Discurso de Rui Barbosa

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Rui Barbosa Discurso no Colégio Anchieta FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA Rio de Janeiro - 1981

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Discurso de Rui Barbosa proferido no Colégio Anchieta em Nova Friburgo/RJ.

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Rui Barbosa Discurso no Colgio Anchieta FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA Rio de J aneiro - 1981 SUMRIO NO LIMINAR [ROCHA LIMA] III INTRODUO [AMRICO J ACOBINA LACOMBE] VII DISCURSO NO COLGIO ANCHIETA2 FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA III NO LIMINAR Infelizmente (e ao contrrio do que acontece com vrias das obras de RUI), no h notcia do manuscrito do Discurso no Colgio Anchieta. A despeito dos esforos de HOMERO SENNA, Diretor do Centro de Pesquisas da FCRB, no foi possvel localizar o precioso autgrafo. Masparecelcitopresumirqueaeditioprinceps(1903),publicadapelo prprio Colgio Anchieta em vida do Autor e provavelmente sob suas vistas , espelhe, com fidelidade, o estgio da lngua e do estilo de RUI, quela altura de sua existncia. Daspublicaessubseqentes,destacarei,emrazodesuaautoridade nata,apromovidapelaCasadeRuiBarbosaem1953,paracomemoraro cinqentenriodoDiscurso.Talediovem,naturalmente,entrajadaem harmoniacomosistemaortogrficode1943doqual,todavia,seafastano manteraheranadotextodebasequantoescritacominicialminsculade nomescomoIdadeMdia,Constituio,Senado,Cardeal,Presidenteda Repblica e congneres decerto hbito pessoal do escritor. Napresenteedio,quetenhoahonraderevereanotaraconviteda FCRB,agrafiaseguidaobedece,quaseintegralmente,doAcordoLuso-Brasileiro de 1943, com as alteraes que entre ns lhe introduziu, no referente acentuaogrfica,aLein5.765,de20dedezembrode1971.Observeital sistema"quaseintegralmente"(esclareo),porqueprocureifaz-lodetalsorte quenosetrassenenhumfatolingsticopropriamentedito,subjacentena roupagem grfica assim atualizada. Subscrevo, neste particular, a lio de que devemprevalecerosprincpiosenoasaverbaesdovocabulriooficial, averbaesnotoriamentetendentesaumfixismoeimobilismovocabulares, vlidos, talvez, como preceptiva presente, mas de todo em todo infundados FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA IV paraumavivnciahistricadostextosdopassado,aindaquedepassado recente.1 Assim que, ao mesmo tempo que restaurei a inicial maiscula em nomes deerashistricas,dealtosconceitosreligiososoupolticos,etc.(conforme prescreveoCaptuloXVIdoFormulrioOrtogrficodaAcademiaBrasileirade Letras),assimtambmrestabeleciexumando-asdaediode1903formas como conjecturar (no texto, "conjecturando") e Septentrional, que, no vocabulrio exemplificativoqueacompanhaocitadoFormulrioOrtogrfico,seapresentam petrificadas, respectivamente, em conjeturar e Setentrional. Pois o certo que a averbao de tais formas com fisionomia fixa e nica vai de encontro realidade danormacultabrasileira,aqual,aindahoje,ofereceflutuaodepronncia nestas palavras. Optei, pois, pela lio conservadora, sempre recomendvel em situaescomoapresente,sobretudolevando-seemcontaoeruditismodos padresverbaisdoescritoreatensaortoepiadasclassesilustradas,nos comeos do sculo XX. Do mesmo modo, mantive a escrita num s vocbulo como se l, alis, naexcelenteediode1953dapartculaporqu(quandoadvrbio interrogativo,ourelativo),umavezquenosetrata,nocaso,dematria puramenteortogrfica,senoquedeproblemademorfo-sintaxe2portuguesa, qui romnica, sobre ancorar no uso de escritores modeladores de uma e outra banda do Atlntico. NooutraaformaregistradapeloVocabulrioOrtogrficodaLngua Portuguesa (1940) da Academia das Cincias de Lisboa , o qual, no obstante haver servido de base para a elaborao do nosso, no teve acolhida por este a (corretssima)liodoseumodelo!Igualmenteassimoconsignamalgunsdos

1 Introduo crtico-filolgica ao texto das Memrias Pstumas de Brs Cubas, fixado oficialmente pela "Comisso Machado de Assis", MEC, 1960, p. 63. 2V.aminhaGramticaNormativadaLnguaPortuguesa,20.ed.,RiodeJ aneiro,Livr.J os Olmpio Ed., 1979, p. 317-9; o TratadodeOrtografiadaLnguaPortuguesa, do sbio humanista REBELOGONALVES,Coimbra,Atlntida,1947,p.248-9;eGONALVESVIANA,omestre incontestado,noVocabulrioOrtogrficoeRemissivodaLnguaPortuguesa,Paris-Lisboa, Aillaud-Bertrand, 1912, s/v. Consultar, ainda, CELSO FERREIRA DA CUNHA, O Cancioneiro de Martin Codax,RiodeJ aneiro,ed.doAutor,1956,s/v.;GLADSTONECHAVESDEMELO,Gramtica Fundamental da Lngua Portuguesa, Rio de J aneiro, Acadmica, p. 169; J OS OITICICA, Manual de Anlise, 5. ed. refundida, Rio de J aneiro, Francisco Alves, 1940, p. 68 , entre outros. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA V principaisdicionrios3anterioresa1943,bemcomooprojetodoDicionrioda LnguaPortuguesa,confiadopelaAcademiaBrasileiradeLetrascompetncia do professor ANTENORNASCENTES apesar de a publicao da obra, em quatro volumes, se haver iniciado em 1956. Comoslevesretoquesacimaapontados,creioqueotextoora estabelecido que enraza no das duas edies aqui citadas reproduza, com boamargemdesegurana,osfatoslingsticosdapoca,evenha,aomesmo tempo, esteado nas lies de slida doutrina gramatical e na tradio da lngua literria. Asnotasderodap,intencionalmentebreves,visam,antesdetudo, inteligncia do "Discurso" por quem no esteja familiarizado com o estilo clssico e, por vezes, arcaizante de RUI. Porsinal,estasemeafiguraumadaspeasmaisdifceisdogrande orador. Aessnciadopensamentoquenelasecontm,oseualtosentidode evoluoreligiosa,encontram-semagistralmenteinterpretadospeloAcadmico AMRICO J ACOBINA LACOMBE, Presidente da FCRB, em conferncia que precede a edio de 1953 e nesta se reproduz. Quantolinguagemearquiteturaliterria,nosepodeesquecerque, composto por ocasio do preparo da Rplica, este Discurso no Colgio Anchieta haveria,inevitavelmente,detersidoinfluenciadopelaabundnciaeriquezado materialqueRUIrecolheraparaconstruiraquelamoledeconhecimentoda Lngua. Eis porque nos defrontamos porventura mais acentuadamente do que em outras obras dele com uma linguagem pancrnica, em que fraternizam modos dedizerdoperodoarcaico,construesdafaseclssicaetorneios contemporneos:aoerigirsuascatedraisverbais,RUInoperguntavalngua portuguesa quantos anos tinha! Isto tudo sem contar com aparato cultural que vai do Velho Testamento ao constitucionalismo norte-americano.

3MORAIS(ooriginalem2volumes),AULETE(tambmooriginal,em2volumes),CNDIDODE FIGUEIREDO, LAUDELINO FREIRE que foram os que tive mo. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA VI Agradeo amveis sugestes com que me presentearam HOMERO SENNA e ADRIANO DA GAMA KURY. Asnotasderodap(retornoaelas)alimentamaesperanadeelucidar possveisdvidasdoleitor,nosrelativamentelinguagem,mastambma refernciashistricas,mitolgicaseliterriasafimdequelhesejadado usufruir,emplenitude,oprazer espiritual proporcionado por este belo momento da inteligncia brasileira. Rio de J aneiro, maio de 1981 Rocha Lima FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA VII INTRODUO PalavrasproferidasporAMRICOJACOBINALACOMBE, DiretordaCasadeRuiBarbosa,nasessosolenerealizadano ColgioAnchieta,emNovaFriburgo,a19dejulhode1953,em comemoraoaocinqentenriododiscursodeRUIBARBOSA naquela Casa. O discursonoColgioAnchieta uma das oraes mais famosas de RUI BARBOSA. Compete com a Orao aos Moos na celebridade, e com ela forma um dpticoperfeito.MaisquequalqueroutraproduodeRUIBARBOSA,forneceos principaistextosquefiguramemcentenasdeantologias.atravsdeseus excertos, pois, que a mocidade trava conhecimento com o iderio de RUI. Marca ummomentodecisivonasuaevoluoreligiosa.elemesmoquemodizno prefcio Queda do Imprio. Assinalando os marcos de suas mudanas em face da f, contrape OPapaeoConclio e o DiscursodaMaonaria, o "homem de 1876", diz ele, ao de 1903, 1919 e 1921: o da orao do paraninfo no Colgio Anchieta, o da orao do jubileu na Missa Campal e o discurso parannfico em So Paulo1. Estacontnuaentidaevoluofoimuitasvezesapontadacomo contradio. As Contradies do Sr. Rui Barbosa foi o nome de um panfleto que fez poca. Nohavia,porm,acusaoquemaisoirritasse.Vriasvezesdelase defendeu,comaquelafriasagrada,que,nojuzodosmelhorescrticos,da seus escritos a nota de maior valia. Assim que, respondendo a um adversrio, num pleito famoso, escreveu ele sobre as supostas contradies estas linhas candentes:

As notas desta Introduo no figuram na edio original. 1 Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XVI 1889 T. I Queda do Imprio. Dirio de Notcias. Rio de J aneiro, Ministrio da Educao e Sade, 1947, p. LXXXV. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA VIII Seosdeusessehouvessemreservadocomoprivilgiodivinoessa faculdade,cadaconsumidorbrasileirodepapeldeescreverseriaum Prometeuabsortoemescalarasnuvens,noprocuradocu,masem buscadaprendacelestedeesgravatardivergnciasdoontemparaohoje nas opinies alheias. Quando se topa, nas letras remexidas, com um desses achados preciosos, dia de festa, ilumina-se a casa, emboca-se o megafono, e se anuncia ao longe que o adversrio est esmagado. Noh,entretanto,inutilidademaisintil.Oshomensdesisoe conscincia riem destas malcias. S a ignorncia ou a imbecilidade se no contradizem;porquenosocapazesdepensar.Savulgaridadeea esterilidade no variam; porque so a eterna repetio de si mesmas. S os sbios baratos e os nscios caros podem ter o curso das suas idias igual e uniforme como os livros de uma casa de comrcio: porque nunca escreveram nada de seu, nem conceberam nada novo. A sinceridade, a razo, o trabalho, o saber no cessam de mudar: no h outra maneira humana de acertar, e produzir. Varia a f; varia a cincia; variaalei;variaajustia;variaamoral;variaaprpriaverdade;varianos seusaspectosacriaomesma;tudo,salvoaintuiodeDeuseanoo dos seus divinos mandamentos, tudo varia. S no variam o obdurado, ou o fssil, o apedeuta, ou o nscio, o manaco, ou o presumido. Podeserquenomiolodeumcompiladorcaibainteirooimenso universo jurdico, petrificado, imutabilizado e catalogado nas suas regras, nas suashiptesesenosseusresultados.Tirante,porm,essascabeas privilegiadas, tudo no direito mudar constantemente [...]. H os grandes princpios, que formam a estrutura permanente desse mundo;mas,navastaatmosferadasidias,queoenvolve,nasgrandes correntesdossistemas,queosulcam,nosmaravilhososfenmenos criadores, que o animam, em todas as organizaes que o povoam, em todos os resultados que o enriquecem, tudo se transmuda e renova e transforma dia a dia. ............................................................................................................................. Assimque,debaixodocu,tudoobedeceaessaeternaleida transmudaoincessantedascoisas.Sinihilsubsolenovum,tambm poderamos dizer que nihil sub sole constans. Se todo o mundo se compe de contradies,dessascontradiesqueresultaaharmoniadomundo.Se das variaes pode emanar o erro, sem as variaes o erro no se corrige. [...] O homem no est em contradio consigo mesmo, seno quando o est com a sua natureza moral, que o ensina a considerar-se desonrado, quando atinacomaverdade,eseobcecanoerro.assimqueonossoprprio organismovive,mudandotodaahora,semmudarnunca;porquedasua identidaderealmentenomuda,senoquando,quebradasassuasleis orgnicas pela doena ou pela morte, deixa de eliminar o que deve eliminar, e absorver o que lhe convm absorver2. De mudar orgulha-se ele ainda no trecho que primeiro citamos da Queda do Imprio.

