Dissertacao Douglas Leiteseg

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SABINOS E DIVERSOS: emergências políticas e projetos de poder na revolta baiana de 1837 Douglas Guimarães Leite Salvador Janeiro de 2006

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  • SABINOS E DIVERSOS: emergncias polticas e projetos de poder na revolta baiana de 1837

    Douglas Guimares Leite

    Salvador Janeiro de 2006

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    SABINOS E DIVERSOS: emergncias polticas e projetos de poder na revolta baiana de 1837

    DOUGLAS GUIMARES LEITE

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Universidade Federal da Bahia, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Histria.

    Orientador: Prof. Dr. Joo Jos Reis

    Salvador Janeiro de 2006

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    SABINOS E DIVERSOS: emergncias polticas e projetos de poder na revolta baiana de 1837

    Douglas Guimares Leite

    Orientador: Prof. Dr. Joo Jos Reis

    Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Universidade Federal da Bahia UFBa, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Histria.

    Aprovada por:

    _____________________________________________________

    Presidente, Prof. Dr. Joo Jos Reis

    ___________________________________________________________

    Prof. Dr. Antonio Luigi Negro

    ___________________________________________________________

    Prof. Dr.

    Salvador Janeiro de 2006

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    RESUMO

    Essa dissertao tem o objetivo de estudar a diversidade poltica dos discursos revoltosos na Sabinada em 1837, na Bahia, demonstrando a existncia de grupos polticos especficos que fazem da revoluo um espao para o dilogo de suas diferenas. Para isso, pretende identificar esses pensamentos a partir de sua trajetria prpria de formao e do uso de mecanismos expressivos correspondentes, demarcando suas duas principais tendncias polticas: o federalismo monrquico e o republicanismo. Pretende ainda fornecer um quadro do debate pblico no perodo que cobre as lutas da Independncia e se estende at a Regncia, situando os sabinos no conjunto das formulaes revolucionrias de seu tempo.

    PALAVRAS-CHAVE: POLTICA REVOLUO DISCURSO.

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    ABSTRACT

    This thesis aims to study the diversity of rebels political speeches in Sabinada revolt in Bahia, 1837, by demonstrating the existence of different groups who uses the revolution as a public arena for debating your ideas. The work intents to distinguish those thoughts in their own social experience and means of expression, pointing your main tendencies on monarchist federalism and republicanism. It pretends to provide still a portrait of the public debate in the period between the struggles for the Independence and the Regency, putting the sabinos altogether with the revolutionary scene of their time.

    KEY-WORDS: POLITICS REVOLUTION SPEECH.

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    AGRADECIMENTOS

    Esse leve e docemente apertado espao do meu trabalho oferecido queles que

    durante esse bom tempo agiram comigo em seu favor.

    Ao Professor Joo Jos Reis, minhas palavras de reconhecimento por seu

    trabalho de orientao segura, zelosa da autonomia, pela confiana e pelo apoio

    dispensados nos momentos justos. Para mim, aprender a escrever histria se deve, em

    boa medida, aos dilogos com seus textos. Sobretudo aos mais silenciosos e mais

    amistosos possveis.

    Professora Jeanine Nicolazzi Philippi, por ter me ajudado a escolher fazer

    mais.

    memria do Centro de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal de

    Santa Catarina, e em especial a seus professores Antnio Carlos Wolkmer e Ceclia

    Caballero Lois. Aos amigos de Florianpolis, que so muitos, mas que lembro nas

    figuras dos queridos Camila Prando, Lia Cavalcante, Mrcia Bernardes e Fernando

    Pereira. Estiveram todos perto quando tudo esteve por um fio.

    Aos sajuanos, porque h muita histria e muito corao a, sem nunca esgot-

    los: Luciana Khoury, Isaac Reis, Marilson Santana, Edson Macedo, Adriana Lima,

    Gustavo Melo, Maurcio Azevedo, Luciana Garcia, Vladimir Luz.

    A Isabela Fadul, pela sua presena, em qualquer hora e em qualquer lugar, sem

    querer quase nada em troca.

    A Uir Azevedo, companheiro de longa data, por ter segurado muitas barras.

    A Ftima Noleto, porque, pensando no meu futuro, nunca admitiu que eu no

    defendesse logo.

    A Tonho e a Sarinha, consideraes dirias que se estendem pequena Clara.

    A Tarcsio Oliveira, parceiro e amigo queridssimo, consultor de todas as horas.

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    A Rogrio Dultra, querido irmo e interlocutor, sobre quem o sabor das lidas

    antigas no nos permitiu sofrer os malvados efeitos da distncia.

    A Juliana Brainer, por seu carinho atento, sempre que precisado. E pela ajuda

    nos anexos, na bibliografia, nos mapas, na capa, sumrio, resumo, nas notas, e em todas

    as mais midas coisas cheias de enorme valor. Muito, muitssimo obrigado. S assim

    foi possvel.

    Ao companheiro de batalhas imperiais, Daniel Affonso, pelo suporte

    valiosssimo do material de trabalho, pela estima gratuita, e por ter, generoso anfitrio,

    deixado que eu checasse meus e-mails na sala do Temtico.

    minha orientadora, livreira, ouvinte, bruxa, amiga, sabina e diversa como eu,

    Juliana Serzedello. s vezes penso que essa dissertao nossa. A voc, to longe e to

    perto.

    Aos meus colegas de mestrado e aos meus alunos bons, como Mara Caff.

    Ao meu irmo, Carlos, que quando dei por mim era histria o que ele fazia, e

    que hoje reencontro por outra histria, que no s minha.

    minha irm Cludia, pelo entusiasmo e pela alegria com que sempre quis me

    ver mover pra frente. Merecemos muitas festas.

    Karla, minha irm, que vive junto comigo cada gota derramada no esforo de

    eu me fazer. E que se faz junto comigo, como se fssemos um.

    Aos meus sobrinhos, Hugo, Camila, Amanda e Helena, com quem lerei muitas

    vezes essas e outras estrias. Jane e Felipe tambm esto convidados para a roda.

    A Marcela, pelo amor que vigora.

    Aos meus pais, Romilda e Carlos, a quem acontece de eu no saber o que dizer.

    No silncio que antecede a mais forte das emoes, eles bem sabem o que isso significa.

    A eles dois dedico essa traduo da minha vida.

  • 8

    SUMRIO

    Introduo 09

    Captulo 1 Bravos Experimentados no Teatro das Operaes

    21

    1.1. O sempre memorvel dia 7 de novembro 21

    1.2. Sabinada: revolta da cidade 24

    1.2.1. De Salvador para o Recncavo: sociabilidades polticas da Sabinada 27

    1.2.2. Conspirao e Vigilncia: o entreato da represso 34

    1.2.3. Salvador: cidade vazia 43

    1.3. Salvador da Bahia: a poltica de sua integrao ao Recncavo 48

    Captulo 2 Separao ou Maioridade: a Revoluo e o Arco da Promessa

    57

    2.1. Dia 11 de novembro: a unanimidade na diversidade 61

    2.2. As inflexes do vocabulrio poltico no tempo das divergncias 75

    Captulo 3 Papis Revolucionrios: os documentos da diferena

    86

    3.1. Dos acordos e das estratgias em matria de revoluo no Imprio 86

    3.2. 1837: Monarquia Federativa versus Repblica: verso da Sabinada 101

    Consideraes Finais 112

    Anexos 119

    Fontes e referncias bibliogrficas 143

  • 9

    INTRODUO

    No dia 07 de novembro de 1837, a cidade de Salvador foi acordada pelos sinos

    da Cmara Municipal. Dobrados de ordinrio em dias de festa e de jbilo pblico, nesse

    dia suas badaladas se deveram a um fato extraordinrio. Reuniam-se no Salo Principal

    da Casa dos vereadores todos aqueles que, por diversos motivos, viam na sesso que ali

    se abriria a pouco uma ocasio coletiva: estava declarada livre a Provncia da Bahia. Era

    a Sabinada.

    Conhecida hoje pelo nome daquele que foi tido por um de seus principais

    lderes, a Sabinada seguiu a sorte de algumas outras provncias do Imprio brasileiro

    que durante o mesmo perodo a Regncia (1831-1840) declararam sua

    independncia plena ou provisria frente ao governo central da Corte, sediado no Rio de

    Janeiro.

    Extraordinrio fato estava no na revoluo propriamente dita. Elas aconteciam

    ano a ano, em todos os lugares do disputadssimo territrio nacional. O que a

    distinguiria das demais, entre outras coisas, era o inusitado de, na Bahia, vingar mais do

    que dois ou trs dias, e tambm a circunstncia de traduzir a sntese dos movimentos

    regenciais seus contemporneos, proclamando na mesma revoluo a separao e a

    independncia provisria da Bahia. A sim temos um bom mote.

    Durante pouco mais de quatro meses (novembro de 1837 a maro de 1838), o

    movimento dos sabinos ocupou a cidade, estabeleceu seu governo e, sobretudo, obrigou

    os legalistas a acamparem no Recncavo, num veraneio pouco parecido com o de um

    passeio na ilha de Itaparica. Ao longo de todo o seu desenvolvimento, a Sabinada deu o

    que falar. Proclamaes, ofcios, manifestos e jornais. Alm das bombas e tiros, claro,

  • 10

    que, apesar de no deporem em favor da qualidade dos exrcitos de parte a parte,

    produziram bom estrago na cidade beira mar.

    A Sabinada se abriu e se fechou com o vero. Como na fbula, porm, no pde

    vingar sozinha. Reforados pela mquina de todo o Imprio, os homens bons da

    velha Bahia tornaram as coisas para o seu devido lugar. Em 15 de maro de 1838,

    entraram na cidade e, do incndio que se alastrava pelo campo de batalha, ainda

    conseguiram salvar alguns de seus bens, sua maior estimao.

    As pginas seguintes se ocupam de contar a histria do que os sabinos disseram,

    do que pensaram e do que projetaram para a Bahia que um dia pensaram poder tomar.

    Vamos a eles.

    Raposas e Perus: liberdade ou morte nas trincheiras da cidade

    Em decreto datado de 20 de janeiro de 1838, os rebeldes que haviam posto a

    correr as autoridades constitudas da Bahia h ento pouco mais de dois meses, baixam

    importante medida frente do novo governo instalado na cidade, nomeando-a:

    Determinao. Seu enrgico e breve teor parecia estar ciente da eloqncia das

    poucas mas bem escolhidas palavras:

    Convindo distinguir os verdadeiros amigos e defensores da causa da Independncia deste

    Estado, para que no reste dvida entre os que a adotam e aqueles que infelizmente ou so

    seus inimigos ou se no decidem por parte alguma, hei de bem ordenar que todos os

    brasileiros que de corao adotem a sobredita causa da independncia deste Estado, da qual

    independncia lhe vem a liberdade, tragam no brao esquerdo um ngulo de metal amarelo

    com a legenda Liberdade ou morte.1

    Assinado por Joo Carneiro da Silva Rego, vice-presidente do Estado Livre e

    Independente da Bahia, e por seu secretrio e Ministro do Interior, Francisco Sabino

    1 Determinao, 20.01.1838, Publicaes do Arquivo do Estado da Bahia (PAEBa), 1938, vol. II, p. 85.

  • 11

    lvares da Rocha Vieira, dois dos mais importantes lderes do movimento, o decreto

    representa um ltimo acerto de contas entre os revoltosos e seus oponentes radicados na

    cidade. Esses seriam tidos como inimigos do sistema jurado no sempre memorvel dia

    7 de Novembro, e assim reconhecidos .2

    No preciso exagerar a importncia desse documento, simblico por vrios

    motivos. Trata-se de uma pea pela qual as questes mais decisivas da revolta podem

    ser reconstitudas e pensadas em retrospectiva. Com ele, sobretudo, os discursos em

    torno da revoluo podem ser entendidos pela linguagem da guerra. Tambm podem ser

    articuladas as tcnicas de campo ao sentido dos projetos polticos que ambos os lados

    proclamam para seduzir em seu favor a populao da Provncia. O ultimato em que se

    manifesta o ato de governo a sinalizao de uma crise que reclama endurecimento, ao

    mesmo tempo em que o acusa nas condies de vida da cidade sitiada e j bastante

    desfalcada dos bens mais ordinrios para se manter.

