Desenterrando o Passado - Agatha Christie

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DESENTERRANDOO PASSADOAGATHA CHRISTIE http://groups-beta.google.com/group/digitalsourceAGATHA CHRISTIEDESENTERRANDOO PASSADOTraduo deCORA RNAI VIEIRA2.a edioEDITORANOVAFRONTEIRATtulo original em ingls:COME, TELL ME HOW YOU LIVE1946 by Agatha Christie Mallowan1974 by Agatha Christie MallowanDireitos adquiridos somente para o Brasil pelaEDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.Rua Baro de Itambi, 28 Botafogo ZC-01 Tel.: 266-7474Endereo Telegrfico: NEOFRONTRio de Janeiro RJProibida exportao para Portugal e pases africanos de lngua portuguesaCapa:Rolf Gunther BraunDiagramao:Valdecir Rodrigues de MelloReviso: Nildon FerreiraFICHA CATALOGRFICA(Preparada pelo Centro de Catalogao-na-fonte doSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ) Christie, Agatha, 1891-1976.C479d Desenterrando o passado; traduo de Cora Rnai Vieira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1976. 204 p. ilust. Do original em ingls: Come, tell me how you livre 1. Christie, Agatha, 1891-1976 I. Ttulo B CDD 928.230872 CDU 92 Christie, Agatha76-0659 92:820-312.4A meu marido, Max Mallowan; ao CoronelBumps, Mac e Guilford, dedicoafetuosamente esta crnica sinuosa.NDICEASSENTANDO NUMA COLINAPREFCIOUm - PARTANT POUR LA SYRIEDois - UMA VIAGEM DE INSPEOTrs - O HABUR E O JAGHJAGHAQuatro - A PRIMEIRA TEMPORADA EM CHAGAR BAZARCinco - FIN DE SAISONSeis - FIM DE VIAGEMSete - A VIDA EM CHAGAR BAZAROito - CHAGAR EBRAKNove - CHEGADA DE MACDez - A ESTRADA PARA RAQQAOnze - ADEUS A BRAKDoze - AIN EL ARUSEPLOGOLISTA DE FOTOGRAFIASLORRY NA BARCAA DE CRUZAR O EUFRATES, PERTO DE RAQQA...........57RODA DAGUA EM HAMA.............................................................................58BURRICO DE CARREGAR GUA..................................................................58MULHERES BEDUNAS CARREGANDO GRAVETOS.....................................59SEPULTURA DE INUMAO PERTO DA SUPERFCIE...................................78 CHAGAR BAZAR A ESCAVAO PROFUNDA............................................79CHAGAR BAZAR PRXIMO BASE DA ESCAVAO PROFUNDA............81CHAGAR BAZAR ALICERCES PARA A CASA DA EXPEDIO.................124CHAGAR BAZAR CASA DA EXPEDIO; CONSTRUO DA ABBADA E DOS ARCOS DE RESSALTO.............................................................124 CHAGAR BAZAR INTERIOR DA CPULA DURANTE A CONSTRUO.....126CHAGAR BAZAR PENDCULO QUASE COMPLETO.................................147CHAGAR BAZAR GALERIA E FACHADA DA CASA DA EXPEDIO.........148 CHAGAR BAZAR A CASA PRONTA, VISTA DE SUDOESTE......................149ASSENTANDO NUMA COLINA(Com minhas desculpas a Lewis Carroll)Tudo o que puder, vou lhes contarDesde que me ouam com ateno:Encontrei um jovem erudito a estudar,Assentado numa colina. Quem sois, senhor?, pergunteiE o que procurais?Sua resposta fixou-se em meu pensamento, Como manchas de sangue nas pginas de um livro.Disse: Procuro velhos jarrosDe dias pr-histricos.Classifico-os em grupos,E grupos de tipos diferentes.Depois (como voc), comeo a escrever.Minhas palavras tm o dobroDo tamanho das suas, so mais srias,E mostram que os meus colegas esto enganados!Mas eu estava pensando num planoPara dar cabo de um milionrioDespachar seu corpo de aeroplano,Ou escond-lo em algum avirio.Assim, sem resposta a dar,E me sentindo meio encabulada,Gritei: Vamos, diga-me como voc vive!E onde, e quando, e por que?Sua resposta, gentil, veio cheia de humor: Quando penso no assunto, para valer,Chego concluso de que H cinco mil anos atrs que eu queria viver.E quando voc pegar o gosto,E aprender a desprezar estes anos D.C.,Ento poder vir comigo escavar,Sem nem pensar em voltar.Mas eu estava pensando num jeitoDe botar arsnico no ch. E no consegui, to de repente,Voltar tantos anos atrs.Olhei para ele, dei um suspiro,Seu rosto era bem agradvel...Vamos, diga-me como voc vive, pedi,E o que que voc faz .. .Ele disse: procuro objetos Feitos pelos homens, em suas andanas.Eu fotografo, e classifico,E empacoto e mando-os para casa.Estas coisas a gente no vende por ouro(Nem por dinheiro algum, na verdade!)Mas pe nas prateleiras dos museus,Para serem vistas por toda a cidade.s vezes desenterro amuletos,E figurinhas arrebentadas,Pois naqueles tempos pr-histricosNo havia pessoas muito civilizadas!E assim a gente vai se divertindo;No bem o caminho da fortuna.Mas os arquelogos vivem rindo,E tm uma sade de ferro!Prestei ateno, pois naquele momento,Eu tinha acabado um projetoDe manter um corpo bem conservadoFervendo-o em algum preparado.Agradeci-lhe por ter me contadoTudo com tamanha dedicao,E disse que iria com ele, Na sua prxima Expedio...E agora, se por acaso eu mergulho,Sem querer, os dedos num cido,Ou se quebro alguma loua, com muito barulho,Por no ser l muito calma;Ou se vejo um rio transbordando,E ouo um grito de cortar a alma,Suspiro, pois isso me faz lembrarDaquele jovem que conheci to bem ...Cujo olhar era sereno, a fala calma,Cujos pensamentos estavam to longe,Cujos bolsos tiniam de cacos antigos,Que ensinava baixinho, com tanto saber,Que usava longas palavras que nunca ouvi,Cujos olhos passeavam, com fervor, pelo cho,Procurando tantas coisas, com a maior ateno,Que quis me mostrar de qualquer jeito, Que no conhecer certas coisas, era um defeito,E que eu devia ir-me embora com ele, E desenterrar o passado em longnquas colinas! PREFCIO Este livro uma resposta. a resposta a uma pergunta que me fazem freqentemente. Ento voc faz escavaes na Sria, no ? Conte-me tudo a respeito. Como voc vive? Ntenda? etc, etc. A maioria das pessoas, provavelmente, no est interessada em saber. So s as miudezas da conversa. Mas, volta e meia, h uma ou duas pessoas que esto realmente interessadas. a mesma pergunta, tambm, que a Arqueologia pergunta ao Passado Vamos, conte-me; como voc viveu? E ns descobrimos a resposta com picaretas, ps e cestos. Estas eram as nossas panelas. Neste grande armazm guardvamos o nosso trigo. Com estas agulhas de osso costurvamos as nossas roupas. Estas eram as nossas casas, este o nosso banheiro, aqui o nosso sistema sanitrio! Aqui, neste jarro, esto os brincos de ouro do dote da minha filha. Aqui, neste potinho, est a minha maquilagem. Todas estas panelas so de um tipo muito comum. Voc vai encontr-las s centenas. Ns as compramos no oleiro da esquina. Voc disse Woolworths?* assim que vocs chamam ele no seu tempo? (*) Woolworths grande loja de departamentos dos EE.UU. (N.T.) As vezes h um Palcio Real, de vez em quando um Templo, mais raramente um enterro Real. Essas coisas so espetaculares. Aparecem nas manchetes dos jornais, fazem conferncias a respeito, mostram nas telas, todo mundo sabe a seu respeito! No entanto, eu penso que para algum envolvido com escavaes o verdadeiro interesse est na vida cotidiana a vida do oleiro, do fazendeiro, do fabricante de ferramentas, do entalhador especializado em estatuetas de animais e amuletos na realidade, o aougueiro, o padeiro, o fabricante de velas. Um aviso final, para que no haja desapontamento. Este no um livro profundo no vai lhes dar nenhum ponto de vista interessante sobre a arqueologia, no haver belas descries de cenrios, nenhuma abordagem de problemas econmicos, nenhuma reflexo racial, nada de histria. , na verdade, uma ninharia um livro muito pequeno, cheio de quefazeres e acontecimentos cotidianos.CAPTULO UMPARTANT POUR LA SYRIE* (*) Em francs no original. So as palavras iniciais; primeiras palavras de uma romana francesa muito popular no sc. XIX. (N.T.) Dentro de poucas semanas estaremos partindo para a Sria! Fazer compras para um clima quente no outono ou no inverno apresenta certas dificuldades. As roupas do vero passado, que, otimisticamente, a gente pensou que iam dar, agora que a hora chegou, no do. Por um lado parecem estar (como as deprimentes relaes de mveis em mudanas) Machucadas, Arranhadas e Marcadas. (E tambm Encolhidas, Desbotadas, e Estranhas!) Por outro lado que lstima algum ter que dizer isso! esto apertadas por todos os lados. Assim para as compras e lojas, e: claro, Madame, que no momento, ningum est querendo este tipo de coisas! Ns temos alguns conjuntos lindos aqui 46/48 em cores escuras. Ah, detestvel 46/48! Que humilhante ser 46/48! E que humilhao maior ainda ser reconhecida imediatamente como 46/48! (Se bem que haja dias melhores, quando, enrolada num longo manteau preto com gola de peles, uma vendedora diz animadoramente: Mas claro que a Madame est s grvida?) Olho para os conjuntinhos lindos com suas aplicaes inesperadas de pele e suas saias forradas. Explico desanimada que o que eu quero alguma coisa de seda ou algodo bem lavvel. A Madame pode tentar o Nosso Departamento de Cruzeiros Martimos. Madame experimenta o Nosso Departamento de Cruzeiros mas sem nenhuma esperana exagerada. Cruzeiros ainda esto envolvidos na aura da fantasia romntica, tm um certo toque mitolgico. So garotas que fazem cruzeiros garotas que so magras e jovens, e usam calas de linho que no amarrotam, largussimas nos ps e estreitssimas nos quadris. So garotas que vivem maravilhosamente em roupas esporte. So garotas para quem existem estoques com dezoito variedades diferentes de shorts! A maravilhosa criatura do Nosso Departamento de Cruzeiros no l muito solidria. Oh, no, Madame, ns no temos tamanhos grandes. (Que horror! Tamanhos Grandes e Cruzeiros? Onde est o romance nessa histria?) Ela acrescenta: Dificilmente cairia bem, no ? Eu concordo tristemente que no cairia bem. Mas ainda h uma esperana. H o Nosso Departamento Tropical. O Nosso Departamento Tropical consiste principalmente de sombreros sombreros marrons, sombreros brancos, sombreros de couro especial. Um pouco de lado, como se fossem ligeiramente frvolos, sombreros duplos, florescendo em rosas, e azuis e amarelos como cachos de estranhas flores tropicais. H tambm um cavalo de madeira imenso e um sortimento de roupas de montaria. Mas sim h outras coisas tambm. Aqui h vestimentas convenientes para as esposas de Construtores-do-Imprio. Saias e blusas de Shantung! Shantung cortado de uma maneira sbria nada de fantasias de garotas por aqui o volume to bem acomodado quanto a magreza. Eu vou para um cubculo com vrios estilos e tamanhos. E alguns minutos depois estou transformada numa Memsahib! Eu tenho certos preconceitos mas abafo-os. Afinal, fresco e prtico, e eu posso vestir. Volto minha ateno para a escolha do tipo certo de chapu. O tipo certo de chapu no existindo por estes dias, eu vou ter que mandar faz-lo de encomenda. Mas isto no to fcil como parece. O que eu quero, e pretendo ter, e o que certamente eu no terei, um chapu de feltro de propores razoveis que entre na minha cabea. o tipo de chapu que era usado h uns vinte anos atrs para levar o cachorro para dar uma voltinha ou jogar uma partida de golfe. Agora, infelizmente, existem apenas as coisas que a gente ajeita na cabea em