Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

download Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

of 45

Transcript of Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    1/45

    DESIGUALDADES DE RAÇA E GÊNERO NO SISTEMA EDUCACIONAL

    BRASILEIRO∗ 

    Fúlvia Rosemberg1 

    Procurar desconstruir essa naturalização da desigualdade encontra-

    se (...) no eixo estratégico de redefinição dos parâmetros de uma

    sociedade mais justa e democrática. Nesse sentido, a questão da

    desigualdade racial necessita ser incorporada como elemento

    central do debate. Ricardo Henriques (2001, p. 1-2).

    Este texto tem por objetivo efetuar um balanço, a partir de pesquisas e dados

     já publicados, sobre aspectos do sistema educacional brasileiro à luz das desigualdadesde raça e gênero, situando-as no marco de políticas de igualdade de oportunidades.

    Foram privilegiados, sempre que possível, estudos que se basearam em dados macro

    (Censos Escolares, Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios/PNADs, Censos

    Demográficos2); sínteses que fornecem pistas para compreensão das tendências

    observadas.

    1.  Conceitos, termos e referenciais

    Neste artigo serão usados os termos: sexo, para referir-se a homens e mulheres a

    partir de sua identidade civil, compondo, portanto, uma variável disjuntiva; gênero, para

    referir-se a construções simbólicas em torno do masculino e do feminino, que acolhem e

    sustentam práticas sociais e ideologia da superioridade do masculino sobre o feminino;

    cor para referir-se a auto classificação do/a respondente a uma das cinco alternativas de

    denominação propostas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) –

    branca, preta, parda, indígena e amarela –, lembrando que a denominação “raça negra”

    ou “negros/as” é reservada ao subgrupo composto pelas pessoas que se declaram pretas

    e pardas. Assim, não será usada no texto a expressão “afro-descendentes”, cuja

    transposição para o contexto brasileiro pode significar uma alteração nas práticas de

    ∗  Trabalho apresentado no Seminário Internacional “Ações afirmativas nas políticas educacionaisbrasileiras: o contexto pós-Durban”. Brasília, 20 a 22 setembro 2005.1

     Da PUC-SP e da Fundação Carlos Chagas, onde é coordenadora, no Brasil, do Programa Internacionalde Bolsas de Pós-graduação da Fundação Ford.2 A referência mais atualizada será, de modo geral, a PNAD 99. Os dados do Censo 2000 e da PNAD2001 foram parcialmente divulgados e ainda pouco estudados.

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    2/45

      2

    classificação racial que, de acordo com estudiosos brasileiros releva mais da aparência

    que da hipodecendência (Guimarães, 2002).

    Porém, apesar de politicamente inadequada (por desconfigurar suas

    identidades raciais), por vezes será necessário usar a oposição brancos-não-brancos,

    quando incluir, entre os não-brancos, os segmentos populacionais negro e indígena.

    O texto pretende ultrapassar o nível descritivo. Portanto, deve explicitar,

    mesmo que sinteticamente, o referencial teórico no qual se baseia.

    1.1  Referencial teórico

    Interpretar desigualdades raciais e gênero (bem como suas articulações) no

    sistema educacional tem me levado a procurar integrar aportes de teorias constituídas no

    campo da Sociologia da Educação sobre desigualdades educacionais, à produção

    feminista que incorpora o conceito de gênero como categoria analítica e à emergente

    literatura que vem mapeando a desigualdade racial na sociedade brasileira.

    I. Dentre os teóricos da Sociologia da Educação, destaco o trabalho de Petitat

    (1994) que, ao estudar o processo de expansão do sistema educacional francês. Isto é,

    Petitat (1994), como outros sociólogos da educação, alerta para o fato de que a crescente

    universalização do ensino secundário e superior na Europa na segunda metade do século

    XX vem gerando novos processos de desigualdade educacional. O mesmo fenômeno

    pode ser observado no Brasil para outros níveis educacionais (Nogueira, 1994;

    Rosemberg, 1999).

    Petitat (1994) não avança na compreensão das hierarquias de gênero e raça,

    questão que vem sendo aprofundada nos trabalhos dos chamados teóricos da resistência

    (Apple, Enguita, Giroux, Anyon). A contribuição destes teóricos para a compreensão da

    dinâmica educacional pode ser resumida, de forma simplificada, em três eixos

    convergentes: a atenção simultânea às esferas econômica, política e cultural semredução de uma à outra; a compreensão de que a dinâmica social resulta de um jogo

    complexo de desigualdades de classe, gênero, raça e idade nas diferentes esferas; a

    concepção de um sujeito histórico ativo, acomodando-se e resistindo às barreiras que a

    sociedade interpõe à realização de suas necessidades, de seus projetos e desejos, o que

    envolve o enfrentamento de desigualdades e contradições nas três esferas (econômica,

    política e cultural) e nas diferentes dinâmicas de classe, gênero, raça e idade.

    No Brasil, a busca de compreensão simultânea das hierarquias de gênero,raça e classe tem se baseado, muitas vezes, em modelo cumulativo, esperando-se uma

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    3/45

      3

    associação linear entre os eixos de desigualdade. Tal modelo associativo não dá conta,

    porém, da complexidade e das contradições observadas nas instituições educacionais

    onde as dinâmicas de gênero, raça e classe não são redutíveis umas às outras,

    evidenciando, muitas vezes, um movimento não sincrônico.

    O conceito de não-sincronia possibilita apreender melhor o jogo de conflitos,

    tensões e contradições inter e intra-institucionais: “indivíduos (ou grupos) em suas

    relações com os sistemas político e econômico não compartilham da mesma consciência

    ou das mesmas necessidades no mesmo momento” (Hicks, 1981, p. 221). Isto significa

    que a interseção destas relações pode levar a interrupções, descontinuidades, alterações

    ou incremento do impacto original das dinâmicas de raça, classe ou gênero em dado

    contexto social ou institucional. Nem as pessoas individualmente, nem os movimentos

    sociais desenvolvem em perfeita sincronia consciência de classe, gênero e raça. Por

    exemplo, a busca de superação de desigualdades de gênero pode ignorar, ou mesmo

    apoiar-se, em desigualdades de raça. Além disso, venho levantando como hipótese de

    trabalho que na trajetória de vida, a pessoa não enfrenta ao mesmo tempo os diferentes

    impactos das desigualdades (Rosemberg, 2002). Assim, apesar de a criança já nascer em

    sociedade fortemente marcada por identidade de gênero bi-polar, não é possível afirmar

    que nas sociedades ocidentais ocorram desigualdades de gênero no plano material desde

    a pequena infância, diferentemente do que ocorreria para desigualdades de classe e de

    raça.

    II. Dentre as diferentes teóricas feministas contemporâneas, venho

    encontrando afinidades, nos planos político e teórico, com os trabalhos de Maria Jesus

    Izquierdo (1991).

    Izquierdo (1991, p.82) considera que o preconceito diante das diferentes

    capacidades das mulheres e dos homens (que ela denomina de sexismo) é acompanhado

    de uma concepção hierárquica de dominação do gênero masculino sobre o feminino.“ As capacidades específicas das fêmeas têm a ver com atividades de gênero

    consideradas de segunda ordem para o funcionamento e desenvolvimento da sociedade,

     precisamente as relativas à  produção da vida humana. As atividades específicas dos

    machos, relativas à produção e administração das coisas, consideram-se fundamentais,

    de primeira ordem. A partir dessa valorização distinta do masculino e do feminino

    constrói-se uma hierarquia dos gêneros. A hierarquia dos gêneros conduz ao

    estabelecimento de relações de dominação/subordinação entre o gênero masculino e o

     feminino, independentemente de qual seja o sexo das pessoas que ocupam os espaços

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    4/45

      4

    sociais de gênero, nas relações de gênero” (Izquierdo, 1991, p.82, grifos da autora).

    Suas reflexões auxiliam a compreensão do magistério como profissão de gênero

    feminino quando destinada a crianças e adolescentes, como atividade associada à

    “produção da vida”.

    III. Podem-se distinguir três grandes correntes que caracterizam o

    pensamento social brasileiro sobre as relações raciais (Rosemberg e Pinto, 1989).

    A primeira delas, ligada originalmente a Gilberto Freyre (Casa Grande e

    Senzala; Sobrados e Mucambos), postula a existência de uma democracia racial. A

    segunda, liderada por Florestan Fernandes, desnuda uma profunda desigualdade entre os

    segmentos branco e negro da população e interpreta as relações raciais no período pós-

    abolicionista como resquícios do antigo regime, incompatíveis com a nova ordem social

    que se configura numa sociedade competitiva e de classes. Portanto, apesar dessa

    corrente reconhecer a existência de desigualdades raciais, assume uma perspectiva

    otimista pois, de acordo com seu enfoque, a desigualdade racial tenderia a desaparecer

    com o desenvolvimento da industrialização. Essa corrente influenciou marcadamente o

    pensamento educacional brasileiro que, ao reconhecer a concentração maciça do

    alunado negro nas camadas mais pobres da população, tende a identificar as

    dificuldades interpostas à escolaridade dos negros exclusivamente com os problemas

    enfrentados pela pobreza, não considerando a especificidade do pertencimento racial.

    A terceira corrente — representada por uma “nova geração de cientistas

    sociais” à qual meus trabalhos se filiam – tem em Carlos Hasenbalg (1979) um de seus

    pioneiros, e vem sendo abraçada pelo movimento negro contemporâneo (Guimarães,

    2002). Tal corrente analisa as articulações entre raça e classe de uma outra perspectiva:

    sem negar que o destino da população negra — que Hasenbalg (1979) reconhece

    vinculada aos grupos e às classes sociais subordinadas — esteja associado “à evolução

    política e estrutural da sociedade brasileira”, esta corrente investiga o peso da raça naanálise das desigualdades entre a população branca e a negra. Assim, tais desigualdades

    não derivam apenas das diferenças observáveis no ponto de partida de ambas as

    populações, mas são devidas, também, às oportunidades desiguais de ascensão após a

    Abolição da escravidão e do racismo contemporâneo enfrentado pelas populações

    negras e indígena.

