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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ VICE-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA CURSO DE MESTRADO EM DIREITO MINTER UNESA / UNOESC NARCISO LEANDRO XAVIER BAEZ A PROBLEMÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS NO MUNDO GLOBALIZADO Rio de Janeiro 2007

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

VICE-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

CURSO DE MESTRADO EM DIREITO

MINTER UNESA / UNOESC

NARCISO LEANDRO XAVIER BAEZ

A PROBLEMÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS

NO MUNDO GLOBALIZADO

Rio de Janeiro

2007

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NARCISO LEANDRO XAVIER BAEZ

A PROBLEMÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS

NO MUNDO GLOBALIZADO

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá.

Orientador: Prof. Doutor Vicente Barreto

Rio de Janeiro

2007

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A Dissertação

A PROBLEMÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS

NO MUNDO GLOBALIZADO

Elaborada por

NARCISO LEANDRO XAVIER BAEZ

e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo Curso de Mestrado

em Direito Público e Evolução Social como requisito parcial à obtenção do título de

MESTRE EM DIREITO

Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2007.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________ Prof. Doutor Vicente Barreto

Presidente Universidade Estácio de Sá

____________________________________________ Prof. Doutora Renata Braga Klevenhusen

Universidade Estácio de Sá

____________________________________________ Prof. Doutor Gustavo Senechal de Goffredo

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

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RESUMO

Esta dissertação tem o objetivo o estudo dos fundamentos teóricos que problematizam os direitos humanos no quadro da evolução histórica e diante do processo de globalização, objetivando a identificação dos mecanismos que possam garantir o seu respeito e efetivação. Para tanto, utiliza-se o método indutivo, dividindo-se a dissertação em três partes. A primeira estuda a fundamentação teórica dos direitos humanos e a sua evolução, abordando-se as controvérsias doutrinárias que existem a respeito do tema, com especial ênfase para as teorias jusnaturalistas, historicistas e éticas. Desta forma, conclui-se que, apesar de usarem diferentes argumentos, todas essas propostas reconhecem que os objetivos desses direitos são a proteção e a realização da dignidade da pessoa humana, em suas diversas dimensões, além de ter existência supralegal, pois são constituídos de valores morais, inerentes aos seres humanos, cabendo ao ordenamento jurídico o importante papel de sua proteção e materialização. Assim, constata-se que os direitos humanos possuem duas dimensões: uma básica, em que estão inseridos os valores mínimos e fundamentais para a existência humana e outra, cultural, formada por influências históricas que se ampliam gradativamente na busca da concretização de condições que possam facilitar o completo exercício e fruição da dignidade da pessoa humana, conforme as necessidades e possibilidades de cada época. A segunda aborda o surgimento, evolução e conseqüências humanas do processo de globalização, conhecendo-se os fatos históricos que levaram ao surgimento desse fenômeno. Enfatiza-se que a globalização trouxe graves conseqüências à efetivação dos direitos humanos, uma vez que ela diminuiu drasticamente a autonomia e o poder dos Estados, gerando, em nome da formação de um capital internacional, desigualdades sociais, miséria e pobreza nos quatro pontos do planeta. Por fim, a terceira parte estuda as controvérsias que existem acerca da universalização dos direitos humanos, objetivando a compreensão das formas de sua materialização na sociedade moderna. Mostra-se, com argumentos da filosofia, antropologia e psicologia, que a unidade de características existentes entre as pessoas comprova que os direitos humanos, em sua dimensão básica, devem ser universais. Adverte-se que, para eles alcançarem esse patamar, não podem pretender encampar valores uniformes a serem observados por todos os tipos de sociedades. O caminho da universalização passa pelo diálogo intercultural, no qual diferentes sociedades possam ter voz ativa para discutir e encontrar os pontos comuns necessários à realização de uma vida digna. Com relação a esta efetivação, vê-se que ela passa pela objetivação jurídica metaconstitucional, baseada em valores morais universais, que sejam capazes de influenciar e condicionar os diversos níveis legislativos. Para que isso seja possível, aponta-se a necessidade do reforço de organismos supranacionais, como a Organização das Nações Unidas, os quais devem receber poderes de coerção de forma a poderem impor aos governos nacionais e aos diversos agentes internacionais, públicos e privados, o respeito, a proteção e a promoção dos direitos humanos, independentemente do sistema político, jurídico ou cultural que adotem.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos – Universalismo – Relativismo – Diálogo Intercultural – Globalização.

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ABSTRACT

This dissertation has the aim of studying the theoretical basis which problematize the human rights in the historical evolution frame and up against the process of globalization, aiming the identification of the mechanisms which may guarantee its respect and concretization, by means the inductive method, being divided in three parts. The first studies the theoretical basis of human rights and its evolution, approaching the different doctrines which exist about the theme, with special emphasis to the jusnaturalists, historicists and ethics theories. In this way, it is concluded that, besides using different arguments, all these proposals recognize the aims of these rights are the protection and the fulfillment of the human being dignity, in its different dimensions, besides having a supralegal existence, because they are made of moral values, concerning the human beings and being in charge of the juridical ordainment the important role of its protection and materialization. Thus, it is found the human rights have two dimensions: one basic, in which the minimum and fundamental values to the human existence are inserted, and the other, cultural, formed by historical influences which are gradatively extended in the search of the fulfillment of conditions that may facilitate the complete practice and use of the human being dignity, according to the necessities and possibilities of each epoch. The second approaches the appearance, evolution and human consequences of the process of globalization, knowing the historical facts that took to the appearance of this phenomenon. It is emphasized the globalization brought serious consequences to the fulfillment of the human rights, once it drastically diminished the power autonomy of the States, promoting, in the name of the international capital formation, social differences, misery and poverty worldwide. Finally, the third part studies the controversies that exist around the universalization of the human rights, aiming the comprehension of the forms of its materialization in the modern society. It is shown, with arguments from philosophy, anthropology and psychology, the unit of characteristics presented between the people prove the human rights, in they basic dimension, have to be universal. It is advertised that, for them to reach this level, they can not intend to adopt linear values to be observed by all kinds of societies. The way of universalization passes by the intercultural dialogue, in which different societies can have active voice to discuss and find the necessary common points to the fulfillment of a decent life. In relation to this fulfillment, it is seen it passes by the creation of metaconstitucional juridical norms, based in the universal moral values, which can be able to influence and conditionate the various legislative levels. For this to be possible, it is pointed the necessity of the reinforcement of the supranational organisms, as the United Nations Organization, which must receive power of coercion in a way to impose to the national governments and to the various public and private international agents, the respect, the protection and the promotion of the human rights, independently of the politic, juridical or cultural system they adopt.

KEYWORDS: Human Rights – Universalism – Relativism – Intercultural Dialogue – Globalization.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 07

1. A FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS E A SUA EVOLUÇÃO ...................................................................................................................... 10

1.1. A problemática da conceituação dos direitos humanos .............................................. 10

1.1.1. Formulações teóricas sobre a fundamentação dos direitos humanos................. 14

1.1.1.1. Fundamentação jusnaturalista ........................................................... 16

1.1.1.2. Fundamentação historicista ............................................................... 20

1.1.1.3. Fundamentação ética......................................................................... 25

1.1.1.4. Elementos comuns às diferentes teorias sobre a fundamentação dos

direitos humanos................................................................................ 27

1.1.2. Direitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais ........................ 35

1.2. Positivação e crise de eficácia dos direitos humanos na modernidade........................ 38

2. DIREITOS HUMANOS E GLOBALIZAÇÃO ............................................................ 45

2.1 Raízes históricas da globalização. .............................................................................. 46 2.1.2. Globalização ou mito conveniente?................................................................. 49

2.1.3. Globalização, Mundialização e os traços gerais de uma conceituação desses

fenômenos ....................................................................................................... 53

2.2 Dimensões do processo de globalização..................................................................... 56

2.3 O custo social da globalização e seu impacto sobre os direitos humanos .................... 59

3. A PROBLEMÁTICA DA UNIVERSALIZAÇÃO E EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS

HUMANOS ........................................................................................................................ 66

3.1. As resistências culturais opostas à efetivação dos direitos humanos .......................... 67

3.2. Os fundamentos teóricos de uma categoria universal de direitos humanos ................ 72

3.3. A busca da eficácia dos direitos humanos na sociedade global e sua realização nas

ordens jurídicas nacionais e internacionais................................................................ 81

CONCLUSÃO.................................................................................................................... 88

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 93

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem por objeto o estudo dos fundamentos teóricos que problematizam

os direitos humanos, como categoria universal, no quadro da evolução histórica e diante do

processo de globalização, com o intuito de identificar os mecanismos que possam garantir o

seu respeito e efetivação.

Essa análise pretende colaborar com a discussão sobre a necessidade de uma nova

forma de ordem jurídica, cosmopolita, metaconstitucional, capaz de garantir a observância e

efetivação dos direitos humanos na sociedade global. Para tanto, buscar-se-ão identificar os

fundamentos teóricos que possam alçar os direitos humanos a um patamar de universalidade

que seja capaz de dialogar e ser aplicada dentro das diferentes culturas.

A pesquisa do tema é relevante no contexto social contemporâneo, uma vez que o

estudo dos marcos teóricos sobre o assunto permitirá o desenvolvimento de argumentos

justificadores da criação de instituições aptas a corrigir as crescentes violações aos direitos

humanos, em especial, em face dos impasses e os efeitos nefastos trazidos pelo processo de

globalização.

O assunto, dentro do Programa de Mestrado da Universidade Estácio de Sá, insere-se

na linha de pesquisa: Direitos Fundamentais e Novos Direitos e na área de concentração:

Direito Púbico e Evolução Social, já que busca investigar a possibilidade da construção

teórica e prática de uma dimensão universal dos direitos humanos e porque o seu

desenvolvimento será feito por um viés hermenêutico-crítico da crise do direito na

modernidade, buscando-se encontrar novas formas de concretização dos direitos humanos nas

diversas culturas.

O método científico utilizado para o desenvolvimento dessa dissertação é o indutivo1,

utilizando-se a documentação indireta, através da consulta em bibliografia de fontes primárias

e secundárias de autores nacionais e internacionais, bem como de publicações avulsas de

revistas especializadas na área de pesquisa, textos normativos nacionais e internacionais.

Adicionalmente, utiliza-se a pesquisa de campo em comunidades indígenas, situadas no sul do

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Brasil, a fim de avaliar as dimensões da dignidade da pessoa humana na cultura tribal em

contraste com a cultura ocidental e verificar se existe a possibilidade de se defender a

existência de direitos humanos universais, inclusive nessas culturas.

A investigação do tema será desenvolvida em três partes: 1º) A Fundamentação Teórica

dos Direitos Humanos e a sua Evolução; 2º) Direitos Humanos e Globalização e 3º) A

Problemática da Universalização dos Direitos Humanos.

No primeiro capítulo serão estudados os problemas que envolvem o conceito, a

fundamentação e a evolução dos direitos humanos na história ocidental, colocando-se em

relevo o seu processo de positivação e a acentuação da crise de eficácia que passou a enfrentar

ao ser dogmatizado. Para tanto, delimitar-se-ão as dificuldades teóricas e práticas que existem

em torno do conceito de direitos humanos, listando-se a evolução histórica das diversas

propostas que buscam fundamentar a definição dessa categoria. Em seguida, listar-se-ão os

elementos comuns às diversas concepções, para o fim de se estabelecerem os contornos

necessários à compreensão do conteúdo dos direitos humanos no contexto contemporâneo.

No segundo capítulo, examinar-se-á o surgimento e o desenvolvimento do fenômeno

da globalização, procurando identificar suas principais características e desdobramentos no

âmbito político e social, especialmente no que diz respeito aos direitos humanos.

Isso será feito pelo estudo dos motivos históricos que levaram ao surgimento do

processo de globalização, analisando-se os argumentos produzidos a respeito da principal

divisão teórica que existe sobre o tema, no sentido de ser um processo inédito na história da

humanidade ou, ao contrário, representar apenas um mito, uma construção ideológica que

materializa a continuidade evolutiva do capitalismo. Além disso, abordam-se os traços gerais

de uma conceituação desse fenômeno, estabelecendo-se a distinção semântica entre

globalização e mundialização, com o objetivo de eleger o alcance que se pretende empregar

ao instituto nessa pesquisa.

Realiza-se, também, uma análise sobre as dimensões do processo de globalização, com

o fim de colacionar elementos que tornem possível o conhecimento da sua natureza, alcance,

relevância e conseqüências sociais, bem como da influência que exerce sobre os direitos

1 A utilização desse método permite demarcar e identificar as partes de um fenômeno para chegarmos a conclusões gerais. (Conceito extraído de MEZZAROBA, Orides César Luiz; MEZZAROBA, Cláudia. Manual de Metodologia da Pesquisa no Direito. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 62)

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humanos.

Por fim, estudar-se-á o custo social da globalização e os impactos que tem acarretado

aos direitos humanos, buscando-se encontrar as possíveis formas de proteção e respeito dessa

categoria.

No terceiro e último capítulo, analisar-se-ão os fundamentos teóricos e práticos de

uma possível categoria universal de direitos humanos, capaz de influenciar e condicionar as

diversas ordens jurídicas nacionais e internacionais, verificando as formas que podem garantir

o seu respeito e efetivação. Para tanto, estudar-se-ão os problemas culturais opostos à

universalização dos direitos humanos, expondo-se os argumentos teóricos dos autores que

defendem a relatividade cultural desse instituto, trabalhando-se em especial com as teses que

sustentam a impraticabilidade de um monismo moral/cultural.

Além disso, essa abordagem será complementada através do estudo de como os valores

afetos aos direitos humanos são entendidos nas culturas: africanas, confucionistas, islâmicas e

judias, a fim de se examinar a existência de pontos de contato que possam contribuir para a

concretização desses direitos.

Por outro lado, também serão abordadas as teorias que sustentam a universalização dos

direitos humanos, colacionando-se argumentos filosóficos, antropológicos e psicológicos,

com o intuito de verificar a possibilidade da construção de uma categoria de direitos baseada

em traços comuns, inerentes a todos os indivíduos, independentemente da cultura em que

estejam inseridos.

Como fechamento, busca-se identificar as formas de desenvolvimento de uma

objetivação jurídica metaconstitucional dos direitos humanos, baseada em valores morais

universais, que seja capaz de influenciar e condicionar os diversos níveis legislativos,

garantindo o respeito e efetivação desses direitos no atual contexto globalizado.

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CAPÍTULO I

1. A FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS E A SUA EVOLUÇÃO

O presente capítulo tem por objetivo abordar o desenvolvimento dos fundamentos

teóricos dos direitos humanos, com especial destaque para as dificuldades que historicamente

surgiram e ainda estão presentes na busca de sua efetivação. Durante essa análise, colocar-se-

á em relevo o processo de positivação dos direitos humanos e a correspondente acentuação da

crise de eficácia que passou a enfrentar ao ser dogmatizado.

Para tanto, o assunto foi dividido em dois tópicos: 1º) A problemática da conceituação e

da fundamentação dos Direitos Humanos; e a 2º) Positivação e crise de eficácia dos direitos

humanos na modernidade.

No primeiro tópico delimitar-se-ão as dificuldades teóricas e práticas que existem em

torno do conceito de direitos humanos, relacionando-se a evolução histórica das diversas

propostas que buscam fundamentar a definição dessa categoria. Em seguida, listar-se-ão os

elementos comuns às diversas concepções, para o fim de se estabelecerem os contornos

necessários à compreensão do conteúdo dos direitos humanos no contexto contemporâneo.

No segundo tópico do capítulo, identificar-se-ão os motivos pelos quais o processo de

positivação dos direitos humanos não foi capaz de garantir a sua eficácia, gerando a crise

desse instituto, que coincidiu com o próprio estado de dúvidas e incertezas vivenciados pelo

sistema positivista do direito. Dar-se-á especial ênfase ao estudo do desenvolvimento dos

direitos humanos no século XX, em razão da situação paradoxal ocorrida nesse período

histórico, em que se buscou ressaltar a necessidade de respeito à vida humana, por meio da

positivação dessa categoria, ao mesmo tempo em que a dignidade do homem sofreu as mais

horrendas violações, durante as duas grandes guerras mundiais.

1.1. A problemática da conceituação e da fundamentação dos Direitos Humanos

A busca da formulação de uma conceituação para os direitos humanos, por meio do

estudo das diversas teorias existentes sobre o tema, leva à constatação preliminar de que não

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existe uma concepção ou fundamentação pacífica na teoria política, ética e jurídica

contemporânea2. Essa imprecisão conceitual decorre de diversos fatores. Primeiro, pelo uso

indiscriminado e alargado da expressão direitos humanos que é empregada em vários níveis,

que vão das manifestações políticas, jurídicas, sociais, até as manifestações culturais.

Segundo, porque o instituto muitas vezes é usado para externar o sentimento de indignação

frente a situações de injustiça e violência. Terceiro, porque não existem fundamentos comuns

que possam solidificar e garantir a sua concepção e prática, uma vez que as teorias existentes

são, em sua maioria, contraditórias.3

Acrescenta-se a essas dificuldades o fato de que, muitas vezes, na busca de operar-se

com realidades tangíveis, alguns pesquisadores definem os direitos humanos com a

apresentação de uma série de objetos ou coisas que têm relação com esse instituto, mas que

não representam uma conceituação. Buscam simplificar a concepção aduzindo que, na prática,

os direitos humanos são aqueles estabelecidos nos instrumentos jurídicos internacionais,

como, por exemplo, o texto da Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU

(Organização das Nações Unidas). Essa postura, no entanto, mostra-se limitada e insuficiente

para explicar a conceituação do instituto. Isso ocorre porque o rol de objetos catalogados nas

declarações internacionais sobre direitos humanos é incompleto, pois não engloba todas as

categorias que podem ser incluídas nesse conceito. Ademais, para se chegar à conclusão de

que esses objetos são direitos humanos, é necessária uma reflexão sobre o texto desses

tratados, o que mostra a existência de uma idéia previamente estabelecida ou, ao menos,

intuída, sobre o significado dessa expressão. Esses fatos demonstram a existência de algumas

propriedades, comuns a todos esses objetos e anteriores a eles, que formam o real conceito

desse instituto.4

Assim, a busca de uma concepção deve partir não da exemplificação de casos práticos

que são considerados direitos humanos, mas da identificação das notas constitutivas daqueles

elementos que formam e identificam essa categoria. Pérez-Luño adverte que nessa jornada

não se deve cair na armadilha da criação de definições nominais estipulativas (simples

convenções sobre usos futuros de um termo) ou lexicais (noções que tendem a abranger todos

os possíveis significados de uso de uma palavra a partir da experiência de seus usos 2 LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 6. ed. Madrid: Tecnos, 1999, p. 22. 3 BARRETO, Vicente. Os fundamentos éticos dos direitos humanos. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 343, 1998.

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lingüísticos), pois essas técnicas criam concepções arbitrárias e fragmentadas e que não são

adequadas para delimitar categorias éticas e jurídicas, como são os direitos humanos, as quais

atuam em múltiplos e diferentes contextos lingüísticos que se modificam no tempo e no

espaço.5

Não obstante essas dificuldades, boa parte dos doutrinadores que pesquisam essa

temática sustenta que o ponto de partida para a construção de uma conceituação desse

instituto está no reconhecimento de que os direitos humanos são direitos que as pessoas

possuem pelo simples fato de serem seres humanos6. Eles consistem em direitos morais

que os indivíduos compartilham entre si, em igualdade e independentemente de sexo,

raça, nacionalidade ou condição econômica7, e que são atribuídos sem a necessidade de

uma prévia existência de pactos pessoais ou de preceitos legais8.

Norberto Bobbio9 opõe-se a esse ponto de partida defendendo que a busca de qualquer

fundamento absoluto é uma ilusão. Embasa sua assertiva apontando para o vazio de

significado dessa definição (direitos humanos são os que cabem ao seres humanos enquanto

seres humanos) que considera tautológica, pois está desprovida de qualquer elemento que

permita caracterizar tais direitos. Critica também as conceituações formais (os direitos

humanos são os direitos que pertencem aos seres humanos e dos quais nenhum ser humano

pode ser privado) que se limitam a apresentar mais um estatuto desejado ou proposto para

esses direitos do que apontar o real significado de seu conteúdo. Por fim, o autor rejeita as

concepções teleológicas (direitos humanos são aqueles imprescindíveis para o

desenvolvimento do homem e da civilização) que utilizam valores suscetíveis de diversas

interpretações. Nesse sentido, vê-se a pertinência da crítica de Bobbio, visto que as definições

combatidas esboçam tão somente a representação de categorias genéricas, sem indicar,

entretanto, o conteúdo dessas categorias. Isso é facilmente verificado quando, a partir das

conceituações atacadas, procura-se descobrir quais seriam os direitos que os indivíduos

possuem pelo simples fato de serem seres humanos. Os conceitos propostos não respondem a 4 PEREZ-LUÑO, Antônio Enrique. Concepto y concepción de los derechos humanos: anotaciones a la ponencia de Francisco Laporta. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2001, p. 48. 5 Ibidem, p. 49. 6 DONELLY, Jack. Universal Human Rights in Theory and Practice. 2. ed. New York: Cornell University, 2003, p. 07. 7 ISHAY, Micheline. The history of human rights: from ancient times to the globalization era. California: University of California Press, 2004, p. 03. 8 DIAS, Maria Clara. Direitos Humanos. In: BARRETO, Vicente (Coord.). Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 246/7. 9 BOBBIO, Norberto. Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 10. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 17.

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essa questão, mostrando-se, por conseguinte, desprovidos de um sentido concreto.