cima de um olho, uma orelha, ou na base do pescoo como dita a moda ou os sombreros, medindo, pelo menos, um metro de lado a lado. Explico que quero um chapu que entre na cabea como um sombrero, com um quarto do seu dimetro. Mas eles so feitos com essa largura para proteger bem do sol, Madame. , mas para onde eu vou quase sempre venta terrivelmente, e um chapu com esse tipo de abas no ficaria na cabea da gente um minuto. Ns podemos colocar um elstico para a Madame. Eu quero um chapu com abas do tamanho das deste que eu estou usando. Ah, claro, Madame, um chapu bem achatado, ficaria muito bem. No um chapu achatado que eu quero! O chapu tem que Ficar Na Cabea! Vitria! Ns escolhemos a cor um destes novos tons com nomes bonitos: Poeira, Ferrugem, Lama, Terra, Sujo, etc... Algumas compras menores compras que, instintivamente, sei que, ou vo ser inteis, ou vo me dar um bocado de trabalho. Uma maleta de viagem fechada com um zper, por exemplo. A vida, hoje em dia, dominada e complicada pelo cruel zper. Blusas fecham com zperes, saias abrem com zperes, roupas de esqui abrem e fecham com zperes por todos os lados. Vestidinhos de bater tm pedaos de zper completamente desnecessrios, pregados s para distrair. Por qu? H alguma coisa mais terrvel do que um Zper que resolve implicar conosco? Ele nos envolve num tormento muito maior do que qualquer boto comum, fecho, colchete ou presso. Nos primrdios da era do Zper, minha me, deliciada com a novidade, mandou fazer um par de cintas que fechavam com zper. Os resultados foram infelizes ao extremo. No s fechar era uma agonia, mas as cintas, depois, se recusavam obstinadamente a abrir! A sua remoo era, praticamente, uma operao cirrgica! E devido encantadora modstia vitoriana de minha me, pareceu possvel, durante uns tempos, que ela fosse viver com estas cintas o resto de sua vida uma espcie moderna de Mulher da Cinta de Ferro! Portanto, eu sempre encarei os zperes de uma maneira meio desconfiada. Mas parece que todas as maletas tm zperes! O fecho antigo est bastante superado, Madame diz o vendedor, olhando-me com um ar penalizado. Isso, a senhora v, to simples ele diz, demonstrando. No h dvidas a respeito da simplicidade mas acontece, penso c comigo, que a mala est vazia. Bem, digo suspirando a gente tem que andar com os tempos. Com alguma apreenso, acabo comprando a maleta. Agora, sou a feliz possuidora de uma maleta de viagem de zper, um casaco e uma saia de Esposa de Construtor-do-Imprio e um chapu quase satisfatrio. Ainda h muita coisa a ser feita. Passo no Departamento de Papelaria. Compro vrias canetas j tendo descoberto que, se bem que uma caneta-tinteiro se porte de maneira exemplar na Inglaterra, no momento em que se acha em redondezas desrticas descobre que est em liberdade para fazer greve, e se porta de acordo, ou derramando tinta indiscriminadamente em mim, nas minhas roupas, meu caderno ou qualquer coisa mo, ou se recusando, terminantemente, a fazer outra coisa qualquer alm de rabiscar de maneira invisvel no papel. Comprei tambm dois modestos lpis. Lpis, felizmente, no so temperamentais, e, apesar de dados a desaparecer sem dizer gua vai, eu sempre tenho uma poro mo. Afinal, qual a utilidade de um arquiteto, seno emprestar lpis? Quatro relgios de pulso so a prxima compra. O deserto no faz bem aos relgios. Depois de algumas semanas por l, o relgio da gente desiste do trabalho continue de todos os dias. Tempo, diz, s uma maneira de pensar. Ento, trata de escolher entre parar oito ou nove vezes durante o dia por perodos de vinte minutos, ou disparar indiscriminadamente. s vezes, alterna com timidez as duas coisas. Finalmente, pra de todo. Ento a gente passa para o relgio n 2, e assim por diante. H tambm a compra de inmeros outros relgios sobressalentes para o momento quando o meu marido dir: Me empresta um relgio para dar ao chefe da turma, sim?. Nossos capatazes rabes, por melhores que sejam, tm o que se poderia descrever como uma mo pesada com qualquer tipo de relgio. Dizer as horas, de qualquer maneira, exige uma boa dose de esforo mental da parte deles. Eles podem ser vistos segurando um enorme e redondo relgio de cabea para baixo, com a maior boa-f, olhando para ele com uma concentrao realmente dolorosa enquanto do a resposta errada! Sua maneira de dar corda a estes tesouros enrgica, e to completa que poucos mecanismos conseguem suportar a tenso! Assim, acontece que pelo fim da estao, os relgios do staff da expedio foram sacrificados um por um. Os meus inmeros relgios so uma maneira de adiar o malfadado dia. Fazer as malas! Existem diversas escolas de pensamento quanto a fazer as malas. H pessoas que comeam a empacotar em qualquer tempo entre uma semana e um dia antes. H as que amontoam algumas coisas meia hora antes da partida. H os empacotadores cuidadosos, insaciveis de papel de seda! H os que desprezam o papel de seda, juntam tudo, e esperam pelo melhor. H os empacotadores que acabam deixando praticamente tudo o que eles querem para trs! E h os que levam imensas quantidades de coisas de que jamais iro precisar! Uma coisa pode-se dizer com segurana a respeito das malas de um arquelogo: elas consistem principalmente de livros. Que livros levar, que livros podem ser levados, para quantos livros h espao, que livros podem (com que agonia!) ser deixados para trs. Estou firmemente convencida de que todos os arquelogos empacotam da seguinte maneira: eles decidem qual o maior nmero de malas que uma traquejada companhia ferroviria os deixar carregar. Depois, enchem estas malas at o topo com livros. No fim, com relutncia, retiram alguns livros e enchem o espao obtido com camisas, pijamas, meias, etc. Olhando para o quarto de Max, tenho a impresso de que todo o espao cbico est cheio de livros. Atravs de uma fresta entre os livros, consigo vislumbrar o seu rosto preocupado. Voc acha que eu vou conseguir espao para todos estes? pergunta ele. A resposta to obviamente negativa que parece pura crueldade diz-la. s quatro e meia ele aparece no meu quarto e pergunta esperanoso: H algum espao nas suas malas? A longa experincia deveria ter me ensinado a responder no firmemente, mas eu hesito, e imediatamente estou condenada. Se voc pudesse guardar uma ou duas coisas... No sero livros? Max parece vagamente surpreso e diz: Claro que so livros... o que mais poderia ser? Avanando, ele empilha dois volumes enormes sobre a roupa de Esposa de Construtor-do-Imprio elegantemente deitada numa das malas. Tento protestar, mas muito tarde. Bobagem, diz Max montes de espao! E fora a tampa, que se recusa terminantemente a fechar. Na verdade, nem agora est completamente cheio, diz Max otimista. Felizmente, nesse momento a sua ateno atrada para um vestido de linho estampado que est em outra mala. O que isso? Eu respondo que um vestido. Interessante diz Max. Tem motivos de fertilidade em toda a frente. Uma das coisas mais desconfortveis em se ser casada com um arquelogo o seu conhecimento especializado da origem dos estampados mais inofensivos. s cinco e meia, Max observa, negligentemente, que ele deveria sair e comprar algumas camisas e meias e coisas. Volta quinze minutos depois, indignado porque todas as lojas fecharam s seis. Quando eu digo que elas sempre fecham a essa hora, responde que nunca tinha reparado antes. Agora, ele diz, a nica coisa que tem a fazer arrumar seus papis. s onze da noite vou dormir, deixando Max na sua escrivaninha (que jamais deve ser limpa ou espanada, sob as mais severas penalidades) enterrado at os cotovelos em cartas, contas, panfletos, desenhos de potes, inumerveis cacos, e diversas caixas de fsforos, nenhuma delas com fsforos, mas cheias de estranhas miangas antiqssimas. s quatro e meia, ele entra excitado no quarto, xcara de ch na mo, para anunciar que finalmente encontrou aquele artigo to interessante sobre as descobertas anatlicas que ele perdera em julho passado. Acrescenta que espera no ter me acordado. Eu digo que claro que ele no me acordou, e que ser melhor que ele me traga tambm uma xcara de ch. Voltando com o ch, Max diz que tambm encontrou muitas contas que pensava j ter pago. Eu tambm j passei por esta experincia. Concordamos que deprimente. s nove da manh, sou convocada como peso-pesado para sentar nas abarrotadas malas de Max. Se voc no conseguir que elas fechem, diz ele nada galante ningum consegue! O feito sobre-humano realizado, finalmente, com a ajuda de simples avoirdupois, e eu volto para lidar com a minha prpria dificuldade, que , como a viso proftica me havia dito, a mala com zper. Vazia na loja de Mr. Gooch, parecia simples, atraente, economizadora de trabalho. Como o zper corria alegremente para c e para l, ento! Agora, cheia at as bordas, fech-la um milagre de ajustamento sobre-humano. As duas pontas tm que ser unidas com uma preciso matemtica, e ento, exatamente quando o zper est andando vagarosamente, aparecem as complicaes, graas ponta de um saco com artigos de higiene pessoal. Quando fecha finalmente, eu juro no abri-la at chegarmos na Sria. Refletindo melhor, porm, isso quase impossvel. Que fazer com o saco j mencionado? Ser que eu vou viajar durante cinco dias sem me lavar? Mas no momento, mesmo isso me parece melhor do que abrir a mala! Sim, chegou o momento, e ns estamos realmente partindo. Quantidades de coisas importantes foram deixadas por fazer: a lavandaria, como sempre, falhou; os tintureiros, para tristeza de Max, no cumpriram as suas promessas... mas o que importa? Ns estamos indo! Por um momento ou dois parecia que no iramos: as malas de Max, de aparncia traioeira, esto alm das foras do chofer, que no conseguiu levant-las. Ele e Max lutaram com elas, e, finalmente, com a ajuda de um transeunte, eis-nos dentro do txi. Vamos para Victoria. Querida Victoria porto para o mundo para l da Inglaterra como eu gosto da sua plataforma continental! E como eu gosto de trens, de qualquer maneira! Sorvendo em xtase o cheiro sulfuroso to diferente daquele, leve, amorfo e distantemente oleoso de um navio, que sempre me deprime com a sua profecia de nauseosos dias por vir. Mas um trem grande, barulhento, apressado e amistoso, com sua enorme locomotiva fumacenta soltando nuvens de fumaa, que parece dizer, impacientemente: Eu tenho que ir, eu tenho que ir, eu tenho que ir! um amigo! Est no mesmo estado de esprito que voc, j que voc tambm est dizendo: Eu estou indo, estou indo, estou indo... Na porta do nosso Pullman, amigos esto esperando para se despedir com as mesmas iditicas conversas de sempre. Ultimas palavras famosas brotam dos meus lbios instrues sobre cachorros, sobre crianas, sobre cartas que devem ser enviadas, sobre livros que devem ser expedidos, sobre coisas esquecidas, e acho que voc vai encontr-lo no piano, mas pode ser que esteja na prateleira do banheiro. Todas estas coisas j foram ditas antes, e, de maneira alguma, precisam ser ditas de novo. Max est