Direitos Humanos - Coisa de Policia

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DIREITOS HUMANOS: COISA DE POLCIA

Ricardo Balestreri

BALESTRERI Ricardo Brisola. Direitos Humanos: Coisa de Polcia Passo fundo-RS, CAPEC, Paster Editora, 1998

Prefcio

Ao abordar questes como antagonismo moral entre polcia e bandido, tica corporativa versus tica cidad, lgica policial e lgica militar, esta obra, do representante da Anistia Internacional no Brasil, Ricardo Balestreri, estar, certamente, sendo includa na coleo de obras referenciais sobre o assunto espinhoso que a segurana pblica. O autor demonstra estar ciente dos graves problemas que o Brasil enfrenta nesse campo e, o que mais importante, aponta alguns dos caminhos que se pode trilhar para atingir o perfil do policial protagonista, educador em direitos humanos, promotor da cidadania. Como bem define o autor "h que haver, por parte do agente estatal, uma oposio radical, do ponto de vista moral e metodolgico, entre a sua prpria prtica e a prtica do bandido... o agente do Estado precisa ser parte exemplar dessa histria". Da a necessidade de que o policial protagonista internalize um campo definido de regras de conduta para que seu comportamento seja, ao mesmo tempo, eficiente e educativo, capaz de alimentar o imaginrio social de forma positiva. O Programa Nacional de Direitos Humanos, lanado em maio de 1996, contemplou medidas especficas para a rea da segurana pblica, especialmente no que tange ao aperfeioamento da formao do policial, atravs da incluso, nos currculos das academias, de temas relacionados aos direitos humanos e cidadania. Alm disso, outras medidas esto sendo implementadas por meio de cooperao com organizaes no-governamentais como a prpria Anistia Internacional e o Comit Internacional da Cruz Vermelha. O importante que tenhamos a convico de que os desafios na rea da segurana pblica no so exclusivos do Governo. Apesar da certeza de que necessrio promover alteraes, ainda h, nesse campo, uma forte resistncia a mudanas. A tarefa no fcil e, por isso mesmo, requer o engajamento e o compromisso de todos com a instituio policial, que , como aponta o autor, "setor estratgico para a mudana da sociedade e o desenvolvimento do pas".

Jos Gregori

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Direitos Humanos: Coisa de PolciaIntroduo Porto Alegre, 1977, sede regional da Polcia Federal, aps cinco exaustivas horas de interrogatrio: Esse o comuna mais safado e deve ser o mentor intelectual desse jornaleco marxistaleninista. (O policial parece furioso. Dedo em riste, grita to perto de mim que praticamente cospe na minha cara). Vamos cham-lo para interrogatrio, esse tal Tiago, que aqui est s com o primeiro nome, o covarde. Sobrenome e endereo, que eu no tenho tempo a perder! Desculpe, delegado, no sei o sobrenome e nem o endereo desse homem. Mentira! No enrola, rapaz! srio, delegado, esse homem morreu h muito tempo. Ele vivia em Jerusalm, no sculo primeiro. Tiago, Apstolo de Jesus, e o texto reproduzido no jornal a Epstola de Tiago, extrada do Novo Testamento. T me achando com cara de besta, sujeito? Ns somos polcia cientfica. melhor ir dando logo o servio. Braslia, 1996, sede nacional da Polcia Federal, aps conferncia sobre Polcia como Protagonista da Luta pelos Direitos Humanos. Hora dos debates: Tenho um protesto a fazer com relao a esta conferncia diz, com voz forte e grave, um dos representantes da PF, que me ouvira. (Deus! Ser que o nervosismo me fez dizer alguma besteira? Eu no devia ter aceito, depois do que vivi. Que ser? Tomei tanto cuidado, exatamente em funo daqueles problemas no passado...) Pois no, amigo. A palavra est disposio. Tem que ser dito a na frente! (Que esquisito! Por que ele no fala de l mesmo!?) Pode usar o microfone de pedestal, aqui em frente ao palco. (O policial se aproxima dando passadas firmes, at chegar ao microfone). Meu protesto tem que ser feito a em cima. (O que que h? Ser que ele quer me prender? E eu no lembro de ter dito nada errado! Minhas mos suam).

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Pode subir, policial. Estamos numa democracia. Use o meu microfone." (Minha ansiedade e expectativa fazem parecer uma eternidade os breves minutos que dura toda a cena. Ele parece no terminar mais de subir a pequena escada, at parar a meu lado. Passo-lhe o microfone.) Faltou algo na sua palestra, que imperdovel! (Estamos todos um pouco atnitos). Diga o que faltou, por favor. Quem sabe podemos corrigir? Faltou isto diz ele, tirando da prpria lapela um pin com o braso da Polcia Federal e colocando-o na lapela do meu casaco. (A platia, ento, explode em palmas. Eu, antes de dar-lhe um forte abrao, tiro discretamente o leno do bolso e enxugo o suor que me escorre pela testa.) Que aconteceu, nesses quase vinte anos que passaram desde o primeiro episdio? Talvez menos do que desejamos e mais do que podemos perceber, como atores sociais que somos. O Brasil se tornou uma democracia. No a democracia que queremos, certamente, tambm social, tambm moral. Imperfeita, verdade. Pbere, eu diria. Na sua primeira adolescncia. De qualquer forma, porm, uma democracia, sempre mil vezes melhor do que a melhor das ditaduras. A singela e pitoresca histria acima emblematiza esse universo de possibilidades que nos descortina a democracia poltica. Nela est a polcia, como instituio indispensvel, para servir e proteger a cidadania, para assegurar a todos o respeito a seus direitos e liberdades. Herdamos, contudo, do passado autoritrio, prticas policiais muitas vezes incompatveis com o esprito democrtico. Essa instituio to nobre e necessria , ainda, muitas vezes conspurcada pela ao de gente que no enten-deu sua dignidade e importncia. Durante anos, a comunidade de Direitos Humanos tm denunciado os desvios. Essas denncias, sempre que criteriosas e isentas, realizadas no esprito da legalidade e da tica, devem ser vistas como colaboraes prpria polcia, uma vez que contribuem com os policiais honrados no depuramento do sistema. Sabemos, porm, que a mera denncia tem um carter excessivamente pontual, circunscrito ao episdio e ao momento histrico em que feita. Se queremos, um dia, viver uma verdadeira cultura de cidadania e direitos humanos, precisamos ir alm da acusao, somando esforos pela construo de um novo modelo de segurana pblica. A parceria, portanto, entre a comunidade que se expressa atravs de suas organizaes e a polcia, fundamental para que alcancemos um patamar democrtico mais pleno. o que tm feito organizaes como o Centro de Assessoramento a Programas de Educao para a Cidadania (CAPEC) e a Seo Brasileira da Anistia Internacional h mais de uma dcada. Trabalhando com polcias militares e civis em vrios estados da federao, temos ensinado mas tambm aprendido muitas lies, especialmente esta: a de que a polcia o vetor potencialmente mais promissor no processo de reduo de violaes aos Direitos

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Humanos. Pela autoridade moral e legal que possui, at com o respaldo para o uso da fora necessria, a polcia pode jogar o papel de principal violadora de direitos civis e polticos mas pode, igualmente, transformar-se na sua maior implementadora. Poucas categorias profissionais se comparam, em potencial, polcia, quando se trata de zelo e promoo da cidadania. Essa ao j comeou a ser realizada. Em muitos lugares do pas, os policiais vm atuando qualificadamente em foros de direitos humanos (como por exemplo em conferncias municipais, estaduais e nacionais), as escolas e academias policiais abrem espaos privilegiados para disciplinas relacionadas ao tema, mdulos e cursos especiais so oferecidos, monografias e teses so elaboradas por alunos, aspirantes e oficiais. Um significativo grupo de policiais, durante esses anos de parceria, ingressou como militante nos quadros da Anistia Internacional e vm ofertando um trabalho que nos emociona pela dedicao e coragem. Sempre tenho repetido que no devemos esperar da polcia apenas respeito aos Direitos Humanos, uma vez que essa me parece uma perspectiva muito pobre diante de uma misso to rica. Espero e tenho tido o privilgio de testemunhar o desencadear desse processo uma polcia protagonista de direitos e de cidadania. animador perceber que essa conscincia de importncia est crescendo cada vez mais nas corporaes policiais e tambm nas organizaes no-governamentais. Em 1988, quando comeamos, parecia quase impossvel. A polcia se antagonizava fortemente comunidade de Direitos Humanos e esta, por sua vez, amargava experincias que se haviam consolidado como preconceitos anti-polcia. Falar, ento, em trabalhar questes de cidadania no contexto de escolas e academias policiais, soava como algo candidamente ridculo. Muitas vezes fomos depreciados por essa sandice idealista, partir de observaes de nossos prprios companheiros. A histria, felizmente, concedeu-nos a razo, e hoje praticamente ningum tem dvidas a respeito da relevncia do papel policial na edificao de uma cultura de direitos humanos. A questo est na agenda das principais organi-zaes de cidadania do pas, nos currculos das academias e no Programa Nacional de Direitos Humanos. Prova de que os grandes sonhos, quando persistentemente buscados, esto muitas vezes mais prximos da realizao do que imaginamos. Especial impulso a toda essa ao, deu-se com o ingresso em cena da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, com sua forte convico de que o policial precisa ser um dos atores sociais principais, quando a questo em pauta Direitos Humanos. Ela tem viabilizado, atravs do CAPEC, mdulos formativos permanentes para foras de Segurana Pblica em vrios estados do pas. Essa singela obra, tem por objetivo concentrar al-gumas das reflexes que temos apresentado nesses mdu-los. So proposies muito simples mas altamente eficazes para mobilizar a auto-estima, a crtica e a autocrtica, bem como o esprito empreendedor das mltiplas platias poli-ciais que temos encontrado de norte a sul, no interior e nas capitais desse imenso Brasil. Por ser um tema historicamente novo, enorme a carncia de recursos didticopedaggicos no que concerne a reflexo sobre polcia e Direitos Humanos. A necessidade de algum material de consulta diretamente voltado realidade scio-cultural do mundo brasileiro e latino-americano, tem sido insistentemente expressa em pratica-mente todos os contatos que vimos mantendo, ao longo dos anos, com escolas de polcia civil e militar. Nesse sentido, o livro que ora apresentamos fruto de um pedido e de um desafio dos amigos policiais com quem convivemos. A eles e sua necessidade de aprofundamento das questes que seguem que devemos agradecer o estmulo e a inspirao para a obteno do presente resultado.

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Peter Benenson, o fundador da Anistia Internacional, sempre repetia que melhor acender uma vela do que maldizer a escurido. Aqui temos isso: apenas uma singela chama, mas forte, significativa, porque fruto da coragem de muitos para rever velhos paradigmas. A eles, cidados policiais e no policiais, tambm autores atravs de suas experincias, a minha gratido e o meu fraternal reconhecimento.

