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1 RODRIGO WOLFF APOLLONI “SHAOLIN À BRASILEIRA” ESTUDO SOBRE A PRESENÇA E A TRANSFORMAÇÃO DE ELEMENTOS RELIGIOSOS ORIENTAIS NO KUNG-FU PRATICADO NO BRASIL SÃO PAULO 2004

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    RODRIGO WOLFF APOLLONI

    SHAOLIN BRASILEIRA ESTUDO SOBRE A PRESENA E A TRANSFORMAO DE ELEMENTOS

    RELIGIOSOS ORIENTAIS NO KUNG-FU PRATICADO NO BRASIL

    SO PAULO 2004

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    RODRIGO WOLFF APOLLONI

    SHAOLIN BRASILEIRA ESTUDO SOBRE A PRESENA E A TRANSFORMAO DE ELEMENTOS

    RELIGIOSOS ORIENTAIS NO KUNG-FU PRATICADO NO BRASIL

    Dissertao apresentada como requisito parcial para avaliao do Curso de Ps-Graduao Stricto Sensu (Mestrado), em Cincias da Religio, da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Orientador: Prof. Doutor Frank Usarski.

    SO PAULO 2004

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    Para meus pais, Carlos Antnio e Brigitte. Para todos os praticantes de Kung-Fu.

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    AGRADECIMENTOS

    Para muitas pessoas, o smbolo mximo da marcialidade oriental a figura do venervel mestre. representado como um indivduo especial, capaz de derrotar um exrcito e, ao mesmo tempo, de dedicar boa parte de seu tempo a coisas singelas, como brincar com um co abandonado ou tocar flauta sombra de uma rvore. Durante a realizao deste trabalho, confesso, procurei simbolicamente por essa figura. A vida, porm, nem de longe se aproxima das brumosas ermidas taostas ou das notas cavas de uma venervel flauta shakuhachi. Apesar disso, posso afirmar que a encontrei. Ela est presente, de uma forma ou de outra, em todas as pessoas que possibilitaram a realizao deste trabalho.

    Gostaria de agradecer, inicialmente, a meu orientador, Professor Frank Usarski, que em 2002 teve a considerao de responder a um e-mail esotrico enviado por um desconhecido e que, desde ento, foi meu mestre na senda do conhecimento acadmico. Agradeo, tambm, aos pesquisadores Meir Shahar, Stanley Henning, Dian Murray e Snia Maria de Freitas, por suas preciosas informaes; aos mestres e professores de Kung-Fu Chan Kowk Wai, Lee Chung Deh, Jorge Jefremovas, Rogrio Leal Soares, Dirceu Coelho e Eliane Pontes Cardoso, por mostrarem que, em pleno sculo XX, possvel fazer da arte marcial chinesa um caminho de vida; a seus alunos, que to prontamente atenderam solicitao de uma entrevista. Ao mestre acupunturista Pan Yi Bo, por seu generoso auxlio na traduo de ideogramas e termos religiosos chineses.

    Agradeo, tambm, aos amigos Clodoaldo e Helvnia, pela amizade dispensada ao forasteiro de Curitiba. A minha famlia, pelo carinho e pela pacincia de escutar, centenas de vezes, as mesmas histrias sobre guerreiros e heris das dinastias Ming, Tang, Sui, etc. A Fernanda, com quem dividi impresses, preocupaes, ira, amor e surpresa diante do desafio de se fazer mestre - sem perder a vontade de tocar flauta.

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    SUMRIO RESUMO......................................................................................................................09 ABSTRACT..................................................................................................................10 1. INTRODUO - Kung-Fu Brasileiro: Chutes Moda Chinesa na Terra do Futebol ................................................................................................................ 11 2. DOS BRONZES DE SHANG AOS TURISTAS DE SHAOLIN: As Artes da Guerra e a Religiosidade Marcial no Contexto Histrico Chins.......................20 2.1 Consideraes Preliminares...................................................................................20 2.2 Uma linha do tempo para a arte marcial chinesa.................................................20 2.2.1 Primrdios: de Shang Era dos Reinos Combatentes.......................................24 2.2.2 O Budismo e a "origem religiosa" das artes marciais chinesas...........................25 2.2.3 O Mosteiro de Shaolin consideraes preliminares..........................................29 2.2.3.1 Fundao, patrocnio e tenses polticas..........................................................30 2.2.3.2 Dinastia Tang: o primeiro sangue de Shaolin..................................................31 2.2.3.3 Expresses da marcialidade em Shaolin durante a passagem Ming-Qing......................................................................................................................33 2.2.3.4 Consideraes sobre o engajamento militar dos monges de Shaolin no perodo Ming tardio...................................................................................................34 2.2.3.5 O mosteiro de Shaolin como centro difusor de sistemas marciais..........................................................................................................37 2.2.3.6 Qielan Shen o basto de guerra nas mos da divindade...............................41 2.3 Dinastia Qing e sc. XX - outros estilos e a prevalncia da "matriz Shaolin"..........45 2.4 Arte marcial chinesa e modernidade........................................................................49 2.4.1 A viso dos imigrantes chineses acerca dos velhos mtodos............................51 2.5 Um enfoque complementar: a "arqueologia" dos termos definidores na arte marcial chinesa..............................................................................................................53 2.5.1 A verificao do elemento religioso nos termos identificadores da marcialidade na China...................................................................................................55 2.6 Interpretao dos contedos do captulo.................................................................57

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    3. UMA ESPADA NA BAGAGEM: Imigrao Chinesa e Transplantao do Kung-Fu de Shaolin para o Brasil...............................................................................59 3.1 Consideraes Preliminares.....................................................................................59 3.2 Fontes sobre Imigrao Chinesa no Brasil...............................................................60 3.2.1 Imigrantes e Mestres de Kung-Fu..........................................................................61 3.2.2 Hipteses para a Ausncia do Elemento Marcial nos Trabalhos sobre os Chineses no Brasil..........................................................................................................62 3.3 Panorama Histrico da Imigrao Chinesa para o Brasil.........................................63 3.3.1 Expanso Colonial e Sc. XIX Portugal como Ponte entre Brasil e China........67 3.3.2 Segunda Metade do Sc. XX - "Fase 2" da Imigrao Chinesa para o Brasil......69 3.4 Interpretao dos Contedos do Captulo...............................................................74 4. DE BRUCE LEE INTERNET: Representao e Auto-Representao no Kung-Fu Brasileiro......................................................................................................77 4.1 Consideraes Preliminares...................................................................................77 4.2 Anos 70 do Sc. XX - O "Primeiro Sangue" do Kung-Fu no Brasil.........................78 4.2.1 "Tranqilo e Infalvel como Bruce Lee"................................................................78 4.2.2 Kung-Fu A Televiso Brasileira como Porta de Entrada para os Monges de Shaolin........................................................................................................80 4.2.3 "The Shaolin Temple" - Beijing adere ao Cinema de Kung-Fu.............................82 4.2.4 Shang-Chi, Yin, Yang e o Kung-Fu Mental......83 4.2.5 Livros sobre Kung-Fu nos Anos 70.......................................................................84 4.2.5.1 "A Sabedoria Kung Fu"......................................................................................85 4.2.5.2 "Kung Fu - Curso Bsico de Basto".................................................................88 4.3 Produtos Culturais Recentes: Passagem para a Auto-Representao...................89 4.3.1 Revistas Especializadas.......................................................................................90 4.3.1.1 "Pragmatismo" x "Tradio" nas Revistas Especializadas Brasileiras..............90 4.3.1.2 Oriente............................................................................................................90 4.3.1.3 "Kiai", Kung Fu Defesa Pessoal" e "Trump!"...................................................93 4.3.2 Apostilas Publicadas por Academias...................................................................96 4.3.2.1 Kung Fu: Verso Curta de uma Histria Muito Longa....................................97 4.3.2.2 Apostila da Associao Sino-Brasileira de Kung-Fu Wu Shu de Florianpolis..........................................................................................................101

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    4.3.3 Livros Recentes sobre Kung-Fu Publicados no Brasil......................................104 4.3.3.1 "Kung-Fu Shaolin do Norte - Tcnicas Bsicas 1 e 2 Kati".........................105 4.3.3.2 "Os Segredos do Kung-Fu"............................................................................107 4.3.4 Sites Brasileiros sobre Kung-Fu........................................................................109 4.3.4.1 Sites Institucionais..........................................................................................111 4.3.4.2 Sites pessoais................................................................................................114 4.4 Interpretao do material apresentado................................................................118 5. OS BUDAS DA ACADEMIA: Interpretao Acadmica da Iconografia no Universo Semntico do Shaolin Do Norte.......................................................121 5.1 Consideraes preliminares................................................................................121 5.1.1 Uma Aproximao Terica...............................................................................121 5.1.2 A cor e a Moldura do Kung-Fu Praticado no Brasil..........................................122 5.2 "As 18 Cmaras De Shaolin": Construindo um Espao para a Prtica de Kung-Fu...............................................................................................................124 5.2.1 Um Salo Para o Drago.................................................................................125 5.2.2 Sobre o P e os Cheiros das Academias........................................................126 5.2.3 A Arca de Shaolin............................................................................................127 5.2.4 O Gabinete do Venervel Mestre....................................................................129 5.3 A Iconografia Religiosa.......................................................................................130 5.3.1 Vencendo a Barreira dos Ideogramas.............................................................131 5.4 Elementos Iconogrficos de carter Religioso encontrados em Academias......131 5.4.1 Camiseta do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu...........................................132 5.4.1.1 A Frente da Camiseta: o Braso...................................................................133 5.4.1.2 As Costas da Camiseta: o Drago................................................................141 5.4.2 Placa da tica e da Ancestralidade...............................................................144 5.4.3 O Altar..............................................................................................................151 5.4.3.1 Um Conjunto Semntico de Prevalncia Confucionista................................154 5.5 Interpretao das Informaes do Captulo........................................................154 6. PARA CONHECER O FILHOTE DO TIGRE...: Apresentao e Leitura dos Resultados da Pesquisa de Campo......................................................................156 6.1 Consideraes Preliminares...............................................................................156

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    6.2 O Universo da Pesquisa....................................................................................156 6.3 O Modelo da Pesquisa.......................................................................................160 6.4 A Construo dos Questionrios Perguntas e Temas....................................161 6.4.1 Entrevistado de Primeira Gerao Gro-Mestre Chan Kowk Wai...............161 6.4.2 Entrevistado de Segunda Gerao Mestre Lee Chung Deh........................166 6.4.3 Entrevistados de Terceira Gerao - Professores Brasileiros........................172 6.4.4 Entrevistados de Quarta Gerao Alunos Brasileiros.................................178 6.5 Interpretao do material apresentado...........................................................184 7. SNTESE DOS RESULTADOS DA PESQUISA.................................................185 8. CONCLUSO......................................................................................................191 REFERNCIAS........................................................................................................206

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    RESUMO

    O presente trabalho de pesquisa procurou investigar as transformaes observadas, ao longo do tempo, nos contedos de natureza no-corporal (em especial, os religiosos) pertencentes ao universo semntico de uma arte marcial oriental transplantada para o Brasil. A arte marcial pesquisada foi o Kung-Fu do estilo Shaolin do Norte, originria da China e introduzida no pas, em 1960, pelo mestre chins Chan Kowk Wai. Seu principal diferencial em relao s demais artes marciais orientais transplantadas para o Brasil se refere coexistncia de aspectos fundantes tnicos e transculturais. Essa transplantao de dupla paternidade definida pelo ingresso de tcnicas corporais tradicionais e de elementos no-corporais transculturais determinou caractersticas especficas relacionadas adoo, entendimento, representao e significao da Histria, dos mitos de criao e da religiosidade envolvidos com a arte marcial.