rodeado dos seus parentes, eu, dos meus. Minha irm diz, chorosa, que est com o pressentimento de que nunca mais vai me ver de novo. Eu no fico muito impressionada, porque ela costuma ter este mesmo pressentimento todas as vezes que eu viajo para o Oriente. E o que, ela pergunta, vai fazer se Rosalind tiver apendicite? No parece haver razo alguma pela qual minha filha de quatorze anos possa ter apendicite, e tudo o que eu consigo me lembrar de responder : Sobretudo, no se lembre de oper-la voc mesma! Pois a minha irm tem uma grande reputao por sua habilidade em manejar tesouras, atacando imparcialmente furnculos, cortes de cabelo, costuras geralmente, eu tenho que admitir, com grande sucesso. Max e eu trocamos de parentes, e minha querida sogra insiste em que eu me cuide muito bem, dando a entender que estou altruisticamente correndo um grande risco de vida. Apitos soam, e troco algumas ltimas e apressadas palavras com a minha amiga e secretria. Ser que ela vai fazer todas as coisas que eu deixei de fazer, e repreender devidamente a Lavandaria e os Tintureiros, e dar uma boa referncia cozinheira, e mandar todos os livros que eu no pude empacotar, e recuperar o meu guarda-chuva na Scotland Yard, e escrever corretamente ao pastor que descobriu quarenta e trs erros gramaticais no meu ltimo livro, e dar uma olhada na lista de sementes para o jardineiro, e riscar fora abboras e cenouras? Sim, ela vai fazer tudo isso, e se ocorrer alguma crise no Lar ou no Mundo Literrio ela vai me telegrafar. No tem problema, eu digo. Ela pode fazer o que quiser, tem todos os poderes necessrios. Ela parece um pouco assustada e diz que vai tomar o maior cuidado. Outro apito! Digo adeus minha irm, e digo desesperadamente que eu, tambm, estou com um pressentimento de que nunca mais vou v-la, e que talvez Rosalind venha a ter mesmo apendicite. Que bobagem, diz minha irm; por que ela teria? Ns subimos no Pullman, o trem ruge e comea a andar partimos. Por cerca de quarenta e cinco segundos eu me sinto muito mal, mas quando a Estao Victoria deixada para trs, a alegria reaparece novamente. Comeamos a viagem encantadora e excitante para a Sria. H algo de grandioso e arrogante num Pullman, apesar de ele no ser nem to confortvel quanto um canto de um vago comum de primeira classe. Sempre vamos de Pullman por causa das malas de Max, que um vago comum no aceitaria. Tendo perdido uma vez malas que viajaram separado, Max no se arrisca com seus preciosos livros. Chegamos a Dover, para encontrar o mar relativamente calmo. Mesmo assim, me retiro para o Salon des Dames, e deito e medito com o pessimismo que sempre me desperta o movimento das ondas. Mas logo chegamos a Calais, e o comissrio francs arranja um imenso homem de camisa azul para tomar conta da minha bagagem. Madame o encontrar na Douane, ele diz. Qual o nmero dele? pergunto. O comissrio assume um ar reprovador. Madame! Mais cest le Charpentier du bateau! Fico devidamente constrangida para chegar concluso alguns minutos depois de que aquela no fora realmente uma resposta. Ora, pelo fato de ele ser o Charpentier du bateau, no ser mais fcil identific-lo entre centenas de outros homens de camisa azul, todos gritando Quatre-vingt treize?, etc. O seu mero silncio no vai me bastar para identific-lo. Alm disso, ser que o fato de ser Charpentier du bateau vai lhe permitir identificar, com toda a certeza, uma senhora inglesa de meia-idade numa verdadeira multido de senhoras inglesas de meia-idade? Nesta altura das minhas reflexes Max rene-se a mim, e diz que tem um carregador para as minhas malas. Eu explico que o Charpentier du bateau j levou a minha bagagem, e Max me pergunta por que eu deixei. Toda a bagagem deveria ir junta. Eu concordo, mas justifico dizendo que o meu intelecto sempre fica enfraquecido por viagens martimas. Max diz: Deixa para l; ns vamos junt-la toda na Douane. E ns penetramos naquele inferno de carregadores aos berros, partindo para o inevitvel encontro com o nico tipo de francesa realmente desagradvel a Mulher-da-Alfndega, um ser despido de charme, de chic, de qualquer graa feminina. Ela olha, mexe, remexe, diz Pas de cigarettes? com um ar de dvida, e, finalmente, resmungando com relutncia, rabisca com giz os msticos hierglifos na nossa bagagem, e ns atravessamos a fronteira, vamos para a plataforma, para o Simplon Orient Express e para a viagem atravs da Europa. H muitos, muitos anos atrs, quando eu ia para a Riviera ou para Paris, costumava ficar fascinada pela viso do Orient Express em Calais, e desejava ardentemente viajar nele. Agora, ele j se tornou um amigo velho e familiar, mas a emoo no morreu de todo. Eu vou nele! Eu estou nele! Estou precisamente no carro azul, com uma simples legenda do lado de fora: CALAIS-ISTAMBUL. , sem dvida, o meu trem favorito. Gosto do seu tempo, que, comeando allegro con furore, vibrando, e chocalhando e movendo-se rapidamente de uma ponta a outra na sua louca pressa de deixar Calais e o Ocidente, esmorece aos poucos num rallentando enquanto se dirige para o Oriente, at tornar-se definitivamente legato. Bem cedo de manh no dia seguinte levanto a cortina, e observo os plidos contornos das montanhas na Sua, depois a descida s plancies italianas, passando pela linda Stresa com seu lago azul. Depois, mais tarde, entramos na pequena estao que tudo que vemos de Veneza, samos de novo, percorrendo o litoral, para Trieste e para a Iugoslvia. A velocidade diminui cada vez mais, as paradas so mais demoradas, os relgios das estaes mostram horrios conflitantes. Os nomes das estaes so escritos em letras excitantes e incrveis. As locomotivas so gordas, de ar confortvel, e desprendem uma fumaa particularmente preta e sinistra. As contas nos carros-restaurantes vm marcadas em misteriosas moedas, e garrafas de estranhas guas minerais comeam a aparecer. Um pequeno francs que est sentado nossa frente na mesa estuda a sua conta em silncio por alguns minutos, depois ergue a cabea e capta o olhar de Max. Sua voz, carregada de emoo, levanta-se queixosa: Le change des Wagons Lits, cest incroyable! Do outro lado da cabina um homem escuro, de nariz adunco, pede que lhe digam o total da sua conta em (a) francos, (b) liras, (c) dinares, (d) libras turcas, (e) dlares. Quando isso feito finalmente pelo garom torturado, o viajante calcula em silncio, e, sendo evidentemente um magnfico crebro financeiro, produz a moeda mais vantajosa para seu bolso. Por este mtodo, ele nos explica, economizou cinco pence em moeda inglesa! Pela manh, funcionrios da Alfndega turca aparecem no trem. Eles esto cmoda e profundamente interessados na nossa bagagem. Por que, perguntam, eu tenho tantos pares de sapatos? muita coisa para uma pessoa s. Mas argumento que, como no tenho cigarros, porque no fumo, posso muito bem ter alguns pares de sapatos a mais, no ? O funcionrio aceita a explicao. Parece-lhe bem razovel. E pergunta o que este p branco dentro desta caixinha. Digo que p para os insetos; mas vejo que no fui compreendida. Ele sacode a cabea, cheio de suspeitas. Evidentemente, est me tomando por contrabandista de drogas. Em tom de censura, comenta que no p nem para os dentes, nem para o rosto: para que , ento? Vivida pantomima de minha parte! Coo-me realisticamente, pego a caixinha, espalho um pouco de p pela madeira. Ah, est tudo explicado! Ele joga a cabea para trs, e d uma boa gargalhada, repetindo uma palavra turca. para eles, o p! Repete a piada para um colega, e ambos seguem adiante, divertindo-se muito. Aparece o condutor do Wagon Lit, para nos dar instrues. Viro com os nossos passaportes e perguntaro quanto dinheiro ns temos, effectif, vous comprenez? Eu adoro a palavra effectif descreve to exatamente quanto a gente tem, de fato. Vocs tero exatamente tanto effectif, diz o condutor, indicando uma certa quantia. Max diz que ns temos muito mais. No importa. Confessar isto vai lhes causar aborrecimentos. O senhor dir que o resto est em vales, ou travellers cheques, e que de effectif tem tanto. E acrescenta, explicando: Na verdade, eles no se importam com quanto o senhor tem, compreende? O problema que a resposta tem que estar en rgle. Oportunamente, aparece o cavalheiro encarregado das perguntas financeiras. Anota a nossa resposta antes mesmo que a gente a diga. Tudo est en rgle. E agora estamos chegando a Istambul, serpenteando atravs de estranhas casas de madeira, captando de relance pesados basties de pedra e detalhes do mar, nossa direita. Uma cidade enlouquecedora, Istambul j que quando voc se encontra nela, no a v! S quando voc deixa o lado europeu e est atravessando o Bsforo para a costa asitica que voc realmente v Istambul. muito bonita nesta manh uma clara, plida e brilhante manh, sem nvoa, e as mesquitas com seus minaretes erguendo-se contra o cu. La Sainte Sophie muito interessante, diz um cavalheiro francs. Todo mundo concorda, com a lamentvel exceo de mim mesma. Eu, alas, nunca admirei Santa Sofia! Uma infeliz falta de gosto; mas a est. Sempre me pareceu decididamente de tamanho errado. Envergonhada de minhas idias pervertidas, fico em silncio. Agora, o trem que espera em Haidar Pacha, e, quando, finalmente ele parte, caf da manh um caf da manh que se deseja, a esta altura, vorazmente. Depois, uma encantadora viagem de um dia pela volteante costa do mar de Mrmara, com ilhotas esparramadas que parecem opacas e maravilhosas. Penso pela centsima vez que gostaria de ter uma destas ilhas. estranho se desejar uma ilha para si s! A maioria das pessoas sente este desejo mais cedo ou mais tarde. Simboliza, na nossa mente, liberdade, solido, nenhuma preocupao. No entanto, na realidade, eu acho que no significaria liberdade, mas priso. Sem dvida todo o trabalho e os cuidados com a casa dependeriam inteiramente do continente. A gente passaria todo o tempo escrevendo interminveis listas de compras para as lojas, pensando na carne e no po, fazendo tudo, j que poucos empregados gostariam de morar numa ilha longe de cinemas e amigos, sem ao menos uma linha de nibus que os levasse de encontro aos seus semelhantes. Uma ilha dos mares do sul, sim, que eu imagino que seria diferente. L a gente se sentaria preguiosamente comendo as melhores frutas, dispensando pratos, facas, garfos, limpeza e problemas de gordura na pia! Mas na verdade, os nicos habitantes de ilhas dos mares do sul que eu jamais vi fazerem uma refeio estavam comendo pratos de carne quente, nadando em gordura, colocados numa toalha de mesa imunda. No; uma ilha , e deve ser, uma ilha de sonho! Nesta ilha no preciso varrer, nem espanar, nem fazer as camas, nem lavar a roupa, nem limpar, no h gordura, problemas de comidas, listas para a mercearia, no preciso trocar as lmpadas, descascar as batatas, no h sujeira. Na ilha de sonho h areia branca e mar azul e uma casa de contos de fadas, talvez, construda entre o crepsculo e a madrugada; a macieira, o cantar, e