    Tenho adotado o conceito de racismo que vem sendo elaborado por

    Guimarães (1999, p. 62-63) atentando para suas três dimensões: “uma concepção de

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    5/45

      5

    raça biológica (racialismo); uma atitude em tratar de modo diferente membros de

    diferentes raças; e uma posição estrutural de desigualdade social entre as raças”.

    2. Estatísticas educacionais

    No Brasil são três as instituições nacionais que coletam/consolidam

    estatísticas educacionais: o MEC (Ministério da Educação e do Desporto), através do

    INEP (Instituto Nacional de Estatística e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e das

    Secretarias Estaduais de Educação, que delimita como unidade de coleta principal o

    estabelecimento de ensino; o IBGE que delimita como unidade de coleta o domicílio.

    Complementamente, o Ministério do Trabalho, através das Relações Anuais de

    Informações Sociais (RAIS), também consolida informações sobre professores(as),

    trabalhando no mercado formal e delimitando como unidade de coleta as empresas (no

    caso, os estabelecimentos de ensino).

    Cada uma dessas instâncias, em decorrência de suas particularidades, dispõe

    de instrumentos específicos de coleta, define uma população específica e, portanto,

    apresenta resultados não obrigatoriamente coincidentes. Por exemplo, enquanto as

    estatísticas do IBGE referem-se a estudantes, as do MEC referem-se a matrículas; o

    número de matrículas e de estudantes pode não coincidir, bem como divergem as

    variáveis selecionadas para caracterizar uma unidade e outra.

    As estatísticas educacionais brasileiras vêm melhorando nos últimos anos.

    Recomendações internacionais (Banco Mundial, OCDE, UNESCO, UNICEF, por

    exemplo) bem como a dos movimentos negro e de mulheres/feminista, têm insistido

    sobre a necessidade de desagregarem-se as estatísticas educacionais por sexo e cor/raça.

    Esta prática, que já vinha sendo historicamente usada pelo IBGE e pelo MEC (por

    sexo), tem sido ampliada: por exemplo, informações sobre sexo e cor/raça foramtambém incluídas nos instrumentos de avaliação de desempenho de alunos, tal como o

    Sistema de Avaliação do Ensino Básico (SAEB) e no Exame Nacional de Cursos

    (ENC). Porém os Censos Escolares não coletavam até 2005 informações por cor/raça.

    Dispõe-se, então, no país de um acervo rico e complexo de informações

    estatísticas desagregadas por sexo, cor/raça sobre uma multiplicidade de variáveis

    educacionais relativas à população e ao sistema escolar. Porém, a análise e divulgação

    de dados desagregados por sexo e cor/raça é bastante precária, ficando muito aquém do

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    6/45

      6

    rico acervo coletado. Há indícios de que tais informações são processadas e divulgadas

    em ocasiões especiais (por exemplo, próximo às Conferências Internacionais)3.

    A parcimônia na divulgação e análise sistemática de dados desagregados por

    sexo e cor/raça é particularmente notável na educação infantil, no ensino superior, na

    pós-graduação, e nas inovações contemporâneas para melhoria do fluxo de alunos/as,

    tais como as classes de aceleração. Assim, estatísticas sobre ramificações do sistema

    regular, que podem indicar novos processos de desigualdade educacional, são pouco

    difundidas e, quando apresentadas, não são desagregadas por sexo e cor/raça. Deve-se

    notar, também, a escassez de séries históricas sobre educação de homens e mulheres

    pertencentes aos povos indígenas e ciganos, além da omissão sistemática, nas análises

    educacionais, sobre população encarcerada4. Isto tem sido particularmente evidente nos

    textos que procuram evidenciar o diferencial racial de acesso, permanência e sucesso na

    educação. Tal indicador nem sempre é adequado para orientar políticas educacionais.

    Por exemplo, o acesso à creche apresenta pequeno diferencial racial mas intensa

    dificuldade de acesso para brancos, pretos e pardos.

    2.1. A inclusão do quesito cor no Censo Escolar 20055 

    O MEC/INEP introduziu o quesito cor/raça no Censo Escolar de 2005, com

    respaldo de instituições do governo federal (especialmente a SEPPIR – Secretaria

    Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), de pesquisadores e do

    movimento negro6. Tal iniciativa decorre da Política Nacional de Promoção da

    Igualdade Racial do Governo Federal (Brasil, 2004) que afirma, no parágrafo 1

    (Fortalecimento Institucional) de suas Diretrizes: “c)  adoção de estratégias que

    garantam a produção de conhecimento, informação e subsídios, bem como de

    condições técnicas, operacionais e financeiras para o desenvolvimento  de seus

    programas.” Tal Diretriz é retomada no capítulo 9 – Programas e Ações, artigo 6Produção de Conhecimentos: “são ações que consolidam dados e produzem

    3 O SAEB constitui um instrumento a ser mais intensamente explorado. Junto com o teste, o/a aluno/a, o/aprofessor/a e o/a diretor/a da escola são convidados/as a responder um questionário que coletainformações suscetíveis de explicarem o desempenho escolar. Os três questionários incluem questõessobre cor/raça. José Fernando Soares (2002), da UFMG, vem, com sua equipe, iniciando estudos queincluem variável cor/raça. Infelizmente o quesito sobre cor/raça não acompanhou a formulação do IBGE4 Estima-se em 200.000 a população encarcerada no Brasil (NEV, 2001)5 O Estatuto da Igualdade Racial prevê a obrigatoriedade de o MEC coletar esta informação.6 Algumas universidades (ERJ, UFBA, USP entre outras) realizaram censos de seus estudantes incluindoquesito sobre cor/raça visando o debate sobre cotas para acesso ao ensino superior. O MEC/INEP tambémorganizou um cadastro de alunos. 

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    7/45

      7

    informações e conhecimentos necessários à formulação e avaliação de política de

     promoção da igualdade racial”.

    Para divulgar a novidade e preparar as equipes, foram organizados encontros

    regionais entre representantes das Secretarias Estaduais de Educação, das Secretarias

    Municipais das Capitais, da União dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME)

    e da Equipe Técnica do INEP. Nesta divulgação, a então diretora de Estatísticas da

    Educação Básica do INEP, assim anunciava a introdução do quesito cor/raça no Censo

    2005: “As informações passarão a ser subsídios para as políticas públicas, como a

    adoção do sistema de cotas”7  (PNUD, Boletim Diário, 2004, p.1).

    A pretensão do INEP em 2004 (Informativo INEP, nº 31 p. 5) ia além:

    pretendia a “aprovação do Projeto de Lei que torna obrigatória a inclusão do quesito

    cor/raça, mediante auto-declaração do estudante ou de seu responsável, nas fichas de

    matrícula e nos dados cadastrais das instituições de educação básica e superior”.

    O Censo Escolar 2005 foi lançado dia 30 de março 2005 (Dia Nacional do

    Censo Escolar) com o título “Mostre sua raça, declare sua cor”. Os questionários foram

    introduzidos por uma carta do Ministro da Educação em exercício (Tarso Genro), onde

    afirma: “Em 2005, o Censo traz alterações que representam avanço para o seu

    aperfeiçoamento; entre elas a coleta do quesito cor/raça pode ser apontada como uma

    inovação importante. Além de atender à reinvidicação de setores organizados da

    sociedade quanto à promoção da igualdade racial, esse quesito representa um passo

    importante para o estabelecimento de políticas de correção das desigualdades e de

     promoção da cidadania”.

    O Censo Escolar 2005 recebeu destaque da mídia no seu formato preferido: a

    polêmica. Jornais importantes (Folha de S. Paulo, Globo, Correio da Bahia, entre

    outros) publicaram matérias e o assunto atingiu o cume do noticiário brasileiro: o Jornal

    Nacional na TV Globo. A celeuma provocou editorial, artigo de fundo da Folha de S.

    Paulo (assinado por Lilia Moritz Schwarcz e Marcos Chor Maio, 16/05/2005), cartas do

    leitor, uma réplica contundente do Ministro Tarso Genro (30/05/2005, Globo online), e

    a outra de Elizeu Pacheco, presidente do INEP (Folha de S. Paulo, 02/05/2005).

    Do lado do governo, a tônica da defesa consistiu em: enfatizar que se trata de

    reinvidicação do movimento social e política de governo; reiterar que o procedimento

    adotado é equivalente ao consagrado pelo IBGE; destacar que ocorreu preparação para o

    7 Lembrar que a discussão sobre o sistema de cotas no Brasil vem ocorrendo para o acesso ao ensinosuperior e que o Censo Escolar não abrange este nível de ensino.

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    8/45

      8

    preenchimento do quesito e que os dados viriam preencher uma lacuna. Portanto, para o

    governo, a crítica seria improcedente.

    Tarso Genro (30/05/2005, Globo online) intitula seu artigo de “falsa polêmica”.

    Eliezer Pacheco (Folha de S. Paulo, 02/05/2005) afirma que “surpreende (...) que tal

     fato venha causando polêmica (...). Que motivações haveria por baixo da recusa em

    buscar conhecer a distribuição de brancos, pretos, amarelos, pardos na escola

    brasileira? (...) é preciso dizer que com base na coleta do dado cor/raça, - até hoje

    desconhecido – os gestores de educação do país poderão definir ações e políticas

    afirmativas e de promoção da igualdade na comunidade escolar” (grifo meu).

    Os críticos à medida apoiam seus argumentos no espectro de “tribunal racial”, na

    não adesão às cotas ou ação afirmativa, em problemas conceituais (“mostre sua raça,

    declare sua cor” deveria ter sido “mostre sua cor, declare sua raça”), na falta de preparo

    para responder ao quesito (Folha de S. Paulo, Correio da Bahia).

    Efetuo uma crítica à inclusão do quesito cor/raça no Censo Escolar tal qual o

    conhecemos, cuja justificativa explicito adiante. Antes, porém, é necessário descrever os

    procedimentos adotados. Segundo instruções divulgadas pelo INEP, na ficha de

    matrícula dos alunos devia constar a pergunta qual a sua cor/raça, oferecer as

    alternativas usadas pelo IBGE (branca, preta, amarela, parda, indígena, não declarada),

    as alternativas deveriam ser selecionadas pelo próprio aluno (auto-declaração) a partir

    dos 16 anos ou por seus pais ou responsáveis antes dessa idade8.

    Meus argumentos contrários a esta “novidade” estão expostos a seguir.