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Direitos Humanos: Coisa de PolciaTreze reflexes sobre polcia e direitos humanos Durante muitos anos o tema Direitos Humanos foi considerado antagnico ao de Segurana Pblica. Produto do autoritarismo vigente no pas entre 1964 e 1984 e da manipulao, por ele, dos aparelhos policiais, esse velho paradigma maniquesta cindiu sociedade e polcia, como se a ltima no fizesse parte da primeira. Polcia, ento, foi uma atividade caracterizada pelos segmentos progressistas da sociedade, de forma equivocadamente conceitual, como necessariamente afeta represso antidemocrtica, truculncia, ao conservadorismo. Direitos Humanos como militncia, na outra ponta, passaram a ser vistos como ideologicamente filiados esquerda, durante toda a vigncia da Guerra Fria (estranhamente, nos pases do socialismo real, eram vistos como uma arma retrica e organizacional do capitalismo). No Brasil, em momento posterior da histria, partir da rearticulao democrtica, agregou-se a seus ativistas a pecha de defensores de bandidos e da impunidade. Evidentemente, ambas vises esto fortemente equivocadas e prejudicadas pelo preconceito. Estamos h mais de um dcada construindo uma nova democracia e essa paralisia de paradigmas das partes (uma vez que assim ainda so vistas e assim se consideram), representa um forte impedimento parceria para a edificao de uma sociedade mais civilizada. Aproximar a policia das ONGs que atuam com Di-reitos Humanos, e vice-versa, tarefa impostergvel para que possamos viver, a mdio prazo, em uma nao que respire cultura de cidadania. Para que isso ocorra, necessrio que ns, lideranas do campo dos Direitos Humanos, desarmemos as minas ideolgicas das quais nos cercamos, em um primeiro momento, justificvel , para nos defendermos da polcia, e que agora nos impedem de aproximar-nos. O mesmo vale para a polcia. Podemos aprender muito uns com os outros, ao atuarmos como agentes defensores da mesma democracia. Nesse contexto, partir de quase uma dcada de parceria no campo da educao para os direitos humanos junto policiais e das coisas que vi e aprendi com a polcia, que gostaria de tecer as singelas treze consideraes a seguir: CIDADANIA, DIMENSO PRIMEIRA 1 - O policial , antes de tudo um cidado, e na cidadania deve nutrir sua razo de ser. Irmana-se, assim, a todos os membros da comunidade em direitos e deveres. Sua condio de cidadania , portanto, condio primeira, tornando-se bizarra qualquer reflexo fundada sobre suposta dualidade ou antagonismo entre uma sociedade civil e outra sociedade policial. Essa afirmao plenamente vlida mesmo quando se trata da Polcia Militar, que um servio pblico realizado na perspectiva de uma sociedade nica, da qual todos os segmentos estatais so derivados. Portanto no h, igualmente, uma sociedade civil e outra sociedade militar. A lgica da Guerra Fria, aliada aos anos de chumbo, no Brasil, que se encarregou de solidificar esses equvocos, tentando transformar a polcia, de um servio

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cidadania, em ferramenta para enfrentamento do inimigo interno. Mesmo aps o encerramento desses anos de parania, seqelas ideolgicas persistem indevidamente, obstaculizando, em algumas reas, a elucidao da real funo policial. POLICIAL: CIDADO QUALIFICADO 2 - O agente de Segurana Pblica , contudo, um cidado qualificado: emblematiza o Estado, em seu contato mais imediato com a populao. Sendo a autoridade mais comumente encontrada tem, portanto, a misso de ser uma espcie de porta voz popular do conjunto de autoridades das diversas reas do poder. Alm disso, porta a singular permisso para o uso da fora e das armas, no mbito da lei, o que lhe confere natural e destacada autoridade para a construo social ou para sua devastao. O impacto sobre a vida de indivduos e comunidades, exercido por esse cidado qualificado , pois, sempre um impacto extremado e simbolicamente referencial para o bem ou para o mal-estar da sociedade. POLICIAL: PEDAGOGO DA CIDADANIA 3 - H, assim, uma dimenso pedaggica no agir policial que, como em outras profisses de suporte pblico, antecede as prprias especificidades de sua especialidade. Os paradigmas contemporneos na rea da educao nos obrigam a repensar o agente educacional de forma mais includente. No passado, esse papel estava reservado nicamente aos pais, professores e especialistas em educao. Hoje preciso incluir com primazia no rol pedaggico tambm outras profisses irrecusavelmente formadoras de opinio: mdicos, advogados, jornalistas e policiais, por exemplo. O policial, assim, luz desses paradigmas educacionais mais abrangentes, um pleno e legitimo educador. Essa dimenso inabdicvel e reveste de profunda nobreza a funo policial, quando conscientemente explicitada atravs de comportamentos e atitudes. A IMPORTNCIA DA AUTO-ESTIMA

PESSOAL E INSTITUCIONAL4 - O reconhecimento dessa dimenso pedaggi-ca , seguramente, o caminho mais rpido e eficaz para a reconquista da abalada auto-estima policial. Note-se que os vnculos de respeito e solidariedade s podem constituir-se sobre uma boa base de auto-estima. A experincia primria do querer-se bem fundamental para possibilitar o conhecimento de como chegar a querer bem o outro. No podemos viver para fora o que no vivemos para dentro. Em nvel pessoal, fundamental que o cidado policial sinta-se motivado e orgulhoso de sua profisso. Isso s alcanvel partir de um patamar de sentido existen-cial. Se a funo policial for esvaziada desse sentido, transformando o homem e a mulher que a exercem em meros cumpridores de ordens sem um significado pessoalmente assumido como iderio, o resultado ser uma auto-imagem denegrida e uma baixa auto-estima. Resgatar, pois, o pedagogo que h em cada policial, permitir a ressignificao da importncia social da polcia, com a conseqente conscincia da nobreza e da dignidade dessa misso. A elevao dos padres de auto-estima pode ser o caminho mais seguro para uma boa prestao de servios.

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S respeita o outro aquele que se d respeito a si mesmo. POLCIA E SUPEREGO SOCIAL 5 - Essa dimenso pedaggica, evidentemente, no se confunde com dimenso demaggica e, portanto, no exime a polcia de sua funo tcnica de intervir preventivamente no cotidiano e repressivamente em momentos de crise, uma vez que democracia nenhuma se sustenta sem a conteno do crime, sempre fundado sobre uma moralidade mal constituda e hedonista, resultante de uma com-plexidade causal que vai do social ao psicolgico. Assim como nas famlias preciso, em ocasies extremas, que o adulto sustente, sem vacilar, limites que possam balizar moralmente a conduta de crianas e jovens, tambm em nvel macro necessrio que alguma instituio se encarregue da conteno da sociopatia. A polcia , portanto, uma espcie de superego social indispensvel em culturas urbanas, complexas e de interesses conflitantes, contenedora do bvio caos a que estaramos expostos na absurda hiptese de sua inexistncia. Possivelmente por isso no se conhea nenhuma sociedade contempornea que no tenha assentamento, entre outros, no poder da polcia. Zelar, pois, diligentemente, pela segurana pblica, pelo direito do cidado de ir e vir, de no ser molestado, de no ser saqueado, de ter respeitada sua integridade fsica e moral, dever da polcia, um compromisso com o rol mais bsico dos direitos humanos que devem ser garantidos imensa maioria de cidados hones-tos e trabalhadores. Para isso que a polcia recebe desses mesmos cidados a uno para o uso da fora, quando necessrio. RIGOR versus VIOLNCIA 6 - O uso legtimo da fora no se confunde, contudo, com truculncia. A fronteira entre a fora e a violncia delimi-tada, no campo formal, pela lei, no campo racional pela necessidade tcnica e, no campo moral, pelo antagonismo que deve reger a metodologia de policiais e criminosos. POLICIAL versus CRIMINOSO: METODOLOGIAS ANTAGNICAS 7 - Dessa forma, mesmo ao reprimir, o policial oferece uma visualizao pedaggica, ao antagonizar-se aos procedimentos do crime. Em termos de inconsciente coletivo, o policial exerce funo educativa arquetpica: deve ser o mocinho, com procedimentos e atitudes coerentes com a firmeza moralmente reta, oposta radicalmente aos desvios perversos do outro arqutipo que se lhe contrape: o bandido. Ao olhar para uns e outros, preciso que a sociedade perceba claramente as diferenas metodolgicas ou a confuso arquetpica intensificar sua crise de moralidade, incrementando a ciranda da violncia. Isso significa que a violncia policial geradora de mais violncia da qual, mui comumente, o prprio policial torna-se a vtima. Ao policial, portanto, no cabe ser cruel com os cruis, vingativo contra os anti-sociais, hediondo com os hediondos. Apenas estaria com isso, liberando, licenciando a sociedade para fazer o mesmo, partir de seu patamar de visibilidade moral. No se ensina a respeitar

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desrespeitando, no se pode educar para preservar a vida matando, no importa quem seja. O policial jamais pode esquecer que tambm o observa o inconsciente coletivo. A VISIBILIDADE MORAL DA POLCIA: IMPORTNCIA DO EXEMPLO 8 - Essa dimenso testemunhal, exemplar, peda-ggica, que o policial carrega irrecusavelmente , possivel-mente, mais marcante na vida da populao do que a pr-pria interveno do educador por ofcio, o professor. Esse fenmeno ocorre devido gravidade do mo-mento em que normalmente o policial encontra o cidado. polcia recorre-se, como regra, em horas de fragilidade emocional, que deixam os indivduos ou a comunidade fortemente abertos ao impacto psicolgico e moral da ao realizada. Por essa razo que uma interveno incorreta funda marcas traumticas por anos ou at pela vida inteira, assim como a ao do bom policial ser sempre lembrada com satisfao e conforto. Curiosamente, um significativo nmero de policiais no consegue perceber com clareza a enorme importncia que tm para a sociedade, talvez por no haverem refletido suficientemente a respeito dessa peculiaridade do impacto emocional do seu agir sobre a clientela. Justamente a reside a maior fora pedaggica da polcia, a grande chave para a redescoberta de seu valor e o resgate de sua auto-estima. essa mesma visibilidade moral da polcia o mais forte argumento para convenc-la de sua responsabilidade paternal (ainda que no paternalista) sobre a comunidade. Zelar pela ordem pblica , assim, acima de tudo, dar exemplo de conduta fortemente baseada em princpios. No h exceo quando tratamos de princpios, mesmo quando est em questo a priso, guarda e conduo de malfeitores. Se o policial capaz de transigir nos seus princpios de civilidade, quando no contato com os sociopatas, abona a violncia, contamina-se com o que nega, conspurca a normalidade, confunde o imaginrio popular e rebaixa-se igualdade de procedimentos com aqueles que combate. Note-se que a perspectiva, aqui, no refletir do ponto de vista da defesa do bandido, mas da defesa da dignidade do policial. A violncia desequilibra e desumaniza o sujeito, no importa com que fins seja cometida, e no restringe-se a reas isoladas, mas, fatalmente, acaba por dominar-lhe toda a conduta. O violento se d uma perigosa permisso de exerccio de pulses negativas, que vazam gravemente sua censura moral e que, inevitavelmente, vo alastrando-se em todas as direes de sua vida, de maneira incontrolvel. TICA CORPORATIVA versus TICA CIDAD 9 - Essa conscincia da auto-importncia obriga o policial a abdicar de qualquer lgica corporativista. Ter identidade com a polcia, amar a corporao da qual participa, coisas essas desejveis, no se podem confundir, em momento algum, com acobertar prticas abominveis. Ao contrrio, a verdadeira identidade policial exige do sujeito um permanente zelo pela limpeza da instituio da qual participa. Um verdadeiro policial, ciente de seu valor social, ser o primeiro interessado no expurgo dos maus profissionais, dos corruptos, dos torturadores, dos psicopatas. Sabe que o lugar deles no polcia, pois, alm do dano social que causam, prejudicam o equilbrio