o ouro... Neste ponto das minhas reflexes Max me pergunta em que estou pensando. Digo, simplesmente, Paraso! Max diz: Ah, espere at ver Jaghjagha! Eu pergunto se muito bonito; e Max diz que no faz a mnima idia, mas uma parte notvel do mundo e ningum a conhece bastante! O trem embarafusta por uma ravina, e deixamos o mar para trs. Na manh seguinte chegamos aos Portes Cilcios, e contemplamos uma das vistas mais bonitas que conheo. como estar na beira do mundo e olhar l de cima a Terra Prometida, e a gente se sente mais ou menos como Moiss deve ter se sentido. Pois aqui, tambm, no h entrada... A brumosa e macia maravilha azul-escuro uma terra que jamais atingiremos; as verdadeiras cidades e povoados, quando chegarmos l, sero apenas o mundo comum de todos os dias e no essa beleza encantada que nos envolve completamente ... O trem apita. Voltamos aos nossos compartimentos. Para Alep. E de Alep a Beirute, onde o nosso arquiteto deve nos encontrar e onde as coisas vo comear a tomar corpo, para a nossa primeira inspeo do Habur e da regio de Jaghjagha, que nos levar escolha de um terreno propcio escavao. Pois isso, como diz Mrs. Beeton, o comeo de tudo. Primeiro, agarre sua lebre, diz aquela estimvel senhora. Portanto, no nosso caso, primeiro encontre seu terreno. E isso que estamos decididos a fazer.CAPTULO DOISUMA VIAGEM DE INSPEO Beirute! Mar azul, uma baa curvilnea, um longo litoral de difusas montanhas azuis. Essa a vista do terrao do Grande Hotel. Do meu quarto, que tem vista para a terra, vejo um jardim de flores vermelhas. O quarto alto, caiado, parecendo-se um pouco com uma priso. Uma pia moderna, com todas as torneiras e ralos, d uma nota chocantemente moderna*. Sobre a pia, um grande tanque quadrado com uma tampa. Dentro, est cheio de uma gua velha, parada, ligada apenas torneira de gua fria! (*) Escrito algum tempo antes da inaugurao do moderno hotel St. George. (N.A.) A chegada dos encanamentos ao Oriente cheia de armadilhas. Quantas vezes a torneira de gua fria produz gua quente, e a de gua quente, gua fria! E como eu me lembro bem de um banho num recm-equipado banheiro ocidental onde um intimidador sistema de gua quente produzia uma gua escaldante em terrveis quantidades, no se obtinha gua fria, a torneira da gua quente no queria fechar e a porta do banheiro no se abria! Enquanto eu contemplo as flores vermelhas com prazer e as facilidades de banho com desgosto, ouo uma batida na porta. Um pequeno, atarracado armnio aparece, sorrindo de uma maneira estranha. Abre a boca, aponta a sua garganta com um dedo, e exclama, encorajadoramente: Manger! Por este simples expediente, mostra claramente menor das inteligncias que o almoo est servido no refeitrio. L encontro Max minha espera, e nosso novo arquiteto, Mac, que eu ainda mal conheo. Dentro de alguns dias, vamos partir para uma excurso de trs meses para examinar o pas procurando terrenos convenientes. Conosco, como guia, filsofo, e amigo, deve ir Hamoudi, por muitos anos capataz em Ur, um velho amigo de meu marido, e que deve ficar com a gente entre as estaes, nesses meses de outono. Mac levanta e me sada polidamente, e sentamos para uma refeio muito boa, se bem que meio gordurosa. Eu fao alguns comentrios supostamente amigveis a Mac, que os bloqueia terminantemente respondendo: Ah, sim? mesmo? Realmente? Fico algo desanimada. Assalta-me a desagradvel convico de que o nosso jovem arquiteto vai se revelar uma dessas pessoas que, de tempos em tempos, conseguem me tornar completamente imbecil de tanta timidez. Graas a Deus j deixei para trs h muito tempo os dias em que era tmida com todo mundo. Com a meia-idade, consegui atingir certo grau de equilbrio e de savoir-faire. Volta e meia me congratulo que toda aquela bobagem j acabou. Consegui superar tudo aquilo, digo, satisfeita, de mim para mim. E basta que eu pense nisso para que logo aparea algum indivduo inesperado que me reduz, novamente, idiotice nervosa. No adianta que eu me diga que o jovem Mac , provavelmente, extremamente tmido ele mesmo, e que a sua prpria timidez que produz a sua armadura defensiva. Persiste o fato de que, ante a sua maneira fria e superior, suas sobrancelhas gentilmente arqueadas e seu ar de polida ateno a palavras que eu sei que no podem, positivamente, merecer ateno nenhuma, eu esmoreo, e me surpreendo dizendo coisas que compreendo perfeitamente que so pura besteira. Por volta do fim da refeio, Mac me contradiz. Certamente ele diz gentilmente em resposta a uma desesperada afirmativa que fiz a respeito do Corne Ingls. Isso no bem assim, no ? Ele est, claro, perfeitamente certo. No bem assim. Depois do almoo, Max me pergunta o que eu achei de Mac. Eu respondo prudentemente que ele parece no falar muito. Isso, diz Max, uma grande coisa. Eu no fao idia, ele diz, o que ficar preso no deserto com algum que no pra de falar! Eu escolhi ele porque me pareceu um tipo de sujeito meio fechado. Admito que possa haver alguma razo nisso. Max continua, dizendo que ele provavelmente tmido, mas que ir se abrir logo. Ele est provavelmente apavorado com voc. acrescenta gentilmente. Pondero esta observao alentadora, mas sem me sentir convencida. Tento, de qualquer maneira, me submeter a um pequeno tratamento mental. Primeiro, digo a mim mesma, voc suficientemente velha para ser a me de Mac. Voc tambm uma escritora uma escritora bem conhecida. Ora, um de seus personagens foi at parte de um jogo de palavras cruzadas do Time! (O supra-sumo da fama!) E alm de tudo, voc a mulher do Chefe da Expedio! Convenhamos, se h algum que deve assustar o outro, voc quem deve assustar o rapaz, e no ele a voc. Mais tarde, decidimos ir tomar ch, e eu vou ao quarto de Mac para convid-lo a nos fazer companhia. Decido ser amistosa e natural. O quarto est inacreditavelmente limpo, e Mac est sentado sobre um tapete dobrado escrevendo o seu dirio. Ele me olha inquisitivamente. Voc vem lanchar com a gente? Mac se levanta. Muito obrigado! Depois, acho que voc gostaria de conhecer a cidade, sugiro. sempre divertido explorar novos lugares. Mac levanta as sobrancelhas gentilmente e diz, frio: mesmo? Algo murcha, mostro o caminho at a sala onde Max nos espera. Mac consome uma grande xcara de ch num alegre silncio. Max toma o seu ch no presente, mas o seu pensamento anda mais ou menos por volta de 4.000 a.C. Com um sobressalto, desperta de suas divagaes assim que come o ltimo bolo, e sugere irmos ver como vai indo o nosso caminho. Assim, pois, vamos ver o nosso caminho um chassis Ford, sobre o qual est sendo construda uma nova carroaria. Tivemos que optar por isso, j que no foi possvel encontrar nenhum de segunda-mo em boas condies. A carroaria parece ser das melhores, do tipo Inshallah, e o conjunto todo tem uma aparncia slida e digna, que desconfio ser boa demais para ser verdade. Max est um pouco preocupado com o no-comparecimento de Hamoudi, que deveria ter vindo nos encontrar em Beirute por estes dias. Mac desdenha a idia de olhar a cidade e volta para o seu quarto, para sentar no seu tapete e escrever no seu dirio. Interessada especulao de minha parte sobre o que ele escreve no dito cujo. Acordamos cedo. s cinco da manh, abre-se a porta do nosso quarto e uma voz anuncia em rabe: Seus capatazes chegaram! Hamoudi e seus dois filhos entram com o ansioso charme que os distingue, segurando nossas mos e apertando-as de encontro s suas cabeas. Shlon kefek? (Como vo?) Kullish zen. (Muito bem) El hamdu lillah! Elhamdu lillah! (Todos louvamos a Deus!) Livramo-nos dos resqucios de sono encomendando ch, e Hamoudi e seus filhos sentam-se vontade no cho, trocando novas com Max. Eu, que usei todo o rabe que sei, e que estou morta de sono, chego a desejar que a famlia Hamoudi adiasse os seus cumprimentos para uma hora mais condigna. Apesar de tudo, reconheo que, para eles, aparecer assim a coisa mais natural do mundo. O ch afasta o sono, e Hamoudi me dirige algumas palavras que Max traduz, assim como minhas respostas. Os trs transbordam de felicidade, e eu reconheo, mais uma vez, que pessoas encantadoras eles so. Os preparativos esto, agora, a todo vapor compra de mantimentos; contratao de um chofer e de um cozinheiro; visitas ao Service des Antiquits; um almoo agradabilssimo com M. Seyrig, o Diretor, e sua encantadora esposa. Ningum poderia ser mais atencioso com a gente do que eles e, por acaso, o almoo estava mesmo delicioso. Contrariando o pensamento do funcionrio da alfndega turca de que eu teria muitos sapatos, trato de comprar mais sapatos. Comprar sapatos em Beirute uma maravilha. Se o seu nmero est em falta, em alguns dias fazem um par de sapatos especiais, sob medida perfeitos, num couro bom e macio. Devo admitir que comprar sapatos uma das minhas fraquezas. Acho que no terei coragem de voltar para casa atravs da Turquia! Passeamos pelos bairros nativos, e compramos quantidades de coisas interessantes uma espcie de seda encorpada, bordada em ouro ou azul escuro. Compramos montes de seda para mandar para a Inglaterra, como presentes. Max est fascinado pelas diversas espcies de po. Qualquer um que tenha algum sangue francs adora um bom po. Po, para um francs, significa mais do que qualquer outra espcie de alimento. Eu j ouvi um oficial dos Services Speciaux dizer de um colega num longnquo posto de fronteira Ce pauvre garon! Il na mme pas de pain l bas, seulement la galette kurde! com uma pena sincera e profunda. Temos tambm negcios longos e enrolados com o Banco. Fico perplexa como sempre, no Oriente, com a relutncia que os Bancos tm em fazer negcios. So gentis, atenciosos, mas preocupadssimos em evitar qualquer transao de fato. Oui, oui!, murmuram cortesmente. crivez une lettre! E acomodam-se novamente, com um suspiro de alvio por terem adiado qualquer ao. Quando so forados a tomar alguma atitude, vingam-se usando um complicado sistema de timbres. Todo documento, todo cheque, toda transao de qualquer espcie atravancada e complicada por les timbres. Pequenas quantias so continuamente desembolsadas. Quando voc pensa que tudo acabou, l vem complicao, mais uma vez! Et deux francs cinquante centimes pour les timbres, sil vous plat. Mesmo assim, finalmente todos os negcios so fechados, inmeras cartas so escritas, nmeros incrveis de selos e estampilhas so colados. Com um suspiro de alvio o funcionrio do Banco v a perspectiva de se ver livre de ns. Ao deixarmos o Banco, ns o ouvimos dizer com firmeza a algum outro cliente importuno: crivez une lettre, sil vous plat. Resta ainda resolver a contratao do chofer e do cozinheiro. O problema do chofer resolvido primeiro. Hamoudi chega, radiante, e nos informa que estamos com sorte: ele encontrou um timo chofer. E como, pergunta Max, Hamoudi encontrou esse tesouro? Muito simplesmente, parece. Como j estava desempregado por algum tempo, e j estava passando alguma necessidade, ele vai nos sair a um bom preo. Assim, logo