2 Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XLV 1918 T. IV Questo Minas x Werneck. Rio de J aneiro, MEC/FCRB, 1980, p. 203-5. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA IX Pelo que toca ao variar das opinies, deixem-me ter, mais uma vez, o consolodetrazerpraacomocoisadequemeprezo,enomepesa,a deliciosaculpadoshomensdeconscincia,anicaemqueheidemorrer impenitente.Beata,beata,beatssimaculpa!Nomotenhamamalos imutveis. Deus os desencrue. Deus os reverta da pedra e cal em homens. Deusosensineamudar.Porquetodooaprender,todoomelhorar,todoo viver mudar. De mudar nem mesmo o cu, o inferno ou a morte escapam. Mudar a glria dos que ignoravam, e sabem, dos que eram maus, e querem ser justos, dos que no se conheciam a si mesmos, e j melhor se conhecem, ou comeam a conhecer-se. O que, no mudar, se quer, que se no mude para trs, nem do bem paraomal,oudomalapeior.Semeachassem,hoje,menostolerante, menosliberal,menosamigodajustia,menosdedicadosleis,menos humano, menos dado ao trabalho, menos cristo do que ontem, a sim, bem era que mo imputassem a culpa, vergonha, ou crime. Mas,emtodosessespontos,sempredomenosparaomais, suponho eu, do mal para o bem, ou do bem para o melhor que tenho mudado, ou feito por mudar3. Mas quais eram as atitudes anteriores, de que mudara RUI BARBOSA? Ele mesmo o diz no trecho primeiro citado, do prefcio Queda do Imprio: Onde,porm,creioseperceberdiferenamaissensvel,nos sentimentosreligiosos.Profundaeinalteravelmentecristosforameles sempre4. E neste ponto afirma rigorosa verdade histrica. Ele no vinha da negao deDeusnemdosEvangelhos.Vinhadeumaatitudegeneralizadaemsua gerao,atitudedefendidanaoraofnebreemhomenagemaALEXANDRE HERCULANO, na Bahia, de um cristianismo antetridentino, dos velhoscatlicos de DLLINGER,emsuma,queviamnoPapaPioIXenaCompanhiadeJ esus, considerada uma fora secreta e inescrupulosa, os destruidores da verdadeira f. NaquadrafinaldoImprioaquasetotalidadedenossoshomenspblicos pensava assim. Aignornciaeam-vontadetransformaramestaatitudedoutrinrianum vulgaratesmoeanticlericalismo.HouvequemafirmassequeRUIpregava imagens sagradas na sola dos sapatos para poder pis-las.

3 Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XVI 1889 T. I Queda do Imprio. Dirio de Notcias, cit., p. LXXXVI. 4 Loc. cit. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA X Noentanto,todososdocumentosquedelepossumosemrelaoaos problemas religiosos respiram a angstia dos problemas da f. Comecemos pelo grandeeducadorquefoiseupai,oDr.J OOJ OSBARBOSADEOLIVEIRA.Dele disse RUI em 1875: Emcontadecatlicoteve-semeupaisempre.Divinosreputavaos sacramentos, e a sua famlia os aconselhava5. Mas explica, logo adiante, o que era o catolicismo paterno: Professava todos os artigos do antigo credo catlico. Mas quanto aos dogmas proclamados neste sculo, quanto ao dogma de 1854 e o dogma de 1870, esses a conscincia rejeitava-lhe inflexivelmente. .............................................................................................................................O catolicismo de meu pai era o velho catolicismo de DLLINGER6. Lia J OOBARBOSA, habitualmente, com os filhos, o Novo Testamento, em exemplar que se guarda religiosamente na Casa de Rui Barbosa.Inculcou-lhesa prticadossacramentos.Dezenasdeanosdepois,aindasehaviadereferiro filhoemoocomqueseaproximoudamesasagradaemsuaprimeira comunho. Ainda sob o ponto de vista doutrinrio, at certo ponto da existncia, J OO BARBOSA tivera ocasio de manifestar a sua preocupao de ortodoxia. Na tese de doutoramento, acerca do sistema penitencirio de 1843, h seguidos protestos deadesofcrist.Emquasetodasasquestesdoutrinriaspermaneceao lado dos pontos de vista da Igreja, do clero "esta ordem to caluniada por quem no l a histria", diz ele. Clamarei rijo, que toda teoria mdica que rematar em uma negao do dogmacristo,filhadequalquercivilizaoser;pormdanossaquea crist, no, que no h mais dizer7.

5 Manuscrito existente no Arquivo da FCRB no qual RUI protesta quanto ao fato de lhe ter sido atribudaatraduo,naverdadefeitaporseupai,daobradeLABOULAYEsobreaImaculada Conceio. 6 Id. 7 OLIVEIRA, J oo J os Barboza d'. As Prises do Paiz, O Systema Penitencial, ou Hygiene Penal. Theseapresentada,esustentadaperanteaFaculdadedeMedicinadaBahia,em11de dezembro de 1843. Bahia, Typ. de L.A. Portella e Companhia, 1843, p. 14. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA XI Natesedeconcurso,elaboradaem1846,nohoportunidadepara manifestaes doutrinrias, dado o carter extremamente tcnico da mesma, mas numaenfticaoferendaaDomROMUALDOANTNIODESEIXAS,MarqusdeSta. Cruz,ArcebispodaBahiaePrimazdoBrasil,reafirmaeconfirmaosprofundos sentimentos religiosos j defendidos. ,assim,apsomovimentodeflagradonotempestuosoeglorioso pontificadodePioIXapsaproclamaododogmadaImaculadaConceio, que J OO BARBOSA foi arrastado quela direo doutrinria a que se referiu o filho napublicaojcitada.Chegoumesmoatraduzirepublicaropanfletode DOUARDLABOULAYEacercadaImaculadaConceio,sadoapblicoapssua morte,em1874.Estapublicaoveioacomprometerofilho,jquenose poderiam distinguir naquele tempo (se que hoje isso seria possvel) cambiantes to sutis entre heresia e heresia. Fora da Igreja, foi logo acusado RUI BARBOSA de atesmo. Ora, o atesmo ele repelira muito moo. Em discurso feito numa sociedade de estudantes, e cujas folhas amarelentas tive a emoo de encontrar no meio de alguns jornais no classificados no poro da C.R.B., e datado aproximadamente da era de 1870, h uma franca e solene declarao de f. Referindo-se perda da me, ocorrida em 1867, diz ele: Nestes lances de sobre-humano desespero, que seria de ns, se no nos valesse essa inspirao que nossas mes sabem derramar no corao infantil de seus filhos, esta crena indelvel na grande divisa, na vida futura, na infalibilidade da Providncia. Falo-vos assim porque eu tambm j provei desse clice. Muitas e muitas vezes, abrasado por essas pginas de fogo que geram as imaginaes escaldadas, eu iludi-me com os panegricos com que a razo humana tem endeusado a si mesma, muitas vezes julguei a inteligncia onipotenteeabsoluta;muitasvezesespereidescobrirnosrecessosda cincia,destacinciaquejtogrande,achaveparaosarcanosdo universo,oalimentoso,completoeabundanteparaoesprito,oblsamo generoso para as mgoas do corao. Deus, porm, estendeu o seu brao para mim e crestou a flor do meu orgulho. .................................................................................................................. Ento,...,acheioslivrosmudos,arazomuda,eafilosofiaestril. Chorei e abracei-me cruz. Foi a f que me salvou8.

8 "Discurso em Sociedade Acadmica Beneficente" (S.d.). In: ObrasCompletasdeRuiBarbosa. Vol. I 1865-1871 T. I Primeiros Trabalhos. Rio de J aneiro, Ministrio da Educao e Sade, 1951, p. 160. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA XII NohumasdeclaraodeatesmoemtodososescritosdeRUI BARBOSAdesdeasuaaparionavidapblica.Pelocontrrio,oproblema religiosoestsemprepresenteemsuaspreocupaeseemseustrabalhos intelectuais.SuaprpriaintervenonaQuestoReligiosa,suaclebre introduo d'OPapaeoConclio esto a indicar o homem religioso. A um ateu quesentidoapresentariamaquelassutisdistinesderegalismo,colaborao, separaodepoderes,infalibilidade,competnciadedefiniodogmticaea angstiapelocontnuoeapavoranteafastamentodamassapopulardavida religiosa? Caminhava, porm, RUI BARBOSA, seguramente, das posies exaltadas de 1876paraasatitudesmaismoderadasquefizeramdele,em1889,omembro indicado do Governo para entrar em entendimentos com D. ANTNIO DE MACEDO COSTA na preparao da lei de 7 de janeiro de 1890, cuja execuo se processou num ambiente de relativa compreenso.J em1893aceitafazerumaconfernciaembenefciodeumcolgio dirigido pelas freiras de Lourdes. Aproveita ento para protestar contra a fama de atesmo.Orgulha-sedesuasmudanaseexclama,emtrechotantasvezes transcrito: Todaminhacarreiratemsidoumsacrifciomanifestosinceridade. Semprequeumaopiniomeescaldaoesprito,meucostumedeix-la rompersobamaisardentedesuasformas.Nofaltareihojeaessa necessidade da minha ndole. Filho de um sculo devorado pela curiosidade supremadoinfinito,duvidei,neguei,blasfemei,talvezcomoele.Masesses momentospassaramsemprecomorpidastempestadesnaminha conscincia: quando elas se afugentavam, o horizonte do mistrio eterno me reaparecia como eu o vira no corao de meus pais. No me acolhi entre as filosofias que fazem da cincia a grande negao. Percorri as filosofias; mas nenhumamesaciou:noencontreiorepousoemnenhuma.Pusacincia acima de todas as coisas; mas no afirmei jamais que a cincia no possa abranger as coisas divinas. Nunca encarei a cincia como a sistematizao doantagonismocomoesprito.Esseincognoscvel,quenocabenos laboratrios,noacrediteijamaisquesedistanciedacinciapor incompatibilidadesinvencveis,unicamenteporqueestanosabeosmeios de verific-lo. Vejo a cincia que afirma Deus; vejo a cincia que prescinde de Deus;vejoacinciaqueproscreveaDeus;e,entreoespiritualismo,o agnosticismo,omaterialismo,muitasvezessemelevantadarazoesta pergunta: onde est a cincia? A mesma nvoa que a princpio se adensara FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA XIII sobreasinquietaesdocrente,acabaporenvolveroorgulhodosbio.A mesmadvidaquenosarrastaradastribulaesdafaoexclusivismo cientfico, pode reconduzir-nos do radicalismo cientfico placidez da f9. No havia qualquer sombra de hipocrisia nestes protestos de honestidade depropsitosemrelaoaoproblemareligioso.Namaisestritaintimidade sabiam todos de suas prticas religiosas, especialmente a orao feita de joelhos pelamanhepelanoite,conformenosafirmou,maisdeumavez,aminha saudosa amiga e parenta D. MARIA AUGUSTA RUI BARBOSA. Quando,em5denovembrode1897,oatentadocontraPRUDENTEDE MORAIS apavorou os brasileiros, revelando o grau de desrespeito pela noo de autoridade que atingia a massa popular, RUI BARBOSA no hesitou em erguer em pleno Senado uma splica ao Criador de todas as coisas: Senhor,estendeisobreanossaamargamisriaumraiodavossa misericrdia; agitai em nossas almas o sopro da vossa fora. [...] Sondai, at aofundo,ondesosvossosolhospenetram,andoledestepovo,enele encontrareisosprincpiosbenditosdaabnegaoedaf,da piedade e da justia. ............................................................................................................................. Cessou, Senhor, a hora da poltica humana, e principiou a da vossa: escutai-nos, Senhor! a voz deste pas, que forceja para chegar aos vossos ouvidos nesta precelevantadadahumildadedestatribuna,noParlamentodeumanao crente,aoamigodosmansosedosjustos,aopaicomumdetodosos homens,porumdaquelesquemaisprofundatmaconscinciadassuas culpas e o sentimento do seu nada. [...] Vendo florescer na Amrica do Norte a liberdade poltica sob as asas daliberdadereligiosa,oquensquisemos,Senhor,separandoaIgrejado Estado,foiaproximardevsasociedadeeaIgreja,substituirareligio polticapelareligioviva.Vs,quedesceisatontimodospensamentos mais ocultos, bem sabeis que outro no foi o daqueles que, como eu, fizeram essa reforma, o do heri crente, que ma incumbiu; e o calor que ela derramou na adorao do vosso nome, a concorrncia que trouxe aos vossos templos, veio mostrar que no nos enganvamos. Mas uma filosofia rida e morta, de opresso e crueldade, usurpando a vossa conquista, organizou o poder em seita e empreendeu substituir no nimo do estadista, do povo e do soldado, o culto da cruz, que abonana as paixes, humaniza os exrcitos, pelo culto da intolerncia, da ditadura e da fora. Demodoque,justamentequandosobrearunadenossasiluses liberaisseestabeleciaosperodespotismodaespada,atropa,