    •  Dispomos de muitas informações sobre educação e cor/raça subutilizadas, tanto

    aquelas coletadas pelo IBGE (Censos, PNADs, PPV), quanto aquelas coletadas

    pelo próprio MEC/INEP (especialmente no SAEB). Portanto, não é correto afirmar

    que este mapeamento não tenha sido feito. A partir dos anos 1950, temos alguns

    estudos sobre educação e raça com base em dados macro (Florestan Fernandes;Nelson do Valle Silva e Carlos Hasenbalg; Fúlvia Rosemberg, Regina Pahim Pinto

    e Esmeralda Negrão; Luiz Cláudio Barcelos; Ricardo Henriques Danielle C.

    Fernandes (2004) entre outros). A atualização desses estudos, porém, não tem sido

    feita periodicamente. A maioria dos estudos macro (que partem da análise de dados

    originais) é de autoria de pesquisadores brancos, sugerindo a necessidade de

    investimento na formação de recursos humanos da comunidade negra para analisá-

     8 Não encontrei justificativa para este corte etário. Lembro que 16 anos constitui a idade para se iniciar odireito de votar e trabalhar, para ambos os sexos.

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    9/45

      9

    los. Portanto, não são dados que faltam, mas sim sua análise e divulgação. Visou-se

    um alvo errado. Os recursos usados talvez tivessem sido melhor aproveitados na

    formação de recursos humanos9.

    •  A sistemática de coleta de dados do Censo Escolar não se presta a este tipo de

    quesito. No Censo Escolar a unidade de registro não é o aluno. Assim, apenas

    algumas informações sobre o alunado (e nenhuma sobre recursos humanos

    trabalhando na escola) foram cruzadas por cor/raça no questionário do Censo Escolar

    2005. No conjunto de campos para a EI e para o EF, apenas as informações sobre o

    número de matrículas por modalidade (creche ou pré-escola) ou série e turno (EF)

    estão associadas às informações sobre cor/raça dos alunos. Todos os demais campos

    – sobre fluxo, condição do aluno, rendimento escolar, reclassificação da série,

    conclusão –, cruzados ou não por idade e sexo, não prevêem cruzamento por

    cor/raça. Não obstante, o Censo Escolar permite cruzamento entre características da

    escola e de recursos humanos e freqüência relativa (ou absoluta) de alunos negros

    (ou brancos ou indígenas). Assim mesmo, para estas variáveis, o questionário do

    SAEB é mais completo, como veremos adiante. Portanto, a despeito do esforço e do

    desgaste, as estatísticas educacionais cruzadas por cor/raça geradas pelo Censo

    Escolar 2005 são parcas.

    •  A administração escolar e o corpo docente em seu conjunto não estão preparados

    para acatar de modo adequado as parcas instruções que acompanharam a introdução

    desse quesito no Censo Escolar. A extensa bibliografia contemporânea sobre

    classificação de cor/raça no Brasil (Osório, Petruccelli, Rosemberg e Piza,

    Schwartz, Telles, entre outros) evidencia a complexidade da empreitada, mesmo

    quando a coleta é efetuada por pesquisadores que receberam treino, como os do

    IBGE. Muito pouco se sabe sobre a especificidade de classificação/denominação de

    cor/raça entre crianças e adolescentes (Rocha, 2005). As escolas, de modo geral,

    dispõem de repertórios reduzidos para lidar com o tema das relações raciais (Pinto),

    além de compartilharem, também via de regra, do racismo estrutural e simbólico

    constitutivo da sociedade brasileira (ver tópico adiante).

    Tal situação nos leva a antever duas conseqüências possíveis da introdução do

    quesito cor/raça no Censo Escolar: provocar explicitação de práticas racistas na

    9 O concurso de Pesquisas Negro e Educação (Fundação Ford?Ação Educativa), que seleciona pesquisas,via de regra de autoria de pesquisadores negros, sustenta esta minha observação (comunicação pessoal deRegina Pahim Pinto).

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    10/45

      10

    relação com alunos e famílias; inconsistência nos dados coletados. Até o momento,

    temos algumas indicações de tal inconsistência. Por exemplo, pesquisa em

    andamento de Edmar Rocha (2005) informa que, em escolas da região norte da

    cidade de São Paulo, o diretor substituiu o termo preto por negro na ficha de

    matrículas e que alguns alunos entenderam que a informação IBGE significava “a

    cor/raça como consta na certidão de nascimento”10.

    Por seu lado, o Diário da Bahia transcreve posição sustentada por uma escola

    particular de Salvador que, aproveitando-se da instrução de que a obrigatoriedade

    da resposta não significava obrigatoriedade de declaração de cor/raça – daí a

    alternativa “não declarou” –, optou por esta última alternativa para todos os seus

    alunos. É possível antever um número expressivo de respostas “sem declaração de

    cor/raça”, superior aos 0,5% habituais da PNAD.

    •  Os dados coletados pelo Censo Escolar 2005 não poderão ser comparados aos

    dados coletados pelo IBGE, pois os procedimentos de coleta não são os mesmos.

    Nas pesquisas do IBGE quem responde ao questionário é o responsável pelo de

    domícilio ou, em sua ausência, quem possa responder. No Censo Escolar 2005 a

    instrução era para o adolescente a partir dos 16 anos ou os pais/responsáveis para

    alunos em idades inferiores. As pesquisas do IBGE são anônimas, as perguntas

    efetuadas por entrevistador. No Censo Escolar 2005 ocorreu auto-preenchimento,

    com identificação do respondente.

    •  O foco da discussão sobre o Censo Escolar 2005 tem recaído exclusivamente

    sobre os negros. Por exemplo, uma manchete afirma: “ O Censo permitirá conhecer

    a situação educacional dos negros”. Além de omitir os indígenas, este foco sustenta

    a versão dominante no país de que a desigualdade racial é um assunto de negros,

    excluindo, portanto, os brancos.

    •  Finalmente, ao adotar tal procedimento, o MEC/INEP desconsiderou o direito de

    crianças e adolescentes até os 15 anos de idade de expressarem sua voz sobre sua

    pertença racial, em desrespeito à Convenção dos Direitos da Crianças e ao Estatuto

    da Criança e do Adolescente (direito a expressar sua opinião).

    10 Além disso, Rocha (2005) observou na escola paulistana (a se verificar nas demais 215 mil escolasbrasileiras, ou em amostra) que nas 4ª e 8ª séries do ensino fundamental foram as próprias crianças commenos de 16 anos que preencheram a ficha; que tal ficha não estava sendo usada para preenchimento docadastro (que solicita tal informação) de modo sistemático e que o responsável por tal tarefa fornecia a

    informação mediante análise da foto do aluno. A prática do administrador é facilmente compreensível: oprograma de informática utilizado bloqueava a continuidade caso o campo relativo a cor/raça não fossepreenchido (Comunicação pessoal, Edmar Rocha, 05/09/2005).

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    11/45

      11

    3. Estudos, pesquisas e intervenções

    A produção acadêmica brasileira sobre educação e gênero foi objeto de dois

    estudos sistemáticos contemporâneos (Rosemberg, Piza, Montenegro, 1992;

    Rosemberg, 2001); o tema educação e negros foi objeto de revisão sistemática apenas

    no final dos anos 80 início dos 90 (Rosemberg, Pinto e Negrão, 1987; Barcelos, 1993)

    aguardando-se os resultados em andamento de estudos de Regina P. Pinto (2002); a

    literatura sobre educação e indígenas é mais recente (Kahn e Franchetto, 1994; Caplaca,

    1995).

    O interesse brasileiro pelos temas é recente e a produção ainda incipiente,

    ressentindo-se de arcabouço teórico e metodológico capaz de dar conta da

    complexidade da questão. Além disso, as pesquisas são pontuais, esporádicas sendo

    raros os grupos de pesquisa que vêm se dedicando com regularidade a essas linhas de

    pesquisa (Rosemberg, 2002; Pahim, 2002).

    No tocante aos estudos sobre relações de gênero e educação, observa-se um

    processo mútuo de rejeição: a produção feminista ignora a educação; a educação ignora

    os avanços dos debates teóricos e do conhecimento empírico sobre relações de gênero.

    A título de exemplo: dentre as 8.688 teses/dissertações indexadas pelo Banco de Dados

    da ANPEd (Associação Nacional de Pós-graduação em Educação) no período 1981-

    1998 apenas 2,7% delas versavam sobre relações de gênero. Além disso, nota-se uma

    forte tendência a serem “generalistas”, ou seja, não focarem o tema educação mas

    tratarem, de modo genérico, da “condição feminina” (Sponchiado, 1997; Rosemberg,

    2002). Algumas experiências de privilegiamento do tema em programas de pesquisa não

    surtiram o impacto esperado (Bruschini, 2002).

    Quanto ao tema educação e relações raciais, o panorama é ainda mais

    empobrecido, apesar de o movimento negro, historicamente, ter atribuído grandeimportância à educação como instrumento de mobilidade social dos negros (Pinto,

    1993) e encontrarmos indícios recentes de maior interesse.

    A este quadro deve-se acrescentar, face aos objetivos deste estudo, o

    pequeno interesse e aprofundamento na sistematização e interpretação de dados macro

    que se observa na educação. Na produção recente sobre raça e educação (década de 90),

    encontramos, via de regra, estatísticas educacionais usadas para enunciar (ou denunciar)

    desigualdades de acesso e permanência de negros e indígenas no sistema educacional ouo impacto da educação no processo de mobilidade social intergeracional (Pastore e

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    12/45

      12

    Silva, 2000), ou a associação entre nível educacional e renda. Apenas recentemente

    encontramos pesquisas filiadas a correntes da econometria que analisam o impacto das

    variáveis cor/raça e sexo no desempenho educacional (Kramer et al, 2000; Hasenbalg e

    Silva, 1992; Paes de Barros, 2002; Soares e Alves, 2002; Fernandes, 2004).

    Pouco se avançou, a partir de análises de dados macro, no conhecimento de

    variáveis associadas ao aproveitamento escolar (intra e extra escolares) para os

    diferentes segmentos raciais (Alves e Soares, 2002; Bonamino et al, 2004).