    Para investigar a evoluo do subuniverso Kung-Fu em seus aspectos no-corporais, buscamos trabalhar com duas linhas, uma de carter terico-bibliogrfico e, outra, de carter emprico. A primeira linha relacionou os principais elementos que compem o universo terico do Kung-Fu, em especial o do estilo Shaolin do Norte: Histria da arte marcial; relao entre arte marcial e imigrao; representao e auto-representao da arte e dos praticantes; iconografia religiosa. A segunda linha se ocupou de investigar as transformaes no universo no-corporal do estilo a partir de entrevistas com quatro geraes de praticantes, formadas por dois mestres chineses, dois professores brasileiros e seis alunos brasileiros.

    O cruzamento das informaes permitiu concluir que a arte marcial chinesa praticada no Brasil, principalmente em seu entendimento filosfico, tico e religioso, vem adquirindo caractersticas cada vez mais locais. A fim de compreender o porqu dessa transformao e de projetar um cenrio futuro do nosso objeto de estudo, fizemos uso de um constructo terico baseado na chamada Teoria da Transplantao Religiosa, de Martin Baumann, e na chamada Construo Social da Realidade, de Peter Berger e Thomas Luckmann.

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    ABSTRACT

    This research investigated the transformations observed, through a time frame, the non- physical contents (especially the religious) regarding the semantic universe of an oriental martial art transplanted to Brazil. The martial art researched was Northern Shaolin Style Kung-Fu, which had originated in China and was introduced in Brazil in 1960, by Chinese master Chan Kowk Wai. The main difference regarding the other oriental martial arts transplanted to Brazil is the coexistence of the founding ethnical and transcultural aspects. This double paternity transplant defined by traditional corporal techniques and noncorporal transcultural elements determined the specific characteristics regarding the embracing, understanding, representation and meaning of History, creation myths and religiosity involved in the martial arts.

    To investigate the evolution of this Kung-Fu subuniverse in its non-corporeal aspects, we worked in two lines, one of them theoretical-bibliographic and the other one empiric. The first line listed the main elements that constituted the Kung-Fu theoretical universe, specially the Northern Shaolin style: Martial Arts History; martial arts and immigration relationship; representation and self-representation of the martial art and its martial artists; religious iconography. The second line investigated the transformations of the style in the non-corporeal universe, through interviews with four generations of martial artists, formed by two Chinese masters, two Brazilian instructors and six Brazilian students.

    The crossing of information allowed us to conclude that the Chinese Martial Art practiced in Brazil, mainly in its philosophical, ethical and religious understanding, is getting more and more local characteristics.

    To understand why this transformation happens and project a future scenario of our study aim, we used a theoretical construct based on Martin Baumanns Theory of Religion Transplantation and Peter Berger and Thomas Luckmanns Social Construction of Reality.

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    1. INTRODUO KUNG-FU BRASILEIRO: CHUTES MODA CHINESA NA TERRA DO FUTEBOL

    Everybody was Kung Fu fighting, those jerks were fast as lightning In fact it was a little bit fright'ning, but they fought with expert timing () (Kung-Fu Fighting, C. Douglas, 1973)1

    Bruce Lee, Jackie Chan, O Tigre e o Drago, Matrix, Kill Bill, Tekken. Nos ltimos quarenta anos, a arte marcial chinesa (conhecida no Ocidente como Kung-Fu) saltou das telas dos cinemas de Hong Kong para conquistar o mundo. As pessoas podem at no conhecer a fundo esse conjunto de prticas corporais e filosficas saber de onde veio ou qual sua Histria, por exemplo mas certamente j tiveram em mente o arqutipo Kung-Fu: a figura de um oriental sorridente, franzino e conhecedor de uma venervel e terrvel arte que, vez por outra, lhe permite despejar socos e chutes a torto e a direito contra facnoras de todos os gneros.

    Apesar de no possuir Chinatowns e nem uma colnia chinesa das mais expressivas em termos numricos,2 o Brasil conheceu o moderno Kung-Fu praticamente ao mesmo tempo em que os demais pases do Ocidente.3 Por aqui, como em quase todos os lugares fora da China e da grande faixa histrica de concentrao de chineses ultramarinos (Sudeste Asitico), a aproximao entre sociedade e marcialidade chinesa se deu, fundamentalmente, a partir da indstria do entretenimento do sculo XX (literatura popular, cinema e televiso).

    Quem, com mais de quarenta anos, no assistiu a pelo menos um episdio da srie televisiva Kung-Fu - aquela, em que um monge tristonho vagava pelo Velho Oeste dando conselhos aos bons e porradas na bandidagem - ou foi convidado para as famosas sesses Faixa Preta no cinema? Nos anos 70, o sucesso dos filmes de Bruce Lee ator sino-americano que viria a se tornar uma espcie de James Dean da pancadaria levou imigrantes chineses conhecedores da arte marcial de seu pas a

    1 Letra em

    (c. 02.02.2003). 2 Acredita-se que, atualmente, vivam no Brasil entre cem mil e duzentos mil imigrantes chineses e

    descendentes (algo entre 0,05% e 0,11% do total da populao do pas). Em outros pases americanos, como os Estados Unidos, Peru e Cuba, essa populao bem mais significativa. 3 Informaes de carter histrico, porm, apontam para um conhecimento remoto do termo Cong-Fu:

    jesutas franceses o utilizaram para descrever exerccios fsicos e respiratrios praticados na China do sc. XVIII.

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    abrirem academias em cidades brasileiras como So Paulo. Hoje, apesar de no haver um registro do nmero total de praticantes brasileiros, pode-se dizer que o Kung-Fu praticado em pontos to remotos dos grandes centros urbanos quanto o Acre e Rondnia.

    O que vai, porm, na cabea dos praticantes brasileiros de Kung-Fu - alm da tcnica marcial pura e de imagens inspiradoras - a respeito de sua arte marcial? impossvel esquadrinhar todo o pensamento de um indivduo, quanto mais de um grupo deles. Podemos, no entanto, nos arriscar a examinar de perto o drago verde e amarelo e chegar a alguns resultados interessantes. Nossa rea a das Cincias da Religio: o que dizer, pois, do pensamento religioso desses praticantes? A bem da verdade, no desejamos saber se esse aluno evanglico, aquele catlico e um terceiro, judeu ou budista. Buscamos, sim, saber como se d o contato entre o conjunto semntico da religiosidade brasileira com sua peculiar caracterstica de incluso e os elementos religiosos chineses (taostas, budistas e confucionistas) presentes na arte marcial.

    Nossa ateno se voltou para um cenrio que inclui uma base tnica - o mestre fundador chins - e alunos brasileiros. Normalmente, em suas academias, esses transmissores de informaes tradicionais oferecem, tambm, contedos ligados s religies de seu pas de origem, principalmente atravs da iconografia e de histrias que so ouvidas e, com maior ou menor fidelidade, replicadas pelos jovens gafanhotos. Que valor esses praticantes do aos elementos religiosos chineses presentes no Kung-Fu? Qual sua leitura a respeito, por exemplo, dos altares, da queima de incenso e das placas votivas encontradas nas academias? Eles chegam a superar a barreira semntica dos ideogramas? De que forma se referem ao passado histrico da arte praticada? E os mestres chineses, conseguem transmitir, em portugus, conceitos to abstratos para a mente ocidental quanto o do Tao e o da iluminao Chan? Essa religiosidade ancestral de corte popular ou erudito? Nossa proposta, nessa dissertao, foi buscar respostas a esses questionamentos.

    Para tanto, elegemos um grupo especfico de praticantes de um estilo tradicional de Kung-Fu nominalmente relacionado a uma religio chinesa, o Shaolin do Norte (Bei Shaolin, ). Shaolin o nome de um mosteiro budista fundado no ano de 495 d.C. na provncia de Henan, no centro-norte da China. Introduzido entre ns pelo imigrante chins Chan Kowk Wai nos anos 60, o estilo , atualmente, um dos mais praticados por

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    brasileiros, com ramificaes (a partir do Brasil) na Argentina, Estados Unidos, Canad e Espanha. A fim de se obter um quadro mais representativo do pensamento de professores e alunos brasileiros, entrevistamos praticantes em Florianpolis (SC) e Campo Grande (MS) locais distantes da base de operaes de Chan Kowk Wai, a cidade de So Paulo. A captao de contedos semnticos originrios da China e de uma viso tnica se deu a partir de entrevistas com dois mestres chineses, um de So Paulo (o prprio Chan Kowk Wai) e um de Curitiba (Lee Chung Deh, responsvel direto pela introduo do estilo na Regio Sul).

    Antes de chegar s entrevistas, porm, buscamos nos ocupar de quatro elementos que julgamos indispensveis para a investigao do universo semntico dos praticantes brasileiros de Kung-Fu:

    - O primeiro, uma Histria da arte marcial chinesa, construda a partir de bases acadmicas, com ateno especial ao Kung-Fu de Shaolin (vale observar que estudos acadmicos a respeito da marcialidade, principalmente os de carter histrico - ainda so relativamente tmidos no Brasil);

    - O segundo, o papel da imigrao chinesa na transplantao do Kung-Fu para o Brasil;

    - O terceiro, as fontes de representao/auto-representao encontradas ao longo das ltimas trs dcadas no Brasil (filmes, revistas, sites, livros, msicas, jogos de computador);

    - E o quarto, um estudo mais aprofundado da iconografia encontrada nas academias brasileiras de Shaolin do Norte.

    A investigao das fontes acadmicas nos permitiu estabelecer, inicialmente, os aspectos do Kung-Fu considerados relevantes pelos pesquisadores, principalmente no que se refere ao mito de criao de Shaolin, tema central no universo semntico no-corporal dos praticantes, especialmente no estilo Shaolin do Norte. Essa investigao tambm permitiu determinar o peso da imigrao para o estabelecimento da arte marcial chinesa no Brasil, bem como a relao entre a massa de imigrantes estabelecidos no pas e o Kung-Fu praticado nas academias.

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    A investigao das fontes de representao/auto-representao, por sua vez, permitiu desvendar o papel dos produtos da cultura de massa na formao do pensamento tico-filosfico e religioso do Kung-Fu no Brasil. Esta leitura desvendou o contnuo processo de recriao e institucionalizao de contedos milenares uma espcie de reconstruo do velho mestre e de seus aforismos - uma vez que possibilitou observar como os contedos de fontes populares influenciam os praticantes e, tambm, como os praticantes participam na eleio, produo, entendimento e replicao desses contedos.

    J a pesquisa relativa iconografia encontrada nas academias permitiu provar a presena e a profundidade de elementos religiosos tradicionais ligados s trs grandes religies que floresceram na China Taosmo, Confucionismo e Budismo. As informaes obtidas serviram como parmetro de comparao com os dados sobre essa mesma iconografia obtidos juntos aos professores e alunos brasileiros.