9 "Conferncia em favor de cinqenta rfs do Asilo de Nossa Senhora de Lourdes da Feira de Santana em 22 de fevereiro de 1893". In: Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XX 1893 T. I Visita Terra Natal. Discursos Parlamentares. Rio de J aneiro, Ministrio da Educao e Sade, 1948, p. 45-6. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA XIV emancipando-sedofreiohumanonadisciplinamilitar,perdia,como esquecimento de Deus, o freio divino que preserva da selvageria os homens endurecidos no hbito das armas, as multides organizadas para a morte. Restitu,Senhor[spraxesbrasileiras],osensodasnecessidades nacionais; dai ao Governo brasileiro a coragem herica da lei, incuti ao povo brasileiroosentimentoindmitodoDireito,livraiosoldadobrasileiroda vertigem do sangue, ensinai-o a amar a obedincia e a paz, a humanidade e apacincia,apobrezaeosacrifcio,quesoasverdadeirasfontesda bravura, o grande manancial das virtudes da guerra, a sementeira das vitrias sem mancha. Fazei-nos viris e capazes da liberdade, Senhor; libertai-nos da ambiopoltica,emcujasgarrasestanaocaiucomopresaindefesa; permitiqueaRepblicabrasileiranotenhaporcolunasojacobinismoeo terrorismo, mas o sentimento liberal e o sentimento religioso10. Estoemgrmennestaspalavras,proferidas,repisamos,em1897, algumas das idias que ele havia de defender nesta Casa alguns anos depois. Doanoseguinte,1898,temosumvaliosodocumentodapersistnciade RUIBARBOSAemseushbitosreligiosos.umacartaescritadestacidadede Friburgo, onde ele descansava das campanhas polticas, e onde, por insistncia do velho amigo RODOLFO DANTAS, comeou a ver com outros olhos os padres da Companhia, a que haveria de confiar, mais tarde, o ltimo filho varo. A carta dirigida a um parente e compadre11, cujo sangue orgulho-me de ter nas veias. Friburgo, 2 de abril, 98 J acobina, meu bom amigo. Acabodereceberassuasduascartasdeontemeanteontem.Os seussentimentoscorrespondememtudoaosmeus;e,seentreeles houvessedivergncia, fique certo de que eu me inclinaria ao seu critrio, suacalma,suaretidodenimo,segurodeacertarmelhordoque deixando-me levar pelos impulsos de um corao magoado e de uma alma transbordantedeindignao.Nuncasentipelasvilaniashumanasmais enjos e pela sorte de nossa terra mais desnimo. Felizmente a f em Deus se me vai acendendo, medida que se me apaga a confiana nos homens. No meio de tantos desconfortos e iniqidade tenho-me entregado estes dias exclusivamenteleituradoEvangelho,aeternaconsolaodosmalferidos nos grandes naufrgios. Uma excelente edio, que eu trouxera comigo, do livrodivino,permitiu-meesterecursoreanimador,graasaoqualmesinto, emcertosmomentos,comoqueressuscitarcapazdeaindaservirpara alguma coisa aos meus semelhantes12.

10 Discurso proferido em 6 de novembro de 1897. In: Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XXIV 1897T.IOPartidoRepublicanoConservador.DiscursosParlamentares.RiodeJ aneiro, Ministrio da Educao e Sade, 1952, p. 179-81. 11 J OS EUSTQUIO FERREIRA J ACOBINA. 12OriginaldoadoaoPapaPAULOVI,pelaFCRB,em1978.Confrontorealizadocomacpia xerogrfica existente no Arquivo da FCRB. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA XV O processo interior continuava, assim, lento e lento no aperfeioamento da vidareligiosa.Noh,pois,nenhumafalsidadenotomreligiosodequeesto embebidos os discursos de RUIBARBOSA, cujas razes espirituais como que iam procurando terreno cada vez mais seguro. Aindaumtestemunhoedificantedesuavidainteriortemosnoexemplar agoraexistentenaCasadeRuiBarbosa,dasuaediodaImitaodeCristo. Trata-se de um livro com uma curiosa histria. Foi oferecido a RUIBARBOSA por seu filho J OO, ento aluno desta Casa, talvez por inspirao de algum de seus mestres, com a seguinte dedicatria: Que te caiam na alma as doces palavras de Cristo como a muitos caram. Ao bom paizinho oferece o filho J OO. Aps a morte de RUI BARBOSA, D. MARIA AUGUSTA ofereceu este precioso livro a FreiCELSODREILING,religiosofranciscanoqueoassistiunosltimosinstantes. Foi, aps a morte deste sacerdote, oferecido por Frei LUDOVICO DE CASTRO, ento R.PadreProvincial,CasadeRuiBarbosa.Estbastantelido,relido,e profusamente anotado, no somente no texto da Imitao, como no do Formulrio deOraes,quevememapndice.Algumasnotasseprenderolinguagem, queemexcelentevernculo;outrasserelacionaroevidentementessuas prprias meditaes. Algumas das marcas representam certamente experincias de sua prpria vida que ele ter encontrado refletidas nas linhas serenas do autor desconhecido. Esta, p. ex.: Estive em extrema penria de tudo; ouvi queixas freqentes de mim; suportei,comcalma,injriaseoprbrios;emtrocadebenefciosrecebi ingratides; responderam com blasfmias aos meus milagres, com censuras minha doutrina13. Observou j um arguto comentador destas notas que as marcas de leitura quasedesaparecemdolivroreferenteaoSantssimoSacramento.quea ascensodeRUIBARBOSAnoalcanaraaindaoscimosdaprticareligiosae aindahaviasonsqueoseuouvidobemdotadonoconseguiaperceberna FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA XVI harmonia das belezas msticas daquelas pginas. No se processara ainda uma volta aos sacramentos, como desejavam to ardentemente alguns amigos, entre os quais o velho FELCIO DOS SANTOS, companheiro de mocidade, que se afastara bem mais do que ele da crena tradicional e que, na frutuosa velhice, aproximara-sedeRUIcomointuitodeajud-lonosmomentosdifceisdessaoutra reaproximao definitiva. O fato que a leitura e a releitura da Imitao foi a porta aberta para outras leituras religiosas, at chegar ao prprio brevirio, conforme nos narrou D. MARIA AUGUSTA,queelegostavadeleralto,noite,paratirartodooproveitoda musicalidade da lngua latina. QuandoonuncaassazlembradoPadreLUSYBARinsistiuemqueRUI BARBOSAviesseaFriburgodizerumaspalavrasaosalunosquedeixavamo colgio em 1902, respondeu ele em carta de 10 de dezembro: Queria eu obedecer aos seus desejos, para mim hoje quase ordens, comunicando-lhe que entraria no programa da sua festa colegial com o meu discursinhoaosmeninos.Masnomesentiacapaz,taltemsidoaminha estafaestesltimostempos,tofatigadoedoentemesinto.Ento remanchava, a ver se cobraria afinal nimo, e, vencendo tudo, me atreveria resoluo de tomar esse compromisso. Infelizmente, porm, no melhoraram para mim as circunstncias. Antes me cresceu a tarefa e, com o excesso de trabalho, o cansao e desnimo. Dir que bem pequena coisa ter com as crianas uma palestra. Mas, em certos estados de esprito, quando a energia cerebral se nos abate, tudo avulta, e nos assoberba. Assim deixemos para o anoquevemahonraqueV.Exa.mequerproporcionar.Ento,querendo Deus, conversarei de corao folgado com os seus alunos14. Estediscursinhoaosmeninos,"decoraofolgado",veioaser,afinal,o discurso de 1903, a que ele aps, para usar suas prprias palavras, "o selo da mais absoluta sinceridade". "Eu suplicaria a Deus", continua ele, fizessedoquevosvoudizeromeutestamentopoltico,altimaexpanso pblica do meu amor a meu pas15.

13 Imitao de Jesus Christo e Formulario de Oraes. 2. ed. aperfeioada. Recife, F. A. Gomes de Mattos Editor, 1900, p. 120. 14CartasInditasdeRuiBarbosaaumJesuta.Sep.deVerbum,publicaotrimestraldas Faculdades Catlicas, t. 6, fasc. 4, dez. 1949. 15 V. p. 7. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA XVII Apalestracomascrianaspassouarepresentarumpontoluminosonaquela existncia atribulada. Ponto luminoso que fecha uma etapa e abre outra em que as afirmaes se tornam cada vez mais ntidas em matria de f. Logo no ano seguinte, comentando os graves movimentos polticos, diz em carta a um jornal: No sei se incorro em ridculo, trazendo por estas alturas o nome de Deus. Se incorrer, pacincia. No me arrependo, e persisto. Nasci na crena dequeomundonosmatriaemovimento,osfatosmoraisacasoou mero produto humano. O estudo e o tempo no me convenceram de que as leis do cosmos sejam incompatveis com uma suprema causa, de que todas ascausasdependam.J agoramorrereicomomeuspaisabenoando,no quinho de bem que nos toca, uma ddiva divina16. Na lenta, mas segura ascenso de RUI BARBOSA, este discurso representou um grande momento. O Senhor o levou antes que ele houvesse subido no mesmo ritmo os degraus que o separavam do altiplano em que poderia realmente sentir-sedevoltareligiodeseuspais.Masconcedeu-lhe,nosltimosinstantes,a graaderevelaramplamentesuaperfeitainteno.QuerperanteMonsenhor RANGEL em fins de 1922, quer perante Frei CELSO em 1923, perseverou em suas crenas. Agora que comemoramos meio sculo destas palavras que daqui reboaram portodooBrasil,ergamosnossopensamentoaohomemquetantasvezes encarnou a alma atribulada e sedenta de justia do povo brasileiro e prestemos nossa homenagem aos que criaram o clima propcio elaborao de to grave documentohistrico:aospadresdaCompanhiadeJ esus,naquelemomento dignamenterepresentadospelagrandefiguradesacerdotequefoioPe.LUS YBAR, que ainda conservo na memria percorrendo estes corredores, cercado de respeito e venerao de todos que dele se aproximavam o homem a quem como a poucos se expandiu RUI BARBOSA em cartas memorveis, o homem que deuaoBrasilaoportunidadedeouvir as gloriosas palavras cujos ecos o Brasil conservar enquanto for Brasil, palavras que ouviremos daqui por diante com o brnzeo timbre da perenidade:

16 "Carta Tribuna." In: ObrasCompletasdeRuiBarbosa. Vol. XXXI 1904 T. I Discursos Parlamentares. Rio de J aneiro, Ministrio da Educao e Sade, 1952, p. 355. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA XVIII Asformaspolticasso vs, sem o homem que as anima. o vigor individualquefazasnaesrobustas.Masoindivduonopodeteressa fibra,esseequilbrio,essaenergia,quecompemosfortes,senopela conscinciadoseudestinomoral,associada ao respeito desse destino nos seus semelhantes. Ora, eu no conheo nada capaz de produzir na criatura humanaemgeralesseestadointerior,senooinfluxoreligioso.Nemo atesmo reflexivo dos filsofos, nem o inconsciente atesmo dos indiferentes socompatveiscomasqualidadesdeao,resistnciaedisciplina essenciaisaospovoslivres.Osdescrentes,emgeral,sofracose pessimistas, resignados ou rebeldes, agitados ou agitadores. Mas ainda no basta crer: preciso crer definida e ativamente em Deus, isto , confess-lo com firmeza, e pratic-lo com perseverana17.