Deve-se salientar, contudo, que mesmo a busca do conteúdo valorativo dessa concepção

é árdua, uma vez que as categorias normalmente utilizadas para referenciar os direitos

humanos possuem, por sua própria natureza, valores éticos e morais, o que acarreta uma

pluralidade de significados. Observe-se o exemplo da inclusão da categoria dignidade humana

no conteúdo do conceito de direitos humanos. O raciocínio no sentido de que deve existir um

conjunto mínimo de direitos (direitos humanos) que permitam às pessoas gozarem de uma

vida digna é amplamente aceito na doutrina como um dos valores nucleares dos direitos

humanos10. Contudo, a utilização dessa categoria (dignidade humana) traz consigo a

dificuldade no sentido de que não há consenso acerca do significado e da extensão do seu

conteúdo11. Isso ocorre porque os elementos considerados fundamentais para uma vida digna

em algumas culturas, como as das sociedades do ocidente, por exemplo, podem ser tidos

como não essenciais para outras, como nas sociedades orientais, criando polêmicas muito

ricas sob o aspecto acadêmico, mas que materializam um paradoxo de difícil solução para sua

efetivação prática.

Essa abstração das categorias que compõem o conteúdo dos direitos humanos

desencadeia outro problema extremamente polêmico: é possível desenvolver um conteúdo

moral universal, aplicado a todas as culturas, para o fim de se construir um conceito de

direitos humanos? A busca de uma resposta para essa questão gerou o desenvolvimento de

duas propostas teóricas antagônicas: a universalista e a relativista.

A proposta universalista dos direitos humanos defende, em síntese, a aplicação e

respeito dos conteúdos morais dessa categoria por todos os tipos de Estados e culturas,

independentemente dos valores que ali sejam praticados, uma vez que os direitos humanos

são inatos, fundamentais e conferidos aos indivíduos pelo simples fato de serem seres

humanos12. Um dos argumentos mais fortes utilizados pelos defensores dessa tese está no fato

de que somente a universalização dos direitos humanos será capaz de resguardar as vítimas de

práticas estatais ou sociais autoritárias e antidemocráticas que hoje estão em situação de total

10 FERNANDEZ, Eusébio. Teoria de la Justicia y Derechos Humanos. Madrid: Debate, 1991, p. 78. 11 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.38. 12 GOFFREDO, Gustavo Sénéchal et al. Direitos Humanos: um Debate Necessário. São Paulo: Brasileira, 1989, p. 110.

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desamparo e desespero13.

A proposta relativista, por sua vez, resiste a essa idéia, sustentando que é impraticável

um monismo moral/cultural, haja vista que os valores morais são variáveis e peculiares a cada

cultura e porque uma sociedade somente pode ser interpretada e julgada em seus valores, sob

o prisma desses próprios valores14. Ademais, acusa os defensores do universalismo de

utilizarem o discurso dos direitos humanos como forma de imposição do imperialismo

cultural do Ocidente, que tenciona uniformizar alguns valores de seu interesse, sem respeitar

as outras culturas e crenças, que têm o direito à não intromissão15.

Como se vê, tanto a corrente universalista quanto a relativista apresentam fortes

argumentos que têm acirrado cada vez mais o debate e dificultado o consenso acerca da

definição dos direitos humanos. Essa complexidade, no entanto, não deve ser vista como um

elemento impeditivo no desenvolvimento desse instituto, mas sim como um desafio de

gerenciamento de paradoxos, como refere Luhmann16, que deve ser enfrentado e superado

para que se alcance a compreensão e a efetivação dos direitos humanos.

Por tais motivos é que surgiram diversas formulações teóricas, de matizes

jusnaturalistas, historicistas, éticas, entre outras, todas desenvolvidas com o intuito de

fundamentar e superar os entraves complicadores do estabelecimento de uma definição.

Diante dessa diversidade de concepções que, em muitos aspectos, são antagônicas, o caminho

mais prudente a seguir para se identificarem os elementos formadores do conceito de direitos

humanos passa pela análise dos principais argumentos dessas diversas teorias, buscando-se

relacionar os elementos que possuem em comum.

1.1.1. Formulações teóricas sobre a fundamentação dos direitos humanos

Massini-Correas ensina que, para se fundamentar um instituto, é necessário construir um

suporte teórico e uma justificação racional que mantenham e sustentem uma afirmação.17 Por

13 SOUZA, Ielbo Marcus Lobo e KRETSCHMANN, Ângela. A universalidade dos direitos humanos no discurso internacional: o debate continua. In: ROCHA, Leonel Severo e STRECK, Lênio. Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito: Mestrado e Doutorado. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 122-124. 14 BOOT, Ken. Three Tyrannies. In: DUNNE, Tim e WHEELER, Nicholas. Human Rights in Global Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 47-64. 15 HÖFFE, Otfried. Derecho Intercultural. Tradução Rafael Sevilla. Barcelona: Gedisa, 2000, p. 172/3. 16 LUHMANN, Niklas. O paradoxo dos direitos humanos e três formas de seu desdobramento. Revista da ESMEC, Fortaleza, v. 3, n. 1, p. 154, 2000. 17 MASSINI-CORREAS, Carlos Ignácio, Filosofía del derecho: El derecho y los derechos humanos. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994, p. 104/5.

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isso, a fundamentação do conceito de direitos humanos deve ser desenvolvida a partir de

justificações racionais, uma vez que somente a sustentação baseada na razão será capaz de

manter qualquer concepção que explique a existência e delimite a extensão desse instituto.

Por tais motivos não se pode pretender buscar a conceituação e a fundamentação dos

direitos humanos no direito positivo nacional ou internacional, como faz Norberto Bobbio,

que, embora reconheça a existência da problemática que envolve a construção de uma

fundamentação dos direitos humanos, afirma que essa questão perdeu sentido e restou

resolvida com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia-

Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, haja vista que representou um

consenso geral acerca da validade de um sistema axiológico universal.18

A tese de Bobbio, embora tenha o mérito de propor a discussão mais focada sobre os

meios de respeito e efetivação dos direitos humanos do que a própria fundamentação do

instituto, apresenta alguns problemas que enfraquecem a sua argumentação. Primeiro, não se

pode entender que o consenso internacional sobre a necessidade de reconhecer e proteger os

direitos humanos, materializado na promulgação da Declaração Universal dos Direitos

Humanos, seja fruto de uma concepção unânime de seu significado. Este tratado internacional

não define ou fundamenta direitos humanos, apenas apresenta um rol exemplificativo dessa

categoria de direitos e pretende dar-lhe especial proteção. Por isso, é impróprio afirmar que,

com a promulgação desse tratado internacional, o problema da fundamentação restou

superado.

Além disso, equivoca-se o autor ao pretender transferir a conceituação e a

fundamentação dos direitos humanos para a positivação na esfera internacional. É que a

literalidade da lei não tem fundamento em si própria, porquanto é resultado de uma realidade

alheia que, influenciada por certos fatores, culmina na produção da norma jurídica.19 Deixar a

definição de um instituto tão importante como os direitos humanos ao alvedrio do direito

positivo é correr o risco de simplesmente extinguir qualquer possibilidade de respeito e

efetivação dessa categoria, pois é comum ocorrer que as normas positivadas, influenciadas

por circunstâncias políticas, econômicas ou sociais, acabem por se dissociar dos valores éticos

e morais. Para ilustrar essa argumentação lembra-se o exemplo das atrocidades cometidas

durante a 2ª guerra mundial, quando o Estado nazista, utilizando-se das normas jurídicas 18 BOBBIO, op. cit., p. 26.

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criadas para sustentar o sistema, perpetrou as mais horrendas violações aos seres humanos,

dentro do mais fiel e estrito cumprimento da lei. Esse fato histórico ilustra bem o resultado

que o vazio de uma fundamentação sólida para os direitos humanos pode produzir. 20

Por fim, afasta-se a possibilidade de encontrar a fundamentação desse instituto nas

normas contidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, porque, para se chegar à

conclusão de que o texto desse tratado pode ser reconhecido como sendo direitos humanos, é

necessário um raciocínio reflexivo, baseado em valores racionais previamente estabelecidos.

Isso prova que a fundamentação não está na norma, mas nos parâmetros anteriores à

positivação que representam os argumentos lógico e racional justificadores e sustentadores da

afirmação de que o texto desse tratado internacional contém um rol de direitos humanos.

Por tudo isso, é tão importante a construção de uma base teórica racional para essa

categoria, pois tem serventia tanto como instrumento de legitimidade dos ordenamentos

jurídicos contemporâneos quanto como parâmetro para a busca de sua efetividade.

Nesse sentido, a procura epistemológica de um embasamento racional para os direitos

humanos fez surgir vários tipos de propostas teóricas. Para os fins delimitados nesse trabalho,

adotar-se-á, como ponto de partida, a sistematização elaborada por Euzébio Fernandez21 que

sintetiza essas diversas teorias em três grupos essenciais: 1ª) a fundamentação

jusnaturalista: na qual estão reunidas as teses que equiparam os direitos humanos aos direitos

naturais; 2ª) a fundamentação historicista: na qual se agrupam os autores que consideram os

direitos humanos como direitos históricos; 3ª) A fundamentação ética: na qual são listados os

principais argumentos daqueles que consideram os direitos humanos como direitos morais.

1.1.1.1. Fundamentação Jusnaturalista

A teoria do jusnaturalismo ou direito natural desenvolveu-se dentro de duas grandes

correntes históricas: a primeira, conhecida como escola clássica, teve como expoentes os

pensamentos de Aristóteles e São Tomás de Aquino, além de sofrer influências do direito

romano e a segunda, conhecida como direito natural moderno de corte racionalista, foi

19 SALDAÑA, Javier. Notas sobre la fundamentación de los derechos humanos. Boletín Mexicano de Derecho comparado. Universidad Nacional Autónoma de México, México, n. 96, p. 949, septiembre-diciembre, 1999. 20 BARRETO, op. cit., p. 347. 21 FERNANDEZ, op. cit., p. 84.

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desenvolvida por filósofos como Grotius, Pufendorf, Hobbes, Locke e Kant.22

A escola clássica do direito natural teve seu berço na Grécia Antiga, onde se

desenvolveu a idéia da existência de leis não escritas (nomos ágraphon) que consistiam tanto

no costume juridicamente relevante quanto nas leis universais de caráter religioso, gerais e

absolutas que eram respeitadas uniformemente por todas as nações.23 A partir dessa crença, o

filósofo Heráclito de Éfeso24 e o escritor Sófocles25 formularam vários questionamentos sobre

a possibilidade da existência de um direito superior à legislação positiva estabelecida pela

vontade do soberano.26 Como marco dessa idéia, tem-se a famosa Tragédia de Antígona, cujo

tema central é a discussão entre Antígona que quer enterrar o seu irmão Polinices,

considerado um traidor do reino, e Creonte, rei de Tebas, que havia decretado que os

cadáveres dos inimigos da cidade ficariam insepultos e sem os ritos fúnebres determinados

pelo costume, impondo a pena de morte para quem desobedecesse ao decreto. Para legitimar o

direito de enterrar o seu irmão, Antígona alega a existência de leis não escritas, oriundas dos

deuses, imutáveis por natureza, que não são de ontem ou de hoje, e que lhe autorizava a levar

adiante o funeral, pois seriam uma espécie de direito superior.27 A discussão travada nessa

tragédia grega evidenciou o desenvolvimento da idéia da existência de um sistema de normas

(leis divinas) ou princípios superiores ao direito criado pelo soberano ou pelo Estado que

revelariam um ideal de justiça universal e imutável.

Aristóteles28 trouxe novas contribuições para a evolução desse pensamento, afastando o

caráter religioso das leis não escritas. Ele defendia a existência de uma ordem superior e

universal de normas (chamadas por ele de lei comum) que exprimiam um ideal de justiça,

22 CARPINTERO-BENÍTEZ, Francisco. Historia del derecho natural: um ensayo. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1999. 23 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.13/4. 24 Heráclito de Éfeso: viveu em Éfeso e pertencia à família dos fundadores da cidade. Influenciou aspectos importantes do pensamento de Platão e da doutrina dos filósofos estóicos. Defendia a idéia de que a explicação das coisas deve ser buscada no próprio íntimo de cada um e que ao invés de uma única e imperecível entidade, o mundo é formado por um incessante conflito de opostos que se transformam constantemente uns nos outros. Fonte: RIBEIRO JR., W.A. Heráclito de Éfeso. Portal Graecia Antiqua, São Carlos. Disponível em http://greciantiga.org/fil/fil05d.asp. Data da consulta: 03.05.2007. 25 Sófocles: o segundo dos poetas trágicos canônicos, foi em vida o mais bem sucedido autor de tragédias de sua época, no século -V. Fonte: Id. Ibid. Disponível em http://greciantiga.org/lit/lit05b.asp. Data da consulta: 03.05.2007. 26 BEDIN, Gilmar Antônio. Direito Natural. In: BARRETO, Vicente (coord.). Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar. 2006, p. 240. 27 ALMEIDA, G. Antígone. In: G. ALMEIDA & T. VIEIRA, Três Tragédias Gregas. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 15-130. 28 BITTAR, Eduardo C.B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento aristotélico. Barueri: Manole, 2003. p. 1319-1324.

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proclamado e aceito por todos, que seria encontrado na simples observação racional da

natureza das coisas. O fundamento dessa categoria de direitos estaria, portanto, na natureza

(physis).

Mais tarde, o direito romano também veio contribuir para o desenvolvimento dessa

noção com a criação do instituto jurídico chamado jus naturalis (direito natural). Ele surge

diante da necessidade do império lidar com a diversidade populacional e cultural das vastas

regiões conquistadas e que abrigavam quase 50 milhões de indivíduos. Os romanos

procuraram determinar um conjunto de valores, denominados jus naturalis, comuns a todos os

seres humanos, independentemente de sua cultura, crença ou maneira de viver.29

Um novo paradigma surge, algum tempo depois, com o desenvolvimento da doutrina

cristã, que traz uma nova concepção do homem, equiparando-o à imagem e semelhança de

Deus. A partir daí, a escola clássica do direito natural passou por uma nova mudança de

fundamentação, especialmente medrada na idade média, pois seus teóricos passaram a utilizar

a visão teocêntrica do mundo para definir o ideal de justiça. Destacou-se, nesse período, o

pensamento de São Tomás de Aquino que defendia a existência de um lugar natural para

todas as coisas no mundo, em virtude da determinação de uma ordem divina da natureza

(vontade de Deus).30

A partir do século XVII, uma nova fase do direito natural é inaugurada, marcando o

início da escola jusnaturalista moderna de corte racionalista. Os doutrinadores desse

período voltaram o seu foco ao ser humano, para colocá-lo na posição de centro do universo

e, como tal, possuidor de um conjunto de direitos naturais inatos. Reconhecia-se ao homem o

direito de ter alguns bens atribuídos, em razão de sua natureza humana31. John Locke, um dos

maiores idealizadores desse novo pensamento, defendia a existência de um conjunto de

direitos que seriam inerentes a todos os seres humanos, indistintamente, e que não seriam

transferidos para o Estado quando do pacto social que lhe deu origem.32 Também nesse

sentido, têm-se as contribuições de Kant33 que concebia cada indivíduo como “um fim em si

mesmo” e, por isso, provido de dignidade, o que impede o aviltamento da pessoa à condição

29 SCHILING, Voltaire. As Grandes Correntes do Pensamento: Da Grécia Antiga ao Neoliberalismo. Porto Alegre: AGE, 1998. 30 COMPARATO, op. cit., p.13/4. 31 SALDAÑA, op. cit., p. 952. 32 BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Brasília: UnB, 1997. 33 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. In: Os pensadores – Kant (II). Tradução de Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 134.

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de coisa.

Como se vê, nas duas proposições, tanto na escola clássica quanto na escola moderna, o

direito era visto como um sistema formado por dois fatores: um natural, que reconhecia aos

indivíduos a posição de sujeito de direitos universais, anteriores, superiores e imutáveis, e

outro positivo, formado por regras inferiores, derivadas e inspiradas nos fatores naturais que

representavam um ideal de justiça.34

Eusébio Fernandez35 salienta que foi a partir do desenvolvimento das idéias do

jusnaturalismo racionalista que se passou, pela primeira vez, a conceituarem-se os direitos

humanos como direitos naturais. Isso se deu pelo fato de que essa nova corrente do direito

natural desenvolveu uma teoria dos direitos subjetivos (direito como faculdade inerente ao

sujeito), afastando-se da lex naturalis moralista medieval e das jus naturales do direito

romano, característica que influenciou marcantemente as declarações de direitos do século

XVIII36.

Com base nessas formulações, os defensores da fundamentação jusnaturalista passaram

a equiparar os direitos humanos ao direito natural.37 Como conseqüência dessa paridade, os

direitos humanos passaram a ser concebidos como uma categoria inerente à natureza

humana que possui validade e fundamento em si mesmo, razão pela qual sua existência

independe do reconhecimento Estatal, cujo papel não é o de legitimá-los, mas tão só o de

reconhecê-los e protegê-los.

Essa proposta sofreu várias críticas pelo fato da sua ingênua pretensão em atribuir ao

direito natural uma superioridade jurídica ao direito positivo, quando, a bem da verdade, são

categorias distintas e o único fundamento que se poderia utilizar para essa abordagem seria o

argumento ético. Além disso, a busca dessa categoria de direitos decorrentes da natureza

humana é uma tarefa obscura e turbulenta, visto que essa idéia é imprecisa e varia de acordo

com o conjunto axiológico de quem a descreve e do momento histórico em que a análise é

construída. Outro complicador, segundo Pérez-Luño, está na pretensão de criar uma categoria

de direitos humanos universais, absolutos e imutáveis. O autor adverte que isso acarretaria a

34 HERMÁNDEZ MARTÍN, Ramón. Historia de la filosofía del derecho contemporánea. Madrid: Tecnos, 1986, p. 63. 35 FERNANDEZ, op. cit., p. 89/90. 36 Declaração de Direitos da Virginia (12/06/1776), Declaração de Independência dos Estados Unidos (04/07/1776), Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (29/08/1789). 37 SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos Humanos ou Direitos Fundamentais? A política de um pseudoproblema. Revista Latino Americana de Direitos Fundamentais, Belo Horizonte, p. 429, 2004.

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criação de um código de valores impessoais, baseado em uma ética comum e geral que

culminaria por desconectar os direitos humanos de seu suporte antropológico, desligando-os

definitivamente dos contextos sociais e históricos. Como conseqüência, enfrentar-se-íam

dificuldades práticas intransponíveis sempre que houvesse conflitos entre dois direitos

humanos.38 É que, como eles são concebidos na fundamentação jusnaturalista como direitos

imutáveis e absolutos, não seria possível resolver um problema de conflito, pois a aplicação

do princípio da ponderação de bens39, que implica a relativização da eficácia de cada um dos

direitos em conflito para solucionar o caso concreto, restaria inviabilizada.

1.1.1.2. Fundamentação Historicista

Outra tese que busca construir os elementos necessários para o estabelecimento da

concepção dos direitos humanos é a fundamentação historicista. Ela foi defendida pelo

filósofo italiano Benedetto Croce40, numa investigação que elaborou para a UNESCO, em

1947, sobre os fundamentos da Declaração de Direitos do Homem. Nesse trabalho, ele

sustentou o abandono da tese jusnaturalista de considerar os direitos humanos como

universais, para compreendê-los como direitos do homem na história e que surgem para o

atendimento de suas necessidades, contextualizadas em cada momento específico. Por essa

ótica, os direitos humanos não decorreriam da natureza humana, mas das necessidades

humanas, que são variáveis e relativas a cada conjuntura histórica e de acordo com os desafios

sociais de um dado momento. Pérez-Luño41 acrescenta que nessa concepção esses direitos

seriam desenvolvidos em consonância com a evolução social, tendo como norte as

necessidades humanas de dignidade, liberdade e igualdade, construídas dentro de cada

momento histórico.

Com tais argumentos, os defensores dessa corrente afirmam que os direitos humanos

não são anteriores ou superiores a constituição da sociedade, mas representam o resultado da

sua evolução e transformação. A origem desses direitos estaria nas circunstâncias sociais

históricas que culminaram com a sua criação, de acordo com a capacidade que cada sociedade

possui de atender as necessidades humanas surgidas em seu bojo. Reforçam tal concepção

38 PEREZ-LUÑO, op. cit., p. 53/4. 39 ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 1993, p. 89/90. 40 CROCE, Benedetto. Declarações de Direitos – Benedetto Croce, E. H. Carr, Raymond Aron. 2. ed. Brasília: Senado Federal, Centro de Estudos Estratégicos, Ministério da Ciência e Tecnologia, 2002, p. 17-19. 41 PÉREZ-LUÑO, Antônio Enrique. Derechos humanos em la sociedade democratica. Madrid: Tecnos, 1984, p. 48.

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recordando os fatos históricos que culminaram na criação das diversas gerações de direitos

humanos e que contribuíram, gradativamente, para o processo de alargamento objetivo e

subjetivo desses direitos.42 Lembram que somente com o aponte das revoluções burguesas do

século XVIII, berço da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é que foram surgir os

direitos humanos de primeira geração (chamados de direitos negativos) que externavam uma

necessidade social surgida naquele momento histórico, representada pelo sentimento burguês

de levar adiante seus negócios sem a interferência do Estado. Em decorrência dessas

circunstâncias específicas, consagraram-se os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à

segurança e à propriedade. Já a segunda geração de direitos humanos surgiu como resultado

da luta social pela igualdade real e da exigência de prestações positivas do Estado,

incorporando-se direitos sociais, econômicos e culturais. Por fim, a terceira geração sobreveio

da necessidade de a humanidade corrigir e prevenir as mazelas perpetradas pela 2ª guerra

mundial, afastando-se o foco do indivíduo para buscar a salvaguarda de toda a humanidade.

