente mediante convenções coletivas de trabalho, mas que também é concretizado através de certas disposições do Código Civil que fundamentam a doutrina da nulidade da cláusula do contrato individual de trabalho que estabelece um salário irrisório, dando ensejo ao trabalhador pleitear uma remuneração adequada.

Deveras, com base especialmente o art. 14 bis da Constituição, o art. 954 do Código Civil e o art. 114 da LCT, os doutrinadores argentinos esgrimem a possibilidade de revisão de cláusula salarial do contrato de trabalho e de correção judicial do salário gravemente injusto, estabelecendo-se uma retribuição justa.

fra lavoratori e datori di lavoro. ... Più precisamente, é su questa base che spetta al giudice far corrispondere la retribuzione a due fondamentali e diverse esigenze: la prima delle quali si ricollega al rapporto di scambio tra prestatori d’opera e datori di lavoro, considerando la prestazione di lavoro nella sua consistenza quantitativa e qualitativa; mentre la seconda, cioè la sufficienza, va salvaguardata in ogni caso, con riguardo alle esigenze minime di vita, proprie del lavoratore e della sua famiglia.” (Diritto Costituzionale. 3 ed. Italia: CEDAM, 2001, p. 667-668.)

39 La retribución justa en la doctrina judicial de la Corte Suprema. In Trabajo y Seguridad Social. Revista de Doctrina, Jurisprudencia y Legislación. Tomo XXIII. Buenos Aires: Universidad Catolica Argentina, 1996, p.758.

40 Derechos y garantias de los trabajadores inrcorporados a la Constitución reformada. Buenos Aires: Rubinzal – Culzoni Editores, 2003, p. 149-150.

41 El salário, p. 59-60.

Page 224: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

224 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

6. o direito ao salário justo na ordem jurídica bra-sileira

Na direção de demonstrar ser o salário justo um direito positivado em nossa ordem jurídica – esvaziando o discurso que o coloca como esperança, aspiração ou idéia apresentada apenas na qualidade de ação moralmente justificada –, impende ressaltar as normas jurídicas que o contemplam expressamente, a par das já salientadas nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

A recente Emenda Constitucional de n.° 53, de 19 de dezembro de 2006, alterando a disposição do art. 60 do Ato da Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT42, prevê o direito à remuneração condigna dos trabalhadores da educação “in verbis”:

Até o 14º (décimo quarto) ano a partir da promulgação desta Emenda Constitucional, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios destinarão parte dos recursos a que se refere o caput do art. 212 da Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento da educação básica e à remuneração condigna dos trabalhadores da educação [...].43 (grifo nosso)

É importante destacar que, historicamente, no Brasil, apenas a Constituição de 1934, no parágrafo único, alínea “f ”, do art. 150, instituiu no texto constitucional o direito à “remuneração condigna” para os professores.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) refere-se ao direito em comento no art. 766 ao dispor “in verbis”:

Nos dissídios sobre estipulação de salários, serão estabelecidas condições que, assegurando justos salários aos trabalhadores, permitam também justa retribuição às empresas interessadas.(grifo nosso).

42 A Lei n. 11.494, de 20.06.07, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais de Educação, reitera o direito à remuneração condigna do professor.

43 O art. 212 “caput” da CF dispõe: “A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”.

Page 225: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 225

Também, nesse sentido, o §2° do art. 91 da Lei n. 9279/96 assegura ao em-pregado a justa remuneração ao tempo em que garante ao empregador o direito exclusivo de licença de exploração da propriedade de invenção ou de modelo de utilidade.

A norma da CLT, embora tenha redação lapidar, proporciona dissidências doutrinárias, quanto à sua interpretação, que devem ser registradas a fim de consolidar o reconhecimento e eficácia do direito ao salário justo nas relações individuais e coletivas de trabalho.

Em único comentário ao art. 766 da CLT, Valentin Carrion44, ao dizer que “a estipulação de salários por via judicial ocorre nos dissídios coletivos”, demonstra seu entendimento restritivo de aplicação desse dispositivo consolidado.

Para Eduardo Gabriel Saad45, esse texto consolidado dirige-se a dissídio coletivo de natureza econômica, que permite aos Tribunais do Trabalho rever os salários ajustados entre patrões e empregados.

Ademais, esse juslaboralista46 comenta, em outro momento, que essa norma jurídica tem simples valor programático, uma vez que não define o que seja justo salário dos trabalhadores nem justa retribuição das empresas. Por não oferecer ao juiz critério que conduza à configuração do justo salário ou da justa retribuição, constitui apenas diretriz ao Tribunal para que tenha presente, no julgamento dos dissídios coletivos de natureza econômica, a interdependência do justo salário e da retribuição do capital.

A despeito da admiração pelos autores que entendem ser programática a norma jurídica que consagra o salário justo, afigura-se-nos não ser esta a melhor visão, quer por ser aplicável a dissídios individuais, quer por se tratar de um conceito jurídico indeterminado, prescindindo, portanto, de especificação legal47, ou seja,

44 Comentários à consolidação das leis do trabalho. 32. ed. atual. por Eduardo Carrion. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 582.

45 Consolidação das Leis do Trabalho Comentada. 39. ed. atual. e rev. e ampl. por José Eduardo Duarte Saad, Ana Maria Saad Castello Branco. São Paulo: LTr, 2006, p. 754.

46 Ibidem, p. 754.47 A corroborar esse pensar, registram-se, novamente, as lições de BANDEIRA DE MELLO:

“A existência dos chamados conceitos vagos, fluídos ou imprecisos, nas regras concernentes à Justiça Social não é impediente a que o Judiciário lhes reconheça, in concreto, o âmbito

Page 226: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

226 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

quanto à eficácia e aplicabilidade da norma, não se trata de norma de eficácia limitada do tipo programática, e, sim, de uma norma de eficácia plena – ou, utilizando a denominação de Vezio Crisafulli, norma imediatamente preceptiva – que se aplica direta, imediata e integralmente às relações sociais, tendo em vista o art. 5°, §1°, da Lei Fundamental de 1988.

Não obstante a existência de entendimentos doutrinários de que a aplicação desse dispositivo consolidado é direcionada apenas aos dissídios coletivos de natureza econômica, em verdade não se pode interpretar assim, pois a norma se refere a “dissídios”, não distinguindo a espécie, se individuais ou coletivos, de modo que empregando o brocardo “Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”, vale dizer, “Onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir”.48

Ademais a reforçar esse pensar, destaca-se que o uso da terminologia “dissídios” se refere ao gênero, incorporando, portanto, as espécies respectivas: dissídios individuais e dissídios coletivos. Nesses termos, não restam dúvidas da destinação desse artigo em comento para essas duas ações.

A consolidar esse pensar, é importante observar que no caso de polissemia ou plurissignificação de uma norma de direitos humanos, deve-se conceber preferência ao sentido da norma que lhe permita uma maior eficácia jurídica e social.49

Nessa senda, José Martins Catharino50 já explanava que o artigo em destaque acolhe o princípio da equidade em termos inequívocos e é aplicável na

significativo. Esta missão é realizada habitualmente pelo juiz nas distintas áreas do Direito e sobretudo no direito privado. Além disso, por mais fluído que seja um conceito, terá sempre um núcleo significativo indisputável. É puramente ideológico e sem nenhuma base jurídica o entendimento de que a ausência de lei definidora obsta a identificação do conceito e invocação do correlato direito.” (Eficácia das normas constitucionais sobre a justiça social. São Paulo: Revista de Direito Público, nº 279, 2000, p. 255.)

48 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p.201.49 A propósito, David Diniz DANTAS pronuncia que pelo princípio da força normativa da

Constituição na solução das questões jurídicas, deve-se dar prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da Constituição, contribuem para uma eficácia ótima da Lei Fundamental. Conectado a esse princípio, temos o princípio da máxima efetividade, significando que na interpretação da norma constitucional a esta deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. (Interpretação Constitucional no Pós-Positivismo: teorias e casos práticos. São Paulo: Madras, 2004, p. 264-265.)

50 Tratado Jurídico do Salário, p. 391.

Page 227: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 227

determinação individual e eqüitativa do valor do salário e na fixação do similar coletivo. Anotou, ainda, que essa fórmula eqüitativa do art. 766 é louvável, devendo o direito pessoal do trabalhador a um justo salário ser colocado em primeiro lugar, mas com a preocupação elementar de estar em íntima correlação com a capacidade empresarial em pagá-lo.

Analisando o artigo em apreço, Francisco Antônio de Oliveira51, após salientar que a harmonia entre capital e trabalho dependerá sempre da justa remuneração da força de trabalho, testifica que se o salário for aquém do que deveria ser, haverá enriquecimento sem causa da empresa, já que poderá ter maior margem de lucros sobre o produto acabado. Poderá, todavia, não haver o enriquecimento sem causa se a empresa não aumentar a margem de lucro, repassando para o consumidor aquela parcela paga a menor ao trabalhador, entretanto, o salário não será justo.

Diante desse quadro, é premente mudar a ótica do nosso Judiciário Trabalhista para que implemente o direito ao salário justo não apenas em dissídios coletivos do trabalho de natureza econômica, como também em ações que envolvem interesses individuais e coletivos “lato sensu” (difusos, coletivos e individuais homogêneos), a fim de imprimir justiça nas relações de trabalho e proporcionar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de trabalho.

7. natureza jurídica

Perquirir sobre a natureza jurídica significa desvendar as essências de um instituto no sistema jurídico. Nesse passo, apontar-se-á, na seqüência, a essência do salário justo.

Primeiramente, cumpre ressaltar que há fundamentalidade material das nor-mas que asseguram o direito ao salário justo, uma vez que guarda relação direta com os princípios ético-fundamentais de nossa Lei Maior – dignidade da pessoa humana; valorização social do trabalho e da livre iniciativa; e justiça social –, enquadrando-se nas necessidades essenciais do trabalhador na sua dimensão individual e social.

Nessa senda, infere-se que o direito ao salário justo constitui direito social do trabalhador. Essa perspectiva sobressai quando observamos que está previsto

51 Francisco Antônio de OLIVEIRA, Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p.643.

Page 228: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

228 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

em diversos diplomas internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, resvalando, em nosso pensar, uma norma materialmente constitucional (CF, art. 5°, §2°).

Os direitos fundamentais podem estar previstos em normas jurídicas que estão estruturadas como princípios e em outras que se apresentam como regras.52 Destarte, sob o viés de averiguar a “estrutura normativa” da norma de direito fundamental que prevê o salário justo, cumpre atentar para a “distinção forte” entre regras e princípios.

Com base nos escólios de Alexy, pensamos que a norma jurídica pertinente ao salário justo, por comportar realização na maior medida possível diante das possibilidades reais e jurídicas existentes no caso concreto, é do tipo princípio, vale dizer, constitui-se em um mandado de otimização que faz referência à justiça (fairness).

Por conseguinte, o princípio do salário justo permite o balanceamento de valores – “balancing”53 – em caso de colisão com outros princípios. Em tendo um caráter prima facie – e não definitivo como as regras – pode ser superado em função de outros princípios colidentes.

À guisa de ilustração, registrem-se as possíveis colisões entre o direito ao salário justo e o direito à livre iniciativa, da qual é expressão a autonomia privada; assim como o direito ao salário justo e o direito ao trabalho.

É importante não olvidar que, na moderna dogmática jurídica freqüentemente referida como “pós-positivista”, os princípios têm força normativa, de modo

52 Nesse sentido, Luís Roberto BARROSO assinala a existência de direitos fundamentais que assumem a forma de princípios e outros de regras, bem como chama a atenção para o fato de haver princípios que não são direitos fundamentais. (Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. Revista da Escola Nacional da Magistratura. Ano 1, n.° 2, outubro de 2006, p. 38.) Também, Alexy ressalta que “existirían entre las normas de derecho fundamental tanto algunas que son principios y otras que son reglas”. (Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 98.)

53 Segundo Francisco Gérson Marques de LIMA, o “balancing” constitui instrumento de medição e sopesamento dos contrapesos de valores constitucionais, corolário da jurisprudência de valores, para responder às tensões constitucionais, as quais facilmente ocorrem na aplicação de normas envolvendo direitos e garantias fundamentais. (Interpretação axiológica da Constituição, sob o signo da Justiça. In Estudos de Direito Constitucional – Homenagem a Paulo Bonavides. Coord. José Ronald Cavalcante Soares. São Paulo: LTr, 2003, p. 69.)

Page 229: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 229

que o princípio do salário justo é aplicável diretamente nas relações individuais e coletivas de trabalho.

8. fatores determinantes na estipulação do salário justo

A determinação do montante salarial constitui um ponto crucial do contrato de trabalho, tendo em vista que, de um lado, constitui, via de regra, o meio de subsistência do trabalhador e sua família, bem como indica a sua posição social, e, de outra parte, representa, juntamente aos demais encargos sociais, um dos maiores itens de dispêndio da empresa, atrelando-se a saúde financeira da organização. A par disso, apresenta reflexos nos níveis de desenvolvimento econômico-social e de distribuição de rendas do país.

Justo Lopez54 leciona que:

dois fatores, em realidade, determinam a justiça do salário, estando em primeiro lugar a estimação econômica, consistente em um juízo de valoração do trabalho e seu resultado; e, em segundo lugar, que é o primeiro na ordem jurídica, a exigência de que o salário proporcione o sustento de uma vida digna do trabalhador e sua família. A esses fatores intrínsecos ao contrato de trabalho, o autor acrescenta um terceiro, que é extrínseco: a consideração do bem comum.55

Dentre os componentes determinantes do salário justo, o jurista argentino Carlos Alberto Livellara56 inclui: satisfação das necessidades vitais e garantia da dignidade do trabalhador e de sua família; particularidades de cada ofício ou profissão; produtividade de cada trabalhador; situação da empresa; e exigências do bem comum. Expõe, ainda, que na fixação de um salário justo se deve observar

54 Justo LOPEZ, El Salario, p. 54.55 “…dos factores, en realidad, determinan la justicia del salario: en primer lugar, la estimación

económica, consistente en definitiva en un juicio de valoración del trabajo y su resultado; en segundo lugar, que es el primero en el orden jurídico, la ya mencionada exigencia de que el salario proporcione el sustento de una vida digna del trabajador y su familia. A estos dos factores, intrínsecos al contrato de trabajo, tal como se presenta contemporáneamente, debe añadirse, todavía, un tercer factor extrínseco: la consideración del bien común.” Tradução livre.

56 Derechos y garantias de los trabajadores inrcorporados a la Constitución reformada, p. 152-158.

Page 230: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

230 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

um tope mínimo (o salário familiar, que contempla as necessidades da família) e um tope máximo (a situação econômica da empresa) de modo que, entre ambos os limites, os fatores de variação estão determinados pelas modalidades de cada trabalho, a contribuição no processo produtivo de cada trabalhador e as exigências do bem comum nacional e internacional.

A partir dessas idéias, visando exprimir elementos para densificação do princípio do salário justo, esgrimimos que a estipulação do valor salarial está circunscrita a limites mínimo (salário vital ou salário mínimo) e máximo (possibilidades econômicas da empresa57), figurando entre ambos diversos fatores determinantes, quais sejam: a extensão e complexidade do trabalho, a relevância do labor no processo produtivo, o aspecto pessoal do trabalhador (qualificação), as circunstâncias espaço-temporais do trabalho e as exigências do bem comum.

Releva registrar, ademais, que esses fatores múltiplos a serem observados na determinação do montante salarial devem ser combinados entre si e analisados em cada caso concreto, pois a aplicação isolada de um desses aspectos pode ensejar um salário injusto.

9. a eficácia do direito ao salário justo

O exercício da autonomia privada nas relações individuais e coletivas de trabalho para determinação do montante salarial deve estar pautado no direito social do trabalhador ao salário justo.

57 A fundamentar esse limite máximo está a “reserva do possível”. Cumpre registrar, ainda, que, na prática, para a aferição real e concreta da situação financeira da empresa se torna necessária a adoção de medidas destinadas a esse fim, como a prova pericial contábil. A propósito, Marcus Menezes Barberino MENDES informa que a Justiça do Trabalho utiliza como critérios para a fixação judicial de salários em sentenças normativas: a apuração da capacidade financeira da empresa para suportar reajustes, através de laudos técnicos elaborados por peritos nomeados, e os índices de custo de vida local ou regional, apurados por instituto estadual de estatística e, mais tarde, pelo órgão previdenciário nacional. Ao citar o dissídio coletivo de n. 895/47, envolvendo mineiros e a Companhia Mineira de Mineração, destaca que o Tribunal de Minas Gerais concedeu reajuste parcial dos salários através de inspeção judicial e prova pericial, fixando um critério sofisticado para apuração da capacidade de pagamento da empresa: a acumulação de capital não é equivalente a lucro, que é espécie do gênero. Os recursos reinvestidos na empresa, seus estoques e o fundo de reserva demonstravam que o salário é um custo insignificante na atividade. (Dissertação de mestrado apresentada, em 2007, ao Instituto de Economia da Unicamp – Universidade Estadual de Campinas, intitulada “Justiça do Trabalho e mercado de trabalho”, sob a orientação do Prof. Dr. Cláudio Salvadori Dedecca, p. 93-94.)

Page 231: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 231

Nessa perspectiva, propugna o mestre Amauri Mascaro Nascimento58 em seus escólios:

É manifesta a importância do princípio do justo salário como fórmula geral de aplicação nas relações de trabalho tanto no plano coletivo, através das negociações coletivas salariais, como no nível das relações individuais de trabalho que não devem restringir-se aos critérios coletivos de fixação dos salários, dos mesmos devendo desprender-se.

O princípio do justo salário é uma feliz concepção. Estabelece uma razoável fórmula de superação dos impasses e dúvidas a respeito dos métodos de fixação do valor dos salários. Essa fórmula, usada adequadamente, facilita a solução direta das suas pendências suscitadas nos conflitos coletivos de trabalho pela via da negociação. Não é outra a sua função diante das reivindicações individuais. Serve, também, de diretriz para o Estado na fixação dos salários, inclusive para os Tribunais do Trabalho. É um seguro indicador para a interpretação do direito positivo que nem sempre apresenta regras claras e precisas.

Em um Estado Democrático de Direito, como o nosso, não se pode mais falar, como outrora, no Estado Liberal, em autonomia da vontade das partes contratuais para fixar o salário, na qual se exige o cumprimento das cláusulas ajustadas de maneira incondicional, em qualquer hipótese, sob os auspícios dos princípios da liberdade, da igualdade (em sentido formal), da segurança jurídica e do “pacta sunt servanda”.59

Assim, a frase “quem diz contratual diz justo” – não encontra mais albergue no sistema jurídico brasileiro.60 Importa observar que a CLT, no art. 444,

58 Teoria jurídica do salário. 2ª ed. São Paulo: LTr, 1997, p. 29.59 A propósito, merecem destaque as lições de Jolivet, citadas por Amauri Mascaro

NASCIMENTO: “A teoria liberal do salário reclama as mesmas críticas que a do preço da venda. Claro é, com efeito, que não entra nas intenções do operário fazer um presente ao patrão, mas sim obter o equivalente do seu trabalho. Por conseqüência, se ele aceita um salário inferior, fá-lo à força, por não poder tratar de igual para igual com o empregador. É que, no sistema liberal, a liberdade do operário individual não passa de uma palavra: as mais das vezes, por falta de recursos, ver-se-á obrigado a aceitar as condições que lhe oferecem. Toda a sua liberdade consistirá em não poder agir de outro modo. Mister se torna, pois, rejeitar o ponto de vista liberal, incapaz de assegurar o respeito da dignidade do operário.” (Teoria Jurídica do Salário, p. 25.)

60 Sobre essa visão de “autonomia da vontade”, salienta-se as lições de Daniel SARMENTO: “A responsabilidade era o preço da liberdade: o individuo era livre para contratar ou não, e para

Page 232: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

232 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

desde 1943, prevê que “as relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho” de maneira que não se pode esgrimir a intangibilidade do valor salarial ajustado entre as partes.

O Código Civil de 200261, trazendo novos contornos para as relações sociais, consagra princípios sociais dos contratos62, aplicáveis aos contratos de trabalho, como da função social do contrato63 e da boa-fé objetiva64, de modo que o individualismo cede lugar ao solidarismo social, limitando-se a liberdade contratual.

Redesenha-se, assim, a postura do Estado em matéria salarial frente aos contratos de trabalho, passando a adotar uma postura intervencionista para lhes imprimir a concepção social.65

definir os termos do ajuste, mas se empenhasse a sua vontade por ela estaria definitivamente obrigado. Considerações sobre a conformidade da convenção com parâmetros de justiça não compareciam, senão de forma marginal, nas preocupações do jurista de então. Para a teoria clássica, ‘o contrato é sempre justo, porque se foi querido pelas partes resultou da livre apreciação dos respectivos interesses pelos próprios contratantes’. ‘Qui dit contractuelle, dit juste’, era o lema, pois entendia-se que as partes do contrato, numa posição de igualdade jurídica, não se comprometeriam se as condições do ajuste não as favorecessem.” (Os princípios constitucionais da liberdade e da autonomia privada. Boletim Cientifico: Ensino Superior do Ministério Público da União. Ano4 , nº 14, Brasília/DF: ESMPU. jan/mar 2005, p.189.)

61 Não se pode perder de vista que o Direito Civil, com a recente reforma, inspirada nos princípios da eticidade, operabilidade e sociabilidade, consagrou uma concepção humanista para os contratos, insculpindo valores éticos e institutos jurídicos totalmente pertinentes ao Direito do Trabalho.

62 Rodolfo PAMPLONA FILHO e Pablo Stolze GAGLIANO ensinam que os princípios sociais do contrato são conceitos abertos que, à luz do princípio da concretude, devem ser preenchidos pelo juiz, no caso concreto, visando a tornar a relação negocial economicamente útil e socialmente valiosa. Ressalta, com razão, que de nada adianta um contrato com acentuado potencial econômico ou financeiro, se, em contrapartida, tem impacto negativo no campo social. (Novo Curso de Direito Civil, p. 43.)

63 Cabe anotar que o art. 421 do Código Civil Brasileiro preceitua que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Ademais, o Estatuto Supremo de 1988, no art. 186 expõe que a função social da propriedade rural é cumprida quando atende aos requisitos da “observância das disposições que regulam as relações de trabalho e da exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.

64 A propósito, o Código Civil dispõe no art. 113 que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”e no art. 422. que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

65 A respeito, Ignacio DURÉNDEZ SÁEZ assevera: “El Estado debe intervenir en la reglamentación del trabajo y en los conflictos colectivos e individuales que en su ejercicio se

Page 233: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 233

Isso porque uma autêntica democracia não é somente o resultado de uma previsão normativa formal de direitos fundamentais, mas é o fruto da implementação dos valores que tais direitos inspiram no seio social e na vida política do país.

É nesse mirante que se fala em força normativa dos princípios fundamentais e juridificação do salário justo para entreverem mudanças na medida da evolução de uma consciência ética, ao se exigir uma prática diuturna de respeito à pessoa humana.

Decerto que se o exercício da autonomia privada nas relações de trabalho não se apresenta no plano de equilíbrio, sob a harmonia eqüitativa dos interesses do capital e trabalho66, impende se intervir na busca da efetivação dos princípios constitucionais de nosso Estado Democrático de Direito, onde a justiça é erigida como “valor supremo numa sociedade fraterna e solidária, em que a dignidade da pessoa humana é cultuada”.67

Assim sendo, não se pode mais ficar como meros espectadores de um contexto econômico-social onde proliferam salários ínfimos e jornadas exaustivas – realidade vivenciada, entre outros, por trabalhadores que labutam no corte da cana-de-açúcar e de trabalhadores bolivianos na indústria têxtil de São Paulo –, devendo proporcionar transformações no seio social, através da adoção de medidas práticas, como o salário judicial corretivo e supletivo, direcionadas à satisfação das expectativas normativas de proteção ao menos favorecidos e de imposição de uma justa igualdade nas relações sociais de trabalho.

É de se ressaltar, ademais, que a tendência atual de as empresas pagarem salários por produção, visando melhorar o desempenho do empregado no

susciten, realizando esta función con un criterio político social fundado en la necesidad de obtener por medios pacíficos una cada vez más justa distribución de lo que se produce, y de equilibrar la necesidad humana con su racional satisfacción inmediata.” (La regulación del salario en España (1931-1996, p. 30.)

66 José Henrique Marcondes MACHADO acentua que “o equilíbrio no relacionamento entre trabalhadores e empregadores somente terá êxito quando for baseado na justiça e solidariedade.” (O salário justo sob uma visão social e cristã. Revista de Direito do Trabalho, v. 2, n. 9, set./dez., 1997, p. 192)

67 José CRETELLA JÚNIOR. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. I. Rio de Janeiro: ed. Forense, 1992, p. 201.