17 V. p. 47-8. DISCURSO NO COLGIO ANCHIETA FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 2 EXMO SR. ARCEBISPO REV. PE. REITOR. MINHAS SENHORAS E SENHORES. Para os que fazemos1 todos os anos esta romaria do corao, este lugar um santurio, a que se acode com alvoroo. Destes cimos, onde estas serranias verdejantes encontraram, afinal, a sua mais bela coroa, o Colgio Anchieta nos estendedistnciaosbraos.Ondequerqueestejamos,epormaisquenos afastemos, o esmalte destes longes azulados se nos avizinha, desenhando-se no horizontemaisprximo,comoumpanoramafamiliar.Aorespirarmos,de manhzinha, a primeira aragem do dia, a janela que abrimos nos olha2 para as montanhas de Friburgo, para as devesas destes cabeos de esmeralda, que se recortam aqui no espao transparente, para a Village sua dos primeiros colonos destesstios,agoratransformadapelamocriadoradosdescendentesde ANCHIETA. Sobre a tarde3, quando o colorido tropical de nossa natureza desmaia namelancoliacrepuscular,muitasvezesestamosvendosuspender-seesta paisagem,comoseugorjeiodecrianasalegres,sobreasnossascabeas, espcie de miragem risonha, ora no ambiente montono da cidade, ora na doce tristezadoscampos.Depois,anoite,umasvezesanilada,outrasargentina,se recama de cintilaes longnquas, ou deixa cair em tnica imensa a sua claridade roagante.Ento,oranasestrelaspequeninasquelucilammaisbaixo, estremenhas4entreocueaterra,nosparecebrilharem,destasparagens,as

1 Paraosquefazemos. O verbo est na 1 pessoa do plural (fazemos), e no na 3 (os que fazem), porque quem fala se acha includo entre os que participam na ao verbal. 2 nos olha: nos faz olhar, faz que olhemos. 3Sobreatarde:aocairdatarde,aoentardecer.Apreposiosobreaindicar"tempo aproximado". 4 estremenhas: confinantes, limtrofes, como que situadas numa fronteira (entre o cu e a terra). FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 3 lmpadas silenciosas da estudaria5, com alguma coisa dos olhares travessos que chispamnacalmanoturnadestesbancos;oraabrancuradasimagenslunares nos debuxa, no seu alvor prateado, estas paredes, estas cornijas, estas galerias, operfildestemonumentoconsagradoaocultodenossospaiseculturade nossosfilhos.Demodoque,naperegrinaofestivadestasolenidade,quando nos acercamos destas alturas duas vezes santificadas, quando tornamos a subir estaencostahospitaleiraebendita,osabraos,asefuses,osbeijosque trocamos,soestremes6deamarguraesuavescomoosdecadamanhnas casas felizes, em que os filhos adormecem todas as noites no amor de seus pais, e os pais acordam todos os dias entre os carinhos de seus filhos. A emoo, pois, a grande emoo destas cerimnias anuais, que eu rogo a Deus me permita ver ainda muitas vezes, como alvio d'alma, numa poca em que o contentamento to raro, est nos prmios que hoje se distribuem, por juzes incorruptveis, aos primeiros triunfos da vida e, sobretudo, no adeus que vo dizer aosseuscompanheiroseaosseusmestresaquelesquesepartem7,parano volver.Vingaram8aprimeiradivisointelectualdaexistncia;transpuseramo primeiro grande marco de trabalho; e agora, deixando os scios, os estudos, os brincos, os guias dos seus anos mais descuidados, vo ensaiar vo noutra esfera, resolver a incgnita da sua vocao, fazer a seleo de sua carreira, demandar o nortedoseufuturo.aprimeiraabertadavida,comoseudescortinode indecisas responsabilidades. Ides,meusbonsamiguinhos,trocaroLiceupelaAcademia,e,sentindo vagamente a solenidade do passo, invocais uma palavra, que vos assista, com o viticodoconfortoedaexperincia,paraajornada,suasdvidas,seusriscos, suasansiedades.Estaamissodovossoparaninfo.Dosgregosherdamoso vocbulo,comtodaasonoridadedasuamsicaetodaapoesiadassuas reminiscncias.Era,entreoshelenos,oamigopredileto,queacompanhavao

5 estudaria: local destinado, numa casa de ensino, a estudo e preparao dos deveres escolares por alunos internos. Palavra em desuso. 6 estremes: descontaminados. 7quesepartem: que partem, que vo embora. Este se, partcula expletiva, junta-se a verbos pessoaisintransitivos,aosquais,algumasvezes,pareceacrescentarcertosmatizesaindano bem averiguados. 8 Vingaram: ultrapassaram. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 4 noivonocarronupcial.Foi,naantigidadecrist,opadrinho,quelevavaos desposadosaoaltar.hoje,nestesesponsaisdotrabalhocomamocidade,o eleito dos que recebem o anel e as palmas, a fim de lhes auspiciar a felicidade da aliana. Mas este bom agoiro9, com a lio de verdades que o deve envolver, como os aromas sagrados envolvem, nos templos, a orao, haveis de t-lo ido pedir a outro: a um esprito feito de saber, serenidade e pureza, a uns lbios costumados doutrina e ao conselho, a uma vida carregada de bnos e frutos. No a um homem de luta e combate, cumulado de dios, mortificado de reveses, golpeado de provaes, a um poltico malogrado, com todos os seus erros e todas as suas culpas, todas as suas queixas e todos os seus pecados, com todos os defeitos caractersticosetodososvciosirremediveisdeumacarreira,emqueselhe esterilizou o melhor de sua natureza: o gosto das coisas intelectuais10, a estima dos prazeres11 desinteressados, a elevao da vida espiritual. Masvsoquisestes;etivequeobedecergrataviolnciadevosfalar, convalescente,aindasemforas,doacintedeumaenfermidade,quemeia roubando esta satisfao. Experimento-a hoje pela primeira vez, essa doura, a que os vossos mestres se afizeram, e posso assegurar-vos que a sinto no ntimo d'almacomoumcarinhobondosodaminhafortuna12.DEMSTENESse ensoberbeciadeteraPLATOporouvinte,prezandoemmais13tamanhahonra queadesenhorearporauditrioomundointeiro.Paramimademeentreter convoscosobreexcedeemgozoatodososmomentosdevoorgulhoeintil embriaguez, que a tribuna me possa ter dado.

9 agoiro. Alternam em muitas palavras os ditongos ou e oi. Em casos assim, a escolha de RUI inclina, quase sempre, para a forma de menor curso no Brasil. 10 ogostodascoisasintelectuais:ogostopelascoisas intelectuais. Goza da preferncia dos clssicosousodapreposiodeemseqnciaasubstantivosquesignificamdisposiode nimo em relao a alguma coisa ou pessoa (o amor da ptria, o horror da opresso, o desprezo dos inimigos, etc.). A par com esta preposio podem ocorrer, conforme o caso, principalmente a, por e para. 11 a estima dos prazeres: a estima pelos (ou aos) prazeres. V. nota 10. 12 fortuna: boa sorte. 13emmais:comocoisamaisimportante,comofatodemaiorvalor.Trata-sedepredicativo (constitudo de preposio+palavrasubstantivada) do objeto direto "tamanha honra". Este mais concentra em si, a um s tempo, forte carga qualificativa e intensificadora. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 5 Todasascausas,algumasbemsantas,emqueelafoiomeucampode batalha,novalemmaisquea14dovossodestino.Comadiferenaqueali espargia eu ao vento os meus rebates de atalaia, as minhas vozes de guerreador, ou os meus vaticnios de profeta (que tudo me imaginava na vaidade da minha ambio e na impotncia do meu nada); ao passo que hoje, aqui, serei apenas a mo ch do semeador, semeando algumas sementes de bem no torro virgem do seio que me abris. E, quando a minha tarefa deste momento se me antolha sob esta feio, alguma coisa passa por mim como de cima, religiosamente. A fronte do sacerdote se verga para o clice consagrado. A do lavrador, para a terra. A do que espalha o gro da verdade, para o sulco soaberto nas conscincias novas. E todos trs receberamordenssacras.Todosconcorremparaafecundaodivinado Universo.Ahstia,oarado,apalavracorrespondemaostrssacerdciosdo Senhor. Mas a suprema santificao da linguagem humana, abaixo da prece, est no ensino da mocidade. O lavrador deste cho devia amanh-lo de joelhos. Crede que me acho realmente sob esta impresso, como se, ao receber dos braos de minhacompanheiraumfilhorecm-nascido,umavozinteriormesegredasse: "Purifica o teu hlito, que lhe vai insuflar a vida, ou a morte."Seaminha15fossenecessria,paragravarindelevelmentenestemeu colquioconvoscooselodamaisabsolutasinceridade,eusuplicariaaDeus fizesse do que vos vou dizer o meu testamento poltico, a ltima expanso pblica do meu amor a meu pas. Quando me consulto a mim mesmo, no mais recolhido exame,forcejandoatinaremqueteriaeumerecidoalgumapreodosmeus compatrcios,eporque16vosinspirarataissimpatias,noachoameucrdito senotrsmodestasverbas.Caso,postosdeparteosdescontoshumanos, houvessemdecondensarnumasnteseomeucurriculumvitae,edomeu naufrgiosalvassemalgunsrestos,tudoseteria,talvez,resumidocomdizer: "Estremeceu a ptria, viveu no trabalho, e no perdeu o ideal."

14 que a [causa] do vosso destino. 15 se a minha [voz] fosse necessria. 16porque.Numsvocbulo,amodelodofrancs(pourquoi?)edoitaliano(perch?).o advrbio de causa, figurante, a, numa interrogao indireta. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 6 So as trs faces da minha vida. So os trs aspectos, em que se poderia compendiar o bem e o mal da vida humana. Se alguma notcia da realidade moral tenho, a que eles me exprimem. Sejam, pois, esses, hoje, os trs versculos do nosso evangelho. Nada mais natural que o amor da ptria17; mas tambm nada mais confuso, nada mais abusado, nada mais degenervel. Toda a18 planta quer19 ao hmus, de que se nutre, ao envoltrio areo, onde respira, ao pedao de azul celeste, que lhesorrieaorvalha.Masessesrebentosdaseivaterrestrenotmpaixes, comoaplantahumana.Esta,deseunatural,ambiciosa,violenta,agressiva, invasora, absorvente, exclusivista; e todas essas aberraes malvolas facilmente misturacomopatriotismo,que,assimentendido,separecetantocomobom amor da ptria como o mal com o bem. Desconfiaidosrtulos,quementem,meusamigos,ehabituai-vosa contrastear a mercadoria com o critrio vivo do vosso bom senso. Pois no foi o Terror,porexemplo,quem20inaugurouempolticaasenhadaFraternidade?A guilhotinafizeradestapalavraaexpressodofratricdio,arvoradoemleide governo. "Cheguei a esta concluso", filosofava METTERNICH em Paris: "reinando a fraternidade, que aqui se usa, se eu tivesse irmos, trat-los-ia de primos." As mais horrendas matanas que ensangentaram aquele pas, tocam ao regmen21 dessa legenda pacificadora: desde as trucidaes de mulheres e meninas pelos setembristas22 em 1792 at o assassnio dos refns pelos comunistas em 1871. J vedes que, no vocabulrio dos sofismas da maldade, os mais formosos nomes padecem deturpaes de sentido atrozes. Mas dessas fraudes blasfemas

17 o amor da ptria. V. nota 10. 18 Toda a planta: qualquer planta. Atualmente, costuma-se distinguir todo o (=inteiro) de todo (=qualquer).Osclssicos,entretanto,decujalinguagemRUIprocuravaaproximar-se,usavam indistintamente de uma e outra forma. 19queraohmus...Acompanhadodecomplementocoma,overboquerersignifica"amar, estimar, ter afeto". 20quem.Modernamentequasesseempregareferidoa"pessoa",ou,comoasituao presente, no caso de "personificao" do termo a que se alude (o Terror, episdio da Revoluo Francesa). 21regmen.varianteverncularegimeRUIpreferesistematicamenteaformaalatinada regmen. 22 setembristas em 1792: os autores de execues sumrias de mais de mil pessoas, entre 2 e 6 de setembro, nas prises de Paris, durante a Revoluo Francesa. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 7 nenhum sofreu ainda maiores torturas que o de patriotismo. No vos iludais com essasfalsificaesabominandas23.Osentimentoquedivide,inimiza,retalia, detrai,amaldioa,persegue,noserjamaisodaptria.Aptriaafamlia amplificada. E a famlia, divinamente constituda, tem por elementos orgnicos a honra,adisciplina,afidelidade,abenquerena,osacrifcio.umaharmonia instintivadevontades,umadesestudadapermutadeabnegaes,umtecido viventedealmasentrelaadas.Multiplicaiaclula,etendesoorganismo. Multiplicaiafamlia,etereisaptria24.Sempreomesmoplasma,amesma substncia nervosa, a mesma circulao sangnea. Os homens no inventaram, antesadulteraramafraternidade,dequeoCristolhesderaafrmulasublime, ensinando-osaseamaremunsaosoutros:Diligesproximumtuumsicutte ipsum25. Dilataiafraternidadecrist,echegareisdasafeiesindividuaiss solidariedades coletivas, da famlia nao, da nao humanidade. Objetar-me-eis com a guerra? Eu vos respondo com o arbitramento. O porvir assaz vasto, paracomportarestagrandeesperana.Aindaentreasnaes,independentes, soberanas,odeverdosdeveresestemrespeitarnasoutrasosdireitosda nossa.Aplicai-oagoradentronas26raiasdesta:omesmoresultado: benqueiramo-nosunsaosoutros,comonosqueremosansmesmos.Seo casal27 do nosso vizinho cresce, enrica e pompeia, no nos amofine a ventura, de que no compartimos. Bendigamos, antes, na rapidez da sua medrana, no lustre dasuaopulncia,oavultardariquezanacional,quesenopodecomporda misria de todos. Por mais que os sucessos28 nos elevem, nos comcios, no foro, noparlamento,naadministrao,aprendamosaconsiderarnopoderum