de sada, j fazemos uma boa economia! Mas como vamos saber se ele um bom chofer? Hamoudi afasta o problema. Um padeiro um homem que coloca po no forno, e o assa. Um chofer um homem que pega um carro e o dirige! Max, sem nenhum entusiasmo prematuro, concorda em contratar Abdullah se no aparecer nada melhor, e Abdullah convocado para uma entrevista. Ele se parece extraordinariamente com um camelo, e Max diz, com um suspiro, que pelo menos ele parece estpido, o que j alguma coisa. Pergunto por que, e Max diz que porque assim ele no ter crebro para ser desonesto. Na nossa ltima tarde em Beirute, vamos at o Rio Co, o Nahr el Kelb. Aqui, numa ravina arborizada que vai para o interior, h um bar onde se pode tomar caf e passear agradavelmente numa estradinha sombreada. Mas o verdadeiro fascnio do Nahr el Kelb est nas inscries gravadas na rocha, onde um caminho leva passagem sobre o Lbano. Por aqui, em incontveis guerras, passaram exrcitos, deixando os seus registros. Aqui h hierglifos egpcios de Ramss II e jactanciosas observaes de exrcitos assrios e babilnios. H a efgie de Tiglathpileser I. Sennacherib deixou uma inscrio em 701 a.C. Alexandre passou e deixou seu registro. Esarhaddon e Nebuchadrezzar comemoraram suas vitrias, e, finalmente, ligando-se antigidade, as tropas de Allenby escreveram nomes e iniciais em 1917. Eu nunca me canso de olhar para esta escavada superfcie de rocha. Aqui h Histria, feita manifesto... Fico empolgada a ponto de dizer com entusiasmo a Mac que aquilo realmente emocionante, ele no acha? Mac levanta suas corteses sobrancelhas e diz, numa voz completamente desinteressada que , claro, muito interessante... A chegada e carregamento do nosso caminho so o prximo acontecimento. A carroaria parece definitivamente desequilibrada. Oscila e se inclina, mas tem um tal aspecto de dignidade majestade, mesmo! que prontamente batizada de Queen Mary. Alm de Queen Mary, contratamos um txi um Citroen, dirigido por um amvel armnio chamado Aristides. Contratamos um cozinheiro de ar um tanto melanclico (Isa), cujas credenciais so to boas que chegam a causar desconfiana. E finalmente chega o grande dia, e ns nos pomos em marcha Max, Hamoudi, eu, Mac, Abdullah, Aristides e Isa companheiros, para o que der e vier, pelos prximos trs meses. Nossa primeira descoberta que Abdullah o pior chofer imaginvel, a segunda que o cozinheiro um pssimo cozinheiro, a terceira que Aristides um bom chofer, mas tem um pssimo txi! Samos de Beirute pela estrada litornea. Passamos o Nahr el Kelb, e continuamos com o mar nossa esquerda. Passamos pequenas aldeias de casas brancas, e pequenas baas e enseadas entre rochedos. Tenho vontade de parar e tomar um banho, mas comeamos agora a parte sria da viagem. Em breve, tambm, nos afastaremos do mar em direo ao interior, e depois, durante muitos meses, no vamos mais ver o mar. Aristides buzina constantemente, maneira sria. Atrs de ns vem Queen Mary, oscilando como um navio em alto-mar com a sua carroaria desequilibrada. Passamos Byblos, e agora as pequenas aldeias de casas brancas se tornam cada vez mais espaadas e menos numerosas. nossa direita est uma montanha rochosa. E finalmente nos viramos, e nos dirigimos para o interior, na direo de Homs. H um bom hotel em Homs um timo hotel, nos disse Hamoudi. As qualidades do hotel mostram-se apenas no prprio edifcio, que espaoso, com largos corredores de pedra. Mas a sua encanao, infelizmente, no est funcionando muito bem! Seus vastos quartos deixam muito a desejar em matria de conforto. Contemplamos os nossos com todo o respeito, e em seguida Max e eu vamos explorar a cidade. Descobrimos que Mac est sentado no canto de sua cama, tapete dobrado ao lado, escrevendo seriamente em seu dirio. (O que ser que Mac escreve em seu dirio? Ele parece no ter o mnimo interesse em ver Homs.) Talvez ele tenha razo, pois no h muita coisa para se ver. Comemos uma duvidosa refeio pseudo-europia, e vamos dormir. Ontem, estvamos viajando pelos confins da civilizao. Hoje, abruptamente, deixamos a civilizao para trs. Em uma ou duas horas, no h mais nada verde para se ver em lugar nenhum. Tudo um vasto areai marrom. Os caminhos parecem confusos. De vez em quando, com grandes intervalos, cruzamos com algum caminho inesperadamente surgido do nada. Faz muito calor. E com calor, e a irregularidade da estrada e o pssimo estado das molas do txi, e a poeira que a gente engole e que deixa o rosto duro e spero, eu fico com uma dor de cabea terrvel. H algo assustador, e, no entanto, fascinante, neste vasto mundo despido de vegetao. No plano como o deserto entre Damasco e Bagd. Pelo contrrio, a gente sobe e desce. H uma certa sensao de que, de repente, a gente virou um gro de areia entre os castelos que a gente constri quando criana. E ento, depois de sete horas de calor e monotonia e um mundo abandonado Palmyra! Nisso que est, eu acho, o encanto de Palmyra sua beleza esbelta e cremosa erguendo-se fantasticamente em meio areia escaldante. linda e fantstica e inacreditvel, com toda a implausvel teatralidade de um sonho. Palcios e templos e colunas em runas... Nunca consegui decidir o que eu realmente acho de Palmyra. Sempre tem, para mim, aquela aparncia de sonho da primeira viso. Minha cabea dolorida e meus olhos ardentes fazem com que parea, mais do que nunca, um delrio febril. No no poder ser real! Mas de repente estamos no meio do povo uma multido de turistas franceses, rindo, e falando, e tirando fotografias. Paramos em frente a um edifcio atraente: o Hotel. Max me avisa apressadamente: Voc no deve se incomodar com o cheiro. Demora um pouco, mas a gente acaba se acostumando. Pois sim! O Hotel bonito por dentro, decorado com graa e bom gosto. Mas o cheiro de gua parada no quarto fortssimo. At que um cheiro saudvel Max me garante. E o velhinho encantador que , presumo, o dono do Hotel, acrescenta com grande nfase: Mauvaise odeur, oui! Malsain, non! Pois ento, isso est resolvido. E, de qualquer jeito, estou pouco me importando. Tomo uma aspirina, bebo um ch e deito-me para descansar. Digo que mais tarde olharei a cidade agora, o que eu quero escurido e descanso. Intimamente, sinto-me um pouco desapontada. Ser que no serei uma boa viajante? Eu, que sempre gostei de andar de carro? No entanto, uma hora mais tarde acordo sentindo-me perfeitamente restabelecida e ansiosa para ver o que h para ser visto. At mesmo Mac, uma vez na vida, concorda em ser afastado do seu dirio. Vamos passear, e passamos uma tarde maravilhosa. No ponto mais distante do hotel, encontramos a turma de turistas franceses. Esto muito aflitos. Uma das mulheres, que est usando (como todas as outras) sapatos de saltos altos, quebrou um dos saltos, e est s voltas com a impossibilidade de retornar ao hotel andando. Eles vieram at aqui de txi, ao que parece, e o txi parou. Damos uma olhada nele: pelo visto, s h uma espcie de txi no pas inteiro. Este veculo exatamente igual ao nosso a mesma carroaria dilapidada, e o aspecto geral de ter sido amarrado com barbante. O motorista, um srio alto e magro, est olhando desanimadamente por dentro do cap. Ele sacode a cabea, e a turma francesa explica tudo. Eles chegaram aqui ontem, de avio, e devem ir embora amanh, da mesma maneira. Alugaram o txi no hotel, por uma tarde, e agora o txi quebrou. O que far a pobre madame? Impossible de marcher, nest-ce pas, avec un soulier seulement. Ns manifestamos os nossos sentimentos, e Max, galantemente, oferece o nosso txi. Ele ir at o hotel e o trar at aqui. Pode fazer duas viagens, e levar todo mundo de volta. A sugesto aceita com aclamaes e profusos agradecimentos, e Max pe-se a caminho. Converso com as senhoras francesas, enquanto Mac se retira por trs de um impenetrvel muro de timidez. Produz um ocasional oui ou non a qualquer tentativa de conversa, e logo piedosamente deixado de lado. As francesas mostram um encantador interesse pela nossa viagem. Ah, Madame, vous faites le camping? Fico fascinada pela frase. Le camping! Classifica, definitivamente, a nossa aventura como um esporte! Como vai ser agradvel, comenta outra senhora, fazer le camping! Eu digo que sim, que vai ser muito agradvel. O tempo passa: conversamos e rimos. De repente, para grande surpresa minha, Queen Mary aparece guinando para c e para l. Max, com uma cara zangada, est na direo. Pergunto por que ele no trouxe o txi? Porque responde Max furiosamente o txi est aqui. E aponta dramaticamente para o carro enguiado, que o srio magricela ainda tenta consertar. H um coro de exclamaes de surpresa, e eu descubro porque o carro me parecia to familiar. Mas exclama uma das francesas, este o carro que alugamos no hotel! Mesmo assim, Max explica, o nosso txi. As explicaes com Aristides so dolorosas. Nenhum dos lados compreendeu o ponto de vista do outro. Mas diz Aristides, a prpria inocncia ofendida o senhor no me disse que no ia precisar do carro de tarde? Ento claro que eu aproveitei a oportunidade para ganhar um dinheirinho extra. Combino com um amigo, e ele leva esse pessoal para passear em Palmyra. Qual o mal que isso lhe causa, j que o senhor no queria usar mesmo o txi? Me causa mal replica Max, porque, em primeiro lugar, no foi o que ns combinamos; e, em segundo lugar, o carro agora est enguiado, e vai precisar de consertos, e, com toda a probabilidade, no vai poder partir amanh cedo! Quanto a isso, o senhor pode ficar sossegado. Se for preciso, eu e meu amigo ficamos acordados a noite toda. Max replica, secamente, que o melhor que eles podem fazer. E, de fato, no dia seguinte pela manh, o fiel txi nos espera na porta do hotel, com Aristides sorridente, no acreditando no seu pecado, sentado na direo. Hoje chegamos a Der-ez-Zor, no Eufrates. Est muito quente. A cidade cheira mal, e no nada atraente. Os Services Spciaux gentilmente colocam alguns quartos nossa disposio, j que no h nenhum hotel europeu. H uma vista bonita alm da correnteza marrom do rio. O oficial francs pergunta cortesmente sobre a minha sade, e diz que espera que eu no tenha achado a viagem na poeira e no calor muito difcil. Madame Jacquot, a esposa do nosso General, estava compltement knock out quando chegou. Gosto da expresso. E espero que eu, por minha vez, no fique compltement knock out no fim da nossa expedio. Compramos verduras e grandes quantidades de ovos, e com Queen Mary cheio a ponto de quebrar as molas, partimos, desta vez para a expedio propriamente dita. Busaira! Aqui h um posto policial. um lugar que dava grandes esperanas a Max, j que est na juno do Eufrates com o Habur. Na outra margem, est o Circesium romano. Busaira, no entanto, se mostra desanimadora. No h sinais de nenhuma outra aldeia antiga, exceto a romana, que tratada com o devido desprezo. Min siman er Rum, diz Hamoudi, sacudindo a cabea com desgosto, e eu concordo com ele plenamente. No nosso ponto de vista, os romanos so inapelavelmente modernos crianas de