    Situada num tempo avanado da guerra, a Determinao difere bastante dos

    outros documentos pelos quais os raposas habitualmente se dirigiam aos seus Irmos

    da Provncia.3 Seu tom adquire um carter dramtico especialmente distinto daquele

    mais brando e persuasivo das Proclamaes em que procuravam dispor de razes e

    princpios com o propsito de ir ganhando adeptos sua causa. A escolha de um outro

    mtodo de discurso no implica que as Proclamaes tenham sido abandonadas, mas

    certamente sugere que entre os revolucionrios um certo estado de coisas se constatava:

    2 Determinao, 20.01.1838, PAEBa.

    3 Raposas e Perus foram os nomes atribudos pelo povo da Bahia aos rebeldes e legalistas,

    respectivamente, e que eles mesmos usaram para se referir mutuamente. A informao fornecida por muitos historiadores, embora no seus motivos. Dentre outros, Braz do Amaral, A Sabinada, PAEBa, II, p. 3; A. J. de Souza Carneiro, A Sabinada em Nazar, PAEBa, 1945, vol. IV, 1945, p.77.

  • 12

    para o bem do novo regime seria preciso reconhecer sem engano as fronteiras que os

    separavam do inimigo.4

    Recompondo os lugares da batalha, e impelindo para o Recncavo aqueles que

    no estivessem de corao associados revoluo, a Sabinada exigiu do povo aquilo

    que at ento ele no tinha conseguido perceber nos seus discursos e prticas: uma mais

    clara e distinta identidade poltica. Possivelmente por esse motivo, no se podia

    desprezar a expressiva massa dos indiferentes. Nem aqueles materialmente presos a

    ela, impedidos de sair, ou outros provavelmente pouco afetados pela colorao poltica

    do movimento revoltoso, tal como conduzido at ali.5

    Um dos melhores exemplos dessa indefinio o fornece o prprio decreto. A ata

    do sempre memorvel dia 7 de novembro, documento fundamental da revoluo,

    havia sido substancialmente alterada pouco depois de sua aclamao, circunstncia que

    no teria sido capaz de evitar xodos de toda ordem.6 Esses xodos haviam certamente

    contribudo para a situao sobre a qual a Determinao se debruara. E se antes os

    rebeldes no os haviam impedido, agora entendiam ter o dever de induzi-los,

    taticamente.

    Pretendendo, portanto, que os habitantes da Bahia ostensivamente

    manifestassem sua filiao poltica, os revoltosos lanaram luz sobre a sua prpria e

    sobre aquela dos perus que os cercavam do Recncavo. Permitiram assim colocar a

    questo fundamental do processo de formao de ambos os lados contendores: seus

    correligionrios, suas foras armadas, seus motivos polticos, seus dispositivos de

    poder. Atualizando-se na guerra, a anlise detida desse processo permitir entender

    4 Algumas das mais importantes proclamaes da guerra se encontram no Apndice obra de Amaral, A

    Sabinada, pp. 56-133. 5 Interrogatrio de Nicolau Soares Tolentino, PAEBa, 1939, III, 14.11.1838, pp. 33-4. Tolentino expressa as razes pelas quais ficou na cidade, alegando dificuldade de finanas. Outros depoimentos nessa direo seriam relativamente comuns. Como depoentes, a veracidade dos seus motivos pode ser posta em xeque, por outro lado, a sua repetio induz a crer que se esperava que eles pudessem ter algum tipo de credibilidade. 6 Sacramento Blake, Ainda a Revoluo da Bahia de 7 de Novembro de 1837, PAEBa, I, p. 69.

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    porque quela altura pareceu fundamental aos revolucionrios contar as peas de cada

    lado. Voltando contra si a fora ou a fraqueza de seu projeto poltico, numa verdadeira

    prova de fogo, os revoltosos apostaram em definir, para melhor explor-las, ideolgica e

    materialmente, as trincheiras da cidade.

    Rebeldes e Legalistas: a guerra e suas formaes scio-polticas.

    A histria da Sabinada pode ser contada pela histria de sua guerra. Ou antes,

    pela histria do aparato construdo de ambos os lados para transform-la, em ltima

    instncia, num conflito armado. Afinal uma guerra esttica prevaleceu ao longo dos

    quatro meses de ocupao da cidade, os desenhos e manobras militares tomando o lugar

    da guerra real.7 Nesse perodo, um nmero mximo de cinco ou seis importantes

    combates resumiu o fogo trocado, o que se pode atribuir no apenas a uma estratgia

    militar de ambas as partes, mas tambm debilidade dos seus corpos, dado o momento

    de transio e de franca construo poltica em que a Sabinada encontrou as foras da

    Provncia e do Imprio brasileiro.8

    A guerra esttica no faz perder de vista, porm, sua intensa militarizao.9 E ela

    se deve no apenas macia presena de militares no comando e nas fileiras dos

    rebeldes, mas tambm ao fato de que, durante o seu curso, o movimento no se

    desvencilhou da urgncia do tempo de guerra, restando incapaz de, ao lado da batalha

    fria, estabelecer um tempo poltico prprio, necessrio ao desenvolvimento das bases

    revolucionrias anunciadas em seus textos. Os sabinos no puderam superar os limites

    7 Guerra esttica um termo utilizado por F. W. O. Morton para designar o estado das batalhas na

    Sabinada, e para tambm compar-lo com a situao da guerra de Independncia entre o Exrcito Restaurador e os portugueses na Bahia em 1822-23. F. W. O. Morton, The Conservative Revolution of Independence, Tese de Doutorado, Universidade de Oxford, 1974, p. 353. 8 Morton, The Conservative Revolution, pp. 352-8.

    9 Hendrik Kraay, Race, State and Armed Forces in Independence- Era Brazil, Stanford, Stanford University Press, 2001, pp. 231-39; tambm dele, ver As Terrifying as Unexpected: The Bahian Sabinada, 1837-1838, Hispanic American Historical Review, 72:4. Durham: Duke University Press, 1992, pp. 508-515.

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    de suas condies de sustentao material, e a constante ameaa de conflito armado no

    logrou ser razoavelmente substituda pela consistncia de um plano de governo. Talvez

    por isso, como anotou Paulo Csar Souza, continuassem a falar muito.10

    Nessa guerra, o choque entre os dois lados foi tambm o confronto entre dois

    acmulos polticos, at ento no resolvido. Do lado dos rebeldes, numa srie de

    acontecimentos que remontam campanha da Independncia, jogam importante papel a

    intensificao dos clubs revolucionrios e a viva produo da imprensa militante,

    ambos responsveis por uma sociabilidade poltica que muito aproveitou s aes

    desestabilizadoras do perodo em questo.11 Dessa imprensa saiu o Novo Dirio da

    Bahia, peridico editado por Sabino que consistiu em verdadeira crnica terica da

    revolta, em tempo real. Tambm resultaram desse contexto as tramas e conspiraes que

    deram fruto na tradio de levantes, motins militares e lusfobos, e ainda em toda sorte

    de manifestaes das camadas mdias contra o modelo poltico estabelecido na Bahia

    desde o seu governo provisrio, j independente. Entre esses movimentos ps-

    independncia destacam-se os de base militar e as revoltas federalistas de Cachoeira e

    So Flix (1832) e do Forte do Mar (1833), pela identificao ideolgica com que

    marcariam o episdio de 1837.12

    Toda essa agitao social encontrava, no entanto, limites importantes no carter

    profundamente escravista e no padro de relaes clientelistas tpicos da sociedade

    brasileira da poca. Esses canais abertos pela Independncia, diz F. W. O. Morton,

    permitiam o fluxo de uma nova atividade intelectual e criavam nessas pessoas novas

    10 Paulo Csar Souza, A Sabinada, So Paulo, Crculo do Livro, 1987, p. 13.

    11 Joo Jos Reis, Rebelio Escrava no Brasil, So Paulo: Cia. das Letras, 2003, p.58; Luiz Viana Filho, A

    Sabinada (A Repblica Bahiana de 1837), Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1938, pp 08-10. 12 Reis, Rebelio Escrava, pp. 44-67; Morton, The Conservative Revolution, pp. 309-13; Igncio Accioli, Memrias Histricas e Polticas da Bahia, vol. IV, edio anotada por Braz do Amaral, Salvador, Imprensa Oficial, 1933, pp. 354-78.

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    bases de esperana, alcanando diferentemente os diversos grupos sociais.13 No caso

    da Sabinada, o horizonte poltico no se estendeu muito alm daquele que poderia advir

    de um movimento concebido por elementos da classe mdia letrada. A entrada de livres

    pobres, libertos e escravos complicou o jogo dos projetos e lanou a revolta diante de

    dilemas prticos que lhe seriam fatais.

    Esses acmulos de experincia poltica, na expresso de Istvan Jancs,

    representavam processos scio-polticos no lineares que teriam colhido aos

    movimentos anticoloniais sua energia de mudana, reativadas suas tenses, mas

    costurando outras estratgias, contemporneas a um quadro econmico de crise

    incomparvel quele do florescimento pr-Independncia.14 Esses processos fizeram

    frente tambm a uma outra crise, de recrutamento de uma nova elite burocrtica, que

    tendia a aprofundar o processo de centralizao do poder e assim cooptar elementos das

    elites locais num novo acordo poltico com a classe dos aparelhos do Estado Nacional.

    Decerto esse novo acordo no contemplava radicalismo de nenhuma espcie, e

    explorava o veio pragmtico de um liberalismo to amplo quanto apenas necessrio para

    suportar os localismos sem pr em risco a integrao do Imprio.15

    Assim, em contraponto s formaes rebeldes, possvel pensar tambm a

    articulao scio-poltica dos legalistas dentro da guerra. Em favor do aparato

    repressivo erguido das bases econmicas dos senhores de engenho e altos comerciantes

    13 Morton, The Conservative Revolution, pp. 336-7. Istvn Jancs, A seduo da liberdade: cotidiano e

    contestao poltica no final do sculo XVIII in Laura de Mello e Souza (org.), Histria da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na Amrica Portuguesa, vol. 1 (So Paulo, Companhia das Letras, 1997). 14 Joo Jos Reis, O jogo duro do Dois de Julho: O Partido Negro na Independncia da Bahia, in Eduardo Silva, Joo Jos Reis, Negociao e Conflito, So Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 88; Ktia Mattoso, Bahia: A Cidade do Salvador e seu mercado no sculo XIX, So Paulo: Hucitec, 1978, pp. 151-69; Morton, The Conservative Revolution, pp. 324-39; Jancs, A seduo da liberdade, p. 435. 15 Sobre o assunto, consultar Thomas Flory, El Juez de Paz y el Jurado en el Brasil Imperial, 1808-1871: Control Social y estabilidad poltica en el nuevoEstado, Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1986; Istvan Jancs (org.), Brasil: Formao do Estado e da Nao, So Paulo, Hucitec/ Iju, Uniju, 2003, pp. 15-28; Marcus Carvalho, Hegemony and Rebellion in Pernambuco (Brazil), 1821-1835, PhD Thesis, University of Illinois, 1989. Ilmar Rohloff de Mattos, O Tempo Saquarema, 5. ed, So Paulo, Hucitec, 2004.