23abominandas:quedevemserabominadas.Otermousadopeloescritor(maisprecisoque abominveis) pe em relevo a idia de "obrigatoriedade", contida na forma latina originria. 24Multiplicai...etendes/Multiplicai...etereis.Equivalente(s)semntico(s)daconstruo condicional(= Semultiplicardes...tereis).Aoposiodetemposverbais(tendes/tereis),de naturezaestilstica,representaocontrasteentreasidias,respectivamente,de"conseqncia certa" e "conseqncia espervel, ou previsvel". 25 Amars teu prximo como a ti mesmo. 26 dentro nas raias: dentro das raias. dentro em locuo prepositiva corrente na linguagem dos clssicos. 27 casal: pequena propriedade; granja, stio. 28 sucessos: acontecimentos. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 8 instrumento da defesa comum, a agradecer nas oposies as vlvulas essenciais deseguranadaordem,asentirnoconflitodosantagonismosdescobertosa melhorgarantiadanossamoralidade.Nochamemosjamaisdeinimigosda ptria aos nossos contendores. No averbemos29 jamais de traidoresptria os nossos adversrios mais irredutveis. A ptria no ningum: so todos; e cada qual tem no seio dela o mesmo direito idia, palavra, associao. A ptria no um sistema, nem uma seita, nemummonoplio,nemumaformadegoverno:ocu,osolo,opovo,a tradio, a conscincia, o lar, o bero dos filhos e o tmulo dos antepassados, a comunhodalei,dalnguaedaliberdade.Osqueaservemsoosqueno invejam, os que no infamam, os que no conspiram, os que no sublevam, os quenodesalentam,osquenoemudecem,osquenoseacobardam,mas resistem,masensinam,masesforam,maspacificam,masdiscutem,mas praticamajustia,aadmirao,oentusiasmo.Porque30todosossentimentos grandes so benignos, e residem originariamente no amor. No prprio patriotismo armado, o mais difcil da vocao, e a sua dignidade, no est no matar, mas no morrer.Aguerra,legitimamente,nopodeseroextermnio,nemaambio: simplesmenteadefesa.Almdesseslimites,seriaumflagelobrbaro,queo patriotismo repudia. Masopatriotismo,praticamente,consiste,sobretudo,notrabalho. Laboremus31,murmurava,expirando,oimperadorromano.Laborate32,estoa dizer-vos,nasuaausteraalegria,todososcnticosdestasolenidade,seus emblemas, seus quadros, as recordaes de vossa vida entre estes muros, que aquificam,naconstnciadasuaimobilidade,ahospedaroutrasgeraes,e assistir a outras despedidas. Osabermoderno,espaandoincomensuravelmenteasestremas33do universoacessvelsondahumana34,rasgouaoestudopramosencantados,

29 averbemos: qualifiquemos, tachemos. 30Porque.Introduzoraocoordenadaquecontmajustificaodoquefoiditonoperodo anterior. Quando de certa durao ou a servio da nfase oratria, a pausa que separa a orao de "porque" coordenativo pode assinalar-se por ponto-e-vrgula e, at, por ponto simples. 31 "Laboremus". Forma verbal latina: trabalhemos. 32 "Laborate". Forma verbal latina: trabalhai. 33 estremas: divisas, fronteiras. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 9 revelou curiosidade imprevistos fabulosos, armou a observao de instrumentos estupendos, variou-nos ao infinito o campo do trabalho. Mas, por isso mesmo, o adscreveu a uma prudncia, a uma temperana, uma humildade, que encerram a cadatrabalhador35nosmbitosmaisestreitos.Assntesesvmaseragorade umavastidoecomplexidadeinenarravelmenteembaraosas.Asanlises,de umaparticularizao,umaseveridadeeumadelicadezanomenosexigentes. De sorte que, nessa imensidade incalculvel, balizada pela imaginao entre dois infinitos,odoinvisvelsidreoeodoinvisvelmicrobiano,omenorrecanto, conscienciosamenteexplorado,bastaaabsorverasforasdeumtalentoea atividade de uma vida. Quanto mais largas vastides abrange o saber, tanto mais razo de serem modestos os seus cultores. A circunferncia visual se ensancha, medida que a luneta do observatrio alcana mais longe. Mas o observador um ponto, que se reduz cada vez mais no centro do horizonte sensvel. Muito h que algum disse: "O sbio sabe que no sabe." Considerai agora quanto mais discretos, quanto menos desvanecidos no devemos de ser os que no transpomos36 a condio ordinria da mediocridade, e, como esses, os principiantes, os novos, as crianas, todos os que, no revolver desses latifndios, esto ainda flor da terra. No vos desacoroo do estudo, meusamigos:to-somentevosacautelodapresuno.Pormenorquesejaa safra intelectual de cada um, pode ser um tesoiro37: um dia afortunado enriquece s vezes o explorador. Nem s os laureados entre os demais, os que aumentam denovoscabedaisopatrimniocomum,sehodeterporbempagosdalida estudiosa.Saberestudar,possuiraartedeaprender,habilitar-seanavegar seguro por essas guas e atravs desses escolhos, j ser abastado nas posses, e ter aproveitado o tempo. Conhecer da natureza quanto seja mister, para adorar

34sondahumana.Emprega-seaexpressoemsentidofigurado.Hdeentender-se aproximadamente assim: o conjunto de recursos de que podem dispor os homens para abranger a imensido de conhecimentos que o saber moderno lhes permite abarcar. 35encerramacadatrabalhador.Objetodiretoexpressopornomedepessoaoureferentea pessoa, aceita, facultativamente, a presena da preposio "a". 36 os que no transpomos. V. nota 1. 37 tesoiro. V. nota 9. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 10 comdiscernimentoaDeus38,egovernarcomacertoavida,sobejamente compensa as maiores canseiras do entendimento, desde as porfias da escola at smeditaesdogabinete.Pordistintos,porm,quevoslogreisfazerentre todos, ainda que o mundo vos enrame a fronte de coroas, e o nome se vos grave entreosdoisprivilegiadosnafama,nosejanenhumdevsconfiadonasua suficincia,nemdasuaglriaseenvaidea.Porqueshumaglria verdadeiramentedignadestenome:adeserbom;eessanoconhecea soberba,nemafatuidade.Depois,acinciagrande,masoscientes,na infinidade do seu nmero, so pequeninos, como pequeninos so, contemplados do espao, os maiores acidentes da superfcie terrestre. Mocidadevaidosanochegarjamaisavirilidadetil.Ondeosmeninos camparem39 de doutores, os doutores no passaro de meninos. A mais formosa dasidadesningumporemdvidaquesejaadosmoos:todasasgraasa enfloram e coroam. Mas de todas se despiu, em sendo presunosa. Nos tempos de preguia e ociosidade cada indivduo nasce a regurgitar de qualidades geniais. Mal esfloraram os primeiros livros, e j se sentem com fora de escrever tratados. Dosseuslentesdesdenham,nosseusmaioresdesfazem40,chocarreiamdos mais adiantados em anos. Para saber a poltica, no lhes foi mister conhecer o mundo,outratar41oshomens.Extasiadosnasfrasespostiasenasidias ressonantes,vogamdiscrio42dosenxurrosdaborrasca,ecolaboramnas erupes da anarquia. No conhecem a obedincia aos superiores e a reverncia aos mestres. So os rbitros do gosto, o tribunal das letras, a ltima instncia da opinio. Seus epigramas crivam de sarcasmos as senhoras nas ruas; suas vaias sobem,nasescolas,atctedradosprofessores.umasuperficialidade satisfeitaeincurvel,umaprecocidadeembotadaegasta,maisestrilquea

38adorar...aDeus.Objetodiretorepresentadopelonome"Deus"requerobrigatoriamentea preposio a. 39 camparem: gabarem-se, jactarem-se. 40 nos seus maiores desfazem: desmerecem, amesquinham os seus antepassados. 41 tratar os homens: saber lidar com os homens. 42 discrio dos enxurros: vontade dos enxurros, sem lhes opor resistncia. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 11 velhice. Deus a livre a esta43 de tais sucessores, e vos preserve de semelhantes modelos. Sede,meuscarosamiguinhos,taisquaisoverdorflorescentedevossos anosoexige:afervorados,entusiastas,intrpidos,cheiosdasaspiraesdo futuro e inimigos dos abusos do presente. Mas no vos reputeis o sal da terra44. Habituai-vosaobedecer,paraaprenderamandar.Costumai-vosaouvir, para alcanar a45 entender. Afazei-vos a esperar, para lograr concluir. No delireis nos vossos triunfos. Para no arrefecerdes, imaginai que podeis vir a saber tudo; paranopresumirdes,refletique,pormuitoquesouberdes,muipoucotereis chegadoasaber.Sede,sobretudo,tenazes,quandooobjetoalmejadosevos furtar na obscuridade avara do ignoto. Profundai a escavao, incansveis como omineironogarimpo.Deummomentoparaoutro,nofiloresistentese descobrir, talvez, por entre a ganga, o metal precioso. Haveisdeouvirfalaramideemportentosemonstros,cujacapacidade nasceconsumadaedeslumbrantedoseiomaterno,comoPalasdacabeade J piter46. O portento pago se renova, entre ns, debaixo de todos os tetos. Cada famlia se gaba de uma guia47. Triste iluso da paternidade mal equilibrada. Os gniossometeorosraros,nemsemprebenficos.Eraramenteserofrutos espontneosdanatureza:asmaisdasvezesoscriaapacinciaea perseverana.aassiduidadenaeducaometdicaesistemticadens mesmosoque48descobreasgrandesvocaeseamadureceosgrandes escritores, os grandes artistas, os grandes observadores, os grandes inventores, os grandes homens de Estado. No contesto a inspirao; advirto apenas em que freqentemente uma revelao do trabalho.

43Deusalivreaesta.Otermo"aesta"(=avelhice)funciona,abenefciodaclareza,como aposto do objeto direto "a". 44 o sal da terra: os salvadores do mundo, os que alimentam a v inteno de corrigir as fraquezas dos homens. Com esta metfora se designam, em Teologia, os Apstolos. 45alcanaraentender.Regnciaarcaizadadoverboalcanar,nosentidode"conseguir", "lograr". 46comoPalasdacabeadeJpiter.Entidadesmitolgicas:Palas,deusadasabedoria,das artes e da guerra, era filha de J piter, que a fez sair de seu crebro, j armada da cabea aos ps. 47 guia: pessoa de grande talento (em sentido figurado). 48 a assiduidade... o que descobre. Sintaxe clssica, de largo uso at os fins do sculo XVIII. Um tanto rara na linguagem atual, que, em regra, prescinde do antecedente o (a, os, as). FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 12 Dos que nascem argentrios se fazem ordinariamente os prdigos inteis e malfazejos. A cultura pertinaz e obstinada que desentranha da gleba revessa as vegetaes luxuriantes, as florescncias maravilhosas, as frutificaes opulentas, searas,pomares,rebanhos,metrpoles,naes,estados,proleimensadesse casamentoperene,abenoadoporDeus,entreaterraeotrabalho.Trabalhai, pois, mas persistentes, incessantes, como o sol de todos os dias e o orvalho de todasasnoites.Ouvireisdiscorrerdegrandesepequenasnacionalidades,de imprios poderosos e repblicas desprezveis. Tudo a atividade, ou indolncia; tudo vai do trabalhar, ou no trabalhar. No h seno49 povos, que trabalham, e povos, que no trabalham. Se ns trabalhssemos, no veramos, no Brasil, com osseusdezesseisoudezoitomilhes50dehabitantes,umterritriocapazde alimentarapopulaodaChinaeumanaturezabastanteafartarmetadeda Europa,essaimportaofactciaeindizivelmentelamentveldasquestesda misria, que aoitam, no velho Continente, os pases exaustos ou sobrepovoados. Mas o trabalho rude, s vezes desabrido, ferrenho, desconversvel: no lisonjeia os seus nefitos, no ameniza as suas durezas, no condescende com asnossasdebilidades.Masprecisoencar-loserenamente.Noconheceis esses coraes meigos, francos, donosos, que um crtex de rvore enrugada e sombriaocultaaosolhosvulgares?Insisti,familiarizai-vos;eacabareisvendo, afinal, como o sobrecenho se desfranze, a aridez se orvalha, o amargor se adoa, edeondeseoiriava51deobstculoseantipatiasacrespidoimpenetrvel, comeam a soabrir inesperados favos, a abrolhar surpresas, a destilar mimos, a se tramar sutilmente de liames e carcias inefveis a rede, que nos enlaa para sempre nas suas malhas. Fez-se carne da nossa carne: entrou da epiderme ao msculo,domsculoaonervo,donervomedula,aocorao,aotecido pulmonar,aooxigniodosangue,clulacerebral,ramificandoosfios imperceptveis de vaso em vaso, entretecendo-os de fibra a fibra, atravessando-osdeglbuloemglbulo,atseimplantaremnsinseparavelmente,comoa maisorgnicadasnossasnecessidadeseomaisgeneralizadoelementoda

