Dilema de Dois Juízes Diante Do Fim Do Livre Convencimento Do NCPC

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SENSO INCOMUM 19 de março de 2015, 8h00 Por Lenio Luiz Streck Dois modos de olhar o direito — modelo de juiz A Por emenda supressiva do relator Paulo Teixeira, atendendo à minha sugestão e contando com a aquiescência de Fredie Didier, Dierle Nunes e Luis Henrique Volpe, todas as referências de que-o-juiz- teria-o-poder-de-livre-convencimento foram colocadas em um exílio epistêmico. Isto é: foram retiradas do ordenamento processual. Neste ponto, viva o novo CPC! Na ConJur, quando falei disso no final de 2014, um dos comentários que mais me impressionou foi o do juiz Mauricio Botelho (ler aqui ). Disse ele, querendo ser sarcástico e/ou irônico: 1 - Acabou o princípio do livre convencimento do Juiz???? Como tenho tempo para me aposentar vou pendurar as chuteiras e vou morar nos Estados Unidos. Não quero viver num país em que Juízes não sejam livres para aplicar a lei segundo sua consciência; 2 - Se o "brilhante" articulista se dignar a explicar o raciocínio melhor e caso me convença a não me aposentar, vai ter de convencer a não aplicar litigância de má fé em todos os Embargos de Declaração francamente protelatórios opostos pelos seus coleguinhas. Vejamos se me honra com uma resposta. Pelo que li até agora tenho quase certeza de que não fará isso. (grifos meus) - Obs: as aspas na palavra ‘brilhante’ não são minhas; são do juiz subscritor do comentário! O Juiz Mauricio perguntou se o honraria com uma resposta.... Honro, meu caro. Claro que honro! Estou acostumado ao debate. E jamais chamaria o Dr. Dilema de dois juízes diante do fim do Livre Convencimento do NCPC

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    SENSO INCOMUM

    19 de maro de 2015, 8h00

    PorLenio Luiz Streck

    Dois modos de olhar o direito modelo de juiz APor emenda supressiva do relator Paulo Teixeira,atendendo minha sugesto e contando com aaquiescncia de Fredie Didier, Dierle Nunes e LuisHenrique Volpe, todas as referncias de que-o-juiz-teria-o-poder-de-livre-convencimento foramcolocadas em um exlio epistmico. Isto : foramretiradas do ordenamento processual. Neste ponto,viva o novoCPC!

    Na ConJur, quando falei disso no final de 2014, umdos comentrios que mais me impressionou foi o dojuiz Mauricio Botelho (ler aqui). Disse ele, querendoser sarcstico e/ou irnico:

    1 - Acabou o princpio do livre convencimento do Juiz???? Como tenhotempopara me aposentar vou pendurar as chuteiras e vou morar nosEstados Unidos. No quero viver num pas em que Juzes no sejam livrespara aplicar a lei segundo sua conscincia;2 - Se o "brilhante" articulista se dignar a explicar o raciocnio melhor ecaso me convena a no me aposentar, vai ter de convencer a noaplicar litigncia de m f em todos os Embargos de Declaraofrancamente protelatrios opostos pelos seus coleguinhas.Vejamos se me honra com uma resposta. Pelo que li at agora tenhoquase certeza de que no far isso. (grifos meus) - Obs: as aspas napalavra brilhante no so minhas; so do juiz subscritor do comentrio!

    O Juiz Mauricio perguntou se o honraria com uma resposta.... Honro, meucaro. Claro que honro! Estou acostumado ao debate. E jamais chamaria o Dr.

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    Mauricio de juiz brilhante com o sentido de diminu-lo. Procurando, comcerteza acharemos muitas virtudes em voc. Posso mais do que isso! Uma coisa certa: gente como voc, Dr. Mauricio, que obriga o legislador a fazer umnovo CPC; por causa de juzes como voc que temos de retirar o poder delivre convencimento! A democracia incompatvel com conscincias pessoais.