Nesse contexto histórico e social é que surgiram os direitos coletivos e difusos, tais como o de

proteção ao meio ambiente, à paz, à livre determinação dos povos, ao patrimônio comum da

humanidade, entre outros.43

Norberto Bobbio acrescenta outros elementos para a fundamentação histórica dos

direitos humanos, aduzindo que os valores de sustentação desses direitos não são alcançados

objetivamente, mas decorrem de um consenso geral acerca da sua validade, que é atingido em

um determinado período da história. A lógica desse autor é desenvolvida a partir da premissa

de que os direitos humanos não são passíveis de um fundamento absoluto, irrefutável. Isso

ocorre porque eles são variáveis e influenciados diretamente pelas mudanças das condições

históricas. Ele busca demonstrar essa afirmação lembrando que alguns dos direitos declarados

absolutos nas revoluções burguesas do século XVIII, como o direito de propriedade, sofrem,

hoje, nos ordenamentos contemporâneos, diversas restrições. De igual modo, direitos sociais

nunca antes mencionados são privilegiados com ênfase nas declarações modernas. Esses fatos

reforçam o argumento no sentido de que não existem direitos humanos absolutos por

natureza, pois todos sofrem as influências e as relativizações que os contextos históricos

impõem. Além disso, alguns dos direitos compreendidos na própria Declaração de Direitos

42 MORAIS, José Luís Bolzan de. Direitos Humanos, Estado e Globalização. In: RÚBIO, David Sánchez; FLORES, Joaquín Herrera e CARVALHO, Salo (org.). Direitos Humanos e Globalização: Fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 121. 43 CHACON, Mario Pena; CRUZ, Ingread Fournier. Derechos Humanos y Médio Ambiente. In: BENJAMIN, Antônio Herman V. e MILARÉ, Edis (coord). Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n. 39, ano 10, p. 192/3, 2005.

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Humanos são incompatíveis entre si, como os de liberdades individuais44 (obrigações

negativas que implicam abstenção de interferência estatal) e os sociais45 (obrigações positivas

que exigem atuação e interferência do Estado nas relações individuais), demonstrando que a

própria fundamentação desses direitos é diversa (heterogênea). Em razão disso, torna-se

inviável defende um único fundamento para todos os tipos de direitos humanos. Deve-se, ao

contrário, buscar, em cada situação concreta, diversos fundamentos possíveis, de acordo com

o tipo de direito que se pretende proteger, norteando-se pela busca de sua efetiva realização.46

Bobbio encerra sua tese mostrando que a discussão sobre a natureza e o fundamento dos

direitos humanos perdeu importância e foi solucionada desde a aprovação da Declaração

Universal dos Direitos Humanos, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, pois

materializou um consenso geral, a partir daquele período histórico, acerca da validade de um

sistema de valores humanamente fundados. O autor defende que, a partir da promulgação

desse instrumento internacional, pode-se ter certeza de que os seres humanos compartilham,

pela primeira vez na história, de valores comuns e universais.47

Essa afirmação final é ratificada por Eduardo Rabossi48 ao sustentar que no mundo atual

não é mais necessário construir argumentos para afirmar a existência dos direitos humanos. O

que se deve perseguir agora é a promoção de soluções possíveis para as questões complexas,

mediante a análise e valoração dos fatos historicamente ocorridos.

Deve-se registrar que esses novos argumentos trazidos por Bobbio fizeram com que

alguns autores como Javier Saldaña49 e Pedro Serna-Bermúdez50 reconhecessem a criação de

um novo tipo de embasamento para os direitos humanos, o qual chamam de consensual, mas

que, a bem da verdade, deve ser incluso na proposta historicista, pois mantém a concepção

44 Como, por exemplo, o previsto no art. 17 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Toda a pessoa, individual ou colectiva, tem direito à propriedade”. 45 Como, por exemplo, o previsto no art. 29 da Declaração Universal dos Direitos Humanos que permite a relativização legal do exercício das liberdades: “(...) no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática”. 46 BOBBIO, Norberto. Sobre os Fundamentos dos Direitos do Homem. In: ____. Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 10. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 15-18. 47 _______. Presente e Futuro dos Direitos do Homem. In: ____. Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 10. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 25/6. 48 RABOSSI, Eduardo. El fenômeno de los derechos humanos y la possibilidad de um nuevo paradigma teórico. In: SOBREVILLA, David (comp.) El derecho, la Política y la Ética. México: Siglo XXI Editores, 1991, p. 205. 49 SALDAÑA, op. cit., p. 962. 50 SERNA-BERMÚDEZ, Pedro. Positivismo conceptual y fundamentación de los derechos humanos. Pamplona: EUNSA, 1990, p. 147.

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dos direitos humanos como direitos históricos.

Como se pode observar, a abordagem historicista dos direitos humanos tem o mérito de

descrever, de maneira precisa, a evolução e o desenvolvimento dessa categoria, oferecendo

uma visão geral acerca de quais foram as condições históricas que motivaram a aparição

desses direitos e do subseqüente reconhecimento dos mesmos nos textos jurídicos. Os

defensores dessa teoria compreendem os direitos humanos como históricos, não absolutos,

e, segundo Bobbio, carregados de valores que expressam uma concordância de idéias em

determinado período temporal. Os elementos comprobatórios eleitos para defesa dessa

teoria são as diversas declarações que, ao longo da história, representaram materialmente a

conformidade social com certos sistemas de valores humanos, sendo eleito como corolário

dessa lógica a Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma vez que representou o

primeiro sistema real de valores universais na história da humanidade, subjetivamente

acolhido por toda a humanidade no período histórico contemporâneo.

Contudo, Eusébio Fernandez51 opõe forte crítica a essa teoria por afastar a natureza

humana como fonte originária de identificação desses direitos, colocando, em seu lugar, a

sociedade. Salienta que não se pode negar que algumas categorias de direitos humanos foram

frutos de lutas sociais ocorridas em diversos momentos históricos, buscando atender

necessidades sociais surgidas naquele contexto, como, por exemplo, os direitos humanos

culturais e políticos. Entretanto, também não se pode ignorar que existem certos direitos,

diretamente ligados à natureza humana, como o direito à vida e à integridade física, que são

os mesmos desde o surgimento do homem e têm se perpetrado no tempo e no espaço sem

terem como fundamento o desenvolvimento social. Ao contrário, o progresso social culminou

por reafirmar a existência desses direitos. Assim, seria contraditório pretender defender a

existência de direitos humanos, fundamentais, que possam ser considerados relativos e

variáveis em cada momento histórico.

Também Javier Saldaña52 e Pedro Serna-Bermúdez53 apresentam objeções em relação a

essa proposta, em especial, contra o argumento consensualista, acrescentado por Bobbio.

Justificam suas oposições por entenderem que essa forma de fundamentação se afasta de

realidades objetivas para a defesa dos direitos humanos, quando pretende se alicerçar em

parâmetros que dependem de um acordo de vontades entre os membros de uma sociedade, 51 FERNANDEZ, op. cit., p. 89/90. 52 SALDAÑA, op. cit., p. 963.

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posto que essa exigência culminaria por relativizar essa categoria de direitos que seria

reduzida a uma simples ideologia.

A análise dessa proposta e das respectivas críticas leva a conclusão de que não se pode

negar que a visão histórica dos direitos humanos possui relevância e importância para o

entendimento da evolução e para a busca das formas de efetivação desses direitos. Todavia,

ela não se mostra suficiente para embasar todas as espécies de direitos humanos. Isso é

demonstrado quando se percebe que não foram os acontecimentos históricos ou um consenso

social em certo período que levaram a criação do direito à vida: o que houve foi um

reconhecimento de um valor inato a todos os seres humanos. Todo o indivíduo luta, até

mesmo instintivamente, desde o primeiro registro da espécie humana no planeta, pela sua

sobrevivência, pela sua vida. A evolução histórica da sociedade não outorgou esse direito aos

indivíduos para atender uma demanda social, mas apenas reconheceu a existência de algo que

decorre da própria natureza humana (a vida), criando diversas formas de proteção, ao mesmo

tempo em que foram se incorporando novos valores que buscaram alcançar a realização de

uma vida digna e plena, em diversas dimensões.

Além disso, a proposta historicista, quando vista sob a ótica do consenso social,

proposto por Bobbio, reduz os direitos humanos a uma simples ideologia de um grupo, que

pode sofrer alterações no tempo e no espaço, tornando-se vulnerável a diversas variáveis e

circunstâncias sociais. Essa permissiva culmina por enfraquecer a efetividade desses direitos,

pois nem sempre o consenso social preservará as minorias. Ao contrário, elas são geralmente

vítimas do consenso da maioria. Basta lembrar que a escravidão já foi um consenso histórico.

Acrescente-se a isso o fato de que, ainda hoje, em algumas culturas, é justamente o consenso

ideológico de um grupo dominante que reduz as mulheres a uma condição de inferioridade em

relação aos homens. Esses dois fatos provam que nem sempre a contingência histórica ou o

consenso social poderão servir de suporte para os direitos humanos, pois deixariam ao

desabrigo as minorias.

Por fim, destaca-se que não se está aqui negando a influência que o desenvolvimento

histórico da humanidade, nos diversos aspectos econômicos, políticos e culturais, trouxe para

a ampliação das dimensões de proteção da dignidade humana, através da incorporação

gradativa de novos tipos de direitos humanos. O que se quer ressaltar é que essa categoria de

direitos possui um núcleo essencial, composto de valores básicos que são o ponto de partida 53 SERNA-BERMÚDEZ, op. cit., p. 147.

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para a concepção da dignidade humana. Um exemplo disso é o direito à vida. Os

acontecimentos históricos não formam os fundamentos da criação desse direito básico, que é

inato a todos os seres humanos, mas, sem dúvida alguma, contribuíram para o seu respeito,

efetivação e ampliação, agregando e fazendo surgir novas formas de dimensões da dignidade,

nunca antes imaginadas. Assim, conclui-se que a contribuição da história está em manter

abertas e em constante expansão as possibilidades de realização da dignidade humana,

servindo de fundamento para a gestação de novos direitos humanos, decorrentes daquele

núcleo essencial antes referido.

1.1.1.3. Fundamentação Ética (moral rights)

Por fim, tem-se a fundamentação ética dos direitos humanos, cuja origem está no

pensamento anglo-saxão, em que é denominada moral rights (direitos morais).54 Os adeptos

dessa teoria afastam qualquer proposta de fundamentação jurídica para os direitos humanos,

defendendo que o alicerce dessa categoria seria encontrado dentro de uma moralidade básica,

constituída de valores axiológicos indispensáveis para a garantia de uma vida digna.55 Nessa

proposta, os direitos humanos assumem a característica de bens morais, inerentes a todos os

seres humanos, razão pela qual são anteriores ao próprio direito positivo, que tem o papel de

declarar, proteger e garantir a efetivação dessa categoria.

Contudo, embora a positivação dos direitos humanos seja afastada da fundamentação,

seus seguidores reconhecem que os direitos morais somente alcançam o status de direitos

humanos quando são incorporados aos ordenamentos jurídicos.56 Isso implica dizer que sem o

processo de positivação não se pode falar em direitos humanos, mas tão somente em direitos

morais (moral rights).

Eusébio Fernandez57 reforça essa linha de pensamento salientando que a atribuição do

qualificativo moral à expressão direito tem duplo objetivo: 1º) buscar a fundamentação dos

direitos humanos nos valores éticos ligados à dignidade humana; e 2º) limitar o número e o

conteúdo dos direitos que podem ser inclusos no conceito de direitos humanos. Acrescenta

que a elaboração de uma justificação racional para a fundamentação ética não significa incidir

na utopia do fundamento absoluto. Ao contrário, representa a busca da identificação de alguns

54 SALDAÑA, op. cit., p. 960. 55 PEREZ-LUÑO. op. cit., p. 52. 56 BIDART CAMPOS, Germán José. Teoría general de los derechos humanos. México: UNAM, 1993, p. 79-80. 57 FERNANDEZ, op. cit., p. 107-109, 118.

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direitos morais pertencentes à dignidade humana que possam alcançar a universalidade em

um contexto histórico concreto, o qual se mostre propício à implementação das condições, dos

meios e das situações em que esses direitos possam ser realizados.

Benedetto Croce58 rechaça a fundamentação moral dos direitos humanos apontando

problemas de lógica e de efetivação nessa vinculação. Explica que a moralidade não

reconhece direitos que não sejam, simultaneamente, obrigações e, além disso, ela rejeita

qualquer outra autoridade que não seja a própria moral. Assim, vincular os direitos humanos

aos valores morais implicaria restringir o seu alcance e engessar a sua efetividade.

A crítica de Benedetto Croce ignora a dupla acepção em que a expressão “moral” pode

ser empregada. É claro que, quando se contrapõe a moral ao direito, ela vai assumir um

sentido restrito, no sentido de referir-se a um imperativo, uma obrigação de conduta, que tem

origem no interior do indivíduo59. Entretanto, no contexto contemporâneo e, principalmente

pela influência anglo-saxônica, os teóricos do direito têm adotado um sentido mais amplo à

moral60, relacionando-a às exigências individuais e sociais decorrentes de cada uma dessas

concepções. Nessa nova ótica, o universo moral passa a englobar todas as pessoas e não se

restringe ao espaço social ou ao tempo histórico.61 Por tais motivos é que a concepção

ampliada dos valores morais, ultrapassando a barreira das obrigações intrínsecas, para incluir

as demandas individuais e sociais, torna perfeitamente possível a sua utilização como

argumento racional para o embasamento dos direitos humanos. Vale lembrar a lição de

Herbert L. A. Hart62 no sentido de que o direito tem que se adequar às exigências da justiça e

da moral.

O fundamento ético dos direitos humanos tem o mérito de identificar que essa categoria

tem como base os valores morais diretamente relacionados à dignidade humana que podem

ser ampliados com os acontecimentos históricos. Com lucidez, seus adeptos reconhecem que

o papel do ordenamento jurídico jamais será o de fundamentar esses direitos, mas declará-los,

protegê-los e efetivá-los.

58 CROCE, op. cit., p. 17. 59 MORIN, Edgar. O método 6: ética. Tradução de Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2005. p. 19. 60 OLLERO, Andrés. Derechos humanos: entre la moral y el derecho. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2007, p. 29-30. 61 HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação pelos direitos humanos. In: MERLE, Jean-Cristophe; MOREIRA, Luiz (orgs). Direito e Legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p.68. 62 HART, Herbert Leonel Adolphus. O conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 221/2.

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Todavia, merece crítica a assertiva no sentido de que, enquanto os direitos morais não

forem positivados, não poderão ser considerados direitos humanos, mas tão somente direitos

morais. O equívoco dessa afirmação é constatado quando se recorda que dentro dessa própria

teoria os valores relacionados à dignidade humana existem e são reconhecidos aos indivíduos

pelo simples fato de serem seres humanos. Ora, se a humanidade é o suporte da necessidade

do oferecimento de uma vida digna, através da concretização dos valores morais inerentes a

essa relação, por que então deixaria de ser também o suporte teórico da existência dos direitos

humanos? O fato de o ordenamento jurídico não contemplar a positivação de alguns valores

morais não impede que se reconheça nestes, com base no seu conteúdo, os direitos humanos.

Para ilustrar essa argumentação, lembra-se que o direito à vida nem sempre esteve garantido

nos ordenamentos jurídicos pretéritos e, nem por isso, pode-se pensar que, em algum

momento da história da humanidade, ele possa ter perdido a sua característica de direito

humano.

Com a apresentação dessas três propostas de fundamentação dos direitos humanos, fica

claro que não existem embasamentos teóricos comuns ou absolutos, mas que, não obstante

isso, podem-se colher alguns pontos de contato, entre as diversas correntes, ainda que de

forma implícita. É justamente trabalhando-se sobre esses elementos que se buscará auferir os

contornos, ao menos iniciais, do conceito e da fundamentação dos direitos humanos.

1.1.1.4. Elementos comuns entre as diferentes teorias que buscam fundamentar os

direitos humanos

A análise das diferentes proposições sobre a concepção dos direitos humanos torna claro

que a fundamentação dessa categoria, com vistas a sua efetiva concretização e preservação,

deve partir de formulações objetivas que não sofram limitações ou condicionamentos que

possam relativizar o seu alcance. Por isso, embora as teorias estudadas sigam caminhos

distintos, têm em comum o fato de reconhecerem que a razão de ser dos direitos humanos está

na realização da dignidade da pessoa humana, em suas diversas dimensões. Além disso,

comungam da compreensão de que essa categoria de direitos tem existência supralegal, pois é

constituída de valores morais inerentes aos seres humanos, cabendo ao ordenamento jurídico,

nessa sistemática, o importante papel de proteção e efetivação desses direitos. A prova dessas

afirmações está no fato de que, para os jusnaturalistas, os seres humanos possuem direitos

naturais inatos que estão diretamente relacionados com a sua dignidade e que, por isso

mesmo, estão acima do direito positivo. Para os historicistas, os direitos humanos decorrem

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das necessidades humanas, relativas à dignidade dos indivíduos, que são variáveis e

dependentes de cada conjuntura histórica e de acordo com os desafios sociais de um dado

momento. Por fim, para os defensores da fundamentação ética, os direitos humanos decorrem

de uma moralidade básica, constituída de valores axiológicos indispensáveis para a garantia

de uma vida digna.

Acrescenta-se a isso o fato de que a Declaração Universal dos Direitos Humanos,

promulgada pela Organização das Nações Unidas, em 1948, reconhece, em dois momentos

distintos, a dignidade da pessoa humana como valor nuclear dos direitos humanos. Primeiro,

em seu preâmbulo, ao proclamar: “Considerando que o reconhecimento da dignidade

inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis

constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. (...) Os povos das Nações

Unidas proclamam, (...) a sua fé (...) na dignidade e no valor da pessoa humana”; e, logo

após, no artigo 1º, ao estabelecer que: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em

dignidade e em direitos.”.63

Assim, levando em conta que a dignidade da pessoa humana e os valores morais a ela

relacionados são elementos comuns às diversas teorias, cabe então estudar o significado e a

extensão dessas categorias, para que se possa, a partir de sua compreensão, entender o

conteúdo e o próprio conceito dos direitos humanos.

No que concerne à dignidade da pessoa humana, há quem diga que a sua compreensão é

relativamente fácil, sendo complexa, contudo, a expressão do seu significado em palavras,

uma vez que é um instituto carregado de sentimentos.64 Essa afirmação é sentida quando se dá

início a jornada em busca da definição dessa categoria, uma vez que não há consenso65 acerca

do significado e da extensão do seu conteúdo. Além disso, encontram-se diferentes respostas

na esfera religiosa, filosófica e científica.66

Outro elemento complicador está na confusão que freqüentemente se faz entre

dignidade da pessoa humana e dignidade humana, haja vista que essas duas expressões,

embora tenham significados distintos, constantemente são tratadas como sinônimos. Por tais

63 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS: banco de dados. Disponível em http://www.onu-brasil.org.br. Acesso em: 09 jun. 2007. 64 CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti de. Processo Penal e Constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p.21/2. 65 SARLET, op. cit., p.38. 66 COMPARATO, op. cit., p.01.

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motivos, estabelece-se, desde já, a diferença entre elas, a fim de evitarem-se dissonâncias no

alcance que se pretende emprestar a essas categorias nesse trabalho. Deste modo,

compreende-se por dignidade da pessoa humana o atributo de uma pessoa, individualmente

considerada, enquanto a dignidade humana representa abstratamente um atributo

reconhecido à humanidade como um todo. 67

Ingo Sarlet afirma que a maior parte dos doutrinadores contemporâneos tem buscado

identificar as bases da fundamentação e até mesmo a conceituação da dignidade da pessoa

humana no pensamento de Immanuel Kant.68 Isso é compreendido quando se analisam as

idéias desenvolvidas por Kant em sua obra: Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

Neste trabalho ele defende que o ser humano, por ser possuidor de razão, mantém autonomia

de vontade, ou seja, possui a faculdade de autodeterminação e consciência para agir de acordo

com a representação de certas leis que ele próprio faz. Por isso, afirma que o homem é um fim

em si mesmo, pois não se constitui em meio para o uso arbitrário de vontades alheias, como é

o caso dos seres irracionais, que têm valor relativo e, por isso mesmo, recebem o atributo de

coisa. Desse modo, sustenta que a pessoa humana possui uma qualidade peculiar e

insubstituível que é a dignidade. Reforça essa argumentação lembrando que, se uma coisa

possui preço, pode ser substituída por qualquer outra equivalente, ao passo que, quando algo

não tem preço, por não admitir substituição, então é provido de dignidade. É por esse motivo

que a dignidade está acima de qualquer preço e é atributo exclusivo da pessoa humana.69

A base teórica de Kant merece referência por evidenciar que a dignidade da pessoa

humana impossibilita a coisificação e a instrumentalização dos seres humanos, já que eles são

considerados fins e não meios. Disso se extrai que a dignidade é uma qualidade congênita,

irrenunciável e inalienável, inerente a todos os seres humanos e que os qualifica como tal.

Assim, ela não pode ser concedida ou retirada das pessoas, porquanto constitui valor inerente

à própria qualidade humana. Ela decorre da razão, fato que permite ao indivíduo ter

consciência da sua dimensão como ser livre, autônomo e qualificado por sua

autodeterminação.70 É por isso que a escravidão caracteriza uma violação da dignidade da

pessoa humana, pois materializa o rebaixamento do homem à objeto, a mero instrumento, a

coisa desconsiderada como sujeito de direitos. Assim, quando ocorrem situações em que não

67 SARLET, op. cit., p.38. 68 Id. Ibid,, p. 34. 69 KANT, op. cit., p. 134-135, 140-141. 70 MIRANDOLA, Giovanni Pico Della. Discurso sobre a dignidade do homem. Tradução Maria de Lurdes Sigado Ganho. Lisboa: Edições 70, 1998, p. 49-59.