ontem. Nosso interesse comea no segundo milnio a.C, com os diversos destinos dos hititas. Estamos particularmente interessados na dinastia militar de Mitanni, aventureiros de outras terras sobre os quais pouco se sabe, mas que viveram nesta parte do mundo, e cuja capital, Washshukkanni, ainda tem de ser identificada. Uma casta dominadora de guerreiros, que impuseram seu domnio ao pas, e que se casaram com a Casa Real egpcia, e que, ao que tudo indica, eram bons cavaleiros, j que um tratado da criao e treinamento de cavalos atribudo a um certo Kikkouli, um homem de Mitanni. E deste perodo para trs, claro, at as brumosas eras da pr-histria uma idade sem documentos escritos, da qual apenas panelas, e delineamentos de casas e amuletos, e ornamentos e colares restam para dar o seu mudo testemunho da vida que se vivia ento. Como no encontramos nada em Busaira, prosseguimos para Meyadin, mais para o sul, se bem que Max no tenha grandes esperanas a respeito. Depois disso, vamos em direo ao norte, subindo pelas margens do Habur. em Busaira que tenho a minha primeira viso do Habur, que, at ento, havia sido apenas um nome para mim se bem que um nome bastante repetido por Max. O Habur! Este o lugar. Centenas de colinas. Ele continua. E se ns no encontrarmos nada no Habur, vamos para o Jaghjagha! E o que o Jaghjagha? pergunto a primeira vez que ouo o nome, que me parece bastante fantstico. Max diz gentilmente achar que eu nunca ouvi falar do Jaghjagha. E concorda em que um bocado de gente ainda no ouviu. Admito a acusao e acrescento que, at ele falar a respeito, eu, na verdade, no tinha nem ouvido falar do Habur. O que o surpreende muito. Voc no sabia que a colina Halaf est s margens do Habur? pergunta, espantado com a minha chocante ignorncia. Sua voz se abaixa em deferncia enquanto fala daquele famoso local de cermicas pr-histricas. Sacudo a cabea, e me abstenho de lhe fazer ver que, se por acaso, no tivesse me casado com ele, eu provavelmente jamais teria ouvido falar na colina Halaf! Eu devo acrescentar que explicar os lugares onde escavamos s pessoas sempre uma tarefa das mais difceis. Minha primeira resposta, em geral, uma palavra s Sria. Ah! diz o inquisidor mdio, j meio abalado. Uma ruga se traa na sua testa. Sim, claro Sria... Memrias bblicas comeam a aparecer. Deixe-me ver, fica na Palestina, no ? perto da Palestina digo, encorajadoramente. Voc sabe, um pouquinho mais para cima. O que no adianta muito, j que a Palestina, estando geralmente associada Histria bblica e s aulas de religio mais do que a uma situao geogrfica, tem conotaes purte literrias e religiosas. No consigo localiz-la muito bem. A ruga aprofunda-se. Mais ou menos aonde vocs escavam quer dizer, perto de que cidade? Perto de cidade nenhuma. Perto da fronteira com a Turquia e o Iraque. Uma expresso de desnimo total aparece, ento, no rosto do amigo. Mas deve haver alguma cidade por perto! Alep digo fica a umas duzentas milhas de distncia. Suspiram, e desistem. Ento, novamente animados, perguntam o que comemos. S tmaras, no ? Quando eu digo que temos carneiro, galinhas, ovos, arroz, ervilhas, pepinos, laranjas e bananas, eles me olham com um ar de censura, e dizem: Eu no chamo isso de vida muito dura! Em Meyadin le camping comea. Uma cadeira armada para min, e eu me sento majestosamente no meio de um grande ptio, ou khan; enquanto isso, Max, Mac, Aristides, Hamoudi e Abdullah lutam para montar as barracas. No h dvidas de que eu saio ganhando. um espetculo muito divertido. H um forte vento do deserto que no ajuda nada, e ningum ainda est acostumado com o trabalho. Apelos compaixo e piedade de Deus partem de Abdullah, pedidos de assistncia aos santos do armnio Aristides, gritos e risadas de encorajamento so oferecidos por Hamoudi, furiosas imprecaes partem de Max. S Mac trabalha em silncio, muito embora volta e meia at ele solte uma ou outra palavra com seus botes. Finalmente est pronto. As barracas parecem um pouco bbadas, meio fora de foco, mas foram erguidas, de qualquer maneira. Juntos, todos, nos reunimos para xingar o cozinheiro, que em vez de comear a preparar alguma comida, estava apreciando o espetculo. Mas temos algumas latas muito teis que so abertas, preparado um ch, e quando o sol se pe e o vento acalma, e comea a aparecer um sbito ar frio, vamos dormir. Esta a minha primeira experincia com um saco de dormir. Requer os meus esforos e os de Max conjugados, mas, uma vez l dentro, me sinto maravilhosamente vontade. Sempre viajo com um travesseiro realmente macio para mim, ele faz toda a diferena entre o conforto e a misria. Digo alegremente a Max: Acho que gosto de dormir numa barraca! Ento, me vem um pensamento repentino. Voc no acha que ratos, camundongos, ou coisas assim vo passar por cima de mim de noite, no ? claro que vo diz Max sonolento e animador. Estou digerindo este pensamento quando adormeo. E acordo para descobrir que so cinco horas da manh alvorada, e tempo de levantar e comear um novo dia. As colinas mais prximas de Meyadin se mostram pouco atraentes. Romanos! murmura Max desgostoso. sua ltima palavra de desnimo. Pondo de lado quaisquer resqucios que eu poderia ter quanto a achar os romanos um povo interessante, jogo fora um caco da cermica desprezada, dizendo romanos.... Min Ziman... er Rum, diz Hamoudi. Pela tarde vamos visitar as escavaes americanas em Doura. uma visita agradvel, e o pessoal muito gentil conosco. No entanto, no estou muito interessada nos achados, e uma imensa dificuldade em ouvir ou participar da conversa comea a tomar conta de mim. O relato das suas dificuldades em conseguir trabalhadores, porm, no deixa de ser interessante. Trabalhar por salrio nesta parte do fim do mundo uma idia inteiramente nova. A expedio se defrontou com terminantes recusas ou uma total falta de compreenso. Desesperados, apelaram para as autoridades francesas. Sua ao foi pronta e eficiente: os franceses prenderam duzentos ou qualquer outro nmero necessrio, e mandaram trabalhar. Os prisioneiros foram amistosos, estavam no melhor bom humor e pareciam estar gostando do trabalho. Foi-lhes dito que voltassem no dia seguinte, mas no apareceram. Novamente os franceses foram chamados para ajudar, e novamente prenderam trabalhadores. Novamente os homens trabalharam evidentemente satisfeitos. Mas novamente deixaram de aparecer no dia seguinte. E assim por diante. At que, finalmente, o caso foi elucidado. Vocs gostam de trabalhar com a gente? Claro, por que no? No temos nada para fazer em casa. Ento por que que vocs no vm todo dia? Ns queramos vir, mas naturalmente a gente tem que esperar que os soldados nos apanhem. Vou lhe contar, ficamos bem aborrecidos no dia em que eles no vieram! Afinal, a obrigao deles! Mas ns queremos que vocs trabalhem para a gente sem que os asker tenham que ir busc-los! Que idia gozada! Ao final de uma semana foram pagos, e isso foi a ltima gota no seu espanto. Disseram que, realmente, jamais conseguiriam compreender o jeito de ser dos estrangeiros! Os asker franceses mandam aqui. Naturalmente, pleno direito deles nos pegar, ou botar na priso, ou mandar escavar para vocs. Mas por que que vocs esto dando dinheiro para a gente? Para que este dinheiro? No faz sentido! No entanto, por fim os estranhos costumes ocidentais foram aceitos, com disfaradas sacudidelas de cabea e murmrios. Uma vez por semana, recebiam seu pagamento. Mas uma vaga implicncia com os asker permaneceu. O trabalho dos asker era busc-los todos os dias! Verdade ou no, a histria boa. Eu s gostaria de poder me sentir mais inteligente. O que que h comigo? Quando voltamos ao acampamento, minha cabea est rodando. Tiro minha temperatura, e descubro que est em 39! Tambm estou com dor de barriga e me sinto extremamente doente. Fico feliz em me enfiar no meu saco de dormir, e dormir desdenhando o mero pensamento de jantar. Max parece preocupado esta manh, e pergunta como eu me sinto. Resmungo e respondo: morte. Parece mais preocupado ainda. E pergunta se eu acho que estou doente mesmo. Neste ponto eu o tranqilizo. Eu s tenho o que se costuma chamar, no Egito, de barriga egpcia, e em Bagd, de barriga de Bagd. No uma queixa muito divertida quane est em pleno deserto. Max no pode me deixar para trs sozinha, e, de qualquer forma, durante o dia, a temperatura dentro da barraca de 40 graus! A expedio tem que continuar. Eu me sento encolhida dentro do carro, me agitando num sonho febril. Quando atingimos uma colina, saio e me deito na sombra que a altura de Queen Mary oferece, enquanto Max e Mac andam pela colina, examinando-a. Francamente, os prximos quatro dias so um inferno! Uma das histrias de Hamoudi parece especialmente oportuna aquela da linda esposa de um sulto, que ele carregou consigo, e que se queixava a Allah noite e dia de que no tinha companhia e estava sozinha no deserto. E finalmente Allah, cansado dos seus queixumes, mandou-lhe companhia. Mandou-lhe as moscas! Eu me sinto particularmente irritada contra a linda senhora que incorreu na ira de Allah! Durante o dia inteiro, nuvens de moscas tornam qualquer descanso impossvel. Lamento amargamente ter vindo nesta expedio, mas consigo no dizer isso em voz alta. Depois de quatro dias, sem tomar nada alm de ch fraco, sem leite, revivo de repente. A vida bela de novo. Como um prato enorme de arroz e cozido de legumes nadando em gordura. Parece a coisa mais gostosa que j comi! Mais tarde, subimos na colina em que montamos o nosso acampamento na colina Suwar, na margem esquerda do Habur. Aqui no h nada. Nenhuma aldeia, nenhuma casa de espcie alguma, nem mesmo as tendas dos bedunos. H uma bela lua acima, e abaixo o Habur serpenteia numa grande curva em forma de S. O ar da noite fresco, depois do calor do dia. Digo: Que colina linda! No podemos escavar aqui? Max sacode a cabea tristemente, e pronuncia a palavra fatdica: Romanos. Que pena. um lugar to bonito. Eu te disse diz Max, que o Habur o lugar! Colinas por todos os lados! Eu no me interessei por colinas durante vrios dias, e fico feliz em ver que no perdi muita coisa. Voc tem certeza que no h nada do que voc quer por aqui? pergunto esperanosa. ostei da colina Suwar. Sim, claro que h, s que est l embaixo. Ns teramos que escavar atravs do materi romano. Podemos fazer coisa melhor. Suspiro e murmuro: to quieto e pacfico por aqui. No h alma viva vista. Neste exato momento, um velho aparece de lugar nenhum. De onde que ele veio? Ele sobe na colina devagar, sem pressa. Tem uma longa barba branca e uma inefvel dignidade. Sada Max polidamente. Como est o seu conforto? Bem. E o seu? Bem, graas a Deus. Ele se senta ao nosso lado. H um longo silncio aquele corts silncio de boas maneiras que to repousante depois da pressa ocidental. Finalmente, o velho pergunta o nome de Max. Max lhe diz. Ele o considera. Milwan! repete. Milwan... Como leve! Como luminoso! Como bonito! Fica sentado conosco mais