    Modelo de juiz BNa abertura da defesa de sua dissertao de mestrado, que deu origem ao livroTeoria da Deciso Judicial Dos Paradigmas de Ricardo Lorenzetti RespostaAdequada a Constituio de Lenio Streck (Livraria do Advogado, 2010), o juiz dedireito Fernando Vieira Luiz impressionou a todos com uma confisso:

    sou juiz, minha me juza, meus amigos juzes e promotores, com osquais convivo, so todos honestos, probos e jutos. Interessante que,quando nos reunimos para falar sobre os casos que decidimos, chegamosa concluso que, embora a nossa honestidade, probidade e sentimentode justia, damos sentenas to diferentes umas das outras, em casos,por vezes, muito, muito similares. Por isso, continuou, cheguei aconcluso de que havia algo errado. No basta ser honesto, probo e tersentimento do justo. Todos, eu, minha me, meus amigos, decidimosconforme nossas conscincias. S que as decises so to discrepantes...Por isso, fui estudar teoria da deciso.

    Discusso dos modos de ver o direitoEis dois modos de ver o direito. Eis dois modelos de juiz. No primeiro caso, ummodo dogmtico, voluntarista, autoritrio, do tipo sou juiz e no devosatisfao a ningum; aonde j se viu me dizerem como devo julgar; nadaest acima do meu livre convencimento. Resultado: quer se mudar dePindorama. No aconselho: se ele for para os Isteitis, ser um problema; comoele juiz de primeiro grau, provavelmente ter que buscar eleitores e seeleger; se for para a Alemanha...bem, l mais complicado ainda (leiam acoluna do Otavio), mormente se for julgar conforme seu livre convencimento.No me parece que faria carreira longa em Deutschland. Para a Frana,bem...seu poder ir definhar... E, pior, perder uma srie de vantagens, comoo auxlio moradia. Por isso, meu conselho: Fique por aqui, Dr. Mauricio. Fiquecom a sua gente. Conosco. Mesmo com os problemas da Petrobras, Eike Batista,etc, isso ainda pode dar certo. Fique conosco e obedea a legislao. Que, asvezes, no como voc gostaria, mas... o que fazer? Voc no legislador.

    J no segundo caso, temos o juiz que sabe que um conjunto de (boas)conscincias (ou boas intenes) d o caos. Ou, no mnimo, geradiscrepncias, porque os valores de cada um so contingenciais (aqui

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    Habermas entra rachando!). Por isso, uma criteriologia vem bem... Ou seja:mesmo um conjunto de boas pessoas no garante decises adequadas aConstituio.

    Falando do exlio epistmico do LCTodos sabem de minha luta cotidiana contra o poder discricionrio e seusgenricos, como o livre convencimento (motivado ou no) e a livre apreciaoda prova (os processualistas penais da cepa j h tempo me do razo certo,Jacinto? Certo, Aury?). Denuncio isso h dcadas. Na verso original do NCPCl estava encravado o LCM (livre convencimento motivado). Dizia eu, ento,que de nada adianta exigir do juiz que enfrente todos os argumentosdeduzidos na ao (artigo 389) se, por exemplo, ele tiver a liberdade de invocara jurisprudncia do Supremo que afirma que o juiz no est obrigado aenfrentar todas as questes arguidas pelas partes. Dar-se-ia com uma mo e setiraria com a outra...

    De h muito venho alertando a comunidade jurdica para esse problema doprotagonismo judicial, que deita razes em uma questo paradigmtica e nomeramente tcnica. Eis um modelo de deciso que simboliza a coisa(quem j no sofreu com uma dessas?):

    O sistema normativo ptrio utiliza o princpio do livre convencimentomotivado do juiz, o que significa dizer que o magistrado no fica preso aoformalismo da lei....(...) levando em conta sua livre convico pessoal.

    Pois bem. Depois de muita discusso, o relator do Projeto, deputadoPauloTeixeira, aceitou minha sugesto de retirada do LC. Considero isso umaconquista hermenutica[1] sem precedentes no campo da teoria do direito deterrae brasilis. O Projeto, at ento, adotava um modelo solipsista stricto sensu:veja-se que o artigo 378 falava que O juiz apreciar livremente a prova.... J oartigo 401 dizia que A confisso extrajudicial ser livremente apreciada.... Eno artigo 490 lia-se que A segunda percia no substitui a primeira, cabendo aojuiz apreciar livremente o valor de uma e outra.