49 seno: exceto. Num s vocbulo; serve de pr uma exceo a uma expresso negativa. (Cf. se no, nota 125). 50 dezesseis ou dezoito milhes de habitantes. Recorde-se que este discurso de 1903. 51 oiriava. V. nota 9. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 13 nossa vida. Eis o trabalho como o eu amo, como o eu sinto52, como mister, para regenerar o homem, para transformar os povos, para criar os moos. Somenteaaquisiodestasegundanaturezanoseobtmsemoseu tirocnio especial um pouco rduo nos primeiros comeos, mas logo depois cheio desalutarescompensaes.Evitaioperfunctrio,osuperficial,oatamancado. Ousai sempre o que meditadamente resolverdes. Ultimai sempre o que tentardes. Proponde-vos a tarefa, estreita, moderada, circunscrita, segundo o vosso alento; masesgotai-a,limai-a,poli-a.Novosfiquedvida,quenoesquadrinheis; imperfeio,quenocorrijais.Tendeporigualmentedignosdeconsiderao assimosmximos,comoosmnimosdefeitos;enovosescapearesta, interstcio, aspereza, mancha, inarmonia. No dissimuleis, em suma, com a vossa obra.Quandovossairdasmos,seja,atondepuderdes,acabada.E,se destarte vos exercitardes algum tempo, tereis adquirido o grande hbito, o hbito salvador, o hbito do trabalho srio, educativo, fertilizante. Praticai-o assim, que novosarrependereis:serocriadordavossafortuna,oornamentodovosso nome, o consolo de vossa velhice. Mas, no comeando nos anos juvenis, tarde ser nos outros. Vegetareis ento como o sap das terras cansadas, entonado, exuberante,masocioso,bravio,daninho,smbolodaesterilidadesatisfeitae ostentada ao sol. Falara da Ptria. Venho de falar-vos do trabalho. Agora vos falarei no ideal. Sevoseudissesse53queoidealapartemaisgravedarealidade humana? Filhos desta casa, bem mo compreendereis. Como definir o ideal? O idealnosedefine;enxerga-seporclareirasquedoparaoinfinito:oamor abnegado; a f crist; o sacrifcio pelos interesses superiores da humanidade; a compreenso da vida no plano divino da virtude; tudo o que alheia o homem da prpria individualidade, e o eleva, o multiplica, o agiganta, por uma contemplao pura, uma resoluo herica, ou uma aspirao sublime. Disse o Cristo que o homem no vive s do po. Sim; porque vive do po e do ideal. O po o ventre, centro da vida orgnica. O ideal o esprito, rgo da vidaeterna.Entendei,comoquiserdes,aeternidadeeaespiritualidade.Se

52comooeuamo,comooeusintoColocaoarcaicadopronomepessoaltono, completamente proscrita do estilo hodierno. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 14 debaixo de uma ou de outra forma, que ser o ideal mais ou menos celeste, mais oumenosterreno,noasadmitirdes,tereisreduzidoosentesracionais animalidade. A poltica experimental dos incrdulos ainda no pde agenciar para ograndeensaio,nogrmiodacivilizao,umanacionalidadematerialista.At hoje, os celeiros do gnero humano, as terras onde loirejam54 as messes, onde florescem os linhos, onde se tecem as ls, onde os rebanhos se renovam como a erva dos prados, so os que se fertilizam com o suor dos povos crentes. Esbulh-losdoseuidealeramaisdifcilquebani-losdassuaspradarias,dosseus armentos, das suas searas, dos seus linhares, das suas manufaturas. Porque55, nesses povos, a conscincia domina todas as instituies e todos os interesses. A religioosfezlivres,fortesepoderosos.Pelareligiofizeramassuasmaiores revolues.sombradareligiofundaramosseusdireitos.Tirassemaesses Estados o seu ideal, que restaria? Grandes construes morais, sem o cimento que as soldava. Tremendas foras sociais, sem o freio que as continha. Massas enormes,semcoesoqueasdetivesse,comoosrochedoserrticosnaseras diluvianas,ouasaludes56soltaspelosdespenhadeirosdosAlpes.Quandoo fratricdioseparatista57,nosEstadosUnidos,abaloucomumaguerrasem exemplo os eixos do mundo, lutava um interesse com um ideal. O ideal, que era a liberdade, esmagou para sempre o interesse, que era o cativeiro. Acreditais que foradocristianismoumanaodeTitsabrisseassimasprpriasveias,para expiar e extinguir o crime da explorao de uma raa aviltada? Atendes,caracteristicamente,ovalorprticodesseelemento impondervel, mas decisivo, nos destinos humanos. Vede o Oriente e o Ocidente: sodoisideais.VedeaPalestina,Atenas,Roma:trsideais,moldandotrs mundos.VedeaIdadeMdia,aRenascena,aRevoluoFrancesa,a EmancipaoAmericana:quatropocas,individualizadascadaumaporuma

53 Se vos eu dissesse. V. nota 52. 54 loirejam. V. nota 9. 55 Porque. V. nota 30. 56 as aludes: grande massa de neve, que se desagrega da montanha e despenha encosta abaixo. Palavrabasca,deintroduorelativamenterecenteemPortugus(nosculoXIX?),com gnero, ordinariamente, masculino. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 15 idealizaoprofanaousagrada.Enotai.NaRenascenaoidealpagoirradia pela terra as graas de Hlade; mas os prodgios de uma civilizao gerada no culto exclusivo da beleza evocam do mesmo bero as artes mais gentis e os mais hediondos crimes. Na Revoluo Francesa o ideal filosfico, ermando os altares, poluindoostemplos,exterminandoossacerdotes,entregaaFranaanarquia sanguinriadoTerror,cujasalucinaeshomicidaslegitimaramcomoremdio providencialatiraniamilitar.NaEmancipaoAmericanaoidealcristofunda uma constituio sem igual, uma democracia sem igual, uma prosperidade sem igual, uma potncia desmarcada e assombrosa, que, virtualmente entronizada no protetoradodeumContinente,projetaasuasombrasobreooutroatravsdos dois oceanos. Esse o ideal que, em 1889, nos atraiu58. Notai bem, meus caros afilhados: o vosso paraninfo no vem politicar neste recinto sagrado. Discuto uma questo essencialmentemoral,e,comoelaintimamenteentendecom59osdeveresdo civismo, que, hoje em dia, entre os povos livres, se professam com as primeiras letras, no se pretender que eu me demasie, ocupando-me, em uma colao de grauabacharis,comasorigenseoscaracteresmoraisdaConstituio brasileira. Uma Constituio , por assim dizer, a miniatura poltica da fisionomia de uma nacionalidade. Quando no seja, pois, um falso testemunho solenemente levantadoaopovoaquesedestina,temdelheesboaremgrandestraoso sentimentogeral.Seriaelepositivista,atesta,indiferentista,noBrasil,quando tombou,em1889,amonarquia,eseerigiuaRepblicaem1891?Outeriaa Constituio de 24 de fevereiro rompido abertamente, em matria espiritual, com a ndole brasileira, impondo-lhe um pacto constitucional, que a oprima? H,pora,umafeiopeculiarderadicais,emanaodaFrana voltairiana, da Frana revolucionria, da Frana jacobina, da Frana comtista, que imaginouengendrarateoriadanossaConstituioluzdastendncias

57 fratricdio separatista: a chamada "guerra de Secesso", que, nos E.U.A., ops, de 1861 a 1865, uma confederao de Estados do Sul (partidrios da escravido dos negros) aos Estados do Norte (defensores da libertao dos negros), tendo terminado com a vitria dos nortistas. 58 o ideal que, em 1889, nos atraiu: o de inspirar-se no modelo americano a organizao poltica da Repblica recm-instituda no Brasil. Isto de fato aconteceu, porque coube justamente a RUI redigir o projeto da Constituio de 1891. 59 entende com: diz respeito a, relaciona-se com. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 16 francesas,daspreocupaesfrancesas,dasreaesfrancesas,das idiossincrasias francesas. Mas, senhores, a Constituio federalista do Brasil no temamaisremotadescendnciasmargensdoSena.Suaembriogenia exclusivaenotoriamenteamericana.Ora,osamericanos,porestelado,no devemnadainflunciafrancesa.Em1789,quandoaFranaabriuaera tormentosa das suas revolues, dois anos havia que os Estados Unidos fruam pacificamenteasuaConstituioatual.AclebreDeclaraodeDireitosdo Homem de 1791. A Declarao americana de 1776. De 1791 foi a primeira Constituiofrancesa.Aprimeiraamericanafoide1787.Demodoqueos Estados Unidos precederam anos e anos a Frana no regmen60 das constituies escritas e na declarao das liberdades humanas. A Constituio francesa tinha a sua ascendncia na filosofia do sculo dezoito e no Contrato Social de ROUSSEAU, comalgumasindigestasreminiscnciasinglesas,hauridasemMONTESQUIEU.A americana, com uma estirpe de seis sculos no Tmisa, venerava a sua primeira avoenga na Magna Carta, as ltimas nas cartas coloniais e nas Constituies das colniasemancipadas,tudogenunaediretaprogniedessaliberdadeinglesa, que nunca se separou da Bblia e da Cruz. Verdade que, se, ali, todos esses monumentos da era pr-constitucional reconhecem mais ou menos explicitamente a ao da Providncia no governo do mundo, a Constituio americana, me, por adoo e identidade ntima, da nossa, omite o nome de Deus. Mas isso no obsta a que, nos Estados Unidos, a religio seja a primeira dasinstituiespolticasesobessaConstituioavidareligiosatenhaum amparomaisestveleumarelaomaisdeclaradacomosgrandesatosdo EstadoquenoutroqualquerpontodaTerra."Areligio,naAmrica",escreve TOCQUEVILLE, noparticipadiretamentenogovernodasociedade;mas,contudo,asua maisaltainstituiopoltica.Eeutenhoporcertoqueosamericanos consideram a religio indispensvel mantena das instituies republicanas. Este juzo no peculiar ali a uma classe, ou a um partido: pertence a toda a nao e a todas as situaes sociais.

60 regmen. V. nota 21. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 17 SeushomensdeEstado,seuslegisladores,seuspresidentesnuncase envergonharamdeconfessaraliestaverdade,mostrando,pelosatosmais insignes, de carter oficial, que a separao entre a Igreja e o Estado, tal qual se pratica naquele pas, no separou a nao do cristianismo. QuandoaConvenoamericana,dequeaConvenofrancesafoi anttese,labutava,entreescolhostemerosos,natarefadaconstruo constitucional,diahouve,emquetodososnimossoobraram,parecendo irremediavelmente naufragada a tentativa de compor das colnias redimidas uma grandenao.Ento,emmomentosdeinexprimveltristeza,FRANKLINse levantou, entre os constituintes, e disse: Temosdiscorrido61umporumtodososestadosdeEuropa;mas nenhuma das suas Constituies se adapta s nossas circunstncias. Posta esta assemblia em tal situao, como que s escuras no buscar da verdade, e quase incapaz de a discernir, quando a encontre, como vem a ser que, atagora,nosnotenhaacudidosocorrermo-nosaoPaidetodaaluz, exortando-lhe nos ilumine o entendimento? Ao comear da pendncia com a Gr-Bretanha, quando os perigos nos traziam em sobressalto, celebrvamos preces,todososdias,nesterecinto,implorandoaproteodivina.Nossas splicas, senhores, foram escutadas e dadivosamente correspondidas. Todos os que afanvamos62 no conflito, amiudadas ocasies tivemos de observar a intervenodaProvidnciaemnossofavor.AessaProvidnciagenerosa devemos este ensejo, que ora se nos oferece, de estarmos deliberando em pazsobreosmeiosdeplantaranossafuturaprosperidadenacional.E havemos de esquecer agora esse patrocnio onipotente? Ou cuidamos j no havermisterdequenosassista63?Tenhovividolargosdias,senhores,e, quanto mais vivo, mais convincentes provas se me deparam desta verdade, que Deus superintende os negcios humanos. Ora, se uma avezinha no cai, sem que Ele o saiba, como poderia suceder que se erija um grande imprio, faltando-lheaSuaajuda!Assagradasescriturasnosasseveramque,"se Deusnoedificaracasa,debaldesecansaroosqueaconstroem".Eu firmemente o acredito. Permiti-me, portanto, alvitrar que, de ora avante, nesta assemblia, todas as manhs, antes de encetarmos os nossos trabalhos, se faam preces, rogando a assistncia do Cu, as suas bnos, e que, para oficiar em tal servio, convidemos um ou mais membros do clero.