Page 234: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

234 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

trabalho (produtividade), de sorte a ampliar os seus resultados econômicos, não pode ser desvinculada da observância do princípio do salário justo.

Nesses termos, esgrimimos ser possível intervir na autonomia privada trabalhista.68 Entrementes, é certo que uma intervenção no montante salarial, fora das previsões de gastos empresariais, vai produzir reflexos sobre o custo do processo produtivo e, por conseguinte, desorganização das finanças empresariais, a par de produzir reflexos na economia do nosso país.

Acentua-se, portanto, que a intervenção na autonomia privada dos sujeitos da relação de emprego na direção de revisar cláusula contratual e efetivar um montante salarial justo - deve-se dar nas hipóteses de manifesta afronta à dignidade do trabalhador e à comutatividade laboral, para se fazer valer a justiça contratual.69

10. conclusões

O salário é ponto central para o Direito do Trabalho, constituindo-se em um complexo de verbas, de caráter pecuniário e obrigacional, devidas e pagas diretamente pelo empregador ao empregado como retribuição da energia de trabalho disponibilizada em um contrato de trabalho.

Na perspectiva técnico-jurídica, o salário configura cláusula obrigacional do contrato individual de trabalho e, sob o aspecto econômico-social, representa a renda do trabalho obtida pelo empregado a fixar o nível de vida digno da maior parte dos seres humanos.

Há dupla natureza do salário: retributiva – por ser retribuição do trabalho e valorativa – por ser instrumento a proporcionar condições dignas de vida ao trabalhador e sua família.

68 Nessa mira, o art. 29.2 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 dispõe: “No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem, e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.” (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 355.)

69 Nesses termos, Antonio Jeová SANTOS pronuncia que a justiça contratual está positivada no vigente Código Civil Brasileiro com o instituto da lesão e com as teorias da imprevisão, da onerosidade excessiva, da consideração eqüitativa em matéria contratual e da proibição de conduta que prima pelo exercício abusivo de algum direito. (Função Social do Contrato. 2. ed. São Paulo: Editora Método, 2004, p. 71)

Page 235: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 235

A partir da concepção jurídico-filosófica de realizar justiça nas relações sociais do capital e trabalho, o sistema jurídico vigente exorta por um trabalho decente – labor produtivo e adequadamente remunerado (salário justo) – a proporcionar uma participação real e eqüitativa do trabalhador na riqueza para cuja criação contribui solidariamente na empresa e na economia nacional.

Na estipulação do montante salarial, não se pode mais falar em autonomia da vontade com perspectiva individualista e patrimonialista, mas, sim, em autonomia privada que é compatível com a concepção de socialização do direito contemporâneo.

Nesse diapasão, em não havendo mais o absolutismo de outrora na deter-minação do salário, é possível o Estado intervir nas relações individuais e coletivas de trabalho, orientando-as para valores humanísticos superiores, todos condensados na dignidade da pessoa humana, na direção de concretizar o direito social do trabalhador ao salário justo.

Por ser o princípio do salário justo um conceito jurídico indeterminado, não se pode exprimir um critério objetivo, aritmético, para a sua acepção, importando aplicar o princípio da razoabilidade no preenchimento do seu conteúdo jurídico, a cada caso concreto, em observância aos princípios ético-jurídicos vigentes em uma sociedade.

11. referências

ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002.

ANGIELLO, Luigi. La retribuzione. Milano: Giuffré, 1990.

BALLESTEROS, Alberto Montoso. Supuestos filosófico-jurídicos de la justa remuneración del trabajo. Secretariado de Publicaciones: Universidad de Murcia, 1980.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. Revista de Direito Público, n. 57-58. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.

BARGABELATA, Hector-Hugo. Derecho del Trabajo. Montevideo: Fundación de Cultura Universitaria, 1978.

Page 236: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

236 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. Revista da Escola Nacional da Magistratura. Ano 1, n.° 2, outubro de 2006.

BONARETTI, Loris. L’equa retribuzione nella costituzione e nella giurisprudenza. Milano: Giuffrè Editore, 1994.

BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta. 3ª ed. São Paulo: Malheiros Edi-tores, 2004.

BRANCA, Guiuseppe. Comentario della Costituzione. Tomo I, art. 36. Bologna: Nicola Zanichelli Editore, 1979.

BRITO FILHO. José Claudio Monteiro de. Trabalho decente: análise jurídica da exploração, trabalho forçado e outras formas de trabalho indigno. São Paulo: LTr, 2004.

BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum. 2007.

CARRION, Valentin. Comentários à consolidação das leis do trabalho. 32. ed. atual. por Eduardo Carrion. São Paulo: Saraiva, 2007.

CATHARINO, José Martins. Tratado Jurídico do Salário. Ed. Fac-similada. São Paulo: LTr, 1997.

CESARINO JÚNIOR, A.F.. Direito Social Brasileiro. São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1963.

COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

CRISTOFARO, Maria Luisa de. La giusta retribuzione. Bologna: Società Editrice IL Mulino, 1971.

DANTAS, David Diniz. Interpretação Constitucional no Pós-Positivismo: teorias e casos práticos. São Paulo: Madras, 2004.

DEL VALLE, José Manuel. La protección legal de la suficiencia del salario. España: Dykinson, 2001.

DURÉNDEZ SÁEZ, Ignacio. La regulación del salario en España (1931-1996). Madrid-España: ARTEGRAF S.A., 1997.

Page 237: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 237

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

_______. Uma questão de princípio. 2ª ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

El trabajo decente, centro de atención. In: Revista Trabajo de la OIT n. 57, septiembre 2006. Ginebra: OIT, 2006.

FARIA, José Eduardo. Direitos humanos, direitos sociais e justiça. José Eduardo Faria (org.). São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

FREITAS JÚNIOR, Antônio Rodrigues de. Os direitos sociais como direitos humanos num cenário de globalização econômica e de integração regional. In Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional. PIOVESAN, Flávia (Coord.) São Paulo: Max Limonad, 2002.

GALANTINO, Luisa. Diritto del Lavoro. 19ª ed. Torino: G. Giappichelli Edi-tore, 2003.

GARCIA, Maria. Mas, quais são os direitos fundamentais? In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, n° 39. Ano 10, abril-junho. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

GIOVANNI, Roma. La retribuzione. Torino: UTET, 1993.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional - A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e processual da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.

HERERA, Enrique. Princípios para um “Código-Tipo” de Direito do Trabalho na América Latina. In Princípios para um “Código-Tipo” de direito do trabalho para a América Latina. PERONE, Gian Carlo; SCHIPANE, Sandro. (coord). Revisão técnica Amauri Mascaro Nascimento; Tradução Edílson Alkmim Cunha – São Paulo, LTr 1996.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991.

KRELL, Andreas, J. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha. Os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002.

Page 238: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

238 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

LEVI, Alberto. Il trasferimento disciplinare del prestatore di lavoro. Torino, Itália: G. Giappichelli Editore, 2000.

LIVELLARA, Carlos A. Derechos y garantias de los trabajadores inrcorporados a la Constitución reformada. Buenos Aires: Rubinzal – Culzoni Editores, 2003.

_______. La retribución justa en la doctrina judicial de la Corte Suprema. In Trabajo y Seguridad Social. Revista de Doctrina, Jurisprudencia y Legislación. Tomo XXIII. Buenos Aires: Universidad Catolica Argentina, 1996.

LOPEZ, Justo. El salario. Buenos Aires: Ediciones Juridicas, 1988.

MACHADO, José Henrique Marcondes. O salário justo sob uma visão social e cristã. Revista de Direito do Trabalho, v. 2, n. 9, set./dez., 1997.

MANSUETI Hugo; PALAZZO, Eugenio Luis; SCHINELLI, Guillermo. Curso de Derecho Constitucional. La Constitución como garantía. Los derechos y deberes del hombre. Tomo V. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2001.

MASI, Domenico. O futuro do trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. Tradução Yadyr A. Figueiredo. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília, DF: Ed. da UnB, 1999.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Teoria Jurídica do Salário. 2. ed. São Paulo: LTr, 1997.

_______. O Salário. Ed. fac-similada (1932). São Paulo: LTr, 1996.

OLIVEIRA, Francisco Antônio de. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

PALADIN, Livio. Diritto Costituzionale. 3 ed. Italia: CEDAM, 2001.

PASSARELLI, Giuseppe Santoro. Realtà e forma nel diritto del lavoro. Tomo II. Torino: G. Giappichelli, 1972-2006.

PERA, Giuseppe e PAPALEONI, Marco. Diritto del Lavoro. 7. ed. Padova: CEDAM, 2003.

Page 239: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 239

_______ e GRANDI, Mario. 3. ed. Commentario breve alle leggi sul lavoro.Milano: CEDAM, 2005.

PERELMANN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

PÉREZ AMORÓS, Francisco. De la Europa de los Mercaderes a la Europa Social: Los aspectos sociales de la Constitución Europea de 2004. In: Revista Tecnico Laboral n. 112, vol. XXIX. Barcelona: Consejo General de Colegios Oficiales de Graduados Sociales, 2007.

PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución. 9ª ed. Madrid: Tecnos, 2005.

PERONE, Giancarlo; SCHIPANE, Sandro. (coord). Princípios para um “Código-Tipo” de direito do trabalho para a América Latina. Revisão técnica Amauri Mascaro Nascimento; Tradução Edílson Alkmim Cunha – São Paulo, LTr 1996.

PICCININI, Iolanda. Equità e Diritto del Lavoro. Itália: Cedam, 1997.

PIOVESAN, Flávia. A incorporação, a hierarquia e o impacto dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro. In O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. Coord. Luiz Flávio Gomes e Flávia Piovesan. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.

_______. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7ª ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

PLÁ RODRÍGUEZ, Américo. Curso de Derecho Laboral: el salario, v. II, t. II. Montevideo: Ediciones IDEA, 1994.

_______. El salario en el Uruguay (su régimen jurídico). Tomo II. Montevideo, 1956.

Por uma globalización justa: el papel de la OIT. Comisión Mundial sobre la Dimensión Social de la Globalización. Genebra: OIT, 2004.

REALE, Miguel. Fundamentos do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribu-nais, 1998.

Rerum Novarum: Carta Encíclica de sua Santidade o Papa Leão XIII sobre a condição dos operários. Trad. Manuel Alves da Silva. 15. ed. São Paulo: Paulinas, 2005.

Page 240: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

240 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

RECASÉNS SICHES, Luis. Introducción al Estudio del Derecho. México: Edi-torial Porrúa, 2006.

SAAD, Eduardo Gabriel. Consolidação das Leis do Trabalho Comentada. 39. ed. atual. e rev. e ampl. por José Eduardo Duarte Saad, Ana Maria Saad Castello Branco. São Paulo: LTr, 2006.

SANTOS, Antonio Jeová. A lesão em seus elementos objetivo e subjetivo. Função social do contrato. 2. ed. São Paulo: Editora Método, 2004.

SANTOS, Enoque Ribeiro dos. A função social do contrato, a solidariedade e o pilar da modernidade nas relações de trabalho: de acordo com o novo código civil brasileiro. São Paulo: LTr, 2003.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. rev., atual e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e relações privadas, Rio de Janeiro Ed. Lumen Juris, 2004

_______. Os princípios constitucionais da liberdade e da autonomia privada. In Boletim Científico: Escola Superior do Ministério Público da União. Ano 4. Número 14 – janeiro/março 2005. Brasília: ESMPU.

SCACCIA, Gino. Gli strumenti della ragionevoli nel giudizio costituzionale. Milano: Giuffrè Editore, 2000.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed, 3ª tiragem, São Paulo: Malheiros Editores, 1999.

SILVA, Luciana Aboim Machado Gonçalves da. La eficacia de los derechos fun-damentales. In: El Derecho del Trabajo y los procesos de integración. Nicaragua, 2006.

SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito: os direitos fun-damentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

SILVA, Walküre Lopes Ribeiro da. A teoria da justiça e o Direito do Trabalho. In Curso de direito do trabalho: teoria geral do direito do trabalho, vol. I. CORREIA, Marcus Orione Gonçalves (organizador). São Paulo: LTr, 2007.

Page 241: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 241

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: Editora LTr, 2000.

SÜSSEKIND, Arnaldo. Convenções da OIT e outros tratados, 3ª ed. São Paulo: LTr,

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. La nueva dimensión de las necesidades de protección del ser humano en el inicio del siglo XXI. 2ª ed. San José, Costa Rica: Impresora Gossestra Internacional, 2003.

URIARTE, Oscar Ermida. A flexibilidade. São Paulo: LTr, 2002.

VALÉRIO, Vargas. Cláusulas gerais e conceitos indeterminados como meios de interpretação e de integração do Direito do Trabalho. In: Justiça do Trabalho e Dignidade da Pessoa Humana: algumas relações do Direito do Trabalho com os Direitos Civil, Ambiental, Processual e Eleitoral. João Humberto CESARIO, (coord.). São Paulo: LTr, 2007.

VERGÉS RAMÍREZ, Salvador. Derechos Humanos: fundamentación. Madrid: Tecnos, 1997.

VERGOTTINI, Giuseppe. Diritto Costituzionale. Italia: CEDAM, 2000.

VIEIRA, Oscar Vilhena. A Gramática dos Direitos Humanos. In: Revista do ILANUD nº17 (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente), São Paulo, 2001.

_______. Realinhamento Constitucional. In: Direito Global. SUNDFELD, Carlos Ari e VIEIRA, Oscar Vilhena. (coords.). São Paulo: Max Limonad, 1999.

ZAINAGHI, Domingos Sávio (coord.). MACHADO, Antônio Cláudio da Costa (org.). CLT Interpretada. São Paulo: Manole, 2007.

_______ e FREDIANI, Yone. Novos rumos do Direito do Trabalho na América Latina. São Paulo: LTr, 2003.

ZOPPOLI, Lorenzo. La corrispettività nel contratto di lavoro. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1991.

Page 242: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.
Page 243: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 243

estudo acerca do assédio moral no ambiente de trabalho na legislação

brasileira e portuguesa e propostas de contribuições recíprocas

Leda Maria Messias da Silva1

Resumo

O presente trabalho trata de um estudo comparado entre Brasil e Portugal, abordando as principais questões que envolvem o assédio moral no ambiente de trabalho na lei, doutrina e jurisprudência, em cada um dos ordenamentos jurídicos citados. A partir da abordagem de que o assédio moral atinge direitos fundamentais dos empregados, conceitua o assédio e o ambiente de trabalho digno, destaca a importância da dignidade como limite ao poder diretivo do empregador e estabelece a prevenção e o respeito mútuo, como a melhor solução para relações de trabalho mais dignas. Propõe, ao final, o que pode ser melhorado numa e noutra legislação, com fundamento na experiência de cada um dos ordenamentos jurídicos estudados.

Palavras-chave

Ambiente de trabalho; Assédio Moral; Dignidade.

Abstract

The present work deals with a compared study between Brazil and Portugal approaching the main questions which involve the moral harassment in the work environment about law, doctrine and jurisprudence, in each of the aforesaid cited

1 Pós-doutora em Direito do Trabalho, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Portugal, Doutora e Mestre em Direito das Relações Sociais, Subárea de Direito do Trabalho, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC-SP; professora da Universidade Estadual de Maringá-Pr (UEM); professora do Mestrado em Ciências Jurídicas e da Graduação em Direito do Centro Universitário de Maringá-Pr (CESUMAR); ex-professora da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro; ex-membro da Diretoria - Pr, da Sociedade Brasileira de Bioética. Pertenceu, ainda, ao Comitê Permanente de Ética em Pesquisa do Cesumar-COPEC.

Page 244: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

244 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

ordenances. From the approach that moral harassment hits fundamental rights of the employees, it explains the harassment and the decent work environment enhancing the importance of dignity as a limit for the employer directive power and establishes prevention and mutual respect, as the best solution for a more dignified work relationship. Proposes, in the end, what can be improved in the legislation, based on the experience of each of the jurisdictions studied.

Key words

Work Environment; Moral Harassment; Dignity.

1. introdução

É fato que o assédio moral, jurídica e psicologicamente, pode ser objeto de estudos recentes, no entanto, sabe-se que desde que o homem relaciona-se com os seus semelhantes, os conflitos sempre existiram, desde conflitos mais simples aos mais violentos. Sem dúvidas, na ocorrência do assédio moral, o conflito reveste-se de violência moral, psicológica, social, podendo chegar até mesmo à violência física. Ocorre que nos primórdios da evolução humana, a competição era estimulada pela necessidade de sobrevivência, mas num segundo momento da história, passa a agregar a necessidade de conquistas e acúmulo, com uma divisão de trabalho variada e complexa. Um dos agravantes deste fenômeno, que tem, portanto, em suas raízes, a violência gerada por sentimentos negativos, como por exemplo, a inveja do sucesso do seu semelhante, é a competição desenfreada pela busca de lucros e atingimento de metas, muitas vezes impossíveis de serem cumpridas, bem como o embate entre precarização e flexibilização.

Esse trabalho de pesquisa, partindo do conceito do assédio moral, como ações repetitivas, contra o trabalhador, que visam humilhá-lo e degradar o seu ambiente de trabalho, tornando insuportável a sua convivência neste ambiente, onde falta o respeito pela dignidade da pessoa humana, procura desenvolver um estudo comparado desse fenômeno, no ordenamento jurídico do Brasil com o de Portugal. Demonstra-se ao longo do presente, um breve relato histórico do surgimento do assédio moral, seu conceito e caracterização na doutrina e jurisprudência de ambos os países, os tipos de assédio, os fundamentos jurídicos e a responsabilização dos praticantes do mesmo em cada uma das legislações. Antes,

Page 245: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 245

porém, demonstra-se que quando ocorre o assédio moral, os direitos que visam garantir a dignidade do trabalhador no ambiente de trabalho, que são os direitos de personalidade, estão sendo feridos. Por fim, apresentam-se as conclusões acerca do tema objeto deste estudo comparado e o que um e outro ordenamento pode contribuir, para que seja afastado do mundo do trabalho, o máximo possível o assédio moral, já que é algo que não faz bem nem ao empregado, nem ao empregador, nem à sociedade.

Para o desenvolvimento deste trabalho, foram usados diversos métodos, principalmente, como é óbvio, o método comparado a fim de comparar o fenômeno do assédio moral, num e noutro ordenamento jurídico, mas também, utilizou-se do método indutivo, através da análise do nosso objeto a fim de chegar a conclusões mais amplas, o método dedutivo, que em dados momentos foi possível a partir de argumentos gerais, chegar-se à lógica mais específica, o método dialético, confrontando hipóteses a fim de concluir acerca de uma nova tese. Importante, também, o método sistêmico para o desenvolvimento deste trabalho, a fim de entender e comparar de forma sistemática e organizada o ordenamento jurídico de um e outro País. Outros métodos auxiliares, também foram importantes, como o método histórico e estatístico, principalmente, este último, para a análise jurisprudencial.

Importante, ainda, destacar, que este trabalho, expõe comparativamente, es-pecificamente, a questão do assédio moral, no campo das relações empregatícias privadas, ou seja, na relação entre empregado e empregador, na interação entre os trabalhadores, num ambiente hierarquicamente organizado, como é o caso das relações com vínculo empregatício de uma empresa e, dentro dessa interação, a questão do meio-ambiente digno. Esclareça-se, também, que embora o assédio praticado nas relações privadas e públicas, seja o mesmo em seu conceito, haveríamos que nos estender em algumas peculiaridades, tais como a questão da subordinação nas relações privadas e da hierarquia, nas relações públicas, inclusive no que diz respeito ao poder diretivo do empregador em relação ao empregado e o poder hierárquico do Estado, nas relações entre Servidores. Outrossim, as jurisprudências que fundamentam o trabalho e os Princípios, seriam de outra ordem, dentre outras questões. Portanto, optou-se por deixar a abordagem do tema no que diz respeito às relações públicas entre Estado e Servidores, para

Page 246: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

246 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

outro estudo, focando-se este trabalho, nas relações privadas, a fim de melhor desenvolvê-lo.

O trabalho foi desenvolvido ao longo de três anos, através de levantamentos teóricos e casos práticos da jurisprudência, em ambos os países. Durante esse período, diversos artigos foram escritos sobre o tema da dignidade do trabalhador e do assédio moral, dissertações e trabalhos de conclusão de curso foram orientados, bem como, diversas palestras foram proferidas sobre o tema do assédio moral no trabalho.

2. a dignidade no ambiente de trabalho: direitos da personalidade

A dignidade humana é um bem universal. Não importa se a abordagem é do Direito Brasileiro, Português ou de qualquer outra nacionalidade. São os direitos de personalidade que resguardam a dignidade do ser humano. Estes direitos dizem respeito à vida, à integridade física, à honra, à intimidade, à vida privada, à imagem, à liberdade de expressão, dentre outros. Assim, quando um trabalhador não tem a sua dignidade respeitada, são feridos os seus direitos de personalidade. No caso do nosso estudo, uma das formas de atingir os direitos de personalidade de um indivíduo é pela prática do assédio moral, que pode ocorrer não só no ambiente de trabalho, mas também, no ambiente escolar, social e familiar. O nosso estudo limita-se ao ambiente de trabalho.

Através da pesquisa desenvolvida, constatou-se que o legislador Constituinte, tanto brasileiro quanto português, preocupou-se em tratar dos direitos que respaldam a dignidade humana, ou seja, os direitos de personalidade, tanto na Constituição quanto no Código Civil, sendo que o legislador português, também incluiu tópico específico no Código do Trabalho. Já no direito brasileiro, que não há um Código do Trabalho, mas uma Consolidação de Leis Trabalhistas, o legislador não reservou capítulo específico para tratar dos direitos de personalidade nesta Consolidação de Leis do Trabalho. Mister, pois, registrar, que seria de bom alvitre que o tivesse feito, tal qual o legislador português, dada a importância de tais direitos, e muito mais quando se trata da parte vulnerável no contrato, como é o caso do empregado. Assim, acerca da dignidade e, em conseqüência, dos direitos de personalidade que visam resguardá-la, assinala-se a seguir o trata-

Page 247: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 247

mento do legislador brasileiro e, na sequência, sobre este mesmo tema, o tratamento dado pelo legislador português.

Mencionada na Constituição brasileira de 1988, no inciso III, do art. 1º, a dignidade da pessoa humana é considerada como um princípio, fonte dos direitos fundamentais. Este princípio é o sustentáculo dos direitos de personalidade, os quais foram contemplados, também nos artigos 5º. Inciso X (direito à intimidade, à vida privada, à honra à imagem), arts. 194 e 196 (saúde), 199, parágrafo 4º. (integridade pessoal), art.205 (educação), art.220 (liberdade de pensamento), dentre outros, eis que o legislador brasileiro não foi taxativo ao estabelecer os direitos de personalidade.

A positivação no Código Civil Brasileiro de 2002 conferiu aos direitos de personalidade tratamento especial, e reservou um Capítulo próprio na sua Parte Geral para tais direitos, dedicando 11 (onze) artigos (os de número artigos 11 ao 212), agrupados em um Capítulo, denominado: Dos Direitos da Personalidade.

2 Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções e previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.

Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.

Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.

Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo. Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento

médico ou a intervenção cirúrgica. Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e sobrenome. Art. 17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou

representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.

Art. 18. Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial. Art. 19. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome. Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da

ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição

Page 248: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

248 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Ademais, a Constituição brasileira de 1988, também trata da questão do meio-ambiente, falando em “ambiente ecologicamente equilibrado”, em seu art.2253. O art. 200, inciso VIII, faz referência específica ao ambiente de trabalho, ao estabelecer que compete ao Sistema Único de Saúde “colaborar com a proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho”. A doutrina estende, também, ao ambiente de trabalho essa proteção, sem contar que a Organização Internacional do Trabalho, ao usar a expressão “emprego decente”, na Recomendação 193, o faz com a conotação de que o trabalho seja decente, em todos os seus aspectos, inclusive, do meio-ambiente digno ao trabalhador.

Raimundo Simão de Melo expõe muito apropriadamente, que o bem ambie-ntal envolve a vida do trabalhador e que cabe ao empregador, primeiramente, a obrigação de “preservar e proteger o meio ambiente laboral e, ao Estado e à sociedade, fazer valer a incolumidade desse bem”4. E, para tanto, completa este autor, estabelece a Constituição de 1988, “como fundamentos do estado Democrático de Direito e da ordem econômica os valores sociais do trabalho, a dignidade da pessoa humana e o respeito ao meio ambiente”.