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psicolgico de todo o conjunto da corporao e inundam os meios de co-municao social com um marketing que denigre o esforo herico de todos aqueles outros que cumprem corretamente sua espinhosa misso. Por esse motivo, no est disposto a conceder-lhes qualquer tipo de espao. Aqui, se antagoniza a tica da corporao (que na verdade a negao de qualquer possibilidade tica) com a tica da cidadania (aquela voltada misso da polcia junto a seu cliente, o cidado). O acobertamento de prticas esprias demonstra, ao contrrio do que muitas vezes parece, o mais absoluto desprezo pelas instituies policiais. Quem acoberta o esprio permite que ele enxovalhe a imagem do conjunto da instituio e mostra, dessa forma, no ter qualquer respeito pelo ambiente do qual faz parte. CRITRIOS DE SELEO,

PERMANNCIA E ACOMPANHAMENTO10 - Essa preocupao deve crescer medida em que tenhamos clara a preferncia da psicopatia pelas profisses de poder. Poltica profissional, Foras Armadas, Comunicao Social, Direito, Medicina, Magistrio e Polcia so algumas das profisses de encantada predileo para os psicopatas, sempre em busca do exerccio livre e sem culpas de seu poder sobre outrem. Profisses magnficas, de grande amplitude social, que agregam heris e mesmo santos, so as mesmas que atraem a escria, pelo alcance que tm, pelo poder que representam. A permisso para o uso da fora, das armas, do direito a decidir sobre a vida e a morte, exercem irresistvel atrao perversidade, ao delrio onipotente, loucura articulada. Os processos de seleo de policiais devem tornar-se cada vez mais rgidos no bloqueio entrada desse tipo de gente. Igualmente, nefasta a falta de um maior acompanhamento psicolgico aos policiais j na ativa. A polcia chamada a cuidar dos piores dramas da populao e nisso reside um componente desequilibrador. Quem cuida da polcia? Os governos, de maneira geral, estruturam pobremente os servios de atendimento psicolgico aos policiais e aproveitam muito mal os policiais diplomados nas reas de sade mental. Evidentemente, se os critrios de seleo e permanncia devem tornar-se cada vez mais exigentes, espera-se que o Estado cuide tambm de retribuir com salrios cada vez mais dignos. De qualquer forma, o zelo pelo respeito e a decncia dos quadros policiais no cabe apenas ao Estado mas aos prprios policiais, os maiores interessados em participarem de instituies livres de vcios, valorizadas socialmente e detentoras de credibilidade histrica.

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DIREITOS HUMANOS DOS POLICIAIS HUMILHAO versus HIERARQUIA 11 - O equilbrio psicolgico, to indispensvel na ao da polcia, passa tambm pela sade emocional da prpria instituio. Mesmo que isso no se justifique, sabe-mos que policiais maltratados internamente tendem a descontar sua agressividade sobre o cidado. Evidentemente, polcia no funciona sem hierarquia. H, contudo, clara distino entre hierarquia e humilhao, entre ordem e perversidade. Em muitas academias de polcia ( claro que no em todas) os policiais parecem ainda ser adestrados para alguma suposta guerra de guerrilhas, sendo submetidos a toda ordem de maus-tratos (beber sangue no pescoo da galinha, ficar em p sobre formigueiro, ser afogado na lama por superior hierrquico, comer fezes, so s alguns dos recentes exemplos que tenho colecionado partir da narrativa de amigos policiais, em diversas partes do Brasil). Por uma contaminao da ideologia militar (diga-se de passagem, presente no apenas nas PMs mas tambm em muitas polcias civis), os futuros policiais so, muitas vezes, submetidos a violento estresse psicolgico, a fim de atiar-lhes a raiva contra o inimigo (ser, nesse caso, o cidado?). Essa permissividade na violao interna dos Direitos Humanos dos policiais pode dar guarida ao de personalidades sdicas e depravadas, que usam sua autoridade superior como cobertura para o exerccio de suas doenas. Alm disso, como os policiais no vo lutar na extinta guerra do Vietn, mas atuar nas ruas das cidades, esse tipo de formao (deformadora) representa uma perda de tempo, geradora apenas de brutalidade, atraso tcnico e incompetncia. A verdadeira hierarquia s pode ser exercida com base na lei e na lgica, longe, portanto, do personalismo e do autoritarismo doentios. O respeito aos superiores no pode ser imposto na base da humilhao e do medo. No pode haver respeito unilateral, como no pode haver respeito sem admirao. No podemos respeitar aqueles a quem odiamos. A hierarquia fundamental para o bom funciona-mento da polcia, mas ela s pode ser verdadeiramente al-canada atravs do exerccio da liderana dos superiores, o que pressupe prticas bilaterais de respeito, competncia e seguimento de regras lgicas e suprapessoais. DIREITOS HUMANOS DOS POLICIAIS HUMILHAO versus HIERARQUIA 12 - No extremo oposto, a debilidade hierrquica tambm um mal. Pode passar uma imagem de descaso e desordem no servio pblico, alm de enredar na malha confusa da burocracia toda a prtica policial. A falta de uma Lei Orgnica Nacional para a polcia civil, por exemplo, pode propiciar um desvio fragmentador dessa instituio, amparando uma tendncia de definio de conduta, em alguns casos, pela mera juno, em colcha de retalhos, do conjunto das prticas de suas delegacias. Enquanto um melhor direcionamento no ocorre em plano nacional, fundamental que os estados e instituies da polcia civil direcionem estrategicamente o processo de maneira a unificar sob regras claras a conduta do conjunto de seus agentes, transcendendo a mera predisposio dos delegados localmente responsveis (e superando, assim, a ordem

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fragmentada, baseada na personificao). Alm do conjunto da sociedade, a prpria polcia civil ser altamente beneficiada, uma vez que regras objetivas para todos (includas a as condutas internas) s podem dar maior segurana e credibilidade aos que precisam executar to importante e ao mesmo tempo to intrincado e difcil trabalho. A FORMAO DOS POLICIAIS 13 - A superao desses desvios poderia dar-se, ao menos em parte, pelo estabelecimento de um ncleo comum, de contedos e metodologias na formao de ambas as polcias, que privilegiasse a formao do juzo moral, as cincias humansticas e a tecnologia como contraponto de eficcia incompetncia da fora bruta. Aqui, deve-se ressaltar a importncia das academias de Polcia Civil, das escolas formativas de oficiais e soldados e dos institutos superiores de ensino e pesquisa, como bases para a construo da Polcia Cidad, seja atravs de suas intervenes junto aos policiais ingressantes, seja na qualificao daqueles que se encontram h mais tempo na ativa. Um bom currculo e professores habilitados no apenas nos conhecimentos tcnicos, mas igualmente nas artes didticas e no relacionamento interpessoal, so fundamentais para a gerao de policiais que atuem com base na lei e na ordem hierrquica, mas tambm na autonomia moral e intelectual. Do policial contem-porneo, mesmo o de mais simples escalo, se exigir, cada vez mais, discernimento de valores ticos e conduo rpi-da de processos de raciocnio na tomada de decises. CONCLUSO A polcia, como instituio de servio cidadania em uma de suas demandas mais bsicas Segurana Pblica tem tudo para ser altamente respeitada e valorizada. Para tanto, precisa resgatar a conscincia da importncia de seu papel social e, por conseguinte, a auto-estima. Esse caminho passa pela superao das seqelas deixadas pelo perodo ditatorial: velhos ranos psicopticos, s vezes ainda abancados no poder, contaminao anacrnica pela ideologia militar da Guerra Fria, crena de que a competncia se alcana pela truculncia e no pela tcnica, maus-tratos internos a policiais de escales inferiores, corporativismo no acobertamento de prticas incompatveis com a nobreza da misso policial. O processo de modernizao democrtica j est instaurado e conta com a parceria de organizaes como a Anistia Internacional (que, dentro e fora do Brasil, alis, mantm um notvel quadro de policiais a ela filiados). Dessa forma, o velho paradigma antagonista da Segurana Pblica e dos Direitos Humanos precisa ser subs-titudo por um novo, que exige desacomodao de ambos os campos: Segurana Pblica com Direitos Humanos. O policial, pela natural autoridade moral que porta, tem o potencial de ser o mais marcante promotor dos Direitos Humanos, revertendo o quadro de descrdito social e qualificando-se como um personagem central da democracia. As organizaes nogovernamentais que ainda no descobriram a fora e a importncia do policial como agente de transformao, devem abrir-se, urgentemente, a isso, sob pena de, aferradas a velhos paradigmas, perderem o concurso da ao impactante desse ator social.

Direitos Humanos, cada vez mais, tambm coisa de polcia!