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    do Recncavo e da Bahia atuaram as virtualidades de uma histria de poder e de

    autoridade locais, que estavam impressas nos dispositivos materiais prontamente

    acionados por esses coronis da milcia regressista. Mas com essas virtualidades

    operaram as dificuldades de uma outra empresa, surgidas exatamente do propsito de

    unir, no ato repressivo mesmo, ao velho o novo, representado pelas novas instituies

    que a construo do Estado Nacional demandava. O propsito no era outro seno o de

    cunhar definitivamente a fora regular e a identidade de um Estado centralizado. A

    Sabinada lhes exps a dimenso do empreendimento, indicando as fraturas ideolgicas

    que teriam de contornar, bem assim o vazio institucional e de sentido que haveriam

    de ocupar. Serviu ao final, vencida, explorao sob medida da imagem da integridade

    e ao reforo do simbolismo de uma identidade em construo.16

    Mobilizada pelo conflito, a cidade e suas divises sociais tambm podem ser

    alcanadas pela inteligncia da guerra. Nomeadamente o perfil de seus atores e as

    formas como suas escolhas polticas induzem seus lugares na hierarquia scio-

    econmica, alm de suas possibilidades de ascenso social, fora ou dentro de uma

    ordem revolucionada. As propostas formuladas pelos rebeldes sensibilizam uma

    estrutura dada que se d a conhecer pelo modo como se move em direo mudana

    que a revoluo quer representar.

    Esse o motivo fundamental do trabalho: pensar a partir da consistncia dos

    projetos polticos elaborados pelos sabinos a sociedade que eles interpelam, cruzando as

    compreenses sociais que se embatem de cada lado e tambm fora, apesar de em

    relao a eles indagando como essas compreenses nos permitem conhecer melhor as

    pretenses, as interpretaes e os horizontes polticos dos sujeitos contemporneos. E

    tambm a prpria sorte da revoluo.

    16 Kraay, As Terrifying as Unexpected, pp. 523-27.

  • 17

    A historiografia moderna parece ainda no ter desenvolvido as conseqncias de

    uma interpretao propriamente poltica da Sabinada. As obras at aqui produzidas a

    estudaram ora como um assunto incidental de outro mais amplo, ora com o intuito de

    cobrir o silncio sobre sua histria ao largo de um tratamento mais detido da questo

    estratgica e ttica dos discursos de poder e da diversidade poltica que o material a seu

    respeito oferece. Outras vezes, at, como o caso especial de Luiz Viana Filho,

    sugerem boas interpretaes, mas sem uma fundamentao documental mais ampla que

    lhe corresponda.

    possvel distinguir trs fases da produo literria sobre a Sabinada. A

    primeira delas representada pelas memrias escritas pelos seus contemporneos,

    muitos dos quais figuras ativas da revoluo. Elas se encontram nas publicaes

    reunidas pelo Arquivo Pblico do Estado da Bahia por ocasio do centenrio da

    revolta.17 A segunda consiste, de um modo geral, na re-interpretao feita sobre o

    movimento de 1837 entre o final do sculo XIX e o incio do sculo XX, a cargo

    sobretudo do IGHB: as obras de Braz do Amaral, Luiz Viana Filho e Francisco Vicente

    Vianna esto entre as mais destacadas. A ltima dessas fases aquela em que a histria

    social, a partir do ltimo quarto do sculo XX, preocupou-se em submeter a Sabinada a

    uma reviso interpretativa, descobrindo novos documentos e analisando os demais sob a

    tica de leituras tericas como as de classe e de raa, bastante alentadas desde ento. F.

    W. O. Morton, Paulo Csar Souza e Hendrik Kraay escreveram obras importantes direta

    ou indiretamente ligadas revolta baiana de 1837.

    Nessa ltima gerao de autores, porm, a caracterizao da Sabinada como um

    evento liberal-radical no basta para explicar a convivncia de grupos de origem social

    to diversa como aqueles que ao final foram reunidos por ela. H vozes inexploradas e,

    17 Publicaes do Arquivo do Estado da Bahia (PAEBa), 5 v., 1937-1948.

  • 18

    verdade, h outras que sequer puderam ser ouvidas. Diante desse quadro que em

    ltima anlise diz respeito ao tratamento das fontes disponveis uma interpretao cujo

    propsito contribuir com o aprofundamento de sua leitura poltica deve especialmente

    considerar uma questo que parece central, trazida para o mago desse trabalho: as

    supostas ambigidades e vacilaes reveladas pelos discursos e por algumas das

    medidas prticas dos revoltosos, antes de representarem incerteza ou contradio

    programtica, indicam a co-existncia de apreenses distintas da sociedade e do poder

    poltico. Elas so traduzidas em estratgias e apostas de que os avanos e recuos no

    tempo negociado e articulado da revoluo podem equacion-las. Trata-se de uma luta

    contra o poder estabelecido, mas tambm de uma disputa interna, se no apenas pela

    hegemonia revolucionria, tambm para que sejam garantidos espaos correspondentes

    s diferentes vises de mudana integradas no complexo liberal-radical.

    Na Sabinada, essa interpretao ajudaria a matizar o campo poltico dos

    radicais na medida que, procurando distinguir suas respectivas identidades, acenaria

    no s para os lderes da revoluo, mas tambm para os demais sabinos que, por sobre

    a diferena das condies polticas e materiais que os separavam, tambm se

    empenharam na revolta.

    Por sua vez, no plano de um recurso heurstico adotado na presente anlise, a

    imagem de uma guerra permanente esttica ou fria, no sentido de presente embora

    no atual serve como chave importante do estudo das narrativas produzidas durante a

    guerra como textos densamente explicativos das formaes scio-polticas de legalistas

    e rebeldes, iluminando-se assim as razes do conflito.

    Tomando de emprstimo a Michel Foucault a inverso do aforismo de

    Clausewitz, segundo o qual a guerra a continuao da poltica por outros meios,

    possvel analisar de que forma os discursos da Sabinada investem na poltica imperial a

  • 19

    idia de que ela continua a guerra por outros meios, reproduzindo juridicamente nas

    instituies polticas as desigualdades que a noo de Estado de Direito visa em tese

    superar. Nesse sentido, a fundamentao revolucionria, propondo uma leitura histrica

    da dominao desse Estado, retira sua legitimidade da idia de que, mesmo com a

    emancipao poltica, a guerra no havia acabado. Ela justifica assim a Sabinada como

    a segunda e verdadeira revoluo da Independncia.18

    Nessa dissertao, no primeiro captulo estudaremos a formao scio-poltica

    dos rebeldes dentro da cidade agitada pela guerra. Um roteiro de abordagem da

    revoluo se estabelece desde logo, articulando dois processos decisivos para seu

    entendimento: sua expanso para o Recncavo e sua propaganda na cidade. Aclamada a

    revolta, essas duas tarefas concentraro a energia dos revoltosos e permitiro conhecer

    sua preparao para a tomada da cidade, a construo de sua conspirao na teia de suas

    sociabilidades, e os principais obstculos colocados para a ampliao de suas foras.

    Esse captulo se concentra na primeira dessas tarefas.

    No outro campo da expanso da revolta, o segundo captulo ilumina as

    discusses polticas abertas na capital pelo episdio central da mudana do teor da sua

    ata de fundao. Delineiam-se aqui as propostas polticas do movimento atravs da

    anlise de textos revoltosos que ajudam a entender os sentidos das foras representadas

    em ambas as atas. O captulo ainda fornece um quadro das principais idias polticas

    debatidas entre as lutas da independncia e o perodo da revolta, aproximando o debate

    das idias manifestadas na Sabinada.

    18 Michel Foucault, Em Defesa da Sociedade, So Paulo, Martins Fontes, 1999. O conceito de guerra permanente desenvolvido na aula de 21 de janeiro de 1976. Sobre a noo de revoluo permanente para Sabino, ver Novo Dirio da Bahia, edio de 04.12.1837. Os exemplares dos jornais baianos citados nesse trabalho encontram-se disponveis na Seo de Microfilmes da Biblioteca Nacional, e nos Centros de Documentao em Histria da USP e da UFBa, exceto quando indicado.

  • 20

    A questo de uma identidade da Sabinada ser discutida na terceira parte da

    dissertao. Com as dificuldades provocadas pela exgua documentao processual

    disponvel, o eixo fundamental dessa anlise ser constitudo pelos jornais publicados

    pelos revoltosos, especialmente por O Sete de Novembro e pelo Novo Dirio da Bahia,

    editado por Sabino. Sero exploradas as duas principais correntes polticas da revolta,

    seguindo-se a anlise de algumas de suas principais referncias tericas. Pretende-se

    demonstrar a existncia de dois grupos polticos bem definidos, lutando pela hegemonia

    interna da revoluo e apresentando suas diferentes idias de uma sociedade dos

    sabinos.

    Agora voltemos aos sinos do sempre memorvel dia 7 de novembro.

  • 21

    Captulo 1

    BRAVOS EXPERIMENTADOS NO TEATRO DAS OPERAES

    1.1. O sempre memorvel dia 7 de novembro.

    A queda do regente Diogo Feij do governo imperial em setembro de 1837

    pareceu ao Plano e Fim Revolucionrio um fato incontornvel. O documento,

    encontrado entre os pertences de Francisco Sabino na busca que sucedeu a sua priso,

    abria com a seguinte avaliao:

    certo que no Rio uma faco dos nossos pequenos ambiciosos e aristocratas, sem ttulos,

    derrubaram o nico simulacro que tem o Brasil de um Governo livre, isto , a Regncia de

    um s homem, verificado no Padre Feij; e porque assim tem acontecido, esta Provncia

    deve se pr a salvo dos golpes do partido e da faco aristocrtica-portuguesa.19

    Ruim com Feij, pior sem ele. Estava dado o sinal que faltava para a revoluo,

    prestes a estourar a qualquer momento. O Novo Dirio da Bahia, folha de Sabino,

    voltaria ao assunto, dessa vez em edio publicada no curso da revolta, justificando o

    ato extremo:

    Nenhum povo do mundo poderia conter-se tanto tempo nos limites da pacincia e

    moderao quanto o povo da Bahia; fazendo-se sempre renascer nossas esperanas pela

    salvao da Ptria, ns as vamos em breve tempo desfazerem-se como num sonho.20

    Os preparativos da revolta levaram ocupao do Forte de So Pedro na noite de 6 de

    novembro. Dias antes, o chefe de polcia Francisco Gonalves Martins, moo na idade

    mas j experiente na represso aos levantes urbanos, montara tocaia na casa de um dos

    19 Interrogatrio de Francisco Sabino lvares da Rocha Vieira, 07.11.1838, PAEBa, IV, pp. 219-20; Souza, A Sabinada, p. 158; Plano e Fim Revolucionrio apud Francisco Vicente Vianna, A Sabinada, Histria da Revolta da Cidade da Bahia em 1837, PAEBa, 1937, vol. I, pp.125-6. 20 Novo Dirio da Bahia, 25.12.1837.

  • 22

    rebeldes. Tinha sido avisado de que ali se reunia um dos clubs polticos da cidade, que

    tramava para data prxima a derrubada do governo.