    3.1 Grupos de estudos e pesquisas

    Sobre educação e relações raciais alguns grupos e pesquisadores/as vêm

    mantendo – ou mantiveram – uma produção relativamente constante.

      Centro de Estudos Afro-asiáticos, no Rio de Janeiro, especialmente:

    Carlos Hasenbalg, Nelson do Valle Silva11, que vêm focalizando, mais especialmente, a

    educação da ótica da mobilidade social; Luiz Cláudio Barcelos (1988, 1992, 1993) que

    desenvolveu pesquisas tratando do fluxo escolar. Este grupo produziu e publicou vários

    trabalhos de análise de dados macro sobre as PNAD 76, 82, 87 e 1998.

      Fundação Carlos Chagas, especialmente Regina Pahim Pinto e Fúlvia

    Rosemberg, que têm se dedicado ao tema, procurando integrar a perspectiva de raça e

    gênero nos estudos sobre: livro didático (Pahim, 1987b; Pinto e Negrão, 1990);

    literatura infantil (Rosemberg, 1985), acesso e permanência na escola a partir de dados

    macro (Rosemberg, Pinto e Negrão, 1987); analfabetismo (Rosemberg e Piza, 1995);

    educação infantil (Rosemberg, 1992); condição domiciliar e escolar da criança pequena

    (Rosemberg e Pinto, 1997); revisão da produção acadêmica (Pinto, 1987, 1992, 2002).

      O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) vem, apenas nos

    últimos anos, dedicando atenção ao tema das desigualdades raciais no Brasil,

    desenvolvendo o programa de pesquisa iniciado em março de 2001, em parceria com oPNUD, e que conta com a participação de Ricardo Henriques, Sergei Soares e

    Alexandre Marinho. O texto de Ricardo Henriques (2001) Desigualdade racial no

    Brasil: evolução das condições de vida na década de 90, foi base para o relatório

    apresentado pelo Brasil à Conferência de Durban, nos aspectos relacionados ao

    segmento racial negro.

    11  O último estudo de mobilidade social de Nelson Valle e Silva foi publicado em parceria com JoséPastore (Pastore e Silva, 2000). O último artigo publicado por Hasenbalg e Silva sobre educação e raçadata de 2000.

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    13/45

      13

      No IBGE, o Departamento de População e Indicadores Sociais vem

    analisando dados coletados pelas PNADs e outras pesquisas desagregados por cor/raça,

    inclusive sobre educação. Ana Lucia Sabóia (2001) elaborou uma análise sobre

    educação e raça durante as conferências regionais preparatórias para a Conferência de

    Durban. Kaizô I. Beltrão vem, nos últimos anos, efetuando análises sobre gênero e raça

    a partir dos censos demográficos (Beltrão 2004; Beltrão e Teixeira, 2004). A ABEP

    (Associação Brasileira de Estudos Populacionais) realizou, em 2004, durante o Encontro

    Nacional importante mesa sobre Demografia da Educação (Marteleto e Miranda, 2004;

    Beltrão, 2004) onde foram apresentados trabalhos da perspectiva de raça e gênero.

      Em Salvador, o grupo Cor da Bahia vem desenvolvendo pesquisas sobre

    educação e raça, com destaque para os estudos de Dalcele Mascarenhas Queiroz (1999,

    2000) sobre o ensino superior, apoiados em dados macro sobre o estado e sobre a

    Universidade Federal da Bahia.

      A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialmente os

    professores Luiz Alberto Gonçalves12 e Nilma Lino Gomes (1999), vêm desenvolvendo

    pesquisas apoiadas em metodologias qualitativas sobre processos culturais intra-

    escolares e o magistério. A UFMG alberga, também, um dos raros grupos de pesquisa

    que vem incluindo a variável cor/raça nas pesquisas sobre os resultados do SAEB.

    Trata-se do Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais (GAME), coordenado por José

    Francisco Soares (Alves e Soares, 2002). A UFMG alberga, também, o CEDEPCAR

    que tem se dedicado ao tema (Marteleto e Miranda, 2004).

      Um pool de centros de pesquisas de universidades, com apoio do Pronex,

    Fundação Ford e Preal vem desenvolvendo estudos em avaliação educacional, via dados

    do SAEB, incluindo análise da variável raça (Bonamino, Franca e Alves, 2005).

      A Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) também conta com uma

    produção acadêmica contínua sobre o tema, graças à liderança da professora PetronilhaBeatriz Gonçalves e Silva (1999) (atualmente Conselheira do Conselho Nacional de

    Educação) que tem investigado sobre o pluriculturismo na educação.

      Florianópolis (Estado de Santa Catarina) sedia o Núcleo de Estudos

    sobre o Negro (NEN) que vem produzindo, sistemática e continuamente, material de

    divulgação dobre vários temas, inclusive educação.

    12 Sua dissertação de mestrado constitui uma das referências mais citadas na bibliografia sobre negros eeducação. Recentemente publicou O jogo das diferenças: o multiculturalismo e seus contextos (Gonçalves e Silva, 2000).

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    14/45

      14

      A Universidade de São Paulo abriga o MARI, núcleo de estudos sobre

    educação indígena. Dentre seus trabalhos destacam-se os de Silva e Grupioni (1995) e

    Caplaca (1995).

      Na Universidade Federal Fluminense, O Programa de Educação sobre o

    Negro na Sociedade Brasileira (PENESP) vem produzindo estudos, pesquisas e

    organizando cursos de especialização sobre relações raciais na educação.

      A ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação), a

    Ação Educativa com apoio da Fundação Ford vêm estimulando a produção de pesquisas

    via o Concurso Negro e Educação.

      O CEERT (Centro de Estudos das Relações do Trabalho e da

    Desigualdade) vem organizando um concurso nacional Educação para o Igualdade

    Racial, entre outras atividades voltadas para a educação.

    O tema relações de gênero e educação tem sido objeto de pesquisas sistemáticas,

    especialmente, em três grupos de pesquisas: o já citado da Fundação Carlos Chagas

    (Rosemberg 2001ª, 2001b, 2001c, 2001d); o da Faculdade de Educação da Universidade

    de São Paulo (USP) e o da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul (UFRGS)13.

    3.2 Ações governamentais

    As ações do governo brasileiro visando a igualdade de oportunidades de

    gênero e raça na educação são bastante recentes, datando da década de 1980, sendo

    conseqüência da rearticulação dos movimentos sociais durante o combate à ditadura

    militar e re-instalação de governos democráticos.

    Durante a década de 80, governos estaduais instalaram Conselhos de

    Mulheres e Conselhos da Comunidade Negra, “órgãos governamentais que foram

    verdadeiras escolas no trato da questão racial e de gênero no Estado, apesar de suasações terem sido pontuais e nunca terem conseguido entrar em forma permanente nas

    agendas dos governos estaduais” (Santos, 2001, p. 68).

    A Constituição de 1988 foi um marco no reconhecimento de igualdades de

    direito para os grupos subalternos, abrindo perspectivas mais incisivas de combate ao

    racismo (crime inafiançável) e de reconhecimento dos povos indígenas.

    Foi só a partir da Constituição de 1988 que se “reconhece aos índios a sua

    organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    15/45

      15

    originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (NEV, 2001, p. 5). Este

    fundamento foi imprescindível para a criação do Comitê Nacional de Educação

    Indígena. Atualmente, o sistema educacional brasileiro acata o bilingüismo, a

    especificidade e diferenciação da educação indígena, paradigma reconhecido pela nova

    Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

    Algumas iniciativas inovadoras foram assumidas pelo MEC nos últimos

    anos, reconhecendo e procurando enfrentar, de algum modo, as desigualdades raciais e a

    diversidade étnica na educação. Destacam-se: a elaboração das Diretrizes para a Política

    Nacional de Educação Escolar Indígena e do Referencial Curricular para as Escolas

    Indígenas; a introdução de temas transversais (sobre gênero e multiculturalismo) nos

    Referenciais Curriculares Nacionais. Além disso, o MEC criou a Comissão Nacional do

    Livro Didático que atenta para conteúdos abertamente racistas e sexistas nos livros

    didáticos que compra e distribui nas escolas públicas14. Mais recentemente a criação da

    SECAD (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade) no MEC

    vem impulsionando programas para a igualdade e diversidade racial.

    A SEPPIR (Secretaria de Promoção de Políticas para a Igualdade Racial)

    incluiu em seu programa de ação componentes relacionados à educação.

    Além das iniciativas governamentais, a partir dos anos 1970, nota-se a

    emergência de organizações não governamentais (ONGs) da comunidade negra, muitas

    delas atuando no setor da educação, especialmente na criação de cursos preparatórios ao

    exame vestibular que dão acesso ao ensino superior. Atuando em diferentes estados

    (São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia), tais iniciativas vêm contando

    com apoio da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, do Ministério da Justiça, do

    MEC e da UNESCO.

    Outras ONGs têm atuando em outros tipos de ação afirmativa visando o

    combate ao racismo em contexto escolar ou oferecendo melhores oportunidadesescolares a adolescentes negros (Geledes, em parceria com a Fundação Palmares e o

    Banco de Boston na implantação do Projeto Geração XXI). Dentre as fundações

    internacionais, destacam-se as ações da Fundação Ford.

    13 Especialmente os trabalhos de Marilia Carvalho, Claudia Vianna e Guacira Louro.14  Beisieguel (2000) alerta, porém, sobre a manutenção de representações discriminatórias epreconceituosas latentes. Silva (2005) aprofundou este tema, evidenciando a manutenção de padrãodiscriminatório em livros didáticos de leitura destinados à 4ª série do ensino fundamental.

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    16/45

      16

    O acesso ao ensino superior e o debate sobre cotas para estudantes não-

    brancos na universidade constituem os aspectos que mais têm incitado o debate nacional

    a partir dos anos 2000.

    Apesar desses esforços e de intensas reformulações nas políticas

    educacionais brasileiras nas últimas décadas – que acarretaram a quase universalização

    do ensino fundamental –, o país continua gerando desigualdades sociais intensas,

    inclusive educacionais. É o que será visto a seguir.

    4. Uma síntese de indicadores

    4.1 Composição da população brasileira

    Em 2003, estimava-se, no Brasil, uma população de 173,966 milhões de

    pessoas15, dentre as quais: 52,1% classificaram-se como brancas; 41,4% como pardas,

    5,9% como pretas (47,3% negras), 0,6% como amarelas e indígenas (Fonte: PNAD

    2003).