    Portanto, todas as expresses que tratavam do LC foram expungidas do NCPC.O LC passou a ser um aptrida gnosiolgico. Assim, se algum quiser invocar atese de que mesmo sem constar no NCPC, o juiz tem, sim, LC, invoco eu umacoisa prosaica, que se aprende no primeiro ano at mesmo na Faculdade doBalo Mgico: a da interpretao histrica (alis, sobre isso falamos noParlamento, longamente, Paulo Teixeira, Fredie e eu no dia da emenda).Mormente se algo expungido da lei. Mas, mais importante ainda nessecontexto a justificativa sugerida por mim e acatada, em termos gerais, pelo

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    deputado Paulo Teixeira (aqui est resumida):

    embora historicamente os Cdigos Processuais estejam baseadosno livre convencimento e na livre apreciao judicial, no maispossvel, em plena democracia, continuar transferindo a resoluodos casos complexos em favor da apreciao subjetiva dos juzes etribunais. (...) O livre convencimento se justificava em face danecessidade de superao da prova tarifada. (...).

    O relator Paulo Teixeira entendeu muito bem o problema. A nossa perguntapelo processo jurisdicional democrtico comea a ser respondida da seguinteforma: o processo deve ser pautado por direitos e suas disposies tm o sentidode limite, de controle. O processo deve servir como mecanismo de controle daproduo das decises judiciais. E por qu? Pelo menos por duas razes:

    a uma, porque, como cidado, tenho direitos, e, se eu os tenho, eles me devemser garantidos pelo tribunal, por meio de um processo;

    a duas, porque, sendo o processo uma questo de democracia, eu devo com elepoder participar da construo das decises que me atingiro diretamente.

    Some-se a isso a outra emenda de minha autoria: a da exigncia de que todasas decises estejam revestidas de coerncia e integridade (ler aqui).

    Rumo superao do velho modelo social-protagonista? Esperamos que sim!Ao fazermos uma anlise mais detida do NCPC, possvel perceber que asbases fundantes do Projeto, antes aliceradas no vetusto e autoritriomodelo social protagonista podem estar se alterando. No livro O Que Isto Decido Conforme Minha Conscincia?, relato uma srie de decises quesimbolizam esse socialismo processual tardio e do solipsismo nsito a esseimaginrio. Agora mesmo no Rio de Janeiroum juiz convocado disse na AC99.02.30246-7, tendo decidido da mesma forma na AC 606.345, que o juiz noest obrigado a responder todas as alegaes das partes, quando j tenhaencontrado o motivo suficiente para fundar a deciso, nem se obriga a ater-seaos fundamentos indicados por elas e tampouco a responder um a um todos osseus argumentos. Nego os embargos! J em So Paulo, um desembargadordisse, recentemente: tenho convico e assim decidi. Nada necessito maisdizer.

    E digo eu: Isso tem de ter fim. Essa minha batalha. Era isso que eu queria coma retirada do LC (motivado ou no, tanto faz, porque o LCM um engodo a-paradigmtico; de que adianta motivar o consequente se deixo livre o

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    antecedente? Qualquer aluno de filosofia sabe (d)isso e destri o LCM em 5segundos).

    No mais pode(re)mos tolerar decises como: No estou obrigado a responder atodas as questes articuladas pelas partes. As razes de meu convencimento sosuficientemente claras.. Deciso desse jaez dever receber a pecha denulidade. Simples, pois. Sob pena de o NCPC fracassar!

    Habemus CPC, mas temos de romper com o velho modeloTenho convico de que um dos pontos centrais a favor do novo CPC oabandono do LC. Simbolicamente isso representa o desejo de mudar. Daperspectiva normativa do princpio que exige a fundamentao das decises, ojuiz no tem a opo para se convencer por qualquer motivo, uma espcie dediscricionariedade em sentido fraco que seja; ele deve explicitar com base emque razes, que devem ser intersubjetivamente sustentveis, ele decidiu desta eno daquela maneira, conforme bem diz Marcelo Cattoni.

    Realmente, ser correto e decidir de forma imparcial no uma tarefa fcil.Reconhecer esse fenmeno como fez o juiz Fernando Luiz exige coragem.Exige exerccio prtico, senso de dever, capacidade de se adotar uma atitudereflexiva em relao s prprias pr-compreenses,[2] garantia decomparticipao dos destinatrios da deciso no processo deliberativo,aprendizado institucional e debate pblico. O resto desculpa para sefugirderesponsabilidades.