    Apesar dos seus esforos que no teriam sido poucos, segundo os detalhes

    narrados na memria que legou sobre sua participao no combate Sabinada Martins

    no foi capaz de evitar o levante, logo deflagrado. E fugiu, deixando atrs de si a cidade,

    cruzando a baa em direo ao Recncavo. Fugiu antes de raiar o dia seguinte, e no viu

    a Praa do Palcio tomada pelo imenso povo, entre curiosos e adeptos da revoluo,

    todos amparados na fora do corpo militar, que velava o sempre memorvel 7 de

    novembro.21

    Nesse dia foi aclamada na Cmara Municipal de Salvador a ata extraordinria

    que marca a fundao do governo rebelde. No se sabe ao certo a medida de fora e de

    persuaso que usaram os revolucionrios para ratificar na Cmara suas conquistas

    militares. Vereadores presentes sesso declararam em juzo que o documento tinha

    sido aprontado no Forte de So Pedro, no qual se aquartelara o 3. Batalho de

    Caadores consumando a revolta, e que reuniu os lderes da revoluo na noite anterior.

    O ento presidente da Casa encontrara as cadeiras dos vereadores ocupadas pelos

    entusiastas do movimento, para quem o contedo da ata foi lido e submetido

    aprovao dos presentes.22

    Desse contedo importa, por ora, salientar dois pontos centrais: o primeiro diz

    respeito ao sentido de legitimidade que os revoltosos pretenderam emprestar ao seu ato,

    firmando na Cmara Municipal a declarao fundamental da revoluo, consagrada

    21 Francisco Gonalves Martins, Nova edio da simples e breve exposio do Senhor Dr. Francisco Gonalves Martins, PAEBa, II, pp. 225-62. Martins j era chefe de polcia quando da rebelio dos Mals em 1835, e esteve frente tambm da represso revolta do Campo Santo, no ano seguinte, ambas na capital da Bahia. Antnio Rebouas, nas anotaes sua Exposio, fez questo de lhe lembrar desses fatos; Joo da Veiga Muricy, Um Padre de Rquiem apud Vicente Vianna, A Sabinada, pp. 152-5. 22

    Processo dos Vereadores, Depoimentos de Jos Pedreira Frana, Luiz de Souza Gomes, Luiz Antnio Barbosa de Almeida, Antonio Gomes Villaa apud Vicente Vianna, A Sabinada, pp. 127-34. Claro, h outras verses para o ocorrido no Salo da Cmara e arredores, a exemplo da expendida na Narrativa dos sucessos da Sabinada, desde a fuga de Bento Gonalves, escrita por um rebelde ou simptico quela revoluo, PAEBa, I, pp. 335-43.

  • 23

    pelas pessoas mais gradas da Provncia, autoridades militares e civis, e grande nmero,

    ou concurso de povo de todas as classes. Esse gesto distinguia a Sabinada como uma

    revolta da cidade. O segundo ponto toca o cerne mesmo dessa declarao: A provncia

    da Bahia fica inteira e perfeitamente desligada do governo denominado central do Rio

    de Janeiro, e considerada Estado livre e independente pela maneira por que for

    confeccionado o pacto fundamental (...).23A Sabinada era perfeitamente separatista.

    Da se pode concluir que o propsito bem ambicioso dos rebeldes no era outro

    seno o de separar a Provncia a partir da cidade. Naturalmente, essa no era uma tarefa

    simples. O desafio que eles se impunham era o de ampliar o arco da revoluo para

    alm da capital, conquistando ou confirmando os diversos focos revoltosos

    possivelmente espalhados na Provncia, de modo a impedir que o cerco histrico

    formado pelo Recncavo nas guerras travadas na Bahia frustrasse, de sada, seu

    movimento.24 Paralelamente a isso, o projeto poltico separatista desenhado com

    evidente clareza no documento da Cmara deveria parecer suficientemente convergente

    a todas as vontades revolucionrias que eventualmente pudessem contemplar na

    revoluo um horizonte legtimo de mudana. Esse efeito poltico interessava estender

    tanto aos de fora quanto aos de dentro da cidade, alertados os sabinos de que o xodo

    dos habitantes consistiria numa forma de sangria equivalente ao cerco externo.

    Abria-se assim o tempo da campanha ao lado do tempo da propaganda. Era

    preciso, afinal, ampliar a fundao. E para isso era essencial articular esses dois

    processos na condio de tticas de ampliao do movimento. Fazendo-os dialogar, a

    sorte da revoluo estaria na dependncia no s do desempenho militar dos revoltosos

    na projeo do movimento at o Recncavo. Estaria antes, sobretudo, na capacidade de

    23 Ata da Sesso Extraordinria de 7 de novembro de 1837, PAEBa, 1948, vol. V, pp. 113-5.

    24 Lus Henrique Dias Tavares conta a histria do famoso cerco das tropas portuguesas pelo Exrcito Pacificador das foras brasileiras em 1822-23 em A Independncia do Brasil na Bahia, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira/ Braslia, INL, 1977, pp. 100-1.

  • 24

    controlar publicamente os sentidos polticos com os quais acenava, a ponto de alimentar

    sua expanso territorial ao tempo em que garantia a ordem revolucionria na cidade.

    Para isso dois flancos foram abertos: a expanso da cidade para o interior e a

    mudana da ata. O presente captulo e o seguinte analisam cada um desses processos,

    suas conexes e suas conseqncias.

    1.2. Sabinada: a revolta da cidade.

    Moreira de Azevedo, cerca de 50 anos depois da Sabinada, em memria lida no

    Instituto Histrico Brasileiro, escreveu: Se triunfou a revoluo na primeira cidade da

    provncia, ali ficou circunscrita, no avanou nem mais um passo, porque a maioria da

    provncia reagiu (...). A srie de ofcios dirigidos por Antnio Barreto Pedroso aos

    juzes das cidades e vilas da regio do Recncavo e de outras regies da provncia

    revela, de fato, que uma minoria existiu, e que teve de ser batida para que o pendo da

    revolta e da anarquia no se espalhasse com ela.25 Pedroso havia chegado em

    Cachoeira pouco mais de uma semana aps a tomada de Salvador. Vindo da Corte, onde

    exercia mandato de deputado pelo Rio de Janeiro, havia sido designado Presidente da

    Bahia antes mesmo do estouro da revoluo. Na cidade que sediava o governo legal

    como h quinze anos no cerco da Independncia foi recebido sem festa, pesando-lhe

    sobre os ombros a responsabilidade de devolver ao Imprio sua bela provncia.26

    25 Moreira Azevedo, A Sabinada da Bahia em 1837, PAEBa, I, pp. 18-38, esp. 20; Ofcios de Barreto Pedroso aos juzes de paz e de direito de: Cachoeira, 04.01.1838, PAEBa, V, p. 155, na represso Feira de Santana; Jacobina, 09.01.1838, PAEBA, V, pp. 165-6; Valena, 13.01.1838, PAEBa, V, pp. 171 e 15.01.1838, PAEBa, V, p. 176; Caravelas, 20.02.1838, PAEBa, V, pp. 205-6 e 07.03.1838, pp. 219-20; Nazar, 09.03.1838, PAEBa, V, pp. 222; sobre a vila da Barra, ofcio de Barreto Pedroso ao Ministro da Guerra, 06.02.1838, PAEBa, IV, p. 447; em Itaparica, ofcio do Presidente Pedroso ao Ministro do Imprio, 23.11.1837 apud Vicente Vianna, A Sabinada, p. 149 e notcia do Constitucional Cachoeirano, 23.11.1837, PAEBa, IV, pp. 413-4; sobre a Sabinada no Recncavo e particularmente em Nazar: A. J. Souza Carneiro, A Sabinada em Nazar, PAEBa, IV, pp. 77-96. 26 Souza, A Sabinada, p. 59; Souza Carneiro, A Sabinada, pp. 81-2; Ofcio do Presidente Barreto Pedroso ao Ministro da Guerra, 17.03.1838, PAEBa, II, 94.

  • 25

    Em Itaparica, na vila de Feira de Santana, em Jequiri, ou Nazar; em Barra,

    Caravelas, na Vila Nova da Rainha (Senhor do Bonfim) ou em Porto Seguro: as notcias

    da disseminao do esprito revoltoso atingiram como balas os legalistas estabelecidos

    em Cachoeira. Eles sabiam da importncia do aniquilamento pronto desses focos

    rebeldes, e conheciam seus principais agitadores. Eram, como eles, bravos

    experimentados em outras campanhas desde as guerras da independncia baiana. Sua

    experincia seguiu sendo testada ao longo daqueles anos: uns engrossando a fileira dos

    movimentos sediciosos, outros se acostumando a combat-los.27

    Entre os primeiros se destacam Manoel Joaquim Tupinamb, juiz de paz da vila

    de Itaparica, e Hygino Pires Gomes, dono de engenho e traficante de escravos, cujos

    motivos para engajamento na revoluo estavam longe de ser bvios. Tupinamb

    liderou um pequeno grupo que, quatro dias depois da capital, declarou na Cmara de

    Itaparica a mesma independncia declarada na sua congnere de Salvador; apenas para

    no dia 15 desse mesmo ms reintegrar-se a vila, com os novos emigrados da cidade

    firmando naquela Cmara contra-declarao que a restitua ao governo de Pedroso.

    Insistente, o juiz rebelde fez nova carga, dessa vez reforado de homens do exrcito

    que, ainda embarcados, receberam fogo a que logo adiante em terra no puderam

    resistir.28

    27 Homens de frente da Sabinada tinham feito a sua estria em campo nos combates contra os portugueses na Bahia e nos levantes que se seguiram Independncia. Anos mais tarde, integraram as rebelies federalistas de 31-33; alguns deles foram enviados com a tropa para reprimir as revolues em provncias do Imprio. Esse grupo inclua Francisco Sabino, Daniel Gomes de Freitas, Srgio Velloso, Jos Nunes Bahiense, Jos Joaquim Leite, Alexandre Sucupira, Antnio Tibiri Bahiense, Igncio Pitombo e Inocncio Eustquio Ferreira de Arajo. Souza Carneiro, A Sabinada, p. 76; Souza, A Sabinada, p. 165; Tavares, A Independncia, pp. 46-9; Defesa do acusado sargento mor Inocncio Eustquio Ferreira de Arajo, 23. 06.1838, PAEBa, V, pp. 91-8, esp. 92. 28 Pierre Verger divulga lista de suspeitos do trfico de escravos na cidade de Salvador, enviada pelo cnsul ingls ao Foreign Office. L est Aigines Pires Gomes: Fluxo e Refluxo do Trfico de Escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos dos sculos XVII a XIX, Salvador, Corrupio, 2002, p. 505. Morton, The Conservative Revolution, pp. 366-7. Vicente Vianna, A Sabinada, pp. 143-9.

  • 26

    O caso de Pires Gomes mais curioso. Talvez se possa dizer que seu destemor

    fosse proporcional ao desinteresse propriamente poltico que ele tinha pelo movimento.