Portanto, não restam dúvidas de que ter um meio-ambiente de trabalho sadio é um direito de personalidade do empregado, segundo o sistema brasileiro, tal como, é um dever do empregador, garantir esse meio-ambiente de trabalho sadio, e de toda a sociedade, atentar para essas questões, pois o ambiente de trabalho sadio assegura, em consequência, condições físicas e psíquicas adequadas, o que garante o bem fundamental que é a vida do trabalhador. O legislador brasileiro, não tratou diretamente de inserir um capítulo na Consolidação das Leis do

ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

3 Art.225 da CF/88: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

4 MELO, Raimundo Simão de. Direito Ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador: responsabilidades legais, dano material, dano moral, dando estético, perda de uma chance.2 ed. São Paulo: LTr, 2006, p.28.

Page 249: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 249

Trabalho (CLT) sobre os Direitos de Personalidade dos empregados, como fez o legislador português. Pode-se, no entanto, aplicar de forma indireta, outros artigos que visam essas garantias, especialmente, o art. 483 e suas alíneas e o art. 482, nas alíneas “j” e “k”.

Analisando, a partir desse ponto a questão dos direitos que visam garantir a dignidade humana, inclusive, a dignidade do homem em seu ambiente de trabalho, sob o aspecto do Direito Português, temos que:

Os direitos de personalidade são direitos subjectivos que projectam a personalidade humana. Correspondem a direitos pessoais, tais como o direito à vida, à integridade física ou ao nome. Justifica-se, pois, a especial dignidade conferida pelo ordenamento jurídico a estes direitos, tanto na Constituição, como no Código Civil e no Código do Trabalho.5

O professor Pedro Romano Martinez, continua expondo que o legislador português “seja na Constituição ou em outros diplomas como o Código Civil, não atribui direitos de personalidade; limita-se a consagrar alguns direitos inerentes à pessoa, que existem independentemente das formulações legais” 6.

Assim, a constituição portuguesa destina diversos artigos à proteção da dignidade humana. Logo em seu artigo primeiro, estabelece que:

Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Portanto, é a dignidade da pessoa humana o sustentáculo da República ou como asseveram Gomes Canotilho e Vital Moreira:

Ao basear a República na dignidade da pessoa humana, a Constituição explicita de forma inequívoca que o “poder” ou “domínio” da República terá de assentar em dois pressupostos ou precondições: (1) primeiro está a pessoa humana e depois a

5 MARTINEZ, Pedro Romano. Direito do Trabalho. 5 ed. Coimbra: Almedina, novembro, 2010, p.377.

6 MARTINEZ, Pedro Romano.Direito do Trabalho. 5 ed. Coimbra: Almedina, novembro, 2010, p.377.

Page 250: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

250 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

organização política; (2) a pessoa é sujeito e não objecto, é fim e não meio das relações jurídico-sociais. Nestes pressupostos radica a elevação da dignidade da pessoa humana a trave mestra de sustentação e legitimação da República e da respectiva compreensão da organização do poder político.”7

Partindo deste ponto, diversos outros direitos de personalidade estão posi-tivados, tanto na Constituição, quanto no Código Civil ou no Código do Trabalho Português, embora há que se ter em mente que mesmo os que não estão tipificados, como é o caso do direito à vida ou à integridade física e moral, que não estão tipificados no Código Civil, mas enunciados na Constituição, são de suma importância e merecem igualmente proteção8.

Ademais, na Constituição Portuguesa podemos enumerar os artigos 13º. (igualdade e não discriminação), 24º. (direito à vida, pressuposto de todos os demais direitos), 25º. (integridade física e moral), 26º. (identidade pessoal, capacidade civil, cidadania, bom nome e reputação, imagem, intimidade e vida privada), dentre outros.

O Código Civil Português, tal qual fez o Brasileiro, também estabeleceu um rol exemplificativo dos direitos de personalidade, nos arts. 70º. a 80º., tais como no art.72º., o direito ao nome, no art.75º. , sobre a confidencialidade das cartas-missivas, no art.79º., da imagem, no art. 80º., da proteção da intimidade e vida privada.

Importante destacar, no que difere do Legislador Brasileiro, a inclusão no Código Laboral Português, de uma subseção relativa à tutela dos direitos de personalidade, o que, por óbvio, não dispensa a aplicação das regras gerais de tutela da personalidade, já citadas, as quais estão dispostas na Constituição e no Código Civil. Estas regras versam sobre matérias específicas e que não raras vezes têm trazido dúvidas nos ordenamentos jurídicos em face de sua desregulamentação, como é o caso, no ordenamento jurídico brasileiro, do assédio moral, que é objeto deste estudo, mas, também, não é só, podemos citar os avanços da informática

7 CANOTILHO, Gomes J.J. e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol. I, 4 ed.revista. Coimbra: Coimbra Editora, janeiro 2007, p.198.

8 MARTINEZ, Pedro Romano.Direito do Trabalho. 5 ed. Coimbra: Almedina, novembro, 2010, p.378.

Page 251: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 251

que trazem questões vinculadas à intimidade dos empregados e que não estão regulamentadas no Direito do Trabalho brasileiro. Percebe-se, pois, que o Legislador Português poderá, nessas questões, dar o seu contributo ao legislador brasileiro.

Vejamos primeiro, algumas questões, no entanto, de forma resumida por não ser objeto específico do presente estudo pertinente aos direitos de personalidade, tratadas pelo legislador português, especificamente no Código do Trabalho e não abordadas na Legislação do Trabalho Brasileira, para depois adentrarmos ao que mais nos interessa, que é a questão do assédio moral em ambas as legislações.

O legislador laboral português utilizou-se da “Subsecção II”, para tratar dos direitos da personalidade, tanto do empregado quanto do empregador, no entanto, no Código anterior, Código do Trabalho de 2003, também já havia tratado dessa temática. Assim, no art.14º. aborda a liberdade de expressão, no art. 15º., da integridade física e moral, no art.16º., da reserva da intimidade da vida privada, no art.17º., da proteção de dados pessoais, no art.18º., dos dados biométricos do trabalhador, no art.19º., dos testes e exames médicos, no art.20º. e 21º., dos meios de vigilância à distância, utilizados pelo empregador , no art.22º., da confidencialidade de mensagens e de acesso à informação.

Na “Divisão II. Proibição de Assédio”, no art.29º., o Legislador Português, tratou do “Assédio”, de um modo geral. Esse artigo, antes está incluso na “Subsecção III”, que trata da “Igualdade e não Discriminação”. Dessa Subsecção, também faz parte a “Divisão I”, que regula “Disposições gerais sobre igualdade e não discriminação”. Acerca deste dispositivo, assinala Guilherme Dray:

I.O presente artigo corresponde ao artigo 24º. do CT2003, que na altura foi pioneiro no ordenamento laboral, resultando no essencial da transposição da Directiva n. 2002/207/CEE, de 9 de fevereiro de 1976, com redacção que lhe foi dada pela Directiva n.2002/73/CE, de 23 de Setembro de 2002.

II.O legislador assume que o assédio, máxime o assédio sexual, constitui uma forma de discriminação intolerável, seja no acesso ao emprego, seja na execução do contrato de trabalho.9

9 MARTINEZ, Pedro Romano et al. (Anotação: DRAY, Guilherme). Código do Trabalho Anotado. 8 ed.Coimbra: Almedina, outubro 2009, p.187.

Page 252: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

252 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Assim, percebe-se como se situa o assédio moral, tanto numa quanto nou-tra legislação. Ou, seja, no Brasil, não há uma legislação específica em âmbito nacional, apenas legislações pontuais, em alguns municípios, no serviço público. Em ambos os países há uma preocupação em salvaguardar os direitos de personalidade dos trabalhadores, embora no Brasil estes não estejam de forma específica exemplificada na legislação especializada para as relações de trabalho, denominada Consolidação das Leis do Trabalho, como ocorre em Portugal. Em ambas as legislações há preceitos que visam salvaguardar a dignidade humana e, consequentemente, a dignidade do trabalhador no ambiente de trabalho, preservando-se, pois, os seus direitos de personalidade.

Deve-se estar alerta de que o assédio moral, quando ocorre no ambiente laboral, local onde o empregado passa a maior parte de sua vida útil, causa conseqüências que vão repercutir, não só na vida daquele que o sofre, mas da sociedade como um todo, pois doenças como estresse, depressão, síndrome de “burn out”, diminuição da produtividade, aumento de acidentes de trabalho, são apenas alguns exemplos, sem contar a descrição de suicídios, já relatados pela literatura que trata a questão.

Quando ocorre o assédio moral, os direitos de personalidade do indivíduo, que são aqueles que visam garantir a dignidade do trabalhador, são feridos, como a honra, a intimidade, a vida privada, a imagem, o nome, dentre outros. Pode-se concluir, pois, neste tópico, que quando há a prática do assédio moral no ambiente de trabalho, a dignidade do empregado não está sendo preservada e a dignidade é substrato essencial, em ambas as legislações, objetos deste estudo.

Tanto é certo o que foi alegado no parágrafo anterior que o legislador brasi- leiro com o advento da Constituição de 1988, erigiu a indenização por danos morais, a relevo constitucional, especialmente no artigo 5º, incisos V e X, onde ficou exposto que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes: (...) V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...) X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem

Page 253: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 253

das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Outrossim, o art. 186 do Código Civil Brasileiro de 2002, reafirma a possibilidade de reparação por danos morais, ao enunciar que “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

Da mesma forma, a legislação portuguesa, no n.4, do art.29º. do Código do Trabalho, ao tratar do assédio, estabelece que “constitui contra-ordenação muito grave a violação do disposto neste artigo”. Ademais, percebe-se conseqüências indenizatórias, pois a conjugação do n.3, do mesmo art.29º. (“à prática de assédio aplica-se o disposto no artigo anterior”), com o art.28º., que é o anterior e dispõe que “a prática de acto discriminatório lesivo ao trabalhador ou candidato a emprego confere-lhe o direito a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos gerais de direito.”

Importante observação acerca do bem jurídico afetado quando ocorre o assédio moral, é feita por Maria Regina Gomes Redinha10:

O bem jurídico afectado pelo assédio é, inquestionavelmente, a personalidade do trabalhador, através da sua honra ou dignidade e da sua integridade física, objecto de tutela jurídica descentralizada. Com as contínuas manobras de agressão ou desgaste psicológico, os danos directos reflectem-se necessariamente sobre a saúde física ou bem-estar psíquico do trabalhador e, mesmo quando tal não sucede, a prática persecutória, vexatória ou discriminatória que corporiza o assédio é, por si só, atentatória da sua honra e dignidade.

Feitas estas considerações acerca da importância da proteção jurídica aos direitos de personalidade dos empregados, num e noutro ordenamento jurídico, bem como as conseqüências da lesão a tais direitos em sede de assédio moral, passemos a análise mais pormenorizada das questões sobre o tema em cada ordenamento jurídico.

10 REDINHA, Maria Regina Gomes. Assédio Moral ou Mobbing no Trabalho. Separata de Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raúl Ventura. Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa: Coimbra Editora, 2003, p.842.

Page 254: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

254 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

3. o ambiente laboral e o poder diretivo do empre-gador nos ordenamentos jurídico brasileiro e português

O ambiente de trabalho, o qual, segundo a Convenção 155 da OIT (de 1981, sobre Segurança e Medicina do Trabalho e Saúde dos Trabalhadores, ratificada pelo Brasil em 18.05.92), “são todos os lugares onde os trabalhadores devem permanecer ou têm que comparecer , e que estejam sob o controle , direto ou indireto do empregador”, é onde convivem empregados e empregadores (proprietário, tomadores de serviços, chefes, gerentes, supervisores, auxiliares, etc.), as principais figuras da relação de emprego, a qual é objeto desse estudo. É, portanto, onde o empregador exerce o seu poder diretivo, o qual é o poder de dirigir pessoalmente, as atividades realizadas no ambiente de trabalho pelo empregado. Esse poder, tem fundamento legal no artigo 2º. da CLT, bem como, fundamento doutrinário em quatro teorias: a teoria da propriedade privada (o empregador manda porque é o dono do empreendimento; atualmente ultrapassada), teoria do interesse (o poder de direção resulta do interesse do empregador em organizar, controlar e disciplinar o trabalho que remunera, objetivando atingir os fins propostos para o seu empreendimento), teoria institucionalista (que concebe a empresa como uma instituição e, portanto, como toda instituição, tem que ter um governo) e, por último, a teoria contratualista (segundo a qual o poder de direção encontra suporte no contrato de trabalho, ajuste de vontades, no qual o empregado aceita a sua subordinação; está é a predominante).

Sandra Lia Simón, sobre tais teorias aduz que “a contratualista indica a procedência do poder (contrato); a institucionalista identifica um dos motivos justificadores do poder (necessidade); e a da propriedade revela o exercente do poder (detentor dos meios de produção)”.11

Também, não se pode olvidar, como se manifesta o poder diretivo, ou seja, através do poder de organização, que implica na possibilidade do empregador organizar o seu estabelecimento, escolhendo o tipo de atividade que pretende exercer, as funções, os cargos, os salários, etc.; o poder disciplinar, que implica em

11 SIMÓN, Sandra Lia. A proteção constitucional da Intimidade e da Vida Privada do Empregado. São Paulo: LTr, 2008, p. 46.

Page 255: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 255

impor sanções aos seus subordinados, como a suspensão e advertência, e o poder de controle, o qual se manifesta na fiscalização das atividades de seus empregados, ou, melhor dizendo, no controle. É, justamente, nesse último, que mais pode sofrer o empregado, lesões aos seus direitos de personalidade, principalmente, as advindas da nefasta conduta de assédio moral no ambiente de trabalho.

De fato, não se discute que o empregador não possa exercer o seu poder diretivo, já que é este quem corre o risco do sucesso ou não do empreendimento, no entanto, esse poder está limitado pelo princípio da dignidade da pessoa humana e, portanto, pelos direitos de personalidade, que são, justamente, com já foi ressaltado, aqueles que garantem a dignidade da pessoa humana. Podemos concluir, pois, que quando ocorre o assédio moral no ambiente de trabalho é porque ou o empregador não exerce com limites o seu poder diretivo ou não os impõe, adequadamente, a quem está sob o seu poder diretivo.

Observa-se, aqui, a preocupação do legislador constituinte português em estabelecer o direito a um ambiente saudável como direito fundamental, eis que estabelece no art.66º. que “Todos tem direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender”. Muito se assemelha aludido artigo com o art.225 da Constituição Brasileira. Esse ambiente sadio é o que assegura qualidade de vida ao ser humano, o que engloba o ambiente de trabalho, pois não é possível um ambiente sadio onde as condições psíquicas e físicas do ambiente, não são preservadas com qualidade de vida. Sobre este aspecto, aduz Canotilho e Vital Moreira ao comentarem aludido artigo da Constituição Portuguesa:

A constituição estabelece, acertadamente, a articulação entre ambiente e qualidade de vida: o ambiente é um valor em si na medida em que também o é para a manutenção da existência e alargamento da felicidade dos seres humanos (teleologia antropocêntrica).12

Ademais, o art.59º., n. 1, alíneas “b” e “c”, da Constituição Portuguesa, complementa, estabelecendo como direitos dos trabalhadores a organização do

12 CANOTILHO, Gomes J.J. e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol. I, 4 ed.revista. Coimbra: Coimbra Editora, janeiro 2007, p.845.

Page 256: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

256 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da atividade profissional com a vida familiar, bem como a prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde.

Tal qual no direito do trabalho brasileiro, existe uma relação de subordinação entre os sujeitos do contrato de trabalho com vínculo empregatício, os quais são o empregado e o empregador. Denota-se do art.12 do Código de Trabalho Português que são elementos para a constituição da relação de emprego com vínculo empregatício, que haja o desenvolvimento de uma “atividade remunerada para outrem, sob autoridade e direcção do beneficiário, demonstrando, designadamente, que se integrou na respectiva estrutura empresarial”.13Portanto, presente o poder diretivo do empregador, o qual implica em estabelecer uma relação desigual, onde há a figura de um subordinado.

No direito português, o fundamento para o poder de direção do empregador, está consubstanciado nos artigos 128, n.1, alínea “e” e no artigo 97, ambos do Código do Trabalho de 2009. Percebe-se pela leitura dos respectivos artigos que a sujeição do empregado ao empregador deriva do próprio contrato de trabalho. É a denominada subordinação jurídica. Portanto, não diferente do poder diretivo no direito brasileiro, cuja tese dominante é da subordinação jurídica do empregado que é decorrente do próprio contrato de trabalho. É nesse poder, inclusive, que se inclui a fiscalização de sua atividade e, também, tal qual no direito brasileiro, uma de suas limitações se dá em razão dos direitos de personalidade dos empregados. Outra face do poder do empregador no direito português, é a do poder disciplinar, que como no direito brasileiro é a faculdade do empregador de impor sanções ao empregado, também tendo como um dos limites os direitos de personalidade dos empregados. O poder disciplinar, também decorre do contrato de trabalho e é consequência do poder de direção, tendo como finalidade assegurar a disciplina interna na empresa.14

Assim, empregado e empregador convivem num ambiente de trabalho, que deve ser o mais equilibrado possível, segundo os preceitos constitucionais, pois

13 MARTINEZ, Pedro Romano et al. (Anotação: MARTINEZ, Pedro Romano). Código do Trabalho Anotado. 8 ed.Coimbra: Almedina, outubro 2009, p.133.

14 MARTINEZ. Pedro Romano. Direito do Trabalho. 5 ed. Coimbra, Portugal: Almedina, 2010, pp.683 e 684.

Page 257: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 257

é o que preserva a vida do trabalhador, direito de personalidade do empregado. O empregador, também deve ter os seus direitos respeitados pelo empregado, no entanto, numa relação desigual, onde impera a subordinação de um em relação ao outro, mais facilmente a balança pode pender em desfavor do empregado. Destarte, deve o empregador zelar por esse ambiente, preservando o empregado do ataque de outros que convivem com o mesmo no ambiente, quando o mesmo é vítima de qualquer ato que fira sua dignidade no ambiente de trabalho, podendo referir-se à sua vida, integridade física, honra, vida privada, intimidade, imagem, dentre outros, além do que é objeto deste trabalho, o assédio moral, o qual poderá conter diversos desses direitos feridos ao mesmo tempo.

4. breve histórico, conceito e caracterização dou-trinária e jurisprudencial do assédio moral nos ordenamentos em estudo

Embora o assédio moral exista desde que existem relações sociais, pode-se concluir que a globalização e as constantes crises econômicas, aumentaram a competitividade entre os trabalhadores, transformando, muitas vezes, o ambiente de trabalho numa verdadeira arena, onde “chora menos, quem pode mais”, estabelecendo relações altamente desgastantes para o equilíbrio emocional dos indivíduos envolvidos numa relação de emprego, que são aquelas onde está presentes uma pessoa física, subordinada, prestando um serviço contínuo, oneroso e pessoal.

O assédio moral tem recebido as denominações de terror psicológico, mobbing (mais usado nos países nórdicos, na Suíça e na Alemanha), bulling (quando ocorre, no meio escolar; na Inglaterra e Canadá, também é usado para expressar assédio moral no trabalho), harassment (Estados Unidos) e ijime (no japão). Não se olvida que o assédio moral não ocorre somente no ambiente laboral, pois poderá ocorrer, também, no ambiente escolar e até no ambiente familiar. Haja vista, inúmeros casos noticiados pela mídia, em que um dos parceiros, inconformado com a separação, depois de reiterados assédios, acaba por cometer atos de violência extrema contra a vítima.

Por volta dos anos 80, investigações científicas do psiquiatra alemão, radicado na Suécia, Heinz Leymann, relaciona o “mobbing” a doenças do

Page 258: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

258 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

trabalho15 e o livro da francesa Marie-France Hirigoyen (Assédio Moral – a Violência do Cotidiano)16, bem como, no Brasil, da médica do trabalho, a brasileira Margarida Barreto, com a obra “Uma Jornada de Humilhações”17, fazem aflorar com mais consistência o estudo desse fenômeno em várias áreas, inclusive no Direito, além da Psicologia.

Em relação ao conceito doutrinário brasileiro, segundo Margarida Barreto, médica do trabalho, assédio moral no trabalho é:

A exposição dos trabalhadores e trabalhadoras a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções, sendo mais comuns em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, em que predominam condutas negativas, relações desumanas e aéticas de longa duração, de um ou mais chefes dirigida a um ou mais subordinado(s), desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização, forçando-o a desistir do emprego.18

Apenas insta esclarecer, que a característica de forçar o empregado a desistir do emprego, geralmente é uma consequência do assédio moral, mas não, necessariamente, pois sofrer uma ação humilhante, que fira a dignidade do trabalhador e constante, por si só já é grave o suficiente para caracterizar o assédio moral.

O assédio moral, segundo conceitua Maria Aparecida Alkimin19 é:

Um fato social que ocorre no meio social, familiar, estudantil e, mais intensamente, no ambiente de trabalho, abrangendo tanto o setor privado como a administração pública, e, embora na atualidade tenha atraído estudos no campo da Psicologia,

15 GUEDES, Márcia Novaes. Terror Psicológico no Trabalho. 2.ed.São Paulo: LTr, 2004,p.24.16 Hirigoyen, Marie France. Assédio moral: a violência perversa no cotidiano. 5 ed. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. Publicado originalmente em 1998. 17 BARRETO, Margarida Maria Silveira. Uma jornada de humilhações. Dissertação

(mestrado em psicologia social) Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2000.18 BARRETO, Margarida Maria Silveira. Violência, saúde, trabalho: uma jornada de

humilhações. São Paulo: Fapesp; PUC, 2000. Disponível em http://www.assediomoral.org/spip.php?article1, acesso em 24.07.09.

19 ALKIMIN, Maria Aparecida. Assédio moral na relação de emprego. Curitiba: Juruá, 2005. p.35.

Page 259: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 259

Sociologia, Medicina do Trabalho e do Direito, tem origem histórica na organização do trabalho, tendo em vista a relação domínio-submissão entre capital e força de trabalho.

Portanto, nota-se que a autora destaca a ocorrência, principalmente, do as-sédio moral, no ambiente de trabalho.

Importante esclarecer que, muitas vezes, o assédio moral ocorre pela ação do próprio empregador, em relação ao subordinado (assédio moral vertical descendente), mas poderá ocorrer, também, por ação de seus prepostos ou, ainda, entre empregados com o mesmo grau hierárquico (assédio moral horizontal) ou até mesmo, é admitido, que aconteça do inferior hierárquico para o superior hierárquico (assédio moral vertical ascendente), o que ocorre com mais frequência quando determinado empregado, que promovido, não tem aceitação do grupo, portanto, pode ser até na forma coletiva, por um ou mais empregados.

Das diversas conceituações doutrinárias expostas para o assédio moral, pode-se concluir, que de um modo geral o assédio moral no ambiente de trabalho é considerado pela doutrina, como sendo a exposição daqueles que prestam serviços a alguém, a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas, durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções, sendo mais comum em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, em que predominam condutas negativas, relações desumanas e aéticas de longa duração, de um ou mais chefes dirigida a um ou mais subordinados, desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização, forçando-a a desistir do emprego.

Segundo a jurisprudência brasileira, também é nesse sentido o conceito de assédio moral, conforme demonstra a decisão do TRT do Espírito Santo, uma das pioneiras acerca do assédio moral, cujo acórdão foi redigido pelo Juiz Carlos Rizk:

ASSÉDIO MORAL. CONFIGURAÇÃO. O que é o assédio moral? É a exposição dos trabalhadores a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções, sendo mais comuns em relações hierárquicas autoritárias, onde predominam condutas negativas, relações desumanas e antiéticas de longa duração, de um ou mais chefes, dirigidas a um subordinado, desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a Organização. A organização e condições de trabalho, assim como as relações

Page 260: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

260 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

entre os trabalhadores, condicionam em grande parte a qualidade de vida. O que acontece dentro das empresas é fundamental para a democracia e os direitos humanos. Portanto, lutar contra o assédio moral no trabalho é contribuir com o exercício concreto e pessoal de todas as liberdades fundamentais. Uma forte estratégia do agressor na prática do assédio moral é escolher a vítima e isolá-la do grupo. Neste caso concreto foi, exatamente o que ocorreu com o autor, sendo confinado em uma sala, sem ser-lhe atribuída qualquer tarefa, por longo período, existindo grande repercussão em sua saúde, tendo em vista os danos psíquicos por que passou. Os elementos contidos nos autos conduzem, inexoravelmente, à conclusão de que se encontra caracterizado o fenômeno denominado assédio moral20.

Compreendidos como a doutrina e a jurisprudência, geralmente, conceituam o assédio moral no Brasil, estabelece-se a seguir, segundo o aspecto brasileiro, os elementos essenciais para a caracterização do assédio moral, já que não existe uma legislação nacional acerca da questão.

Portanto, sobre tal questão, parte-se dos conceitos atribuídos pela doutrina e jurisprudência, de um modo geral, a fim de se concluir pelos elementos caracterizadores do assédio moral.