61 discorrido: analisado, examinado. 62 Todos os que afanvamos. V. nota 1. 63 assista: proteja, ajude. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 18 Nem era da boca de um devoto, de um catlico fervente, ou de um rgido puritano, que se exalavam, no seio daquele congresso poltico, essas eloqentes homenagensdivindade.FRANKLINprofessavaafilosofia,simpatizavacomos espritosmaislivresdaFrana,e,nafamliadosgrandesinvestigadores cientficos, no teve, talvez, at hoje, sucessor em seu pas. Percorreitodaasriedosgrandesestadistasamericanos,daqueles,em particular,quesopesaramasmaioresresponsabilidadesdogoverno:nenhum esqueceu a Deus64 em horas solenes. J EFFERSON mesmo, cujo esprito poltico se educara sob o influxo das teorias francesas, e convivera intimamente, em Frana, comoschefesdaincredulidade,oprprioJ EFFERSONrepassavadeacentos cristosassuasmaissolenescomunicaesaoCongresso.Suamensagem inaugural, em cujo curso aludia "religio benfazeja" e "Providncia, que nos governa", terminava com esta splica: Queira esse Poder infinito, que rege os destinos do universo, guiar-nos asdeliberaesparaomelhor,azando-lhessucessofavorvelaonosso descanso e prosperidade. WASHINGTON,antesdele,deraoexemplomemorvel.Pronunciando,em abril de 1789, a sua primeira fala ao Congresso, nas palavras lhe reverberava a uno de um levita oficiando no Tabernculo: Seria singularmente injusto omitir, no primeiro dos nossos atos oficiais, os meus fervorosos rogos ao Ser Onipotente, que senhoreia o universo, que preside aos conselhos das naes, e cujo valimento providencial pode suprir todasasdeficinciashumanas,conjurando-Lhe65queassuasbnos consagremliberdadeeboaventuradopovodosEstadosUnidosum governo por ele institudo essencialmente com esse intuito, e habilitem cada um dos instrumentos utilizados na sua administrao a exercer com acerto as funes do seu cargo. Rendendo este preito ao grande autor de todo o bem, pblico e privado, certo estou de exprimir no menos os vossos sentimentos que os meus, e os dos vossos concidados em geral tanto quanto os meus e osvossos.Nenhumpovoestemmaiorobrigaodereconheceramo invisvel, que ruma os negcios humanos, do que o povo dos Estados Unidos. Em cada uma de suas passadas para a independncia nacional como que se distingue o rasto da interveno da Providncia... Na economia da natureza, a felicidadeeprosperidadegeraisandamindissoluvelmenteassociadascomo slidas recompensas honestidade e magnanimidade no governo. O cu no

64 esqueceu a Deus. V. nota 38. 65 conjurando-Lhe: rogando-lhe com insistncia. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 19 pode sorrir propcio nao, que transgredir as normas eternas da ordem e do direito, pelo cu mesmo estabelecidas. Sete anos depois, encerrando a sua carreira pblica nessa Mensagem de Despedida,oclebreFarewellAddress,meditadaali,depois,sucessivamente, portodasasgeraes,comocaptulosagrado,opaidosEstadosUnidoslhes recomendoumaisumavezoespritocristocomoprimeiromandamentodo governo: De todas as inclinaes e hbitos que nos conduzem prosperidade poltica, os indispensveis alicerces vm a ser a religio e a moral. Em vo reclamariaotributodopatriotismoaquele,quetrabalhasseporsubverter esses grandes sustentculos da felicidade humana, os mais firmes esteios de todososdeveresdohomemedocidado.Ospolticosnolhesdevem querermenosqueasalmaspias...Conceda-seoqueseconceder influnciadeumaapuradaeducaoemespritosdotadosdeprendas singulares:nemarazo,nemaexperincianosdeixamesperarquea moralidade nacional se preserve sem o concurso do princpio religioso. Assimcompendiavatodoosaberdoseugnioedosseusanoso estadista,queumafraseconsagradaaponta,nahistriadeseupas,como"o primeironaguerra,oprimeironapaz,oprimeironocoraodosseus conterrneos".Obrade66sessentaanosmaistarde,essaimponentefbrica67, erigida pela sagacidade dos homens de 1787 e pela sabedoria de WASHINGTON, parecia abismar-se num cataclismo indescritvel. A escravido, o grande pecado contra o Evangelho, devorava numa catstrofe incomparvel aquela Constituio, admiradaporinglesescomoomaiorartefatopolticodocrebrohumano.Um homemtinhaentoolemedanaveentreosmacarus.Inteirio,destemido, grande,justo,eraotiponativodoamericano,apersonificaodeumpas,em suasmaioresvirtudeseseusmelhoresdotes,numaindividualidade extraordinria68.Eparaadivinajustiaeparaadivinamisericrdiaqueele estendeasmos,nessetransequaseextremodeagonia.Asuasegunda

66 Obra de: cerca de, perto de, mais ou menos. 67 fbrica. A palavra representa a, figuradamente, a Constituio americana, sobre a qual vinha RUI falando. 68 O perodo retrata o Presidente ABRAHAM LINCOLN. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 20 mensageminaugural,"documentosemparaleloentreospapisdeEstado", toca69 o pice da eloqncia religiosa. "Ambas as partes contendentes", diz ele, lem pela mesma Bblia, e oram ao mesmo Deus, invocando cada qual o seu auxlio contra a outra. Pareceria estranho que ousassem impetrar o socorro deDeus justo homens empenhados em amassar o seu po com o suor de seussemelhantes.Masnojulguemos,porque70novenhamosaser julgados.Elenopoderiaescutarassplicasdeambososcontendores. Tambm no tem respondido inteiramente s de nenhum. O Todo-Poderoso no nos descobre os seus desgnios. Ai do mundo pelo escndalo, visto que o escndalo forosamente suceder; mas tambm ai do homem que o der. A supormos que a escravido seja um desses crimes inevitveis na Providncia de Deus, mas que, tendo cumprido o seu tempo, Ela o queira agora eliminar, dando ao Norte e ao Sul esta guerra tremenda como punio daqueles por quem o escndalo veio, onde a o desvio desses atributos divinos, que os crentesnoDeusvivosemprelhereconheceram?Comardoralmejamos, obtestamos71comfervorquedensseafasterapidamentecalamidadeto horrenda.Se,contudo,aprouveraDeusprolong-la,atqueaopulncia amontoada por duzentos e cinqenta anos de labor incessante do escravo se aniquile de todo em todo, e cada gota de sangue vertida pelo azorrague se acabe de pagar com outra gota de sangue derramado pela espada, fora redizermos,como,htrsmilanos,sedisse:AssentenasdoSenhorso verdadeiras e justas. Seressaalinguagemdeumditador,ouadeumpontfice?Poucas semanasdepois,emumaSexta-FeiraSanta,porentreoshinosdavitriaque acabara de esmagar os escravistas, caa assassinado, como para selar o triunfo comasltimasgotasdosanguedaexpiao,oimaculadolibertador,cujas palavras de humildade haviam oferecido a prpria ptria em holocausto justia divina.Aohorrorsolenedoatentadosucedeu,nosesabeporqueemoo misteriosa,aapaziguaodaspaixesvingadoras.Asondasvolveram abonanadasaoseuleito.Onaufrgiodoescravismorepuseraacivilizao americana no lveo da moral crist. A voragem havia tragado um milho de vidas. Mas a liberdade salvara quatro milhes de almas. A paz estava feita em nome do Cristo.

69 toca: atinge, chega at a. 70 porque: para que. Conjuno final. 71 obtestamos: rogamos, suplicamos. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 21 Anos depois, morre vtima de outro crime sinistro o Presidente GARFIELD, e a mensagem do seu sucessor72, anunciando o infortnio pblico, se embebe na uno dos pregadores: Houve por bem o Senhor, na sua insondvel sabedoria, arrebatar-nos o presidente dos Estados Unidos. A dor profunda, que transborda de todos os coraes,deve-seelevar,deimpulsounnime,aotronodagraainfinita. Acurvados sob a mo do Todo-Poderoso, busquemos nela a santificao do nosso luto e a consolao, que, por esta perda, nos for servido conceder. O ano de 187673, festeja a Repblica, entre demonstraes magnficas, o centenrio da independncia americana, e o lugar supremo na gratido nacional oferecidoaoSenhor.OSenadoeaCmaradosRepresentantes,reunidosem congresso, proclamam comadorao,emnomedopovointeiro,queDeustemsido,paraele74a fonte e o manancial, o autor e o distribuidor de todos os bens. Festeja-seem1887,comsolenidadesqueatraramaatenoea concorrnciadoorbeinteiro,ocentenriodaConstituiodosEstadosUnidos. AbreagrandecerimniaobispocatlicoPOTTER,deNewYork,comuma admirvelinvocaoaDeus,queterminapelassingelasexpressesdoPadre-Nosso.Sapsdele75fala,presidindo,oPresidentedaRepblica76,e,ao concluir, aludindo imagem do Sol, debuxada, um sculo antes, sobre a cadeira queWASHINGTONocupavaquandoosdelegadosestaduaisfirmarama Constituio, assim se enuncia: Estamosagoranomesmolugar,ondeestesolrompiadastrevas polticas, e resplandecncia da sua luz meridiana lhe traamos hoje o curso glorioso. Seus raios por vezes se toldaram de nuvens. Formidveis borrascas nos encheram de medo. Mas Deus o conteve na sua rbita, e com o seu calor

72 Presidente BENJ AMIN HARRISON. 73 Oanode1876:No ano de 1876. Omisso da preposio em nos adjuntos adverbiais que denotamotempoouocasioemquealgumacoisaocorre:esteano,quinta-feira,domingo passado. 74 ele: o povo. 75apsdele:apsele,imediatamentedepoisdele.Construoclssica,umaqueoutravez agasalhada por escritores contemporneos. 76 J AMES ABRAM GARFIELD. Foi assassinado. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 22 vivificanteobrou77omaisrecentedosseusmilagres,criandoamaravilha desta terra e a maravilha deste povo. Quando volvemos os olhos cem anos atrs, atentamos na origem da nossa Constituio, e a contemplamos, j nas provaes,jnostriunfos;quandovemoscomoosprincpios,ondeela estriba,cabalmenteremediaramatodasasnecessidadesnacionais,e obviaramatodososperigosnacionais,sentimo-noslevadosarepetir devotamente com FRANKLIN: "Deus guia os negcios humanos". Outrosoradoresseouviramemseguida.Masquemencerraafestividadea religio. O Cardeal GIBBONS pronuncia a orao final, e, por ltimo, um sacerdote despede os fiis com a bno em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Doisanosmaistardeperfazumsculodeinauguradaapresidnciados EstadosUnidosnapessoadeWASHINGTON.Seusucessor,notermodociclo secular,oPresidenteHARRISON.Edequemodoassinalaesteessadata inolvidvel? Convidando com uma proclamao o povo a se congregar todo em ao de graas ao Senhor: Renam-se, s 9 horas do dia, os cidados de todas as religies, nos edifcios ordinrios de seu culto, a fim de rogar a Deus favorea o povo com asddivasdaliberdade,prosperidadeepaz,guiando-opelocaminhoda justia e do bem. um dos exemplos desse mavioso costume nacional, que nasceu com a nacionalidadeamericana.Em1789,asolicitaesformaisdoCongresso, WASHINGTON proclama ao povo, exortando-o a se unir unnime em um profundo sentimentodegratidoparacom"ogloriosoAutordetodoobemquehouvee haver". Aprazava o Presidente o dia votado s aes de graas gerais emhonradoSoberanoerbitrodasnaes,paralheagradecer humildementeasinfinitasmisericrdiaseasmercsinsignes,dequese comprouvera em cumular o povo americano. EathojeoDiadeAodeGraasagrandefestaanualdanao, naquelepas.Assimqueosamericanoscomemoram,anoaano,o desembarquedosprimeirosperegrinos,dosprimitivosfundadoresdasua