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QUALIFICAR O PROCESSO QUALIFICANDO A PESSOAALGUMAS CONTRIBUIES REFLEXO SOBRE CAPACITAO DE OPERADORES POLICIAIS

Tu me dizes, eu esqueo, Tu me ensinas, eu lembro, Tu me envolves, eu aprendo."Benjamin Franklin

I - INTRODUO Sempre que tratamos da questo do servio pblico", especialmente quando esse servio tem uma dimenso protetiva e educacional, incomoda-nos a constatao das evidentes dificuldades no atingimento de um patamar mnimo de qualidade, passando sempre, a reflexo, pelas carncias de competncia profissional dos agentes dele encarregados. Da tentarmos a soluo, muitas vezes, via proliferao de treinamentos" e capacitaes" formais que, geralmente, resultam em quase nada, levando-nos, na seqncia, ao desnimo, ao ceticismo e a acomodao contrariada ao que parece ser uma inerncia" do servio pblico brasileiro na forma como est estruturado. Essa, no entanto, a perspectiva da vitimizao, da impotncia, da no auto-responsabilizao, da no autoria. Melhor seria, como em Publilus Syrus, assumir que tolo aquele que naufragou seus navios duas vezes e continua culpando o mar". Precisamos perguntar-nos se, apesar de todas as dificuldades estruturais e conjunturais apresentadas, uma mudana em nossa estratgia formativa dos operadores no poderia trazer melhores a at surpreendentes resultados. por esse caminho, da busca de paradigmas novos no campo da formao do agente, que gostaria de fazer um primeiro bloco de afirmaes: na qualificao da prestao de qualquer tipo de servio, a qualificao do servidor tem primazia, antecedendo e transcendendo at mesmo as condies objetivas que se lhe oferecem para trabalhar. No raro as disposies subjetivas do operador vencem toda sorte de obstculos, sobrepondo-se a eles e permitindo competncia, mesmo quando, avaliando-se o campo objetivo, todas as condies do entorno apontavam na direo contrria. De igual forma, operadores no vocacionados", desmotivados, mal instrumentados, podem solapar os Projetos mais sofisticados e respaldados pelas mais adequadas estruturas. Evidentemente, no se trata, aqui, de dicotomizar: precisamos, para alcanar a eficcia e a eficincia desejadas, da interveno pessoal mais qualificada do operador, assentado sobre infra-estruturas apropriadas. No entanto, diante das crnicas carncias estruturais que precisam ser tomadas (ativamente, verdade) como dados da realidade, reveste-se de especial importncia pensar criticamente a formao dos operadores, uma vez que esta a ferramenta de transformao mais imediata de que se dispe. Nessa mesma direo, no aceitvel submeter o beneficirio ( cidado) espera de maior vontade poltica e de melhor aparelhamento material por parte do Estado. Ainda que esta deva ser uma meta inegocivel da sociedade, alcanvel a mdio ou longo prazos, preciso intensificar a urgncia de nossa ateno sobre os recursos mais disponveis e imediatamente definidores, em termos globais, da qualidade do atendimento dos cidados em questo: os recursos humanos, os operadores Trata-se de um realismo estratgico que deve acompanhar

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no somente a interveno das ONGs parceiras mas tambm a ao dos segmentos de vanguarda do prprio Estado, desejosos de fazer acontecer qualquer mudana significativa sem depender da vontade e do beneplcito do grande aparelho". Como a histria avana de forma parcializada e contraditria, mas sempre inter-causal, creio que essa interveno melhor qualificada, no campo", deva forar uma maior conscientizao e aprovao, por parte da sociedade, das conseqentes novas prticas, gerando, de forma reflexiva, uma tambm renovada disposio do estado no sentido de melhor as condies objetivas de trabalho de seus agentes. Em outras palavras: possvel apostar que a melhor formao do operador gere maior competncia (mesmo no quadro das condies existentes) e que esta competncia anteceda e force, como movimento, as prioridades polticas e oramentrias do estado. O presente texto no tem qualquer outra pretenso que no esta, singela, de motivar a importncia histrica da capacitao/formao dos operadores, elencando algumas idias bem sucedidas, em especial extradas da experincia do Centro de Assessoramento a Programas de Educao para a Cidadania (CAPEC) e da Seo Brasileira da Anistia Internacional (SBAI), h 13 anos, na capacitao de operadores sociais em geral e, mais especificamente, de operadores policiais. Pela brevidade que se nos exige, nossa interveno limitar-se- a provocao de algumas reflexes nas reas da estratgia, da metodologia e dos contedos que, cremos, deveriam estar presentes como pr-condies para alcanar a excelncia. II - IDENTIFICAO DO PERFIL E PROBLEMAS A Realidade Dadas as condies de trabalho ofertadas , acima referidas, se estabelece a resposta em termos de procura e o conseqente perfil do operador. De maneira geral, o salrio oferecido injusto, os prdios, mobilirio, veculos, armas e equipamentos, insuficientes, antigos e/ou em situao de quase abandono pelo(s) governo(s). Soma-se a isso uma depreciao social da atividade policial, agravada pelo equvoco de setores de vanguarda que no conseguem perceber que suas crticas atividade em questo deveriam enfocar mais o aspecto conjuntural do que o estrutural, uma vez que a polcia segmento imprescindvel e nobre de sustentao de direitos e deveres democrticos. Os Dois Tipos" de Operadores Nessa conjuntura, basicamente, dois tipos de pblico afluem para os quadros institucionais, como agentes operadores: os vocacionados", com significativo grau de altrusmo, disposio para o servio, projetos de vida identificados com causas sociais e capacidade de suportar frustraes sem desqualificar o trabalho junto aos beneficirios; e os no vocacionados, ingressantes por falta de melhores oportunidades (ao menos nos nveis mais bsicos, no dirigentes), com projetos de vida meramente voltados sobrevivncia ou gratificao egoica (no aguardo de melhores oportunidades), com primrio nvel de conscincia tica e desenvolvimento moral. Desse ltimo grupo origina-se, concretamente, a violncia e a corrupo com que, em muitos bolses institucionais, se responde agressividade social. No h credibilidade institucional que possa subsistir inclume ao exerccio de tais moralidades heternomas e hednicas por parte dos operadores.

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preciso pois, a longo prazo, melhorar as condies da oferta e, subseqentemente, da seleo e, a curto prazo, desafiar a elevao do padro moral dos profissionais a estgios mais avanados, o que somente pode ser alcanado atravs de processos permanentes de desafio educacional. Sabemos, realisticamente, que isso no fcil e que no resulta positivamente com a totalidade dos desafiados. Haver, sempre, um contingente refratrio, at em funo de nossas prprias carncias em saber encontrar para cada um a linguagem e as provocaes mais significativas. Nenhum processo educacional pode ser onipotente. No entanto, h segmentos expressivos que podem ser resgatados" da alienao existencial em que submergiram, atravs de processos pedaggicos competentes na busca do inerente desejo de qualificao e plenificao da vida. Para ilustrar metaforicamente uma reflexo semelhante que Ralph Emerson perguntava-nos: O que , ento, uma erva daninha, seno uma planta cujas virtudes no foram descobertas?" Para que no fiquemos, contudo, na licena potica e no pareamos lricos no encontro do humano que subjaz mesmo no aparentemente desumanizado, precisamos buscar referncia na teoria cientfico-pedaggica, em especial no grande mestre do estudo sobre o desenvolvimento da conscincia moral, o psiclogo americano Lawrence Kohlberg. Segundo concluses de extensa pesquisa por ele desenvolvida, na Universidade de Harvard, h uma tendncia natural, que acompanha os seres humanos, desde que corretamente provocados, elevao do prprio patamar moral. A partir dessa premissa e da experincia acumulada em anos de trabalho educacional que cremos que vale a pena investir mais e melhor na formao dos operadores, mesmo daqueles que parecem resistentes. Parte significativa deles pode ser recuperada por uma estratgia educacional competente, diferente daquela que, genericamente, at aqui, tem sido adotada pelo Estado. O Grupo Vocacionado" No esqueamos, no entanto, o primeiro grupo, aquele que denominamos vocacionado" ao social. Ele, igualmente, no est imune s graves mazelas oferecidas pela realidade com a qual necessita trabalhar. Ao longo dos anos, diante da incria de Estados que se sucedem e da no resoluo dos problemas, tende a desanimar, a perder flego", a deixar-se abater pela desesperana e pela decadncia da auto-estima. Ademais, sofre os ataques dos contingentes no vocacionados", uma vez que, ao propor e realizar uma prestao de servios significativa, deflagra a elevao do padro de expectativas e exigncias sociais em relao funo pblica, com toda a demanda de trabalho e responsabilidade inerente a tal processo. So vistos, pois, pelos colegas no vocacionados, como traidores" dos interesses de classe, uma vez que procuram (inexplicavelmente, para quem se encontra em estgio anterior de desenvolvimento moral) prestar bons servios, apesar dos salrios muitas vezes insuficientes ou at aviltantes (conforme o nvel hierrquico) e das precarssimas condies de trabalho e de vida. Assoberbados com seu prprio labor e com as conseqncias da ausncia e atividades imobilizantes ou destrutivas do grupo no vocacionado", acabam consumindo-se" pelo cotidiano, sem tempo e energia para a reflexo individual e coletiva, para o estudo, para o encontro de alternativas pessoais e institucionais fundadas em novos paradigmas. Os momentos de catarse nas atividades formativas que proporcionamos tm, invariavelmente, evidenciado essas realidades, esse conflito e essa sensao de abandono e dor por parte daqueles que desejam posicionar-se existencialmente e pedagogicamente de forma significativa junto aos cidados que tm por responsabilidade proteger.

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Tambm esse grupo, que aqui chamamos de vocacionado", diante das inevitveis carncias oriundas dos projetos polticos estatais, necessita um intenso investimento formativo suplementar, que possa ajuda-lo a suprir pelo menos as demandas mais bsicas no campo das vivncias simblicas, abstratas, motivacionais e existenciais. Em termos estratgicos, esse o aporte mais conseqente que podemos oferecer e a ele devem voltar-se nossos esforos altamente prioritrios. Para os dois perfis de operadores, portanto, a educao (formao significativa, til, com sentido e desafiadora da elevao dos padres de moralidade e satisfao interior advindas das relaes interpessoais), a melhor possibilidade que podemos ofertar no contexto limitado e limitante do sistema. tambm a nica forma imediata de humanizar o trabalho junto clientela e agregar-lhe competncia. III - ESTRATGIAS Vnculos Empticos preciso que os operadores-educandos (no caso, agentes policiais) estabeleam relaes de pertinncia, vnculos afetivos, com as possibilidades formativas que lhes so oportunizadas. H estados que oferecem grande quantidade de cursos a seus operadores sem, contudo, preocuparem-se em estabelecer um mnimo de empatia entre o que neles se prope e os supostos beneficirios. Isso ocorre porque, via de regra, a viso tecnocrtica do Estado contamina mesmo os processos educacionais. As capacitaes", assim, assumem um carter de tecnicismo (ainda que pedaggico") enfadonho e desvinculado dos dramas e possibilidades reais e cotidianas das pessoas e instituies. O tecnocratismo e o tecnicismo, como proposies esquizides, alo-referenciadas, no envolvem o sujeito (aqui objeto) receptor. No a toa que os operadores apresentam fortes queixas em relao maioria das capacitaes" que lhes so oferecidas. No h foco no pessoal e por isso a elevao dos padres de qualidade humana praticamente nula. Um Novo Paradigma Formativo Um paradigma novo de capacitao" precisa trabalhar com contedos e dinmicas autoreferenciadas, voltadas para as demandas imediatas e mediatas do sujeito nominal (e no do operador" como profissional, em primeiro plano). Em outras palavras: a qualificao do exerccio profissional passa, necessariamente, pela qualificao existencial do sujeito. Treinamentos de eficincia operatria, que no sejam antecedidos pela reflexo do psicolgico, do inter-pessoal familiar e do campo profissional, pelo axiolgico, pelo espiritual (em sentido amplo) esto fadados ao fracasso por seu artificialismo e desvinculao das demandas mais profundas do beneficirio. O foco primrio, assim, da formao do agente policial, no o cidado que est nas ruas (e, menos ainda, o delinquente), mas o prprio agente, nominalmente tomado. sua forma de relacionar-se consigo , com os outros, com o Universo, so seus valores pessoais, so seus desejos e projetos pessoais (e no de seu cliente/cidado, em um primeiro momento) que devero estar em questo. Alcanado esse patamar auto-reflexivo e auto-proponente, a sim, ento, o operador estar disponvel ao aprofundamento (de forma no segmentada, no desvinculada dessa base