Conclui-se, portanto, que deve haver: 1) regularidade de ataques, que se prolongam no tempo; e: 2) cujo objetivo seja expor a vítima a situações incômodas, humilhantes e constrangedoras, que possam acarretar danos relevantes às condições físicas, psíquicas e morais da vítima.

Cabe aqui, esclarecer, que segundo o entendimento da autora do presente estudo, o dano se caracteriza, mesmo que não haja conseqüências mais sérias à saúde física e mental da vítima, bastando para tanto, que os ataques sofridos (agressões, humilhações, etc.), possam desestabilizar o “homus medius”, ou seja, aquele que tem um perfil de uma pessoa equilibrada, normal, ainda que aquele que sofra com as agressões e humilhações seja de saúde mais resistente que a média e não tenha conseqüências físicas e psíquicas tão gravosas ou que apareçam

20 FELKER, Reginald Delmar Hintz. O Dano Moral, o Assédio Moral e o Assédio Sexual nas Relações do Trabalho: Frente à Doutrina, Jurisprudência e Legislação. São Paulo: LTr, 2006, p.176.

Page 261: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 261

em exames clínicos. O que importa aqui, é que a conduta seja inadequada para tratamento digno de um ser humano. Em relação ao prolongamento no tempo, destas ações, também não se adota a posição de que este necessite ser de uma média de seis meses, como defende Heinz Leymann, que estabeleceu para caracterizar o assédio moral, como necessário que as humilhações se repetissem pelo menos uma vez na semana e tivessem duração mínima de 6(seis) meses, ou pelo menos dois meses21. Embora a maioria da doutrina e jurisprudência, como já foi exposto ao conceituar o assédio moral no Brasil, se fixe na questão da repetição dos atos no tempo, esta autora entende que, de um modo geral, caracteriza-se com mais de uma conduta, sem fixação de tempo mínimo, pois dependerá da gravidade desta. Uma única conduta, geralmente, caracterizará um dano moral, mas não o assédio moral, no entanto, há que se estabelecer que sempre se deva analisar o caso concreto, pois pode acontecer que uma única conduta do agente agressor, tenha um efeito tão negativo na vida da vítima, que isto venha a repercutir em uma série de atos desencadeados por aquela única conduta, então, será o caso de caracterização do assédio, por uma única conduta. Inclusive, porque, pode ser que as conseqüências advindas do ato do agressor, possam levar a vítima até mesmo ao suicídio. Neste aspecto, bom avaliar o disposto por Candy Florêncio Thomé, que comunga do mesmo entendimento, ao declarar que “a delimitação rígida da quantidade de repetições pode gerar injustiças, na medida em que há várias gradações e tipo de assédio moral, que podem, por sua vez, gerar efeitos com um número maior ou menor de repetições” .

Quanto ao segundo elemento citado, ou seja, o objetivo de expor a vítima a situações incômodas, humilhantes e constrangedoras, que possam acarretar danos relevantes às condições físicas, psíquicas e morais da vítima, cumpre destacar o que já foi exposto, em relação ao dano, isto é, possa causar um dano em potencial ao homem mediano, mesmo que esse não se efetive, ou como aduz Denise de Fátima Stadler:

O que não se pode aceitar é que alguém que venha a ser vítima de conduta que se enquadre no conceito de assédio e demonstre resistência ao intento do assediador deixe de ser indenizado ou

21 GUEDES, Márcia Novaes. Terror Psicológico no Trabalho. 2 ed. São Paulo: LTr, 2004, p. 25.

Page 262: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

262 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

que o assediador não seja penalizado, pois a reprovabilidade da conduta assediante não irá desaparecer.22

E, ainda, o objetivo de expor a vítima a situações incômodas, humilhantes e vexatórias, deve ser entendido que esta conduta pode ocorrer, mesmo que não haja uma intencionalidade explícita do agente agressor, ou seja, mesmo que haja com culpa. Portanto, basta que haja a conduta, tornando o ambiente de trabalho indigno ao trabalho decente, em desrespeito à dignidade do trabalhador; mesmo que o que prática a conduta não tenha como objetivo excluir à vítima do trabalho, mas se age com grosserias, indelicadezas, com atitudes mesquinhas, as quais em nada contribuem para o ambiente de trabalho digno, controlando até o horário de ir ao banheiro dos seus empregados; inclusive, esquecendo que quando firmou o contrato de trabalho, já o fazia porque deveria ter alguma confiança naquele empregado, isso já configuraria o assédio moral.

A doutrina brasileira, de um modo geral, exemplifica diversas condutas pas-síveis de caracterizar o assédio moral, pela sua repetição, como por exemplo: rigor excessivo, confiar tarefas inúteis, desqualificação ou críticas em público, isolamento ou inatividade forçada, ameaças explícitas ou veladas, exploração de fragilidades físicas ou psíquicas, exposição ao ridículo, agressões verbais, controle do tempo no banheiro, transferência de sala por mero capricho, cumprimento de metas impossíveis, boicote de material necessário à prestação dos serviços, dentre outras.

Quanto ao tema em debate, no Direito Português, apontar-se-á, apenas onde haja diferenças, sendo que, onde se assemelha ao direito brasileiro, limitar-se-á, o presente trabalho, a apontá-las, efetuando o seu estudo nesse trabalho.

Assim, como já foi exposto, no Direito Português há legislação própria acerca da matéria, desde o Código do Trabalho de 2003, que no artigo 24º. estabeleceu figura própria para o assédio e, depois, no Código do Trabalho de 2009. No Código de 2003, o assédio foi inserido na “Subsecção da Igualdade e Não Discriminação”, o que resultou, segundo a doutrina, em tratar o tema do assédio, sob a perspectiva de uma de suas modalidades, o assédio discriminatório. Senão vejamos os comentários a seguir:

22 STADLER, Denise de Fátima.Assédio Moral.: Uma Análise da Teoria do Abuso de Direito Aplicada ao Poder do Empregador.São Paulo: LTr, 2008, p.75.

Page 263: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 263

Com a inclusão da figura do assédio na Subsecção da “Igualdade e não discriminação”, o Código de 2003 veio apenas permitir tratar o fenômeno em causa sob a perspectiva de uma das suas modalidades (o assédio discriminatório), parecendo esquecer que existem diversas condutas e práticas de assédio que não se fundam propriamente numa discriminação entre trabalhadores, ainda que, como é óbvio, os processos de assédio, inquestionavelmente, passem muitas vezes por práticas discriminatórias em relação e em desfavor da vítima”.23

O artigo 29º. do Código do Trabalho Português, não se refere especificamente ao termo assédio moral, no entanto, define a figura do assédio como sendo o “com-portamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”. No número 2, deste mesmo artigo, o legislador definiu o assédio sexual, o qual se diferencia do assédio tratado no número 1, pois aqui o comportamento indesejado é de caráter sexual.

Assim, de acordo com o exposto pela profa. Maria do Rosário Palma Ramalho, a doutrina portuguesa identifica três formas de assédio24. O assédio sexual e o assédio com conotação sexual, o assédio discriminatório e o assédio não discriminatório. O que tem sido visto, em relação ao Código anterior, como um avanço, pois quando o legislador usou o termo “nomeadamente”, deixou margem a outras possibilidades de interpretação do artigo em questão.

Segundo Ramalho25, a doutrina identifica o assédio moral discriminatório como aquele que:

23 VERDASCA, Ana Tereza Moreira.Assédio Moral no Trabalho. Uma aplicação ao Sector Bancário Português. Doutoramento em Sociologia Econômica e das Organizações.Junho 2010, p.170. Disponível em http://www.repository.utl.pt/bitstream/10400.5/2220/1/TESE%20FINAL_ANA%20VERDASCA_FORMATADA_28%20Junho.pdf, acesso em 19.01.2012.

24 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Direito do Trabalho. Parte II-Situações Laborais. 3 ed.rev.e actual.-2 v.Coimbra: Almedina, maio 2010, p.177/178.

25 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Direito do Trabalho. Parte II-Situações Laborais. 3 ed.rev.e actual.-2 v.Coimbra: Almedina, maio 2010, p.177.

Page 264: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

264 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

O comportamento indesejado e com efeitos hostis se baseia em qualquer factor discriminatório que não o sexo (art.29º., n.1) (discriminatory harrassement);

E, prossegue essa autora, sobre o entendimento doutrinário quanto ao assédio moral não discriminatório:

Quando o comportamento indesejado não se baseia em nenhum factor discriminatório, mas, pelo seu caracter continuado e insidioso, tem os mesmos efeitos hostis, almejando, em última análise, afastar aquele trabalhador da empresa (mobbing)26.

Por fim, Ramalho27 completa que o Código acolhe as três modalidades já citadas de assédio, não sendo necessário, como o era no regime do Código de 2003, recorrer ao princípio da integridade física e moral do trabalhador, no atual código constante do art.15, para protegê-lo contra as práticas de assédio moral.

Percebe-se, portanto, que tal qual na doutrina brasileira, o assédio moral, segundo o entendimento doutrinário português, constitui um conjunto de comportamentos que tem por objetivo ou efeito criar um ambiente de tal forma hostil, degradante, que pode, geralmente, levar ao término da relação por parte do empregado. Essas práticas persecutórias podem ser formulação de críticas injustificadas e humilhantes, práticas de comportamentos atentatórios da reputação pessoal ou profissional do trabalhador, falsa atribuição de problemas mentais ou de saúde ao trabalhador visado, atribuição de tarefas para as quais o trabalhador não tem competência, a fim de humilhar e depreciar, ou pelo empobrecimento substantivo das suas tarefas, através da não ocupação efetiva do trabalhador ou da sua completa desocupação, atribuição de trabalhos potencialmente lesivos da sua saúde físico-psíquica, etc.28.

Igualmente, a doutrina portuguesa admite o assédio moral não intencional, embora repute hipótese rara29. Percebe-se, no entanto, que quer seja o assédio moral

26 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Direito do Trabalho. Parte II-Situações Laborais. 3 ed.rev.e actual.-2 v.Coimbra: Almedina, maio 2010, p.177.

27 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Direito do Trabalho. Parte II-Situações Laborais. 3 ed.rev.e actual.-2 v.Coimbra: Almedina, maio 2010, p.178.

28 MARTINEZ, Pedro Romano et al.(Anotação: DRAY, Guilherme). Código do Trabalho Anotado. 8 ed.Coimbra: Almedina, outubro 2009, p.188.

29 MARTINEZ, Pedro Romano et al.(Anotação: DRAY, Guilherme). Código do Trabalho Anotado. 8 ed.Coimbra: Almedina, outubro 2009, p.188.

Page 265: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 265

cometido de forma intencional ou não, quer seja o assédio moral denominado discriminatório ou não, os direitos que estão sendo feridos, são aqueles que se referem à dignidade do trabalhador, já que para a caracterização do assédio o artigo 29º. do Código do Trabalho Português é claro ao expor que o objetivo dos atos contra a pessoa do trabalhador é de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, criar-lhe um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador. Ora, essas ações podem afetar a saúde físico-psíquica do indivíduo, ou seja, o bem maior que é a integridade física, a vida do ser humano trabalhador.

O estudo jurisprudencial do tema conduz às mesmas conclusões acerca da caracterização e conceito do assédio moral, que ora se expôs e demonstrou-se quanto à doutrina.

Inclusive, percebe-se pelas poucas decisões favoráveis à confirmação dos casos de assédio levado aos Tribunais portugueses, que de fato o comentário exposto no art.29º. do Código do Trabalho, por Martinez et. Al (Anotação: DRAY, Guilherme)30, está bem apropriado:

V. O assédio implica comportamentos do empregador humi-lhantes, vexatórios e atentatórios da dignidade do trabalhador.

Tem sido este, de resto, o entendimento da nossa jurisprudência, que não tem enveredado pela banalização do regime em apreço, aplicando-o apenas perante situações realmente vexatórias e humilhantes para o trabalhador, em que os atentados à sua dignidade são manifestos.

Insta a seguir, transcrever entendimento jurisprudencial do Tribunal da Relação de Lisboa, proferida em 13.04.201131, que de fato nega a existência de assédio moral, mesmo reconhecendo que a empregadora extrapolou o seu poder diretivo, com a conduta da ré demonstrada nos autos:

30 MARTINEZ, Pedro Romano et al.(Anotação: DRAY, Guilherme). Código do Trabalho Anotado. 8 ed.Coimbra: Almedina, outubro 2009, p.187.

31 PORTUGAL. Tribunal da Relação de Lisboa. Apelação. Relator: Natalino Bolas. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/a3d2d321 67cb5900802578a10037cfac?OpenDocument&Highlight=0,ass%C3%A9dio, moral, acesso em 17.01.2011.

Page 266: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

266 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Em nosso entender, a apurada conduta da R traduz-se, sem qualquer dúvida, num exercício arbitrário do poder de direcção, uma vez que, em Julho de 2008, sem apresentar qualquer motivo justificativo, unilateralmente alterou aquela que era a situação profissional da A desde Janeiro de 2007, esvaziando o seu âmbito funcional e atribuindo-lhe funções inerentes a uma categoria profissional inferior à que detinha. Contudo, tal factualidade é, por si só, insuficiente para que possamos concluir que estamos perante uma situação de mobbing, na medida em que a A não logrou provar as específicas condutas persecutórias que aponta à sua empregadora, nem a sua intencionalidade (cfr. resposta aos arts. 5° a 10°, 13°, 14°, 15°,19° e 20° da base instrutória).É que, como escreveu, também Júlio Gomes (ob. citada, pág. 436), “(…) importa também advertir que nem todos os conflitos no local de trabalho são, obviamente, um “mobbing”, sendo, aliás, importante evitar que a expressão assédio se banalize. Nem sequer todas as modalidades de exercício arbitrário do poder de direcção são necessariamente um “mobbinq”, quer porque lhes pode faltar um carácter repetitivo e assediante quer porque não são realizados com tal intenção. “Do exposto, e em suma, resulta que, em nosso entender, pese embora a constatada violação, pela R, da garantia a que alude o art. 122°, al. e), do Código do Trabalho, certo é que matéria de facto provada pela A não é suficiente para integrar a figura do mobbing, pressuposto que integra a causa de pedir invocada pela A nesta acção para fundamentar a sua pretensão indemnizatória e à qual nos cabe necessariamente ater.(…)”

No acórdão exposto, a jurisprudência portuguesa foi totalmente desfavorável ao empregado, pois se já é difícil a prova do assédio moral, muito mais será a de que com os atos praticados a ré tinha intenção de efetuá-lo. Nesse aspecto, entende-se como tem se reportado a doutrina portuguesa, desnecessária a prova da intencionalidade, bastando comprovar os atos praticados e que estes ferem a dignidade do trabalhador.

No mais, a jurisprudência portuguesa, tem caracterizado o assédio atendendo os pressupostos já enunciados no entendimento doutrinário esposado anteriormente, ou seja, que os fatos que visam atacar a dignidade do trabalhador no ambiente de trabalho sejam repetitivos, graves e praticados quer seja pelo próprio empregador ou um preposto deste. Caso isso ocorra é passível de indenização, quer seja por danos extrapatrimoniais ou patrimoniais.

Page 267: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 267

Ainda, em conformidade com a jurisprudência, no caso do assédio discriminatório, o empregado deve comprovar e indicar paradigma para a discriminação. Veja-se:

A quem alegar a discriminação cabe fundamentá-la, indicando o trabalhador ou trabalhadores em relação aos quais se considera discriminado, incumbindo ao empregador provar que as diferenças de condições de trabalho não assentam em nenhum dos factores indicados no nº 1- art. 23º, nº 3.32

Assim, tanto no Código de 2003, quanto no Código de 2009, o assédio moral está inserido na Subsecção III, que trata da “Igualdade e não discriminação”, o que não dispensava no Código do Trabalho de 2003, a conjugação do art.24º., 2, com o art.18º., do mesmo Código. No entanto, a novidade é que, embora ainda esteja enquadrado na mesma Subsecção, na versão de 2009, a doutrina entende que o legislador ao referir-se no artigo 29 ao termo “nomeadamente” (“Entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação”), abriu a possibilidade de outras formas de assédio que não o discriminatório, conforme já foi exposto anteriormente, independentemente, de aplicar-se para tal entendimento a aplicação do art.15º:

O assédio moral não discriminatório, nos termos do CT2003,não tinha cobertura no artigo 24º., que associava o assédio à prática persecutória em função de um factor de discriminação, razão pela qual o respectivo regime repousava no art.18º. do CT2003. Atendendo a que agora, no CT2009, se determina, no preceito sob anotação, que o assédio constitui “ (...)o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação (...)”, parece ser de admitir, face à utilização da locução “nomeadamente” que o assédio moral não discriminatório pode ser também subsumido no preceito sob anotação, dispensando-se o recurso ao artigo 15º., para cuja anotação se remete.33

32 PORTUGAL.Tribunal da Relação do Porto. Apelação. Relatora: Paula Leal de Carvalho. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/a60ebf1 45317f06f80257537005532e4?OpenDocument&Highlight=0,ass%C3%A9dio, moral, Aces- so em 18.01.2012.

33 MARTINEZ, Pedro Romano et al. (Anotação: DRAY, Guilherme). Código do Trabalho Anotado. 8 ed.Coimbra: Almedina, outubro 2009, p.189.

Page 268: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

268 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Outro entendimento, baseado no Código de 2003, que confirmava o entendimento da jurisprudência portuguesa, ora esposado:

II - Assim, o trabalhador que pretenda demonstrar a existência do comportamento, levado a cabo pelo empregador, susceptível de ser qualificado como mobbing ao abrigo do disposto no referido art. 24.º, n.º 2, para além de alegar esse mesmo comportamento, tem de alegar que o mesmo se funda numa atitude discriminatória alicerçada em qualquer um dos factores de discriminação,comparativamente aferido face a outro ou a todos os restantes trabalhadores, aplicando-se, nesse caso, o regime especial de repartição do ónus da prova consignado no n.º 3 do art. 23.º do CT.

III - Não tendo a A. alegado factologia susceptível de afrontar, directa ou indirectamente, o princípio da igual dignidade sócio-laboral, subjacente a qualquer um dos factores característicos da discriminação, o assédio moral por parte da R., por ela invocado, tem de ser apreciado à luz das garantias consignadas no art. 18.º do CT,segundo o qual «o empregador, incluindo as pessoas singulares que o representam, e o trabalhador gozam do direito à respectiva integridade física e moral», aplicando-se o regime geral de repartição do ónus da prova estabelecido no art. 342.º do Código Civil.34

Portanto, o assédio moral, pode ser vertical ascendente ou descendente e horizontal e caracteriza-se por diversos ataques que visam atingir a dignidade da vítima, sem justificação, fazendo com que esta sofra uma grande desmotivação para o trabalho e, não raro, dessa humilhação e constantes ataques, faz com que a vítima, normalmente, sofra distúrbios psicossomáticos ou mesmo perturbações mentais.35

Pode-se, concluir, que, atualmente, a caracterização do assédio moral em relação à doutrina e jurisprudências brasileiras e portuguesas, são bastante semelhante, pois em ambas para a caracterização do assédio os ataques devem ser

34 PORTUGAL. Supremo Tribunal de Justiça. Revista. Relator:Fernandes da Silva. Disponível em: www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ 0d6a68bd069c8887802579 5300310ae9?OpenDocument&Highlight=0,assédio,moral, acesso em 17.01.2012.

35 LEITÃO, Luiz Manuel Teles de Menezes. Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, março, 2008, p.185.

Page 269: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 269

repetitivos e deve afrontar a dignidade o trabalhador no ambiente de trabalho. Não é obrigatória a prova da intencionalidade, embora os acórdãos dos Tribunais portugueses, na vigência da aplicação da Lei anterior, apontavam para esse caminho, no entanto, percebe-se que em ambos os ordenamentos jurídicos, a caracterização depende de provas robustas e, no Tribunal português, mesmo que diversos atos estejam retratados como abusivos e até reconhecidos pelos Tribunais, as decisões ainda são mais rígidas no sentido de não reconhecer a presença de assédio moral:

No que se refere à utilização da linguagem empregue no decurso de uma reunião pelo Sr. F… que disse, no que dependesse deles (referindo-se à Ré), a A. “jamais sentaria o «cuzinho» num consultório”, concordamos com o que foi dito na decisão recorrida. Devemos ter em conta o enquadramento em que a mesma foi proferida, a envolvência social e cultural dos participantes e a própria zona geográfica. Isso não invalida, que não se considere uma linguagem desadequada, não recomendável, imprópria e torpe. Mas daí até consideramos que estamos perante um caso de assédio, mesmo apreciando esta conduta inserida na globalidade das restantes, vai uma grande distância. Apesar de censurável, esta conduta não reveste carácter de tanta gravidade que se possa dizer que constitui uma situação humilhante e vexatória para a Autora.

Assim, ao contrário do alegado pela Autora, não está minimamente demonstrado que as alterações dos locais de trabalho, a supressão da isenção do horário de trabalho, a proibição de utilização do veículo para uso pessoal, bem como com a utilização de determinadas expressões, visou, exclusivamente (e logrou alcançar tal desiderato) humilhar, prejudicar e criar um ambiente de trabalho hostil à Autora. Improcede, pois, nesta parte, também a apelação da Autora.36

É fato que se deve considerar, que apesar da não existência de uma legislação nacional, os Tribunais trabalhistas brasileiros não têm deixado de apreciar e determinar a indenização por danos patrimoniais e extrapatrimoniais, quando se confirma a existência de atos prejudiciais à dignidade do trabalhador. Por

36 PORTUGAL. Tribunal da Relação do Porto. Apelação. Relator: Antônio José Ramos. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/b8ac 5c1694bdcc0480257921002da92f?OpenDocument&Highlight=0,ass%C3%A9dio,moral, Acesso em 18.01.2012.

Page 270: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

270 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

outro lado, a rigidez da jurisprudência portuguesa, embora se entenda, eis que não é qualquer fato que pode caracterizar uma lesão a direitos da personalidade, deve ser vista com cuidado, pois estamos diante de um hipossuficiente, eis que subordinado e economicamente inferior, além da dificuldade para efetuar a prova do assédio moral, já que, de um modo geral ocorre de maneira velada. Acredito que deve haver bom senso dos julgadores, a fim de que injustiças não sejam cometidas, quer seja considerando qualquer ação como assédio moral, quer seja não o considerando e incentivando, pois, este tipo de atitude diante da ausência de medidas pedagógicas, como o é a condenação às respectivas indenizações quando da ocorrência do assédio.

5. conclusões

Conclui-se, pois, que, em ambos os Países, Brasil e Portugal, são muitas as hipóteses de desequilíbrio em relação ao meio-ambiente de trabalho, no entanto, o assédio moral, é uma das práticas, como podemos deduzir, que fere aqueles direitos que visam garantir a dignidade do trabalhador, levando ao ambiente desequilibrado, a que aduz a Constituição de um e outro País. Ou seja, estamos falando dos direitos de personalidade. Direitos esses, expostos na Constituição e no Código Civil de ambos os Países, e, especificamente, só no Código do Trabalho de Portugal. De forma exemplificativa, em ambos os Países, podemos citar como sendo direitos de personalidade o Direito à integridade física, à honra, à intimidade e à vida privada, à imagem, ao nome, dentre outros. Todos esses direitos podem ser lesados, quando há prática de assédio moral no ambiente de trabalho, podendo trazer conseqüências graves para a saúde do trabalhador assediado, que vão desde ao simples mal estar até a depressão e suicídio. Muito embora a gravidade da conduta, não existe uma legislação nacional no Brasil, a fim de coibir a prática, daí a importância desse estudo, pois em Portugal já existe legislação específica. Em Portugal, o assédio moral está inscrito no Código do Trabalho de 2009, na “Subsecção da Igualdade e Não Discriminação”, no artigo 29º. Este fato não exclui o assédio moral independente de ter havido ou não discriminação, como já expôs a doutrina portuguesa que foi mencionada ao longo deste trabalho, embora no Código de 2003, isso gerasse certa interpretação conflitiva, pois levava à interpretação de que somente haveria o assédio decorrente

Page 271: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 271

de discriminação. Melhor seria, dada a importância do Instituto, mesmo no Código de 2009, excluí-lo desta Subseção, adotando apenas a vinculação à lesão aos direitos de personalidade de um modo geral.

Concluiu-se, também, que o empregador, como detentor do Poder Diretivo, em ambos os ordenamentos jurídicos, deve assegurar um ambiente de trabalho digno aos seus subordinados, eis que não somente é uma questão de saúde pública, mas a garantia de um ambiente sadio, também será a garantia de maior produtividade na empresa. Sabe-se que aqueles que trabalham num ambiente sadio e que estão satisfeitos, muito mais podem produzir.