    O trabalho se justifica, pois, tanto pelo aspecto histrico quanto pelo de observao de como elementos culturais de uma determinada sociedade se comportam quando transplantados para uma sociedade de caractersticas religiosas e de viso de mundo muito diferentes. H que se observar o trabalho, ainda, pelo vis da chamada religiosidade fragmentria, isto , pela anlise de como elementos religiosos de uma determinada cultura acabam contrabandeados para dentro de outra a partir de atividades aparentemente no relacionadas a qualquer forma de religiosidade. Vale notar, ainda, que o trabalho ajuda a abrir um filo, uma vez que em nosso pas no h estudos sobre a marcialidade originria da China dentro das Cincias da Religio e, de modo geral, nas chamadas Cincias Humanas. Por fim, h que se considerar que a pesquisa pode levar temas de reflexo aos prprios praticantes, uma vez que eles sero confrontados com uma abordagem diferente da que esto acostumados, que baseada, sobretudo, em uma tradio oral enriquecida por informaes externas de fontes que, normalmente, no explicitam a origem de seus dados.

    O universo de entrevistados desta pesquisa foi estabelecido com interesse de determinar se e como os contedos religiosos orientais originalmente presentes no Kung-Fu se transformaram no Brasil desde o primeiro contato entre mestres chineses e alunos brasileiros. Para captar essa evoluo, chegamos a um grupo de dez pessoas que contempla, em um microcosmo, quatro geraes de praticantes: a primeira, formada

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    pelo mestre chins que introduziu a arte marcial no Brasil; a segunda, formada por outro mestre chins, formado no Brasil pelo mestre anterior e que foi o grande responsvel pela difuso do Shaolin do Norte fora de So Paulo; a terceira, formada por dois professores brasileiros do mestre chins de segunda gerao; e a quarta, formada por seis alunos brasileiros desses professores.

    A fim de chegarmos s respostas, dividimos o problema de pesquisa em quatro blocos distintos, dos quais trs so de carter bibliogrfico e um de carter emprico. Essa diviso tomou como referncia os elementos enunciados nos pargrafos anteriores. Assim, o primeiro deles, formado pelos captulos dois (As artes de guerra e a religiosidade marcial no contexto histrico chins) e trs (Uma Espada na Bagagem: imigrao chinesa e transplantao do Kung-Fu de Shaolin para o Brasil), buscou abranger, num primeiro momento, o desenvolvimento histrico da arte marcial na China e suas relaes com o Taosmo e o Budismo. No segundo momento, buscou examinar o papel da imigrao chinesa para a difuso Kung-Fu no Brasil e determinar o papel do elemento tnico nesse universo semntico e de relaes humanas.

    O segundo bloco, formado pelo captulo quatro (De Bruce Lee Internet: representao e auto-representao no Kung-Fu brasileiro), buscou examinar produtos brasileiros decorrentes da invaso da arte marcial chinesa verificada na primeira metade da dcada de 70. Procuramos determinar a origem das primeiras informaes filosficas sobre arte marcial chinesa que chegaram ao Brasil, assim como o momento de substituio de contedos aliengenas sobre Kung-Fu por contedos locais, ou seja, informaes derivadas do entendimento de brasileiros que se tornaram praticantes. Ainda dentro desse bloco, buscamos examinar o resultado da replicao de informaes dentro do universo brasileiro de Kung-Fu, procurando compreender como se d a transmisso de dados e tambm a consolidao de certos mitos e tradies da arte marcial chinesa.

    O terceiro bloco, formado pelo captulo cinco (Os Budas da Academia: interpretao acadmica da iconografia religiosa encontrada no universo semntico do Shaolin do Norte), buscou identificar os elementos gerais e os de carter religioso encontrados nas academias brasileiras de Shaolin do Norte, conferindo a esses contedos uma leitura acadmica. Em um primeiro momento buscamos apresentar um cenrio mdio das academias de Shaolin do Norte para, a seguir, identificar e traduzir, a partir de uma

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    leitura acadmica, os elementos religiosos orientais presentes nesses ambientes. Os dados obtidos nessa parte da pesquisa funcionaram para identificar traos do Budismo, Taosmo e Confucionismo dentro da iconografia do estilo Shaolin do Norte e, tambm, como um referencial para determinar o grau de transformao sofrido por esses contedos dentro do universo semntico dos praticantes brasileiros.

    O quarto bloco, formado pelo captulo seis (Para conhecer o filhote do tigre... Apresentao e leitura dos resultados da pesquisa de campo), trouxe um conjunto de informaes obtido a partir da sistematizao dos contedos das entrevistas; esse conjunto foi construdo a partir da apresentao e cruzamento dos dados obtidos junto aos mestres chineses, professores brasileiros e alunos.

    Estabelecidos os quatro blocos de desenvolvimento da dissertao, pudemos concluir o trabalho determinando a validade das hipteses iniciais (geral e particulares) de trabalho. A concluso tambm permitiu inferir, a partir do estilo que foi objeto de pesquisa, um quadro futuro para o Kung-Fu brasileiro em relao a seus contedos no-corporais (religiosos, histricos e filosficos).

    Em nosso projeto de pesquisa elencamos uma hiptese geral ou fundamental de trabalho, que foi desmembrada em seis hipteses particulares. Partimos da hiptese geral de que

    O Kung-Fu praticado no Brasil teve seu universo semntico no-corporal condicionado por fatores que implicaram em uma valorao e em um entendimento particulares, por parte dos praticantes locais, dos elementos da religiosidade chinesa associados prtica marcial original.

    A formatao desse Kung-Fu Brasileira decorreu de um processo que envolveu as fontes, a forma de transmisso e a compreenso dos contedos religiosos, filosficos e histricos que compem o universo semntico no-corporal da arte marcial chinesa. Decorreu, tambm, do interesse dos mestres chineses e dos praticantes brasileiros em difundir/valorizar tais contedos.

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    Essa hiptese geral s pde ser confirmada/negada a partir da verificao das seis hipteses particulares, que so:

    a) - A prevalncia de uma tradio oral centrada no valor atribudo informao do mestre (chins ou brasileiro), a ausncia de obras acadmicas sobre arte marcial chinesa, a obteno emprica de conhecimentos e, principalmente, a forte presena de contedos no-corporais sobre Kung-Fu em produtos da indstria cultural (a partir dos anos 70), implicaram na formao de um universo semntico no-corporal sui generis, moderno e de fulcro transcultural.

    b) - A dificuldade de acesso a informaes originrias da China, assim como de entendimento dos dados culturais daquele pas, levaram os praticantes locais a buscar informaes extra-academia - em livros, revistas, filmes e internet. Tais informaes teriam por fim sacramentar as atividades desenvolvidas nas academias como arte marcial de fato,4 ou seja, como prtica de agresso transformada em caminho de vida por meio da insero de fatores ticos e de carter legitimador.

    c) - As diferenas culturais existentes entre os mestres chineses que chegaram ao Brasil e os praticantes brasileiros (a comear pelo idioma) teriam criado uma barreira semntica que dificultou a transmisso de valores religiosos e tico-filosficos que, originalmente, formavam o substrato espiritual do Kung-Fu.

    d) A ausncia de uma colnia chinesa numericamente expressiva no Brasil e a falta de interesse dos prprios chineses em conhecer a arte marcial de seu pas de origem implicaram em um esvaziamento tnico no Kung-Fu brasileiro. Esse esvaziamento teve como principal conseqncia uma apropriao, por parte da populao local, da arte marcial chinesa, com conseqncias diretas para seus contedos no-corporais.

    e) - Prticas rituais e cones chineses associados originalmente religiosidade no Kung-Fu foram esvaziados de seu sentido original e convertidos em smbolos de carter cenogrfico, ou seja, de representao do universo marcial. Segundo essa viso, uma

    4 Faz-se necessrio, para o melhor entendimento da hiptese, observar que o conceito arte marcial no

    decorre mais apenas de um suposto olhar oriental. , hoje, um conceito de carter transcultural.

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    esttua do esprito tutelar Kuan Kung, por exemplo, perderia seu carter devocional e passaria condio exclusiva de pea necessria legitimao do ambiente marcial.

    f) - A viso do Kung-Fu como atividade desligada de contedos que no os de carter puramente marcial ou de condicionamento fsico fez com que os praticantes no investigassem e nem se interessassem pelos elementos religiosos, promovendo uma desvalorizao dos mesmos no universo da arte marcial.

    A verificao das hipteses particulares foi feita a partir do cruzamento dos dados bibliogrficos e empricos obtidos na pesquisa. A verificao da hiptese geral foi feita a partir de uma leitura de conjunto, por uma lente derivada do constructo terico adotado, das respostas s hipteses particulares.

    O constructo terico nasceu de um cruzamento entre a teoria de Martin Baumann sobre a transplantao religiosa e as consideraes de Berger & Luckmann a respeito da construo social da realidade. A teoria de Martin Baumann acerca da transplantao religiosa permitiu desvendar o desenvolvimento do Kung-Fu brasileiro a partir de suas razes tnica e no-tnica. Aplicamos teoria, necessariamente, ligeiras adaptaes (que no implicaram em qualquer tipo de distoro metodolgica), dado que o Kung-Fu no uma religio, mas uma prtica marcial dotada de contedos religiosos. Pela aplicao, ao Kung-Fu do Shaolin do Norte, das etapas de transplantao enunciadas por Baumann, pudemos verificar de que forma o conjunto semntico histrico-religioso de uma cultura aliengena se estabeleceu entre ns, e tambm como a mediao entre contedos tradicionais, no-tradicionais e da sociedade local produziu o que ns chamamos de Shaolin Brasileira.

    Essa mediao a chave para a aplicao do segundo componente do constructo terico, a saber, o trabalho de Berger & Luckmann sobre a construo social da realidade. Buscamos determinar se o elemento cultural decorrente da interao entre um produto originalmente chins o olhar brasileiro adquiriu um carter de conformao ou de confrontao em relao realidade-padro. No caso de conformao, a partir da renncia/ressignificao em relao a que valores originais; no caso de confrontao, a partir do atrito entre que valores, e se as divergncias semnticas implicaram em algum

  • 19

    tipo de encapsulamento da realidade dos praticantes de Kung-Fu brasileiros dentro da realidade-padro local.

    O acesso a fontes acadmicas para a produo dos captulos de fundamentao terica (dois, trs, quatro e cinco) foi vital para uma apreenso mais precisa dos elementos envolvidos com a arte marcial chinesa tradicional, tanto em terras chinesas quanto no restante do mundo. O levantamento de dados histricos sobre a arte marcial na China e em Shaolin foi possvel principalmente graas aos trabalhos de Meir Shahar (Tel Aviv University), Stanley Henning (pesq. independente, Hava), Dian Murray (University of Notre Dame) e Barend ter Haar (Leiden University). A definio do Kung-Fu como produto transcultural foi possvel graas aos trabalhos de Leon Hunt (Brunel University) e de Wolfram Manzenreiter (University of Viena) & Sabine Frhstck (University of California). Indicaes sobre o significado tradicional e a traduo dos ideogramas chineses presentes nos elementos iconogrficos foram possveis graas ao auxlio do mdico acupunturista chins Pan Yi Bo, originrio de Henan, que atualmente vive em Curitiba.