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há respeito à autodeterminação de um ser humano, estar-se-á diante de uma situação de

violação de sua dignidade.

Esses argumentos preliminares permitem a constatação de que a dignidade da pessoa

humana não decorre do ordenamento jurídico, ou seja, não existe somente onde é reconhecida

pelo direito71, já que é anterior a ele e constitui um bem inato que não pode ser concedido ou

retirado das pessoas. Ela é, ao contrário, ontológica72, ou seja, tem origem na natureza comum

que é inerente a todos e a cada um dos seres humanos. Por tais motivos, está acima das

especificidades culturais, ainda que alguns valores afetos a ela não façam parte de certas

culturas de nosso planeta. A prova disso está no fato de que, mesmo dentro das culturas nas

quais os valores relacionados à dignidade da pessoa humana não são respeitados, há vozes das

minorias oprimidas, que buscam nesses valores inerentes aos seres humanos a guarida para

uma sobrevivência digna. Basta lembrar a luta das mulheres muçulmanas e dos

homossexuais73, entre outros excluídos sociais, que têm buscado proteção e salvaguarda nos

valores relacionados à dignidade da pessoa humana para se oporem a Estados, a governos, e

até mesmo a religiões e a culturas em que estão inseridos. Para tanto, atribuem aos direitos

relacionados à dignidade humana uma validade objetiva que independe de reconhecimento

pelo regime político, social, religioso ou cultural em que se encontram.

Salienta-se que, para aceitar o argumento de que a dignidade da pessoa humana, em sua

essência, deva se adaptar às peculiaridades das diversas culturas existentes, segundo critérios

que variam conforme o local e a época, ter-se-ía que encontrar sociedades nas quais não haja,

em seu interior, vozes dissonantes e contrárias ao sistema ali vigente. Todavia, esse tipo de

sociedade não existe e, por conseguinte, a negativa do reconhecimento do direito à dignidade

às minorias implica o não reconhecimento do próprio atributo da capacidade racional de

autodeterminação do ser humano e da sua característica natural de ser livre. Por isso é que se

pode concluir que a dignidade da pessoa humana, em seu núcleo básico, resiste às

diversidades culturais, colocando-se como valor universal.

Registra-se, ainda, que a dignidade da pessoa humana, embora seja um instituto bastante

destacado a partir da modernidade, encontra registros de gestação e desenvolvimento em

71 MARTINEZ, Miguel Angel Alegre. La dignidad de la persona como fundamento del ordenamiento constitucional español. León: Universidad de León, 1996, p. 21. 72 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: uma compreensão jurídico-constitucional aberta e compatível com os desafios da biotecnologia. In: SARMENTO, Daniel et al. (Coord.). Nos limites da vida. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 215. 73 DONELLY, op. cit., p. 211, 229.

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período histórico muito anterior, desde os séculos VIII e II A.C., época em que, segundo

Fábio Comparato, exprimiram-se os grandes princípios e se edificaram as bases fundamentais

de vida, até hoje celebradas, pois “coexistiram alguns dos maiores doutrinadores de todos os

tempos: Zaratustra na Pérsia, Buda na índia, Lao-Tsê e Confúcio na China, Pitágoras na

Grécia e o Dêutero-Isaías em Israel.”74 Desse modo, verifica-se que o conteúdo valorativo

que forma a categoria da dignidade da pessoa humana vem se ampliando, gradativamente, por

influências históricas e culturais, passando a assumir novas dimensões. Isso acarretou o

desenvolvimento de uma dupla acepção para essa categoria:

1º) ela representa um limite à atividade dos poderes públicos, a qual se nomeia, nesse

trabalho, dimensão básica em que estão inclusos os valores mínimos e fundamentais

para a existência humana e que são representados pela autonomia e autodeterminação

que se reconhece a cada pessoa, razão pela qual estão acima das especificidades

culturais; e

2º) também significa uma tarefa, uma prestação positiva, a qual se confere o nome,

nessa pesquisa, de dimensão cultural na qual estão inseridos os valores que

historicamente foram e estão sendo construídos no sentido de impor ao Estado e à

sociedade o dever de preservarem a dignidade de cada pessoa em sua dimensão básica

e, ao mesmo tempo, efetivarem prestações positivas no sentido de propiciar condições

que facilitem o completo exercício e fruição da dignidade da pessoa humana, conforme

as necessidades e possibilidades de cada momento histórico. Nessa segunda dimensão,

ela engloba valores mutáveis no tempo e no espaço, conforme as exigências culturais de

cada sociedade.

Assim, vê-se que a dignidade da pessoa humana tem como núcleo (dimensão básica) o

direito que cada indivíduo possui de se autodeterminar, conforme a sua razão, no que diz

respeito às decisões essenciais relativas à sua própria existência75. Esse é um atributo inerente

a todos os seres humanos, mesmo naqueles que não são capazes de se autogerirem (como os

indivíduos acometidos de demência, crianças de tenra idade, entre outros), visto que, neste

caso, terão o direito de serem tratados com dignidade.76 Por outro lado, a dignidade também

pode ser entendida em outra dimensão (cultural), fruto da história e da diversidade cultural, à

74 COMPARATO, op. cit., p. 8-11. 75 SARLET, 2001, p. 49. 76 DWORKIN, Ronald. O domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais Tradução Jerferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 309-310.

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qual vão se agregando valores morais que variam no tempo e no espaço e que representam a

especificação daquilo que se considera uma vida digna dentro de cada cultura. Isso ocorre,

contudo, com respeito aos elementos básicos da dignidade, ou seja, detalham-se novas formas

que complementam e, ao mesmo tempo, respeitam a capacidade que cada pessoa tem de se

autodeterminar, de acordo com as suas convicções.

Diante desses dados, pode-se concluir que a dignidade da pessoa humana é uma

qualidade inerente e distintiva de cada indivíduo que exige do meio em que ele vive (Estado e

sociedade) o respeito pela sua vida, integridade física e moral, liberdade, autonomia e

igualdade77, de forma que não venha a se tornar mero objeto do arbítrio e de injustiças alheias.

Esse é o conceito que será utilizado para ancorar todo o restante dessa pesquisa.

Registre-se, contudo, que, embora essa categoria seja um valor comum a todos os

indivíduos, a avaliação sobre as condutas que podem ou não ser consideradas ofensivas a ela é

bastante complexa, em razão das especificidades culturais que formam a sua dimensão

cultural. Desse modo, para garantir uma efetividade intercultural do princípio da dignidade da

pessoa humana, deve-se trabalhar com conteúdos e significados que possam ser entendidos

interculturalmente78, renunciando-se a qualquer concepção que seja específica ou pretenda ser

absoluta. Isso quer dizer que os valores nucleares dessa categoria (dimensão básica) devem

ser preservados em todos os tipos de sociedades, mas as condições de aplicação deles poderão

ser ajustadas de acordo com as peculiaridades culturais.

Para ilustrar essa sistemática usa-se, para análise, o valor autonomia na liberdade de

locomoção, uma vez que é reconhecido em praticamente todas as culturas como um bem

maior dos seres humanos, sendo consenso que qualquer ato atentatório a ele constitui afronta

à dignidade da pessoa humana. A liberdade de locomoção, que é um dos corolários do livre

arbítrio de cada indivíduo, admite, entretanto, nas diversas culturas do planeta, restrição

imediata sempre que ela seja usada para atingir a vida ou a integridade física de outros

membros da sociedade. Assim, se uma pessoa, em razão de um estado de embriaguez, por

exemplo, inicia atos que ponham em risco a integridade física dos demais integrantes do

grupo em que vive, pode ter sua autonomia de locomoção temporariamente suspensa, por

imposição desse próprio grupo, até que esteja em condições de retornar à convivência 77 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: ____. (Org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 37.

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coletiva. A especificação de como essa suspensão temporária da autonomia de locomoção do

indivíduo embriagado será efetuada, sem macular a sua dignidade, dependerá, no entanto, dos

elementos culturais que compõem a moral coletiva em que está inserido, uma vez que se

atuará na dimensão cultural da dignidade.

Assim sendo, a resposta axiológica do ocidente para o caso acima citado será

concretizada pela condução da pessoa embriagada até uma delegacia de polícia e lá,

respeitando-se a sua dignidade, mantê-la detida por algum tempo até que se cumpram as

formalidade legais para a sua posterior liberação. Todavia, ao se dispor a mesma situação para

ser resolvida à luz da cultura indígena kaigang, uma comunidade de silvícolas que vive em

reservas do governo federal na região sul do Brasil, as tradições dessa etnia vão determinar

que o índio ébrio seja amarrado em uma árvore até que os efeitos do álcool estejam

expurgados. Logo que ele recupere a consciência de seus atos e, mediante o seu compromisso

de se abster de agredir os demais integrantes da tribo, a comunidade promove a sua soltura e

ele passa a ter novamente a sua liberdade de autodeterminação.79

Note-se que a noção de dignidade em sua dimensão básica é a mesma nos dois tipos de

sociedades acima descritas, mas as soluções foram distintas, em razão das especificidades

culturais. Em ambos os casos preservou-se a dignidade dos demais membros das

comunidades, por meio da restrição da autonomia de locomoção do ébrio. Perante cada uma

das culturas, a solução é moralmente aceita e a dignidade do indivíduo embriagado, em suas

dimensões básica e cultural, restou preservada, uma vez que, dentro de uma ponderação de

bens jurídicos, atingiu-se, da menor forma possível, a sua autonomia de locomoção,

utilizando-se as formas adequadas à luz dos limites valorativos de cada cultura.

Esse exemplo mostra que a garantia da efetividade do princípio da dignidade da pessoa

humana ocorre à medida que se possam estabelecer conteúdos e significados que permitam

um entendimento intercultural. Nesse sentido, a tentativa de criação de qualquer concepção

que seja específica ou pretenda ser absoluta culmina por se tornar ineficaz, já que não terá

força de ir além dos muros da cultura onde foi concebida. Isso é demonstrado pela análise do

mesmo exemplo anteriormente descrito. Se a solução da tribo kaigang fosse transposta para as

78 HÖFFE, Otfried. A democracia no mundo de hoje. Tradução Tito Lívio Cruz Romão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 77/8. 79 FERNANDES, Idalino. A cultura Kaigang: depoimento do cacique da tribo Kaigang da Reserva Indígena Toldo Chimbangue, no Município de Chapecó, Estado de Santa Catarina [jun. 2007]. Entrevistador: Narciso Leandro Xavier Baez. Chapecó: 2007. 1 fita cassete (60 min.), estéreo. Entrevista concedida ao Juiz Federal Narciso Leandro Xavier Baez.

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sociedades ocidentais, como uma representação de um valor absoluto da dignidade, instaurar-

se-ía um choque cultural, em razão dos valores cultivados no ocidente. Isso culminaria na

conclusão, sob a ótica ocidental, de que estaria havendo uma elevada afronta à dignidade da

pessoa humana, uma vez que a prática de amarrar pessoas em árvores para que se abstenham

de atingir os demais integrantes da sociedade não é aceita à luz do conjunto axiológico

historicamente construído dentro desse tipo de sociedade. Todavia, para os índios kaigang e

para o silvícola que foi amarrado, não há violação à dignidade da pessoa humana, visto que,

na dimensão cultural dessa tribo, a dignidade foi preservada, pois essa é a prática moralmente

aceita por aquele grupo social.

Essas constatações mostram como é importante a adoção de uma visão intercultural da

dignidade da pessoa humana. É que dentro dessa ótica não se abre mão da manutenção dos

valores básicos para a existência humana, ao contrário, ajusta-se às peculiaridades culturais

para garantir o efetivo gozo de uma vida digna e plena, detalhada dentro de uma dimensão

cultural.

Em razão do que foi visto até aqui e com base nos argumentos teóricos trabalhados, têm-

se, agora, elementos para iniciar o exame da relação existente entre a dignidade da pessoa

humana (incluindo os respectivos valores morais a ela inerentes) e os direitos humanos. A

primeira conclusão a que se pode chegar é de que os valores morais, pilares dos direitos

humanos, são aqueles que se identificam como imprescindíveis para uma vida digna, ou seja,

externam uma qualidade inerente e distintiva de cada indivíduo. Isso exige do meio em que

ele vive (Estado e sociedade) o respeito pela sua vida, integridade física e moral, liberdade,

autonomia e igualdade. Além disso, deduz-se também que os valores morais nucleares dos

direitos humanos (dimensão básica da dignidade da pessoa humana) englobam todas as

pessoas e não se restringem ao espaço social ou ao tempo histórico, visto que caracterizam

traços comuns à humanidade, independentemente da cultura. Essa constatação, todavia, não

impede que se reconheça a existência de outros valores morais, em constante evolução e que

vêm sendo construídos historicamente para a efetivação de uma vida digna, que variam no

tempo e no espaço e que representam a especificação dos direitos humanos dentro de cada

cultura.

Ressalta-se, ainda, que, como os direitos humanos têm na dignidade da pessoa humana o

elemento nuclear de sua formação, também devem ser concebidos em duas dimensões: uma

básica, na qual estão inseridos os valores mínimos e fundamentais para a existência humana

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e, por isso mesmo, universais e outra cultural, formada por influências históricas que se

ampliam gradativamente na busca da concretização de condições que possam facilitar o

completo exercício e fruição da dignidade da pessoa humana, conforme as necessidades e

possibilidades de cada época. Daí a pertinência da lição de Hannah Arendt80 ao reconhecer

que os direitos humanos, quando compreendidos em sua dimensão cultural, não nascem de

uma só vez: eles correspondem a uma categoria em constante processo de construção e

reconstrução que não admite uma conceituação estanque ou um fundamento absoluto. Por

isso, não se pode imaginar um momento histórico em que todos esses direitos estarão dados,

postos, restando somente o cuidado com a sua efetivação, pois sempre estarão surgindo novas

dimensões culturais da dignidade da pessoa humana que acarretarão a ampliação dessa

categoria, juntamente com o desafio de encontrar respostas para novas questões dela

decorrentes.

1.1.2. Direitos do Homem, Direitos Humanos e Direitos Fundamentais

Outro problema que se enfrenta na definição e fundamentação dos direitos humanos está

relacionado com a sua precisão terminológica, uma vez que, com as diferentes expressões que

se utilizam para referenciar esse instituto, agregam-se novas teorias81, fato que causa ainda

mais confusão a respeito do tema. Assim, costumam-se empregar as expressões direitos

humanos, direitos do homem e direitos fundamentais, ora como sinônimos, ora com sentidos

antagônicos, criando uma desordem semântica que deve ser esclarecida para a compreensão

adequada desse importante instituto.

A diferenciação entre as categorias direitos do homem, direitos humanos e direitos

fundamentais constitui tarefa complexa, visto que existe uma ampla discussão doutrinária

acerca desses conceitos e não há um consenso teórico acerca de seus significados. Assim,

adotar-se-á neste trabalho a postura científica de relatar, de forma simplificada, as diferentes

proposições sobre esses institutos, a fim de se compreenderem, acima dos seus significados,

as relações existentes entre eles, bem como identificar o porquê da confusão semântica e

conceitual.

A relevância dessa investigação está no fato de que essas três expressões são

constantemente confundidas ou usadas como sinônimos, situação que, em alguns casos, 80 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. Rio de Janeiro:Companhia das Letras, 2004. p. 332/3. 81 FERNANDEZ, op. cit., p. 77.

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acarreta a redução dos seus reais conteúdos e alcances. Como se verá na seqüência, existem

diferenças não meramente nominais entre essas categorias, além de uma relação estreita e

interdependente, motivo pelo qual o seu entendimento torna-se relevante para uma correta

aplicação prática. Um exemplo da importância desse estudo pode ser encontrado na

Constituição Federal brasileira de 1988, na qual se contempla um rol de direitos

fundamentais que têm aplicação imediata82, ao mesmo tempo em que se admite a

possibilidade de ingresso em seu texto, de direitos humanos decorrentes de tratados

internacionais.83 A não compreensão adequada desses institutos pode levar um intérprete que

não compreende a relação existente entre eles a concluir, equivocadamente, que, como a

previsão constitucional de aplicação imediata refere-se somente aos direitos fundamentais, os

direitos humanos não teriam essa eficácia. Esse exemplo evidencia que existem imprecisões

de ordem prática que podem ser evitadas quando se tem clara a distinção e a relação existente

entre os três institutos referidos.

Ingo Sarlet84 procura definir essas categorias aduzindo que os direitos do homem nada

mais são do que direitos naturais ainda não positivados, concebidos como um ordenamento

universal, superior e anterior ao direito positivo, extraídos da própria natureza humana. Dessa

forma, representam, segundo o autor, uma “pré-história” dos direitos humanos e dos direitos

fundamentais, haja vista que precederam o reconhecimento destes pelo direito positivo

internacional e interno. Ele rechaça ainda a possibilidade de equiparação entre os direitos

humanos e os direitos naturais, em razão da dimensão histórica dos primeiros, característica

que afasta qualquer possibilidade de vinculação ao jusnaturalismo. No que concerne aos

direitos humanos, defende que surgem quando os direitos do homem são positivados no

âmbito internacional. A diferenciação estabelecida por Ingo Sarlet, embora tenha o mérito de

ser bastante objetiva, merece algumas observações. A primeira delas diz respeito à

sustentação que faz no sentido de que os direitos humanos são aqueles positivados nos

tratados e declarações internacionais. Essa assertiva não se sustenta, visto que o texto da lei

não tem um fim em si mesmo, pois ele decorre de uma discussão anterior que culminou pela

produção daquela norma. Assim, para se chegar à conclusão de que um tratado internacional 82 Art. 5º, §1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. In: BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 35 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 13. 83 BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional n. 45, de 08 de dezembro de 2004. Altera dispositivos doa arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134, e 168 da Constituição Federal e acrescenta os arts. 103-A, 103B, 111-A, e 130-A, e dá outras providências. Constituição da República Federativa do Brasil. 35 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 13.

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contempla em seu bojo direitos humanos, é necessário que o intérprete analise o seu conteúdo

e, partindo de uma concepção pré-estabelecida, chegue à conclusão de que o texto inclui essa

ordem de direitos. Logo, não é a positivação que dá vida aos direitos humanos, mas um

conjunto de valores morais85, pré-existentes, que estão relacionados à dignidade da pessoa

humana em suas diversas dimensões. Por isso, equivoca-se o autor ao pretender reconhecer

como direitos humanos somente aqueles bens jurídicos contemplados nos tratados

internacionais, uma vez que o papel do ordenamento não é o de criar esses direitos, mas de

declará-los e protegê-los.

Para reforçar essas afirmações verifique-se o texto da Declaração de Direitos Humanos

da Organização das Nações Unidas. As normas ali inseridas constituem um rol

exemplificativo, não definitivo86, de direitos humanos. Desse modo, não se pode realizar uma

interpretação restritiva para afirmar que somente podem ser considerados como direitos

humanos os valores morais contemplados nesse tipo de instrumento internacional. O que

justifica e dá vida a essa categoria de direitos não são as leis que os positivam, mas a própria

existência humana e sua característica inconfundível de racionalidade e autonomia. O papel

da lei, aqui, seja interna ou externa, é o de declarar, proteger e efetivar esses direitos que são

anteriores e superiores aos ordenamentos jurídicos.

Outro autor que trabalha a expressão direitos do homem é Norberto Bobbio.87 Ele a

utiliza, contudo, como sinônimo de direitos humanos. Defende que os direitos do homem

foram concebidos inicialmente como direitos naturais que tinham como meio de defesa a

resistência dos indivíduos diante dos atos de opressão. Posteriormente, esses direitos foram

sendo positivados pelos Estados e as pessoas passaram a utilizar as ações judiciais para

garantir a sua concretude e proteção. A tese de Bobbio, acertadamente, reconhece que o papel

das leis não é o de criar os direitos do homem (expressão que ele emprega como sinônimo de

direitos humanos), mas o de garantir a sua efetividade, por meio de mecanismos utilizados

para o seu respeito e reparação. Por isso, pode-se concluir com Bobbio que os direitos

humanos são os direitos do homem, no sentido de que representam um conjunto de valores

morais, reconhecidos aos indivíduos como imprescindíveis para a efetivação de uma vida

digna.

84 SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais, a reforma do judiciário e os tratados internacionais de direitos humanos: notas em torno dos §§ 2º e 3º do art. 5º da Constituição de 1988. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, ano 1, nº1, p. 62/3, jan./mar. 2006. 85 HÖFFE, 2000, p. 168. 86 BOBBIO, op. cit., p. 32/33.