Um ambiente de trabalho desequilibrado, em seu sentido amplo, é um ambiente onde pode existir a prática do assédio moral e, portanto, os direitos de personalidade citados, não são respeitados, quer seja pelo próprio empregador ou pelos seus prepostos, é um ambiente com práticas de escravidão, discriminação, invasão da intimidade e/ou privacidade do empregado, de humilhações, lesando a honra dos envolvidos, um ambiente onde o risco à integridade física e psíquica do empregado estará presente.

Os Tribunais portugueses não tem reconhecido com muita freqüência o assédio moral, o que tem sido mais comum nos Tribunais brasileiros, mas isso pode se dar ao fato de que a extensão do País e a população é maior e a quantidade de ações julgadas, portanto, pelos 24 Tribunais Trabalhistas brasileiros, mais o Tribunal Superior do Trabalho é muito maior do que nos Tribunais de Relação Portugueses, que somam bem menos Tribunais.

Diante das pesquisas desenvolvidas, faz-se interessante que o Brasil possa, tam-bém, dar o destaque à conduta do assédio moral, que foi dada pelo Legislador Português, incluindo-o na Consolidação das Leis do Trabalho. Inclusive, seria bom que, também, estabelecesse capítulo próprio para os direitos de personalidade, no entanto, melhor que não o faça incluso à temática da “Igualdade e Discriminação”, a fim de não gerar dificuldades de interpretação, bem como, dar ainda mais importância ao Instituto, estabelecendo-o, vinculado, diretamente à lesão de direitos de personalidade do empregado, de um modo geral, o que poderia ser feito pelo Código do Trabalho Português, também.

De qualquer maneira, uma coisa é certa, em ambos os ordenamentos jurí- dicos, o empregador deve exercer o seu poder diretivo, quer seja de orga-

Page 272: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

272 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

nização, de controle ou disciplinar, com bom senso e nos estritos termos do contrato de trabalho e zelar para que todos os seus prepostos assim o façam, ou seja, com respeito à figura do empregado como pessoa digna e merecedora de ter seus direitos personalíssimos, irrenunciáveis e inalienáveis, integralmente resguardados. Tem o dever moral e ético de zelar por um ambiente de trabalho decente, que resguarde os direitos personalíssimos de todos os envolvidos. E, acrescente-se, que, sem dúvidas, o respeito deve ser mútuo, atentando-se sempre para o princípio da razoabilidade a fim de evitar uma ação de indenização por danos morais e/ou materiais. Um ambiente ecologicamente equilibrado, em toda a extensão do seu conceito, digno, com respeito mútuo entre todos os que interagem nesse ambiente, o qual, certamente, gerará muito mais produtividade que se reproduzirá em benefício geral, para uma sociedade mais justa e menos desigual em qualquer parte do mundo.

6. referências

ALKIMIN, Maria Aparecida. Assédio moral na relação de emprego. Curitiba: Juruá, 2005.

BARRETO, Margarida Maria Silveira. Violência, saúde, trabalho: uma jornada de humilhações. São Paulo: Fapesp; PUC, 2000. Disponível em http://www.assediomoral.org/spip.php?article1, acesso em 24.07.09.

_______. Uma jornada de humilhações. Dissertação (mestrado em psicologia social), Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2000.

CANOTILHO, Gomes J.J. e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol. I, 4 ed.revista. Coimbra: Coimbra Editora, janeiro 2007.

FELKER, Reginald Delmar Hintz. O Dano Moral, o Assédio Moral e o Assédio Sexual nas Relações do Trabalho: Frente à Doutrina, Jurisprudência e Legislação. São Paulo: LTr, 2006.

GUEDES, Márcia Novaes. Terror Psicológico no Trabalho. 2 ed. São Paulo: LTr, 2004.

LEITÃO, Luiz Manuel Teles de Menezes. Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, março, 2008.

Page 273: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 273

MARTINEZ, Pedro Romano. Direito do Trabalho. 5 ed. Coimbra: Almedina, novembro, 2010.

MARTINEZ, Pedro Romano et al. Código do Trabalho Anotado. 8 ed.Coimbra: Almedina, outubro 2009.

MELO, Raimundo Simão de. Direito Ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador: responsabilidades legais, dano material, dano moral, dando estético, perda de uma chance. 2 ed. São Paulo: LTr, 2006.

PORTUGAL. Supremo Tribunal de Justiça. Revista. Relator:Fernandes da Silva. Disponível em: www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa8 14/0d6a68bd069c88878025795300310ae9?Open Document&Highlight =0,assédio,moral, acesso em 17.01.2012.

PORTUGAL. Tribunal da Relação de Lisboa. Apelação. Relator: Natalino Bolas. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00 497eec/a3d2d32167cb5900802578a10037cfac?OpenDocument&Highli ght=0,ass%C3%A9dio,moral, acesso em 17.01.2011.

PORTUGAL.Tribunal da Relação do Porto. Apelação. Relatora: Paula Leal de Carvalho. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c 61802568d9005cd5bb/a60ebf145317f06f80257537005532e4?Open Document&Highlight=0,ass%C3%A9dio,moral, Acesso em 18.01.2012.

PORTUGAL. Tribunal da Relação do Porto. Apelação. Relator: Antônio José Ramos. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c6 1802568d9005cd5bb/b8ac5c1694bdcc0480257921002da92f?Open Document&Highlight=0,ass%C3%A9dio,moral, Acesso em 18.01.2012.

RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Direito do Trabalho. Parte II-Situações Laborais. 3 ed.rev.e actual.-2 v.Coimbra: Almedina, maio 2010.

REDINHA, Maria Regina Gomes. Assédio Moral ou Mobbing no Trabalho. Separata de Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raúl Ventura. Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa: Coimbra Editora, 2003.

SIMÓN, Sandra Lia. A proteção constitucional da Intimidade e da Vida Privada do Empregado. São Paulo: LTr, 2008.

Page 274: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

274 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

STADLER, Denise de Fátima. Assédio Moral.: Uma Análise da Teoria do Abuso de Direito Aplicada ao Poder do Empregador. São Paulo: LTr, 2008, p.75.

VERDASCA, Ana Tereza Moreira.Assédio Moral no Trabalho. Uma aplicação ao Sector Bancário Português. Doutoramento em Sociologia Econômica e das Organizações.Junho 2010, p.170. Disponível em http://www.repository.utl.pt/bitstream /10400.5/2220/1/TESE%20FINAL_ ANA%20VERDASCA_FORMATADA_28% 20 Junho.pdf, acesso em 19.01.2012.

Page 275: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 275

infradiscriminação: a discriminação pré-contratual entre os portadores de

diferentes necessidades especiais

Maria Rosaria Barbato1

Flávia Souza Máximo Pereira2

Resumo

O presente artigo analisa o fenômeno da infradiscriminação, que consiste em uma espécie de discriminação pré-contratual invisível e sobreposta em relação aos portadores de necessidades especiais, consequência da mera imposição do sistema homogêneo de cotas aplicado isoladamente no setor privado, na qual o empregador escolhe para fins de contratação o candidato portador da deficiência menos severa e mais viável à empresa, ou seja, a deficiência que exige menor adaptação social ou investimento empresarial. Primeiramente, é analisado o significado do exercício do trabalho para o portador de necessidades especiais na perspectiva da independência e autodeterminação social. Em seguida, são examinadas as disposições normativas destinadas à coibição da discriminação no acesso ao mercado de trabalho pelo portador de necessidades especiais, ressaltando-se a política de cotas e sua eficácia no setor privado. Posteriormente, é analisado o fenômeno da infradiscriminação relacionada a fatores econômicos, bem como em sua perspectiva social. Por fim, são mencionadas experiências europeias complementares ao sistema homogêneo de cotas e é elaborada uma breve conclusão sobre o tema.

Palavras-chave

Portadores de Necessidades Especiais; Sistema Homogêneo de Reserva de Cotas; Infradiscriminação; Discriminação Pré-Contratual.

1 Professora Adjunta do Departamento de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Estado de Minas Gerais - UFMG. Coordenadora adjunta do PRUNART (Programa Universitário de Apoio as Relações de Trabalho e à Administração da Justiça) e coordenadora das Relações Institucionais, subárea Relações Sindicais. Doutora em Direito do Trabalho - Università degli Studi di Roma Tor Vergata.

2 Doutoranda em Direito do Trabalho - Università degli Studi di Roma Tor Vergata.

Page 276: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

276 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Sintesi

Questo articolo esamina il fenomeno della infradiscriminazione, che rappre-senta una specie di discriminazione precontrattuale invisibile e sovrapposta ri-guardo alle persone disabili, risultato della mera imposizione del sistema omo-geneo di quote applicate nel settore privato, in cui il datore di lavoro sceglie per assumere il candidato portatore della disabilità meno gravi e più attuabile per la azienda, cioè, la disabilità che richiede meno adattamento sociale o investimenti delle imprese. In primo luogo, è analizzato il significato della prestazione di lavoro per la persona disabile, dal punto di vista di autonomia sociale e delll’autodeterminazione. In seguito, sono esaminate le normative per evitare la discriminazione nell’accesso al mercato del lavoro per la persona disabile, sottolineando la politica delle quote e la sua efficacia nel settore privato. Successivamente, è analizzato il fenomeno della infradiscriminazione correlate ai fattori economici, così come del punto di vista sociale. Infine, sono menzionate esperienze europee complementari al sistema omogeneo di quote e una breve conclusione è elaborata sul tema.

Parole-chiave

Persone Disabili; Sistema Omogeneo di Quote; Infradiscriminazione; Discri-minazione precontrattuale.

1. introdução

O presente artigo filia-se à vertente jurídico-teórica, buscando acentuar os aspectos conceituais e doutrinários acerca do fenômeno da infradiscriminação, que representa uma espécie de discriminação pré-contratual em relação aos portadores de necessidades especiais, manifestada durante a escolha do empregador. Em razão da frágil atuação do Estado no que concerne à viabilização da legislação de inserção do portador de necessidades especiais no mercado de trabalho e diante da mera obrigatoriedade imposta pelo sistema homogêneo de cotas de contratação do portador de qualquer tipo de deficiência, verifica-se que, durante a escolha do empregador, há uma preferência por aquele candidato portador da deficiência menos severa e mais viável à empresa, ou seja, a deficiência que exige menor adaptação social ou investimento empresarial.

Page 277: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 277

Considerando que a investigação da matéria será jurídico-descritiva, o pro-cedimento utilizado será analítico, de decomposição do objeto de pesquisa em uma perspectiva econômica e outra social, tendo em vista a falta de estrutura e preparação das empresas para receber trabalhadores com certos tipos de deficiência - não apenas em relação à adaptação do ambiente físico de trabalho, mas também no tocante ao treinamento da equipe para que esta possa se relacionar produtivamente com esse tipo específico de trabalhador. A consequência da falta de preparo das empresas e de incentivo Estatal é a escolha do trabalhador portador de deficiências menos severas, como o deficiente auditivo em detrimento do cadeirante, do deficiente visual ou do deficiente intelectual, desencadeando um novo tipo de discriminação pré-contratual que se apresenta como um efeito colateral do sistema legal de cotas no Brasil.

Também é utilizado como parâmetro metodológico o direito comparado, vez que o presente artigo busca experiências alternativas nos ordenamentos jurídicos dos países europeus que complementam o sistema homogêneo de cotas, resultando em uma interpretação mais abrangente do tema, no intuito de coibir o fenômeno da infradiscriminação, de forma a proporcionar a efetiva inclusão social do portador de necessidades especiais mediante o exercício de uma atividade laborativa, permitindo a construção de sua liberdade, autocontrole e independência. Dessa forma, é crucial primeiramente discutir a importância do trabalho para o portador de necessidades especiais.

2. o sentido da inserção do portador de necessida-des especiais no mercado de trabalho

O trabalho ocupa uma figura central na sociabilidade contemporânea. É o elemento fundamental que permite com simplicidade a interação do ser humano com o ambiente e com outros sujeitos. É a realização contínua do trabalho que define a especificidade do ser social, na medida em que é ferramenta para a construção de cultura e porque atua diretamente na edificação de ações interativas relativamente a outros seres sociais. Segundo Lukács, o trabalho

(...) é em sua natureza uma inter-relação entre homem (sociedade) e natureza, tanto com a natureza inorgânica (...), quanto com a orgânica, inter-relação (...) que se caracteriza acima de tudo pela

Page 278: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

278 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

passagem do homem que trabalha, partindo do ser puramente biológico ao ser social (...). Todas as determinações que, conforme veremos, estão presentes na essência do que é novo no ser social estão contidas in nuce no trabalho. O trabalho, portanto, pode ser visto como um fenômeno originário, como modelo, protoforma do ser social (apud ANTUNES, 2009, p. 19)

O trabalho como protoforma do ser social: o trabalho não reduzido apenas como produtor de valores de uso, mas como elemento de constituição do ser social (ANTUNES, 2009, p. 21). O trabalho tem uma intenção ontologicamente voltada para o processo de humanização em sentido amplo, vez que é fundamento gerador de outras formas de interação social, como a política, religião, ética, filosofia e arte.

É nesse sentido que deve ser discutida a inclusão social da pessoa portadora de necessidades especiais mediante a inserção no mercado de trabalho. Não é |uma discussão exclusivamente jurídica. É um debate essencialmente jurídico, porém eminentemente sociológico e filosófico. É mediante o trabalho que o portador de necessidades especiais irá autodeterminar sua natureza humana, na perspectiva de uma consciência de liberdade, independência e senso de utilidade3. Nesse sentido, Lukács discorre sobre o impacto do trabalho na transformação da natureza do ser humano:

A questão central das transformações no interior do homem consiste em atingir um controle consciente sobre si mesmo. (...) Esse domínio do corpo humano pela consciência, que afeta uma parte da esfera de sua consciência, isto é, dos hábitos, instintos, emoções etc., é um requisito básico até no trabalho mais primitivo, e deve dar uma marca decisiva da representação que o homem forma sobre si mesmo (...) (apud ANTUNES, 2009, p.25)

É no trabalho que o portador de necessidades especiais exerce o seu autocon-trole e exprime sua independência. É produzindo algo de valor que o portador

3 Teoria norte-americana do empowerment social conjugada com o empowerment psicológico da pessoa portadora de deficiência: necessidade de construção de contextos relacionais capazes de proporcionar abertura e solidariedade conjugada com o self-empowerment do portador de necessidade especiais, que coincide com a percepção de oportunidades que vão além das dificuldades geradas pela sua deficiência: deficiente seria aquela pessoa que se sente impotente.

Page 279: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 279

de necessidades especiais encontra a sua própria condição de humanidade. É mediante o trabalho que o portador de necessidades especiais se define como sujeito de direitos, sujeito participante e não como objeto de piedade social (GOÉS; BUBLITZ, 2010, p. 105).

O papel da ciência jurídica é exatamente este: afastar a visão do portador de necessidades especiais como alvo da caridade pública (OLIVEIRA, 2000, p. 85) ou como foco de uma política assistencialista. O papel do Direito é conceber o portador de necessidades especiais como sujeito de direitos e garantias, que possam assegurar a sua sobrevivência digna, com pleno exercício de suas aptidões e desenvolvimento da capacidade de produzir (OLIVEIRA, 2000, p. 85).

Contudo, serão as leis vigentes suficientes para garantir o efetivo acesso do portador de necessidades especiais ao mercado de trabalho? Serão tais leis capazes de coibir a discriminação pré-contratual relativamente às pessoas com necessidades especiais? São tais indagações que pretendemos discutir neste breve estudo sobre uma forma peculiar de discriminação que surge na fase pré-contratual durante a escolha do trabalhador portador de necessidades especiais pelo empregador: a infradiscriminação.

3. das disposições normativas destinadas à coibição da discriminação no acesso ao mercado de tra-balho pelo portador de necessidades especiais: a política de cotas e sua eficácia no setor privado

A dignidade humana e a isonomia, manifestada pela não-discriminação e pela materialização da paridade de oportunidades, são os pressupostos e limites da legislação referente à proteção ao trabalhador portador de deficiência no acesso ao mercado de trabalho, vez que introduzem no ordenamento jurídico o dever do respeito recíproco, no intuito de garantir um patamar mínimo de civilidade a tais cidadãos.

Desde 1923, existe uma recomendação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para que todos os países signatários aprovem em leis nacionais a obrigatoriedade das entidades públicas e empresas privadas reservarem certo número de vagas aos portadores de deficiência, com a preocupação de reinserir

Page 280: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

280 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

no mercado de trabalho os inúmeros deficientes provenientes da primeira guerra mundial (MAIA,2008, p. 35).

Em 1975, foi aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes (Resolução no 2.542/75), reconhecendo internacionalmente que as pessoas portadoras de necessidades especiais têm o direito inerente de respeito por sua dignidade humana, qualquer seja a origem, natureza e gravidade de suas deficiências, o que implica no direito de desfrutar de uma vida decente, tão normal e plena quanto possível. A referida Declaração foi o marco inicial para viabilizar o processo de integração social do portador de necessidades especiais, inclusive destacando a inserção no mercado de trabalho:

As pessoas portadoras de deficiência têm direito à segurança econômica e social, e, especialmente, a um padrão condigno de vida. Conforme suas possibilidades, também têm direito de realizar trabalho produtivo e remuneração, bem como participar de organizações de classe (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1975)

No mesmo sentido, a Convenção no 159 da Organização Internacional do Trabalho sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes, visando o livre acesso ao mercado de trabalho pelos portadores de deficiência, estabeleceu em seu art. 4º o princípio da igualdade de oportunidades entre os trabalhadores portadores de deficiência e os trabalhadores em geral, bem como para as trabalhadoras portadoras de deficiência (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1983).

Por sua vez, a Recomendação no 99 da OIT sobre princípios e métodos de orientação vocacional e treinamento profissional, meios de aumentar oportunidades de emprego para os portadores de deficiência, emprego protegido, disposições especiais para crianças e jovens portadores de deficiência ressaltou a obrigação da implementação das ações afirmativas no acesso e manutenção do emprego do portador de deficiência ao estabelecer que deve haver uma determinada percentagem de contratação das pessoas com deficiência, bem como a reserva de determinados postos de trabalho (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1955). Posteriormente, a Recomendação no 168 complementa

Page 281: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 281

tais preceitos, dispondo sobre a reabilitação profissional e o emprego das pessoas portadores de necessidades especiais, adotando o princípio da igualdade de acesso, admitindo o uso de ações afirmativas no intuito de manter o equilíbrio no acesso ao mercado de trabalho entre portadores e não portadores de necessidades especiais (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1983).

No ordenamento pátrio, a primeira lei a estabelecer a política de cotas foi a Lei Orgânica da Previdência Social - Lei no 3.807/1960, que em seu art. 55 impôs percentagens de 2% a 5% de cotas para empregados readaptados da previdência, para empresas acima de 20 funcionários.

Na Constituição de 1988, além da elevação da dignidade humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e da máxima do art. 5º, caput, que garante a igualdade, sem distinção de qualquer natureza, existem ainda vários dispositivos que garantem o acesso ao mercado de trabalho pelo portador de necessidades especiais, coibindo qualquer tipo de discriminação, entre os quais podemos citar o art. 7º, XXXI, que veda a discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de necessidades especiais; e o art. 37, VIII, que impõe que a lei reservará percentual de cargos públicos para as pessoas portadoras de necessidades especiais e definirá os critérios para sua admissão (BRASIL, 1988).

No âmbito infraconstitucional, a Lei no 7.853/1989 criou a Coordenadoria Nacional para a Integração das Pessoas Portadoras de Deficiência e estabeleceu normas gerais relativas à integração social das pessoas portadoras de necessidades especiais (BRASIL, 1989). Posteriormente, a Lei no 8.213/1991, em seu art. 93, estabeleceu uma garantia mínima de emprego às pessoas portadoras de neces-sidades especiais, impondo cotas de vagas as serem preenchidas obrigatoriamente pelo setor privado; transcreve-se:

Art. 93.  A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:

I - até 200 empregados................................................................2%;II - de 201 a 500..........................................................................3%;

Page 282: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

282 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

III - de 501 a 1.000......................................................................4%; IV - de 1.001 em diante. ............................................................5%.

§ 1º  A dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante.

§ 2º O Ministério do Trabalho e da Previdência Social deverá gerar estatísticas sobre o total de empregados e as vagas preenchidas por reabilitados e deficientes habilitados, fornecendo-as, quando solicitadas, aos sindicatos ou entidades representativas dos empregados (BRASIL, 1991)

Entretanto, a lei supracitada somente teve eficácia quando o Decreto nº 3.298 de 20 de dezembro de 1999 regulamentou a Lei 7.853/89. O decreto, em seu artigo 36, estabelece a política de reserva de cotas para reabilitados ou para pessoa portadora de deficiência habilitada:

Art. 36. A empresa com cem ou mais empregados está obrigada a preencher de dois a cinco por cento de seus cargos com beneficiários da Previdência Social reabilitados ou com pessoa portadora de deficiência habilitada, na seguinte proporção:

I - até duzentos empregados, dois por cento;

II - de duzentos e um a quinhentos empregados, três por cento;

III - de quinhentos e um a mil empregados, quatro por cento; ou

IV - mais de mil empregados, cinco por cento.

§ 1o A dispensa de empregado na condição estabelecida neste artigo, quando se tratar de contrato por prazo determinado, superior a noventa dias, e a dispensa imotivada, no contrato por prazo indeterminado, somente poderá ocorrer após a contratação de substituto em condições semelhantes.

§ 2o Considera-se pessoa portadora de deficiência habilitada aquela que concluiu curso de educação profissional de nível básico, técnico ou tecnológico, ou curso superior, com certificação ou diplomação expedida por instituição pública ou privada, legalmente credenciada pelo Ministério da Educação ou órgão equivalente, ou aquela com certificado de conclusão de processo

Page 283: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 283

de habilitação ou reabilitação profissional fornecido pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS.

§ 3o Considera-se, também, pessoa portadora de deficiência habilitada aquela que, não tendo se submetido a processo de habilitação ou reabilitação, esteja capacitada para o exercício da função.

§ 4o A pessoa portadora de deficiência habilitada nos termos dos §§ 2o e 3o deste artigo poderá recorrer à intermediação de órgão integrante do sistema público de emprego, para fins de inclusão laboral na forma deste artigo.

§ 5o Compete ao Ministério do Trabalho e Emprego estabelecer sistemática de fiscalização, avaliação e controle das empresas, bem como instituir procedimentos e formulários que propiciem estatísticas sobre o número de empregados portadores de deficiência e de vagas preenchidas, para fins de acompanhamento do disposto no caput deste artigo (BRASIL, 1999).

Atualmente, Câmara dos Deputados analisa o Projeto de Lei 2973/11, de autoria do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), que pretende alterar a redação do art. 93 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, aumentando a cota obrigatória para contratação por empresas privadas de portadores de deficiência e pessoas reabilitadas. A proposta institui essa obrigação para as empresas com mais de 30 empregados e amplia o percentual máximo para 8%, em vez dos 5% atuais. Pela proposta, as cotas deverão ser preenchidas na seguinte proporção: as empresas que têm de 30 a 200 empregados devem reservar, obrigatoriamente, 2% de suas vagas para pessoas com deficiência. Para as empresas que têm de 201 a 500 empregados, a cota reservada aos portadores de deficiência é de 4%. Para as que têm de 501 a 1.000 empregados, de 6%. Para as empresas que possuem de 1.001 empregados em diante, de 8%. O projeto, que tramita em caráter conclusivo, será analisado pelas comissões de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio; Trabalho, de Administração e Serviço Público; Seguridade Social e Família; e Constituição e Justiça e de Cidadania.

Não há dúvida que o rol legislativo internacional e pátrio que coíbe a discriminação no acesso ao mercado de trabalho relativamente ao portador de necessidades especiais é vasto. No entanto, o que se questiona é a eficácia do sistema reserva de cotas para portadores de necessidades especiais no combate à

Page 284: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

284 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

discriminação durante a escolha do empregador: será que a imposição de uma obrigação no setor privado é capaz de atender a necessidade de inclusão social para todos os tipos de necessidades especiais? Nas palavras da Professora Walküre Lopes Ribeiro da Silva,

O problema que enfrenta o portador de deficiência não é a ausência de leis. Sob o ponto de vista da validade temos leis que seriam perfeitamente aplicáveis aos casos concretos. O grande problema é o da eficácia das normas existentes (p.176, 1997)

Sem dúvida, a lei 8.213/91 que estabeleceu o sistema de cotas para o acesso ao mercado de trabalho pelos portadores de necessidades especiais no setor privado é uma grande conquista e extremamente necessária na luta contra a discriminação pré-contratual em face à este grupo marginalizado e sua leitura sistematizada à luz da Constituição Federal faz com que Brasil disponha de uma das mais avançadas legislações mundiais de proteção e apoio à pessoa portadora de necessidades especiais.