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pessoalmente significativa), dos projetos amplos (ou de sua ausncia), das utopias (ou da conformidade), das posturas solidrias ou sociopticas da sociedade beneficiria. No parea, no entanto, que sejam essas etapas cronologicamente apartadas. Apenas para clarificao didtica que seguem, aqui, em pargrafos distintos. Na verdade, o ideal que, como desenvolvimento, se estruturem juntas, favorecendo a leitura dialtica": ao pensar-se, pensar o outro; ao pensar o outro, pensar-se. Uma Proposta Concreta Uma das formas que se tm revelado competente para dar corpo, viabilizar esta proposta, o oferecimento de momentos fortes" de reflexo, intercalados de leituras, prticas, avaliaes e reencontros, como atividades recomendadas. a chamada estrutura de Movimento de Mdulos Formativos". Os mdulos so os tais momentos fortes", para os quais se recomenda a maior imerso possvel, a fim de livrar os participantes da ditadura dispersiva do cotidiano (uma vez que o objetivo a contemplao cognitiva e moral de si e de suas circunstncias). O termo movimento" emblematiza o carter desejado de continuidade, aprofundamento e permanncia formativa. Os mdulos desafiam, concentradamente, a avaliao prospectiva e perspectiva e os intervalos entre os mesmos so acompanhados pelo grupo, seus monitores, consultores, coordenadores, como tempos de experienciao formativa. Esse modelo, largamente utilizado durante os anos da represso pelos segmentos originados na Ao Catlica" e, aps, incorporado por inmeras organizaes laicas de resistncia democrtica, revelou-se de extrema competncia naquilo que se convencionou chamar formao de quadros", multiplicadores de prxis politicamente (no sentido amplo do termo) relevantes e institucionalmente transformadoras. Nos dias atuais, como ferramenta universal, volta a ser utilizado com sucesso por ONGs referenciais no campo da educao para a cidadania e ajusta-se perfeitamente s metas educacionais voltadas a servidores pblicos, sempre que o Estado saiba estabelecer parcerias com essas mesmas ONGs, objetivando usufruir de seu know how e evitar a petrificao" tcnica e o esvaziamento do processo. Em termos estratgicos, alis, a parceria fundamental. As ONGs, via Estado, podem trabalhar em extenso, evitando a circunscrio de sua atuao minorias eleitas". O Estado, por sua vez, pode embeber-se de vida civil" e superar, pelo menos parcialmente, sua vocao ao formal e ao tecnocrtico. A Estratgia Top Down" Finalmente, ainda em termos estratgicos, necessrio definir os estamentos prioritrios da clientela em relao cronologia do trabalho: comear pelas Direes , corpos de especialistas e tcnicos, professores das academias, oficiais, delegados, fundamental para que, ao chegar-se aos operadores diretos, estes possuam o lastro poltico e o aporte teoricoespecializado necessrio consecuo das aes desejadas. Em alguns casos, de forma intensiva, quando os recursos humanos e materiais o permitam, possvel trabalhar concomitantemente direes, setores intermedirios e bases operadoras. No havendo essa possibilidade, recomenda-se o processo top down", ou seja, o atingimento eficaz do conjunto dos operadores partir da opo estratgica de comear pelo topo da estrutura de responsabilidade, desdobrando aes at chegar sua base executiva.

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IV - METODOLOGIA Como parte da metodologia proposta faz interseco com a estratgia e naquele item j foi abordada, resta-nos definir melhor as caractersticas dos mdulos formativos e a performance desejada dos consultores e cursistas. Trabalho de Massa" X Formao de Multiplicadores" Inicialmente, sugere-se evitar a tentao ao trabalho de massa", to caro a muitos governos, vidos de nmeros para alimentar a opinio pblica. No campo educacional, a competncia passa pela formao dos chamados multiplicadores" e, ainda que em momentos bem especficos (por exemplo, Seminrios com agentes j em processo, para assistncia a Conferncias e troca de experincias) admitam-se as grandes platias, no ordenamento normal o trabalho de massa dispensvel por sua inconsistncia e incompatibilidade com o aprofundamento desejado em nvel dos sujeitos - operadores. Sugere-se, assim, turmas de, no mximo, 60 pessoas, mesmo que isso exija a reproduo do nmero de mdulos oferecidos e mesmo que o processo demande maior tempo (porm, com maior segurana em termos de resultados). Metodologia Participativa Nessa mesma direo, prope-se uma metodologia participativa, onde se mesclem os contedos apresentados por exposies dialogadas" com as dinmicas/vivncias em grupo. Dessa forma, o perfil desejado dos consultores exclui a figura do expositor" academicista, desvinculado de qualquer relao emptica com os beneficirios e descompromissado com a ativa escuta da problemtica que os aflige a da esperana que os alimenta. O enfoque introdutrio dos trabalhos deve envolver os participantes a partir da valorizao da misso social que desenvolvem, elevando a auto-estima do grupo e provocando-o qualificar-se mais para melhor fruir da riqueza existencial real e/ou virtual que sua situao oportuniza. De igual forma, motivados pela conscincia da responsabilidade social de que esto investidos, volver-se-o mais predispostos a interao de carter formativo. O Encadeamento dos Contedos e Etapas Seqencialmente, os contedos psicolgicos e de relaes interpessoais devem ser introduzidos para, aps, apresentaram-se as temticas de perfil mais filosfico e sociolgico, num crescendo, natural, do prximo ao distal. Certamente, essas diversas dimenses devem perpassar, interdisciplinarmente, como pano de fundo", todos os contedos. Seria recomendvel, como uma das formas que podemos sugerir, estruturar o trabalho em no mnimo trs mdulos, intercalados por 3 a 6 meses de laboratrio", destinado ao monitoramento das prticas, leituras e reencontros avaliativos. Assim, o ingresso ao mdulo posterior dar-se- em um patamar cognitivo e vivencial mais elevado. Eleio do Significativ De maneira geral, as temticas e a forma de sua abordagem devem privilegiar o significativo, ou seja, devem dizer respeito ao sujeito participante, mesmo quando tratando-se de temas voltados ao cidado em geral (por exemplo, contedos psicopedaggicos que podem colaborar

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na aprendizagem pessoal do operador em relao sua prpria histria de vida, como filho, pai ou me ou diretamente responsivos aos desafios concretos que enfrenta em seu dia a dia de trabalho). Por fim, recomenda-se a oportunizao de momentos favorecedores do aprofundamento das relaes interpessoais entre os participantes das formaes (dinmicas de mtua descoberta, refeies comunitrias, eventos festivos), reforadores dos laos de solidariedade grupal e facilitadores, no campo das relaes, da interveno harmnica da equipe quando a campo". Formao de Vnculos Solidrios De forma geral, as relaes entre operadores esto mediatizadas apenas pelo objeto de trabalho, sendo, por isso, formais e obrigatrias, quando o correto seria mediatiz-las pelo humano e pelas utopias pessoais e sociais partilhadas, a ponto de significarem, para alm do meramente profissional, uma opo fundada na vontade. Oportunizar o ldico e o conhecimento que dele se origina fundamental para o adensamento dos vnculos de compromisso, fidelidade e inter-ajuda, sem os quais no pode haver satisfao e competncia em qualquer ao que dependa de interveno grupal. Naturalmente, isso poder parecer pouco ortodoxo no contexto do formalismo estatal, mas nem por isso deixa de ser uma das chaves metodolgicas de maior relevncia para a cognio intelectual e moral: o estabelecimento de vnculos afetivos, sem os quais no h aprendizagem. Aqui, importa lembrar o princpio construtivista segundo o qual a _descentrao", a superao do totalitarismo egico, em relao ao objeto mas tambm em relao ao outro, fundamental para a aprendizagem. Fomentar, pois, relaes fraternas, contribuir diretamente para a competncia no campo profissional. No caso em questo, mais relevante , uma vez que no podemos promover respeito e solidariedade social sem que testemunhemos, pelo tipo de vinculao que temos com nosso grupo, essa mesma solidariedade. Claro est que esta solidariedade nada tem a ver com o corporativismo, que tantas vezes macula a vida das instituies e que, ao contrrio, est fundado em relaes de proteo mtua relacionada a interesses de ordem meramente individualista. Tal nvel de compromisso no se alcana nos marcos exclusivos dos contratos sociais, nem sequer na vivncia profissional cotidiana, mas, especialmente, no ldico, onde a entrega ao outro est favorecida por um relaxamento dos mecanismos de defesa. As instncias formativas, assim, no devem constituir-se apenas em momentos fortes de aprofundamento temtico mas, igualmente, em momentos fortes de convivncia. V - TEMTICAS: Os Contedos H, aqui, um conjunto de temticas bsicas, que cremos, dever-se-iam fazer presentes em trabalhos formativos de carter continuado, como os que estamos propondo. Elas caracterizam-se por uma dupla raiz: so auto-referentes e alo-referentes, ou seja, centram-se, a um s tempo, nas necessidades e vivncias do operador e nas necessidades e vivncias do cidado beneficirio. Ao atender as demandas de um, atendem tambm as de outro. Vejamos algumas: Psicolgicos