    Para Morton, ele participou da revolta porque ela lhe abria possibilidades como homem

    de empreendimentos, o que ajuda a compor um tipo certamente heterodoxo de

    revolucionrio.29 Se a paixo pelos ideais no o distinguia, sua destreza em burlar as

    vigilncias, em driblar os bloqueios navais e em persistir at o fim da revolta como um

    fantasma pelo Recncavo afora, tornou-o temido entre os adversrios. A bordo do

    brigue Trovo, forneceu gado aos rebeldes, amenizando seu estado de necessidade;

    correu a barra do Jaguaripe e do Jequiri, buscando o providencial contato com Feira; e

    foi visto a um s tempo em Santo Amaro, Maragogipe, Nazar, Cachoeira, So

    Gonalo, na capital, aliciando gente, embora no seu encalo andassem os que se diziam

    legalistas. A. J. Souza Carneiro salientou o impacto quase-herico que essa figura

    produziu entre os habitantes de Nazar, avaliando que

    o que interessava mais populao era conhecer onde achava-se na verdade Hygino Pires

    Gomes, se no Pedro, Jaguaripe, Nazar, Valena, Inhambupe, So Flix, Curralinho, So

    Francisco, na capital ou onde, pois dizia-se que em todos esses lugares conseguiria reforos,

    munies de guerra e de boca, alm de muito dinheiro e adeses (...)30

    O imaginrio popular decerto era livre para produzir seus vos. Mas at ali,

    malgrado todo o empenho duro e por certo arriscado desses missionrios sabinos, o fato

    era que os ideais revoltosos no tinham podido achar guarida em nenhum ponto fora da

    capital.31 Ou em quase nenhum. A vila de Barra e a Vila Nova da Rainha foram

    exemplos dos poucos e distantes lugares em que o nimo da revolta encontrou alguma

    sobrevida fora da capital; lugares remotos que, como lembrou Morton, encontravam-se

    em zonas no-aucareiras, caracterizadas por um tipo de produo social especialmente

    29 Morton, The Conservative Revolution, p. 367.

    30 Souza Carneiro, A Sabinada, pp. 87-92.

    31 Ofcio de Barreto Pedroso ao Juiz de Paz da Estiva, 03.01.1838, PAEBa, V, p. 154.

  • 27

    diferente daquele das vilas do Recncavo, essas integradas a um sistema scio-

    econmico tpico de regies densamente escravistas.32 Tais circunstncias, se ainda no

    fornecem uma explicao dessa desarticulao entre as cidades simpticas Sabinada,

    ao menos podem indicar questes relevantes para que, nesse passo da narrativa, melhor

    se compreenda o desacerto da expanso da capital.

    1.2.1. De Salvador para o Recncavo: sociabilidades polticas da Sabinada.

    Em abril de 1836, o juiz de direito de Nazar oficiou ao Presidente da Provncia:

    pretendia lhe avisar do apuro por que passava aquela vila por conta da existncia de

    uma Sociedade Cardeal, com cerca de 90 membros de todas as cores e profisses, que

    se encontram abertamente h mais ou menos um ms. Sua proposta oficial era de ajuda

    mtua entre os seus membros, mas o juiz estava avisado de que um de seus integrantes

    era agente de um club revolucionrio em Salvador, com passagem reconhecida na

    revolta de 1833, no Forte do Mar.33

    Esse tipo de associao no era novo. Na Bahia temos notcia dele desde a

    Conspirao dos Alfaiates em 1798. Essa sociabilidade que despontava em fins do

    perodo colonial teve importncia decisiva na circulao de idias sediciosas e de

    desafeio ao trono, marcando nesse processo a sua distino em relao a toda sorte

    de motins e levantes que at ento no haviam formulado um discurso que pusesse

    decididamente em questo os fundamentos do poder estabelecido. A composio social

    da conspirao baiana era particular, se considerarmos a maior homogeneidade social de

    outro grupo contemporneo de associados polticos: os mineiros de 1789. Naquela,

    assim como na Sociedade de Nazar, reuniram-se pessoas de todas as cores e

    32 Relatrio sobre a situao da Vila de Barra, 22.02.1838, PAEBa, IV, pp. 383-8.

    33 Citado por Morton, The Conservative Revolution, p. 341.

  • 28

    profisses, embora s os alfaiates se tenham desgraadamente celebrizado, dada a

    tpica seletividade repressiva dos mecanismos de justia oficial.34

    Clubs como o de Nazar naturalmente tambm eram ativos na capital. No

    perodo da revolta, sua relevncia tinha certamente crescido e, embora o tipo de

    agremiao no fosse indito, havia novidade no fato de que, na Regncia, os clubs

    adensaram os novos temas polticos sugeridos pelo debate aceso e franco a respeito do

    estatuto de poder vlido para o Brasil no ps-Independncia. Articularam tambm ao

    lado dos temas novos mtodos. O principal dentre eles se aproveitou de outra novidade

    dessas associaes polticas regenciais: seu carter cada vez mais explcito e a ousadia

    cada vez mais ostensiva de sua linguagem redundante pela revoluo.35 Sobretudo

    depois da Abdicao, em 1831, na avaliao de Luiz Viana Filho, todas as idias

    cabiam nesse ambiente inquieto. Por mais absurda, cada uma tinha os seus proslitos, os

    seus defensores, o seu club e o seu jornal, todos a acreditarem e a repetirem que na

    revoluo estava o remdio necessrio. Nesse clima, ele concluiu, at o governo

    conspirava.36

    A importncia dessas sociedades para a construo da Sabinada amplamente

    reconhecida. Seus prprios opositores as tinham como redutos anrquicos. Das

    associaes empenhadas na conspirao para a revolta de 37 no se pode, porm, supor

    que tenham representado to diversamente os extremos da sociedade da provncia como

    aquelas do movimento dos Bzios. Os mais altos cargos do Estado Livre e

    Independente estiveram ocupados por oficiais do exrcito e da antiga milcia,

    comerciantes e mdios proprietrios, funcionrios pblicos de alto e mdio escalo,

    34 Jancs, A seduo da liberdade, pp. 387-472, esp. 388-92, 399-416, 424-32.

    35 Marco Morel, As Transformaes dos Espaos Pblicos: Imprensa, Atores Polticos e Sociabilidades na Cidade Imperial (1820-1840), So Paulo, Hucitec, 2005, pp. 99-117, 261-276; Renato Lopes Leite, Republicanos e Libertrios: Pensadores Radicais no Rio de Janeiro (1822), Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2000, pp. 227-233. 36 Luiz Viana Filho, A Sabinada (A Repblica baiana de 1837), Rio de Janeiro, Livraria Jos Olympio Editora, 1938, p. 8.

  • 29

    bacharis, quadros que muito provavelmente traduziam a composio dessas sociedades

    j no to secretas, firmando sua liderana frente dos negcios da revoluo. F. W. O.

    Morton dir que de nenhuma forma a liderana sabina poder-se- considerar

    proletria, fornecendo notcias biogrficas de alguns de seus membros.37 E se

    possvel reconhecer, a essa poca, uma efervescncia de heterogneas vontades

    revolucionrias, razovel, por outro lado, concluir que esse carter dos clubs que

    tramaram a Sabinada no podia dar conta de organiz-las todas desde o princpio, vale

    dizer, no ato de sua concepo.

    H as sempre lembradas palavras de Argolo Ferro, da linha de abastada famlia

    do Recncavo, que teria escolhido o lado da legalidade no porque no adote a

    revoluo que acho boa mas porque no quero ser governado pelo Dr. Sabino. Joo da

    Veiga Muricy, ilustre professor baiano e figura de proa da Sabinada, disse algo

    semelhante de seus adversrios: eles, vociferando contra o aurisedento governo central

    do Rio de Janeiro, se no se animavam a promover a revoluo, era por temerem a

    oposio da tropa, ou a licena da gente, que eles apelidavam canalha. Mas, pontuou:

    exceo dos mais cevados de ordenados. E logo na primeira edio em que o Jornal

    do Comrcio publicou notcia da Sabinada, a Corte foi informada de que os capitalistas

    da Bahia haviam depositado seus bens de valor no vaso de guerra ingls Samarang.38

    Esses depoimentos demarcam a relao importante que h entre posies

    polticas e elementos de classe e de prestgio social. Mas isso no era tudo. A

    complexidade da sociedade baiana obrigava os sabinos a considerarem outras questes

    37 Narrativa dos sucessos, pp. 336-7; Walter Spalding menciona a ajuda de membros de lojas manicas

    baianas fuga de Bento Gonalves do crcere no Forte do Mar, em seu A Sabinada e a Revoluo Farroupilha, PAEBa, IV, pp. 98-103; Relao dos rebeldes que eram autoridades e que se achavam presos, PAEBa, II, pp. 103-4; Morton, The Conservative Revolution, pp. 363 e 365-8. 38 Blake, Ainda a Revoluo, p. 65; Joo da Veiga Muricy, Um Padre de Rquiem apud Vicente Vianna, p. 154. Paulo Csar Souza supe uma tendncia separatista mais generalizada que, inclusive, explicaria em parte a relutncia inicial de certas autoridades em reprimir o movimento as reaes desencontradas de Souza Paraizo e Lus da Frana, por exemplo. Souza, A Sabinada, p.172; A Sabinada no noticirio do Jornal do Comrcio do Rio de Janeiro, PAEBa, IV, p. 166.

  • 30

    fundamentais do cotidiano daqueles entre os quais pretendiam abrir espao e conquistar

    adeso. Nessa linha, seu projeto de sociedade deveria flertar com as pretenses polticas

    das camadas livres e pobres da cidade, sobre as quais a incidncia das questes de

    classe, imbricada com problemas de cunho racial, manifestava-se de maneira distinta

    daquela como se dava, por exemplo, entre os mulatos de classe mdia letrada, caso de

    Francisco Sabino. Ou seja, a condio de classe dos libertos e de muitos desses mulatos

    quase brancos no-letrados e no proprietrios que a Sabinada houve ao final de

    incorporar, aproximava-os das temidas classes perigosas, camadas para as quais a

    primeira ata parecia tmida, se no corporativa. Afinal, seis dos seus sete artigos

    liquidavam uma dvida histrica do poder pblico com a caserna, recompensando

    largamente os militares pelas perdas salariais e demisses em massa promovidas pelo

    governo da Regncia.39

    Atentos ao fato de que a revoluo era uma palavra de ordem, era uma

    salsaparrilha poltica extensiva a todas as camadas sociais; atentos a isso, portanto, os

    sabinos haviam de ser mais precisos e contundentes se queriam dar credibilidade e

    conseqncia consolidao da sua revoluo dentro da capital e sua expanso fora

    dela.40

    Marco Morel, falando dos liberais exaltados da Corte, afirma que sua

    composio social no era muito diferente daquela dos moderados e dos caramurus

    como eram conhecidos os monarquistas de pretenses restauradoras. Campo poltico

    amplo dentro do qual os sabinos poderiam ser includos, Morel chama a ateno para o

    esquematismo que h em associ-lo necessariamente s camadas pobres da sociedade.

    39 Joo Reis acentua a importncia transversal do escravismo para a regulao da mobilidade social essa poca, e diz que podiam-se encontrar advogados mulatos, mas no negros, Rebelio Escrava, pp. 27-33, esp. 29; Marco Morel nota a presena crescente de mulatos nas agremiaes polticas da dcada de 20 na Corte. Eles eram, no raro, associados s classes perigosas: Morel, A Transformao, pp. 291-2; Ata da Sesso Extraordinria de 07 de novembro de 1837, PAEBa. 40

    Viana Filho, A Sabinada, p. 16.