Dessa forma, repudiamos iniciativas como a do Projeto de Lei do Senado 112/2006 de autoria do Senador José Sarney, com relatoria do Senador Romero Jucá (PMDB), que pretende reduzir drasticamente o potencial das vagas reservadas aos portadores de necessidades especiais no setor privado dos atuais 5% para 3% e ainda terceiriza a mão-de-obra de pessoas com deficiência como forma de cumprir a Lei de Cotas 8.213/91, bem como o Projeto de Lei do Senado nº 234/2012 de autoria do Senador Benedito de Lira, que propõe desviar para o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) a verba destinada para a contratação de pessoas com deficiência pelas empresas, no qual o seu relator, Senador Romero Jucá, propõe a redução do número de contratações de 5% para 0,5%.

Entretanto, apesar de benéfico e necessário, verificamos que o sistema de cotas não é eficaz e suficiente para coibir a discriminação pré-contratual em relação a todo tipo de deficiência, revelando uma espécie de lacuna entre o arcabouço protetivo legislativo e sua aplicação nas empresas. Não estamos questionando a proteção estabelecida pelo sistema de reserva de cotas, que é extremamente necessária, e sim a forma desta proteção e de sua aplicação.

O problema crucial é que o sistema de cotas aplicado isoladamente superestima o poder da lei. Isso porque estamos diante da inércia do Estado em dar eficácia

Page 285: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 285

a toda esta legislação inclusiva, especialmente no que concerne à garantia de acessibilidade da pessoa portadora de deficiência à própria empresa. O Estado atua predominantemente como fiscal e não como obrigado solidário ao setor privado.

Reconhecemos a existência da atuação preventiva do Ministério Público do Trabalho, que mantém uma Comissão Permanente de estudos para a Inserção da Pessoa Portadora de Deficiência no Mercado de Trabalho, bem como a atuação do Conselho Nacional das Pessoas Portadoras de Deficiência – CONADE, que faz parte da estrutura básica da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e consiste em um órgão de deliberação colegiada criado para acompanhar e avaliar o desenvolvimento de uma política nacional para inclusão da pessoa portadora de necessidades especiais.

Contudo, a atuação do Estado é predominantemente de caráter fiscal e investigativo (fiscalização das empresas realizada por auditores fiscais do trabalho no cumprimento dos percentuais de cotas; instauração de inquéritos civis pelo Ministério Público do Trabalho que propõem o cumprimento gradual do per-centual de vagas mediante de Termos de Ajustamento de Conduta; aplicação de multas), que pode culminar em uma atuação judicial, mediante ação civil pública.

Portanto, a inserção do portador de necessidades especiais no mercado de trabalho é imposta legalmente pelo Estado, mas há omissão dele próprio no sentido de viabilizar tal política. O Estado transferiu a responsabilidade de inserção dos portadores de necessidades especiais no setor privado às empresas, estabelecendo apenas metas a serem cumpridas através do sistema de cotas.

Assim, diante da obrigação legal em contratar trabalhadores com qualquer tipo de necessidade especial e tendo em vista a falta de estrutura das empresas para receber trabalhadores com certos tipos de deficiência - não apenas na questão de adaptação do ambiente físico de trabalho para essas pessoas, com a adoção de equipamentos e infraestrutura dotadas de acessibilidade, mas também com o treinamento da equipe de trabalho para que eles possam se relacionar produtivamente com esse novo trabalhador - as empresas optam por deficiências menos severas, como o deficiente auditivo em detrimento do cadeirante, do deficiente visual e do deficiente intelectual, desencadeando um novo tipo de discriminação pré-contratual que se apresenta como um efeito colateral do sistema legal de cotas no Brasil.

Page 286: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

286 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

4. o efeito colateral da ineficácia do sistema ho-mogêneo de reserva de cotas na escolha do em-pregador: o fenômeno da infradiscriminação

Em razão da frágil atuação Estatal no que concerne à viabilização da legislação de inserção do portador de necessidades especiais ao mercado de trabalho e diante da obrigatoriedade imposta pelo sistema de cotas de contratação do portador de qualquer tipo de deficiência, verifica-se que, durante a escolha do empregador, há uma preferência por aquele candidato portador da deficiência menos severa e mais viável à empresa, ou seja, a deficiência que exige menor adaptação social ou investimento empresarial.

Tal assertiva pode ser comprovada por pesquisa feita para o Instituto Ethos com as 500 maiores empresas do país que concluiu que, em nível operacional, apenas 1,9% dos empregados eram pessoas com necessidades especiais em 2007. A maior parte eram deficientes físicos. Somente 0,1% dos contratados eram deficientes visuais e 0,1% tinham deficiências múltiplas (ROLLI, 2013, p. 01).

A imposição isolada de um sistema homogêneo de cotas para trabalhadores portadores de deficiência no setor privado sem a articulação de políticas de educação inclusiva nas empresas, sem análise da realidade de cada atividade empresarial, sem incentivo estatal às empresas para que haja a adequação do espaço físico industrial, não permite o desenvolvimento da consciência social do empregador para que haja viabilização da inclusão laborativa do portador de necessidades especiais.

Na prática, o empregador contrata o portador de necessidades especiais não porque acredita que este é um sujeito de direitos e que o trabalho pode ser um instrumento de inclusão social. Diante da singular obrigatoriedade de contratação imposta pelo sistema homogêneo de cotas, o empregador trabalha mediante a lógica do número de vagas que devem ser preenchidas a qualquer custo, razão pela qual grande parte dos portadores de necessidades especiais são empregados em atividades laborativas de baixa complexidade4. E é nesta lógica, que o empregador acaba optando pelo trabalhador portador da deficiência que exigirá menor adaptação da empresa, que oferecerá menor risco e investimento.

4 Também aliado ao fator da baixa qualificação profissional de tais trabalhadores, que foram também, em sua maioria, privados de uma formação educacional e de capacitação.

Page 287: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 287

A autora Francesca Limena comenta contradição semelhante presente na legislação italiana que promove a política de cotas estabelecidas na Itália e alerta para os riscos de segregação entre os portadores de necessidades especiais:

(...) a ordem legal transforma a inserção do portador de necessidades especiais em uma mercadoria de troca, que se encontra em uma posição de objeto, em vez de sujeito, em um acordo comercial no qual é deixado em segundo plano o objetivo primário da integração social e da inclusão laborativa da pessoa portadora de necessidades especiais em um ambiente empresarial. (2004, p. 53, tradução livre)

O estabelecimento de tais cotas sem distinção dos tipos de deficiência, sem a análise de atividades desempenhadas nas empresas, do grau de risco das empresas, sem um real estudo da situação física destas e da conscientização de seus profissionais, provoca a escolha do empregador pelo trabalhador que possui a espécie de deficiência menos severa relativamente às barreiras físicas e sociais.

Estamos diante de um fenômeno da discriminação pré-contratual que atinge um grupo que já é marginalizado. Verifica-se uma discriminação interna, sobreposta, entre os portadores de necessidades especiais, manifestada na escolha do empregador que diante da obrigatoriedade do sistema homogêneo de cotas e da falta de incentivo estatal para a viabilização deste sistema, opta pelo trabalhador que será menos custoso à empresa. Podemos denominar tal fenômeno como infradiscriminação.

Ilustraremos melhor este conceito: Durante um processo seletivo, um empregador, na obrigatoriedade de contratar algum portador de necessidades especiais exigida pela lei de cotas, sem incentivo estatal para fornecer uma estrutura física adequada; diante de um candidato portador de uma deficiência auditiva e um candidato cadeirante, ele optará pelo candidato portador de deficiência auditiva. Tal escolha é justificada pela gama de investimentos em termos de acessibilidade que o empregador terá que realizar na hipótese de contratação de um cadeirante.

A autora Cibele Goldfarb comenta este novo tipo de discriminação pré-contratual que surge como um efeito colateral do sistema homogêneo de cotas, que encontra respaldo na falta de responsabilidade social do setor empresarial:

Page 288: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

288 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Agindo desta forma, as empresas continuam prejudicando os deficientes, pois, informalmente acabam criando classificações, níveis de empregabilidade ou “castas” entre eles, preterindo a contratação das outras pessoas com deficiência mais severa, as quais necessitam de equipamentos adaptados, e mantendo sua exclusão do mercado formal de trabalho.  Consideramos que este tipo de argumento por parte das empresas é fruto de uma visão errônea, que considera somente a rentabilidade em curto prazo, renegando sua função social e prejudicando uma parcela da sociedade que necessita de apoio e cumprimento das leis (2009, p. 32)

Devemos ressaltar que a infradiscriminação não é só causada por motivos de cunho arquitetônico ou de estrutura física. Segundo a teoria social britânica relacionada à deficiência, esta deveria ser considerada uma construção social, ou seja, a deficiência é resultado de comportamentos sociais e provém de estruturas sociais. As pessoas portadoras de necessidades especiais constituem um grupo minoritário que experimenta a discriminação, da mesma forma de outros grupos minoritários, nas mãos de um grupo dominante5 (HARLAN; ROBERT,1998 p. 412). Um tratamento injusto poderia ser gerado por modelos de dominação e opressão, considerados como uma expressão de uma luta pelo poder e privilégio (GRAMMENOS, 1995, p. 63).

Tendo em vista a teoria social da deficiência, podemos entender o fenômeno da infradiscriminação como resultado não apenas da ausência de estruturas físicas adaptadas nas empresas, mas também como consequência da interação entre pessoas e de seu comportamento no ambiente de trabalho.

Tomamos como exemplo o deficiente intelectual: para que estes alcancem melhor desempenho profissional, é preciso criar um ambiente propício, no qual

5 A teoria social da deficiência foi uma resposta em face da então dominante teoria médica da deficiência, que estabelecia uma análise funcional do corpo do portador de necessidades especiais como uma máquina que necessita de consertos e reparos realizados mediante valores normativos. A teoria social da deficiência identifica barreiras sistêmicas, atitudes negativas e a exclusão por parte da sociedade (de propósito ou inadvertidamente), ou seja, a sociedade como o principal fator que contribui para a deficiência das pessoas. Os déficits sensoriais, intelectuais, psicológicos ou físicos podem causar a limitação funcional individual, mas estes não geram necessariamente a deficiência ou a incapacidade, a não ser que a sociedade fracasse na inclusão destas pessoas, independentemente de suas diferenças individuais. A teoria social surgiu em 1960, mas o termo específico surgiu no Reino Unido em 1980.

Page 289: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 289

consigam se concentrar, desempenhar suas funções e interagir com os colegas. Além disso, a dinâmica do trabalho é diretamente ligada ao suporte psicológico que aquele empregado recebe. Os empregadores devem se conscientizar de que as tarefas delegadas aos trabalhadores deficientes devem estar de acordo com suas capacidades e seu tempo de produção precisa ser respeitado. Dessa forma, durante um processo seletivo, diante da imposição do sistema homogêneo de cotas, entre um trabalhador que apresente mobilidade reduzida e outro com deficiência intelectual, o empregador definitivamente escolherá o trabalhador portador de deficiência física, resultando em um segregação entre os portadores de necessidades especiais.

O médico José Salomão Schwartzman alerta para a generalização com que as cotas tratam os deficientes:

A lei brasileira não faz distinção no tratamento dado aos diferentes tipos de deficientes, e isso é um grande problema, pois os níveis de deficiência são distintos, assim como sua gravidade. Não se pode tratar todos os casos da mesma forma, como se todos tivessem as mesmas capacidades (PEZZUTTO, 2012, p. 02).

Ademais, a maior parte dessas instituições não analisa a deficiência de cada trabalhador de forma específica, ou seja, as poucas adaptações de acessibilidade que são feitas ocorrem de uma forma geral, não atentando para as reais necessidades do indivíduo: o portador de necessidades especiais é que deve se adaptar à empresa e não o contrário.

Podemos evidenciar o fenômeno da infradiscriminação nos próprios anúncios de empregos, que divulgam a preferência por certo tipo específico de deficiência, sem qualquer relação com a função a ser desempenhada pelo empregado:

Auxiliar de Produção – ensino fundamental completo ou incompleto, preferência por pessoas com deficiência auditiva ou física leve, de 18 a 45 anos (NÚCLEO DE APOIO AO TRABALHADOR, 2012, grifo nosso)

Auxiliar administrativo (PCD) - PCD em São Paulo. Vaga preferencial para deficientes auditivos. Irá atuar com rotinas administrativas. Conhecimentos no pacote Office. Inglês será um diferencial. Formação: Desejável possuir ensino superior em

Page 290: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

290 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Administração (NÚCLEO DE APOIO AO TRABALHADOR, 2012, grifo nosso).

Ajudante de Produção: Salário: 4,10 p/hora + todos os benefícios. Vaga destinada a pessoas com deficiência auditiva. (NÚCLEO DE APOIO AO TRABALHADOR, 2012, grifo nosso)

Existe, portanto, uma espécie de discriminação pré-contratual invisível, resultante da escolha do empregador, que representa um efeito colateral do sistema homogêneo de cotas, que segrega um grupo já discriminado - os portadores de deficiência; que classifica em categorias, de forma indigna, os tipos de deficiência, o que viola veementemente o princípio da isonomia.

A Lei no 8.213/1991, em seu art. 93, ao estabelecer uma garantia mínima de emprego às pessoas portadoras de deficiência, impondo cotas de vagas as serem preenchidas obrigatoriamente pelo setor privado, sem incentivo do Estado para viabilizar tal política e sem critério específico para tais percentagens, desconsiderando a realidade de cada atividade empresarial e a realidade subjetiva de cada portador de deficiência, culmina em uma escolha irracional do empregador, que julga o tipo de deficiência menos severa, que será mais conveniente à sua atividade empresarial.

A ratio de tais dispositivos é promover uma proteção legal diferenciada, por motivos de solidariedade social, conferindo a todo deficiente uma superioridade jurídica para compensar suas limitações, de modo que possa atingir a igualdade de oportunidade com os trabalhadores em geral (NERI, 2003, p.12). Como assevera Hugo Mazzilli

Torna-se preciso compreender que o verdadeiro sentido da isonomia, constitucionalmente assegurada, é tratar diferentemente os desiguais, na medida em que se busque compensar juridicamente a desigualdade, igualando-os em oportunidades. Para alcançar essa finalidade, a lei pode estabelecer condições especiais de acesso ao emprego, em benefício do reabilitado ou deficiente habilitado, sem que isso caracterize norma discriminatória, conforme preceitua o art. 4º da Convenção n. 159 da OIT ( p. 15, 1996).

O princípio da isonomia não deve ser aplicado somente entre trabalhadores deficientes e não deficientes, mas também em nível mais profundo, ou seja, entre

Page 291: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 291

os trabalhadores portadores de necessidades especiais, vez que ao tratarmos todos tipos e graus de deficiências da mesma forma, podemos estar aumentando o preconceito e prejudicando a tentativa de proporcionar melhores condições de vida e de trabalho às pessoas portadoras de necessidades especiais (FERRETTI, 2012, p. 05). O grupo de pessoas portadoras de necessidades especiais não é homogêneo. A diferença na natureza de cada deficiência demanda diferentes medidas inclusivas para que haja igualdade de oportunidades no acesso ao mercado de trabalho. Consequentemente, a natureza da deficiência é um fator importante para a elaboração de políticas e estratégias sociais.

5. possíveis alternativas: experiências no direito comparado europeu

Diante da verificação do fenômeno da infradiscriminação, concluímos que o sistema de cotas homogêneo, por si só, não resolve o problema da exclusão das pessoas portadoras de deficiência do mercado formal de trabalho. Para que exista a inclusão completa dos portadores de todos os tipo de necessidades especiais no mercado de trabalho, os programas e políticas na área da educação, da saúde, de conscientização e da habilitação e reabilitação profissional devem ser implementados de forma articulada.

Contudo, é preciso ressaltar que, atualmente, não existe nenhuma outra medida que possa ajudar de forma direta e quase imediata o trabalhador com deficiência que procura uma colocação no mercado de trabalho. A Lei de Cotas ainda não é o ideal para que se consiga colocar todos os trabalhadores com deficiência nas empresas, porém é o mecanismo de inclusão mais eficaz que existe no momento, tendo em vista o contexto brasileiro. No mesmo sentido, Cibelle Goldfarb afirma que no momento há que se concluir pela importância do sistema em vigor, que deve ser mantido (2009, p. 25).

Também na União Europeia, não obstante as críticas, na maior parte dos Estados membros, os programas baseados no sistema de reserva de cotas permanecem como a principal política permanente em favor da inserção do portador de necessidades especiais no mercado de trabalho.

Entretanto, devemos considerar políticas alternativas que devem agir em conjunto para evitar ou diminuir o fenômeno da infradiscriminação, de modo

Page 292: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

292 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

a construir uma rede de políticas públicas articuladas nos setores educacional, profissional, de reabilitação e de incentivo econômico e de conscientização das empresas. A principal questão é a necessidade de combinar elementos da regulamentação legal com os elementos de estímulo econômico e social.

5.1. o sistema misto de cota-contribuição

Como alternativa ao sistema de reserva de cotas no trabalho para portadores há o sistema misto de cota-contribuição, que se baseia no princípio de que as empresas têm a responsabilidade de criar condições favoráveis para aquelas pessoas que têm alguma deficiência. Nesse sistema presente na França, Alemanha e Áustria, as empresas devem oferecer postos de trabalho, porém, quando isso não é possível, elas devem recolher um certo valor para uma instituição destinada a formação e educação de portadores de necessidades especiais, compensando desse modo, a parcela da cota legal não preenchida. A contribuições também podem ser usadas para estimular às empresas a preencher as cotas mediante adaptações dos locais e instrumentos de trabalho.

Este sistema concede prêmios às empresas que empregam um número de portadores de necessidades especiais acima da cota exigida. Na França, 50% dos recursos oriundos de contribuições voltam para as próprias empresas como estímulos à incorporação de portadores no seu quadro de empregados (GHENO; BOLIS, 2005, p. 195). É importante ressaltar que a contribuição ocorre como última alternativa, pois a prioridade é empregar os portadores de necessidades especiais.

Tal sistema pode ser considerado benéfico a longo prazo para o portador de necessidades especiais, pois apesar de não ser contratado imediatamente, este terá a oportunidade de se capacitar para eventual atividade que irá exercer na empresa. Ademais, as empresas reagem melhor a estímulos e punições econômicas que a sanções legais (LOPES, 2005, p. 96). Segundo Pastore

A utilização do sistema de cota-contribuição gera recursos para melhorar a situação do lado da oferta (os portadores de deficiência a serem contratados) e cria estímulos para o lado da demanda (as empresas contratantes) (...) O sistema de cota contribuição faz uma interligação construtiva entre a oferta e demanda, na medida

Page 293: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 293

em que atende as necessidades dos portadores de deficiência (no campo da qualificação) e as necessidades das empresas (na remoção de barreiras) (2000, p.114)

Entretanto, entendemos que a possibilidade da empresa não contratar pessoas portadoras de deficiência e, em compensação, contribuir economicamente para um fundo de amparo, deve ser debatida como uma alternativa limitada aos casos especiais, quando for comprovada a impossibilidade da empresa empregar uma pessoa portadora de deficiência.

Tal medida deve ser usada como última opção e com forte fiscalização, uma vez que pode significar a monetização da política de inserção dos portadores de necessidades especiais e a perda da ratio da norma protetiva, que é o exercício da atividade laborativa pelo portador de necessidades especiais, mediante o qual este exerce o seu autocontrole e exprime sua independência.

5.2. o sistema sheltered: o trabalho protegido

O sistema sheltered é um sistema destinado não somente aos trabalhadores portadores de necessidades especiais, vez que visam a inserção laborativa dos trabalhadores desfavorecidos, ou seja, qualquer pessoa que possui dificuldade para entrar no mercado de trabalho sem assistência.

É um sistema que abrange ao portador de necessidades especiais que não possui condições de obter ou manter um emprego ordinário no setor privado. Desse modo, as organizações de trabalho protegido são unidades produtivas que fornecem trabalho às pessoas portadoras de necessidades especiais mais severas e as preparam para um futuro emprego no mercado de trabalho ordinário, oferecendo serviços de reabilitação e treinamento profissional e comportamental. O sistema sheltered fornece trabalho a cerca de 500.000 pessoas em toda União Europeia e está presente na Suécia, Bélgica, França, Espanha, Itália e Escócia (GHENO; BOLIS, 2005, p. 196).

As organizações de trabalho protegido podem ser inseridas na própria estru-tura das empresas do setor privado ou em centros especiais. As unidades que fun-cionam na própria estrutura da empresa, inserindo-se no mercado concorrencial e atuando localmente, são aquelas que apresentam maiores resultados econômicos e sociais.

Page 294: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

294 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Na Espanha e na França existem os centros especiais de assistência de em- prego e trabalho e na Itália as cooperativas sociais desempenham um papel importante neste sistema. As cooperativas sociais italianas são criadas e administradas pelo poder público e combatem formas específicas de exclusão relativamente às pessoas com necessidades especiais, minorias étnicas, tóxicodependentes, entre outros grupos considerados desfavorecidos.

Além das cooperativas sociais, o sistema sheltered na Itália envolve as oficinas protegidas, que são unidades autônomas exclusivamente destinadas às pessoas portadoras de necessidades especiais e que não são administradas diretamente pelo poder público. O operador econômico das oficinas protegidas deve ser uma pessoa jurídica constituída em conformidade com a legislação vigente; que opera em uma atividade econômica estável e principal organizada; deve comprovar que a integração das pessoas com deficiência é um dos objetivos da instituição; deve ter a maioria da sua própria esfera de trabalhadores contituída por portadores de necessidades especiais, que,em razão da natureza ou gravidade das suas deficiên-cias, não podem exercer uma atividade profissional em condições normais.

Os percentuais de abandono no sistema sheltered são muito baixos, vez que as pessoas portadoras de necessidades especiais se sentem seguras em tais empregos, pois recebem o cuidado físico e psicológico necessário, sem sofrer a pressão econômica existente em um emprego ordinário. Contudo, deve ser ressaltado que tais organizações também possuem regras de competição, na medida em que estas tentam reproduzir um ambiente laborativo mais próximo possível das empresas ordinárias. Conforme decisão da Corte Europeia de Justiça (Betray case, 344/87), as pessoas portadoras de necessidades especiais que trabalham nas organizações do sistema de trabalho protegido adquirem o status de empregados (GHENO; BOLIS, 2005, p. 197)

Tal sistema se demonstra eficiente no combate à infradiscriminação, na medi-da em que permite que portadores de deficiência mais severas exerçam algum tipo de trabalho. Entretanto, tal sistema também deve ser utilizado com cautela, na medida em que este pode provocar a segregação e o isolamento definitivo de pessoas portadoras de certos tipos de deficiência, que não experimentam a socialização no mercado de trabalho ordinário, razão pela qual as unidades produtivas que funcionam na própria estrutura da empresa são aquelas que apresentam maiores resultados econômicos e sociais.

Page 295: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 295

5.3. o sistema de cotas heterogêneo

Na Bélgica, o sistema legal e homogêneo de reserva de cotas é profundamente criticado:

O governo considera que o sistema contraria a filosofia que prega a supremacia da aceitação e reintegração dos portadores de deficiência na vida normal. As autoridades argumentam que medidas coercitivas geram efeitos psicológicos negativos para os empregadores, portadores de deficiência e colegas de trabalho (PASTORE, 2000, p. 234).

A política adotada pelo Estado é a de não fixar cotas homogêneas, mas fixar regras para fixar as cotas, ou seja, não há regras que estabelecem percentuais para as empresas privadas, as cotas para cada setor são estabelecidas entre representantes do governo, sindicatos, empresários, e tais cotas somente podem ser preenchidas por aqueles que estão inscritos nos respectivos programas dos fundos de amparo ao portador de deficiência.

Tal política se apresenta interessante no combate da infradiscriminação, pois representa uma atuação interinstitucional em nível local para o estabelecimento de cotas específicas para cada setor, analisando o tipo e o risco de atividade empresarial, bem como o tipo de deficiência do trabalhador.

Contudo, para que tal política seja eficaz, devem ser asseguradas as condições para que seja realizado um debate justo e equilibrado entre os representantes de todos os setores, para que tais cotas sejam estabelecidas de forma ponderada. Ademais, tal política deve ser acompanhada por um programa de conscientização social das empresas, que em sua maioria ainda concebem o trabalhador portador de necessidades especiais como um custo e não como um investimento.

5.4. o estado como obrigado solidário

Observa-se em muitos países europeus uma grande tendência em comple-mentar a filosofia do sistema de cotas por uma “rede de apoio”, que atuaria no sentido de educar,formar, reabilitar, informar, intermediar e criar estímulos para inserir, reter e recolocar os portadores de deficiência no mercado de trabalho, e uma vez inseridos, lhes proporcionar assistência. Cotas isoladas mostram-se

Page 296: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

296 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

ineficientes, gerando a infradiscriminação. O sistema de cotas deve ser articulado com prêmios, subsídios e benefícios fornecidos pelo Estado.