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Inicialmente, pensamos indispensvel o refletir sobre o self contextualizado, ou seja, a forma e a qualidade das relaes que o eu" estabelece. Pela simplicidade e, ao mesmo tempo, profundidade com que se apresenta, optamos pela Anlise Transacional, como ferramenta auxiliar. De fato, apesar de havermos crescido e, possivelmente, amadurecido, mantm-se em nosso interior a criana", com suas idiossincrasias, suas carncias, suas necessidades, seus modelos internalizados. Se no conhecermos melhor essas motivaes primrias do inconsciente, como nos prope Eric Berne , podemos acabar dominados por formas nem sempre saudveis de reao realidade e de relacionamento com os outros. Operadores que tm a seu encargo o trabalho cotidiano com situaes de conflito intra ou interpessoal, precisam administrar com lucidez a prpria forma de reagir diante do desejo, da frustrao, da autoridade, do medo. A AT tem, pois, suprido competentemente esse propsito de intensificao do autoconhecimento, iluminador de todo o processo formativo que realizamos junto clientela participante de nossos cursos e mdulos. Filosfico-Existenciais Motivados, ento, pelo aprofundamento dessa cognio sobre as relaes com o prprio eu, com os outros e com o mundo, h terreno frtil para introduzir duas temticas do campo filosfico: -O servio pblico" como projeto de vida, com suas riquezas virtuais e/ou reais do ponto de vista existencial (h, aqui, que contrapor as vises de poder pblico" e servio ao Estado", tantas vezes antagnicas ou redutoras da grandeza e dignidade do real papel do servidor social) - A questo dos paradigmas", envolvendo as dimenses pessoais e grupais, na reflexo sobre conceito de paradigma", crise de paradigmas, paralisia de paradigmas" e reviso dos paradigmas individuais e institucionais. Especial iluminao, nesse campo, nos traz a obra de Thomas Kuhn, que procuramos verter, de forma simples, para o dia-a-dia dos agentes operadores (Kuhn,T. A Estrutura das Revolues Cientficas. So Paulo:Perspectiva,1987) Psicanalticos Avanando ainda mais na direo do beneficirio sem, contudo, descuidar da incluso do agente, recomendvel a introduo da Psicologia do Inconsciente, agora em perspectiva mais psicanaltica. Conhecer os mecanismos de articulao pessoal e social diante dos desafios da realidade, a partir de premissas e pulses inconscientes, fundamental para um operador que dever trabalhar, quase todo tempo, com situaes-limite. Incorporadas as pesquisas, descobertas e revises crticas da modernidade, no haver contradio com a temtica anterior, da Anlise Transacional, uma vez que esta no contesta os fundamentos centrais erigidos pela psicanlise mas apenas os transcende, a partir de enfoques mais heterodoxos. Por exemplo, o estudo dos temas do inconsciente e de sua influncia sobre as diversas etapas da evoluo da personalidade (psicologia do desenvolvimento), quando abordados corretamente e de forma didtica, pode ser envolvente e encantador para o operador policial, descortinando-lhe a viso de novos horizontes de auto-compreenso e de compreenso dos processos das diversas faixas etrias com as quais dever atuar. A par disso, o estudo da estruturao do ego, dos mecanismos de defesa e da correta ou incorreta articulao do superego (diretamente relacionado aos padres de conduta moral),

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sero ferramentas de primeira utilidade no apenas no contexto auto-analtico mas, igualmente, no fazer do dia-a-dia policial. Psico-lingusticos Aproveitar a abordagem anteriormente citada, do inconsciente" para tambm introduzir a questo das _linguagens no verbais", assim como em Pierre Weill ( Weil, P. e Tompakow, R. O Corpo Fala. Petrpolis: Editora Vozes,1995), ser, igualmente, palpitante e elucidatrio do significado da prpria cinestesia e da transparncia, honestidade, pujana e espontaneidade e poder de revelao da comunicao que se expressa por padres no mediados pela racionalidade, conhecimento de carter ferramental importante no trato dirio com a cidadania, seja na dimenso pedaggico/preventiva, seja na investigativa. Psico-Sociais Os temas psicolgicos em questo so um bom mote para o alargamento do estudo da questo dos preconceitos": de gnero (onde tambm o masculino precisa ser revisitado e ressignificado), de etnia, de ideologia, de credo, de orientao sexual, de nacionalidade, etc.) Aqui, as vertentes explicativas, naturalmente, precisam passar pelas bases scios-polticas e psicolgicas e chegar ao pensar a democracia" como um sistema onde todos somos iguais (em direitos) mas felizmente diferentes (no plano individual e mesmo grupal). Axiolgicos Um debate puxa outro e j temos elementos suficientes para introduzir a questo da conscincia moral. Mais ainda, porque o fenmeno da delinquncia, com o qual dever trabalhar o operador tambm trabalha, exige um esforo especial de compreenso e habilidade nos encaminhamentos. Certamente, isso mexe com as prprias pulses, com os contedos inconscientes do operador, causando-lhe frustrao e insegurana. O tema da formao do juzo moral , portanto, central, nos processos formativos de operadores. Estudar como constituiu-se a prpria moralidade, o estgio no qual se encontra, bem como o processo em desenvolvimento ou bloqueio na clientela junto a qual trabalha, , com certeza, altamente clarificador das situaes-problema e provocador de alternativas. Aqui, precisamos superar a psicanlise, com sua viso parcial introjetiva, e apelar aos mestres no tema : Jean Piaget e Lawrence Kohlberg. Os grandes problemas sociais so problemas morais que comeam na infncia. Piaget, em uma de suas mais profundas obras, O Juzo Moral na Criana", esmiuou o tema com didatssimos exemplos prticos que, aps tantos anos, permanecem plenamente contemporneos (uma vez que os estgios no se alteram pela simples complexificao cultural). Aborda, de forma igualmente brilhante (e para muitos surpreendente), o tema das sanes (que divide em expiatrias" e por reciprocidade", especificando pelo menos seis tipos dessas ltimas e articulando corajosamente seu carter educativo). Os prprios operadores, em geral frutos da insegurana proveniente do cmbio rpido e antittico de paradigmas, filhos de pais autoritrios, descontextualizados e confusos pela apologia da anomia nos anos 80 e 90, podem obter a um referencial equilibrado e seguro (Piaget, J. O Juizo Moral na Criana. So Paulo: Summus, 1994). Complementando os estudos piagetianos, mais tarde, Kohlberg trabalhou a formao moral no perodo da adolescncia, em seus seis estgios do desenvolvimento moral" , avanando, igualmente, na anlise do universo adulto. Ele no deixou sintetizada sua obra, em grande parte espalhada em magnficos artigos, mas seus discpulos trataram de faz-lo (Cf. Duska, R. e Whelan, M. O Desenvolvimento Moral na Idade Evolutiva. So Paulo: Edies Loyola, 1994).

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So estudos de profundidade filosfico-existencial, para alm do carter pedaggico, mas absolutamente prticos, ferramentas que rompem o vu que se antepe compreenso radical dos comportamentos ticos ou sociopticos. A reflexo sobre a questo da drogadio, sempre significativa no contexto daqueles que trabalham com a criminalidade, teria, inserida nesse quadro referencial, uma sustentao de profundidade, da qual normalmente carece nas abordagens meramente tecnicistas ou fundadas nas abordagens psicolgicas tradicionais. Sociolgicos Paralelamente a esses estudos de busca das razes comportamentais e atitudinais, no terreno do simblico, do subjetivo, a reflexo de perfil mais poltico-sociolgico pode ajudar a localizar" o operador em suas prprias circunstncias, bem como o beneficirio de sua ao, o cidado. anlise conjuntural deve seguir-se a estrutural, de carter mais profundo, identificando a razo social e poltica de ser das instituies, em nveis micro (famlia, grupo de convivncia), meso (escola, comunidade eclesial, delegacias de polcia, departamentos, batalhes, por exemplo) e macro (estado, partidos, religies, justia, foras de segurana pblica, sistemas de ensino, etc.). Convm colar" diagnose da conjuntura e da estrutura geradora, uma viso prognstica que possa ir desafiando ao encontro de alternativas de construo da sociedade do novo milnio, na qual o agente operador est chamado a intervir. Debate sobre o dia-a-dia policial H uma dimenso que nos muito cara e que deve estar presente durante todo e qualquer trabalho temtico: a reflexo crtico-criativa sobre o dia-a-dia do agir policial, luz dos princpios da promoo da cidadania do prprio policial e da sociedade por ele beneficiada.. Os consultores devem estar abertos permanentemente para facilitar o estabelecimento de pontes entre o que est sendo debatido e a prtica policial, coletando esses elementos a partir do que expressa o grupo. Saber ouvir, deixar fluir a catarse, acolher as abordagens mesmo quando contraditrias, predisposio imprescindvel para a significatividade (utilidade e sentido) do que discutido, alm de cumprir excelente funo teraputica. A instituio policial tem carecido muito de espaos de livre discusso democrtica, que possam ajudar a iluminar a existncia e a insero funcional de seus agentes. Os mdulos formativos que apresentamos (bem como sua sequncia monitorada) tm sido frequentemente avaliados pelos seus beneficirios como espaos resgatadores da sade pessoal e institucional, advinda da transparncia dos debates e da liberdade auto-analtica e analtica que propiciam. Projeto de Vida e Projeto Institucional Trabalhar, pois na construo/reconstruo do projeto de vida" do sujeito-operador, diante da construo do projeto mais amplo (o social, com suas utopias) tem sido uma opo inestimvel em nossa experincia educacional com os operadores policiais. A conseqncia institucional mais evidente disso o chamado planejamento participativo" (tambm analisado em sua dimenso terica) que traz para o operador e seu grupo o poder de autoria sobre a realizao das intervenes imediatas e mediatas que lhe so exigidas (ainda que realisticamente limitadas esfera/ espao de deciso permitido pelo Estado que, por isso, no deixam de ser passveis de alargamento, diante da iniciativa e mobilizao dos agentes).

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Assim, arrolamos alguns contedos bsicos que, parece-nos, deveriam estar presentes em processos formativos que privilegiem a construo do equilbrio pessoal dos operadores e a decodificao enriquecedora do entorno, sem, por isso, supor haver esgotado o tema ou mesmo fornecido explanao que supere o meramente embrionrio na articulao de programas educacionais. VI. CONCLUSO Longe de pretender exaurir o tema ou propor qualquer forma de receita, o presente trabalho aspira to somente ser provocao introdutria ao debate, partir de elementos, como acima dissemos, extrados de uma experincia bem sucedida. Ao abordar de forma crtica a questo das estratgias, metodologias e temticas, quer sugerir inovaes nos paradigmas metodolgicos at aqui mui comumente usados pelo estado no trabalho educacional de seus operadores em geral e, em especial, dos especialistas em segurana pblica. No tem ,contudo, qualquer pretenso autoritria de domnio analtico sobre o conjunto das realidades dos muitos brasis" que temos e das muitas instituies encarregadas da promoo da segurana pblica. Completemo-lo, pois, a partir de uma leitura criativa, adensando os contedos com a sabedoria advinda de nossas prprias experincias, fundadas na riqueza de uma realidade multifacetada e plena de possibilidades.