  • 20

    2 DOS BRONZES DE SHANG AOS TURISTAS DE SHAOLIN: AS ARTES DE GUERRA E A RELIGIOSIDADE MARCIAL NO CONTEXTO HISTRICO CHINS

    2.1 Consideraes preliminares

    As artes marciais ocupam um lugar especial na cultura chinesa. Praticadas h milnios - com maior ou menor grau de sistematizao -, elas formam um corpo de conhecimentos e tradies de base oral que alcanou a literatura (com o gnero Wusia, reservado aos heris combatentes das injustias),5 o teatro e o cinema. Elas oferecem um vasto campo de trabalho e um desafio: diante da diversidade das lendas e mitos de criao diante, enfim, do "folclore marcial" - como chegar s suas razes histricas? Um caminho o da pesquisa em fontes cronologicamente determinadas - livros, edifcios e monumentos - que no padecem da dinmica transformadora verificada na transmisso oral. E, ainda que tais fontes possam sofrer influncias como a do olhar de uma classe social sobre outra ou de uma linha predominante de pesquisa - mostram-se valiosas em aspectos que vo da localizao da nomenclatura marcial compreenso das motivaes que levaram um grupo humano a se dedicar a prticas marciais. Essas fontes, bem como pesquisas feitas por scholars chineses e japoneses, serviram como objeto de trabalho para os pesquisadores ocidentais que, no sculo XX, passaram a considerar o tema como digno de estudo.

    2.2 Uma linha do tempo para a arte marcial chinesa

    Antes de iniciar o estudo especfico do tema, preciso determinar os perodos histricos chineses com base na ascenso e queda das dinastias e no incio do regime republicano. Essa determinao fundamental para a compreenso da Histria da China, vista como matriz de todo o movimento marcial verificado naquela civilizao (ver tabela 1).6 O desenvolvimento tecnolgico de armas, o aprimoramento das tcnicas de combate e a produo de um pensamento filosfico de vis marcial (seja em termos de estratgia, seja em termos ticos) decorre, fundamentalmente, das pocas de transferncia de poder. H que se observar que, no caso chins (assim como em muitas outras civilizaes), toda a transferncia de poder se deu a partir de confrontos nos campos de batalha. Alianas

    5 Literatura Wusia em (c. 10.06.2003).

    6 Os dados da tabela se baseiam em (c. 12.08.2004)

  • 21

    entre reinos, intrigas palacianas e a capacidade de manter linhas de suprimento para as frentes de batalha tambm participaram desse processo elas esto ligadas, fundamentalmente, ao princpio enunciado por Carl Von Clauzewitz no incio do sculo XIX (logo aps a derrota de Napoleo Bonaparte), segundo o qual a guerra uma simples continuao da poltica por outros meios.7

    Tabela 1 Cronologia das Dinastias e do perodo republicano chins* Dinastia

    Dinastia/Perodo Republicano

    (1) Shang 1750 a 1050 a.C.

    (8) Tang 618 a 907

    (2) Chou 1050 a 221 a.C.

    (9) Cinco Dinastias e Dez Reinos 907 a 960

    (3) Chin 221 a 207 a.C.

    (10) Song 960 a 1279

    (4) Han 206 a.C. a 221 d.C.

    (11) Yuan 1279 a 1368

    (5) Trs Reinos 221 a 280

    (12) Ming 1368 a 1644

    (6) Chin 280 a 420

    (13) Qing 1644 a 1911

    (7) Sui 420 a 617

    (14) Repblica da China 1911 a 1949

    (15-a) Repblica Popular da China 1949 ao sc. XXI

    (15-b) Repblica da China/Taiwan 1949 ao sc. XXI

    7 CLAUZEWITZ, C., Da Guerra, 2 ed., So Paulo: Martins Fontes, 1996, 921 p., p. 27.

    * Iniciamos a contagem de tempo por Shang, o perodo histrico mais antigo confirmado pela arqueologia.

    Em termos mticos, a origem da civilizao chinesa se inicia cerca de 1.300 anos antes, com os imperadores fundadores Shen-nung, Huang Ti, Fu-hsi, Yao, Shun e Y. Ver THORWALD, J., O Segredo dos Mdicos Antigos, 10 ed., So Paulo: Melhoramentos, 1990, 319 p., p. 224-225

  • 22

    A partir de pesquisas mais especficas em relao ao nosso objeto possvel traar uma linha do tempo que representa a evoluo histrica das artes marciais chinesas ao longo dos ltimos 30 sculos (tabela 2). Ela composta por grandes eventos documentados ou resgatados pela arqueologia. Para facilitar a aproximao e estabelecer uma unidade temtica, optamos por apresentar essa linha do tempo e, ento, fazer a anlise dos dados. Como ser possvel observar, h uma forte presena, nessa cronologia, do mosteiro budista de Shaolin (a tabela foi dividida nas fases Pr-Shaolin, Shaolin e Ps-Shaolin). Ela se justifica pelo fato de que um estilo decorrente da tradio Shaolin (o Shaolin do Norte) ocupa uma posio central em nosso objeto de pesquisa. Alm disso, h que se considerar que o mosteiro ocupou, de fato, um locus estratgico no desenvolvimento marcial chins, principalmente em relao tradio do moderno Kung-Fu. Procuramos no omitir, porm, outros desenvolvimentos marciais, principalmente em relao ao perodo abrangido pelos scs. XVI a XVIII, que chave para a construo da atual arte marcial chinesa.

    Tabela 2 Linha do Tempo das Artes Marciais Chinesas

    Fase

    poca Fato Relevante

    1500 a 1122 a.C.

    Dinastia Shang. Espadas, lanas, punhais e machados de bronze. Primeiros registros de prtica marcial na China.

    1000 a.C. Dinastia Chou. Representaes, em peas de bronze, de figuras humanas em posturas de combate.

    722 a 481 a.C.

    Registro de prticas marciais no Livro dos Ritos e nos Anais da Primavera e Outono. Lao Tzu escreve o clssico taosta Tao-Te-Ching. Na obra, condena o uso das armas.

    403 a 221 a.C.

    Era dos Reinos Combatentes. Sun Tzu escreve a obra Os 13 Momentos.

    206 a.C. a 220 d.C.

    Registros sobre o shoubo e jueli, formas de luta e pugilismo. Aproximao entre conceitos taostas, confucionistas e budistas nas prticas religiosas e corporais. Origem religiosa do Kung-Fu.

    64 Fundao do primeiro mosteiro budista chins, o Bai Ma (Cavalo Branco").

    136 a 208 O mdico taosta Hua To cria os Jogos dos Cinco Animais.

    Pr-Shaolin

    402 Fundao, segundo a tradio, da Pai-lien She (Sociedade do Ltus Branco).

  • 23

    495 Fundao, prximo de Luoyang (Henan), do mosteiro de Shaolin.

    610 a 621 Bandoleiros atacam Shaolin: incio da relao entre os monges e a marcialidade. Os monges de Shaolin participam da campanha de Li Shimin contra Wang Shichong, que foi determinante para a implantao da Dinastia Tang.

    1515 O scholar Du Mu redescobre a Estela do Mosteiro de Shaolin.

    1553 Participao de tropas monsticas em campanhas antipirataria em Zhejiang.

    1621 Cheng Zongyou publica a Exposio sobre o Mtodo Original de Basto de Shaolin.

    Sc. XVI Aparecimento de artistas marciais itinerantes na China.

    Sc. XVII Desenvolvimento, em Chenjiagou (Henan), do estilo Tai-Chi-Chuan.

    Shaolin

    Sc. XVIII Desenvolvimento, em Henan e Shanxi, dos estilos Hsing I Chuan e Pa Kua Chuan. Criao da Tiandihui (Sociedade do Cu e da Terra). Disseminao da lenda dos monges fundadores da Trade. Segundo a tradio marcial, incndios destroem os mosteiros de Shaolin em Henan e Fujian.

    1900 Rebelio dos Boxers. Derrota do movimento sectrio chins.

    1917 Mao Ts-Tung escreve o ensaio Um Estudo sobre a Cultura Fsica.

    Anos 20 Movimento de resgate e institucionalizao das artes marciais. Criao de institutos e realizao de competies. Em 1928, incndio no Mosteiro de Shaolin.

    1949 Comunistas chegam ao poder na China. Fuga de mestres do pas.

    1954 Estandardizao dos sistemas marciais na Repblica Popular da China. Criao do moderno Wushu.

    Anos 60 Revoluo Cultural Chinesa. Nova debandada de mestres da China. Chega ao Brasil o gro-mestre Chan Kowk Wai (1960).

    1966 Chegada do mestre Lee Chung Deh ao Brasil.

    Anos 80 Reforma e reocupao de Shaolin. Nomeao de um abade para o templo.

    1990 O Wu-Shu includo entre os esportes de competio nos Jogos Asiticos.

    Ps- Shaolin

    Sc. XXI O governo da China inicia campanha para transformar o Wu-Shu em esporte olmpico.

  • 24

    2.2.1 Primrdios: de Shang Era dos Reinos Combatentes

    As mais antigas representaes marciais chinesas possuem trs mil anos: aparecem em vasilhas de bronze datadas de cerca de 1000 a.C. (na passagem da Dinastia Shang para Chou) e mostram homens em situao de combate.8 De acordo com Draeger & Smith,9 a origem das artes marciais pode ser traada at a Dinastia Chou (1122 a 255 a.C.).10 Referncias s artes marciais praticadas pela nobreza arco-e-flecha, esgrima e pugilismo aparecem no Livro dos Ritos, nos Anais da Primavera e Outono (722 a 481 a.C.) e em obras da chamada Era dos Reinos Combatentes (464 a 221 a.C.).

    Escavaes arqueolgicas revelaram que os guerreiros utilizavam machados, lanas, facas e espadas confeccionadas em bronze (ver fig. 1 e 2),11 liga conhecida desde Shang (1500 a 1122 a.C.).12 Armas semelhantes aparecem nos modernos sistemas de Kung-Fu, inclusive no Shaolin do Norte. Se aceitarmos a hiptese de que a prtica regular determinou o surgimento de escolas e estilos marciais, possvel relacionar o perodo estudado moderna marcialidade.13

    O domnio do arco e da conduo de carruagem era parte da educao dos nobres de Chou; no caso do arco, ele se tornou um passatempo da nobreza j na poca do filsofo Confcio (551 a 479 a.C.). Mncio (372 - 289 a.C.) se refere a um modo de transmisso das tcnicas de arco-e-flecha semelhante ao adotado nas modernas academias de Kung-

    8 Cf. HOLCOMBE, C., Theater of Combat: A critical look at the Chinese Martial Arts, in

    (c. 25.08.2003). 9 DRAGER, D., & SMITH, R., Asian Fighting Arts (1 ed., Tquio: Kodansha International Ltd., 1973, 201

    p.), p. 15. 10

    Ver , c. 29.08.2003) e PEERS & MCBRIDE, Ancient Chinese Armies 1500 200 b.C., 1 ed., Oxford: Osprey Publishing, Men-at-Arms Series, 1998, 48 p. 11

    Imagens extradas de: PEERS, C., & MCBRIDE, A., "Ancient Chinese...", p. 7 (punhal) e 11 (machado). 12

    Ibid., p. 5 a 8. 13

    MING, Y., Ancient Chinese Weapons A Martial Artists Guide, 1 ed., Boston: YMAA Publications, 1999, 140 p.