    As últimas décadas vêm assistindo ao envelhecimento da população

    brasileira, resultante da redução da fecundidade associada à queda da mortalidade. A

    estrutura etária não é exatamente a mesma para os diferentes segmentos raciais:

    proporcionalmente, o contingente de crianças é maior entre pardos do que entre brancos

    e pretos. “Outro aspecto digno de nota, mas extremamente preocupante, é o continuado

    aumento de mortes de jovens e adultos jovens, sobretudo do sexo masculino, por causas

    externas” (IBGE, 2004). Tal sobremortalidade masculina apresenta, também, diferencial

    racial (Tabela 1).

    Negros e brancos não se distribuem de modo equivalente pelo território

    nacional: os brancos são maioria nas regiões mais desenvolvidas do país (Sul e Sudeste)e os pardos são maioria nas regiões menos desenvolvidas do país (Norte e Nordeste);

    complementarmente, a maioria dos brancos residem no Sudeste e a maioria dos pardos

    residem no Nordeste. A distribuição dos pretos, pelo território nacional, não equivale à

    dos pardos, pois em sua maioria residem no Sudeste.

    A população brasileira, em sua grande maioria, reside em zonas urbanas

    (84,3%). Porém, notam-se pequenos diferenciais: os segmentos brancos e amarelos

    15 O Censo Demográfico de 2000 contabilizou 169.544.443 milhões de pessoas.

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    17/45

      17

    então sobrerepresentados em zonas urbanas e os pardos, sobrerepresentados em zona

    rural (PNAD 2003).

    A população negra (preta e parda) apresenta o maior contingente de pessoas

    indigentes e pobres do país: em 1999 “cerca de 34% da população brasileira vivia em

    famílias com renda inferior à linha de indigência (...) Os negros em 1999 representam

    45% da população brasileira, mas correspondem a 64% da população pobre e 69% da

    população indigente” (Henriques, 2001, p. 9, tabela 5). A sobrerepresentação de pobres

    e indigentes entre os negros se mantem constante mesmo quando se controlam outras

    variáveis associadas à pobreza: local e região de residência, sexo e idade.

    Henriques (1999) organizou os dados relativos à incidência da pobreza e

    indigência em 36 grupos compostos pelas três variáveis: cor/raça, sexo e idade (Tabela

    3, apud Henriques, 1999, p. 16). Os grupos com maior percentual de pobreza e

    indigência são os que agregam crianças de 0 a 6 anos pardas e pretas (seguidas do grupo

    etário de 7 a 14 anos), segmento da população usuária potencial de creches e pré-

    escolas, nível educacional que ostenta os piores indicadores: taxa de escolaridade

    inferior; jornada diária mais curta; custo aluno anual inferior (Rosemberg, 2002).

    Sabóia e Sabóia (2000), com base na distribuição dos índices de pobreza pelas faixas de

    idade, concluem que as crianças pequenas deveriam ter prioridade nas políticas sociais

    brasileiras inclusive nas educacionais, diferentemente do que vem ocorrendo com a

    prioridade atribuída aos programas para crianças do ensino fundamental. A atual

    proposta do FUNDEB, que exclui as creches, constitui uma evidência da pequena

    prioridade dada às crianças de 0 a 3 anos.

    Henriques (1999) observa, também, que a desigualdade de renda é mais

    intensa dentro do segmento racial branco. Assim, negros apresentam maior percentual

    de pobreza e indigência e menor diferenciação interna quanto aos rendimentos: os não

    pobres negros são menos ricos que os não pobres brancos.Tais indicadores demográficos e econômicos apresentam associação com os

    níveis de instrução e escolaridade da população, seja no sentido de determinação, seja

    no sentido de impacto ou, apenas, de associações.

    As estatísticas educacionais brasileiras apontam, nas últimas décadas, uma

    expansão do sistema educacional e, de modo consistente, melhores indicadores para as

    mulheres que para os homens, independentemente de sua cor/raça, local ou região de

    residência e nível de renda familiar. Também, de modo consistente, as estatísticas

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    18/45

      18

    educacionais evidenciam melhores indicadores para o segmento racial branco, mesmo

    quando se controlam local ou região de residência e nível de renda familiar.

    4.2 Analfabetismo e alfabetização

    Apesar de ter decrescido, o índice de analfabetismo brasileiro continua alto:

    16,7% na população de 5 anos e mais (Censo 2000).

    A comparação dos dados coletados desde o Censo de 1872 até 2000 sobre o

    analfabetismo masculino e feminino evidencia uma evolução quase que perfeitamente

    paralela, até a década de 40 em detrimento das mulheres, quando, então, a convergência

    é notável (Tabela 2). Os diferenciais sexuais se mantêm relativamente altos até 1940 (na

    ordem de 8 pontos percentuais) sempre em detrimento das mulheres e vão se reduzindo

    a partir de então. A partir do Censo de 1991, o índice de analfabetismo dos homens

    sobrepujou o das mulheres na população de 5 anos e mais. Em 2000, neste grupo etário,

    17,4% dos homens e 16,1% das mulheres declararam-se analfabetos.

    O perfil do analfabetismo feminino é praticamente idêntico ao masculino:

    mulheres e homens provenientes de estratos de baixos rendimentos, negros(as),

    residindo na zona rural e vivendo no Nordeste enfrentam as mais árduas barreiras para

    se alfabetizarem (Rosemberg e Piza, 1995/1996). Diferenças entre os índices de

    alfabetização  masculino e feminino são observadas apenas em função da idade: na

    população jovem entre 15 e 19 anos, faixa etária mais alfabetizada do país, as mulheres

    apresentam índices superiores aos dos homens (96,5% e 93,5% respectivamente, Censo

    2000); na população mais idosa (60 anos e mais), segmento menos alfabetizado, os

    índices de alfabetização masculinos são superiores aos femininos: 67,7% e 62,5%

    respectivamente (Censo Demográfico 2000, Gráfico 1).

    Os melhores índices femininos de alfabetização entre os mais jovens podemser explicados pelo melhor aproveitamento das meninas e adolescentes à escolaridade.

    Os melhores índices masculinos de alfabetização entre os mais idosos podem ser

    explicados como uma herança do passado, quando o acesso das mulheres à escola era

    mais restrito, associada a sua não correção no presente graças à inexistência ou

    insuficiência de programas de alfabetização destinados e adequados à população

    feminina adulta e idosa (Carvalho e Di Pierro, 2000).

    O perfil de analfabetismo brasileiro por cor/raça diverge profundamente doperfil por sexo: negros (pretos/pardos) constituem historicamente o maior contingente

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    19/45

      19

    de analfabetos, tanto em números relativos quanto em números absolutos (Rosemberg e

    Piza, 1995). No período 1993-2003 ocorreu uma redução ligeiramente mais acentuada

    da taxa de analfabetismo para pretos e pardos na faixa de idade de 15 anos e mais

    (IBGE, 2004, p. 316). Em 2003, os índices de analfabetismo para a população de 15

    anos e mais eram 7,1% para brancos, 16,9% para pretos e 16,8% para pardos. Nos

    estados do Nordeste, os índices de analfabetismo podem ser intensamente altos, como

    na Paraíba (40,2% entre os pretos), no Ceará (40,1% entre pretos e 30,3% entre pardos)

    e em Alagoas (48,7% entre pretos e 33,5% entre pardos). Tais dados, como outros,

    informam a atenção que se deve dar aos diferenciais regionais quando se analisam as

    oportunidades educacionais para negros no Brasil.

    4.3 Média dos anos de estudos

    A média dos anos de estudos da população brasileira tendo 10 anos e mais

    permanece baixa (6,4 anos) apresentando forte variação por: cor/raça, região e zona de

    residência (6,9 em zona urbana e 3,8 em zona rural). A média dos anos de estudos das

    mulheres ultrapassou a dos homens nos anos 90 e esta superioridade se mantem para os

    diversos segmentos raciais. A média dos anos de estudos para brancos tendo 10 anos e

    mais em 2003 era 7,3, para pretos 5,6 e pardos 5,4 (Tabela 1). Novamente, os estados do

    Nordeste apresentam os piores indicadores para prestos e pardos: Alagoas (3,2 anos em

    média para pretos e 3,9 para pardos), Paraíba (3,4 para pretos) e Piauí (3,7 para pretos).

    Henriques (2001) efetuou uma análise diacrônica do número médio dos anos

    de estudos da coorte de 25 anos, por cor/raça, com base nos dados da PNAD 99.

    Observou um aumento gradual e contínuo dos anos médios de estudos, porém o padrão

    da desigualdade se mantém constante entre as diversas gerações (2 anos em média).

    Hasenbalg e Silva (2000), analisando dados das PNADs 76, 86 e 98, observam que, no

    período, ocorreu uma convergência na média dos anos de estudos entre brancos e não-brancos na população de 15 anos e mais (Gráfico 2).

    4.4 Escolaridade e fluxo escolar

    O sistema educacional brasileiro atual apresenta intensa desigualdade racial

    no acesso aos níveis médio e superior, com privilegiamento do segmento racial branco.

    O diferencial entre estudantes homens e mulheres no sistema formal de ensino

    brasileiro, porém, não é intenso, atinge de modo diferente as diferentes idades da vida e

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    20/45

      20

    etapas escolares, e transparece mais na progressão das trajetórias escolares de homens e

    mulheres. A trajetória escolar das mulheres é menos acidentada que a dos homens.

    O diferencial racial nas taxas de escolarização varia conforme a idade: para

    crianças de 5 até os 14 anos as diferenças são reduzidas, crescem para os adolescentes

    de 15 a 17 anos e voltam a se equiparar para os jovens de 20 a 24 anos (Tabela 2).

    Isto indica que aproximadamente um número equivalente de crianças,

    adolescentes e jovens brancos e negros estão na escola. A grande diferença ocorre na

    distribuição pelos níveis de ensino, em decorrência da defasagem série idade.