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Direitos Humanos: Coisa de PolciaViolncia urbana, direitos humanos e protagonismo policial(Texto elaborado e adaptado a partir de conferncia do autor realizada em evento promovido pela Secretaria de Segurana Pblica do Estado do Par)

PROTAGONISMO POLICIAL Falar sobre protagonismo policial no campo dos Direitos Humanos, alm de provocar o intelecto como s o fazem os mais novos e desafiadores paradigmas, gera uma satisfatria sensao de enorme esperana. Trata-se de um tema muito recente em nosso pas. H uns dez anos, seria impensvel, por exemplo, seminrios como os que hoje se multiplicam no Brasil, voltados prioritariamente clientela policial, que se propusessem a trabalhar sobre Direitos Humanos, Segurana Pblica e cidadania. Vivamos, lamentavelmente, uma histria de antagonismos entre o campo dos Direitos Humanos e o campo da Segurana Pblica. Um antagonismo que deve ser superado, em nome da democracia que se constri. Ao falarmos em protagonismo policial queremos dizer simplesmente: para ns, to somente pedir que a policia respeite os direitos humanos calcar o discurso numa perspectiva muito pobre, sugerindo, inclusive, falta de reconhecimento da importncia social da mesma. No queremos que a polcia apenas respeite, mas queremos ela promova os Direitos Humanos. Esse pensamento se assenta, sobretudo, no reconhecimento da nobreza e da dignidade da misso policial. AS ONGs E A POLCIA Ao dialogar essa viso com a polcia, fazemo-lo, igualmente, com as organizaes nogovernamentais, como a prpria Anistia Internacional, s quais o presidente da Repblica, quero crer que com senso de humor realista, chamou de organizaes neogovernamentais. De fato, as organizaes no-governamentais ocupam um espao que os governos no querem ou no podem ocupar. Muitas das transformaes que ocorrem no mundo hoje, so produtos civilizatrios que nos so alcanados pelas mos das chamadas ONGs. Os cidados do mundo inteiro esto aprendendo a lio de que eles precisam arregaar as mangas e fazer, e no apenas esperar que os governos faam. Por isso, tambm o conjunto de ONGs precisa aprender melhor a importncia e o potencial promotor de Direitos Humanos da polcia. Algumas j o esto fazendo. Queremos frisar que, apesar de uma certa fama de antagonistas que possuem ONGs como a Anistia Internacional, h, na verdade, uma considerao mpar pelo que podem representar os policiais como agentes de mudana. Consideramo-nos privilegiados toda vez que podemos t-los como pblico. Ao organizarmos nossa abordagem com as clientelas que temos neste imenso e populoso pas, sempre temos privilegiado o trabalho com policiais. Acompanha-nos a certeza de que no se far mudana que no passe, tambm e muito especialmente, pelas mos da polcia. Dizendo de outra forma: para ns, um trabalho com policiais necessariamente um trabalho de alto impacto social, com conseqncias objetivas sobre as relaes humanas e a vida do conjunto da nao. A ANISTIA INTERNACIONAL

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Ao haver citado, anteriormente, a organizao da qual participo e sua particular viso da polcia, sinto-me no dever de acrescentar novos esclarecimentos, uma vez que a Anistia Internacional, apesar de publicamente reconhecida, pela sua complexidade, parece guardar ainda um certo mistrio em relao s suas origens e caractersticas. Na verdade, h total transparncia e aqui quero exp-la. Fomos fundados em 1961, por um advogado ingls, Peter Benenson, a partir de um fato inusitado. Benenson leu, em certa manh, em um matutino britnico, a notcia de que em Portugal de Salazar, trs estudantes haviam sido presos e condenados por haverem erguido suas taas, num bar de Lisboa, em um brinde liberdade. Escandalizado, escreveu para o mesmo jornal de circulao europia um artigo comclamando as pessoas de boa vontade, do mundo inteiro, a se unirem para evitar que atos de barbrie desse tipo continuassem ocorrendo. Penso que no tinha a menor idia das profundas conseqncias que iria gerar esse artigo. Meses depois, dezenas de milhares de cartas de cidados de toda a Europa respondiam algo como: Sim, tambm estou indignado! O que que posso fazer? Assustado, mas instado pelo desafio, Benenson fundou a Anistia Internacional. O nome, Anistia, vem da proposta central: a imediata libertao de milhares de pessoas que esto presas no mundo inteiro, sem haver cometido nenhum crime, exceto aquele de divergir de seus governos capitalistas ou socialistas ou pertencer a uma minoria pacfica de qualquer espcie. A eles a quem chamamos presos de conscincia pedimos imediata libertao porque no so criminosos e no se justifica estarem privados da liberdade. Em muito pouco tempo, crescemos tanto que nos tornamos a maior organizao de Direitos Humanos do mundo, com um milho e cem mil membros, espalhados por algo em torno de cento e cinqenta pases e territrios. Por que isso ocorreu? Certamente por seu carter absolutamente imparcial e suprapartidrio. Muito antes do fim da Guerra Fria j defendamos prisioneiros injustiados tanto pelo sistema capitalista quanto pelo comunista. Isso nos valia uma profunda antipatia dos dois lados, direita e esquerda. Ningum alinhado gostava de ns e os poderosos do mundo inteiro nos batiam verbalmente (s vezes, literalmente). Com algum senso de humor, editamos, inclusive, um livro, cuja metade era constituda de opinies de governantes capitalistas e a outra metade de opinies de governantes socialistas a respeito. Os capitalistas diziam mais ou menos o seguinte: A Anistia Internacional sustentada pelo ouro de Moscou, um brao poderoso do comunismo internacional. Muito cuidado com ela!. Os do socialismo real preveniam: A Anistia Internacional um brao do capitalismo, sustentada pelo dinheiro ingls e norte-americano. Um governante chins chegou ao cmulo e ao ridculo de dizer que a ramos mais perigosos e poderosos que a CIA e o FBI juntos (opinio que brindamos com boas gargalhadas). Na verdade, devo dizer que essas entristecedoras imbecilidades tpicas dos filtros ideolgicos eram tambm, para ns, motivo de orgulho, uma vez que comprovavam nossa identidade e nico compromisso: o ser humano que sofre injustamente em qualquer sistema, em qualquer lugar do planeta. Dizer isto, hoje, bem mais fcil, uma vez que o mundo no se encontra mais dividido em blocos. Dizer h alguns anos era um ato de ousadia. Contudo, nos mantivemos firmes e, por esta firmeza obtivemos credibilidade junto imensa maioria da populao que, por seu sofrimento real, alcana uma viso menos filtrada da realidade. Nossa nica ideologia, portanto, se assim se pode dizer, a Declarao Universal dos Direitos Humanos. claro que s pudemos alcanar essa imparcialidade atravs da independncia, da auto-sustentao financeira. No aceitamos um centavo de partidos, governos ou organizaes privadas, exceto quando se trata de programas educacionais. Nesse caso sim, aceitamos recursos diretamente destinados aos programas educativos, sem que haja qualquer repasse para a estrutura da Anistia Internacional. Somos rgidos com nossas fontes financiadoras porque acreditamos que quem paga manda, e no queremos ser mandados por ningum.

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Todos ns, membros, ajudamos a sustentar a organizao. Temos funcionrios (na sede mundial que est em Londres porque l fomos fundados e nas sedes nacionais), todos pagos com o nosso prprio dinheiro, porque todos ns, membros da Anistia, contribumos mensal ou anualmente para isso. Somos 1.100.000 membros pagantes sustentando uma real independncia e imparcialidade. Na Europa, por exemplo, onde existe cultura de voluntariado social, h cidados comuns que resolveram descontar um dzimo de seus salrios para a Anistia Internacional. H, igualmente, artistas que se dedicaram e dedicam, por exemplo, atravs de grandes shows, a arrecadar verbas para a Anistia. Apenas para citar alguns nomes: Leonard Bernstein, Bruce Springsten, Sting, U2, Trace Chapman, Simple Mind, Milton Nascimento e Toquinho. Igualmente, grandes artistas plsticos, como Pablo Picasso e Mir, eram contribuintes, atravs de suas obras, da Anistia Internacional. A QUESTO DAS DENNCIAS Mas, retomemos o trabalho de base dessa organizao que, como j vimos, ocorre muito em cima da denncia de violao dos direitos humanos. Por essa razo a Anistia no bem vista por alguns segmentos na Segurana Pblica, desafinados com o tom da democracia ou simplesmente desinformados em relao s nossas verdadeiras caractersticas e intenes. Evidentemente, uma interpretao muito parcial e, na maioria das vezes, desinformada, do que somos. Nesse momento preciso que nos perguntemos, policiais e no policiais, com honestidade cidad: por que denunciar? Por que incomodar os governos e as populaes com tantas ms notcias? Qual ser o objetivo da denncia? Difamar pases, orquestrar uma conspirao imperialista internacional (no passado se dizia que seria uma conspirao comunista), jogar no descrdito as instituies? Evidentemente, no. So simplrias, paranicas e anacrnicas reaes desse tipo, s vezes assumidas at por despreparados corpos diplomticos de pases sem muita convico democrtica. Uma organizao promotora da cidadania sempre parte do pressuposto de que em um verdadeiro pas democrtico a denncia no constrangedora ou antagonista, no devendo, por isso, gerar reaes defensivas e corporativistas. Uma verdadeira democracia preza a denncia como a melhor forma de depurar as suas instituies, sejam elas policiais, judicirias, legislativas ou executivas. Podemos mesmo dizer que no h democracia sem o pleno poder de denncia. Obviamente, no estamos falando aqui do denuncismo sectrio, leviano e volvel. Esse deve ser eticamente combatido, com todas as armas jurdicas de que dispe a prpria democracia. A denncia precisa ser responsvel. claro, contudo, at pelas razes acima, de que apenas a denncia no constri a justia democrtica. A denncia tem uma eficcia pontual inestimvel mas, sozinha, no capaz de gerar uma cultura de direitos humanos O ANNCIO Por essa razo que organizaes srias como a Anistia casam com a denncia aquilo que o professor Paulo Freire chamava anncio, ou seja, a busca, apresentao e trabalho de construo de alternativas melhores. No queremos ser apenas parte do problema, mas tambm das solues. Queremos somar-nos a todos os de boa vontade no grande mutiro que vai erigindo um mundo mais fraterno. DEFESA DE BANDIDOS? Postos esses elementos, comea a ficar mais claro o que a Anistia Internacional. Contudo, no campo dos este-retipos, um campo resistente, talvez ainda no esteja suficientemente elucidado o que no a Anistia.