  • 31

    E no deixa de considerar que: mesmo se aceitamos a concepo que eles tinham do

    popular, eles no seriam exatamente Povo, embora se apresentassem como

    representantes dessa soberania do povo.41

    Dessa questo, da concepo da sociedade insinuada pela revoluo, para aquela

    de suas condies operativas h apenas um passo. Parece claro que as condies do

    movimento de 1837 no podem ser comparadas com aquelas que a conspirao de 1798

    desenhava, conspirao que disso mesmo no passou. Ainda assim, nesse ltimo caso,

    os processos contra os envolvidos demonstram a relutncia dos homens bons em

    admitir sua convivncia com os outros debaixo dos princpios que seus panfletos

    divulgavam. Essas circunstncias sugerem que a sociedade que eventualmente surgisse

    dali no seria dos alfaiates como foi a to-s conspirao.42

    Os sabinos, por sua vez, tinham o apoio de boa parte da tropa, em si mesma

    reveladora da complexidade social do movimento. Sabe-se que durante algum tempo

    circularam muitos boatos entre os quartis

    de que uma revoluo seria tramada para dar

    cabo do elo entre a provncia e o Imprio. As circunstncias de grave descontentamento

    em que se encontravam os militares frente ao governo regencial muitos dos seus

    batalhes sendo extintos e dissolvida grande parte da tropa podem ter feito os boatos

    soarem como msica a alguns desses ouvidos.43

    A par de tudo isso, a vulgarizao da imprensa militante desempenhou um papel

    importante na divulgao dessas idias, firmando no imaginrio poltico um horizonte

    de agitao que passou a se reconhecer no espao de discusso pblica. Renato Lopes

    Leite trouxe tona a valiosa figura de Joo Soares Lisboa, editor do Correio do Rio de

    Janeiro, dirio publicado poca da Independncia e que pelas idias que defendia

    41 Morel, As Transformaes, p. 109.

    42 Jancs, A Seduo da Liberdade, pp. 429-32.

    43 Sobre os boatos: Depoimento de Igncio Jos Jambeiro apud Vicente Vianna, A Sabinada, pp. 127-8; Acrdo em processo militar, PAEBa, V, pp. 374-84.

  • 32

    ficou conhecido por seus detratores como supremo tribunal revolucionrio. A oficina

    tipogrfica que o editava funcionou tambm como um club revoltoso, com o nome de

    loja manica para disfarar a intimidade que ligava a tantos. Lisboa, no Rio de

    Janeiro, foi com o seu jornal um dos principais divulgadores crticos dos ocorridos s

    Cortes Constitucionais portuguesas em 1822.44

    Na Bahia, Viana Filho calculou em 60 o nmero de jornais publicados entre os

    anos de 1831 e 1837. Neste contexto se fundou O Novo Dirio da Bahia, a nova folha

    de Francisco Sabino. Ele, principal idelogo da revolta que lhe tomaria emprestado o

    nome, aps um ano preso e outros dedicados carreira de mdico, voltara ao debate na

    melhor forma de agitador revolucionrio. Em 1831, publicara O Investigador

    Brasileiro, conhecido por posies polticas conciliadoras. J em 1837, em coro com

    outros amigos das novidades, no jornal a sua ao tocava as raias do temerrio.

    Aconselhava, aos olhos do governo, a revoluo. Chegou a ser levado a julgamento

    junto com suas palavras, mas o esprito da dcada liberal o absolveu. Na Corte, Morel

    localizou em 1832 o primeiro texto manico publicado sem o recurso cauteloso do

    anonimato. As perseguies polticas seriam de esperar. Ali, em 1831, o padre

    Marcelino Pinto Ribeiro, redator do Exaltado, suspendeu sua publicao depois das

    ameaas de morte que recebera, o mesmo acontecendo com o responsvel pelo

    Jurujuba dos Farroupilhas, tambm um dos redatores da Nova Luz Brasileira, Joo

    Batista de Queirs. A consolidao progressiva de um espao pblico de circulao de

    idias no Imprio Brasileiro havia relaxado os controles polticos centralizados, mas

    seus operadores ainda estavam espreita.45

    E apesar de que essa rede sediciosa estivesse em plena formao, h de se

    considerar as dificuldades de consolidao das conexes entre os clubs e da circulao

    44 Leite, Republicanos, pp. 227-9.

    45 Viana Filho, A Sabinada, pp. 9, 87-90; Souza, A Sabinada, p.174; Morel, As Transformaes, pp. 23-4,

    114-7, 287.

  • 33

    das folhas polticas entre as cidades da provncia. Pesava aqui o carter ainda

    predominantemente local da poltica, agravado pelas precrias condies de

    comunicao entre essas localidades. A correspondncia das Sociedades Federalistas

    baiana e fluminense no faz supor que essa fosse a regras no que toca s pequenas

    cidades.46

    Por isso, a tarefa divulgadora de Higino Gomes, que seguiu pelo Recncavo de

    posse do manifesto revolucionrio, no pde encontrar em Nazar mais do que uns

    poucos clubs desarticulados, sem grande efeito para sua propagao. As proclamaes

    dos revoltosos, encontradas nos cadveres que a guerra ia deixando pelo caminho,

    morriam com seus soldados.47

    Tratava-se, pois, como se v, de um teste das fronteiras polticas de uma dada

    sociabilidade, transformada ento num ncleo revolucionrio em ato. Se queriam

    crescer os sabinos com a sua revoluo, era preciso aprender a compor com os seu

    limites. Aprend-lo no curso mesmo da revoluo. E se para isso eles tinham a

    contextura dos clubs, dos jornais e o rastilho dos rumores nos quartis antecipando e

    amadurecendo a proposta revolucionria no foi seno sobre o controle desses meios

    que a preveno das autoridades aos boatos desorganizadores se levantou. Eles

    estavam abertos a quem quisesse ver. Falou-se at em escritos e proclamaes

    sediciosas, aparecidos nos lugares mais pblicos da cidade, no ms de outubro de

    1837, um ms antes da ao rebelde. Dependente dessas articulaes, a expanso da

    revolta para o Recncavo pode ter sido dificultada em boa medida pela possvel

    precipitao forada do movimento, provocada pela vigilncia das autoridades sobre os

    46 Morel, As Transformaes, p. 275. A notcia da restaurao da cidade chega Corte com atraso de duas

    semanas, e de navio, O Wizard, que tambm levara a notcia de sua queda em favor dos rebeldes, A Sabinada no noticirio, p. 178. 47

    Souza Carneiro, A Sabinada, pp. 87-8; Ofcio de Pedroso ao Ministro da Guerra, PAEBa, IV, p. 454.

  • 34

    meios usados para sua preparao. Se elas no foram competentes para evit-lo, ao

    menos o podem ter sido para abreviar seu perodo necessrio de maturao.48

    1.2.2. Conspirao e Vigilncia: o entreato da represso.

    No foi outro o motivo da carta enviada pelo ento presidente da provncia,

    Francisco de Souza Paraso, ao Ministro da Justia na Corte, seu conterrneo Francisco

    Montezuma, trs meses antes do episdio no Forte de So Pedro:

    Por dever do cargo que ocupo de Presidente desta Provncia, vou comunicar a V. Exa. para

    que no ignore o Governo Geral qualquer circunstncia nela ocorrida, que nesta capital tem,

    h dias, aparecido boatos desorganizadores os quais, posto que diferentes, contudo parecem

    estar de acordo quanto separao da Provncia, mas no tendo ainda dados para avaliar

    como filhos de uma mesma combinao entre pessoas que possam influir nos destinos da

    mesma Provncia, inclino-me a crer que no passam por ora de desejos dos amigos das

    novidades que se nutrem com espalhar tais idias, para o que talvez lhes tenha fornecido

    matria a linguagem da folha h pouco aparecida na mesma capital com o ttulo de Novo

    Dirio da Bahia (...)49

    Anexos ao ofcio estavam dois exemplares do Novo Dirio em que, sem meias

    palavras, Sabino perguntava: possvel dispensar a revoluo?. Sua indagao

    continuava, sugerindo a todos que os negcios do Brasil vo assim em to grande

    desmantelao pela falta de ingerncia do povo nas cousas pblicas. Sem querer levar

    a culpa sozinho, trazia Rousseau para expi-la consigo: Temos, pois, sido e

    continuaremos a ser felizes com o sistema atual sem que se lhe d algumas

    modificaes, tomadas imediatamente pelo poder soberano inalienvel?. No

    satisfeito, arrematava seu livre pensamento em tom de decreto: Senhora Corte central,

    cuide no seu centro que ns s podemos ser felizes cuidando c na nossa periferia.

    48 Azevedo, A Sabinada, p. 18.

    49 Ofcio de Francisco de Souza Paraso a Francisco G Acayaba de Montezuma, 12.08.1837, PAEBa, IV,

    pp. 395-6.

  • 35

    Ganhe por l se quiser gastar tanto que ns no estamos mais para sustentar semelhante

    madrasta.50

    Paraso era hbil, no se pode negar: percebera o nascimento de um dos

    principais jornais de oposio ao regime. Mas apesar da veemncia insofismvel do seu

    editor, continuou tranqilo. Contava com a disciplina da tropa e com o carter ordeiro

    da populao da provncia. No dia 17 de novembro, recebia ofcio do Ministro do

    Imprio, que se dizia j devidamente informado da revoluo que ele, Paraso, h tanto

    receava.51

    Outro que parece s ter se movido quando no mais era til foi Gonalves

    Martins, chefe de polcia. Da leitura de sua exposio, sabe-se que no ocultava os

    receios que h muito tinha de tal revoluo e que os fiz patentes a algumas pessoas

    notveis do Rio e mesmo do ministrio, dizendo-lhes que muito convinha retirar por

    enquanto o resto da tropa para o Rio Grande. Suas desconfianas da tropa foram

    participadas ao presidente Paraso e tambm ao comandante das armas Luiz da Frana.

    Acabaram, no entanto, contribuindo mais para um conflito parte entre polcia e

    exrcito do que para a priso dos acusados. O batalho destacado para lutar na frente

    gacha e que no foi aquartelou-se no dia 6.52

    Uma ligao da Sabinada com o Rio de Janeiro foi alegada por muitos daqueles

    historiadores da gerao do Instituto Histrico, dentre eles Braz do Amaral e

    Sacramento Blake. Supunham, por diferentes motivos, que a revolta havia sido tramada

    na Corte, e ultimada mesmo com a queda de Feij, cabea do movimento. Ou seja, era o

    governo conspirando pelo golpe contra os conservadores, com o apoio dos

    50 Novo Dirio da Bahia, 11 de agosto de 1837, PAEBa, IV, pp. 396-403 (anexos 8 e 9).

    51 Ofcio de Francisco de Souza Paraso a Francisco G Acayaba de Montezuma, 12.08.1837, PAEBa; Ofcio do Ministro do Imprio a Francisco de Souza Paraso, 17.12.1837, PAEBa, V, pp. 321-2. 52 Gonalves Martins, Nova edio, p. 226; Em depoimento na condio de testemunha, D. Baltazar, ajudante de ordens do Comandante das Armas que fora preso pelos rebeldes logo quando do estouro da revolta, disse ter ouvido de Velloso a afirmao de que ela aproveitara a ocasio, pois que o governo j sabia da revoluo, o que Bahiense [Jos Nunes] e Daniel [Gomes de Freitas] confirmaram na presena dele, testemunha, apud Vicente Vianna, p. 130.