    O fluxo escolar apresenta estrangulamento equivalente para ambos os sexos

    e segmentos raciais decorrente de reprovação, de evasão/expulsão a partir do ensino

    médio, porém, o dos homens e dos negros é mais acidentado. Em média, um/a

    brasileiro/a necessita de 10,4 anos para concluir as 8 séries do ensino fundamental, o

    que significa uma taxa de eficiência de 0,78 (MEC/INEP, 2000). Uma tradução deste

    indicador pode ser captada na defasagem série-idade.

    A defasagem série-idade é sempre menos intensa para as mulheres que para

    os homens em ambos os segmentos raciais e em todos os decis de renda familiar

    (Gráfico 3). Apesar dessa configuração (conhecida há muito tempo), circula, no país e

    fora do país, um modelo “associativista” sobre desigualdades educacionais brasileiras

    que não parece sustentar-se em base empírica, assumindo que cor e sexo se associam

    linearmente, considerando-se, erroneamente, que meninas/ mulheres negras seriam

    aquelas que apresentariam piores indicadores educacionais. Algumas pesquisas já

    mostraram que mulheres negras, para quase todas as faixas etárias, apresentam melhores

    indicadores educacionais que homens negros, da mesma forma que mulheres brancas

    apresentam melhores indicadores educacionais que homens brancos (Barcelos, 1993;

    Rosemberg, 1993; Silva et al, 1999; Beltrão e Teixeira, 2004)16. Marteleto e Miranda

    (2004) mostram que a escolaridade média das mulheres negras adultas ultrapassou a doshomens antes mesmo que entre brancos. Com efeito, analisando os anos médios de

    escolaridade por raça e sexo em oortes de adultos (25 a 50 anos), entre 1937 e 1969, os

    pesquisadores do CEDEPLAR mostram que a inflexão da curva das mulheres negras

    ocorre para a coorte 1952 e das mulheres brancas apenas na de 1958 (Marteleto e

    Miranda, 2004, p. 11).

    A desagregação de dados sobre defasagem série-idade por renda domiciliar

    16 Esta tendência não parece ser válida para a população indígena.

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    21/45

      21

    apresenta resultados na mesma direção apontada para raça: para todos os decis de renda

    e faixas etárias, as meninas e moças apresentam menor distorção série-idade média que

    os meninos e rapazes. Ela é mais acentuada nos decis inferiores de renda e para as

    pessoas de maior idade (18 anos). Nestes grupos, observamos uma importante inflexão

    da renda familiar pelo sexo: as moças de 18 anos pertencentes ao segundo decil de

    renda (portanto dentre as mais pobres) apresentam menor defasagem série/idade que os

    rapazes de mesma idade provenientes de famílias situadas no quarto decil de renda. Ou

    seja, as moças apresentam resultados equivalentes aos dos rapazes situados dois decis

    de renda acima de seu nível econômico. Em suma, a proporção ligeiramente superior de

    estudantes entre homens, apontada anteriormente, parece decorrer de seus passos serem

    mais lentos que os das mulheres, pois permanecem por mais tempo no sistema escolar

    para percorrerem trajeto equivalente.

    Os obstáculos enfrentados por crianças negras, e especialmente as residentes

    no Nordeste, pobres e meninos, no sistema escolar se inicia muito cedo: em decorrência

    de um processo de expansão antidemocrático, a baixo investimento do Estado em seu

    custeio, a EI brasileira vem “reprovando” crianças. Tal deformação do sistema, que vem

    se amenizando nos últimos anos, atinge especialmente crianças negras, pobres, do

    Nordeste e meninos. Como até 1987, este dado não era processado pelo IBGE nos

    Censos Demográficos e nas PNADs, considerava-se que as crianças negras ingressavam

    na escola em idade mais avançada que as crianças brancas (Hasenbalg e Silva, 1990;

    Rosemberg et al 1987), quando, na verdade, em número expressivo (até 1995 estimava-

    se mais de um milhão de crianças), permaneciam retidas no pré-escolar.

    A literatura brasileira dos anos 1980, especialmente os estudos baseados na

    análise do fluxo escolar (Fletcher e Ribeiro, 1987), evidenciou o efeito cumulativo, e

    não corretivo, da repetência escolar: a criança que repete de ano tem maior

    probabilidade de repetir de ano novamente que a criança que não repete de ano. O efeitoacumulado de sucessivas repetências escolares na trajetória individual, associado às

    menores oportunidades históricas de acesso à educação para o segmento racial negro,

    faz com que a variável cor/raça tenha um forte peso na explicação da probabilidade de

    uma pessoa terminar o ensino superior. (Soares, 2001).

    A literatura chama atenção, também, sobre dois outros aspectos de

    diferenciação entre os sexos e os segmentos raciais: resultados nas provas de português

    e matemática (SAEB). De um modo bastante consistente, coincidindo com resultados

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    22/45

      22

    internacionais, as mulheres apresentam melhor desempenho nas provas de língua

    portuguesa e pior desempenho em matemática (Tabela 3). Os dados desagregados por

    cor/raça evidenciam, também, melhores resultados para os alunos brancos, mesmo

    quando se controlam o nível sócio-econômico da família (Soares et al, 1999; Alves e

    Soares, 2002; Bonamino et al, 2005).

    A outra diferenciação refere-se aos ramos de ensino, especialmente no

    ensino médio e superior. De há muito nota-se uma tendência a que mulheres prossigam

    estudos propedêuticos e rapazes cursos profissionalizantes, no ensino médio

    (Rosemberg, 2001). A subrepresentação de mulheres nos cursos profissionalizantes vem

    sendo apontada de modo sistemático nos últimos anos (Rosemberg, 1993; Lavinas,

    1992. Tabela 13). As mulheres tendem a prosseguir, no ensino superior, carreiras de

    menor prestígio. Várias carreiras vêm se feminizando no Brasil (como a odontologia),

    porém, notando-se duas extremidades (as masculinas e as femininas) que se mantêm

    intactas. Do lado masculino as engenharias (acima de 70% de estudantes homens) e do

    lado feminino serviço social, pedagogia, enfermagem e psicologia com mais de 90% de

    estudantes mulheres (Censo 2000, apud Guedes, 2004, p. 11).

    Quanto à diferenciação de carreiras no ensino profissional e superior em

    função da cor/raça dos estudantes recente estudo de Beltrão e Teixeira (2004)

    evidenciam padrão equivalente ao feminino. Em análise sustentadas nos Censo

    Demográficos, Beltrão e Teixeira (2004, p. 35 e 36) concluem: “o que podemos

    depreender dos dados diferentes grupos de cor/raça nas carreiras universitárias é que

    essa inserção ocorre de alguma forma espelhando a escala de ordenação de participação

    por sexo: em geral carreiras mais masculinas têm uma participação menor de pretos e

    pardos e carreiras mais femininas, uma participação maior desses grupos.

    Observa-se que as últimas reformas de ensino, especialmente aquelas

    relativas à expansão do ensino fundamental e à correção do fluxo escolar, ampliaram asoportunidades de acesso á escola aos homens. Isto é, o incremento da taxa de

    escolaridade dos homens foi superior ao das mulheres no período 1985-

    1999(Rosemberg, 2001). Porém, as mulheres permanecem galgando níveis superiores

    de escolaridade que os homens. Sobre os segmentos raciais há alguma evidência que as

    reformas dos anos 90 ampliaram mais a taxa de escolaridade de negros, que a de

    brancos, na faixa etária de 7 a 13 anos (Henriques, 2001).

    Um indicador importante do atraso escolar de pretos e pardos, quandocomparados a brancos, provém da análise do nível educacional em que se encontram

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    23/45

      23

    estudantes tendo entre 18 e 24 de idade: entre os brancos, 10,1% se encontram no

    ensino fundamental, 23,1% no ensino médio, 4,9% no pré-vestibular e 61,4% no ensino

    superior. Entre os negros (pretos e pardos), 29,0% se encontra no ensino fundamental,

    42,9% no médio, 4,6% no pré-vestibular e 21,6% no superior (PNAD 2003).

    Os estudos sobre desigualdades de oportunidades educacionais, no Brasil,

    têm focalizado pouco a Educação Infantil (EI). Isto, talvez, porque o diferencial racial

    no acesso à EI seja pequeno. Mas o pequeno acesso à EI, especialmente às creches,

    compartilhado entre crianças brancas e negras, constitui, sem dúvida, um forte indicador

    de baixas oportunidades educacionais aos segmentos negro e branco.

    5. As interpretações

    A carência de estudos empíricos confirmados e a fragilidade de modelos

    teóricos sobre educação e desigualdades de gênero e raça tem permitido a circulação de

    interpretações simplificadoras, baseadas no senso comum e, muitas vezes,

    estigmatizadoras de famílias e crianças pobres (Rosemberg e Andrade, 1999;

    Rosemberg e Freitas, 2001). O repertório de interpretações não é o mesmo no que diz

    respeito às desigualdades de gênero e raça, com exceção da imputação ao “trabalho

    precoce” a função de bode expiatório das iniqüidades do sistema de ensino.

    Quadro 1

    Interpretações do senso comum e contra-argumentos sobre desempenho escolar

     Explicações Contra-argumentos

     Entram na escola mais

    tarde;

      Coleta inadequada de dados antes de 1987; nota-se repetência

    desde a EI (Rosemberg, 1992, 1999, 2002)

     Residem em regiões maispobres;

      Atraso escolar persistente entre os negros em Estados eRegiões mais desenvolvidas (Rio de Janeiro e São Paulo).

    Aprofundar (Barcelos, 1993; Rosemberg et al, 1987).

     São provenientes de

    famílias mais pobres

      Atraso persistente entre os negros quando se controla o nível

    de renda da família (Alves e Soares, 2002; Rosemberg et al,

    1987).

     Trabalham mais e mais

    cedo;

      Conceituação de trabalho infantil;

      Atraso persistente entre os negros quando se controla o

    trabalho (Rosemberg et al, 1987);

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    24/45

      24

      Discutir a associação causal “trabalha e abandona a escola”;

      Associação não é linear entre nível de renda e participação no

    mercado de trabalho (Barros e ___; Rosemberg e Freitas,

    2001). Aprofundar.

     Gravidez precoce   Rever a causação linear “engravida e sai da escola”

    Dentro da lógica argumentativa, a erradicação do trabalho infanto-juvenil

    permitiria que rapazes atingissem os mesmos patamares de escolaridades que as moças

    e que negros e pobres atingiriam os mesmos patamares de escolaridades que brancos e

    não pobres.