    Fcil dizer, ironicamente, que vai se mudar do Brasil. Eis o dilema de terraebrasilis: o modelo de Juiz Mauricio e o modelo de Juiz Fernando Luis.Ainda bem que o NCPC escolheu o segundo! H um conjunto de magistradosbrasileiros que comunga do que aqui digo (no sentido de que o juiz no devedecidir solipsisticamente). Por todos e em homenagem a estes refiroAlexandre Morais da Rosa, Mauricio Ramires, Adalberto Hommerding, JooLuis Rocha do Nascimento, Nviton Guedes. Vejo inclusive aqui naConJurjuzes apoiando as teses anti-solipsistas, o que alvissareiro. Ser umagrande batalha implementarmos o NCPC.

    Numa palavra: o que clamam os advogados de todo o Brasil?Alvssaras, portanto. Se algum me perguntar por que lutei tanto contra o livreconvencimento, respondo com as vozes de milhares de advogados, que sosurpreendidos diariamente com os livres convencimentos, livresapreciaes e julgamentos conforme as conscincias. Peo que a comunidadejurdica me apoie e me acompanhe nessa cruzada. No quero nada mais do queos juzes julguem de acordo com o direito (em vrias colunas expliquei o

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    conceito).

    Tenho pnico quando abro livros ou vejo em acrdos coisas como: entre a leie minha conscincia, fico com a minha conscincia. Ora, uma democracia se fazaplicando o direito e no a convico pessoal de um conjunto de juzes outribunais. Lamento informar isso para quem entender o contrrio. No vejamisso como implicncia minha.

    Compreendem, agora, porque era necessrio mandar para o exlio epistmicoo LC? Compreendem o porqu de minha luta? Compreendem o porqu de meupnico em face ao protagonismo?

    Se ainda tm dvidas de minha inteno, perguntem aos advogados. Elessofrem na carne tudo isso cotidianamente. Numa palavra: no h uma frmulamgica para construir um Judicirio democrtico. No h, repito, pensamentomgico. H, sim, muita luta. Que est s iniciando.

    Uma advertncia para os desavisados e os que se recusam em ler o queescrevi:j escrevi no mnimo 1,5 milpginas explicando que a minha crticaao protagonismo, ao ativismo e ao solipsismo no tem absolutamente nada aver com uma volta ao juiz-boca-da-lei. Portanto, se algum disser umaestultice dessas, dever ser multado ou chicoteado epistemicamente. Destarte,no vou explicar isso de novo aqui. S aqui naConJur h mais de uma dezenade colunas explicando minha tese. E tambm est nos livros Verdade eConsenso e Jurisdio Constiucional e Deciso Juridica.

    Post scriptum: quando eu era pequeno, minha me dizia, toda vez que medeparava com um pequeno nquel (centavos) no cho: Wer das Kleine nichtehrt, ist des Grossen nicht wert (algo como quem no honra o pequeno ouno d bola no digno do grande). Pois bem. At hoje nunca deixo deapanhar uma moeda, sempre com isso me martelando a cabea. Tenho quepegar as coisas pequenas para merecer as grandes. Uma espcie de pensamentomgico que tenho.

    Pois pode parecer pequena a conquista de ter tirado o livre convencimento doNCPC, porque qualquer um poder dizer e da? Eu continuo a julgar comoquero. Pois eu quero juntar essa moedinha e adicionar no meu farnelepistmico que carrego como uma mala de garupa (como se diz aqui nospampas). Isso pode dar frutos mais adiante. No para mim, mas para ademocracia!

    Saludos juiz Mauricio! Saludos, juiz Fernando Luis! Eu apoio o segundo! E

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    voc, caro leitor?

    [1] Remeto o leitor aos meus Verdade e Consenso, Hermeneutica Jurdica e(m)crise, Lies de Critica Hermeneutica do Direito, entre outros.

    [2] Ateno: pela ensima vez pr-compreenso (Vorverstndnis) no iguala preconceitos no sentido vulgar. Trato disso amide em Verdade e Consenso,especialmente em uma crtica que dirigi a Daniel Sarmento.

    Lenio Luiz Streck jurista, professor, doutor e ps-Doutor em Direito. Assine oFacebook.

    Revista Consultor Jurdico, 19 de maro de 2015, 8h00