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No que concerne a expressão direitos fundamentais, surgiu, pela primeira vez, na

história da humanidade, como decorrência dos movimentos políticos e sociais que

culminaram com a revolução francesa de 1789, espalhando-se rapidamente por toda a

Europa.88 Essa categoria representava os direitos e garantias individuais que as pessoas

possuíam em relação ao Estado em que viviam, tais como: vida, liberdade, igualdade,

segurança e propriedade. Posteriormente, passou-se a concebê-los como aquele rol de direitos

humanos, positivados internamente pelas constituições dos Estados89, reconhecidos por

intermédio da previsão de uma norma válida de direito fundamental que lhes outorgasse

existência.90 Em síntese, os direitos fundamentais materializam o resultado da junção entre os

direitos naturais do homem e da própria idéia de constituição.91

Assim, pode-se afirmar que os direitos fundamentais são o corolário dos direitos

humanos, já que incorporam os valores morais destes últimos aos ordenamentos jurídicos dos

Estados, funcionando como instrumentos de efetividade e garantia da concretização de uma

vida digna, aos indivíduos que estão sob a égide deste ente público. A importância dos

direitos fundamentais está no fato de que a sua inserção nas constituições das diversas nações

do mundo viabiliza a concretude dos direitos humanos, pois obrigam e vinculam os poderes

públicos estatais, ao mesmo tempo em que fornecem aos indivíduos uma gama de ações

judiciais para a defesa e realização dessa categoria de direitos. Além disso, a maior ou menor

incorporação desse rol de direitos nos ordenamentos jurídicos dos Estados tem servido como

parâmetro de medida do grau de democracia ali existente.92 Desse modo, os direitos

fundamentais assumem o papel de termômetro da democracia dos países modernos,

exercendo a função de um poderoso instrumento de realização dos direitos humanos.

1.2. Positivação e crise de eficácia dos direitos humanos no século XX

A busca da conceituação, da fundamentação e da efetivação dos direitos humanos

também foi marcada, ao longo de sua construção, por um período na história onde teve início

o seu processo de positivação, na esperança de que a inserção desses direitos nos

ordenamentos jurídicos fosse suficiente para garantir o seu respeito e realização. Essa crença 87 Id. Ibid., p. 31/2. 88 PÉREZ-LUÑO, Antônio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 6. ed. Madrid: Tecnos, 1999, p. 30/1. 89 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 51. 90 ALEXY, op. cit., p. 47. 91 SARLET, 2006. p. 62/3.

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teve como base o pensamento desenvolvido a partir da modernidade, cujo berço remonta ao

fim do século XVI93, e representou um processo de ruptura de paradigma, passando-se a

acreditar que a razão e a ciência vinham para explicar os fatos da vida, em contraposição à

concepção medieval que utilizava como resposta a divindade e o mecanismo natural.94 Nesse

novo contexto, o direito passa a ser uma disciplina científica, rigorosa, que busca se

aproximar das ciências da natureza.95 Não é mais a igreja e o senhor feudal quem vão

disciplinar as relações sociais, pois há a libertação dos dogmas religiosos, transferindo-se ao

legislador a missão de prever abstratamente as situações futuras, por meio do estabelecimento

de normas gerais, sistematizadas formalmente num corpo denominado direito positivo, no

qual seriam inseridas todas as regras necessárias para a manutenção e funcionamento da

sociedade.96 A idéia de completude das leis era tão grande que se acreditava poder disciplinar

tudo que fosse necessário para uma vida coletiva.

Esse sistema formalista do direito ingressou na época contemporânea e teve seu

apogeu com a contribuição doutrinária do jurista Hans Kelsen, em sua obra, Teoria Pura do

Direito, na qual buscou demonstrar a necessidade de purificação do método jurídico,

argumentando que as normas positivadas eram obrigatórias, não porque tinham fundamento

na religião ou na moral, mas porque eram legitimadas por uma norma jurídica superior

(fundamental) que tinha um fim em si mesma, ou seja, legitimava-se a si própria e a todas as

outras.97 Essa sistemática norteou os ordenamentos jurídicos contemporâneos, na maioria dos

países ocidentais, criando a figura do sujeito de direitos, ou seja, aquele ser reconhecido por

certo sistema jurídico como portador de direitos e deveres e que, por isso mesmo, está

desobrigado do cumprimento de mandamentos morais ou de prescrições de qualquer outro

tipo que não seja o legal.98 Assim, passou a ser permitido ao indivíduo fazer tudo o que a lei

não proibisse, ao mesmo tempo em que o Estado desonerou-se da obrigação de proteger

valores não disciplinados pelo ordenamento jurídico.99 Isso acarretou sérios prejuízos à

92 HÖFFE, 2000, p. 168. 93 GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Tradução Arno Dal Ri Júnior. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 47/8. 94 HARVEY, David. Condição pós-moderna. 4. ed. Tradução Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1994, p. 23. 95 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 158. 96 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo político: fundamentos de uma nova cultura do direito. 2. ed. São Paulo: Alfa Omega, 1997, p. 41. 97 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1976. p. 267. 98 HABERMAS, op. cit., p.68. 99 GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 413.

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dignidade da pessoa humana, pois a perda do sentido ético do direito100 culminou por deixá-la

em segundo plano no processo de legalização em prol de uma nova figura: o sujeito de

direitos.

Como resultado dessa nova forma de pensar o direito, tem-se, no século XX, o período

histórico que se notabiliza pela proliferação de legislações nacionais e tratados internacionais

nas áreas civis, políticas, econômicas e culturais101, que buscaram positivar e ressaltar a

necessidade do respeito aos direitos individuais. Contudo, foi também o século em que,

paradoxalmente, a humanidade sofreu as mais horrendas violações.102 Durante as duas

grandes guerras mundiais, pessoas foram dizimadas em massa, sendo que em especial, na

segunda delas, isso ocorreu de forma tortuosa, nos campos de concentração nazistas, e de

forma quase instantânea, por meio da utilização da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki.

Ficou evidente que a sustentação da dignidade da pessoa humana em um sistema positivo do

direito, dissociado de valores morais, que buscava unicamente na lei nacional a

previsibilidade e a solução para todos os males, não foi suficiente para protegê-los diante das

diversas violações cometidas. Isso porque as brutalidades perpetradas durante esse período

histórico tinham como base as leis que compunham os ordenamentos jurídicos vigentes. Basta

lembrar que os nazistas acusados de crimes contra a humanidade utilizaram como argumento

de defesa que os seus atos ocorreram em cumprimento à lei, sendo eles apenas uma peça na

engrenagem Estatal103 criada pela ordem positiva do 3º Reich.

Esses fatos ensejaram uma reação internacional que culminou com a criação da

Organização das Nações Unidas, em 1945, e com a Declaração Universal dos Direitos

Humanos, em 10 de dezembro de 1948, marcando o início da positivação dos direitos

humanos na esfera internacional.104 Dessa primeira codificação seguiram-se dois instrumentos

internacionais sobre direitos humanos, adotados em 1966: a Convenção Internacional de

Direitos Civis e Políticos e a Convenção Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais.105 Daí por diante, proliferaram diversas declarações e tratados internacionais que 100 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 48. 101 BARRETO, op. cit., p.343. 102 HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos – O breve século XX. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 56-60. 103 ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. Tradução Rosaura Einchenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 100/101. 104 PIOVESAN, Flávia. Segurança jurídica e direitos humanos: o direito à segurança de direitos. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Org.). Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlvera Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 50. 105 CHACON, op. cit., p. 193/4.

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buscaram disciplinar e salvaguardar essa categoria de direitos, com a esperança de que a

inserção desses valores em textos jurídicos fosse a solução definitiva para a sua proteção e

respeito.

Todavia, a tentativa de disciplinar os direitos humanos através de textos dogmáticos e

vagos, com objetivos genéricos a serem alcançados, permitiu a muitos Estados se

autodenominarem defensores desses valores, sob o argumento de que eram signatários desses

tratados e que suas legislações internas contemplavam assuntos afetos aos direitos humanos,

quando, na verdade, perpetravam interpretações tendenciosas sobre esse conteúdo para

justificar a sua constante violação.106 Testemunhou-se, repetidamente, mesmo diante de todo

esse aparato jurídico internacional, o constante desrespeito aos direitos humanos nos quatro

cantos do planeta sendo, muitas vezes, concretizado por aqueles que se diziam os seus

maiores defensores.107

A reflexão sobre esse paradoxo, cada vez mais presente em nossa história

contemporânea, leva a verificação de que isso ocorre porque, enquanto os direitos humanos

constituem valores morais inerentes à dignidade da pessoa humana, em suas várias

dimensões, o seu reconhecimento e efetivação têm dependido até agora do poder político

Estatal. Os Estados, contudo, assumem dentro dessa lógica tanto o papel de garantidor como o

de violador dessa categoria de direitos, uma vez que não existem organismos supranacionais,

sob o ponto de vista universal, capazes de interferir nos assuntos internos das nações, ainda

que elas perpetrem graves violações aos direitos humanos. Por tais motivos Luhmann108,

Habermas109 e Paulo Bonavides110 defendem que a solução para esse impasse está na busca do

controle e do condicionamento do poder do Estado, através da construção de sistemas

jurídicos moldados por procedimentos democráticos participativos. Isso deslocaria o foco da

legitimidade do sistema jurídico não para a decisão inicial que deu origem à norma (que é

passível de desvios), mas para o próprio processo que culminou com a sua elaboração, desde a

gênese até as decisões finais. Assim, os procedimentos políticos da sociedade, tais como o

procedimento eleitoral, o procedimento parlamentar legislativo e o próprio processo judicial,

entre outros, formariam um quadro, uma zona de delimitação onde ocorreriam as discussões 106 O´DONNELL, Guilhermo. Poliarquia e a (In)efetividade da Lei na América Latina. Novos Estudos CEBRAP, n. 51, p. 48, 1998. 107 GALEANO, Eduardo. De pernas para o ar: A Escola do Mundo ao Avesso. Tradução de Sérgio Faraco. 8. ed. Porto Alegre: L&PM, 1999. p. 07. 108 LUHMANN, Niklas. A legitimação pelo procedimento. Brasília: Unb, 1980. p. 51 a 113. 109 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. In. ______. A inclusão do outro. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2004. p. 284-292.

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que formariam o conjunto de regras que limitariam e controlariam o poder do Estado. Dentro

desse espaço procedimental democrático é que ocorreria a incorporação dos direitos humanos

ao ordenamento jurídico, sendo que a legitimidade da escolha dos valores que estão

relacionados à dignidade da pessoa humana ocorreria, não pelas regras jurídicas consideradas

isoladamente, mas pelo procedimento democrático que as veiculou com o status de valores

justos e aceitos por aquele grupo social.

Essa argumentação, muito embora fascine pela lógica de sua estrutura, merece uma

atenta reflexão. Acreditar na possibilidade da construção de valores justos somente dentro dos

procedimentos democráticos participativos, seria negar a possibilidade da existência de

valores substanciais (universais) que existem e são reconhecidos independentemente do

acolhimento ou aceite das ordens jurídicas, sejam elas construídas de formas democráticas ou

não. Vale lembrar que um procedimento democrático não poderá acolher a escravidão sem

violar uma regra universal da dignidade da pessoa humana que não admite a equiparação do

homem a um objeto. Nesse ponto, os próprios defensores da teoria da legitimação pelo

procedimento admitem que os conteúdos desenvolvidos dentro de um quadro político

deliberativo partem de valores mínimos que são condições indispensáveis para que se possa

encontrar uma origem democrática do direito.

Ora, que valores mínimos seriam esses que vão permitir as condições para o

desenvolvimento da democracia participativa? Nada mais são do que uma espécie de direito

fora da ordem positiva, suprapositivo, que tem, no seu bojo, componentes morais, sociais,

políticos e até econômicos que salvaguardam as condições essenciais, mínimas para a garantia

da dignidade da pessoa humana. São os direitos humanos.

Outro problema que tem dificultado a sedimentação de uma concepção universal dos

direitos humanos diz respeito aos países que, por não terem assinado os tratados

internacionais sobre direitos humanos, resistem à idéia de reconhecer que são valores que

devam ser respeitados e acolhidos, quando não previstos em suas ordens jurídicas nacionais.

Eles negam a obrigatoriedade da observância de conceitos afetos à dignidade da pessoa

humana sob o argumento de que a sua soberania não os obriga a reconhecer uma categoria de

direitos que possam se sobrepor ou tenham que ser observados por sua legislação interna.

Defendem que não existem valores mínimos semelhantes em todas as culturas, pois eles são

mutáveis no tempo e no espaço e a diversidade cultural não permite a definição de direitos 110 BONAVIDES, Paulo. Teoria da democracia participativa. São Paulo: Malheiros. 2. ed. 2003. p. 326.

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com pretensão universal.111

Essa argumentação não se sustenta, no entanto, diante da constatação de que os direitos

humanos, em sua dimensão básica, são direitos inatos, pautados em valores morais que se

identificam como imprescindíveis para uma vida digna e que são conferidos aos indivíduos

pelo simples fato de serem seres humanos, característica que demonstra a sua universalidade.

Tanto é assim que a observância dos fatos sociais contemporâneos mostra que os direitos

humanos têm sido usados como pilares de sustentação das lutas das minorias, em diversas

partes do mundo, independentemente da cultura, crença, regime político ou posição social.112

Os excluídos sociais, políticos e religiosos, combatem a posição majoritária no seu contexto,

buscando assegurar a dignidade de sua existência, apoiando-se nos direitos humanos, por

acreditarem que esses direitos, de natureza supralegal, carregam valores e princípios de justiça

que se excluem do arbítrio e do reconhecimento de forças externas ao indivíduo.113

Esse contexto mostra que os valores morais básicos, defendidos a partir da

inconformidade e do instinto de defesa, inatos ao ser humano, quando atingido em sua

dignidade, são, acima de qualquer ordem jurídica, social ou religiosa, o nutriente maior do

florescimento da idéia dos direitos humanos, como categorias universais. Essa conclusão não

afasta, entretanto, o reconhecimento da importância que a estrutura Estatal e o seu respectivo

ordenamento jurídico positivo têm para a defesa e efetivação desses valores. Ao contrário, o

desenvolvimento dos direitos humanos serve como base crítica para o aperfeiçoamento das

ordens jurídicas, em todas as esferas, formando com estas um sistema interdependente.

Para esse desiderato, vê-se como essencial o fortalecimento da fundamentação dos

direitos humanos, em sua dimensão básica, naqueles elementos que são comuns às diversas

teorias (valores morais essenciais à dignidade da pessoa humana), pois através dos contornos

teóricos desenvolvidos nesse alicerce poderão ser criados mecanismos metajurídicos de

defesa e efetividade dessa categoria frente aos Estados modernos. O processo de positivação

nacional e internacional assume posição complementar nessa ótica, pois a ordem jurídica

passará sempre pelo crivo dos valores morais relacionados à dignidade da pessoa humana, em

que será avaliada e legitimada na medida de sua consonância com esse conjunto axiológico.

Como já se destacou anteriormente, os direitos humanos passam a servir como parâmetro de

mensuração do grau de democracia desenvolvido em cada canto do planeta.

111 BOOTH, op. cit., p. 37. 112 DONELLY, op. cit., p. 211, 229.

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O maior desafio dessa jornada, no entanto, está em definir de que forma se incluirão

esses direitos no conjunto de valores sociais de uma sociedade globalizada, multicultural,

dinâmica e que está em constante transformação. Essa reflexão deve levar em conta uma

realidade cada vez mais tangível, o processo de globalização, pois trouxe um elemento novo à

problemática ao perpetrar a quebra da unidade do Estado e do direito, em prol das regras do

mercado global que vem se sobrepondo às ordens jurídicas nacionais e internacionais.114 A

forma de enfrentamento desse novo elemento social, caracterizado por um movimento

complexo de abertura de fronteiras econômicas e de desregulamentação que passou a permitir

às atividades econômicas capitalistas estenderem o seu campo de ação ao conjunto do

planeta,115 é justamente o objeto da análise que será desenvolvida no próximo capítulo desta

dissertação.

113 FERNANDEZ, op. cit, p. 42. 114 TEUBNER, Gunther. Os múltiplos corpos do rei: a autodestruição da hierarquia do direito. In: O direito como sistema autopoiético. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989, p. 344. 115 CHENAIS, Françoise. A mundialização do capital. Tradução Silvana Finzi Foá. São Paulo: Xama, 1996. p.23.

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CAPÍTULO II

2. DIREITOS HUMANOS E GLOBALIZAÇÃO

O presente capítulo tem por objetivo examinar o surgimento e o

desenvolvimento do fenômeno da globalização, procurando identificar suas principais

características e desdobramentos no âmbito político e social, especialmente no que diz

respeito aos direitos humanos.

Diante da vasta bibliografia produzida a respeito desse tema e das diferentes vertentes

teóricas que problematizam o assunto, sem, no entanto, alcançarem consenso acerca do seu

sentido preciso, adota-se a postura científica de simplificar a sua abordagem, dividindo-a em

três partes: 1ª) raízes históricas da globalização; 2º) dimensões do processo de globalização e

3º) o custo social da globalização e seu impacto sobre os direitos humanos.

Na primeira parte estudam-se os motivos históricos que levaram ao surgimento do

processo de globalização, a fim de que se possa chegar a uma compreensão geral sobre esse

fenômeno. Para tanto, analisam-se os argumentos produzidos a respeito da principal divisão

teórica que existe sobre o tema, no sentido de ser um processo inédito na história da

humanidade ou, ao contrário, representar apenas um mito, uma construção ideológica que

materializa a continuidade evolutiva do capitalismo. Além disso, abordam-se os traços gerais

de uma conceituação desse fenômeno, estabelecendo-se a distinção semântica entre

globalização e mundialização, com o objetivo de eleger o alcance que se pretende empregar

ao instituto nesta pesquisa.

Na segunda parte deste capítulo será realizada uma análise sobre as dimensões do

processo de globalização, destacando-se as transformações ocorridas na economia, no Estado,

na cidadania, na cultura e nas identidades pessoais, uma vez que essas mudanças têm ocorrido

rapidamente, gerando diversas contradições, ainda insolúveis. A partir da análise dessas

informações, busca-se colacionar elementos que tornem possível o conhecimento da sua

natureza, alcance, relevância e conseqüências sociais, bem como da influência que exerce

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sobre os direitos humanos.

Por fim, estudar-se-á o custo social da globalização e os impactos que tem acarretado

aos direitos humanos, buscando-se encontrar as possíveis formas de proteção e respeito dessa

categoria.

2.1. Raízes históricas da Globalização

Para alguns autores, a globalização constitui um fenômeno que pode ser verificado

desde os primórdios da humanidade, quando homens e mulheres nômades, superando limites

pessoais e geográficos, saíram em busca de novos locais onde houvesse melhores condições

de sobrevivência.116 Jean-Jacques Rosseau117, todavia, detalha esse raciocínio aduzindo que

foi com o surgimento da propriedade privada que se evidenciou a avidez humana de

sobrepujar seu semelhante, fato que deu causa ao desaparecimento do nomadismo em

substituição às primeiras noções de costumes unitários, nas quais cada indivíduo passou a ter

um valor correspondente aos bens que possuísse, gerando, com isso, a desigualdade, a

dominação, a violência, a miséria e a opressão.

Há ainda autores que acreditam que a globalização teve início na antiguidade, quando

diferentes povos buscaram se aproximar118, ou ainda quando os grandes impérios, como o

romano, expandiram suas conquistas119 ao espaço daquilo que concebiam como sendo os

confins da terra. Outra corrente teórica defende que o início desse processo está situado século

XV120, época dos grandes descobrimentos e da conquista das Américas, que culminou por

colocar em contato os países da velha Europa, dando início a expansão dominadora do

ocidente europeu sobre o planeta. Por fim, tem-se os que sustentam como marco desse

processo a revolução industrial do século XIX121, uma vez que, com as inovações técnicas

incorporadas às indústrias e ao sistema de transportes, possibilitou-se uma maior integração

116 SILVA. Karine de Souza. Globalização e Exclusão social. Curitiba: Juruá, 2000, p. 24. 117 ROSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. 3. ed. São Paulo: Abril, 1983, p. 259. 118 FAGUNDES, Paulo Roney Ávila. Os direitos humanos e a sociedade globalizada: a necessidade de se ir além da política. Revista Seqüência, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, n. 50, p. 173, jul. 2005. 119 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 60. 120 MORIN, Edgar. As duas globalizações: complexidade e comunicação, uma pedagogia do presente. Porto Alegre: Sulina/EDIPUCRS, 2001, p. 39. 121 GÓIS, Ancelmo César Lins de; BARROS, Ana Flávia Granja e. Direito internacional e globalização face às questões de direitos humanos. In: RIBEIRO, Maria de Fátima; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coord.). Direito internacional dos direitos humanos: estudo em homenagem à Profª Flávia Piovesan. Curitiba : Juruá , 2006, p. 57.

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do mundo e a conseqüente expansão das empresas e centros financeiros que passaram a atuar

mundialmente.

Para Roland Robertson122, entretanto, não existe um único fato ao qual se possa atribuir

como o marco zero desse fenômeno, pois é resultado de um conjunto de acontecimentos

desenvolvidos ao longo da história da humanidade que geraram os múltiplos reflexos que hoje

fazem parte do nosso cotidiano. Como argumento base dessa afirmação o autor aponta como

primeiro grande acontecimento nesse processo o desmoronamento dos regimes feudais, na

Europa do século XV, quando surgiram as primeiras estruturas nacionais, desenvolvendo-se a

idéia de indivíduo. O próximo e sucessivo grande fato histórico está na segunda metade do

século XV quando se constrói a idéia de Estado como unidade política de um país. Firmam-se

as noções de cidadania e surgem as primeiras agências internacionais para regular as relações

entre os Estados. No período de 1870 a 1920, assiste-se a uma crescente formalização de

relações no plano internacional, surgem meios de comunicação de longo alcance,

impulsionados por movimentos de caráter internacional, como as olimpíadas e a padronização

das unidades de medidas de tempo, com a utilização do fuso horário. Além disso, põem-se em

gestação as primeiras noções sobre humanidade. Em 1914, tem início a primeira guerra

mundial e, paralelamente, começa uma longa fase de acumulação do capital por grandes

corporações. Na década de 40 o mundo enfrenta a 2ª grande guerra mundial, com horrendas

atrocidades cometidas contra os seres humanos, surgindo, como reação e resposta, a criação

da Organização das Nações Unidas. Começa à luta herculana entre as duas maiores propostas

de modelo econômico dominantes, o capitalismo e o socialismo, fato que fez surgir a

chamada Guerra Fria, a corrida pelo armamento nuclear e a formação de um bolsão de países

pobres que passaram a ser chamados de terceiro mundo.