  • 25

    Fu.14 Na Era dos Reinos Combatentes, as guerras entre os reinos de Chin, Chi, Wei, Wu, Chu e Yueh aceleraram o desenvolvimento de tecnologias e do pensamento militar. Foi o tempo de A Arte da Guerra (ou Os Treze Momentos), obra atribuda ao expert militar Sun Tzu. Livro de cabeceira de executivos no sculo XXI, ficou conhecido no Ocidente a partir 1772, quando foi traduzido para o francs pelo jesuta Jean-Joseph Marie Amiot.15

    Ainda que a atividade marcial fosse exclusiva da nobreza at a Dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.), h referncias prtica de pugilismo por outros grupos sociais. Essa democratizao marcial se configurou, aparentemente, como reflexo do aumento da violncia na sociedade chinesa durante a Era dos Reinos Combatentes, que implicou, em um primeiro momento, na separao entre as figuras do rei e do general. A segunda conseqncia diretamente relacionada evoluo tcnica da guerra se refere ao aumento da conscrio de civis. Henning cita o termo bo ou shoubo (palavras que, durante a Dinastia Song - sc. XII seriam substitudas por Quan ou Chuan)16 para identificar um mtodo conhecido na Dinastia Han Anterior (206 a.C. a 9 d.C.). Esse mtodo estaria descrito no manual Han Shu I Wen Chih (Seis Captulos a Respeito do Combate de Mos, mencionado no Livro das Artes de Han).17 Praticado por militares e civis, era diferente do pugilismo esportivo dos militares (jueli).18

    2.2.2 O Budismo e a "origem religiosa" das artes marciais chinesas

    Na Dinastia Han Posterior (25 a 220 d.C.) houve uma aproximao entre Taosmo, Confucionismo e Budismo (que avanara para a sia Central a partir dos esforos de Ashok, imperador indiano da Dinastia Maurya); ela teria sido favorecida pela crise institucional na Dinastia Han e pelo descrdito com que os intelectuais de ento viam o Confucionismo. Ainda que no seja possvel determinar o momento exato do contato, os pesquisadores aceitam o ano de 64 d.C. como o da entrada institucional das primeiras

    14 HOLCOMBE, C., "Theater of Combat...", op. cit., doc. eletr.

    15 Cf. CARDOSO, A., Os Treze Momentos Anlise da Obra de Sun Tzu (1 ed., Rio de Janeiro:

    Biblioteca do Exrcito Editora, 1987, 158 p.), p. 4. 16

    Cf. HENNING, S., Academy Encounters the Chinese Martial Arts, in Hava: China Review International, Vol. 6, n. 2, 1999, p. 319 a 332, p. 320. 17

    Cf. DRAEGER & SMITH, "Asian Fighting...", p. 16. 18

    Cf. HENNING, "Academy Encounters...", p. 320.

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    obras budistas na China.19 Nesse ano foi fundado em Luoyang (na atual provncia de Henan)20 o Baima ([Mosteiro do] Cavalo Branco).21 Em termos marciais, o momento significativo: ele teria gerado prticas corporais decorrentes da fuso entre preceitos budistas, hindustas (atravs do Budismo) e taostas. Essas prticas estariam na origem das artes marciais chinesas. Segundo Holcombe, na Dinastia Han Posterior houve um cruzamento entre as antigas prticas respiratrias taostas (chinesas) e hindus (indianas):

    A tradio chinesa taosta de exerccios de prolongamento da vida se mesclou com o Yoga indiano introduzido na China nos primeiros sculos da era crist. O interesse inicial no Budismo se concentrou nas aproximaes para os mesmos problemas, e alguns dos primeiros textos traduzidos do snscrito para o chins eram devotados meditao, ao controle da respirao e a segredos para atingir a imortalidade no outro mundo.22

    Huard & Ling citam prticas medicinais exportadas da ndia para a China; elas incluam exerccios fsicos que relacionavam formas de respirao, movimento e mentalizao.

    No sculo IV (...) Kumarajiva inundou a China com obras budistas. Desde essa poca, os Budas e os Bodhisattvas, seres transcendentes, foram confundidos com sbios taostas. Eles acabaram vencendo nas devoes populares; o budismo ensinou igualmente preceitos de higiene e as suas comunidades favoreceram os exerccios coletivos (...).23

    personagem desse perodo o mdico taosta Hua To (136 ou 141 a 208 d.C.),24 tido como o criador dos "Jogos dos Cinco Animais" (exerccios zoomorfos que imitavam os movimentos da grua, do urso, do tigre, do veado e do macaco).

    19 Cf. (c. 15.09.03).

    20 Provncia do centro-leste da China. Inf. em , mapa

    em (c. 18.11.2003). 21

    Ver e (c. 15.09.2003). 22

    HOLCOMBE, op. cit., "Theater of combat...", doc. eletrnico. Trad. livre do ingls. 23

    HUARD & LING, "Tcnicas e Cuidados do Corpo na China, no Japo e na ndia" (1 ed., So Paulo: Summus Editorial, 1990, 317 p.)., p. 60 e 61. Kumarajiva (344 413) foi um dos principais tradutores de obras budistas para o chins. Foi o responsvel pela primeira traduo, para o chins, do Sutra do Diamante. 24

    Ibid., p. 64.

  • 27

    De acordo com Needhan, Huard & Ling e Holcombe, esses exerccios so a base da arte marcial chinesa (fig. 3).25 Segundo Holcombe, a inflexo sade x arte marcial provavelmente decorreu da popularizao de obras como a de Hua To. A passagem teria ocorrido a partir de seitas como Pai-lien She ("Sociedade do Ltus Branco", fundada em 402 pelo monge budista Hui-yuan), que fundiram a religio das elites com prticas xamansticas.26 Tais seitas seriam as grandes responsveis pela manuteno da nota religiosa na arte marcial chinesa:

    Nos sculos XVIII e XIX, o repertrio de tcnicas ensinadas aos conversos ao Ltus Branco inclua encantamentos, controle respiratrio, massagem teraputica e exerccios de luta. Os seguidores do Ltus Branco se referiam a essas tcnicas como kung-fu, mas a transcendncia permanecia sendo seu principal fator de atrao. Mesmo entre os boxers, mais recentes, (...) a funo do kung-fu consistia, ainda, na obteno religiosa de poderes sobrenaturais. 27

    Ainda de acordo com Holcombe, o Tai-Chi-Chuan - arte marcial provavelmente criada no sculo XVII em Henan, cujo nome pode ser traduzido como Boxe do Grau Supremo -28 seria a prova da "herana taosta" das artes marciais. Segundo ele, a idia de Grau Supremo deriva do Livro das Mutaes (I Ching) e as bases filosficas do Tai-Chi, do Taosmo.29

    Joseph Needham, autor da srie Science and Civilization in China (obra em sete volumes publicada em 1954 pela Cambridge University Press), afirmava que o pugilismo chins provavelmente nasceu como um departamento dos exerccios corporais taostas. Os mtodos chineses de combate so tratados no volume II e V da obra.30 Draeger & Smith so mais diretos em relao proximidade entre Taosmo e arte marcial: eles afirmam que esses mtodos foram trazidos para dentro do moderno pugilismo e se tornaram o ncleo do chamado Sistema Interno.31

    25 Ibid, p. 66 (imagem).

    26 HOLCOMBE, "Theater of Combat...", op.cit.

    27 Ibid, trad. livre do ingls.

    28 Cf. SHAHAR, Ming-Period Evidence of Shaolin Martial Practice, art. publ. in Harvard: Harvard Journal

    of Asiatic Studies, v. 61, n. 2, dez. 2001, p. 359 a 413, p. 388; Traduo de "Tai-Chi-Chuan" cf. DERRICKSON, "Chinese for Martial Arts", 1 ed., Rutland: Charles E. Tuttle, 1996, 40 p., p. 20. 29

    HOLCOMBE, "Theater of combat...", op. cit. 30

    Cf. HENNING, Academy Encounters the Chinese Martial Arts, p. 320 e nota 6. Biografia de Needham em (c. 09.09.2003). 31

    DRAEGER & SMITH, Asian Fighting..., p. 16. Ver tb. SHAHAR, Ming-Period, op. cit.,apndice.

  • 28

    Henning se ope a uma ascendncia religiosa das artes marciais e atribui essa conexo exclusivamente s sociedades secretas dos sculos XVII e XVIII. Segundo ele, o relativo segredo em que esteve mergulhada a transmisso marcial contribuiu para cercar o tema de uma nvoa de mito e mistrio.32 Para o pesquisador, muitos scholars erraram ao supervalorizar lendas populares, prticas japonesas e modernas, novelas chinesas de cavalaria, mitos de criao das sociedades secretas do perodo Qing tardio ou dos Boxers de 1900.33 O pesquisador observa que a filosofia taosta e a Teoria dos Opostos (Yin e Yang) permearam a mente chinesa como um todo. Ainda assim, as artes de combate no eram necessariamente associadas com as tcnicas de cultivo taostas, alquimia ou Taosmo religioso em geral.34 Em sua avaliao, os Jogos dos Cinco Animais no guardam relao com o Tai-Chi-Chuan ou com qualquer outra forma de luta.35 Um dos principais responsveis por essa viso equivocada, para Henning, foi Joseph Needham:

    Parece que Needham tentou conformar fora o boxe chins em uma noo pr-concebida do papel do Taosmo na cultura chinesa; conseqentemente, o boxe chins discutido na narrativa sob [os temas] Taosmo e Alquimia Fisiolgica no volume dois e na terceira e quinta partes do volume cinco, mas apenas como curiosidade nas notas de rodap da sexta parte do volume cinco, sobre pensamento e tecnologia militares como uma atividade taosta em um meio ambiente militar.36

    Uma leitura do clssico taosta Tao Te Ching pode fornecer argumentos religiosos para a defesa do desligamento entre a prtica taosta e a marcial proposta por Henning. Para o filsofo Lao Tzu, as armas no encontram lugar na vida de quem busca a transcendncia: "Armas afiadas so instrumentos do homem mau, e no instrumentos do homem superior; ele os utiliza apenas na compulso da necessidade."37

    32 HENNING, "Academy Encounters...", p. 319.

    33 Ibid.

    34 Ibid., p. 321.

    35 Idem, Ignorance, Legend and Tai-Chi-Chuan, disp. em

    (c. 24.07.2003) 36

    HENNING, "Academy Encounters...", p. 319. 37

    LAO TZU, "Tao Te Ching", verso 31 (trad. para o ingls por James Legge, disp. em , c. 10.09.2003). Trad. livre p/o portugus.

  • 29

    2.2.3 O Mosteiro de Shaolin consideraes preliminares38

    Outro elemento poderoso na polmica sobre a "religiosidade fundante" da marcialidade chinesa o Mosteiro de Shaolin (fig. 4 e 5).39 Ao analisar documentos, os pesquisadores tm aberto novas possibilidades de interpretao para as tradies orais que ligam estilos de Kung-Fu ao mosteiro de Henan e, tambm, para a conexo entre a arte marcial e a religio. O assunto foi tratado por scholars orientais (chineses e japoneses) desde o sculo XVI e, no sculo XX, teve no pesquisador Tong Hao (1897 - 1959) um de seus principais investigadores. Seu trabalho serviu como base para a obra de Meir Shahar, que colocou Shaolin no universo acadmico ocidental. At ento, aparentemente, a marcialidade de Shaolin no era vista como digna de nota pelos pesquisadores. Essa desconfiana decorreria da mitologia estabelecida ao redor do tema na China, do fechamento do pas sob Mao-Ts-Tung e da apropriao pop dos monges guerreiros no final do sculo XX.