  • 36

    revolucionrios nas provncias. O prprio Amaral admite a falta de evidncias da

    hiptese, que se enfraquece ainda mais diante do texto do Plano Revolucionrio que

    abre esse captulo, segundo o qual a presena de Feij no governo era a ltima

    esperana institucional dos futuros rebeldes, e que, portanto, no era ele o mentor da

    revoluo, mas antes quem a podia evitar. Sado ele, isso sim, no havia outra escolha.53

    Mais sentido ainda tem essa interpretao quando outra ligao com o Rio, mais

    verossmil, une as palavras do Plano e Fim Revolucionrio s de um outro exaltado,

    Borges da Fonseca, redator de O Repblico, revelando a mesma frustrao com o

    governo da Regncia:

    So passados 6 anos ao depois dessa promessa terrvel, e que do desempenho a ela? O

    que se fez para aproveitar a revoluo? Mseros macacos somos ns que s vivemos para

    imitar os outros, para copiarmos a Europa, como se a Europa nos aproveitasse. Assim

    mesmo os doutrinrios de Lus Felipe aproveitaram os trs dias de julho para reformar a

    Carta; para condenar os ministros traidores (...).54

    Se o Rio forneceu motivos revoluo na Bahia, eles foram ideolgicos e no

    logsticos. A rebelio era nativa e se precipitou com o aperto promovido por Martins ao

    tomar conhecimento de que no club da Piedade estava Sabino e que ali havia se

    pronunciado a palavra revoluo. Isso era mais do que uma prova, ainda que tardia.55

    A responsabilidade completa que os baianos tinham, portanto, por sua revoluo,

    tornava-os senhores de sua expanso. Mas eles no aproveitaram o tempo que tinham.

    Tempo que corria a seu favor, haja vista o quase completo desaparelhamento dos

    legalistas no momento imediatamente seguinte ao da tomada da cidade. E era deles,

    legalistas, a culpa por esse cenrio. A dispensa progressiva dos batalhes do exrcito e

    53 Braz do Amaral, A Sabinada, PAEBa, II, pp. 3-51 e esp. 4-5; Blake, Ainda a Revoluo, p. 58. Morton confirma no ver sequer leves evidncias dessa trama na Corte, The Conservative Revolution, p. 347. 54

    O

    Republico, 19.01.1837 apud Morel, As Transformaes, p. 112. 55 Gonalves Martins, Nova edio, pp. 227-30; Morton diz que a extenso que tomou a trama do movimento tornou impossvel que ele no se tornasse conhecido pelas autoridades, The Conservative Revolution, pp. 347-8.

  • 37

    sua substituio por uma milcia civil que se submetesse mais facilmente ao controle

    centralizado do Estado em formao custaram caro aos governos central e das

    provncias, ponta onde rebentavam todos os contratempos.56

    Na cidade, no entanto, perdeu-se tempo em proclamaes, em ditirambos

    vitria. Os rebeldes no viram mas podiam t-la imaginado a comunicao feita

    por Barreto Pedroso ao Ministro Bernardo de Vasconcelos, na qual, a par de lhe

    requerer ajuda, acusava todas as carncias materiais dos seus homens de guerra: H

    nesta brigada 1175 praas, porm armadas s 792, por isso que continuara a

    experimentar a mesma falta de armamento ainda que com suma dificuldade algumas

    armas tenham sido obtidas. As armas enviadas pela Corte, ainda em novembro,

    voltaram para l, inteiras, com o navio que as conduzia, quebrado. Foi no dia 21 de

    dezembro que recebi 260 espingardas de Sergipe e no dia 22 noite que aqui chegaram

    na Barca de vapor Paquete do Norte 300 do Rio de Janeiro, pssimas muitas delas,

    escreveu Barroso ao Presidente da Provncia de Pernambuco, Francisco de Rego

    Barros.57

    Esvaziado pela tropa e inerme, o exrcito legalista havia de se formar alm da

    polcia com os elementos da recm-criada Guarda Nacional, ainda em fase de

    experimentao e pouqussimo profissionalizada. At aquele momento, as guardas no

    haviam sido postas em ao regular sequer em cidades importantes como o Rio de

    Janeiro e Salvador. Funcionavam apenas em momentos de crise. Portanto, foi por causa

    dela que, a 13 de janeiro, o presidente Pedroso instou todas as vilas e comarcas a

    organizarem sua guarda e coloc-las disposio do combate, recordando-lhes de

    56 Viana Filho, A Sabinada, pp. 100-2; Kraay, Race, pp. 226-31.

    57 Viana Filho, A Sabinada, p. 101; Ofcio do Presidente Barreto Pedroso ao Ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos, 29.11.1837, PAEBa, IV, pp. 435-6; A Sabinada no noticirio, p. 168; Ofcio de Barreto Pedroso ao Presidente da Provncia de Pernambuco, 03.01.1838, PAEBa, IV, pp. 439-40.

  • 38

    cumprir a lei que existia.58 Mas ainda antes disso, autorizado pelo governo central a

    recrut-la, o efetivo que arregimentara nenhuma disciplina tinha, nenhuma obedincia

    reconhecia aos superiores, por isso no me animo a p-lo j em execuo, porquanto

    receio que aparea o maior desalinho, quando no completo abandono das foras

    reunidas. Assim ele s teve algum descanso quando chegou a tropa de Pernambuco,

    desembarcada a caminho do Rio Grande do Sul. No era bastante, mas conferia s suas

    fileiras um ar de organizao militar pouco mais apresentvel. Os pernambucanos

    ganhariam a companhia dos alagoanos, sergipanos e da tropa da Corte. Havia mais isso:

    o exrcito que existia tinha de viajar de norte a sul, literalmente, com escala na Bahia.

    As foras da Corte e das provncias combinadas lutavam nas frentes do Par,

    conflagrado pela Cabanagem, e, outro extremo, na longa Guerra dos Farrapos, que

    sobreviveu mais sete anos dos sabinos. Eis o belo pacto federativo que se lhes

    deparava.59

    Sobre os dilemas da expanso, ningum entre os contemporneos e ativos da

    revolta fez melhor anlise do que Manoel Tupinamb, a respeito de como impunha se

    comportar diante desses flancos que a tomada pronta da cidade tinha aberto sua frente.

    Lotado em Itaparica, de onde proclamou e oficiou ao vice-presidente do governo

    rebelde, o juiz de paz deu mostras da lucidez que parece ter faltado aos seus colegas da

    capital que, ilhados em pleno continente, no conseguiram convert-la em prtica.

    No ofcio que escreveu ao comando rebelde, um dia depois de ocupar a Cmara

    de Itaparica, considerou as precrias condies de defesa do municpio, grifando ser

    urgentssimo apartar-nos das influncias do prazer, e aplicar-nos a uma sria defesa

    desta vila, que sendo um ponto circulado de mar pode ser invadido por muitas partes.

    58 Kraay, Race, p. 229; Souza Carneiro, A Sabinada, p. 90.

    59 Ofcio do Presidente Barreto Pedroso ao Ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos, 29.11.1837, PAEBa; Ofcio do Presidente Pedroso ao Ministro da Guerra, 12.01.1838, PAEBa, II, p. 88; Ofcio do Ministro da Guerra ao Presidente Pedroso, 17.11.1837, PAEBa, V, p. 327.

  • 39

    No mesmo texto, afirmou que toda e qualquer defesa que se aplique deve ser pronta e

    forte, a fim de que todos se convenam da disposio do Governo de V. Exa., o que

    formando confiana produz imediatamente fora moral a favor do governo.60

    Antecipando sobre si mesmo a aplicao das lies que dava aos baianos, e por

    conta de desarmada absolutamente a vila, juntou suas vinte armas desconcertadas e

    tomei o expediente de as mandar consertar aqui, pressuposto o devido pagamento pelo

    Governo; e isto V. Exa. resolver. Isso ele o fez com toda a eficincia de um recm-

    empossado estadista, bem que no seja da competncia de um juiz tratar dos empenhos

    e circunstncias de uma defesa blica. E como, apesar de lcido, no era dois, terminou

    o ofcio com solicitaes ao centro da revoluo, asseverando a V. Exa. que um

    aparato aqui de fora, e duas canhoneiras, muito influiria nos nimos, e resolveria

    vontades indecisas; enfim V. Exa. resolver.61

    Essas vontades, seguindo indecisas, muito provavelmente importaram para que

    at janeiro nada tivesse avanado. Ainda que, como reconhecera o prprio presidente

    legalista, houvessem os rebeldes elevado sua fora de 2500 a 3000 homens, e

    encontrado bastante armamento nos arsenais e quartis. No Recncavo, onde a guerra

    da propaganda promovida de cada lado confundia os interessados, a falta de clareza

    acerca dos horizontes da revoluo e do avano de sua guerra teria contribudo para que

    houvesse poucas manifestaes ofensivas de apoio causa. No dia 2 de janeiro, um dia

    antes de aportarem no Recncavo os pernambucanos, decretava-se oficialmente o

    bloqueio da capital pelas foras do Imprio. Carneiro nem precisara responder as

    comunicaes de Tupinamb porque, como se demonstrou, onde sobrava energia faltava

    brao armado, e Itaparica logo caiu. Depois dela caiu tambm a maioria das outras vilas

    que experimentaram a fantasia da revoluo, e at o Trovo que conduzia Higino Pires

    60 Ofcio Tupinamb ao Vice-Presidente do Estado, 12.11.1837, PAEBa, II, pp. 71-2.

    61 Ofcio Tupinamb ao Vice-Presidente do Estado, 12.11.1837, PAEBa.

  • 40

    Gomes baa afora debandou para o lado legalista com o seu comandante,

    desguarnecendo outra importante figura impetuosa dessa expanso. Completando o

    ciclo, Marinha que os sabinos tinham criado faltavam marinheiros e o mar que os

    banhava estava fechado.62

    Talvez naquilo que pudesse representar uma qualificada e ltima esperana

    de ampliao do movimento, o contato com os estrangeiros foi estabelecido pelos

    rebeldes na condio de membros de um novo Estado. O professor Muricy publicou no

    seu Philopatro incisiva posio em defesa da obrigao jurdica das naes estrangeiras

    em reconhecer a independncia dos novos Estados criados pela via revolucionria. A

    eles tocaria prezar pela continuidade das relaes de comrcio, abstendo-se de interferir

    em suas questes polticas internas, ou de discutir sua legitimidade. Assim diziam as

    instituies de direito pblico.63

    O sentido prtico dessa argumentao evidente. O assdio militar feito cidade

    de Salvador havia reduzido drasticamente as suas provises de alimentos, e em janeiro

    j se contavam mortes por inanio, sobretudo de escravos, sem mencionar o incentivo

    nada ideolgico que essa situao representava para o xodo crescente da cidade. Para

    Morton, nessa fase dos acontecimentos a economia havia superado a poltica como

    centro das preocupaes revolucionrias.64

    Ocorre que, donos do mar de todos os santos, os imperialistas no

    descuidaram de cercar tambm os estrangeiros. Ao ofcio de Joo Carneiro que

    assegurava para o cnsul ingls a amizade do governo revolucionrio, requerendo-lhes

    recproca atitude, correspondeu a ao prtica dos legalistas que, estabelecendo em

    62 Amaral, A Sabinada, p. 28; Ofcio de Barreto Pedroso ao Presidente da Provncia de Pernambuco, 03.01.1838, PAEBa; Souza Carneiro, A Sabinada, pp. 86-89; Ofcio de Manoel da Sa. Barana ao Juiz Municipal da Vila Nova da Rainha, 26.01.1838; Daniel Gomes de Freitas, Narrativa dos sucessos da Sabinada, PAEBa, I, p. 270. 63

    Joo da Veiga Muricy, Philopatroapud Vicente Vianna, A Sabinada, pp. 180-4.

    64 Declarao do capito da barca inglesa Lord Goderick, A Sabinada no noticirio, pp. 168-9; Morton, The Conservative Revolution, p. 372.