    Em estudos recentes (Rosemberg , 2001; Rosemberg e Freitas, 2002)

    apontamos falácias e riscos destas interpretações: de um lado, tais interpretações não sesustentam em base empírica; de outro, elas reificam o trabalho infanto-juvenil e

    essencializam as diferenças entre homens e mulheres. Neste aspecto, nota-se, no Brasil,

    grande semelhança entre as interpretações avançadas pelo movimento de mulheres, pelo

    governo brasileiro e pelo Banco Mundial/BM (Rosemberg, 2001) para explicar porque

    as mulheres estariam se saindo melhor que os homens no sistema educacional. Destaco,

    a seguir, a interpretação do BM no relatório de 2000 sobre ensino médio brasileiro.

    Nesse documento (Banco Mundial, 2000), pode-se ler que os estudantes desexo masculino “perdem terreno” que “ficam para trás” em relação às mulheres e que

    elas “estão dominando” a educação. Para o BM, tal tendência - “promissora” para as

    mulheres, mas “inquietante” para os homens - decorre, em última instância, de que os

    meninos deixam a escola mais cedo para entrar no mercado de trabalho.

    Apesar de reconhecer determinações internas à escola (“enfoque tendencioso

    dos professores”), e pressões externas – “enquanto a pressão sobre os meninos para

    entrar no mercado de trabalho leva muitos a abandonar a escola, muitas meninascontinuam na escola, uma vez que tendem a fazer trabalhos domésticos que oferecem

    horário mais flexível, permitindo-se assim permanecer na escola” (Banco Mundial,

    2000, p. 37)17  – parece possível identificar, no documento do Banco Mundial,

    explicações essencialistas (como Bouchard afirma identificar no Quebec) ligadas à

    natureza masculina: “maior tendência [entre rapazes] para tomar riscos e mais

    independência financeira” (Banco Mundial, 2000, p. 3, grifo meu). Alerto sobre os

    17 As taxas de escolaridade de meninos e meninas, moças e rapazes, brancos(as) e negros(as) são muitosemelhante (gráfico 2).

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    25/45

      25

    perigos desta generalização, passível de ser associada a problemas de caráter da pessoa.

    Ora, como se observa tal tendência desde uma idade muito precoce (como vimos a

    partir da pré-escola), pode-se inquietar com a estigmatização de meninos, adolescentes e

    rapazes e que, mão por acaso, são em sua maioria negros.

    Uma série de informações macro seriam ainda indispensáveis para poder

    avançar na compreensão do quadro educacional brasileiro em uma perspectiva de

    gênero e raça, evidentemente, complementadas por pesquisas que destrinchassem

    valores e significados atribuídos à educação formal por mães, pais, professores(as),

    trabalhadores(as) do ensino, alunos(as), empregadores.

    5.1 Relações de gênero e educação

    Alguns países, sobre os quais tenho podido acompanhar a bibliografia, como

    a França e os EUA e a Inglaterra, apesar de apresentarem produção acadêmica longe de

    ser satisfatória para os (as) pesquisadores (as), contam com uma massa de informações

    empíricas invejável sobre as desigualdades de gênero na escola. Por exemplo, a questão

    do subrendimento das mulheres em provas de matemática tem motivado inúmeras

    pesquisas, que se preocupam com um leque amplo de temas desde a análise de itens das

    provas até o processo de socialização de crianças pequenas no uso do espaço (Duru-

    Bellat, 1990).

    É verdade, como afirmou Silva (1993, p. 70), que sobre as desigualdades de

    gênero, “os dados empíricos são intrigantes, inconsistentes e parecem desafiar a

    explicação teórica (...), os recursos teóricos existentes parecem limitados e

    inconsistentes”. Duru-Bellat (1990), referindo-se à produção francesa, também, assinala

    tal carência teórica – “como se estas diferenças remetessem a fenômenos não apenas

    evidentes mas transparentes”- seja quando [os/as autores/as] fazem apelo a “uma

    Psicologia espontânea, um tanto tautológica” ou a uma “Sociologia do senso comumfatalista, invocando a manutenção de mentalidades”. Como vimos, nesses casos as

    lacunas são preenchidas, muitas vezes, pelas posições estratégicas que se quer

    defender18.

    18 Um exemplo quase anedótico provem do famoso relatório preparado por pesquisadoras do WellesleyCollege Center for Research on Women (AAUW, 1992), onde interpretam maior número de meninos

    encaminhados a programas de educação especial como... uma discriminação contra as meninas. “En laactualidad, por ejemplo, a las niñas se les identifican con mucho menos frecuencia que a los varonescomo candidatas para educación especial” (p. 

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    26/45

      26

    Penso, também, que a situação educacional de homens e mulheres constitui

    uma esfinge para teorias feministas universalistas: a dominação de gênero assume

    contornos equivalentes em todas as instituições sociais? Em todas as fases da vida?

    Traduz-se sempre em discriminação contra as mulheres, ou a dominação de gênero pode

    traduzir-se em indicadores sociais que não discriminam as mulheres?

    Enguita (1996), Baudelot e Establet (1992) assumem claramente a posição

    de que, frente ao mercado de trabalho e à família, a escola seria uma instituição menos

    sexista. Este modelo interpretativo assume pelo menos dois componentes que me

    parecem contra corrente às interpretações dominantes (e do senso comum): aceitam que

    as instituições sociais podem ser regidas por lógicas não idênticas; aceitam que as

    relações de dominação de classe, raça, gênero e idade podem atuar de modo não-

    sincrônico (Enguita, 1996) na história social de modo geral, ou de uma instituição em

    particular (Rosemberg, 1999).

    Haveria que destacar, ainda, neste intento interpretativo, a dupla função das

    instituições socializadoras de crianças e adolescentes, especialmente a da escola: a

    preparação da criança e do adolescente para a vida adulta que terão e a construção da

    infância e da adolescência como categorias de idade (Rosemberg, 1985). Ora, como

    procurei mostrar em outro lugar (Rosemberg, 1997), as teorias feministas parecem

    assentar-se em modelo que toma as relações masculino-feminino adultas como seu

    paradigma. Ao tratar da educação para as diferentes fases da vida como uma só e única

    instituição, o modelo teórico expõe suas brechas. É possível que a escola da criança não

    provenha da mesma matriz institucional que a escola do jovem e do adulto.

    Não obstante as insuficiências da base empírica de nossas pesquisas, e os

    limites teóricos, que compartilhamos com outros países, encontramos no Brasil algumas

    linhas interpretativas que não escamoteiam os dados e que enfrentam sua complexidade

    (Carvalho, 2000; Carvalho e Di Pierro, 2000; Dias da Silva et al, 1999; Madeira, 1996;Rosemberg, 1989 e 1999; Silva, 1993 para citar alguns), procurando articular práticas

    socializadoras familiares e escolares, desigualdade de gênero no mercado de trabalho e

    no espaço doméstico, escolha ativa de mulheres e homens entendidos como atores

    sociais, que elaboram projetos, constroem expectativas de vida e de oportunidades no

    mercado de trabalho analisado, também, sob a ótica da segregação sexual19. É apenas

    muito recentemente que minhas preocupações com o destino educacional de meninos e

    19 Em outro lugar, efetuei uma análise dos projetos financiados pelo BM na educação brasileira da óticadas relações de gênero (Rosemberg, 2001).

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    27/45

      27

    rapazes vem sendo compartilhado por outros pesquisadores (Marteleto e Miranda, 2004;

    Beltrão e Alves, 2004).

    Porém, a ausência de acompanhamento sistemático da área produz dados

    publicados pobres, pobreza reforçada pela pequena retaguarda de produção acadêmica,

    conjunto que gera, no mais das vezes, interpretações pífias ou equivocadas, sobre

    informações truncadas ou desatualizadas, circulação de interpretações do senso comum,

    que passam a assumir o estatuto de teorias. Generalizações abusivas que, por vezes,

    tendem a naturalizar o que é construção social e histórica, tornando-se alimento rico

    para produção ideológica que, por sua vez, tende a reforçar dominação de gênero e de

    raça (Thompson, 1995). Ora, uma das vocações das Ciências Humanas seria

    precisamente a de romper com as evidências do senso comum, o qual lança, de bom

    grado, um olhar essencialista sobre a realidade social (Duru-Bellat, 1990): o bom

    selvagem, a criança, a mulher e agora... o homem pobre e negro, praticamente

    sinônimos de delinqüentes.

    5.2 Relações de raça

    No que diz respeito às interpretações sobre os diferenciais raciais na

    educação novamente encontra-se imputação, direta ou indireta, ao trabalho infanto-

     juvenil (BM, 2000; Henriques, 2001).

    Para entender o processo de desigualdade educacional tenho levantado três

    ordens de explicações complementarmente relacionadas ao racismo brasileiro: práticas

    preconceituosas que ocorrem dentro da escola (plano simbólico); concentra diferencial

    racial na distribuição de renda, segregação espacial de populações negras nos espaços

    geográficos brasileiros (plano material). Considero que as articulações dessas

    explicações nos diferentes níveis escolares. Talvez seu poder explicativo seja maior para

    a compreensão de desigualdades educacionais no ensino fundamental.Regina P. Pinto (1993, p. 26), resumindo resultados de pesquisa e denúncias

    de lideranças negras, refere-se à escola como um “ambiente hostil” a crianças negras ou

    pelo menos indiferente ao racismo que ocorrem tanto na instituição escolar, quanto na

    sociedade abrangente. “Este ambiente hostil tem sido detectado no currículo, no

    material didático das mais diferentes disciplinas, nas relações entre alunos e nas

    relações entre professores e alunos” (Pinto, 1993, p. 26).