Na França, existe um conjunto de programas de estímulos e subsídios estatais para os empregadores efetivarem as políticas de inserção do portador de necessidades especiais no mercado de trabalho: o objetivo é a transferência de recursos dos fundos públicos para que as empresas desenvolvam um ambiente propício para este trabalhador. Desde1987, as grandes empresas foram estimu-ladas a desenvolver programas integrados que cobrem treinamento, reabilitação e retenção e aquelas que adotam esse sistema ficam livres do pagamento da cota-contribuição supramencionada.

Na Espanha, país no qual vigora um sistema de cotas de 3% para empresas com mais de 50 empregados, o Estado auxilia no recrutamento dos portadores de necessidades especiais, promove deduções tributárias e fornece recursos para adaptação física do ambiente de trabalho.

Como já mencionamos, alguns equipamentos que os trabalhadores com deficiência necessitam possuem um alto custo de aquisição e este é um dos mo-tivos que podem levar as empresas a contratar apenas trabalhadores que tenham deficiências leves e que não precisem de muitas adaptações para desempenhar suas funções. Umas das possíveis formas para que estes custos sejam diminuídos seria a existência de empréstimos fornecidos pelo governo, com baixos juros, específicos para a compra destes equipamentos.

Outra sugestão para combater a infradiscriminação é a possibilidade de desoneração de tributos destes equipamentos para facilitar a compra destes pelas empresas. Tal iniciativa já está em estudo pelas secretarias dos Direitos da Pessoa com Deficiência e da Fazenda do estado de São Paulo. A ideia é definir uma cesta mínima de produtos e permitir que empresas e profissionais autônomos com deficiência possam adquiri-los com isenção de impostos, servindo como um estímulo à contratação de pessoas que possuem certos tipos de deficiência. A lista dos produtos que podem ser beneficiados por essa desoneração ainda não foi elaborada. Entre as possibilidades estão leitores de tela, scanners para deficientes visuais, impressoras especiais para imprimir textos em braile e folheadores eletrônicos para auxiliar pessoas com dificuldade para manusear papéis e documentos. Ademais, se a empresa tem sua carga tributária aliviada, certamente

Page 297: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 297

repassa esse benefício ao consumidor, refletindo-se na diminuição do preço do produto ou serviço.

6. conclusões

A mera imposição da obrigação de contratar portadores de necessidades es- peciais mediante o sistema homogêneo de cotas no setor privado, aplicado isoladamente, sem a articulação de políticas de educação inclusiva nas empresas, sem análise da realidade de cada atividade empresarial, sem incentivo Estatal às empresas para que haja a adequação do espaço físico industrial, provoca o fenômeno da infradiscriminação; ou seja, uma espécie de discriminação pré-contratual invisível e sobreposta, resultante da escolha do empregador, que representa um efeito colateral do sistema homogêneo de cotas, no qual há uma preferência por aquele candidato portador da deficiência menos severa e mais viável à empresa, ou seja, a deficiência que exige menor adaptação social ou investimento empresarial.

Tendo em vista a teoria social da deficiência, podemos entender o fenômeno da infra-discriminação como resultado não apenas da ausência de estruturas físicas adaptadas nas empresas, mas também como consequência da interação entre pessoas e de seu comportamento no ambiente de trabalho.

Concluímos que o sistema de cotas homogêneo, por si só, não resolve o problema da exclusão das pessoas portadoras de deficiência do mercado formal de trabalho. Contudo, é preciso ressaltar que, atualmente, não existe nenhuma outra medida que possa ajudar de forma direta e quase imediata o trabalhador com deficiência que procura uma colocação no mercado de trabalho. A Lei de Cotas ainda não é o ideal para que se consiga colocar todos os trabalhadores com deficiência nas empresas, porém é o mecanismo de inclusão mais eficaz existente no momento, tendo em vista o contexto brasileiro.

Para que exista a inclusão completa é necessário complementar o sistema homogêneo de cotas com uma “rede de apoio”, que atuaria no sentido de educar,formar, reabilitar, informar, intermediar e criar estímulos para inserir, reter e recolocar os portadores de deficiência no mercado de trabalho, e uma vez inseridos, lhes proporcionar assistência. Mencionamos neste artigo alguns sistemas complementares que foram adotados na Europa, como o sistema

Page 298: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

298 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

cota-contribuição, o sistema sheltered de trabalho protegido, o sistema de cotas heterogêneas e mecanismos de incentivo estatal que transformam o Estado em um obrigado solidário na inclusão do portador de todo tipo de necessidade especial no mercado de trabalho, que podem servir de exemplo e inspiração para o Brasil na luta contra a discriminação deste trabalhador no acesso ao mercado de trabalho.

7. referências

ANTUNES, Ricardo: Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. Ed. Boitempo, 2009.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 15 jun. 2014.

_______. Decreto nº 3.298 de 20 de dezembro de 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm>. Acesso em: 11 jun. 2014.

_______. Lei nº 7.853 de 24 de outubro de 1989. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7853.htm>. Acesso em: 11 jun. 2014.

_______. Lei nº 8.213 de 24 de julho de 1981. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>. Acesso em: 11 jun. 2014.

FERRETTI, Amanda Teixeira Silva. O mercado de trabalho para deficientes visuais nas empresas privadas a partir da Constituição. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/22468/o-mercado-de-trabalho-para-os-deficientes-visuais-nas-empresas-privadas-a-partir-da-constituicao>. Acesso 10 fev. 2014.

GHENO, Stefano; BOLIS, Antonio. Il lavoro diverso. Per una nuova politica di inserimenti delle persone disabili. Guerini e Associati, 2005.

GOÉS, Maurício de Carvalho, BUBLITZ, Michelle Dias: Breves Comentários acerca da inclusão social dos portadores de deficiência através do cumprimento da lei de cotas. Revista da Justiça do Trabalho. Porto Alegre, ano 27, nº. 317, p. 82-107, maio 2010.

Page 299: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 299

GOLDFARB, Cibelle Linero. Pessoas Portadoras de Deficiência e a Relação de Emprego - O Sistema de Cotas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2009.

GRAMMENOS, Stefanos. Disabled Persons. Statiscal Data. Eurostat, Theme 3, Population and Social Conditions, Statistical Office of European Communities, 1995.

HARLAN, S.L; ROBERT, P.M. The social Construction of disability in organizations: why employers resist reasonable accommodation. Work and occupation, vol. 25. Numero 4, 1998, pg. 397-435.

LIMENA, Francesca. L’ accesso al lavoro dei disabili, Editora CEDAM, 1996.

LOPES, Glaucia Gomes Vergara. A Inserção do Portador de Deficiência no Mercado de Trabalho: A Efetividade das Leis Brasileiras. São Paulo: LTr, 2005.

LUKÁCS, György. The Ontology of Social Being: Labour. Merlin Press, Londres In: ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. Ed. Boitempo, 2009.

MAIA, Luiz Fernando. A cota de deficientes físicos,visuais,auditivos e mentais nas empresas – Inconsistências de Inconstitucionalidades do decreto no5.926/2004. Revista IOB trabalhista e previdenciária, Porto Alegre, v.19, n.225, p.34-46, mar./2008.

MAZZILLI, Hugo Nigro. A pessoa portadora de deficiência e o Ministério Público, em Direitos das pessoas portadoras de deficiência, 8ª ed. São Paulo: Saraiva, Editora LTR, 2ª Edição, 1996.

NERI, Marcelo Cortez. Política de cotas no mercado de trabalho para pessoas com deficiência. In: VIII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho – ABET, 8., São Paulo, Revista da ABET, 2003.

NÚCLEO DE APOIO AO TRABALHADOR, Anúncios de emprego, 2012, disponível em <empregos.jangadeiroonline.com.br/vagas-para-deficientes/nucleo-de-apoio-ao-trabalhador-oferta-vagas-de-emprego-para-pessoas-com-deficiencia>. Acesso em 17 mar. 2014.

OLIVEIRA, Sebastião Geraldo. Proteção Jurídica ao Trabalho de Pessoas com Deficiência em Discriminação, Coord. Márcio Túlio Viana e Luiz Otávio Linhares Renault. LTr, 2000.

Page 300: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

300 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, (ONU), – Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, Resolução no 2.542/75, 1975, dispo-nível em <http://www.senado.gov.br/atividade/pronunciamento/detTexto.asp?t=342913>. Acesso em 11 jun. 2014.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, (OIT), Conven- ção 159 sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas De-ficientes, 1983, disponível em <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/deficiente/lex64.htm>. Acesso em 13 jun. 2014.

_______, Recomendação no 99 Sobre princípios e métodos de orientação vocacional e treinamento profissional, meios de aumentar opor-tunidades de emprego para os portadores de deficiência, emprego protegido, disposições especiais para crianças e jovens portadores de deficiência, 1955, disponível em <http://www.maragabrilli.com.br/normas-internacionais>. Acesso em 14 jun. 2014.

_______, Recomendação no 168 Recomendação sobre a reabilitação profissional e o emprego de pessoas portadoras de deficiência, 1983, disponível em <http://www.maragabrilli.com.br/normas-internacionais>. Acesso em 16 mar. 2014.

PEZZUTTO, Ana Carolina. Os desafios da inclusão de deficientes intelec-tuais, 2012, disponível em http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/os-desafios-da-inclusao-de-deficientes-intelectuais> Acesso em 25 fev. 2014.

ROLLI, Cláudia. São Paulo estuda incentivo para incluir deficiente, 2013, disponível em <http://www.deficienteonline.com.br/sp-estuda-incentivo-para-incluir deficiente_news_154.htm.> Acesso em 22 fev. 2014.

SILVA, Walkure Lopes Ribeiro. Seguridade Social e a Pessoa Portadora de Deficiência, in Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência, Coleção Advocacia Pública & Sociedade n. 1, publicação oficial do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP), Max Limonard, 1997.

Page 301: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 301

interpretação dos direitos de seguridade social: uma análise

a partir do método teleológico

Zélia Luiza Pierdoná1

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade de se utilizar os métodos tradicionais de interpretação, especificamente o método teleológico, quando se está diante de normas que veiculam direitos sociais, em especial, os direitos de seguridade social. Busca-se, com o texto, demonstrar que muitas vezes os referidos direitos estão sendo interpretados a partir de uma ótica individualista, garantindo-se a proteção a cidadãos/grupo que está requerendo uma prestação de seguridade social (saúde, previdência e assistência), sem a devida reflexão quanto à viabilidade de extensão para toda a coletividade que se encontra na mesma situação. O método em análise (teleológico) tem sido utilizado pelo Poder Judiciário brasileiro para a concessão de proteção social indevida sob a ótica da coletividade.

Palavras-chave

Interpretação; Método teleológico; Direitos sociais; Seguridade social.

Resumen

Este estudio tiene como objetivo examinar la posibilidad de utilizar los métodos tradicionales de interpretación, específicamente el método teleológico, cuando se trata de normas de derechos sociales, especialmente los derechos de la seguridad social. Uno de los objetivos, con el texto, muestran que a menudo estos derechos están siendo interpretados desde una perspectiva individualista, lo que garantiza la protección a los ciudadanos/grupo que esta requiriendo la

1 Professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Mestre e Doutora em Direito pela PUC/SP; realizou estágio pós-doutoral na Universidade Complutense de Madri; Coordena o grupo de pesquisa ativismo judicial e seguridade social; é Procuradora Regional da República.

Page 302: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

302 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

prestación de la seguridad social (salud, previsión social y asistencia social), sin la debida consideración en cuanto a la posibilidad de ampliar a toda la comunidad que se encuentra en la misma situación. El método en cuestión (teleológico) ha sido utilizado por la Justicia brasileña para la concesión de la protección social indebida desde la perspectiva de la comunidad.

Palabras clave

Interpretación; Método teleológico; Derechos sociales; Seguridad social.

1. desenvolvimento

Em relação aos principais métodos de interpretação, Luiz Alberto Warat2

afirma que “os métodos interpretativos, aparecem definidos pelo saber acumulado (o senso comum teórico dos juristas) como técnicas rigorosas que permitem alcançar o conhecimento científico do direito positivo”. Ressalta o autor que cada método3 possui conexão com a ideologia da escola que conforma o pensamento jurídico, que inclusive, em alguns casos, levam o próprio nome dela.

Sustenta Warat4 que os métodos de interpretação não cumprem as funções sistemáticas, hermenêuticas e de garantia que lhes são assinaladas pelo pensamento jus-filosófico clássico. Conclui que “os métodos de interpretação podem ser indiscriminadamente utilizados apesar de o senso comum teórico dos juristas exigir sua compatibilidade com o tipo de problema ao qual se apliquem”.

Ao expor o método teleológico, o autor acima citado5 utiliza o plural, pois segundo ele, há duas vias de realização do citado método: 1) método teleológico

2 WARAT, Luiz Alberto. Mitos e teorias na interpretação da lei, p. 85.3 WARAT, Luiz Alberto. Mitos e teorias na interpretação da lei, p. 65, ressalta que “os métodos

de interpretação podem ser considerados o álibe teórico para a emergência das crenças que orientam a aplicação do direito. Assim, sob a aparência de uma reflexão científica criam-se fórmulas interpretativas que permitem: 1) veicular uma representação imaginária sobre o papel do direito na sociedade; 2) ocultar as relações entre as decisões jurisprudenciais e a problemática dominante; 3) apresentar como verdades derivadas dos fatos, ou das normas, as diretrizes éticas que condicionam o pensamento jurídic; 4) legitimar a neutralidade dos juristas e conferir-lhes um estatuto de cientista”.

4 WARAT, Luiz Alberto. Mitos e teorias na interpretação da lei, p. 67.5 WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito, vol. I: interpretação da lei temas para uma

reformulação p. 81.

Page 303: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 303

em sentido estrito, que se relaciona ao direito público e se opõe à teoria Kel-seniana; 2) jurisprudência de interesses, relacionada ao direito privado e oposta à jurisprudência dos conceitos. Entretanto, segundo o autor, “ambos apresentam uma concepção antinormativista e consideram o problema do fim como elemento metodológico central. Ambos tem em Ihering seu principal precursor”.

Para o referido método, o conceito de “fim” substitui o conceito de “valor”. A regra jurídica cumpre uma finalidade, a qual justifica seu nascimento e sua existência, não sendo, portanto, causal.

Nas suas duas vias, o método teleológico explicita seu caráter político, uma vez que o valor de uma decisão judicial ou de uma interpretação do texto legal deve ser avaliada em relação às consequências sociais antecipadamente previstas. Os métodos de interpretação seriam mecanismos técnicos para alcançar os objetivos sociais ou políticos.

Miguel Reale6 sustenta que “a compreensão finalística da lei, ou seja, a inter-pretação teleológica veio se afirmando, desde as contribuições fundamentais de Rudolf Von Jhering, sobretudo em sua obra O Fim no Direito”. Ele ressalta que atualmente, após os estudos da teoria do valor e da cultura, por dispor de maiores conhecimentos sobre a estrutura das regras de direito, sobre o papel que o valor nela representa, “o fim, que Jhering reduzia a uma forma de interesse, é visto antes como o sentido do valor reconhecido racionalmente enquanto motivo determinante da ação”.

Segundo o referido autor, o fim da lei “é sempre um valor, cuja preservação ou atualização o legislador teve em vista garantir, armando-o de sanções, assim como também pode ser fim da lei impedir que ocorra um desvalor7”. Sustenta Miguel Reale que os valores não se explicam segundo nexos de causalidade, mas são objeto de um processo compreensivo que se realiza por meio do confronto das partes com o todo e vice-versa.

O pressuposto do método teleológico, segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr8, é o de que sempre é possível atribuir-se um propósito às normas. Assevera o

6 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 286.7 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 286.8 FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito, pp. 291-293.

Page 304: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

304 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

autor que no direito brasileiro, a Lei de Introdução ao Código Civil (atualmente denominada Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro) contém uma exigência teleológica, no art. 5º : “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais do direito e às exigências do bem comum”. Segundo ele, “as expressões ‘fins sociais’ e ‘bem comum’ são entendidas como sínteses éticas da vida em comunidade (...). Faz-se mister assim encontrar nas leis, nas constituições, nos decretos, em todas as manifestações normativas o seus telos (fim) que não pode jamais ser anti-social”.

O autor sustenta que a interpretação teleológica e axiológica desperta a participação do intérprete na configuração do sentido. Segundo ele, a lei sempre “visa aos fins sociais do direito e às exigências do bem comum, ainda que, de fato, possa parecer que eles não estejam sendo atendidos”9.

Ressalta-se que o fim proposto por Ihering10 é o bem-estar da sociedade. Para ele “a existência e o bem-estar da sociedade constituem a finalidade de todas as normas morais”. Assim, o precursor do método, objeto deste trabalho, em sua obra “A finalidade do direito”, colocou a sociedade como a finalidade da moral, pois, segundo ele, a sociedade inclui o indivíduo e este não inclui a sociedade. O autor assim se manifesta:

Ao deslocar o indivíduo do lugar que esse injustamente se arrogou, colocando, ao invés dele, a sociedade, a teoria social11 tem a consciência de não ter causado prejuízo à legítima pretensão do indivíduo relativamente à sua disposição moral, e até, pelo contrário, pode ufanar-se de lhe ter feito muito mais justiça. Na teoria social há lugar para o indivíduo, mas na teoria

9 FERRAZ, Tércio Sampaio Jr. Introdução ao estudo do direito, pp. 291-293.10 JHERING, Rudolf Von. A finalidade do direito, Tomo II, pp.98-99.11 Importante lembrar o contexto vivido pelo autor. Ele afirma: “só sei que devo à época tudo

o que sou capaz de dar, sentindo-me apenas como o ponto em que o estofo ideológico dela transitoriamente assumiu uma configuração de pessoa. A teoria histórico-social que tenciono fundamentar já se achava suspensa, em estado de maturidade, na árvore do tempo, restando-me tão-somente romper o fruto maduro que, por certo, não nos deve levar à afirmação de que haja bastado, para isso, estender a mão: sem escada e sem esforço para subi-la não seria viável”, JHERING, Rudolf Von. A finalidade do direito, p. 110. Sustenta ainda que não é a voz do homem de ciência “que solicita licença para a teoria social, mas a massa selvagem e apaixonadamente agitada pelas teorias socialistas que, com potentes pancadas, bate à porta para que se ressoe mais e arranque os sonhadores de seus sonhos”, p. 108.

Page 305: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 305

individualista não existe lugar para a sociedade – o todo contém a parte, mas a parte, que quer existir só para si, exclui o todo. Se a parte coloca como fim a sua prosperidade particular, então o todo pode arruinar-se. Já se o todo coloca como fim a sua prosperidade, deflui necessariamente a preocupação com a parte, pois que o todo não pode estar são se a parte estiver doente.

Tal é o primeiro saldo positivo de que a teoria social pode gloriar-se em seu balanço com a teoria individualista. Trata-se do importante princípio: a sociedade obriga-se a zelar por seus membros. A teoria individualista não tem condições de derivar esta obrigação.

(...)

O segundo saldo positivo da teoria social sobre a individualista reside no objetivo ideal de vida que traça para o indivíduo e no alto valor que reconhece à existência individual (...). A teoria social, por outro lado, incorpora o indivíduo na vida do conjunto, no processo evolutivo da sociedade”12.

Assim, considerando que Ihering situa na sociedade o fim da norma e, con-siderando que o referido autor é o precursor do método teleológico, pode-se afirmar, inicialmente, que o método teleológico, tendo como fim o bem-estar da sociedade, é um método a ser discutido quando se está “repensando” a interpretação dos direitos sociais.

Referindo-se ao método teleológico, Willis Santiago Guerra Filho assevera que:

Jhering introduz o método teleológico de interpretação, pelo qual se há de buscar, para além da intelecção gramatical, filológica, histórica e sistemática, a finalidade social, os interesses individuais, coletivos e públicos, que são beneficiados ou prejudicados, com determinada interpretação, em busca do estabelecimento de um equilíbrio entre esses diversos interesses, para que sejam atendidos na justa proporção, requerida pela idéia de igualdade. É essa idéia de proporcionalidade, de sopesamento entre bens jurídicos conflitantes que será projetada no centro da metódica interpretativa, na Jurisprudência dos Interesses e mais ainda naquela forma como ela hoje se apresenta, a ‘Jurisprudência

12 JHERING, Rudolf Von. A finalidade do direito, pp. 98-99.

Page 306: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

306 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

das Valorações’ (Wertungsjurisprudenz). Nessa ‘mudança de paradigmas’ (Krawietz), não se pode deixar de assinalar a evolução da idéia inicial de Jhering, até chegar a atual Jurisprudência das Valorações, em que os interesses são transmutados em valores, consagrados em princípios jurídicos, positivados, em geral, na Constituição, um passo que, segundo G. Radbruch, faltou ser dado por Jhering para escapar ao determinismo da sua posição original13.

Nesse sentido, ao estabelecer os objetivos do Estado brasileiro, a Constituição preceituou, entre outros, a redução das desigualdade sociais, bem como a erradicação da marginalização.

Os referidos objetivos, consagrados na Constituição, conforme ensina Willis Santiago Guerra Filho, serão alcançados com a efetivação dos direitos sociais, os quais garantem a igualdade material.

O objeto do presente trabalho é a interpretação das normas que veiculam direitos sociais, em especial, os direitos de seguridade social, utilizando como referencial o método teleológico.

Dessa forma, observa-se na prática que os direitos de seguridade social têm sido interpretados a partir de uma ótica individualista, no sentido de garantir o maior direito possível ao cidadão que está requerendo uma prestação de seguridade social14 (saúde, previdência e assistência), em detrimento dos demais que se encontram na mesma situação. O método teleológico tem sido utilizado como justificativa, no sentido de que a finalidade de uma norma de direito social é conceder direitos, mesmo que sob uma perspectiva individual.

Nesse sentido alerta Armando de Oliveira Assis15, que “sob a alegação de que se trata de matéria do domínio do Direito Social, os seus interpretadores são levados a invocar o ‘sentido social’, o ‘objetivo social’ de tais leis, e à sombra de uma interpretação supostamente ‘social’ muitos disparates poderão ser cometidos em detrimento da coletividade”.

13 GUERRA, Willis Santiago Filho. Teoria da ciência jurídica, p. 65.14 Nos termos do art. 194 da Constituição Federal, a seguridade social compreende um conjunto

integrado de ações relacionadas à saúde, à previdência e a assistência social.15 ASSIS, Armando de Oliveira. Compêndio de seguro social, pp. 152 a 155.

Page 307: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 307

Entretanto, a finalidade defendida pelo precursor do referido método é a social, aquela que reflete no todo e, indiretamente, beneficia as partes, já que estas fazem parte daquele. Conforme as palavras de Ihering, transcritas acima, o todo pode arruinar-se se a parte coloca como fim a sua prosperidade particular.

Novamente cita-se Armando de Oliveira Assis16, o qual sustenta, com propriedade, que justamente por se tratar de legislação social é que se deve dar primazia ao interesse social, quando da aplicação de uma lei que verse sobre direito social. Assevera o autor que “tem-se que levar mais em conta a coletividade do que os indivíduos, por muito que, aparentemente, possa uma reivindicação pessoal matizar-se de interesse, ou quando muito, de ‘conveniência social”.

Assim, o problema que se coloca é a interpretação que se faz da interpretação teleológica. Segundo o precursor do referido método, o indivíduo deve ser visto como parte do todo. Conforme referido acima, se o todo coloca como fim a sua prosperidade, deflui necessariamente a preocupação com a parte, pois que o todo não pode estar são se a parte estiver doente. Entretanto, não será apenas uma parte que deverá estar sã, mas todas as partes para que o todo atinja sua prosperidade.

Além disso, é importante atentar também para o que é interpretado como interesse social. Nesse sentido, afirma Warat17 que “a noção de interesse social pode ser considerada como estereótipo ou variável axiológica, uma desculpa para, mediante a invocação do interesse social, obter uma alteração significativa dos termos legais, desqualificar como contrária a dito interesse, uma solução – até agora – aceita ou predominante em relação ao texto legal (...)”. Para ele, “a dificuldade repousa em encontrar um padrão ou critério qualificador, que determine o interesse social que merece ser protegido ou privilegiado”. Concluiu o autor que “em geral, cada setor social identifica seu interesse com o interesse social”18.

Dessa forma, não se deve analisar “parte” apenas como um indivíduo. Deve-se analisar parte como o conjunto de indivíduos. Alguns são mais que um, mas não são o todo.