Nessa linha cronológica, acrescenta-se o fato de que no início da década de 1970, ocorre

a crise do padrão monetário mundial, sistema que se baseava num câmbio fixo - ajustável e

em controles para limitar os fluxos de capital internacional, regulados pelo Fundo Monetário

Internacional (FMI), órgão criado por acordo multilateral para controlar e oferecer

financiamentos para eventuais distorções.123 O colapso do sistema é gerado pelo governo

americano, quando se recusa a desvalorizar o dólar para equilibrar a balança cambial e, sem

122 ROBERTSON, Roland. Globalização: teoria social e cultura global. Tradução João R. Barroso. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 88/9. 123 OLSON, Giovanni. Relações Internacionais e seus atores na Era da Globalização. Curitiba: Juruá, 2005, p. 96.

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qualquer aviso, sobretaxa as importações, forçando os demais países integrantes do acordo a

terem de realizar uma valorização artificial de suas moedas.124

Associado a esses fatos, nos períodos de 1973/1974 e 1978/1979, o mundo vive grandes

altas nos valores do petróleo, acarretando o aumento dos preços de bens e serviços, inflação,

estagnação econômica, baixa liquidez mundial e queda dos preços, deixando evidente o

esgotamento da possibilidade de crescimento do modelo financeiro, produtivo, industrial e

comercial até então vigente.125

A fim de superar essa crise, em meados dos anos 80126, os grandes conglomerados

econômicos aproveitam a afirmação hegemônica do sistema capitalista, associado à expansão

tecnológica da informática e dos meios de comunicação, para ampliar os mercados de

atuação, dando início a profundas modificações nas relações políticas, econômicas, culturais e

sociais, num grande número de países. Para tanto, promovem um movimento complexo de

abertura de fronteiras econômicas, utilizando recursos tecnológicos para interligar

mercados127 por todo o globo terrestre e permitir a movimentação instantânea de capitais, em

tempo real.

Por outro lado, quebram-se monopólios estatais, por meio da promoção de privatizações

em benefício de grandes corporações internacionais, diminuem-se as conquistas sociais dos

trabalhadores, para reduzir custos de produção, racionalizando-se as estruturas

organizacionais com a automatização de atividades produtivas e desregulamentam-se os

mercados financeiros para viabilizar a entrada, a saída e a circulação de capital, permitindo às

atividades econômicas capitalistas estenderem o seu campo de ação ao conjunto do planeta.128

Essas estratégias deram molde aos primeiros traços de um processo que passou a ser

conhecido e chamado de globalização e que tem levado a humanidade a vivenciar uma nova

fase de desenvolvimento, pois, de forma quase imperceptível, começaram a desaparecer as

divisas entre os países, surgiram novos pólos de poder e teve início um modelo de processo

124 EICHENGREEN, Barry. A globalização do capital: uma história do sistema monetário internacional. Tradução Sérgio Blum. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 131, 136 e 179. 125 FARIA, op. cit., p. 63/4. 126 SILVA, op. cit., p. 35. 127 BERNARDES, Márcia Nina. Globalização. In: BARRETO, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia Jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 380. 128 CHENAIS, op. cit., p.23.

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civilizatório que alcança nações, regimes políticos, grupos, classes sociais e economias,

criando uma sociedade global, complexa e contraditória.129

Esse fenômeno, ainda em construção, tem rompido e, ao mesmo tempo, subjugado as

formas sociais de vida e de trabalho, influenciando e uniformizando os comportamentos

sociais em todo o mundo.130 Um exemplo disso pode ser observado nos grandes aeroportos e

shopping centers de todo o planeta, visto que são praticamente iguais em formato e padrão de

funcionamento, com pouquíssima ou nenhuma influência das peculiaridades culturais dos

países em que estão inseridos. Esse fato demonstra a existência de uma estrutura que

pressiona os gostos e as preferências dos indivíduos para que atinjam um ponto de

homogeneização, como conseqüência de uma exigência das leis do capital que é a constante e

ininterrupta expansão dos mercados.131

A análise desse contexto evolutivo leva ao questionamento inevitável no sentido de se

estabelecer se a globalização é então um fenômeno inédito, independente e peculiar na

história da humanidade ou se simplesmente representa apenas uma forma de solução

encontrada pelas grandes corporações para pressionar países menos desenvolvidos a se

ajustarem às necessidades do capital internacional.

2.1.1. Globalização ou mito conveniente?

Alguns estudiosos da globalização defendem que ela nada mais é do que um mito

conveniente132, uma elaboração ideológica montada para atender aos interesses do mercado,

pois não representa uma realidade nova, mas somente a continuidade de um longo e gradual

processo de expansão internacional do capital que a utiliza como bandeira para permitir um

gerenciamento macroeconômico dos Estados.

Hirst e Thompson133 registram várias provas da superficialidade da tese da globalização,

defendendo que o mito não é casual, mas resultado de uma construção desenvolvida para

atender as necessidades do mercado, conferindo um aparente poder internacional ou global

129 IANNI, Octavio. A era do globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. p. 11/2. 130 LEVITT, Theodore. A imaginação de marketing. Tradução Auriphe Barrance Simões. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1991. p. 43. 131 PIMENTEL, Luiz Otávio. Direito industrial: as funções do direito de patentes. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 65. 132 BERNARDES, op. cit., p. 380. 133 HIRST, Paul; THOMPSON, Grahame. Globalização em questão. Tradução Wanda Caldeira Brant. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 14/5, 54-57.

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maior do que efetivamente existe, para intimidar as economias nacionais e locais. Primeiro,

sustentam que existem precedentes históricos justificadores da internacionalização da

economia no estágio atual e ressaltam que, em alguns pontos, a economia dita globalizada é

menos aberta e entrosada do que a forma adotada no período de 1870 até 1914. Exemplo

disso, registram os autores, pode ser encontrado no fato de que, antes da primeira guerra

mundial, o produto interno bruto (PIB) das economias industriais e suas colônias, movido

pelo comércio internacional, era bem mais expressivo do que o atual. Ademais, não existe

uma economia com circulação global, uma vez que o maior fluxo financeiro, comercial e de

investimentos está limitado ao espaço da América do Norte, da Europa e do Japão, sendo de

pequeno monte o que é negociado fora dessas fronteiras. Segundo, apontam que os

defensores da globalização trazem exemplos casuísticos de crescimento internacional de

algumas áreas muito específicas para alegar a existência de uma expansão generalizada da

economia, sob as ordens de um mercado global, quando, a bem da verdade, existe um número

pequeno de empresas transnacionais e, mesmo estas últimas, concentram os seus ativos nos

países de origem. Terceiro, o desenvolvimento prometido pela globalização não ocorre

porque é pequeno o fluxo de investimentos e a geração de empregos nos países explorados

pelo processo, em razão da volatilidade do capital. Quarto, defendem que não existe base real

para a alegação da inexistência de governabilidade dos mercados globais, visto que a

concentração econômica está limitada aos três blocos de países antes referidos, que têm uma

capacidade política expressiva. Desse modo, a ausência de políticas reguladoras desse

mercado globalizado não decorre da falta de instrumentos, mas da vontade conveniente e

deliberada dessa tríade134 dominante, no sentido de se abster da criação de mecanismos de

controles.

Também Milton Santos135 define a globalização como uma fábula na qual os agentes

principais têm buscado erigir algumas fantasias como a criação de uma aldeia global, o

encurtamento das distâncias, associado à noção de tempo e espaço reduzidos, o

desenvolvimento de um mercado global, extraordinário e irresistível, uniformizando o planeta

e declarando a morte do próprio Estado. Para o autor, todavia, o que a realidade demonstra é

que a difusão instantânea de notícias, corolário da idéia de aldeia global, somente ocorre para

veicular informações de interesses específicos e que o alcance do mundo sem fronteiras não

existe para todos, mas somente para os que possuem recursos financeiros para transitar nesse 134 CHENAIS, op. cit., p. 36. 135 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 12. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 18/9.

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perímetro. Quanto à proclamada unidade mundial, que estaria sendo promovida pela

globalização, vê-se que está cada vez mais distante, pois se acentuam os conflitos culturais,

religiosos e ideológicos, tornando as sociedades cada vez menos unidas, enquanto se ressalta

o individualismo como modelo de vida.

Como se pode verificar, a principal crítica dos autores que enxergam a globalização

como um mito está centrada na supervalorização que se tem dado a esse processo, uma vez

que as economias nacionais, superestimando a força externa, sujeitam-se às regras do

mercado internacional, esquecendo o seu grau de importância dentro desse contexto. Além

disso, critica-se também a falsa idéia no sentido de que a globalização seria um movimento

acéfalo e desenfreado, porque, a bem da verdade, ela beneficia um triângulo de territórios

(América do Norte, Europa e Japão) formado por países que têm forte influência e poder

sobre os seus movimentos.

Por outro lado, tem-se uma segunda corrente de pensamento a qual os seguidores

defendem a idéia de que a globalização possui uma especificidade científica que merece uma

atenção diferenciada em razão das transformações estruturais que tem acarretado na sociedade

moderna.136 Sustentam que ela é um fenômeno novo e que os argumentos apresentados por

aqueles que a vêem como um mito, na realidade, acabam demonstrando o próprio ineditismo

desse instituto.137 Procuram comprovar essas afirmações argumentando que a peculiaridade

desse processo está no fato de o capital estar sendo utilizado de uma nova forma,

qualitativa138, com um aumento significativo dos volumes de investimentos externos se

comparados com o comércio exterior. Isso quer dizer que nessa nova realidade as empresas

transnacionais, embora em número não tão expressivo, conseguem alcançar uma superação de

investimentos externos diretos, utilizando processos produtivos e formas de gerenciamento

inovadoras, por meio da descentralização de operações, terceirização e automatização.

No que concerne à característica de concentração de investimentos nos países que

formam a tríade capitalista, têm-se duas conseqüências: a primeira, mais uma vez, mostra a

especialidade desse movimento que se caracteriza, nesse aspecto, como excludente e

marginalizante; a segunda evidencia uma nova realidade política na qual quem tem poder de

136 BERNARDES, op. cit., p. 380. 137 OLSON, op. cit., p. 101. 138 CHENAIS, op. cit., p. 59.

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controlar o sistema se abstém de fazê-lo propositalmente em benefício do interesse do capital

financeiro internacional que abriga.139

Por tais motivos é que Anthony Giddens140 afirma que a globalização não pode ser vista

apenas como uma continuidade de movimentos anteriores, mas uma nova realidade que

espelha uma economia global pelo menos “no nível dos mercados financeiros”.

A análise dos argumentos das duas teorias até aqui estudas permite a conclusão no

sentido de que a globalização, no seu atual estágio, é um fenômeno diferente de todos aqueles

já vividos na história da humanidade. Isso é verificado principalmente quando se observam as

profundas e rápidas modificações que esse processo tem acarretado na política, na economia e

nas formas de viver e de pensar das diversas sociedades existentes no planeta. Sua alavanca

histórica está nas crises monetária e do petróleo, ocorridas na década de 70, que levaram as

grandes corporações a internacionalizarem suas operações, desvinculando-se das restrições

existentes nas economias nacionais, por meio da criação da figura do capital volátil, que se

move de um ponto ao outro do planeta, em frações de segundos, graças ao apoio fundamental

da tecnologia.

Resta claro, também, que a globalização é produto de movimentos ocidentais e tem

servido a interesses hegemônicos dos governos da América do Norte, Europa e Japão. Aliás,

nesse aspecto, tem-se a concordância141 dos teóricos das diversas correntes que buscam

explicá-la. Além disso, outro fator que contribuiu para o desenvolvimento desse fenômeno

global foi a inação e permissividade dos governos dos países excluídos da tríade acima

referida, pois se subjugaram aos ditames externos, realizando políticas de privatização,

liberalização do comércio e desregulamentação das suas economias, sob a crença de que a

resistência poderia acarretar o seu isolamento no cenário internacional.

O que se questiona a partir desses dados é como se pode, então, conceituar a

globalização? A resposta não é simples, pois, como se viu, existem diferentes vertentes

teóricas sobre o tema, sem, no entanto, alcançarem consenso acerca do seu sentido preciso.

Associada a isso está a dificuldade da sua precisão terminológica, uma vez que se utilizam as

expressões globalização ou mundialização para fazer referência a um mesmo fenômeno,

agregando-se a cada uma dessas categorias novas teorias que buscam justificar a adoção de 139 FARIA, op. cit., p. 234. 140 l, Anthony. A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social democracia. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 40.

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um ou outro termo. Essa peculiaridade dificulta ainda mais o entendimento desse instituto,

pois essas expressões são empregadas, ora como sinônimos, ora com sentidos diferenciados,

criando uma desordem semântica que necessita ser enfrentada e esclarecida para se conseguir

chegar ao estabelecimento dos traços gerais de uma conceituação e, com isso, definir o

alcance que se pretende empregar ao fenômeno nessa pesquisa.

2.1.2. Globalização, mundialização e os traços gerais de uma conceituação desses

fenômenos

O termo globalização (globalization) passou a ser empregado pela primeira vez, nas

escolas de administração e marketing americanas, no início da década de 80, entre as quais se

destacaram as business management schools de Harvard, Standford, Columbia, entre outras,

para expressar o surgimento de um movimento político-econômico criado para romper as

dificuldades fronteiriças opostas à expansão das atividades capitalistas, através de estratégias

de atuação internacional, viabilizadas pelo avanço da informática, telecomunicações e pela

desregulamentação dos mercados internos dos países.142 A sua popularidade, entretanto, foi

alcançada quando passou a ser empregada nos meios de comunicação especializados em

economia e finanças, em especial pelas publicações de consultores, formados nessas escolas,

tais como Keinichi Ohmae e Michael Porter.143 Além disso, as grandes indústrias japonesas

também passaram a empregar largamente a expressão para conceituar um novo paradigma

mundial, de grandes empresas transnacionais sem fronteiras.144

No que concerne à expressão mundialização, André-Jean Arnaud145 defende que o uso

desse termo tem maior aceitação no idioma francês, caracterizando-se como uma opção

gramatical diretamente ligada à preocupação com a proteção da identidade cultural européia

do que com o fenômeno em si. Contudo, reconhece que cada uma das expressões possui um

alcance distinto. Enquanto a mundialização, sob o aspecto histórico, traz consigo uma

associação epistemológica que lembra as pretensões imperialistas mediterrâneas da

cristandade medieval de domínio sobre todas as fronteiras, a utilização do termo globalização,

141 BERNARDES, op. cit, p. 380. 142 CHENAIS, op. cit., p. 23. 143 SILVA, op. cit., p. 41. 144 TAVARES, Maria da Conceição; FIORI, José Luís. (Des)ajuste global e modernização conservadora. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 47. 145 ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização: lições de filosofia do direito e do estado. Tradução Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 6/7.

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ao contrário, permite evitar confusões e indicar a existência de um novo fenômeno, distinto e

específico, que representa uma nova forma de utilização do espaço mundial.

Há ainda autores que entendem que, fora a opção gramatical geográfica, o termo

mundialização traz consigo uma ampliação de sentido146 do fenômeno da globalização, ou

seja, representa um diferente nível de um mesmo processo, pois, além do aspecto tecnológico

e econômico, peculiar ao global, agrega a "mundialização" da cultura. Isso importa o

reconhecimento de que existe um grande movimento em que as diversas culturas se afrontam,

confundem-se e tendem a formar um novo modelo mundial. Nesse sentido, Victor Olea e

Abelardo Flores147 também diferenciam as duas expressões aduzindo que a globalização

materializa uma mundialização capitalista, enquanto a mundialização aponta para uma

tendência do capital de criar um sistema mundial que imponha uma hegemonia em diversos

níveis da vida humana, tais como geográficos, sociais, ideológicos e culturais.

François Chesnais148 arremata, lembrando que a expressão globalização não foi

escolhida aleatoriamente. Ao contrário, ela tem o propósito ideológico de se desconectar de

qualquer peculiaridade nacional, para colocar-se no imaginário como algo que não admite

controle, por estar fora do alcance das possibilidades dos Estados. Por isso, a tendência

lingüística de usar-se o termo globalização em detrimento de mundialização.

Como se pode observar, mais do que uma opção gramatical geográfica, mundialização e

globalização são termos que, embora correlatos, resultam em significados distintos, pois

externam diferentes graduações de um mesmo fenômeno. Enquanto a globalização envolve os

aspectos econômicos e tecnológicos da expansão do capital internacional, a expressão

mundialização abarca o processo de homogeneização da própria cultura mundial.

Com essa distinção terminológica, opta-se, para os fins deste trabalho, pela utilização do

termo globalização, pois o corte epistemológico pretendido é justamente o entendimento dos

impactos que as ações político-econômicas desse fenômeno têm causado aos direitos

humanos.

Feita essa opção gramatical, passa-se agora à colação dos elementos que permitam a

construção de uma aproximação conceitual do fenômeno da globalização.

146 PIMENTEL, op. cit., p. 65. 147 OLEA, Victor Flores; FLORES, Abelardo Marina, Critica de la globalidad: dominación y liberación en nuestro tiempo. México: Fondo de Cultura Económica, 1999, p. 11. 148 CHENAIS, op. cit., p. 34.

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A primeira premissa que se pode estabelecer é que esse processo não pode ser

vislumbrado sob um único foco de abordagem, pois constitui um movimento complexo, que

está em constante desenvolvimento e, por isso mesmo, exige, para a sua compreensão, uma

visão multiangular que seja capaz de acompanhar o seu dinamismo. Nesse sentido, André-

Jean Arnaud149 alerta que a globalização, sob o aspecto social, econômico, demográfico e até

mesmo cultural, instala-se “no coração das nações”, ao mesmo tempo em que as transcende,

pois o local passa a ser influenciado pelo global e vice-versa. Isso mostra que não se pode

limitar a visão desse fenômeno a um ou alguns processos locais ou externos, mas deve-se

observar o contexto macro em que ele se desenvolve.

Desse modo, o conceito de globalização deve ser, como o próprio fenômeno, amplo e é

justamente essa peculiaridade que torna ainda mais difícil a sua definição, visto que os

teóricos numeram um grande rol de diferentes características para construir sua concepção.

Por tais motivos, listam-se nesse trabalho somente os elementos mais referenciados pelos

diferentes estudiosos do assunto, buscando-se, na abordagem desses caracteres comuns,

chegar-se aos contornos de sua conceituação.

Nesse diapasão, destacam-se cinco características que estão presentes nas mais diversas

teorias e que podem ser utilizadas para definir a globalização. A primeira é o cunho

econômico do fenômeno, ou seja, vê-se na globalização um processo econômico, voltado a

um mercado sem fronteiras, fruto de uma estratégia mundial que atinge os sistemas de

serviços, consumo de bens, produção e distribuição.150 A segunda característica é a vinculação

de dependência que esse processo mantém com a tecnologia, uma vez que ela é o instrumento

de transporte quase instantâneo do capital especulativo e das informações sobre os fatos

acontecidos nos mais remotos pontos do planeta e que são essenciais para a tomada de

decisões dos atores desse fenômeno.151 A terceira característica é o desenvolvimento desigual

que a globalização traz, privilegiando um número restrito de países e investidores, em

detrimento de uma grande parcela da população mundial, excluída do sistema.152 A quarta é a

influência que o esse processo exerce sobre os diversos patamares da vida humana,

149 ARNAUD, op. cit, p. 16. 150 ORTIZ. Renato. Mundialização e cultura. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 15/6. 151 CASTELLS, Manuel. Fim de milenio. Versión castellana de Carmen Martínez Gimeno. v. 3. Madrid: Alianza, 1998, p. 369. 152 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Tipos de Estado (globalização e exclusão). Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, Brasília, v. 2, n. 6, p. 40, set./dez. 1998.

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modificando culturas, crenças e impondo novos padrões de valores e comportamentos.153 A

quinta característica é a mudança dos papéis exercidos pelos Estados-nação e pelos

organismos internacionais que perdem significativamente a autonomia e os poderes que até

pouco tempo exerciam, em detrimento de novas figuras, tais como as empresas transnacionais

e as organizações não governamentais.154

Essas características demonstram que a globalização é uma realidade complexa,

paradoxa e em constante desenvolvimento, que inclui uma série de processos inter-

relacionados em diferentes níveis, tais como políticos, culturais e sociais, entre outros. É um

sistema policêntrico, autopoiético155, porque se auto-reproduz ao mesmo tempo em que se

inter-relaciona com outros sistemas, razão pela qual possui várias feições ou dimensões nas

quais atua, influencia, condiciona e até mesmo suplanta.

Desse modo, vê-se que a compreensão do instituto passa também pelo estudo das

principais dimensões em que opera, pois esses elementos permitirão a sua compreensão

global, de forma a instruir a pesquisa com elementos que tornem possível o conhecimento da

sua natureza, alcance, relevância e conseqüências sociais, bem como da influência que exerce

sobre os direitos humanos.

2.2. Dimensões do Processo de Globalização

Como se viu anteriormente, a globalização é um fenômeno pluridimensional que,

embora tenha cunho eminentemente econômico, acarreta desdobramentos em diversos níveis

da vida humana. Como são muitas as inflexões exercidas por esse processo156, elege-se, para

os fins deste estudo, a análise das dimensões econômica, política, sociocultural e jurídica, uma

vez que são as áreas mais visivelmente afetadas e também pelo fato de terem estreita

influência sobre os direitos humanos.