    Assim, pelo menos desde a década de 70, foram sendo realizadas pesquisassobre livros didáticos de diferentes disciplinas e níveis escolares e de literatura infanto-

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    28/45

      28

     juvenil que evidenciam a forte discriminação racial aí veiculada, que se manifesta desde

    a menor representação de personagens negros a servirem de modelo, passando por sua

    desqualificação até a omissão quanto à contribuição do negro na formação cultural do

    Brasil (Rosemberg et al 2003; Silva, 2005)

    Pesquisas realizadas dentro do espaço escolar salientam, do mesmo modo,

    práticas discriminatórias, por meio das quais os negros são percebidos de modo

    negativo no plano de suas possibilidades intelectuais (Figueira, 1990). Entre os alunos,

    práticas de exclusão de colegas negros e apelidos pejorativos não são raros,

    comportamentos estes, na maior parte das vezes, ignorados pelos professores

    (Cavalleiro, 1999; Figueira, 1990; Niemeyer, 2002; Fazzi, 2002).“Ao que tudo indica, a

    escola, que poderia e deveria contribuir para modificar as mentalidades anti-

    discriminatórias ou pelo menos para inibir as ações discriminatórias, acaba contribuindo

    para a perpetuação das discriminações, seja por atuação direta de seus agentes, seja por

    sua omissão perante os conteúdos didáticos que veicula, ou pelo que ocorre no dia-a-dia

    da sala de aula” (Pinto, 1993, p.27). Além disso, nota-se pequeno empenho de instâncias

    governamentais e privadas de aprimorarem a formação de professoras no tocante aos

    direitos humanos Pinto, 1999).

    Freqüentando um ambiente hostil que desqualifica a identidade racial,

    crianças/adolescentes negros podem recorrer a práticas de resistência para lhes fazer

    face, que vão da passividade ao enfrentamento agressivo (geralmente condenado pelos

    pais) com conseqüências importantes, tanto para seu equilíbrio psíquico, sua auto-

    imagem quanto para seu aproveitamento escolar (Teixeira, 1992).

    Tentando compreender o menor aproveitamento escolar de crianças e

    adolescentes negros no plano material, tenho destacado os diferenciais de renda entre

    brancos e negros e levantado a hipótese de segregação racial no Brasil que, por não ter

    nunca adquirido os contornos legais e formais do sistema Jim Crown norte-americanoou do apartheid   sul-africano, isto é, por apresentar-se de forma mais fluída, é de mais

    difícil captação. No caso brasileiro, a segregação espacial se articularia à desigualdade e

    à segregação econômica observada em nossas sociedades latino-americanas.

    Este argumento assenta-se na intensa desigualdade regional (educacional e

    econômica) em algumas observações de que os equipamentos escolares freqüentados

    por crianças brancas e negras, de mesmo nível econômico, não se equivalem totalmente.

    Em estudos anteriores (Rosemberg, Pinto e Negão, 1987; Rosemberg, 1999) haviaapontado algumas tendências de que crianças negras freqüentariam escolas de pior

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    29/45

      29

    qualidade que crianças brancas, mesmo controlando-se o nível econômico da família:

    escolas com maior número de horas; escolas com professores com pior qualificação.

    Mais recentemente, Soares e colaboradores (1999), com base nos dados do

    SAEB, trazem uma informação de muito interesse: encontraram uma associação

    negativa entre desempenho do aluno da 8ª série em matemática e cor/etnia (desfavorável

    aos negros) tanto do aluno quanto do professor e diretor (grifos meus). Os autores

    sugerem como interpretação: “Quanto ao professor e o diretor, seria importante verificar

    se, neste caso, não se trata apenas, de que estes professores e diretores negros estão

    alocados a escola que, mesmo após a consideração de fatores sócio-econômicos, ainda

    têm pior prognóstico de desempenho” (Soares et al, 1999, p. 15).

    Estou sugerindo, no intuito de compreender mediadores da desigualdade

    racial no sistema educacional brasileiro, a possibilidade de que atuem mecanismos

    inversos aos que se encontram habitualmente no discurso de educadores: não seria a

    condição econômica que nivelaria a população negra, mas a pertinência racial negra

    que, na ótica do branco, nivelaria as oportunidades de acesso e permanência no sistema

    educacional, tratando a população negra indistintamente como pobre. Tal hipótese

    encontra suporte nos estudos sobre discriminação racial no Brasil, quando os autores

    apontam que brancos não reconhecem como iguais (portanto, discriminam) pessoas

    negras que ascenderam socialmente (Fernandes, 1984; Hasenbalg, 1979).

    É possível, também, que, diante da discriminação a que estão submetidas,

    famílias negras de melhor nível sócio-econômico tendam a viver em áreas mais pobres,

    ou a se servirem de equipamentos sociais utilizados por famílias brancas de nível sócio-

    econômico inferior. Este tipo de convívio poderia, em princípio, diminuir tensões

    provenientes do enfrentamento racial, pois não só a chance de encontrar famílias negras

    são maiores, como também as diferenças sócio-econômicas poderiam, em parte,

    amenizar a explicitação mais aberta de preconceito racial nas relações interpessoais20.Além disso, não podemos esquecer da intensa desigualdade regional que caracteriza o

    Brasil: são os estudos e regiões que apresentam o maior percentual de pretos e pardos os

    que apresentam os piores indicadores educacionais.

    Parece-nos que a hipótese de segregação espacial proposta pode fornecer

    importantes pistas para a compreensão e para a correção dos mecanismos de

    20 Guimarães (2002) efetua interessante e importante estudo sobre insulto racial, mostrando sua incidência(através de queixas registradas): “ocorrem com mais freqüência em âmbitos em que as relações sociaisestão mais intensas e também mais formalizadas...” (2002, p. 186).

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    30/45

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    31/45

      31

    Gráfico 1Porcentagem de analfabetos na população masculina e feminina

    de 5 anos ou mais. Brasil, 1872 a 1999

    16,1

    25,8

    26,6

    40,9

    46,5

    53,2

    61,362,5

    68,7

    80,880,2

    15,3

    25,0

    26,6

    41,6

    49,1

    57,2

    66,7

    70,6

    77,4

    89,688,5

    0

    10

    20

    30

    40

    50

    60

    70

    80

    90

    100

       1   8   7   2

       1   8   9   0

       1   9   2   0

       1   9   4   0

       1   9   5   0

       1   9   6   0

       1   9   7   0

       1   9   8   0

       1   9   8   5   *

       1   9   9   1

       1   9   9   9   *

    Homens

    Mulheres

     

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    32/45

      32

    Gráfico 2Número médio de anos de estudo – evolução por cohorte

    Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1999, apud Henriques

    (2001).Nota: * A população negra é composta por pardos e pretos

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    33/45

      33

    Gráfico 3Defasagem idade-série média* na faixa etária de 10 a 18 anos, segundo a raça e sexo.

    Brasil, 1999.

    0,0

    0,5

    1,0

    1,5

    2,0

    2,5

    3,0

    3,5

    4,0

    4,5

    5,0

    10 11 12 13 14 15 16 17 18

       D  e   f  a  s  a  g  e  m    i

       d  a   d  e  -  s   é  r   i  e  m

       é   d   i  a

    Homens negros

    Mulheres negras

    Homens brancos

    Mulheres brancas

    Idade

     Fonte: PNAD 1999. Exclusive população rural da região Norte. Dados processados por Sergei Soares(IPEA).* Defasagem idade-série média está definida como: idade-série-7 (em anos).Nota: com exceção da população rural da região Norte.

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    34/45

      34

    Tabela 1População por cor segundo grandes regiões. 2003.

    Branca Preta PardaNorte 26,6 3,9 69,0Nordeste 28,6 6,4 64,6Sudeste 62,0 6,9 30,3Sul 82,3 3,7 13,4Centro-oeste 43,0 4,5 51,8Brasil 52,1 5,9 41,4

    Fonte: PNAD 2003 (apud IBGE, 2004, p. 318).

    Tabela 2

    Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos e mais, por cor, segundo as grandes regiões.2003.Total Branca Preta Parda

    Norte 10,1 7,0 14,0 11,0Nordeste 23,2 17,7 27,0 25,2Sudeste 6,8 5,0 12,1 9,5Sul 6,4 5,2 12,0 12,1Centro-oeste 9,5 6,9 15,1 11,2Brasil 11,6 7,1 16,9 16,8

    Fonte: PNAD 2003 (apud IBGE, 2004, p. 318). 

    Tabela 3Média dos anos de estudos da população de 10 anos e mais por cor segundo as grandes regiões.

    2003.

    Total Branca Preta PardaBrasil 6,4 7,3 5,6 5,4Norte 6,4 7,2 5,9 6,1Nordeste 5,1 6,0 4,8 4,7

    Sudeste 7,1 7,7 5,9 6,1Sul 7,0 7,2 5,8 5,6Centro-oeste 6,6 7,5 6,0 6,0

    Fonte: PNAD 2003 (apud IBGE, 2004, p. 318). 

  • 8/18/2019 Desigualdades de Raça e Gênero No Sistema Educacional Brasileiro - Fúlvia Rosemberg

    35/45

      35

    Tabela 4Taxa de escolarização das pessoas de 5 a 24 anos de idade, por cor/raça e grupos de idade

    segundo as grandes regiões. 2003.

    Brancos Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

    5 e 6 80,6 73,6 84,4 84,8 71,4 76,07 a 14 98,1 97,1 96,6 98,7 98,3 97,615 a 17 85,6 83,9 83,5 87,7 82,8 86,418 e 19 52,9 57,6 58,7 52,3 48,0 56,720 a 24 29,9 32,6 33,2 28,6 30,0 30,8

    Negros5 e 6 77,0 72,3 79,7 79,8 65,7 65,87 a 14 96,4 95,5 95,8 97,4 96,8 96,715 a 17 79,2 80,1 78,6 80,0 75,9 80,318 e 19 50,0 55,8 55,7 45,4 32,8 45,520 a 24 23,4 29,6 26,9 18,0 18,3 22,2

    Fonte: PNAD 2003 (apud IBGE, 2004, p. 318). 

    Tabela 5Estudantes de 18 a 24 anos por cor/aça e sua distribuição percentual em relação ao nível de

    ensino freqüentado segundo as grandes regiões. 2003.

    Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-oeste

    Brancos1º grau 11,6 17,2 23,5 8,9 7,7 9,22º grau 35,3 46,6 40,8 33,2 33,9 34,0Pré-vestibular 6,3 7,0 6,8 6,6 5,6 4,5Superior 46,4 29,1 27,8 51,2 52,2 51,8Negros1º grau 30,9 30,9 38,6 20,6 20,2 22,32º grau 49,8 50,9 45,7 56,7 52,7 48