77 obrou: realizou. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 23 nacionalidade, nas costas do Maryland78, reconhecendo a Deus, nas palavras da proclamao de HARRISON em 1891, os benefcios de sua Providncia, a tranqilidade em que ela lhes tem dado sabore-los, a conservao das liberdades civis e religiosas, que a sabedoria delainduziuosseusmaioresaestabelecer,etemauxiliadoosseus descendentes com a fora de preservar. Assumindo, em 1893, a presidncia dos Estados Unidos, CLEVELAND jura, osculando a Bblia. Sua me lhe dera, quarenta anos antes, um exemplar do livro sagrado.Levam-lhoaoCapitlio,esobreessequeonovoPresidente,na grandesolenidadeoficial,repeteojuramentodeseusantecessores.Taisos auspciossobquesepronunciaoseudiscursoinaugural,ondesobressaia invocao a Deus: Quandoconsideroquantomeexcedeasforasatarefa,queorase me impe... o que me preserva de esmorecer, , sobretudo, a certeza de que existe um Ente Supremo, que dirige as cousas humanas, e, assim com a sua bondade,comocomasuamisericrdia,sempreacompanhouopovo americano.Fio79queeleagorasenoarredardens,se-lhebuscarmos, humildes e reverentes, o auxlio poderoso. desta maneira que se empossam, nos Estados Unidos, os presidentes da Repblica. Veda a Constituio, de todo, ali, como aqui, aos poderes federais qualquer aliana entre a Igreja e o Estado: circunvala entre este e aquela a separao mais completa.MasosatosmaissolenesdogovernoinvocamonomedeDeus.Os generaisemserviodeguerraimploram,diantedastropas,"abondadetutelar dessa Providncia que encaminha indivduos e naes". voz do Presidente se rene todos os anos, em dia certo, a nao inteira, a render graas ao Eterno. As sessesdoCongresso,nassuasduascmaras,seabremeencerram diariamente com as preces de um sacerdote. O Senado tem o seu capelo; tem o seuaCmaradosRepresentantes,umeoutroeleitosporessasduas assemblias.Tm-nos,ainda,nomeadospeloPresidente,asprises,os

78 do Maryland. Subentenda-se a palavra "Estado": "nas costas do [Estado de] Maryland". Caso de sintaxe ideolgica. 79 Fio: confio, espero. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 24 hospcios de alienados, as escolas militares, o Exrcito e a Marinha, at vinte e quatro para esta, e para aquele trinta e quatro. A propriedade eclesistica no se tributa, no Distrito de Colmbia, nem nos Estados. O juramento, nas instituies federais, como nas estaduais, se defere sobre a Escritura Sagrada aos que no a rejeitam.AsleisdaUnio,comoasdosEstados,consagramodescanso dominical.Numadassuasordens-do-dia,LINCOLN,comogeneral-em-chefe80do ExrcitoedaArmada,nomeiodaterrvelguerracivilemquepericlitoua existncia da Unio, impunha rigorosamente s suas foras a obedincia a esse preceito. "O general espera e confia", dizia ele, quecadaoficialecadapraabuscarovivercomoconvmasoldados cristos, afanados em lutar pelos mais caros direitos de sua terra. Nasescolasneutras,enfim,ohorrioprofanoabreespaoaoensinoreligioso, distribudo pelos ministros dos vrios cultos nos prprios recintos escolares. Alinosedivisanessesfatosomnimoagravosecularidadelegaldas instituies.Oquelsenotoleraria,nemanossaConstituiotolera, estabelecer distines legais entre confisses religiosas, sustentar a instruo ou ocultoreligiosocustadeimpostos,obrigarfreqnciadostemplosou assiduidadenosdeveresdaf,criarembaraosdequalquernaturezaao exercciodareligio,contrariardealgummodoaliberdadedeconscincia,a expressodascrenas,ouamanifestaodaincredulidade,noslimitesdo respeitoscrenaseliberdadealheias.Mas"nenhumprincpiodedireito constitucionalsequebranta",dizumgrandejurisconsultoamericano,ojuiz COOLEY, quandosefixamdiasdeaodegraasejejum,quandosenomeiam capelesparaoExrcitoeaMarinha,quandoseabremassesses legislativas,orando,oulendoaBblia,quandoseanimaoensinoreligioso, favorecendo com a imunidade tributria as casas consagradas ao culto. Vede se anda fora da lgica o bom senso americano. O Estado exige de todososcidadosoimpostodesangue.Ningumlhopoderecusar,attulode

80 general-em-chefe: comandante supremo de foras armadas, em guerra. Tal expresso tem sido tachada, sem razo plausvel, de galicismo. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 25 que o seu credo o aborrea81. Ao reclamo desse dever se alistam82 os exrcitos e tripulamasesquadras.Masesseslidadores,queseaprestamamorrer,nos campos de batalha, ou nas vagas do oceano, pela segurana, pela integridade, pelahonranacional,noabjuraram,vestindoas armas, a conscincia religiosa. Levam consigo a sua f, o seu Deus, as suas esperanas na imortalidade, o culto de seus pais. Este83 lhes lembra todos os domingos o sacrifcio cristo, lhes fala, nastribulaes,doconfortoespiritual,lhesevoca,empresenadamorte,os compromissos eternos de sua alma. Quem lhes h de ministrar, nos quartis, nas escolasmilitares,nosvasosdeguerra,osofciosdivinos?Quem,noleitodo hospital,ouentreofogodoscombates,lhesdarossocorrosdocu?Quem? se84 a lei fechar os estabelecimentos militares aos ministros do Evangelho? se as foras,quemarchamparaaguerra,noseacompanharemdeministrosda religio?searigidezdasobrigaesmilitaresnoconhecerosmandamentos supremos da vida crist? H de o soldado fiel pagar, do soldo, ou da etapa, os seus capeles? Pode o soldado moribundo, na tenda, ou no campo, mandar por eles85aopovoado?Deondeacudirovalimentoapostolaraomarinheiro,que expiranasolidodosmares,aoconscritoqueagonizanasrefregasdeuma campanha entre as armas da ptria e as do inimigo? Se o marinheiro e o soldado tm direito medicina do corpo, e ao Estado incumbe o dever de lha suprir, como no ter direito o soldado, o marinheiro cura da alma, e ao Governo poder ficar o arbtrio de no lha dar? A que ttulo o civismo, vestindo-me a blusa, ou a farda, me seqestra s relaes religiosas, e, sobre86 me exigir o sacrifcio da vida, me impe a morte do ateu87?

81aborrea:desaceite,condene(o"impostodesangue").Ooradorest-sereferindoaos cidados que se recusam a participar de guerra, por motivo de convico religiosa. 82 alistam: recrutam. 83 Este: o culto. 84 Quem?sealei...? O uso de minsculas em seguida a ponto de interrogao (Quem? se a lei...? se as foras...? se a rigidez...?) decorre, a, de serem subordinadas as oraes introduzidas por "se". 85 mandar por eles: mandar.busc-los. Construo antiga (hoje de todo abandonada) de "mandar +posvrbio por", com a significao de "mandar pedir, mandar buscar (algo ou algum)". 86 sobre me exigir: alm de me exigir. 87 A que ttulo... morte do ateu? Este perodo documenta belssimo exemplo de sintaxe afetiva. Com o emprego do pronome de primeira pessoa (me), o orador se identifica e confunde com os FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 26 Assim, banir do quadro militar, em nome da liberdade, o elemento religioso, estabelecer, debaixo desse nome, a mais odiosa das servides, e pagar com a ingratidosupremaosserviosdomarinheiroedosoldado.Osamericanos abominariamessafalsaigualdade;porque88homensrealmentelivresnose pagamde89frmulasmentidas,eacimadetudoexecramaopresso,que90se abrigue sob hipocrisias de especioso liberalismo. No quiseram, pois, animalizar o homem de guerra. Viram, claramente viram, que a multido armada, sem o freio dorespeitocristo,comoasferasdomadas,queacabamfatalmentepor devorar os domadores. Estudemodesenvolvimentodacriminalidademilitarentrens,ehode verificar,tenhoporcerto,queadelinqnciaadquiriu,nessaesfera,expanso notvel e crescente, desde que se varreu dos quartis a influncia civilizadora do culto. Os nossos exrcitos de mar e terra constituem, hoje, a este respeito, pela maiserradaintelignciadasnossasliberdadesconstitucionais,umaexceo absurda entre os povos civilizados. Das coisas srias, em nossa terra, por via de regra,nosecogita.Masosoldadobrasileirohdesentirumdiaqueoesto desnaturando, e tomar nas prprias mos, pacfica, mas resolutamente, a causa da sua reconciliao religiosa. Ou ento, ai de ns! Quando o atesmo de fuzil e baioneta se inflamar nas exploses da crueldade. NosEstadosUnidosnoseconheceesserisco;porqueoseusenso poltico, incapaz de tais eclipses, sempre lhes mostrou que a disciplina da terra no se mantm sem a disciplina do cu, e o seu senso liberal os convenceu de que brutalizar o uniforme no abandono da religio era conferir incredulidade os privilgios recusados ao culto. A est porque91 o constitucionalismo americano repele essa uniformidade atia, cuja superstio professa a Repblica no Brasil, e que no estava decerto nos intuitos dos seus fundadores. Desde 1876 que eu escrevia e pregava contra o

marinheiroseossoldados,solidarizando-sedestemodocomeles,comoseumeoutros estivessem a viver a mesma situao. 88 porque. V. nota 30. 89 no se pagam de: no se satisfazem com, no se contentam com. 90 que: ainda que. Conjuno concessiva. 91porque.Numsvocbulo,deacordocomlongatradionoIdioma.Trata-sedeadvrbio relativo que condensa em si o antecedente. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 27 consrcio da Igreja com o Estado; mas nunca o fiz em nome da irreligio: sempre, em nome da liberdade. Ora, liberdade e religio so scias, no inimigas. No h religiosemliberdade.Nohliberdadesemreligio."Odespotismoque passarsemaf:aliberdadenopassa",diziaTOCQUEVILLE,edificadopelo espetculo dos Estados Unidos. "A religio", insistia, muito mais necessria nas repblicas do que nas monarquias, e muito mais aindanasrepblicasdemocrticasdoqueemtodasasdemais.Comono houveradeperecerasociedade,se,afroixando92olaopoltico,no estreitasse o vnculo moral? E que ser de um povo, senhor de si mesmo, se no for submisso a Deus? a mesma impresso que o abalava, a esse grande pensador poltico, ao estudar O Antigo Regmen93 e a Revoluo: Opovo,sequiserserlivre,hdeterconvicesreligiosas.Emno tendo f, servir94. Essas as idias que nos propeliam, h dezoito anos, quando vimos o padroado imperialencarcerarosbispos.AssimcomonoadmitamosoEstadocativo Igreja, no podamos admitir a Igreja cativa ao Estado. FoisobessepensamentoqueadotamosaConstituiode1891. Tnhamos, ento, os olhos fitos nos Estados Unidos; e o que os Estados Unidos nosmostravam,eraaliberdadereligiosa,noaliberdadematerialista.Naquele pasaincredulidadepossuitambmoseugrupo,queadvogaatributaodos cultos,asupressodoscapeles,aaboliodetodososserviosreligiosos custeadospeloTesoiro95,aextinodojuramento,asubstituio,nasleis,da moral crist pela moral natural. Mas esse programa, formulado ali h trinta anos, definha enquistado na seita que o concebeu. "Ns somos um povo cristo", diz o juiz KENT, um dos patriarcas da jurisprudncia americana, "e a nossa moralidade poltica est profundamente enxertada no cristianismo".

92 afroixando. V. nota 9. 93 Regmen. V. nota 21. 94 servir: ser escravo. 95 Tesoiro. V. nota 9. FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA 28 EssefatoprecedeuConstituio,alieaqui.Aqui,comoali,essefato subsistesobaConstituio.Elaonopodiadestruir,porque,lec,era,nas duasnaes,agranderealidadeespiritual.Narepblicanorte-americana,a superfciemoraldopasestavamaisoumenosigualmentedivididaentreuma variedade notvel de confisses religiosas. No Brasil, o catolicismo era a religio geral;oprotestantismo,odesmo,opositivismo,oatesmo,excees circunscritas. De modo que, enquanto nos Estados Unidos a igualdade religiosa constitua uma necessidade sentida, mais ou menos, no mesmo grau, por todas as comunhes, entre ns ela representava to-somente aspiraes da minoria. A liberdade de cultos veio satisfazer, em boa justia, condio opressiva dessas dissidnciasmaltratadaspelaexclusooficial,masnoinvert-lacontraa conscincia da maioria. Se, nos Estados Unidos, avultava no maior relevo "o fato de que o cristianismo era, e sempre foi, a religio popular" (so palavras de um magistrado americano), no Brasil esse fato no tinha vulto menos proeminente. AsConstituiesnoseadotamparatiranizar,masparaescudara conscinciadospovos."Anossaconstituio",dizumescritoramericano,que tratou ex professo96 o assunto97, anossaConstituionocriouanao,nemareligionacional.Achou-as preexistentes, e estabeleceu-se com o intuito de asproteger sob uma forma republicana de governo. Ora, a condio de ns outros idntica, por este lado, dos Estados Unidos. AntesdaRepblicaexistiaoBrasil;eoBrasilnasceucristo,cresceucristo, cristo continua a ser at hoje. Logo, se a Repblica veio organizar o Brasil, e no esmag-lo, a frmula da liberdade constitucional, na Repblica, necessariamente h de ser uma frmula crist. As instituies de 1891 no se destinaram a matar o