  • 41

    Itaparica os negcios da Alfndega, alertaram os traficantes do reino de Sua Majestade

    que os impostos pagos fora dela no seriam reconhecidos. Houve algumas poucas

    tentativas bem sucedidas feitas por barcos de nacionalidade inglesa e dinamarquesa de

    furar o bloqueio e comerciar com os rebeldes. Mas, sabendo disso, logo o governo de

    Cachoeira expressou sua contrariedade ameaadora em ofcios de linguagem rspida

    como o dirigido por Pedroso ao representante diplomtico dos Estados Unidos. Nesse

    documento, o cnsul estadunidense no era mais alvo de um pedido, mas de uma

    intimao.65

    At fevereiro, os ofcios de parte a parte acusam a presena de vasos ingleses

    ancorados na proximidade das praias baianas. Imveis e suspeitos de colaborao com a

    legalidade, porm, eles nada ajudaram. E pouco adiantou a liberao do comrcio de

    cabotagem por estrangeiros decretada por Carneiro Rego nos ltimos dias do ano: no

    tinham o que conduzir. As Fragatas Imperiais formavam j a linha indefectvel que

    fechava a entrada da baa, apenas alm das quais fundeavam os navios vindos de fora do

    pas.66

    Tal era o conforto da situao dos imperialistas que, em meados de janeiro na

    comunicao feita ao juiz de Valena, Pedroso lhe recomendou tranqilidade e que no

    tivesse receio de que os rebeldes para a se dirijam, ou tenham na Comarca de sua

    jurisdio algum desembarque, porquanto, alm do cerco de tropas que por terra os

    contm na Capital (...) temos hoje por mar uma respeitvel linha de embarcaes que

    lhes embarga a sada para o recncavo. Sequer os barcos que saam do sul da provncia

    podiam faz-lo sem pagar fiana ou sem exibir no retorno de seus destinos comerciais o

    65 Ofcio de Joo Carneiro da Silva Rego ao Cnsul Ingls, 08.11.1837, PAEBa, V, p. 389; Ofcio do Secretrio Antnio Joaquim da Silva Gomes ao Cnsul Ingls, 28.11.1837, PAEBa, V, pp. 391-2; A Sabinada no noticirio, pp. 173-4; Ofcio do Presidente Pedroso ao Cnsul dos Estados Unidos, 04.01.1838, PAEBa, V, p. 156. 66 Ofcio do Presidente Pedroso ao Cnsul Ingls, 09.02.1838, PAEBa, V, p. 401; Ofcio de Francisco Sabino lvares da Rocha Vieira ao Cnsul Ingls, 13.02.1838, PAEBa, V, p. 401; Ofcio de Joo Carneiro da Silva Rego ao Cnsul Ingls, 15.12.1837, PAEBa, V, p. 395; Resoluo, 23.11.1838, PAEBa, V, p. 397.

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    carimbo das autoridades do Imprio, sob pena de serem presos seus tripulantes pelo

    crime de colaborao sediciosa. Muitos deles carregavam farinha, alimento bsico de

    grande parte da populao da provncia, sobretudo sua extensa parte pobre. Na cidade,

    durante a guerra, vendia-se a 50$ a barrica, informa uma carta particular dirigida ao

    Jornal do Comrcio no ms de janeiro. A mesma barrica um ms depois no saa por

    menos de 150$, segundo notcia do mesmo peridico fluminense.67

    Diante desse estado de coisas, com o cerco militar grassou o inevitvel aperto da

    fome, impvido general. A farinha que ainda restava era de trigo e se comia

    desmanchada em duras bolachas. Ainda mais dura, porm, devia ser a casca da jaca,

    que um annimo disse servir de alimento ao povo decidido, pois o exrcito sempre

    teve recursos.68

    A mxima do professor Muricy, um dos crebros do movimento, segundo a qual

    a lei da revoluo tudo aquilo que tende a faz-la prevalecer se tornara letra morta.

    A fome e a falta de ousadia blica a haviam matado. No meio tempo entre a deflagrao

    revolucionria e a montagem do aparato repressivo, a ausncia de uma estratgia militar

    mais inteligente tornou os sabinos dependentes de variveis que dali em diante no mais

    controlariam. Pelo mar, do lado do oceano e para dentro da baa; por terra, na Estrada

    das Boiadas, em Piraj e, na outra ponta, na estrada de Itapu, a cidade estava

    definitivamente cercada e no trabalhava seno para dentro, talvez contando o tempo

    com amargo sabor de dej v. Sua propaganda, seus decretos e proclamaes assumiam

    j uns ares de delrio, do que d boa prova a incorporao por decreto das terras de

    67 Ofcio do Presidente Pedroso ao Juiz de Direito de Valena, 13.01.1838, PAEBa, V, p. 171; Ofcio do Presidente Pedroso para o Juiz de Direito da Comarca de Ilhus, PAEBa, pp. 183-4; Bert Jude Barickman, Um Contraponto Baiano: acar, fumo, mandioca e escravido no Recncavo, 1780-1860, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2003, pp. 89-92; A Sabinada no noticirio, pp. 172-3. 68 Ofcio do Presidente Pedroso ao Presidente da Provncia de Sergipe, PAEBa, 07.01.1838, IV, p. 441; Narrativa dos sucessos, p. 341; Souza, A Sabinada, pp. 89-90, 132. A hiptese de que havia distribuio privilegiada de alimentos na capital fortalecida pela declarao de Barreto Pedroso, j como deputado Assemblia Geral, segundo a qual no dia 16, em que as armas da legalidade triunfaram completamente, havia na cidade bastante carne e farinha, cf. No Parlamento Nacional, Sesso de 12 de maio de 1838, PAEBa, II, p. 120.

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    Itaparica ao territrio do Estado Livre e Independente, em 27 de janeiro, quinze dias

    depois de o governo de Cachoeira organizar os Defensores do Imprio, batalho

    sediado naquela mesma ilha. Afinal, eles tinham a fora.69

    1.2.3. Salvador: cidade vazia.

    Esse estado de revolta presa e radicada na cidade , em todos os sentidos,

    perfeitamente representado pela Cmara Municipal de Salvador. Simblica de muitas

    maneiras, a Casa dos Vereadores aclamaria a revoluo, daria posse s suas lideranas e

    funcionaria at o seu ltimo suspiro. Nota importante que, para funcionar, teria de

    recrutar incessantemente novos eleitos para suprir a falta daqueles que iam renunciando

    aos seus mandatos, em especial pelo medo da derrota e da represso vindouras. O tom

    curioso fica por conta das justificativas apresentadas s autoridades: elas contm

    queixas de toda a sorte de molstias porque a revoluo parece ter espalhado pela cidade

    um ar danado de doena que s o clima do Recncavo seria capaz de curar.70

    No dia 24 de novembro, ainda nos albores da revoluo, em ofcio dirigido ao

    nico vereador remanescente Vicente Jos Teixeira o vice-presidente rebelde

    expressou suas preocupaes com o fato de no ter a Cmara se reunido fora das duas

    sesses extraordinrias que abriram a rebelio, e lhe solicitou fossem recrutados novos

    colegas para pr em marcha os negcios daquela Casa. De fato, seis dos nove

    vereadores haviam assinado a ata do dia 7 de novembro; um deles, por doente, no

    compareceu reunio do dia 11. Da em diante, at o dia 20 desse ms, outros quatro

    haviam emigrado e Teixeira se viu na misso de recompor, sozinho, os oito lugares

    69 Apud Vicente Vianna, A Sabinada, p. 156; Souza, A Sabinada, pp. 100-2; Proclamao de Srgio Velloso sobre a expedio de Hygino Pires Gomes, 10.03.1838, PAEBA, II, p. 87; Souza Carneiro, A Sabinada, p. 91; Souza, A Sabinada, Confisco das Terras de Itaparica, 27.01.1838, p. 249; Proclamao de Barreto Pedroso, 14.01.1838, PAEBa, V, p. 174. 70 Processo dos vereadores apud Vicente Vianna, pp. 130-5; Ata da Sesso Extraordinria da Cmara Municipal, 13.12.1837, PAEBa, V, p. 120.

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    restantes, na forma da Lei de Organizao das Cmaras Municipais, promulgada em 1.

    de outubro de 1828.71

    Dos ofcios que dirigiu aos cidados mais votados, Teixeira obteve como

    resposta alguns atestados mdicos. Mas outro fato igualmente precioso para visualizar a

    falta de pessoal revolucionrio resultou desse recrutamento da Cmara. Entre os mais

    votados estavam Daniel Gomes de Freitas e Manoel Pedro de Freitas Guimares, ambos

    militares. O primeiro, na resposta que deu a Teixeira, confirmou o interesse que tenho

    em ver progredir a causa pblica, prometendo aparecer mesmo em plena funo de

    guerra. E apareceu. Nomeado ministro da a dois meses, porm, abriu nova vaga entre

    os colegas. O mesmo aconteceu com Guimares, que a 13 de janeiro era dispensado da

    vereana por se achar encarregado de vrias comisses pelo Governo do Estado. No

    satisfeito o Estado, houve por bem ainda nome-lo Ministro da Marinha. Em 15 dias, no

    entanto, Carneiro Rego lhe dava baixa de todas as funes por suas molstias. A este,

    antigo experimentado nas lutas pela independncia, a revoluo parece ter,

    verdadeiramente, esgotado.72

    O que se pode notar desses casos exemplares que o esvaziamento da cidade e

    de sua primeira casa faria par com o de seu aparato administrativo. Em alguns livros da

    secretaria de Governo no se encontra um s documento daquela poca como se ela

    71 Ofcio de Joo Carneiro da Silva Rego a Vicente Jos Teixeira, 24.11.1837, PAEBa, V, p. 127; Processo dos vereadores, apud Vicente Vianna, A Sabinada, 130-5; Lei de Organizao das Cmaras Municipais, 1. de outubro de 1828 apud Paulo Bonavides e Roberto Amaral, Textos Polticos da Histria do Brasil, Braslia, Senado Federal, 2005, vol. I, pp. 848-860; O ento brigadeiro reformado Manoel Pedro de Freitas Guimares foi uma das principais figuras da resistncia baiana ao brigadeiro portugus Madeira de Mello, enviado ao Brasil para assumir em seu lugar o Comando das Armas da Provncia, por deciso das Cortes Portuguesas no incio do ano de 1822. Guimares seria preso e enviado para Lisboa, num processo que se concluiria com a expulso de Madeira e suas tropas da Bahia. Cf. Tavares, A Independncia, pp. 23-50, 55-6; Berbel, A nao como Artefato: deputados do Brasil nas cortes portuguesas (1821-1822), So Paulo: Hucitec, Fapesp, 1999, p. 58. 72 Ofcio de Manoel Domingues Lopes ao Presidente da Cmara Municipal, 27.11.1837, PAEBa, V, p.127; Ofcio de Theodoro Praxedes Fres ao Presidente da Cmara Municipal, 27.11.1837, PAEBa, V, p. 128; Ofcio de Daniel Gomes de Freitas ao Presidente da Cmara Municipal, 28 de novembro de 1837, PAEBa, V, p. 128; Decreto do Governo Rebelde: Criao de um Ministrio, 19.01.1838, PAEBa, II, p. 68; Ata da Sesso Ordinria de 13 de Janeiro de 1838, PAEBa, V, p. 121; Decreto, 08.03.1838, PAEBa, II, pp. 69-70.

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    tivesse sido um parntese na vida pblica e na administrao da Bahia, comenta Braz

    do Amaral, no sem algum exagero. Na ata da sesso que retoma os trabalhos da

    Cmara, em 4 de dezembro, seu presidente arrola o considervel nmero de cargos

    vagos cujo provimento demandava pronta ateno das autoridades. Um de seus colegas

    observou que a falta de um juiz de direito era sensvel tanto que no havia quem

    abrisse testamentos, e praticasse outros atos de absoluta necessidade. Dos juzes em

    seguida nomeados, Antnio Jos de S Freire cumularia a magistratura com a chefia