    Shahar produziu dois artigos a respeito do tema: Ming-Period Evidence of Shaolin Martial Practice, sobre a relao entre o mosteiro e as artes marciais no final da dinastia Ming, e Epigraphy, Buddhist Historiography, and Fighting Monks: The Case of The Shaolin Monastery,40 que focaliza os registros sobre a participao de monges de Shaolin em combate na passagem das dinastias Sui para Tang (sc. VII d. C.). Henning tambm

    38 As fontes fundamentais de informao utilizadas para a investigao do tema marcialidade em Shaolin

    foram SHAHAR, M. (Ming-Period Evidence of Shaolin Martial Practice) e HENNING, S. (Reflections on a Visit to the Shaolin Monastery", art. publ. em Journal of Asian Martial Arts, Vol. 7, n. 1, 1998, p. 90 a 101). A obra de SHAHAR foi traduzida por APOLLONI, R., com autorizao do autor, e publicada em . Para evitar a citao reiterada (e exaustiva) dessas obras, optamos por referir em notas apenas informaes decorrentes de outras fontes. O leitor deve considerar todos os demais dados como extrados dos autores supracitados. 39

    Imagens extradas de (c.17.06.2004) 40

    SHAHAR, M., Epigraphy, Buddhist Historiography, and Fighting Monks: The Case of The Shaolin Monastery (indito, 21 p.), texto recebido do autor por e-mail em 21.07.2003.

  • 30

    voltou a ateno para Shaolin: no artigo Reflections on a Visit to the Shaolin Monastery,41 ele aborda o passado e, principalmente, o presente do mosteiro. Outros estudos recentes foram feitos por Barend Ter Haar42 e Dian Murray.43 Ainda que no tenham como elemento o mosteiro, estes trabalhos prospectaram as tradies dos grupos sectrios e revelaram seu papel na consolidao do mito de Shaolin. Em nosso estudo vamos nos basear, fundamentalmente, nos textos acima relacionados. Buscaremos observar as relaes dos monges com a poltica e seus efeitos sobre a marcialidade; o desenvolvimento de sistemas marciais em Shaolin; e a marcialidade e a tradio religiosa.

    2.2.3.1 Fundao, patrocnio e tenses polticas

    O mosteiro de Shaolin foi fundado em 495 no sop do pico Shaoshi, no monte Song (Henan). O local j era reverenciado pelos imperadores como uma das cinco montanhas sagradas da China antes da chegada do Budismo.44 Localizado prximo da cidade de Luoyang (capital do imprio chins a partir de 493, quando a Dinastia budista Wei do Norte transferiu sua capital de Datong para l),45 ocupava um lugar privilegiado em relao geografia sagrada e ao poder poltico.

    Ainda que algumas vezes tenha sido patrocinado por imperadores devotos (caso de Wendi - 581 a 604 d.C. -, representante da Dinastia Sui que doou ao mosteiro uma rea de 1.400 acres at hoje conhecida como Gleba do Vale do Cipreste), a instituio no escapou da desconfiana de outros governantes. Essa desconfiana dizia respeito ao fato de o Budismo ser uma religio estrangeira (em oposio ao Taosmo) e sua forma de organizao em mosteiros, vistos como potenciais focos de rebelio.46 Um acontecimento histrico verificado no sculo VII, porm, permitiu que Shaolin sobrevivesse s campanhas antibudistas imperiais que nos sculos seguintes destruram mosteiros, restringiram direitos de culto e assassinaram religiosos.

    41 Publ. in "Journal of Asian Martial Arts", v. 7, n.1, 1998, p. 90 a 101.

    42 TER HAAR, B., Ritual & Mythology of the Chinese Triads, 1 ed., Leiden: Brills Scholars List, 1997,

    577 p. 43

    MURRAY, D., The Origins of the Tiandihui The Chinese Triads in Legend and History, 1 ed., Stanford: Stanford University Press, 1994, 350 p. 44

    Sobre as montanhas sagradas da China, ver (c. 29.09.2003). 45

    Cf. (c. 29.09.03) e (c. 29.09.03).

  • 31

    2.2.3.2 Dinastia Tang: o primeiro sangue de Shaolin

    Os mais antigos registros da participao de monges de Shaolin em aes militares so encontrados na Estela do Mosteiro de Shaolin (Shaolin si bei, erigida em 728), que traz sete textos produzidos entre 621 e 728: A Histria do Mosteiro de Shaolin, do ministro Pei Cui, de 728; a Carta de Li Shimin, de 26 de maio de 621; a Doao do Prncipe, de 625; a Carta Oficial, de 632; o Presente do Imperador, de 724 (dois textos); e a Lista

    dos Treze Monges Hericos, sem datao definida. A estela (fig. 6)47 considerada o mais importante documento sobre o tema produzido nas dinastias Sui-Tang. Ela foi redescoberta em 1515 pelo scholar chins Du Mu, que produziu um relato precioso sobre as primeiras aes guerreiras dos monges Shaolin. Ele tambm observou a ausncia dos feitos militares dos monges na obra oficial Histria [da Dinastia] Tang e dedicou sua obra a retificar essa omisso. De acordo com a Histria do Mosteiro de Shaolin, escrita pelo ministro de Pessoal de Xuanzong (imperador Tang que governou entre 712 e 755), Pei Cui, os monges entraram em ao pela primeira

    vez em 610,48 quando derrotaram bandidos que ameaavam destruir o mosteiro. A primeira ao de carter poltico, porm, se deu em 621, quando eles estiveram envolvidos com a chegada da Casa de Tang ao poder: com o fim da Dinastia Sui, no incio do sc. VII, nobres e militares lutaram pelo domnio do imprio. Em 618, Li Yuan (566 - 635) fundou a Dinastia Tang. O incio do governo no foi pacfico: em 619, um general de Sui, Wang Shichong, fundou outra Dinastia (Zheng) em Luoyang.

    46 Cf. (c. 29.09.03).

    47 Imagem (em negativo) extrada de SHAHAR, M., Epigraphy..., op. cit., p. 23. Estela uma prancha de

    pedra com inscries, fixada verticalmente no solo. Normalmente, funciona como marco funerrio. 48

    Ou entre 605 e 618. A primeira data de SHAHAR; a segunda, de HENNING.

  • 32

    O segundo filho de Li Yuan, Li Shimin (o futuro imperador Taizong) foi encarregado de combater Wang. A guerra durou quase um ano. A ordem de Li Shimin aos seus generais foi atacar o inimigo em Luoyang e cortar as rotas fluviais de abastecimento da cidade. Na primavera de 621, por conta disso, as tropas de Wang Shichong passavam fome. Mesmo cercado, Wang conseguiu firmar uma aliana com outro rebelde, Dou Jiande. Dou, que havia mobilizado tropas entre Shandong e Hebei, resolveu lan-las contra Li Shimin em Luoyang. Numa atitude digna de Sun Tzu, Li Shimin antecipou-se ao ataque. Em maio de 621, em Hulao, a cem quilmetros de Luoyang, Dou Jiande foi derrotado e morto. Com isso, Wang Shichong se rendeu - ele seria assassinado logo depois, quando seguia para o exlio. No dia quatro de junho de 621, as tropas de Li Shimin entraram em Luoyang.

    De acordo com Pei Cui, os monges participaram dos combates pouco antes da vitria de Li Shimin em Hulao. Eles derrotaram soldados de Wang Shichong que ocupavam o monte Huanyuan, em Baigu Zhuang (Gleba do Vale do Cipreste). Vizinho da sede do mosteiro, o monte estava situado na passagem para Luoyang e formava um passo cenrio em que poucos soldados poderiam vencer muitos inimigos. No local, a tropa de Wang construra uma torre que possibilitava o envio de informaes para os sitiados em Luoyang. Pouco depois de derrotar as tropas em Huanyuan, os monges capturaram o sobrinho de Wang Shichong, Wang Renze. Em agradecimento, Li Shimin enviou aos monges uma carta e doou ao mosteiro uma rea de 560 acres e um moinho.

    De acordo com um segundo documento da Estela de Shaolin - a Carta Oficial de 632, escrita pelo vice-magistrado do condado de Dengfeng - um dos monges, Tanzong, foi nomeado general-em-chefe do exrcito de Li Shimin. Outro registro da Estela de Shaolin, a A Lista dos Treze Monges Hericos (nico texto no-datado), traz os nomes dos monges que se destacaram nos combates de 621: Shanhu (deo), Zhicao (abade), Huiyang (supervisor), Tanzong (general-em-chefe), Puhui, Mingsong, Lingxian, Pusheng, Zhishou, Daoguang, Zhixing, Man e Feng.

    O texto de Pei Cui, observa Shahar, no deixa claro se os monges foram convidados ou coagidos a lutar. Ele acredita que a iniciativa pode ter nascido do desejo de vingana ou da observao, pelos monges, das chances dos contendores. O fato que a vitria implicou em uma mudana no status do mosteiro junto casa imperial: Shaolin no sofreu grandes perseguies durante a Dinastia Tang.

  • 33

    O favor imperial pode ser observado na Carta de Pei Cui e em outros textos da Estela de Shaolin, como a carta de Li Shimin aos monges (datada de 26 de maio de 621), a Doao do Prncipe, de 625 que devolveu aos clrigos o domnio sobre o Vale do Cipreste e os Presentes do Imperador, de 724, que reforaram o patrocnio ao mosteiro. Sharar observa, porm, os limites dessa aliana: em um trecho da Carta de Li Shimin, o futuro imperador Taizong exorta os monges a retomarem suas atividades religiosas. O incmodo de Li Shimin diante da possibilidade de lidar com monges lutadores perceptvel; alm disso, avalia Shahar, a inscrio de documentos oficiais em pedra reveladora, mostrando que os monges se protegiam contra possveis esquecimentos do imperador.

    2.2.3.3 Expresses da marcialidade em Shaolin durante a passagem Ming-Qing

    A busca pela presena marcial em Shaolin no perodo entre 717 e 932 anos49 que vai da fundao de Tang at a fase final da Dinastia Ming (1368 - 1644) pode levar um estudioso a crer que a exortao de Li Shimin aos monges foi tomada ao p da letra: que no h registro de prtica marcial dentro do mosteiro ou de envolvimento dos monges de Shaolin com atividades guerreiras nesse perodo. Ainda que no se possa descartar a possibilidade de que os monges tenham atendido recomendao,50 preciso observar que uma leitura crtica recomenda prudncia na avaliao desse silncio marcial. O perodo abrange momentos polticos distintos (a Dinastia Tang, o perodo das chamadas Cinco Dinastias e Dez Reinos, a Dinastia Song, a Dinastia mongol Yuan e parte da Dinastia Ming),51 que, provavelmente, implicaram em orientaes diversas na conduo do dilogo imperial com o clero budista.

    A situao mudou na ltima etapa da Dinastia Ming: de 1515 (ano da publicao do trabalho de Du Mu) at a primeira metade do sculo XVIII, quarenta fontes atestaram a ligao do mosteiro com a marcialidade! Com base nesses registros, possvel

    49 SHAHAR indica 717 anos; HENNING, 932 anos. A diferena pode ser explicada pela utilizao de datas

    de referncia diversas: enquanto o primeiro toma como referncia um indcio de 798 e o ano de publicao dos ensaios sobre a Estela do Mosteiro de Shaolin (1515), o segundo parece comparar os episdios de 621 campanha de 1553 dos monges de Shaolin contra a pirataria. 50

    Segundo HENNING, no h registros da participao de Shaolin nos episdios marciais da Dinastia Song, quando monges do monte Wutai (Shanxi) e de outros mosteiros lutaram contra os invasores Jin. Shaolin foi arrasado em 1350, na Revolta dos Turbantes Vermelhos; os monges foram expulsos e s voltaram em 1359. "Turbantes Vermelhos" em (c. 05.11.03). 51

    Ver tabela 1.