Na dimensão econômica, em síntese, o processo de globalização permitiu a otimização

do sistema de produção, administração e negócios comerciais, pois padronizou esses 153 MONETA, Carlos Juan; QUEAN, Carlos. El processo de globalización: percepciones y desarrollo. In: MONETA, Carlos Juan; QUEAN, Carlos. Las regras del juego: América Latina, globalización y regionalismo. Buenos Aires: Corrigedor, 1994, p. 148. 154 ARNAUD, op. Cit., p. 17. 155 ROCHA, Leonel Severo da. Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p.38.

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procedimentos em praticamente todo o mundo, possibilitando às grandes corporações

internacionais descentralizarem seus sistemas produtivos, operando em países onde os custos

de mão de obra e matéria prima são extremamente baixos, para produzir bens em escala

mundial.157 Além disso, acarretou também a liberalização e a desregulamentação dos

mercados financeiros, de forma a permitir a livre circulação do capital especulativo em cada

território, sem os antigos entraves criados pela autonomia decisória de que gozavam os

poderes públicos Estatais. Isso permitiu às grandes corporações transnacionais, que atuam no

mercado financeiro globalizado, assumirem o controle sobre o percentual da taxa de juros, do

valor do câmbio, da remuneração das poupanças e dos investimentos em todo o planeta,

coagindo os Estados a seguirem seus ditames sob pena de retirada maciça de todo o capital

financeiro investido naquele mercado.158

Nos âmbitos político e jurídico, a principal conseqüência trazida pelo processo de

globalização está no declínio da unidade do Estado e do direito, visto que as regras do

mercado global foram se desenvolvendo e reduzindo o significado das ordens jurídicas

nacionais e internacionais.159 Surgiram novos tipos de regramentos que se sobrepuseram ao

jurídico: a lex mercatoria (lei do mercado) caracterizada por seu dinamismo, flexibilidade,

volatibilidade e que materializa uma verdadeira ordem de direitos sem Estado, pois constitui

um conjunto autônomo de regras, princípios e práticas estabelecidos pelo seleto grupo

empresarial transnacional para regular suas transações160 e o direito da produção que diz

respeito ao rol de normas técnicas elaboradas para padronizar os níveis mínimos de segurança

e qualidade dos serviços e bens circulantes no mercado globalizado.161

Essa nova realidade permitiu que as empresas multinacionais passem a assumir o papel

de agentes fundamentais dentro do sistema da globalização, afastando, pelos mais diversos

156 VIOLA, Eduardo. A muntidimensionalidade da globalização, as novas forças transnacionais e seu impacto na política ambiental no Brasil, 1989-1995. In: FERREIRA, Leila da Costa; VIOLA, Eduardo (Orgs.). Incertezas de sustentabilidade na globalização. Campinas: UNICAMP, 1996, p. 17. 157 SANTOS, Ângela Moulin Penalva. Globalização econômica e financeira na América Latina. A inserção das economias latino-americanas na nova ordem econômica. In: Fundação Alexandre Gusmão (FUNAG). Seminário Internacional Globalização na América Latina: integração solidária. Brasília, 1997, p. 57-65. 158 OLIVEIRA, Odete. Integração: um desafio à globalização. Revista da Faculdade de Direito da UFSC, Florianópolis, v.1, p. 129-138, 198. 159 SANTOS, M., op. Cit., p. 67. 160 TEUBNER, op. cit., p. 344. 161 FARIA, José Eduardo. Declaração Universal dos Direitos Humanos : um cinquentenário à luz da globalização econômica. In: Revista CEJ, Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, v. 2, n. 6, p. 53, set./ dez. 1998.

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tipos de acordos, as matérias que até então pertenciam à esfera decisória dos Estados162,

obrigando-lhes a cumprir diretrizes externas, fato que tem ocasionado uma real perda do

poder político-soberano nacional.

Sob o aspecto social, esse movimento trouxe aos indivíduos, que antes viviam em

sociedades locais, nacionais e sujeitas basicamente aos impactos provocados pelas decisões

tomadas pelos respectivos governos, a inclusão em uma comunidade global163, transnacional e

sujeita aos reflexos do mercado internacional. Nesse novo contexto, as pessoas passaram a ser

atingidas e influenciadas diariamente no seu modo de ser, de pensar e até mesmo de agir, pois

a cada crise financeira internacional, a cada movimento de capital financeiro de um ponto a

outro do planeta, a cada fusão ou fechamento de grandes corporações multinacionais, surgem,

como conseqüências imediatas, o desemprego, a desigualdade social, a pobreza e a miséria,

para uma diversidade de indivíduos que vivem em diferentes regiões do planeta, ao mesmo

tempo em que esse processo gera riquezas e prosperidade para um seleto grupo de pessoas e

países.164

A análise dessas dimensões confirma que a globalização é um fenômeno que tem como

fim a expansão do âmbito de atuação das empresas transnacionais, para a maximização do

lucro, independentemente das conseqüências sociais acarretadas. Para tanto, usam diferentes

formas políticas e econômicas para influenciar, condicionar e suplantar as diversas culturas e

substituir o Estado como ator principal, criando um novo tipo de sociedade, caracterizada por

costumes consumistas e desprendida de valores éticos e morais. Isso se verifica: 1º) na área

econômica: com a internacionalização do capital financeiro, sem o controle dos Estados

nacionais; 2º) no âmbito sócio-político: pela corrosão da soberania estatal, suprimida pela

emergência de uma classe capitalista transnacional e controladora que reduz a influência do

Estado e passa a ser o agente principal do sistema de poder; e 3º) na esfera cultural: pela

introdução e imposição de certos valores como sendo universais, necessários ao bem estar de

todos, independentemente da cultura histórica.

Dentro dessa complexidade, é possível delinear que o processo de globalização tem

como agentes principais as grandes corporações privadas internacionais, que vêm atuando

para a criação de um grande mercado mundial, espaço onde maximizam os lucros, através da 162 FARIA, José Eduardo. Informação e democracia na economia globalizada. In: SILVA JÚNIOR, Ronaldo Lemos da; WAISBERG, Ivo (Orgs.). Comércio eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 17. 163 MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Tradução Décio Pignatari. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 1998, p. 9.

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produção de bens de consumo em escala internacional, com um custo operacional cada vez

mais enxuto.165 Na busca desse objetivo universalizam padrões culturais específicos e

transnacionalizam as relações sociais, impondo um conjunto de valores relacionados ao

consumo. Prova disso está no fato de que, no início da década de 80, os conglomerados

transnacionais controlavam 76% da produção manufatureira mundial166 e, em 1993, um terço

da capacidade produtiva do planeta do setor privado pertencia direta ou indiretamente às

corporações multinacionais167.

Como se pode observar, essa múltipla influência da globalização, nas diversas

dimensões antes estudadas, importa em um custo social bastante elevado. Nesse sentido,

Milton Santos168 adverte que “a globalização está se impondo como uma fábrica de

perversidades”, uma vez que tem gerado desemprego crônico, aumento da pobreza, redução

de salários, fome, desabrigo e até mesmo o retorno de antigas doenças que se supunha

eliminadas na modernidade.

Diante dessas conseqüências humanas, cabe investigar então as causas desse elevado

custo social da globalização, para, com isso, compreender o impacto que esse fenômeno

produz sobre os direitos humanos.

2.3. O custo social da globalização e seu impacto sobre os direitos humanos

Embora a globalização represente uma nova fase na história da humanidade que tem

permitido, através das diversas tecnologias e meios de comunicação, aproximar as diferentes

realidades sociais, reduzindo distâncias e facilitando o conhecimento de fatos ocorridos em

vários pontos do planeta, em tempo real, tem também gerado graves conseqüências humanas.

Esse último aspecto do fenômeno ganha relevo e torna-se preocupante quando se verifica que

o seu custo social alcança dimensões globais e atinge a maior parte da população mundial que

sofre as mais variadas formas de fragmentação.169

164 IANNI,op. cit., p. 27/8. 165 OLSON, Giovanni. Globalização e atores internacionais: uma leitura da sociedade internacional contemporânea. In: OLIVEIRA, Odete Maria de; DAL RI JÚNIOR, Arno (Orgs.). Relações Internacionais: Interdependência e sociedade global. Ijuí: Unijuí, 2003, p. 550. (p. 537-563) 166 LATOUCHE, Serge. A ocidentalização do mundo: ensaio sobre a significação, o alcance e os limites da uniformização planetária. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 102. 167 Relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Econômico (UNCTAD), 1993. Disponível em: <http://www.un.org>. Acesso em: 08 de setembro de 2006. 168 SANTOS, M., op. cit., p. 19/20. 169 SILVA, op. cit., p. 109.

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José Reinaldo de Lima Lopes170 lembra que, historicamente, as conseqüências sociais da

globalização começaram a ser mais fortemente sentidas quando o Fundo Monetário

Internacional e o Banco Mundial iniciaram, nas décadas de 80 e 90, sua cruzada para a

formação de um mercado global, através da imposição a países da América Latina, África e

Leste Europeu de um novo modelo normativo ideológico de reformas estruturais, forçando a

realização de privatizações, desregulamentações e o desenvolvimento de políticas de

austeridade fiscal. O autor ressalta ainda que, enquanto esses organismos concediam

empréstimos financeiros para os Estados daqueles continentes, incrementavam

geometricamente a dívida externa dos mesmos, gerando um surto inflacionário interno que os

subjugou definitivamente à condição de dependentes da ajuda financeira internacional.

Essa intervenção neoliberal foi possível graças à profunda crise econômica mundial

vivida na década de 70, estudada no item 2.1 desse capítulo, que colocou muitos Estados em

uma complicada situação financeira, impedindo-os de dar conta da ascendente demanda social

interna, não restando alternativa a eles senão recorrer à ajuda internacional.171 Como se pode

depreender desses fatos, a ironia da situação é que a condição de ajuda apresentada pelos

organismos internacionais estava diretamente relacionada à adequação interna dos Estados à

implementação das condições necessárias para a acumulação e expansão do capital externo.

Prometeu-se geração de empregos e riquezas em troca da redução do Estado, com

privatizações de setores estratégicos, aumentos de tributos e desregulamentação da economia.

O resultado, como já se viu, foi a perda de autonomia Estatal e a sua dependência completa

aos órgãos externos.

Para agravar a situação, a tecnologia e a otimização dos processos de produção, traços

marcantes do processo de globalização, têm retirado do mercado de trabalho um número cada

vez maior de trabalhadores que se tornam membros sem utilidade para o sistema, por não

terem mais poder de consumo.172 Isso tem gerado um aumento preocupante nos índices de

desemprego, pobreza, marginalização e exclusão social.

Essa situação, segundo Eduardo Galeano173, ocorre por que a economia mundial

demanda a existência de mercados de consumo cada vez maiores, pois o sistema precisa

vender mais para incrementar os lucros, ao mesmo tempo em que o mesmo sistema exige a 170 LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos humanos, pobreza e globalização. Revista AMB, Associação dos Magistrados Brasileiro, Brasília, Ano I, n.2, p.47 (47-59), ago./set./out. 1997. 171 MAGALHÃES, op. cit., p. 40. 172 SILVA, op. cit., p. 120.

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redução dos custos operacionais. Como conseqüência, salienta o autor, cria-se um paradoxo:

de um lado, as grandes corporações transnacionais utilizam os meios de comunicação de

massas para desenvolver nos indivíduos a cultura do consumo descomedido, tornando reais as

necessidades artificiais, tática necessária, segundo a lógica do sistema, para a expansão dos

mercados de consumo e, de outro lado, simultaneamente, adotam práticas, muitas vezes

imorais e desumanas, para pagar cada vez menos pela mão-de-obra que, em alguns países,

vive em situação muito próxima à escravidão.

Essa contradição tem gerado uma legião significativamente maior de desempregados,

rechaçados pelo sistema, que culminam por se sujeitar às mais variadas formas de degradação

da dignidade humana, tornando-se autores e vítimas da violência que vem ocorrendo de forma

progressiva e desenfreada. Como catalisador desse processo, estão os próprios valores

incutidos pelo processo de globalização, visto que os excluídos do sistema querem ter os bens

de consumo que acreditam ser necessários para a sua felicidade174, mas não têm acesso

econômico para tanto, porquanto são desempregados ou, se possuem trabalho, ganham tão

pouco que mal conseguem garantir a própria subsistência.175 Assim, roubam, matam e

materializam um incontável número de atos atentatórios à vida e à integridade física do

próximo, buscando ter o que suas vítimas têm e, com isso, alcançar o nirvana da felicidade

que a sociedade do consumo176 global apresenta como possível. Esse preocupante fato tornou

a vida em sociedade um campo de batalhas diário, onde o homem tem sido, parafraseando

Hobbes177, o lobo do próprio homem.

Nesse sistema desagregador da dignidade humana, reduzem-se cada vez mais os direitos

sociais178 e uma grande massa de trabalhadores é obrigada a sujeitar-se, diuturnamente, a

situações degradantes para manter-se num mercado de trabalho em que os indivíduos são

descartáveis e substituíveis facilmente pela farta legião de desempregados que aguardam uma

oportunidade de colocação. Em muitos países pobres, os indivíduos trabalham em troca de

comida ou um pouco mais, de sol a sol, sem o mínimo de garantias e respeito às relações de

173 GALEANO, op. cit., p. 27. 174 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p .88. 175 MORIN, 2001, p. 47. 176 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Neoliberalistmo: o declínio do direito. In: In: RÚBIO, David Sánchez; FLORES, Joaquín Herrera; CARVALHO, Salo de (Orgs.). Direitos humanos e globalização: fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 109. 177 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 178 MARQUES NETO, op. cit., p. 112.

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trabalho. Formam a mão de obra de baixo custo, utilizada pelas indústrias de exportação que

trabalham na produção de bens para as grandes empresas multinacionais.

Como resultado desse processo, tem-se a angústia de um crescente número de seres

humanos, em praticamente todos os países, diante da degradação de sua existência, vivendo

em situações de precariedade, sem proteção social, com fome, e sofrendo de diversas

enfermidades, enquanto assistem a uma elite que expõe sua riqueza sem a menor preocupação

com o próximo. A gravidade das conseqüências humanas da globalização é constatada pelos

dados do Millennium Project, da Organização das Nações Unidas179, no qual se registra que,

atualmente, mais de oitocentos milhões de pessoas, entre as quais 300 milhões de crianças,

deitam-se todas as noites com fome. Essa má nutrição acarreta a morte de mais de seis

milhões de crianças, antes de completarem cinco anos de idade. A fome também é

responsável pela morte de uma pessoa a cada 3,6 segundos. Além disso, mais de um bilhão de

pessoas sobrevive com menos de um dólar por dia, enquanto outros 2,7 bilhões vivem com

menos de dois dólares por dia. Por fim, registra a ONU, quarenta por cento da população

mundial sobrevive sem saneamento básico, sendo que mais de um bilhão de pessoas usa

fontes de água imprópria para o consumo.

Esse preocupante quadro, em que o lucro é o bem maior e o ser humano uma simples

variável, atinge frontalmente a dignidade humana e, por conseguinte, os direitos humanos que

são a expressão de sua proteção. Fica evidente que a salvaguarda desses direitos no mundo

globalizado exige uma abordagem diferente daquela que foi desenvolvida ao longo do século

XX, quando haviam sido concebidos como forma de proteção dos indivíduos contra o poder e

a interferência arbitrária do Estado.180 Isso era feito pela incorporação de uma série de normas

veiculadoras de direitos e garantias fundamentais, no próprio sistema jurídico nacional, em

especial, nas constituições. Criavam-se regras, portanto, que limitavam a atuação do poder

público em relação aos indivíduos e, ao mesmo tempo, o Estado era incumbido de oferecer

proteção concreta aos direitos humanos.

Com a globalização, todavia, a soberania Estatal desmoronou181 e várias de suas

179 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Millennium Project: banco de dados. Disponível em: http://www.pnud.org.br/milenio/index.php. Acesso em: 01 ago. 2007, as 00h15min. 180 FLORES, Joaquín Herrera. Los derechos humanos em el contexto de la globalización: tres precisiones conceptuales. In: RÚBIO, David Sánchez; FLORES, Joaquín Herrera; CARVALHO, Salo de (Orgs.). Direitos humanos e globalização: fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 93. 181 MORAIS, op. cit., p. 127.

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competências se esvaziaram ou relativizaram, passando a ser condicionadas e reguladas pelas

leis do mercado e por forças externas, tais como as exercidas pelo Banco Mundial, pelo Fundo

Monetário Internacional, pela Organização Mundial do Comércio, pela Organização Mundial

da Propriedade Intelectual, entre outros.182 Isso provocou uma crise no direito nacional dos

Estados e, por conseguinte, dos próprios direitos humanos que ali estão positivados, uma vez

que a impotência e a falta de recursos econômicos desses países fizeram com que esses bens

jurídicos assumissem a forma de mera figura textual, sem força normativa.183

Um exemplo disso pode ser encontrado no caso dos direitos ao trabalho, à proteção

contra o desemprego e à remuneração satisfatória, que permita uma existência digna,

previstos no art. 23 da Declaração Universal de Direitos Humanos da O.N.U e repetidos em

praticamente todas as constituições internas dos países. Dentro da lógica do processo da

globalização, esses direitos têm sido considerados óbices ao bom funcionamento do mercado,

à produtividade e à competitividade das organizações econômicas, razão pela qual restam

descumpridos e violados na maioria dos países, pois não possuem autonomia e lastro

socioeconômico suficientes para sua completa efetivação.184

Como se pode observar, a globalização alcançou um nível tal de imposição que os

Estados não possuem mais força para fazer valer sua ordem jurídica interna para as empresas

transnacionais. Ao contrário, são estas corporações que estabelecem a quais os tipos de

legislações nacionais estão dispostas a se submeterem, como forma de contrapartida para os

investimentos que farão para sediar suas linhas de produção. Desse modo, vê-se que a

globalização, ao suprimir os mecanismos decisórios dos Estados, gera a própria involução dos

direitos humanos, uma vez que esses entes públicos não possuem mais condições de protegê-

los e concretizá-los. Passam a existir, portanto, somente no plano formal dos textos jurídicos

internos dos Estados, sem possuírem mais força normativa, diante dos constantes processos de

descontitucionalização, deslegalização e desregulamentação perpetrados pelos conglomerados

econômicos multinacionais.

No que concerne às instâncias judiciais do Estado, que poderiam ser a última

salvaguarda de preservação dos direitos humanos dentro desses territórios, vê-se que sua

atuação está também esvaziada e absorvida pelo trabalho cada vez mais volumoso de punição

182 MÜLLER, Friedrich. A democracia, a globalização e a exclusão social. Anais da XVIII Conferência Nacional dos Advogados: Cidadania, Ética e Estado. Brasília: Conselho Federal da OAB, 2003. p. 263. 183 FLORES, op. cit., p. 96. 184 FARIA, 1998, p. 49.

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e repressão dos delitos cometidos pelos excluídos do sistema, por causa do desenvolvimento

de um direito penal mais abrangente e rigoroso.185 Isso tem acarretado a inserção no segundo

plano da essencial proteção que o Poder Judiciário deveria conferir aos direitos humanos

fundamentais.

Diante dessa complexidade, nota-se que a efetivação dos direitos humanos não pode

mais ser imaginada pela simples imposição de limites ao Estado nacional, mas passa por um

processo de universalização dessa categoria, integrando-a a todo o sistema global que tem o

poder de afetar as pessoas, nos quatro cantos do planeta, simultaneamente. A concretude

desses direitos deve ser buscada, portanto, nos tratados, convenções, pactos e protocolos

adicionais que estabeleçam regras claras e objetivas, no sentido de salvaguardarem, de forma

eficaz, a dignidade humana e que, além disso, sejam de observância obrigatória a todos:

Organismos Internacionais, Estados, conglomerados econômicos, entre outros. Por isso, como

o próprio fenômeno da globalização, esse novo paradigma dos direitos humanos deve

ultrapassar fronteiras para efetivar a proteção dos seres humanos onde quer que estejam.

Além disso, Friedrich Müller186 acrescenta que, para se atingir a meta mundial de

proteção dos direitos humanos, deve-se iniciar pela busca da globalização da democracia, que

deverá ocorrer “de baixo para cima”. Isso quer dizer que se devem incentivar as iniciativas

grupais, ações individuais e formas de democracia participativa, que possam ser irradiadas em

escala mundial e desenvolver, gradualmente, uma verdadeira comunidade global que seja

capaz de colocar novamente a economia a serviço das pessoas, retornando o ser humano ao

papel de agente principal do contexto social.

Nesse sentido, o próprio processo de globalização, diante das injustiças e desequilíbrios

que traz, tem contribuído para o surgimento de fenômenos de reação social de repulsa,

conhecidos como movimentos antiglobalização, que buscam criar uma nova visão do que

significa democracia187, em que a concepção dos direitos humanos, como categorias

universais e efetivas, ocorre pela implementação de lutas contra as injustiças produzidas por

esse processo.188 Boaventura de Souza Santos salienta que esse contra-movimento está sendo

esboçado “nos conflitos, nas resistência, nas lutas e nas coligações em torno do

cosmopolitismo e do patrimônio comum da humanidade que demonstram que a globalização

185 FARIA, 1999, p. 262/3. 186 MÜLLER, op. cit., p. 268. 187 FLORES, 2004, p. 97. (65-101) 188 Id. Ibid., p. 100/1.

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é, na verdade, um conjunto de arenas de lutas transfronteiriças”.189

A dúvida que surge diante dessas proposições é como viabilizar o desenvolvimento de

direitos humanos universais, obrigatórios para as diferentes regiões do mundo, frente às

diversas culturas que adotam padrões de sentido totalmente distintos e levando em conta os

padrões culturais consumistas perpetrados pela globalização. Esse questionamento exige uma

abordagem bastante detalhada, razão pela qual se optou por destinar o próximo capítulo desta

pesquisa para o seu enfrentamento, no qual se trabalharão, especificamente, as dificuldades

enfrentadas para a universalização dos direitos humanos.