algum tempo. Ento, to silenciosamente como veio, ele nos deixa. Nunca mais o veremos de novo. Novamente bem de sade, comeo, agora, a me divertir realmente. Comeamos todos os dias nas primeiras horas da manh, examinando cada colina que encontramos, fazendo voltas e voltas em torno, pegando qualquer fragmento de cermica. Depois comparamos os resultados no topo, e Max guarda todos os espcimes teis, colocando-os num saquinho de linho e rotulando-os. H uma grande competio para ver quem encontra a melhor pea do dia. Comeo a entender por que os arquelogos costumam andar olhando para o cho. Logo comeo a sentir que eu tambm esquecerei de olhar minha volta, ou para o horizonte. Andarei olhando para os meus ps, como se tudo que interessasse estivesse l. Como sempre, surpreendo-me pela fundamental diferena entre as raas. Nada poderia ser to diferente quanto a atitude dos nossos dois choferes perante dinheiro. Abdullah raramente deixa um dia passar sem pedir um vale. Se ele pudesse agir a seu modo, teria tudo de uma vez s, e suponho que gastaria tudo em menos de uma semana. Com a prodigalidade rabe, torraria tudo no bar. Faria uma figura! Faria a sua reputao. Aristides, o armnio, mostra a maior relutncia em receber um tosto sequer do seu salrio. O senhor guarda para mim at o fim da viagem, Khwaja. Se eu precisar de dinheiro para qualquer despesazinha falo com o senhor. At agora, ele s pediu quatro pence do seu salrio para comprar um par de meias. Seu queixo agora est adornado com uma barba incipiente, que o torna bem parecido com uma figura bblica. Ele explica que sai mais barato no fazer a barba: a gente pode economizar o dinheiro que gastaria numa lmina de barbear. E aqui no deserto no tem importncia. No fim da viagem, Abdullah vai estar outra vez sem um tosto, e vai, sem dvida, enfeitar novamente a praa em Beirute, esperando com fatalismo rabe que a bondade divina lhe providencie um outro emprego. Aristides ter o dinheiro que ganhou na ntegra. E o que que voc vai fazer com ele? pergunta Max. Vai servir para comprar um txi melhor replica Aristides. E quando voc tiver um txi melhor? Ento vou ganhar mais, e vou ter dois txis. Posso me imaginar, tranqilamente, voltando Sria dentro de vinte anos, e encontrando Aristides como o dono imensamente rico de uma grande garagem, e provavelmente morando numa casa espaosa em Beirute. E mesmo ento, sou tentada a dizer, ele evitar fazer a barba no deserto porque economiza o preo de uma lmina de barbear. E no entanto Aristides no foi criado pelo seu prprio povo. Um dia, quando passvamos por alguns bedunos, foi chamado por eles e acenou-lhes de volta, gritando e gesticulando afetuosamente. Aquela a tribo Anaizah, da qual fao parte explicou. Como que ? perguntou Max. E ento Aristides, com sua voz alegre e gentil, seu sorriso tranqilo e feliz, contou sua histria. A histria de um menininho de sete anos, que, junto com sua famlia e outras famlias armnias, foi jogado vivo pelos turcos dentro de um grande fosso. Por cima deles, jogaram alcatro, e atearam fogo. Seu pai, sua me, dois irmos e irms morreram queimados. Mas ele, que estava por baixo de todo mundo, ainda estava vivo quando os turcos foram embora, e foi, mais tarde, encontrado por alguns dos rabes Anaizah. Eles levaram o menino consigo e o adotaram na tribo. Cresceu como um rabe, vagando com eles atravs dos seus pastos. Mas quando fez dezoito anos, foi para Mosul, e pediu papis que comprovassem a sua nacionalidade. Ele era armnio, no rabe! Mas a criao perdura, e para os Anaizah, ele um deles. Juntos, Hamoudi e Max esto muito alegres. Eles riem, e cantam, e contam histrias. De vez em quando, eu peo que traduzam as piadas particularmente engraadas. H momentos em que eu invejo a farra que esto fazendo. Mac ainda est separado de mim por uma barreira impenetrvel. Sentamos atrs do carro juntos, em silncio. Qualquer observao que eu faa tem seus mritos gravemente considerados por Mac, e tratada altura. Nunca me senti to fracassada socialmente! Mac, por outro lado, parece bastante feliz. H nele uma maravilhosa auto-suficincia que s posso admirar. Apesar de tudo, quando encaixada no meu saco de dormir, na intimidade noturna da nossa barraca, conto para Max os incidentes do dia, sustento que Mac no totalmente humano. Quando Mac diz qualquer coisa, geralmente algum comentrio de natureza desanimadora. Ele parece ter um estranho prazer em fazer criticas. Hoje estou perplexa pela crescente insegurana da minha capacidade de locomoo. De uma certa maneira, os meus ps parecem no combinar. Fico intrigada com uma decidida tendncia a naufragar. Ser, penso amedrontada, o primeiro sintoma de alguma doena tropical? Pergunto a Max se ele reparou que eu no estou conseguindo andar direito. Mas voc nunca bebe replica ele. Deus sabe que eu fiz tudo o que foi possvel com voc acrescenta, com um ar de censura. Isto introduz um outro assunto controvertido. Todo mundo atravessa a vida com alguma infeliz falta de habilidade. A minha ser incapaz de apreciar o lcool e o tabaco. Se eu conseguisse pelo menos condenar estes produtos essenciais, meu amor-prprio estaria a salvo. Mas, pelo contrrio, olho com inveja as mulheres seguras de si, jogando cinzas aqui, ali e em toda parte, e durante coquetis, fico rondando miseravelmente pela sala, tentando encontrar algum lugar para esconder o meu copo intocado, Perseverana no adiantou nada. Durante seis meses, fumei, religiosamente, um cigarro depois do almoo e outro depois do jantar, tossindo um pouco, engolindo pedaos de fumo, e piscando quando a fumaa entrava nos meus olhos. Em breve, eu me dizia, terei aprendido a gostar muito de fumar. No aprendi, e minha performance foi criticada severamente como nada artstica, e francamente dolorosa de se ver. Aceitei a derrota. Quando me casei com Max, apreciamos os prazeres da mesa em perfeita harmonia, comendo com sabedoria mas extremamente bem. Ele ficou aflitssimo ao descobrir que a minha apreciao de uma boa bebida ou, alis, de qualquer bebida era nula. Decidiu me educar, me tentando pacientemente com claretes, borgonhas, vinhos tintos e brancos e, em desespero de causa, com toka, vodka e absinto! No fim, ele tambm aceitou a derrota. Minha nica reao foi perceber que alguns tinham gosto pior do que outros. Com um suspiro de resignao, Max contemplou uma vida em que estaria condenado a conseguir gua para mim nos restaurantes, para sempre. Coisa que, segundo ele, j lhe facilita a entrada no paraso. Da sua observao quando tentei atrair sua simpatia para a minha aparncia bbada. Eu sinto que estou emborcando para a esquerda, o tempo todo explico. Max diz que provavelmente alguma destas doenas tropicais bem raras, que so conhecidas apenas pelo nome de algum: doena de Stephenson, ou Hartley. O tipo de coisa que provavelmente acaba com os seus dedos caindo um por um, ele acrescenta animadamente. Contemplo esta perspectiva agradvel. Ento, me ocorre olhar os meus sapatos, e o mistrio se esclarece de uma vez por todas. O lado externo do meu sapato esquerdo e o lado interno do meu sapato direito esto completamente gastos. Enquanto os contemplo meditativamente, a soluo aparece de repente. Desde que samos de Der-ez-Zor, andei em torno de umas cinqenta colinas, em diferentes alturas, de um lado ou de outro, mas sempre com a colina minha esquerda. Tudo o que preciso ir agora ao contrrio, e rodear colinas pela direita, em vez de ir pela esquerda. Com o tempo, meus sapatos ficaro gastos por igual. Hoje chegamos colina Ajaja, antigo Arban, um grande e importante loca! de escavaes. O principal caminho de Der-ez-Zor fica perto daqui, de modo que estamos praticamente numa estrada importante. Chegamos at a cruzar com trs carros, todos indo disparados para Der-ez-Zor. Pequenos agrupamentos de casas de barro enfeitam o local, e vrias pessoas passam o dia conosco na grande colina. Isso quase civilizao. Amanh, chegaremos a Hasetshe, a juno do Habur com o Jaghjagha. L estaremos em plena civilizao. H um posto militar francs, e uma cidade importante por estes lados do mundo. L travarei o meu primeiro contato com o legendrio e prometido rio Jaghjagha! Sinto-me bastante excitada! Nossa chegada a Hasetshe das mais excitantes. um lugar pouco atraente, com ruas e algumas lojas e uma agncia de Correios. Ns fazemos duas visitas cerimoniosas uma aos militares, outra aos Correios. O tenente francs muito atencioso e prestativo. Oferece-nos alojamento, mas ns lhe garantimos que as nossas barracas esto timas, perto do rio, onde as colocamos. Aceitamos, no entanto, um convite para jantar no dia seguinte. O Correio, para onde vamos em busca de cartas, um assunto mais demorado. O chefe no est, e, conseqentemente, tudo est trancado. Porm, um garoto vai procur-lo, e, no devido tempo (meia hora!) ele aparece, cheio de atenes, nos d as boas-vindas a Hasetshe, pede um cafezinho para ns, e, s depois de uma demorada troca de cumprimentos, que vai ao assunto em questo cartas. Mas no h pressa ele diz, sorrindo. Voltem amanh, eu ficarei muito feliz em receb-los.. Amanh diz Max temos que trabalhar. Gostaramos de receber as nossas cartas hoje. Ah, mas aqui est o caf! Ns nos sentamos, e bebemos. Finalmente, depois de longas e cordiais exortaes, o chefe abre o seu escritrio e comea a procurar. Com toda sua generosidade, nos tenta impingir cartas extras, dirigidas a outros europeus. melhor vocs ficarem com elas ele diz. Elas j esto aqui h mais de seis mesese ningum veio procur-las at hoje. Certamente sero para vocs. Gentil, mas firmemente, recusamos a correspondncia dos senhores Johnson, Mavrogordata e Pye. O chefe dos Correios ficou desapontado. To poucas? disse. Vocs tm certeza que no querem essa grandona aqui? Mas insistimos em ficar apenas com as cartas e papis com o nosso nome. Como combinado, chegou uma ordem de pagamento, e Max agora tenta descont-la. Isso, ao que parece, extremamente complicado. O chefe dos Correios nunca viu uma ordem de pagamento na vida, pelo que deduzimos, e est devidamente desconfiado. Chama dois assistentes, e o assunto exaustivamente debatido, se bem que com muito bom humor. C est algo inteiramente novo e divertido, sobre o que todos podem opinar. A questo fica afinal decidida, e vrios formulrios so assinados antes que se descubra que no h dinheiro nos Correios. Isso, o chefe nos garante, pode ser resolvido amanh. Vai mandar buscar o dinheiro no bazar. Samos dos Correios algo exaustos, e vamos at o trecho que escolhemos, s margens do rio um pouco longe da poeira e da sujeira de Hasetshe. Um triste espetculo nos sada. Isa, o cozinheiro, est sentado ao lado de sua barraca, cabea nas mos, chorando amargamente. O que aconteceu? Responde que est desgraado. Alguns meninos reuniram-se para fazer troa dele. Sua honra foi manchada! Num momento de distrao, cachorros devoraram o jantar que ele nos preparara. No sobrou nada, nada, a no ser arroz. Comemos