  • 34

    afirmar que a se deu a fixao do mito de Shaolin e da figura do monge boxeador. As fontes incluem manuais militares e de arte marcial, relatos de viagem, relatrios de governo, poesias, estelas e inscries tumulares na Floresta de Stupas de Shaolin. A "Floresta" - que rene um dos maiores grupos de stupas de toda a China - um cemitrio de monges localizado em Shaolin.52 Tais registros so a prova da existncia dos monges guerreiros budistas: eles apontam sua participao em aes militares, atestam que o mosteiro de Shaolin se transformou em um centro de difuso marcial e indicam que os monges foram levados a adaptar sua prtica religiosa s exigncias da prtica marcial.

    2.2.3.4 Consideraes sobre o engajamento militar dos monges de Shaolin no perodo Ming tardio

    Shahar observa que, em Shaolin, a demanda pelo engajamento militar foi grave o suficiente para fazer com que os monges inclussem em seu dia-a-dia funes "incomuns". Segundo ele, o papel militar de monges no sculo XVI53 tem como explicaes a deteriorao da atividade militar, o esvaziamento institucional da Casa de Ming, a depresso econmica e um aumento brutal da violncia, especialmente em Henan.54 Nesse contexto, observa, est includo o prprio desenvolvimento das artes marciais.

    Scholars observaram o papel da violncia endmica para a Histria das artes marciais nas plancies do Norte da China. A economia predatria transformou as artes marciais em um elemento integral da sociedade rural em boa parte de Henan e nas provncias vizinhas. A prtica marcial no nvel dos vilarejos serviu como pano de fundo para rebelies como a de Wang Lun (1774), dos Oito Trigramas (1813) e a dos Boxers (1898 - 1900) (...)55

    Boa parte dos registros da participao de monges em batalhas56 se refere s campanhas antipirataria deflagradas em Zhejiang.57 Nas dcadas de 1540 e 1550, as

    52 A stupa uma estrutura arquitetnica tpica do Budismo. Ver (c. 29.07.03).

    53 No s de Shaolin, mas de Emei (Sichuan), Wutai (Shanxi) e Funiu. As fontes de SHAHAR para as

    indicaes so o Jiangnan jing le, de Zheng Ruoceng (1568), e o Mingshi (doc. oficial de 1739), que cita as tropas monsticas como milcias locais. 54

    A provncia de Henan uma das reas mais povoadas do mundo. A tenso decorrente da superpopulao visvel atualmente, quando a provncia conta com 110 milhes de habitantes e problemas graves como o de disseminao do vrus HIV entre a populao rural. 55

    SHAHAR, Ming-Period Evidence..., p. 389, trad. livre do ingls. 56

    Wobian shile, de Cai Jiude (1558), Zhejiang Tongzhi (1561) e Jiangnan jing le (1568, de Zheng Ruoceng), Wusong jia yi wo bian zhi (1604, de Zhang Nai), Shaolin Seng Bing (1670, de Gu Yanwu) e Mingshi (1739, por Zhang Tingyu e outros). Cf. SHAHAR, Ming-Period Evidence..., p. 408 a 413.

  • 35

    provncias vizinhas do Mar da China foram assaltadas por piratas conhecidos como wukou. Eles agiam na costa, em rios e canais,58 e chegaram a capturar reas como Songjiang (Xangai); alm disso, minavam o poder Ming pela corrupo de governantes locais. Na tentativa de solucionar o problema, o governo resolveu mobilizar os clrigos de Shaolin e de outros mosteiros budistas.59 O responsvel pelo engajamento teria sido Wan Biao, vice-comissrio em chefe na Comisso Militar em Nanjing (capital da provncia de Jianxi).

    As fontes identificam quatro batalhas que tiveram a participao de tropas monsticas: em 1553, quando derrotaram piratas em Hangzhou (Zhejiang); em Wengjiaigang (julho de 1553), Majiabang (primavera de 1554) e Taozhai (outono de 1555), na rede de canais do delta do rio Huangpu. Na ltima batalha, os monges teriam sido derrotados. Quatro deles - Chetang, Yifeng, Zhenyuan e Liaoxin - morreram e foram sepultados na Stupa dos Quatro Monges Hericos, no monte She, perto de Xangai (esse monumento foi destrudo). A maior vitria nessa campanha teria sido obtida entre 21 e 31 de julho de 1553, em Wengjiaigang. Segundo o relato do gegrafo e conselheiro militar Zheng Ruoceng, 120 monges derrotaram um grupo de piratas, tendo perseguido e exterminado os sobreviventes. Mais de cem pessoas teriam sido assassinadas, boa parte delas a golpes de basto de ferro. O comandante da tropa nessa vitria teria sido um clrigo de Shaolin chamado Tianyuan, apontado como expert em artes marciais e estratgia militar.

    Ainda que a campanha de Zhejiang seja um acontecimento importante, tambm h relatos da participao de monges em combates em outras provncias. Em 1552, cinqenta monges de Shaolin liderados por Zhufang Cangong teriam auxiliado o governo de Henan a derrotar o bandido Shi Shangzhao (as informaes so do Epitfio de Zhufang Cangong, na stupa funerria do prprio Zhufang. O monumento, de 1575, est na Floresta de Stupas de Shaolin); em 1510 - num momento anterior, portanto, redescoberta da Estela do Mosteiro de Shaolin por Du Mu -, teriam combatido um certo Liu Liu e, em 1520, teriam participado da campanha contra outro bandido de Henan,

    57 Provncia vizinha de Fujian, Jiangxi, Anhui, Jiangsu e Xangai. Ver

    e (c. 18.11.2003). 58

    Uma das portas de entrada era o rio Yangtze, que nasce no Tibete e desgua em Xangai. O rio tem 5.500 km de extenso. Mapa em (c. 19.11.2003).

  • 36

    Wang Tang.60 Inscries na Floresta de Stupas tambm se referem ao engajamento militar individual: o epitfio do monge Sanqi Yougong (1548) informa que ele teria ocupado postos militares na fronteira de Shanxi e Shaanxi, e que teria participado de uma expedio militar em Yunnan. Os epitfios dos monges Wanan Shungong (1619) e Benda (1625) informam que ambos se distinguiram em combate (as inscries no informam as batalhas de que teriam participado). Em 1630, monges de Shaolin teriam sido contratados por um magistrado de Shanzhou (Henan) para treinar uma milcia e tentar conter a crescente anarquia. A tropa teria obtido muitas vitrias contra grupos rebeldes, at que acabou derrotada pelo lder rebelde Ma Shouying, conhecido como Lao Huihui (Companheiro Muulmano).61

    Um dado revelador da importncia dos monges guerreiros no cenrio institucional chins do sculo XVI est nas discusses oficiais sobre as vantagens e riscos de seu engajamento. Enquanto alguns militares e burocratas da poca os louvavam, outros os acusavam de sedio e banditismo. Entre os que viam vantagens est o supracitado Zheng Ruoceng:

    Nas artes marciais no h, nesta terra, quem no se renda a Shaolin. [O mosteiro de] Funiu [em Henan] pode ser colocado em segundo lugar. (...) Em terceiro lugar vem Wutai [em Shanxi]. (...) Juntos, esses trs [centros budistas] compreendem centenas de mosteiros e incontveis monges. Nossa terra sitiada internamente por bandidos e externamente por brbaros. Se o governo lanar uma ordem para o recrutamento [desses monges], ir ganhar todas as batalhas de que participar.62

    Em 1625, o grande coordenador para a regio de Henan, Cheng Shao, escreveu um poema (Shaolin Guan Wu) citando a contribuio dos monges para a defesa nacional; em 1670, Gu Yanwu produziu o poema Shaolin si, no qual manifestava o desejo de ver os monges combatendo os fundadores da Dinastia Qing.

    Opinio contrria teve o burocrata Wang Shixing, de Henan. Na obra Yu Zhi (Notcia de Henan, de 1595), ele acusa os monges de falsidade, propenso ao banditismo e revolta:

    59 O registro mais completo dessa mobilizao est em A Primeira Vitria dos Exrcitos Monsticos (Seng

    bing shou jie je), de Zheng Ruoceng (1568). 60

    Inf. na estela Dengfeng xian tie, de Shaolin. 61

    As informaes sobre a contratao de monges em Shanzhou esto em Mingshi (1739). 62

    Zheng Ruoceng, in Seng bing shou jie je. Cf. SHAHAR, p. 384. Trad. livre do ingls.

  • 37

    Os monges de Henan nunca obtm certificados de ordenao (dudie). Hoje eles cortam seus cabelos e se tornam monges; amanh, deixam [o cabelo] crescer e voltam laicidade. Eles fazem o que lhes apraz. Bandidos (dao) tambm freqentemente raspam suas cabeas, mudam de aparncia e se unem ordem monstica. Assim que os problemas acabam, eles voltam laicidade. No importa que sejam sedentrios ou itinerantes, voc no encontra um monge em cem que no beba vinho ou coma carne.63

    Como se pode observar, de acordo com Wang, os clrigos de Shaolin eram meros escroques que sequer se davam ao trabalho de ocultar suas intenes (um bom exemplo disso est na inobservncia dos preceitos dietticos budistas). Segundo ele, a condio monacal servia muito mais como "fachada" em tempos de perseguio do que como caminho religioso. Outra prova apresentada por Wang seria o desconhecimento, por esses "monges", dos gritos e golpes de basto utilizados como facilitadores dos insights msticos (a Iluminao) no Budismo Chan.

    2.2.3.5 O mosteiro de Shaolin como centro difusor de sistemas marciais

    Um dado comum tradio das academias de Kung-Fu diz respeito ao cotidiano de Shaolin: para muitos praticantes, o mosteiro foi uma grande academia de artes marciais - a literatura Wusia64 e o cinema confirmam essa imagem. Henning joga um balde de gua fria nos entusiastas da tese: ele observa que, em Shaolin como em qualquer mosteiro budista a prtica religiosa e as demandas de sobrevivncia institucional (construo e manuteno de prdios e ptios, assim como cultivo de alimentos) ocupavam lugares centrais. Especificamente sobre as artes marciais, ele afirma que

    Eram mais como uma diverso para um percentual relativamente pequeno de monges, que haviam trazido esse conhecimento para dentro do mosteiro. Alm destes monges, uns poucos clrigos que encontravam tempo, dentre as muitas tarefas do dia se tornavam seus alunos e acabavam por auxiliar na defesa do complexo religioso. A realidade era muito distante da apresentada pelas novelas populares, que descreviam a existncia, em Shaolin, de um programa altamente desenvolvido de treinamento marcial, coroado por uma prova final que consistia em superar os golpes de bonecos inteligentemente construdos.65

    A abordagem de Henning carrega boa dose de irritao contra a moderna representao de Shaolin (seu artigo mostra como, no sculo XX, o mosteiro se transformou em uma espcie de "Disneylndia" para aficcionados em artes marciais) e, por conta disso, deve

    63 Wang Shixing, in Notcia de Henan, cit. por SHAHAR, Ming-Period Evidence..., p. 386 e 387. Trad.

    livre do ingls. 64

    Para o significado de Wusia, ver nota 5. 65

    HENNING, Reflections on a Visit..., p. 95. Trad. livre do ingls.