16 ASSIS, Armando de Oliveira. Compêndio de seguro social, pp. 152 a 155.17 WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito, vol. I: interpretação da lei temas para uma

reformulação, pp. 83 e 84.18 Observamos isso nas discussões sobre qualquer mudança no ordenamento previdenciário, nas

quais, na maioria das vezes, se busca preserva o interesse de setores em detrimento da proteção de todos os trabalhadores.

Page 308: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

308 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Nesse sentido, sustenta Ihering19 que “uma mera pluralidade de simples objetos não forma um todo, não configura um objeto novo, dele diferenciado, mas a mesma coisa, apenas colocada no plural e não mais no singular”. Conclui o autor que “a sociedade também não é mera pluralidade de indivíduos, não é o plural do singular ‘homem’, mas a pluralidade na sua solidariedade, coesão e unidade internas e externas produzidas pelo fim como”.

Assim, considerando, ainda, os princípios constitucionais a que se referia Willis Santiago Guerra Filho, especialmente o previsto no art. 195, § 5º, o qual estabelece a necessidade de custeio prévio para ampliação dos direitos de seguridade social, bem como o princípio da igualdade (um dos grandes pilares do Estado instituído na Constituição de 1988), a decisão que garante uma prestação a um indivíduo, sem a análise da possibilidade de concessão a todos os que se encontram na mesma situação, viola o interesse social e garante a saúde de apenas parte do todo.

Como observa José Reinaldo Lopes20 só há que se falar em adjudicação legí-tima de direitos sociais quando esta disposição se der respeitando a possibilidade de exercício simultâneo e na mesma extensão para todos os demais que se encontram na mesma situação, ou seja, dispor de direitos sociais é o mesmo que dispor sobre um bem condominial indiviso (todos que se encontram naquela mesma situação são titulares, em potencial, daquele bem).

A referida análise aplica-se a todos os direitos de seguridade social, a qual, nos termos do art. 194 da Constituição Federal compreende a saúde, a previdência e a assistência social. Dessa forma, há dois problemas a serem enfrentados quando se está diante de normas de seguridade social: o individual em detrimento do todo e os interesses de setores transvestidos de interesse da coletividade.

Em relação aos dois problemas, os ensinamentos de Ihering contribuirão para se pensar em alternativas que garantirão, de forma mais adequada, a proteção social estabelecida pela Constituição de 1988.

19 JHERING, Rudolf Von. A finalidade do direito, p. 111.20 LOPES, José Reinaldo, Direitos sociais: teoria e prática, p. 170 “Embora todos tenhamos

interesses sobre estas coisas, nenhum de nós tem um direito subjetivo sobre uma destas coisas em particular pela mesma razão que um condômino não tem um direito subjetivo exclusivo e excludente sobre uma parte qualquer de um bem condominial pro indiviso. O exercício de seus respectivos direitos está condicionado à possibilidade de exercício simultâneo e na mesma extensão do direito dos outros condôminos”.

Page 309: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 309

Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo G. Branco, citando Radbruch afirmam que “a interpretação jurídica não é pura e simplesmente um pensar de novo aquilo que já foi pensado, mas, pelo contrário, um saber pensar até ao fim aquilo que já começou a ser pensado por um outro”. Para os autores21, não é uma mera repetição do que já foi dito, mas um dialético levar adiante, preservando e enriquecendo um pensamento que apenas se iniciou e que não impõe limites para novas leituras.

Canotilho22, referindo-se às normas constitucionais, sustenta que a inter-pretação é um conjunto de métodos desenvolvido pela doutrina e pela juris-prudência com base em critério ou premissas diferentes, mas em geral, com-plementares.

Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo G. Branco sustentam que a pluralidade referida acima, pelo constitucionalista português, pode ser comprovada no próprio direito positivo, citando o art. 4.1 do Código Civil Espanhol, bem como o art. 5º Lei de introdução ao Código Civil e o art. 127 do Código de Processo Civil.

O preceito do direto alienígena, mencionado acima, estabelece que as normas sejam interpretadas segundo o sentido próprio das suas palavras em relação ao contexto, aos antecedentes históricos e legislativos e à realidade social do tempo em que devam ser aplicadas, atendendo-se, fundamentalmente, ao seu espírito e finalidade.

Os autores citam Manuel Atienza23 para quem o dispositivo da lei espanhola contempla cinco tipos ou momentos de interpretação (textual ou lingüística, sistemática, pragmática, teleológica e ética ou valorativa). Para ele, cada técnica de interpretação pressupõe a anterior e ao mesmo tempo a ela se subordina. Conclui que há interdependência e a complementariedade não apenas entre os diferentes métodos, princípios, momentos ou espécies de interpretação, “mas também entre legislação e jurisdição, entre produção e aplicação do direito”.

21 RADBRUCH, Gustavo. Filosofia do direito. Coimbra : Arménio Amado Ed., 1961, p. 274, apud MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo G. Curso de direito constitucional, p. 48.

22 CANOTÍLHO, J. J. Gomes Canotílho. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1084.23 ATIENZA, Manuel. Contribución a uma teoria de la legislación. Madrid : Civitas, 1997, p. 95-

100 apud MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo G. Curso de direito constitucional, p. 75.

Page 310: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

310 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

Assim, considerando a premissa de interdependência e de complementariedade entre os diferentes métodos de interpretação, passa-se a analisar algumas situações relacionadas aos direitos de seguridade social (saúde, previdência e assistência).

Inicialmente, deve-se ressaltar que, mesmo diante dos direitos de seguridade, há diferenças que precisam ser destacadas, quando se analisa métodos de inter- pretação. Exemplo disso é a exigência de contribuição para os direitos previ-denciários, enquanto que os de saúde e de assistência social não exigem contra-prestação direta dos beneficiários.

A análise, referida acima, será feita a partir dos ensinamentos de Ihering, de que a finalidade da norma é o todo e não o indivíduo.

Nesse sentido, na Suspensão de Segurança nº 314524, a qual versa sobre o direito à saúde, a Ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal, determinou a suspensão da decisão que havia sido concedida no Mandado de Segurança nº 2006.007349-6 pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, sob o fundamento de que:

a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se deferir o custeio dos medicamentos em questão em prol da impetrante, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade.

Em sua decisão, a Ministra relatora transcreveu parte do parecer proferido pela Procuradoria Geral da República, que concluiu no mesmo sentido:

(...)

13. A determinação de entrega de fármacos não constantes da lista oficial do Ministério da Saúde gera, por outro lado, impacto não previsto nas finanças públicas, comprometendo a programação

24 Suspensão de Segurança nº 3145. Ministra relatora Elle Gracie.

Page 311: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 311

estatal de aquisição, estocagem e distribuição de medicamentos, em prejuízo da universalidade do atendimento.

14. É que a gestão da política nacional de saúde deve ser feita de forma generalizada, buscando atender o maior número possível de pessoas, com a implementação de práticas que garantam o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, a proteção e a recuperação da saúde, nos exatos termos do art. 196 da Constituição Federal (...).

Em relação à concessão de medicamentos por meio de decisão judiciais, Ana Paula Barcellos, assim se manifesta:

a prestação de saúde concedida por um magistrado a determinado indivíduo deveria ser concedida também a todas as demais pessoas na mesma situação. É difícil imaginar que a sociedade brasileira seja capaz de custear (ou deseje fazê-lo) toda e qualquer prestação de saúde disponível no mercado para todos os seus membros.

(...)

Muito ao revés, tais decisões judiciais acabam por se transformar, involuntariamente, em veículos de uma distribuição de renda muito pouco eqüitativa no âmbito da sociedade brasileira: todos custeiam – sem que tenham decidido fazê-lo – determinadas necessidades de alguns, que tiveram condições de ir ao Judiciário e obtiveram uma decisão favorável. Note-se que no caso do mínimo existencial, diferentemente, há sim uma decisão política fundamental _ constitucional _, pela qual toda a sociedade comprometeu-se a custeá-lo para assegurar a dignidade de todos os homens25.

A autora afirma que “se todos são igualmente dignos, não é possível proceder a qualquer distinção com base em argumentos pessoais ou particulares”. Ela apresenta dois parâmetros para diferenciar as prestações de saúde: pelo primeiro, haveria preferência de prestações de saúde capaz de, pelo menor custo, atender de forma eficaz o maior número possível de indivíduos; no segundo, haveria a inclusão prioritária no mínimo existencial daquelas prestações de saúde de que todos os indivíduos necessitam. Este último critério busca assegurar “que todos

25 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais, pp. 306-308.

Page 312: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

312 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

tenham direito subjetivo a um conjunto comum e básico de prestações de saúde, como corolário imediato do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”26.

A situação acima descrita permite uma análise sob a ótica da teoria social defendida por Ihering, inclusive a fundamentação da Ministra relatora foi feita nesse sentido, uma vez que afirmou que o direito à saúde deve ser assegurado a população como um todo, de maneira igualitária, e não atender a situações individualizadas.

Entretanto, deve ser ressaltado que a decisão acima referida não tem sido a prática dos tribunais brasileiros, os quais reiteradamente têm deferido pedidos individuais de concessão de medicamentos. Com isso, as referidas decisões, além de violar o dispositivo do § 5º do art. 195 da Constituição Federal (princípio do custeio prévio), violam a forma de implementação do direito à saúde prevista no caput do art. 196, também da Constituição27 (mediante políticas sociais e econômicas).

Ainda, as decisões judiciais ignoram o disposto no inciso III do parágrafo úni-co do art. 194 da Constituição (princípio da seletividade e distributividade), o qual é um contentor28 do princípio da universalidade da cobertura e do atendimento, previsto no inciso I do mesmo dispositivo constitucional.

Em relação aos direitos previdenciários, Moacyr Velloso Cardoso de Oliveira29 pondera no mesmo sentido, conforme se pode constatar em suas palavras, abaixo transcritas:

é preciso ter ainda presente que a solução que se procura dar a um “caso individual” pode vir, pelos fundamentos invocados, a

26 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais, p. 312. 27 Zélia Luiza Pierdoná sustenta que “a concessão de medicamentos pelo Poder Público insere-

se dentro da universalização que a Constituição conferiu à saúde. Entretanto, a referida concessão deve ser realizada de forma a garantir a efetividade dos preceitos constitucionais, e não as impedir. Nesse sentido, apenas por meio de políticas sociais, e não por decisões judiciais individuais, é que o Poder Público deve garantir o acesso a medicamentos”. PIERDONA, Zélia Luiza. O direito à saúde e a impossibilidade de concessão de medicamentos por decisão judiciais individuais.

28 Conforme PIERDONA, Zélia Luiza. A proteção social na Constituição de 1988, p. 241.29 OLIVEIRA, Moacyr Velloso Cardoso de Oliveira, Previdência social: doutrina e exposição da

legislação vigente, p. 480.

Page 313: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 313

ter que aplicar-se logicamente muitas vezes, a milhares e milhares de outros, com o irremediável comprometimento daquela segurança econômica do Sistema, a qual, devendo garantir a de toda a “coletividade” amparada, pode vir a ser fortemente abalada pela solução, aparentemente inócua, dada àquele simples “caso individual”.

O autor ressalta que, para a interpretação e/ou aplicação dos direitos previ-denciários, deve-se conhecer e aplicar os princípios técnicos do seguro social. Já em 1987 (data da publicação de sua obra), o autor relata a desconsideração de noções e/ou princípios fundamentais, os quais são por ele relacionados: 1) correlação entre as contribuições pagas e as espécies e os valores dos benefícios; 2) que as contribuições30 são um “prêmio” de seguro e não um tributo; 3) não pode haver ônus para o sistema sem cobertura de receita prévia; 4) não é possível dar ao seguro social - que é a base econômica da Previdência Social - de caráter eminentemente participativo e baseado nas leis da “solidariedade” e da “reciprocidade”, o mesmo tratamento dispensado ao Sistema Tributário; 5) que a Previdência não pode ser confundida com “beneficência” ou “assistência social”.

Assim, quando se está diante de previdência social os critérios para se atender aos fins sociais são diversos dos utilizados na interpretação dos outros direitos de seguridade social (saúde e assistência).

No mesmo sentido defendido pelo autor acima citado, em relação à aplicação das normas previdenciárias, são as palavras do Ministro Gilmar Mendes, nos autos do Recurso Extraordinário nº 415.454-4:

(...) não é possível interpretar essa legislação previdenciária inovadora de modo apartado das condicionantes orçamentárias previstas no § 5º do art. 195 da CF.

30 Neste aspecto, no atual ordenamento constitucional, as contribuições têm natureza tributária, conforme entendimento da grande maioria da doutrina e da jurisprudência. Entretanto, mesmo tendo natureza tributária, as contribuições tem destinação específica à previdência social, conforme determina o art. 167, XI da CF. Além disso, a Constituição, tanto no art. 201 ao tratar do Regime Geral de Previdência Social, como no art. 40 (Regime Próprio dos Servidores Públicos) estabelece a contributividade como característica da previdência social, diferente das outras duas áreas da seguridade social (saúde e previdência) em que não há a exigência de contraprestação direta dos beneficiários. Desse modo, a advertência do autor permanece, mas com as características aqui apontadas.

Page 314: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

314 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

(...)

Nesse contexto, o cumprimento das políticas públicas previdenciárias, exatamente por estar calcado no princípio da solidariedade (CF, art. 3º, I), deve ter como fundamento o fato de que não é possível dissociar as bases contributivas de arrecadação da necessária dotação orçamentária exigida, de modo prévio, pela Constituição (CF, art. 195, § 5º).

Trata-se do princípio da preservação do equilíbrio financeiro e atuarial (CF, art. 201, caput) que, inclusive, demonstra-se em consonância com os princípios norteadores da Administração Pública (CF, art. 37) e, no que interessa a este caso, da própria atuação da autarquia ora recorrente.

(...)

Enfim, a faculdade confiada ao legislador de regular o complexo institucional da seguridade, assim como suas fontes de custeio, obriga-o a compatibilizar o dever de contribuir do indivíduo com o interesse da comunidade. Essa necessidade de ponderação entre o interesse individual e o interesse da comunidade é, todavia, comum a todos os direitos fundamentais, não sendo uma especificidade da seguridade social. (os grifos não constam do original).

Também em relação às demandas previdenciárias os tribunais brasileiros têm decidido de maneira generosa, violando vários preceitos constitucionais, em especial o próprio art. 201 da Constituição que exige lei para a configuração das prestações previdenciárias. Exemplo disso são as decisões judiciais que permitem a desaposentação31, mesmo havendo impeditivo legal para tanto.

Por fim, no que tange à assistência social, o interesse social também deve ser buscado mesmo que em detrimento do interesse individual. Entretanto, a concessão, pelo Poder Judiciário, do benefício de prestação continuada, previsto na Constituição Federal, no art, 203, V, tem violado o sistema brasileiro de seguridade social, uma vez que não observa a subsidiariedade da proteção assistencial, tanto em relação a proteção previdenciária, quanto no que tange a proteção assistencial privada. O princípio do “tadinho” tem preponderado e, a

31 Em relação à desaposentação ver PIERDONÁ, Zélia Luiza. Desaposentação: um caso de distorção do sistema previdenciário brasileiro.

Page 315: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 315

pretexto de realizar justiça social, as decisões judiciais, de certa forma, estimulam o não recolhimento de contribuições previdenciárias.

A flexibilização do critério de miserabilidade fixado na LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social), recentemente agasalhada pelo Supremo Tribunal Federal32, pode garantir proteção assistencial mais vantajosa que a proteção previdenciária, a qual depende de contribuição e a própria remuneração do trabalho.

Isso porque, alguém que ganhe, pelo fruto do trabalho ou como aposen-tadoria, um salário mínimo e tenha, por exemplo, dois dependentes, viverão com o citado montante. Enquanto que a concessão do benefício assistencial, em razão da flexibilização adotada pelo STF, poderá garantir que em situação análoga se receba mais um salário-mínimo se o beneficiário não tem proteção previdenciária.

Essa decisão, que em um primeiro momento pode representar um avanço na proteção social como um todo, poderá por em risco o sistema de proteção desenhado na Constituição, já que desvirtua a subsidiariedade da assistência social.

A referida subsidiariedade foi defendida pelo Relatório Beveridge33, o qual é inspiração do sistema de proteção social brasileiro. No referido relatório foi ressaltado que a proteção assistencial deve ser menos atrativa que a proteção previdenciária, pois do contrário não há porque contribuir para a previdência social:

Servirá a assistência para atender a todas as necessidades que não forem satisfeitas pelo seguro. Devem ser atendidas tais necessidades

32 “Em 18 de abril de 2013 o Plenário do Supremo Tribunal Federal reanalisou o critério de miserabilidade fixado pela Lei 8.742/93 para fins de concessão do benefício assistencial de prestação continuada à pessoa portadora de deficiência ou idoso. Ao julgar os Recursos Extraordinários no. 580.963 e 567.985-3 bem como a Reclamação n. 4.374 declarou incidenter tantum a inconstitucionalidade do § 3º, art. 20, da Lei nº 8.742/93. Segundo argumentou, há situação de inconstitucionalidade por omissão parcial, provocada por uma “insuficiência normativa” trazida pelo critério de miserabilidade do artigo 20, § 3º, da Lei 8.742/93” MARQUES, Carlos Gustavo Moimaz. Reflexões sobre a decisão do STF que declarou a inconstitucionalidade do critério de miserabilidade estabelecido pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS - Lei 8.742/93).

33 BEVERIDGE, William. O plano Beveridge, p. 219.

Page 316: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

316 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

de maneira adequada ou nível de subsistência; mas os beneficiários devem ver na assistência algo menos desejável do que o auxílio de seguro, pois, se assim não for, nada lucrarão os segurados com suas contribuições.

Nesse sentido, deve-se fazer uma severa crítica ao constituinte que fixou o valor de um salário-mínimo, tanto para o referido benefício assistencial, quanto para o limite mínimo da proteção previdenciária. Isso certamente desestimula que certo grupo de segurados obrigatórios recolham contribuições, visando à proteção previdenciária.

Ora, se o beneficiário terá prestações iguais, tanto na Previdência, quanto na Assistência Social e, se o recolhimento das contribuições previdenciárias é encargo do próprio trabalhador (em algumas situações), recolhê-las em nada acrescerá em sua proteção social. A única diferença é o abono anual (corresponde ao 13º dos empregados em atividade). E, em relação a essa pequena diferença, já foi defendido, pelo chefe do Executivo Federal, sua extensão ao benefício de prestação continuada da assistência social.

Certamente o desconhecimento da seguridade social como sistema levou o constituinte a fixar o referido valor ao citado benefício assistencial. O mesmo ocorreu em relação à mencionada decisão do Supremo Tribunal Federal.

A referida decisão causará muita desigualdade, mesmo em relação aos destinatários da própria proteção assistencial, pois o juiz, em cada caso, definirá o que é miserabilidade para fins de concessão do benefício. Assim, pessoas na mesma situação, cujos processos são julgados por juízes diferentes, poderão receber ou não proteção. Será a subjetividade do juiz e não o critério legal quem definirá a concessão ou não do benefício. Com isso, o estado de direito (caracterizado pela legalidade) cederá para o Estado Judicial, no qual os membros do judiciário sabem, melhor que os representantes do povo, qual o critério de justiça social.

Além disso, o laudo social que subsidia o juiz no julgamento tem sido feito de uma maneira muito precária e que, muitas vezes, acaba fazendo com que verdadeiras fraudes sejam homologadas pelo Poder Judiciário. É comum observar nos processos judiciais laudos incompletos e que buscam garantir a concessão do

Page 317: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 317

benefício assistencial, desconsiderando rendas auferidas por membros do grupo familiar.

Há decisões judiciais que o princípio interpretativo preponderante é o prin-cípio do “tadinho34”, o qual pode ser comparado ao que Carlos Maximiliano35, em seu livro Hermenêutica e aplicação do direito, chama de jurisprudência sen-timental ou do “bom juiz”. O autor relata que “o fenômeno Magnaud foi apenas ‘retumbante manifestação de ideologia pessoal”. Afirma, ainda, que “quando o magistrado se deixa guiar pelo sentimentalismo, a lide degenera em loteria”.

O citado autor36 ao analisar a jurisprudência sentimental sustenta, entre outras coisas que “ao invés do movimento subjetivo, deve prevalecer o instinto social (..) O papel da judicatura não é guiar-se pelo sentimentalismo; e sim manter o equilíbrio dos interesses (...)”. Assevera:37:

a função do juiz, quanto aos textos, é dilatar, completar e compreender; porém não alterar, corrigir, substituir. Pode melhorar o dispositivo, graças à interpretação larga e hábil; porém não _ negar a lei, decidir o contrário do que a mesma estabelece. A jurisprudência desenvolve e aperfeiçoa o Direito (...). Não cria, reconhece o que existe (...).

O que se verifica em muitas decisões judiciais envolvendo as três áreas com-ponente da seguridade social é a “criação judicial do direito”, o que certamente, em um estado democrático de direito, não é atribuição do Poder Judiciário.

O que deve prevalecer, quando se está diante de um direito de proteção social, é o interesse da coletividade e não o de um indivíduo ou de grupos. Nesse sentido, pode-se concluir conforme o fez Moacyr Velloso Cardoso de oliveira38, que “qualquer interpretação generosa, de cunho individualista, que imponha à instituição gravames não previstos, se torna, em verdade, vantagem pessoal sustentada pela coletividade (...)”.

34 Como diminutivo do vocábulo “coitadinho”.35 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 83.36 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 84.37 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, pp. 79 e 80.38 OLIVEIRA, Moacyr Velloso Cardoso de Oliveira, Previdência social: doutrina e exposição da

legislação vigente, p. 477.

Page 318: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

318 volume 10

i encontro de internacionalização do conpedi

2. conclusões

Pode-se concluir que o estudo do método teleológico desenvolvido por Ihering tem aplicação na interpretação dos direitos de seguridade social. A finalidade a ser buscada, conforme ensina o autor, é o atendimento à coletividade.

No entanto, diferente do que tem decidido o Poder Judiciário brasileiro, a finalidade social está relacionada à proteção da coletividade como um todo e não aos interesses de indivíduos ou de grupos.

Isso porque, quando se protege a coletividade, indiretamente se está prote-gendo os indivíduos e os grupos pertencentes à ela. O mesmo não ocorre quando se parte de uma perspectiva individual, pois a proteção de um cidadão ou de um grupo pode comprometer a proteção da coletividade.

3. referências

ASSIS, Armando de Oliveira. Compêndio de Seguro Social. Rio de Janeiro: FGV – Serviços de Publicações, 1963.

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2.ed., 2008.

BEVERIDGE, William. O Plano Beveridge. Tradução Almir de Andrade. Rio de Janeiro : Livraria José Olímpio, 1943.

CANOTÍLHO, J. J. Gomes Canotílho. Direito consititucional e teoria da constituição. 2ª ed. Coimbra, Almedina, 1998.

FERRAZ, Tércio Sampaio Jr. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2 ed., 1994.

GUERRA, Willis Santiago Filho. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 65.

JHERING, Rudolf Von. A finalidade do direito. Tomo II, Campinas: Bookseller, 2002.

LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos sociais: teoria e prática. 1ª ed. São Paulo: Editora Método, 2006.

Page 319: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.

i encontro de internacionalização do conpedi

volume 10 319

MARQUES, Carlos Gustavo Moimaz. Reflexões sobre a decisão do STF que declarou a inconstitucionalidade do critério de miserabilidade estabelecido pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS - Lei 8.742/93). Revista da Ajuris, v. 132, p. 89, 2013.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 12 ed. Rio de Janeiro : Forense, 1992.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo G. Curso de direito constitucional. São Paulo : Saraiva, 2007.

OLIVEIRA, Moacyr Velloso Cardoso de Oliveira, Previdência social: doutrina e exposição da legislação vigente. Rio de Janeiro : Livraria Freitas Bastos, 1987.

PIERDONÁ, Zélia Luiza. Desaposentação: um caso de distorção do sistema previdenciário brasileiro. In: DUARTE, Clarice Seixas; MENESES, Daniel Francisco Nagao. (Org.). 60 desafios do direito: política, democracia e direito. 1ed.São Paulo: Atlas, 2013, v. 3, p. 146-156.

_______. A proteção social na Constituição DE 1988. Revista Internacional de Direito e Cidadania, v. 01, p. 237-249, 2008.

_______. O direito à saúde e a impossibilidade de concessão de medicamentos por decisões judiciais individuais. Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI. 1 ed. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, v., p. 6042-6055. Também disponível Disponível em http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/Anais/sao_paulo/2307.pdf.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 20 ed., 1993. p. 286.

WARAT, Luiz Alberto. Mitos e teorias na interpretação da lei. Porto Alegre : Editora Síntese, 1979.

_______. Introdução geral ao direito, vol. I: interpretação da lei temas para uma reformulação. Porto Alegre : Sérgio Antônio Fabris Editor, 1994.

Page 320: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)...1 Advogado. Doutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.