arroz puro tristemente, enquanto Hamoudi, Aristides e Abdullah admoestam o arrasado Isa, dizendo-lhe que a principal funo de um cozinheiro jamais deixar que sua ateno seja desviada do jantar que est cozinhando, at o momento em que o dito jantar esteja colocado com toda a segurana na frente da pessoa a quem est destinado. Isa diz que no suporta as tenses da vida de cozinheiro. Ele nunca foi cozinheiro na vida (Isso explica muitas coisas! diz Max), e preferiria trabalhar numa garagem. Ser que Max lhe daria uma recomendao como chofer? Max diz que claro que no, j que nunca o viu dirigir nada. Mas um dia eu rodei a manivela de Big Mary numa manh de frio diz Isa. Isso o senhor viu? Max admite que isso, realmente, ele viu. Ento retruca Isa o senhor pode me recomendar!CAPTULO TRSO HABUR E O JAGHJAGHA Estes dias de outono so alguns dos mais perfeitos que j vi. Ns nos levantamos cedo, logo aps o nascer do sol, bebemos ch quente, comemos ovos e pomos mos obra. Faz frio ainda, e eu uso duas blusas e um casaco de l. A luz maravilhosa um rosa muito plido suaviza os tons cinzas e marrons. Do topo de uma colina a gente olha para um mundo aparentemente deserto. H colinas por todos os lados se a gente contar, v talvez umas sessenta. Quer dizer, sessenta antigos povoados. Aqui, onde atualmente s algumas tribos passam com suas tendas marrons, foi h tempos uma parte movimentada do mundo. Aqui, h uns cinco mil anos atrs, era a parte movimentada do mundo. Aqui foi o bero da civilizao, e aqui, descoberto por mim, este fragmento de tigela feito mo, com um desenho de pontos e cruzes em tinta preta, o antepassado da xcara do Woolworths em que, hoje de manh, bebi o meu ch... Dou uma olhada na coleo de cacos que esto tilintando nos bolsos do meu casaco (j tive que remendar o forro duas vezes), jogando fora tipos iguais, vendo o que que eu posso oferecer para julgamento, ao Mestre, em competio com Mac e Hamoudi. E ento, o que que eu tenho? Um caco cinza pesado, parte da orla de um jarro (valioso por mostrar forma), alguns pedaos vermelhos e speros, dois fragmentos de jarros pintados, feitos mo, e um com o desenho de pontos (o mais antigo Halaf!), uma faca de pedra lascada, parte da base de um vaso fino e cinzento, vrios outros pedaos indescritveis de cermica pintada, um pouco de obsidiana. Max faz sua seleo, jogando fora, impiedosamente, a maioria das peas, murmurando rudos apreciativos a outras. Hamoudi tem a roda de uma carroa de barro e Mac o fragmento de cermica esculpida e parte de uma estatueta. Juntando a coleo, Max a coloca dentro de um saquinho de linho, amarra-o cuidadosamente, e o rotula como sempre com o nome da colina onde foi encontrado. Esta colina em particular no est no mapa. batizada de colina Mak, em honra a Macartney, que fez a primeira descoberta. Na medida em que a reserva de Mac pode exprimir alguma coisa, parece expressar uma plida satisfao. Ns descemos a colina e entramos no carro. Eu tiro uma de minhas blusas, j que o sol est esquentando. Visitamos mais duas colinas pequenas, e na terceira, que tem vista para o Habur, almoamos ovos cozidos, uma lata de carne, laranjas e um po extremamente duro. Aristides faz ch no fogareiro. Agora est muito calor, e as sombras e cores se foram. Tudo tem um mesmo tom uniforme e suave. Max comenta que temos sorte em estar pesquisando agora, e no na primavera. Pergunto por qu. Ele diz que porque seria muito mais difcil encontrar vestgios quando houver vegetao por toda a parte. Tudo isso estar verde na primavera, ele diz. Aqui a estepe frtil. Digo admirada que este um modo muito generoso de descrever o lugar. Max diz que tanto faz, e que decididamente a estepe frtil! Hoje levamos Mary pela margem direita do Habur, at a colina Halaf, visitando a colina Ruman (nome sinistro, mas na verdade, sem vestgios de romanos) e a colina Juma, de passagem. Todas as colinas desta regio oferecem possibilidades, ao contrrio das do sul. Vestgios de cermica do segundo e terceiro milnio so freqentes e restos de povoados romanos abundam. H tambm cermica da pr-histria, pintada e feita mo. A dificuldade serescolher entre tantas colinas. Max repete constantemente, com jbilo e uma completa falta de originalidade, que este , sem dvida, o lugar! Nossa visita colina Halaf tem algo da reverncia de uma peregrinao a um templo. Colina Halaf um nome que foi to constantemente empurrado para dentro dos meus ouvidos nos ltimos tempos que eu nem consigo acreditar que vou, realmente, ver o lugar em pessoa. Um lugar muito agradvel, com o Habur serpenteando na base. Lembro-me de uma visita que fizemos ao Baro von Oppenheim em Berlim quando ele nos levou ao museu dos seus achados. Max e ele conversaram, excitadssimos, durante calculo umas cinco horas. No havia lugar nenhum para se sentar. Meu interesse, a princpio bem grande, foi diminuindo, e, finalmente, acabou por completo. Com olhos esgazeados examinei as muitas estatuetas fessimas que haviam vindo de Halaf, e que, na opinio do Baro, eram contemporneas da cermica, por sua vez interessantssima. Max estava tentando diferir dele polidamente, sem contradiz-lo frontalmente. Para meu olhar cansado, todas as esttuas pareciam curiosamente umas com as outras. S depois de um certo tempo que descobri que, de fato, elas eram mesmo todas iguais, j que todas, menos uma, eram reprodues. O Baro von Oppenheim interrompeu a sua dissertao apaixonada para dizer, carinhosamente: Ah, minha linda Vnus e acariciar a figura com afeio. Depois mergulhou novamente na discusso, e eu desejei, tristemente, que pudesse fazer o que diz a velha cano infantil: cortar os meus ps, e vir-los de cabea para baixo! Por todas as colinas, at chegarmos a Halaf, paramos para conversar. Por todos os lados, h vrias lendas sobre El Baron mais especificamente, sobre as incrveis quantias em ouro que pagava a torto e a direito. O tempo aumentou a quantidade do ouro. Mesmo o governo alemo no poderia ter derramado os rios do precioso metal da maneira que a tradio conta. A norte de Hasetshe h lugarejos e sinais de cultivo por toda parte. Desde a chegada dos franceses e a partida do poder turco, o pas est sendo ocupado novamente, pela primeira vez desde os tempos romanos. Chegamos em casa tarde. A temperatura est mudando, um vento comea a soprar e muito desagradvel, poeira e areia no rosto da gente, fazendo os olhos lacrimejarem. Tivemos um jantar agradvel com os franceses, apesar de ter sido meio trabalhoso nos arrumarmos, ou melhor, nos limparmos um pouco, j que uma blusa limpa para mim e camisas limpas para os homens tudo o que podemos fazer neste sentido. Jantamos muito bem e passamos uma noite muito gostosa. Voltamos debaixo de um tor para as nossas barracas. Uma noite inquieta, com cachorros latindo e as barracas batendo e se esticando no vento. Deixando o Habur de lado no momento, fazemos uma excurso hoje pelo Jaghjagha. Uma imensa elevao bem prxima atiou o meu interesse, at que descobri tratar-se de um vulco extinto: o Kawkab. Nosso objetivo especfico uma certa colina Hamidi, de que temos tido boas referncias, mas de difcil acesso, j que no h nenhuma estrada que leve diretamente at l. Isso significa que temos que traar uma reta por conta prpria e atravessar inmeros pequenos fossos e depresses. Hamoudi est muito animado esta manh. Mac est silenciosamente aborrecido e diz que acha que jamais chegaremos colina. Gastamos sete horas de viagem e umas sete horas muito cansativas, com o carro atolando diversas vezes e tendo que ser desatolado com a maior dificuldade Hamoudi se exaspera nestas ocasies. Sempre considera um carro como uma espcie de cavalo inferior, se bem que mais resistente. Em qualquer momento de indeciso com alguma depresso frente, a voz de Hamoudi se eleva excitada, gritando ordens frenticas a Aristides. Rpido, rpido! no d tempo mquina para recusar! V em frente, v em frente! Seu desgosto, quando Max pra o carro e se adianta a p para examinar os empecilhos, extremo. Sacode a cabea completamente contrafeito. No assim que se deve tratar um carro, to genioso e nervoso, ele diz. No lhe d tempo para refletir, e tudo ir s mil maravilhas. Depois de retornos, confirmaes, e auxlio de guias locais, acabamos, finalmente, chegando l. A colina Hamidi est linda ao sol da tarde, e com um exultante sentimento de dever cumprido que o carro sobe a suave encosta que leva ao seu topo, de onde avistamos um pntano cheio de patos selvagens. Mac fica bastante emocionado para murmurar uma observao. Ah diz num tom de sombria satisfao. gua parada, bem se v! E este passa a ser o seu apelido desde ento. A vida agora torna-se mais febril e agitada. O exame de colinas se torna mais cuidadoso cada dia. Para a seleo final, trs coisas so essenciais. Primeiro, deve estar bastante perto de um vilarejo ou de vilarejos para que se possa conseguir mo-de-obra. Segundo, deve haver gua isto , deve estar perto do Habur ou do Jaghjagha, ou ento deve ter gua de poo que seja suficientemente potvel. Terceiro, deve ter indcios de ter o que procuramos. Qualquer escavao um jogo entre setenta colinas ocupadas no mesmo perodo, quem pode apontar a que tem um edifcio, ou um depsito de tabuletas, ou uma coleo de objetos particularmente interessantes? Uma colina pequena oferece to boas perspectivas quanto uma colina grande j que as grandes cidades so as que mais probabilidades tiveram de ser arrasadas e destrudas num passado distante. A sorte o fator predominante. Quantas vezes algum terreno foi dura e corretamente escavado, estao aps estao, com resultados interessantes mas nada espetaculares, e, ento, numa mudana de alguns metros, algum achado nico vem luz, de repente. O verdadeiro consolo que, em qualquer colina que se escolha, sempre se acha alguma coisa. Fizemos uma excurso de um dia margem oposta do Habur, colina Halaf, novamente, e passamos dois dias no Jaghjagha um rio algo superestimado, do ponto de vista da aparncia (uma corrente barrenta, entre margens altas) e marcamos uma colina a colina Brak como altamente promissora. uma elevao; alta com traos de vrios peros de ocupao, da alta pr-histria aos tempos assrios. Est a cerca de duas milhas do Jaghjagha, onde h um povoado armnio e vrias aldeias espalhadas nas proximidades; est a cerca de uma hora de distncia de Hasetshe, o que ser bem conveniente para mantimentos. Por outro lado, no h gua na colina em si, apesar de que sempre se pode cavar um poo. A colina Brak uma possibilidade. Hoje pegamos a estrada principal de Hasetshe em direo ao nordeste, para Kamichlie um outro posto militar francs, e cidade fronteiria entre a Sria e a Turquia. A estrada corre mais ou menos entre o Jaghjagha e o Habur, at a metade do percurso, e depois se une ao Jaghjagha em Kamichlie. J que examinar todas as colinas no caminho e voltar a Hasetshe de noite seria impossvel, decidimos passar a noite em Kamichlie e regressar no dia seguinte. As opinies em relao