  • 38

    ser vista com o devido cuidado. Em sua anlise das fontes primrias, Meir Shahar mostra que, em determinado perodo, a prtica marcial em Shaolin foi algo mais do que uma diverso ou atividade marginal.

    O prprio Stanley Henning parece admitir isso, ao tratar da evoluo marcial em Shaolin. Ele observa que, no sculo XVI, os monges praticavam, de fato, arte marcial. Mesmo assim, em sua avaliao, grande parte da fama do mosteiro decorre do apelo patritico feito pelo historiador Huang Zongxi (1610 1695), autor do Epitfio para Wang Zhengnan (1669). O Epitfio uma obra de resistncia dinastia Qing que, segundo o pesquisador, moldou o imaginrio marcial chins. Henning conclui seu raciocnio citando autores de obras militares. Ele defende a tese de que os monges praticavam sistemas marciais comuns a outros grupos chineses e que, por conta disso, nada tinham de extraordinrio:

    Escritos Ming sobre o assunto, produzidos por Tang Shunzi (1507 1560), Qi Jiguang (1528 1587), He Liangchen (cerca de 1591) e Zheng Ruozeng (1505 1580) no mencionam o pugilismo de Shaolin em suas listas de estilos de Kung-Fu conhecidos nas respectivas pocas. Cheng Zongyou (1561 - ?), que afirma ter vivido 10 anos no mosteiro estudando tcnicas de luta com basto, informa que, durante sua estada, os monges enfatizavam as tcnicas de mos livres para tentar chegar ao nvel alcanado pela do afamado basto de Shaolin; ainda assim, Cheng no oferece nenhuma descrio do contedo de tais tcnicas. O manual de luta de Zhang Kongzhao, Luta Clssica: A Essncia do Pugilismo (cerca de 1784), que pretendeu registrar as tcnicas ensinadas por um monge de Shaolin, Xuanji, , primeiramente, um discurso sobre os princpios bsicos que poderiam ser facilmente aplicados s tcnicas de luta em geral.66

    Shahar faz outra leitura: para ele, tcnicas marciais originrias do mosteiro apareceram regularmente em enciclopdias militares do perodo Ming Tardio, mesmo nas obras de Tang Shunzi e Qi Jiguang. A razo para esse descompasso de leituras pode estar nos limites adotados para arte marcial: aparentemente Henning se limita ao pugilismo, enquanto Shahar inclui as tcnicas de basto. Em nosso estudo adotamos a segunda postura, uma vez que tal generalizao reflete um aspecto do Kung-Fu atual, quando os estilos possuem tanto rotinas de mos livres quanto com armas.

    Boa parte das obras do sculo XVI, segundo Shahar, louva as tcnicas de Shaolin; pelo menos uma - o Tratado de Preparaes Militares, do scholar Mao Yuanyi (1549 cerca de 1641) - afirma que elas teriam servido como fonte de todos os demais estilos de basto. No Zhenji ("Registro de Tcnicas Militares", de 1565), o comandante militar He

  • 39

    Liangchen afirma que os monges de Shaolin teriam ensinado sua tcnica de basto para outros monges, do monte Niu (o autor se refere, provavelmente, ao mosteiro budista do monte Funiu, em Henan).

    O levantamento de Shahar no inclui apenas obras elogiosas s artes do mosteiro, mas tambm as de opositores das tcnicas de Shaolin e, mesmo, as que colocavam em dvida a fama dos monges. O principal trabalho dessa ltima tendncia o Jianjing ("Clssico da Espada"), de Yu Dayou (1503 1579). Especialista em um mtodo de basto (sua obra, apesar do ttulo, rene tcnicas de luta com esta arma), Yu teria visitado o mosteiro em 1560, onde encontrou monges praticando tcnicas que considerou medocres. Teria, ento, convidado dois monges a aprenderem com ele sua tcnica.

    Shahar acredita que Yu Dayou superestimou a prpria contribuio e afirma que o mosteiro j possua tcnicas consolidadas antes da visita do general. Ele cita o Shou bi lu ("Registro de Mos e Armas), obra de 1660 do mestre lanceiro Wu Shu. Wu se refere a tcnicas ensinadas por Yu Dayou e a tcnicas cujos nomes aparecem em obras anteriores ao Jianjing. Para SHAHAR, a referncia mostra que os monges receberam instruo de fora e mantiveram as prprias tcnicas no perodo Ming tardio.

    Segundo Shahar, a fonte essencial para a confirmao dos sistemas marciais "nativos" do mosteiro Shaolin gunfa chan zong (Exposio sobre o mtodo original de basto de Shaolin), de Cheng Zongyou (1610). A obra tida como o primeiro manual de tcnicas de Shaolin. Seu autor foi um scholar de Xiuning (Anhui) que dedicou a vida a estudar as artes marciais. O prprio Cheng resume sua relao com a arte marcial:

    Desde minha juventude eu estive determinado a aprender as artes marciais. Sempre que ouvia falar de um professor famoso, no hesitava em viajar para longe para ganhar sua instruo. Portanto, arrecadei o valor necessrio s despesas de viagem e segui para o Mosteiro de Shaolin, onde despendi, no total, mais de dez anos.67

    De acordo com Cheng, o complexo do monte Song seria o lugar onde, ao lado das tcnicas do Budismo Chan, cavalheiros podiam aprender as tcnicas de basto dos monges. A idia de escrever um livro, justifica, teria nascido de uma cobrana de seus pares:

    66 HENNING, p. 97 e 98, trad. livre do ingls.

    67 Cheng Zongyou, Shaolin Gunfa, cit. por SHAHAR, p. 367. Trad. Livre do ingls.

  • 40

    (...) ilustres cavalheiros de toda a regio comearam a elogiar os supostos mritos do meu trabalho. Ento me censuraram por mant-lo em segredo, privando-os [de tais conhecimentos]. Ento finalmente eu encontrei algum tempo livre, reuni as doutrinas a mim transmitidas por professores e amigos, e combinei esse conhecimento com o que eu havia aprendido em minha prpria experincia.68

    A obra fornece indcios de que os monges desenvolveram sistemas marciais. A comear pelo ttulo: o termo seng (original) marca um desejo de diferenciao, por parte do autor, em relao a outras obras que se referiam a tcnicas derivadas de Shaolin.

    Cheng tambm se refere ao mtodo como tcnica budista. Outro elemento est na transmisso, feita por clrigos (segundo o scholar, exclusivamente pelos monges, oralmente e, at sua chegada a Shaolin, essencialmente de um mestre budista para outro). Dois de seus mestres Hongzhuan e Guangan (os outros seriam Hongji, Zongxian e Zongdai) - guardavam entre si uma relao marcial hierrquica: Guangan, apontado por Cheng como seu grande mestre, teria herdado os conhecimentos de Hongzhuan, que, na poca da chegada do autor ao mosteiro, j era bastante idoso. Essa relao que indica a existncia de uma genealogia marcial.

    Um quinto elemento est na identificao da origem de sistemas marciais: Cheng Zongyou identificou cinco mtodos de basto criados por monges. Os mtodos da Exposio tinham os nomes de Xiao Yecha, Da Yecha, Yinshou, Pai gun e Chuansuo (respectivamente, Pequeno Esprito Yaksa, Grande Esprito Yaksa, Mos Ocultas, Basto que Empurra e Basto de Aplicao Compassada). Eles eram formados por 53 posturas individuais (shi) colocadas em seqncias (lushi). As seqncias a exemplo

    68 Ibid., trad. livre do ingls.

  • 41

    do que ocorre hoje nas academias de Kung-Fu formavam os mtodos ou sistemas (fig. 7).69

    Ainda que Shahar destaque o basto como "arma padro" dos monges, h registro de uso de outras armas e mtodos de combate. Henning relacionou os monges a prticas como a do boxe do macaco. Wu Shu afirmou que eles usavam lanas (Qian). J Zheng Ruoceng observou que, alm do basto, eles tambm combatiam com tridentes (Gangcha) e lanas com ganchos (Gouqian).

    O prprio Cheng Zongyou observou que os clrigos treinavam tcnicas de pugilismo. Em um conjunto relativamente amplo de habilidades marciais, porm, o basto foi a arma de maior destaque, como indica sua presena nas fontes dos scs. XVI, XVII e XVIII. Ele possua uma "ligao natural" com o Budismo atravs do Vajra (em chins, Jingangchu) e da figura do monge caminhante. O Vajra - representado por um basto, espada ou cetro - indicava poder espiritual;70 no caso do monge itinerante, o basto servia como ferramenta de apoio, tendo se tornado (junto com a tigela) um smbolo do ascetismo errante Chan. Essas ligaes parecem ter sido estratgicas em um movimento verificado dentro de Shaolin no perodo Ming: a partir do basto, os monges estabeleceram uma ponte para a incluso dos contedos marciais na prtica religiosa.

    2.2.3.6 Qielan Shen o basto de guerra nas mos da divindade

    A prova definitiva da marcialidade em Shaolin no est nos relatos de guerra, mas, paradoxalmente, em suas tradies religiosas. De acordo com Shahar, o elemento marcial se tornou to relevante para o cotidiano dos monges que os levou a incluir uma vigorosa nota marcial em seus mitos e rituais. At onde as fontes permitem identificar, essa incluso teria ocorrido antes do sculo XVI. Ela se caracterizou pelo estabelecimento do culto ao qielan shen (esprito guardio) Jinnaluo (em snscrito, Kimnara) e pela criao de uma lenda referente origem divina das tcnicas de basto. Segundo Shahar, as transformaes religiosas em Shaolin tiveram por fim conciliar os

    69 Imagem 7 em SHAHAR, p. 397

    70 Ver DUKES, T., The Bodhisattva Warriors The Origin, Inner Philosophy, History and Symbolism of the

    Buddhist Martial Art within India and China (1 ed., York Beach: Samuel Weisner Inc., 1994, 527 p.), p. 65 e 66.

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    preceitos budistas referentes no-violncia e prtica marcial dos monges e, com isso, reduzir um foco de tenso religiosa.

    Pelo menos cinco fontes - o Mtodo de Basto de Shaolin, de Cheng Zongyou, o Song Shu (Livro sobre o Monte Song, com prefcio de 1612), uma listagem do condado de Dengfeng (1652), uma lista oficial da rea administrativa de Henan (1661) e uma inscrio na estela Naluoyan shen hufa shiji (O Esprito Naluoyan protege a Lei e mostra sua Divindade, de 1517), de Shaolin - se referem lenda da transmisso divina das tcnicas de basto. De acordo com a lenda, no sculo XIV uma divindade (identificada em Naluoyan shen hufa shiji como Naluoyan/Narayana e, nas demais fontes, como Jinnaluo/Kimnara) teria impedido a destruio do mosteiro por bandidos usando um basto ou um atiador de fogueira. Esse ser sobrenatural ingressara no monastrio como um humilde monge e revelou sua real identidade apenas quando do ataque dos fora-da-lei: ele ento se transformou em um gigante que, zurzindo um basto, os afugentou. Em agradecimento, os monges o teriam eleito como sua divindade tutelar (qielan shen) e comeado, a partir de ento, a praticar tcnicas de basto.

    Como observa Shahar, a lenda no desprovida de uma base histrica: o mosteiro de Shaolin foi atacado no ano de 1351, durante a chamada Rebelio dos Turbantes Vermelhos.71 Os monges te