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Por exemplo, quero dizer muito objetivamente que a Anistia no defende para a criminalidade qualquer forma de impunidade. Ao contrrio, sabemos que a impunidade s pode gerar o caos social. Assim, no devemos ser confundidos com defensores de bandidos. No acobertamos nem consentimos nenhum tipo de transgresso criminosa, at por sermos uma organizao de perfil pacifista. Vivemos em uma sociedade complexa e temos a compreenso de que todo crime deve ser punido, sob pena de termos que tratar de sobreviver ainda mais sob a lei do mais forte. Assim, no defendemos criminosos, mas tampouco cremos que o Estado deva se portar com os bandidos como se ele, Estado, tambm bandido fosse. H que haver, por parte do agente estatal, uma oposio radical, do ponto de vista moral e metodolgico, entre a sua prpria prtica e a prtica do bandido. Esse ltimo assim se caracteriza exatamente por ter abdicado dos padres de civilidade. Estou dizendo uma obviedade s vezes esquecida: o agente do Estado precisa ser a parte exemplar dessa histria. Por princpio (coisa que no se negocia) ele o antagnico, o oposto do bandido, cabendo-lhe a nobilssima tarefa de dar exemplo para a sociedade. Se abre mo disso, mesmo em casos especiais, mesmo que motivado por boas intenes (o dito popular a respeito conhecido), confunde o imaginrio social e ajuda a instaurar a incompetncia, a desordem e o crime. AS CAUSAS DO ATRASO Essa reflexo sobre a Anistia Internacional, que agora concluo, puxa obrigatoriamente uma outra, que lhes encaminho: h um terico hoje, em Harward, professor Robert Putnam recentemente editado no Brasil pela Fundao Getlio Vargas que apresenta uma reflexo muito inte-ressante e muito apropriada para a pauta em questo. ela a seguinte, grosso modo: por que alguns pases se desenvolvem e outros permanecem atrasados, apesar de nveis de riqueza natural comparveis e oportunidades histricas similares? (Por exemplo, o Brasil ocupa duas posies no ranking mundial que, se combinadas, so vergonhosas: considerado a 9 o nao industrial do planeta e est em 62 lugar em termos de bem estar da sua populao). Sugere-nos o professor: muito mais do que pelo colo-nialismo e imperialismo como impedimentos causas essas de insuficientes, ainda que reais, explicaes tradicionais , a chegada e manuteno do desenvolvimento passa por um fator chamado engajamento cvico. Os pases mais desenvolvidos so aqueles onde os cidados esperam menos pelo Estado, aqueles onde os cidados acreditam que, antes da fora do Estado, est a sua prpria fora realizadora. Ao resultado, ele chama redes de engajamento cvico. H pouco tive um ex-aluno que voltou dos Estados Unidos a quem perguntei: E ento fulano, como foi? Ao que ele retrucou, nos seus termos muito simples: Professor, o senhor sabe que aqui sou considerado um aluno medocre. J nos Estados Unidos dei um show de cultura. Eu era o primeiro da classe, simplesmente o mximo! Ele estava feliz da vida. Mas eu inqueri: A que voc atribui isso? Resposta pronta: Na mdia, eles so muito burros. Talvez, referenciados naquilo que chamamos cultura geral, meu ex-aluno possa estar correto. Contudo, para no ficarmos nas aparncias e na superficialidade, fiz-lhe uma pergunta complicada: Se so assim to burros, como que se mantm no topo? Com a mesma simplicidade, deu-me uma resposta parecida com aquela que est sendo encontrada por acadmicos do porte do professor Robert Putnam, atravs de intrincadas pesquisas: Eles so burros, mas participam muito e participam de tudo. Ento, conclu nosso dilogo com uma pergunta que no foi respondida: Ser mesmo que estamos sendo mais inteligentes do que eles?

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H alguns anos falei com uma das principais autoridades federais americanas na rea de ensino, e ele me disse exatamente isso: nosso sistema de ensino muito ruim, mas pelo menos muito participativo. Assim, at em um pas com um sistema de ensino to precrio, observa-se a importncia da participao nos ndices de desenvolvimento. Note-se que nem falamos aqui, propositadamente, no Norte da Europa. BRASIL: RICO E INJUSTO Vamos trazer isso para o nosso pas. Ns somos fabulosamente ricos. preciso parar com esse costume de encararmos o Brasil como um pas pobre! Uma cmoda mentira! O Brasil um dos pases mais ricos do planeta. Somos, de fato, mais ricos do que a Sucia, do que a Dinamarca, do que a Noruega, do que a Finlndia, ainda que com um povo pobre. Lembrando o Betinho: o Brasil no pobre, injusto. Possivelmente, o pas mais injusto do planeta, conforme os indicativos anteriormente citados. Algum h de pensar: No ser isso um exagero? Na frica no pior? Claro. Na frica, a misria maior. De forma geral, a frica um continente muito pobre, ao contrrio de nosso abastado e injusto Brasil. ESPERAR OU FAZER? Resta-nos saber que se quisermos transformar este pas rico num pas desenvolvido, onde valha plenamente viver, com um povo em situao de bem-estar, precisamos participar. Cada um de ns fazermos nossa parte, cansarmos de esperar, arregaarmos as mangas. Ns temos uma maldita tradio paternalista que se traduz numa eterna espera pelo Estado. Estamos h quase quinhentos anos esperando, e o Estado no fez. E corremos o risco de esperar mais quinhentos anos, e o Estado no far, enquanto no mudarmos essa cultura. Enquanto os cidados no comearem, o Estado, como instituio, no far tambm o que lhe cabe, porque a ao concreta da cidadania que empurra, que qualifica o Estado para que ele comece a atuar. Podemos ter a mais absoluta certeza de que, em um pas com uma cidadania mobilizada, o Estado corre atrs para no perder espao. Da mesma forma, em um pas onde a cidadania espera, o Estado se acomoda e se abanca nas promessas. Em certo sentido, parcial, tem razo quem disse que ns temos o Estado que merecemos. No apenas porque, nas democracias, ns que constitumos suas feies com o nosso voto mas, principalmente, porque nos acomodamos a s votar. E s votamos muitas vezes mal. Grande parte de ns, algum tempo depois, sequer lembra dos votos todos que deu. Quem mesmo que escolhemos? Como avanar para um modelo mais participativo de democracia, na linha do que prope o professor Putnam? PAPEL DA EDUCAO A tradio, sabiamente, nos diz o seguinte: as transformaes tm que passar pela educao. No se muda um pas sem educar as pessoas. E aqui preciso estender o paradigma educacional. Antigamente, quando se falava em educador, se pensava apenas no professor. Hoje, quando se fala em educador temos que pensar no empresrio, no mdico, no socilogo, no funcionrio pblico, na polcia. Todas as profisses que trabalham com gente tm uma dimenso que antecede o seu especfico profissional, que a dimenso pedaggica. Sou psicopedagogo, educador por profisso, e considero os policiais como colegas, porque todo policial, antes de ser policial, tem obrigatoriamente que ser um pedagogo da cidadania, sob pena de ser um arremedo de policial e exercer muito mal a sua funo. Analogamente, todo mdico tem que saber que um educador antes de ser mdico, assim como todo advogado, todo juiz, todo jornalista, s para citar alguns exemplos. So tipos de profisso exercidas tambm como poder sobre a sociedade e exercer poder uma responsabilidade muito grave, que ala essas profisses ao patamar de misses (evidentemente, no naquele sentido conservador, que anula as exigncias tcnicas especficas do ser profissional). Um agente social investido de poder tem uma funo testemunhal muito importante sobre o inconsciente coletivo. Ele motiva o exerccio do bem ou incita violncia, atravs de suas prticas.

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ESTRATGIAS DE TRANSFORMAO Assim, se a mudana do mundo passa pela educao, preciso escolher estrategicamente alguns setores-chave para catalisar esse processo. A Anistia escolheu aqueles que comsidera irrecusavelmente educacionais. Quais so eles? Alguns j citados. Mdicos e profissionais da sade; religiosos de maneira geral; juizes, advogados, promotores, defensores pblicos; estudantes, porque ainda so muito suscetveis aos ideais; professores, naturalmente; jornalistas; lderes profissionais e comunitrios; policiais. Esses so, para ns, sem demrito de nenhum outro, alguns dos mais importantes setores estratgicos para a mudana da sociedade, para o desenvolvimento do Pas. Aqui no Brasil, escolhemos particularmente dois pblicos que, em nosso entender, so ainda os mais estratgicos no campo de direitos humanos: os professores e os policiais. Essas so as duas platias que, at o presente momento, mais privilegiamos, s quais devotamos energia e trabalho prioritrios. POR QUE POLCIA? Por que importa a polcia? Parece estpido fazer essa pergunta a leitores majoritariamente policiais. Mas impor-tante faze-la e resgatar a obviedade, uma vez que, na sociedade brasileira e em outras sociedades de Terceiro Mundo, em funo de desvios de conduta de maus policiais e de desvios histricos da funo, a estima social e mesmo a autoestima das polcias vm sofrendo poderosos desgastes. No entanto, nem por isso a polcia deixou de ser um servio imprescindvel. Quem precisa dela? Precisamos todos ns, que somos cidados. Vivemos em um mundo urbano e complexo, e, nesse mundo, a sociedade tem a necessidade simblica de uma au-toridade que a ajude na autolimitao. Assim, o que a polcia? Muito simplesmente, a polcia um segmento da sociedade, da cidadania, institudo por esta para auto-balizar-se. No vivemos mais no mundo rural, em comunidades facilmente administrveis pelas tradies. Vivemos no mundo de massas, onde seria absolutamente impensvel a garantia dos direitos democrticos sem o poder de polcia. No h pas que no a tenha, o que tambm uma obviedade. H pases que optaram, por exemplo, por no ter Foras Armadas, como a Costa Rica. No quero entrar no mrito dessa deciso. Apenas constat-la como uma possibilidade e dizer que o mesmo seria impossvel em relao polcia. LGICA POLICIAL E LGICA MILITAR Essa reflexo, alis, puxa inevitavelmente uma outra: sobre a colagem que se deu, no Brasil, por razes histricas, entre Foras Armadas e polcias (no s a Militar, mas tambm a Civil). As ideologias internas, evidentemente, so bastante diferentes, uma vez que tambm diferem as finalidades. As Foras Armadas existem e eu no estou fazendo juzo delas, mas apenas constatando para atacar ou para nos defender do inimigo externo. A polcia existe para proteger o cidado. Essa mesclagem ideolgica que, no perodo militar pedalou a porta dos fundos da polcia, gerou muitas das mazelas que at hoje carrega a atividade policial. Me perdoem a franqueza mas, com todo o respeito que merecem as duas instituies, as IGPMs que vocs sofrem ainda hoje na Polcia Militar so resqucios dessa viso ditatorial. O que tem a ver a polcia, mesmo que carregue o militar no nome, com as Foras Armadas, no contexto de uma democracia estvel? Absolutamente nada. So lgicas distintas, so propostas distintas, so ideologias distintas.

BALESTRERI Ricardo Brisola. Direitos Humanos: Coisa de Polcia Passo fundo-RS, CAPEC, Paster Editora, 1998

uma afronta lgica democrtica sujeitar as foras policiais a qualquer tipo de vnculo vertical com as Foras Armadas, porque so instituies que existem para causas diversas. tambm, certamente, um trabalho oneroso e desviante para as prprias Foras Armadas, que tm outro objeto de ateno e outra finalidade para a sua existncia. Um velho rano que a nova democracia brasileira ainda no ousou questionar. DESMILITARIZAO? POLCIA NICA? Falando em Polcia Militar, talvez parea estranha a posio que expressarei agora, uma vez que presido a Anistia Internacional e a ela no cabem discusses to tcnicas. Obviamente, uma reflexo de carter muito pessoal. Fala-se abusivamente, hoje, em desmilitarizao da polcia. Se isso no for bem explicado, podemos resvalar facilmente para uma forma de demagogia barata, que no vai levar-nos a lugar algum. Quando se falou, em So Paulo, da desmilitarizao da PM, pr