189 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma concepção multicultural dos direitos humanos. Contexto Internacional, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 23, n.1, p. 15, jan./jun. 2001.

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CAPÍTULO III

3. A PROBLEMÁTICA DA UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Este capítulo tem por objetivo analisar os fundamentos teóricos e práticos de uma

possível categoria universal de direitos humanos, capaz de influenciar e condicionar as

diversas ordens jurídicas nacionais e internacionais, verificando as formas que podem garantir

o seu respeito e concretização. Para tanto, o assunto foi dividido em três partes: 1º) as

resistências culturais de efetivação dos direitos humanos; 2º) os fundamentos teóricos de uma

categoria universal de direitos humanos; e 3º) a busca da eficácia dos direitos humanos na

sociedade global e a sua realização nas ordens jurídicas nacionais e internacionais.

Na primeira parte estudar-se-ão os óbices culturais que são opostos à universalização

dos direitos humanos, expondo-se os argumentos teóricos dos autores que defendem a

relatividade cultural desse instituto, trabalhando-se em especial com as teses que sustentam a

impraticabilidade de um monismo moral/cultural. Além disso, serão abordados os motivos

que levam os defensores desse posicionamento a alegarem que a tese da universalização dos

direitos humanos não passa de mais uma forma de imposição do imperialismo cultural do

Ocidente, que tenciona uniformizar alguns valores de seu interesse, sem respeitar as outras

culturas e crenças, que têm o direito à não intromissão.

Complementa-se essa abordagem demonstrando que os valores afetos aos direitos

humanos não são uma descoberta do ocidente, pois existem há muitos milênios em diferentes

tradições sociais. Para demonstrar esse fato, efetua-se uma rápida análise sobre a concepção

dos valores relacionados à dignidade humana, em algumas das principais culturas não

ocidentais, tais como africanas, confucionistas, islâmicas e judias.

Na segunda parte deste capítulo, analisar-se-ão as teorias que sustentam a

universalização dos direitos humanos, buscando-se identificar quais são os elementos que

podem ser compreendidos como comuns e inatos a todos os seres humanos. Nessa

abordagem, trabalhar-se-á com argumentos filosóficos, antropológicos e psicológicos, com o

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intuito de verificar a possibilidade da construção de direitos humanos baseados em traços

universais, inerentes a todos os indivíduos, independentemente da cultura em que estejam

inseridos.

Por fim, analisar-se-á a relação dos direitos humanos com as ordens jurídicas nacionais e

internacionais, elaborando-se uma reflexão sobre de que forma a universalidade dessa

categoria poderá ser capaz de influenciar e condicionar os diversos níveis legislativos, na

busca de seu respeito e efetivação.

3.1. As resistências culturais opostas à efetivação dos direitos humanos

A discussão acerca da efetivação universal dos direitos humanos tem gerado grande

controvérsia e a proposição de diferentes teorias, tanto na esfera acadêmica quanto nas searas

políticas e jurídicas nacionais e internacionais, em face da diversidade cultural existente nas

sociedades modernas. O rumo dessa polêmica atinge diretamente a concretização dos direitos

humanos, uma vez que a adoção de uma ou outra posição pode culminar tanto pela

obrigatoriedade de sua observância e respeito, em qualquer tipo de cultura ou crença ou, ao

contrário, na relativização de seu cumprimento, face as especificidades valorativas de cada

sociedade.

Desde a inserção dos direitos humanos na Declaração Universal dos Direitos Humanos,

aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, tem-se

proposto conferir a eles um status de universalidade190, sob o argumento de que a sua inclusão

nesse instrumento internacional representou um consenso mundial sobre um sistema de

valores191 que tem a aspiração de ser aceito por toda a humanidade.

Essa pretensão à universalidade, contudo, tem encontrado fortes resistências decorrentes

de peculiaridades culturais, fazendo surgir um grande debate político e teórico, tecido por um

grupo de autores chamados de relativistas culturalistas192, os quais defendem a

impraticabilidade de um monismo moral/cultural. Para eles, a intenção universal não passa de

mais uma forma de imposição do imperialismo cultural do Ocidente que tenciona uniformizar

alguns valores de seu interesse, sem respeitar as outras culturas e crenças. Assim, defendem

190 MAULEON, Xabier Etxeberria. El debate sobre la universalidad de los derechos humanos. In: Instituto de Derechos Humanos. La Declaración Universal de Derechos Humanos em su cinqüenta aniversario. Bilbao: Universidad de Deusto, 1999, p. 313-315. 191 BOBBIO, 1992, p. 26. 192 SOUZA, op. cit., p. 122-122.

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que os direitos humanos devem ser relativizados e adaptados às características de cada

cultura, uma vez que os valores morais são variáveis e porque uma sociedade somente pode

ser interpretada e julgada por suas práticas, sob o prisma dos valores que elege para nortear a

sua existência.193

Outro argumento apresentado pelos relativistas está no fato de que os direitos humanos,

tal como concebidos no ocidente, onde é adotada uma cultura individualista, não são

compatíveis com as sociedades nas quais a tradição da existência humana se dá em prol da

satisfação e sobrevivência da coletividade. Desse modo, afirmam que essa categoria de

direitos mostra-se necessária somente nos Estados ocidentais, onde se idealiza uma imagem

individualista da pessoa e onde, historicamente, têm ocorrido as patologias da escravidão,

intolerância religiosa, racismo, colonização e imperialismo.194

Com essas ponderações, os relativistas sustentam a impossibilidade de qualquer

interferência externa no que diz respeito às práticas sociais estabelecidas no seio de Estados e

culturas que adotam posturas diferentes daquelas que formam, segundo a Declaração de

Direitos Humanos da ONU, os valores morais universais dos direitos humanos. Para eles, a

única fonte legítima de validade de um valor ou regra moral é o ambiente da própria cultura

em que eles estão inseridos.195 Repisam o argumento de que o atual discurso acerca dos

direitos humanos, intencionalmente ou não, tende a promover o individualismo, que é

moralmente contrário ao que defendem diversas culturas não ocidentais.196

Apesar do forte apelo conduzido pela tese relativista, percebe-se que o seu acolhimento,

sem restrições, deixaria em situação de total desamparo milhares de pessoas que vivem hoje

em sociedades fechadas e que são vítimas das mais horrendas violações às quais um ser

humano pode ser submetido.197 Se é certo que nenhuma cultura pode estar acima de outra,

igualmente correto é afirmar que, no atual estágio de desenvolvimento mundial, não existe

mais espaço para o isolamento cultural, sendo o diálogo198 uma preciosa premissa, necessária

e fundamental para o enfrentamento dos desafios comuns a todos os seres humanos.

193 BOOT, op. cit., p.37. 194 HÖFFE, 2000, p. 173. 195 DONNELLY, Jack. Universal human rights in theory and practice. 2. ed. New York: Cornell University Press, 2003, p. 89. 196 MURITHI, Tim. Ubuntu and human rights. In: SMITH, Rhona K. M.; ANKER, Cristien van den. The essentials of human rights. London: Oxford University Press, 2005, p. 341. 197 SOUZA, op. cit., p. 124. 198 HÖFFE, 2000, p. 174.

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Além disso, a era da globalização trouxe a internacionalização de valores que têm

transposto barreiras geográficas e culturais199, confrontando o velho com o novo, a tradição

com a inovação e transformando, dentro desses paradoxos, a sociedade nacional em uma

sociedade cosmopolita. Assim, não se pode defender que as comunidades modernas não

estejam de alguma forma já abertas para a influência de outros valores. Até porque não

existem práticas culturais incontestáveis ou absolutas. Prova disso, está no fato de que, em

qualquer sistema social, sempre há vozes que se opõem aos valores adotados pela maioria,

razão pela qual não podem ser ignoradas, principalmente quando buscam se fulcrar nos

valores inerentes aos direitos humanos, para guarida de uma sobrevivência digna.

Quanto à alegação no sentido de que o reconhecimento de direitos humanos é algo

necessário somente dentro da prática adotada pela cultura ocidental, em face das mazelas que

historicamente têm perpetrado, vê-se que também é equivocada. Ocorre que as injustiças e as

moléstias da escravidão, intolerância religiosa e colonialismo, somente para citar algumas,

fazem parte da história da humanidade em todos os tipos de culturas existem ainda hoje em

muitos locais do mundo, inclusive, em sociedades não ocidentais. Por tais motivos, observa-se

que a obrigatoriedade de observância desses direitos é necessária e útil para os diversos tipos

de sociedades, uma vez que garante a realização de uma vida plena e digna a todos os seus

membros.

E importante salientar também que os direitos humanos não são uma descoberta

exclusivamente ocidental200, uma vez que os seus valores nucleares existem há muitos

milênios em diferentes tradições sociais. Tanto é assim que uma rápida análise sobre a

concepção dos valores relacionados à dignidade humana, em algumas das principais culturas

não ocidentais, mostra que eles estão presentes de variadas formas nessas sociedades.

Nas comunidades ligadas ao confucionismo, por exemplo, a primeira peculiaridade

encontrada está no fato de que eles não adotam um conceito abstrato de ser humano, uma vez

que aos indivíduos são atribuídos papéis e obrigações a serem concretizadas em relação a si

mesmos e ao seu meio social.201 Contudo, mesmo sem a existência específica de um titular

individual desses direitos, vê-se que reconhecem que todo o ser humano tem uma dignidade

inata que não pode ser usurpada nem estabelecida por aqueles que detêm o poder. Colocam

também em relevo a importância da família, do respeito, da educação e a ênfase que deve ser 199 GIDDENS, Anthony. O mundo na Era da Globalização. Lisboa: Presença, 2001, p. 50. 200 DONNELLY, op. cit., p. 80.

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buscada por cada um para o alcance da ordem e da harmonia.202 Nessa concepção, o poder

somente é legítimo quando respeita essa dignidade. Assim, nota-se que a noção de dignidade

da pessoa humana na cultura confucionista é perfeitamente compatível com aquela adotada na

Declaração de Direitos Humanos da ONU.

Na realidade das culturas africanas, Tim Murithi203 explica que se aplica o código de

éticas conhecido como ubuntu, o qual representa uma visão de mundo em que a ênfase não

está no indivíduo, mas no papel que ele exerce na comunidade, onde deve agir com

hospitalidade, generosidade e respeito por todos os seus membros. O autor explica que nessa

perspectiva alguém é humano porque pertence a um grupo com o qual participa e compartilha

sua vida. Desse modo, mostra que os valores nucleares dos direitos humanos estão presentes

nessa cultura, além de defender que deveria haver uma rearticulação dessa categoria de

direitos, agregando-lhes a ótica ubuntu, no sentido de enfatizar as obrigações que os seres

humanos têm entre si, superando-se, com isso, o caráter eminentemente individualista adotado

pelo ocidente.

No que concerne ao islamismo, Jack Donnelly204 salienta que os valores inerentes à

dignidade da pessoa humana são consignados em seus textos religiosos em forma de deveres,

não de direitos, como ocorre no sistema ocidental. Assim, prescreve-se, por exemplo, não

matarás para designar o direito à vida e não escravizarás injustamente para definir o direito à

liberdade. Vale registrar que, numa das tentativas de aproximar os valores islâmicos dos

direitos humanos estabelecidos nos instrumentos internacionais da ONU, confeccionou-se a

Declaração Geral de Direitos Humanos do Islã, em 5 de agosto de 1990, conhecida como

Declaração do Cairo, instrumento no qual se reconheceu a existência de uma série de direitos

relativos à dignidade da pessoa humana, relacionando-os, inclusive, com o Corão.205

Entretanto, embora tenha significado um avanço no diálogo intercultural e se identifiquem

uma série de valores nucleares dos direitos humanos nessa cultura, eles ainda mantêm os

castigos corporais, algumas desigualdades entre homens e mulheres e a restrição à liberdade

201 HÖFFE, 2005, p. 68. 202 CHAN, Joseph. Confucianism and human rights. In: SMITH, Rhona K. M.; ANKER, Cristien van den. The essentials of human rights. London: Oxford University Press, 2005, p.56. 203 MURITHI, op. cit., p. 341/2. 204 DONNELLY, op. cit., p. 72. 205 MAYER, Ann Elisabeth. The Islamic Declaration on Human Rights. In: SMITH, Rhona K. M.; ANKER, Cristien van den. The essentials of human rights. London: Oxford University Press, 2005, p. 209.

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de religião.206

Quanto à tradição judia, Awraham Soetendorp207 explica que os valores morais inerentes

aos direitos humanos são entendidos como responsabilidades às quais os judeus devem

cumprir em razão de decretos divinos, insertos no Torah. Nesse contexto, salienta o autor,

estão inclusos 248 comandos positivos (fazer) e 365 comandos negativos (não fazer) que têm

como norte a sacralização da vida e a preservação e proteção da dignidade da pessoa humana,

uma vez que indivíduos foram criados à imagem de Deus.

Essa breve análise leva à conclusão de que muitos dos valores morais ligados aos

direitos humanos existem nas mais variadas culturas, não constituindo categoria que seja

privilégio ou invenção de um único grupo. O que ocorre, entretanto, é que o ser humano e a

sua dignidade encontram diferentes tipos de representações e múltiplas formas de

compreensão que nem sempre se mostram compatíveis, quando estão em confronto

perspectivas culturais distintas. Diante desse paradoxo, Zygmunt Bauman208 salienta que é

utópico pensar em soluções uníssonas e incontestáveis para dilemas morais, uma vez que, por

sua própria natureza, são ambíguos. Logo, a solução não está na positivação genérica e vaga

dos direitos humanos na esfera internacional, como insistentemente tem feito o ocidente na

tentativa de resolver o problema, mas na constituição de um diálogo intercultural209 que

permita uma real construção de valores universais. Nesse sentido, a própria natureza desses

direitos mostra-se facilitadora desse debate, pois tem como premissa justamente a aceitação

das diferenças e a não discriminação de qualquer natureza.

Assim, infere-se que, para a superação dos atuais óbices axiológicos que dificultam a

efetivação dos direitos humanos, deve-se buscar o desenvolvimento de argumentos que

mostrem a sua validade intercultural. Para que isso seja possível, necessário se faz a pesquisa

e a construção de fundamentos teóricos que sejam capazes de sustentar e demonstrar o caráter

universal desses direitos, relacionando-os às especificidades culturais diante dos diferentes

tipos de sociedades existentes.

206 DALACOURA, Katerina. Islam and human rights. In: SMITH, Rhona K. M.; ANKER, Cristien van den. The essentials of human rights. London: Oxford University Press, 2005, p. 207. 207 SOETENDORP, Awraham. Jewish Tradition and Human Rights. In: SMITH, Rhona K. M.; ANKER, Cristien van den. The essentials of human rights. London: Oxford University Press, 2005, p. 211. 208 BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. Tradução João Rezende Costa, Paulus: São Paulo, 1997, p. 40. 209 HÖFFE, 2000, p. 174.

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3.2. Os fundamentos teóricos de uma categoria universal de direitos humanos

Para defender-se a aplicação universal dos direitos humanos, a todas as pessoas, em

diferentes sociedades, independentemente da sua cultura, deve-se começar pela busca de

algumas características ou necessidades que sejam comuns a toda a humanidade e que

possam, por esse traço, sustentar essa tese. Isso ocorre porque existe uma íntima conexão

entre direitos humanos e necessidades humanas, haja vista que os primeiros são concebidos

primordialmente para atender as exigências fundamentais dos indivíduos.210

A procura de subsídios que sejam capazes de embasar solidamente a universalidade dos

direitos humanos, contudo, pode levar a diferentes tipos de proposições, dependendo do

caminho que se escolha seguir. A positivação desses direitos, por exemplo, cujo corolário é

Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, não se mostrou suficiente para garantir o

seu respeito e efetivação em todos os tipos de sociedades. Embora se tenha conseguido a

universalização da adesão formal211 dos Estados a essa categoria, há ainda uma grande

resistência à aceitação de sua aplicação em algumas culturas que alegam a necessidade de

relativização desses direitos, a fim de adaptá-los às especificidades de cada sociedade

nacional. Por isso, buscam-se construir, neste trabalho, elementos para uma teoria dos direitos

humanos que se embasem numa fundamentação racional, levando em conta diferentes áreas

do conhecimento, que possam permitir a colheita de argumentos capazes de sustentar

teoricamente a universalização dos direitos humanos, diante da realidade das sociedades

multiculturais.

John Finnis212 corrobora essa forma de abordagem aduzindo que uma linha de reflexão

assim construída permite conhecer melhor o caráter e a natureza humana, uma vez que se

associam à abordagem filosófica, um conjunto de informações e indícios trazidos pelos

estudos da psicologia e sociologia que permitem a compreensão detalhada sobre os aspectos

básicos que compõem o bem-estar humano.

Dentro desse propósito interdisciplinar, vê-se que o primeiro argumento colacionado

para demonstrar a universalidade dos direitos humanos está no fato de que eles constituem

uma categoria que busca consagrar a dignidade humana, a qual compõe atributo de todas as

pessoas, independentemente da cultura, crença ou qualquer outra característica 210 GASPER, Des. Needs and human rights. In: SMITH, Rhona K. M.; ANKER, Cristien van den. The essentials of human rights. London: Oxford University Press, 2005, p. 269. 211 HÖFFE, 2000, p. 175.

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individualmente considerada.213

Nesse sentido, Bhikhu Parekh214 salienta que existem duas características essenciais que

são encontradas em todos os seres humanos: primeiro, eles pertencem a uma mesma espécie e

compartilham de necessidades e capacidades básicas semelhantes; segundo, são únicos na

natureza, por serem dotados de imaginação, racionalidade e autocrítica. O autor salienta que

em razão desses traços, as pessoas são capazes de estabelecer uma infinidade de relações, tais

como comunicativas, sexuais, sociais, entre outras, com o escopo de alcançaram o

compartilhamento de uma existência com os seus semelhantes. Além disso, acrescenta, para

que consigam desenvolver-se e dar significado às suas vidas, necessitam de certas condições,

as quais definem o seu bem estar e constituem seu interesse comum fundamental.

No mesmo sentido, Vicente Barreto215 identifica quatro grandes grupos de

características que são encontradas nos seres humanos, em todas as culturas, e cujo conjunto

forma aquilo que chama de identidade humana, a qual serve de base de constituição dos

valores morais que irão nortear as relações sociais: o primeiro traço está no fato de o homem

estar predisposto para o compartilhamento da vida em sociedade, pois se comunica, agrega-se

e estabelece relações significantes com os seus semelhantes; além disso, é comum a todos os

seres humanos o fato de eles possuírem diversas capacidades, destacando-se a comunicação,

através da qual exprimem os seus sentimentos; o terceiro conjunto de características está

relacionado com as capacidades que as pessoas têm de criar, inovar, ter idéias, formar

conceitos e construir valores, atributos que lhes permitem conceber um mundo com base na

imaginação e no trabalho humano; por fim, o quarto grupo de capacidades está relacionado

com os desejos humanos e as formas como eles buscam atender as suas necessidades, pois a

vida social obriga-lhes ao estabelecimento de certas condutas de convivência, necessárias para

o seu aperfeiçoamento e sobrevivência.

A análise dessas características evidencia importantes conseqüências que formam um

traço comum à humanidade, pois resta claro que os seres humanos compartilham tanto as

mazelas quanto certos interesses fundamentais e valores morais. Basta observar os exemplos

212 FINNIS, John. Ley natural e derechos naturales. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2000, p. 113/2. 213 ISHAY, op. cit., p. 03. 214 PAREKH, Bhikhu. Pluralist universalism and human rights. In: SMITH, Rhona K. M.; ANKER, Cristien van den. The essentials of human rights. London: Oxford University Press, 2005, p. 284. 215 BARRETO, Vicente. Direitos humanos e sociedades multiculturais. In: ROCHA, Leonel Severo e STRECK, Lênio. Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito: Mestrado e Doutorado. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 473/4.

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da pobreza, da tortura e da morte prematura, males que podem ocorrer a qualquer pessoa em

qualquer lugar do mundo. De igual forma, o desejo por uma vida digna, pela satisfação das

necessidades básicas e pelo desenvolvimento das capacidades humanas são igualmente

valores universais, identificados em todos os indivíduos.

Essas assertivas são reforçadas pela psicologia, em especial com o trabalho de Sigmund

Freud216, o qual defende que todo o comportamento humano segue um instinto sexual e um

instinto de conservação, que acarretam uma busca universal pela garantia da sobrevivência da

espécie, corporificada pelo sexo e pela procura da união com seus semelhantes, através do

trabalho comum e dos interesses partilhados. Além disso, ressalta o autor, os seres humanos

primam pela manutenção de sua integridade, traduzida pelo instinto de autoconservação.

Nessa realidade, o instinto é uma forma de inteligência inata e inconsciente, que conduz as

ações das pessoas na busca de sua preservação.

Freud217 explica que, dentro da estrutura da personalidade humana, o instinto faz parte

de um elemento nuclear que chama de id, o qual tem por objetivo o atendimento dos instintos.

Ele salienta que no interior do id coexistem duas forças opostas: o instinto de vida e o instinto

de destruição que, por terem atuação simultânea, exigem do id uma satisfação imediata, com o

objetivo de aliviar essa tensão. Assim, o id busca formas de liberação de energia, seja através

de ações reflexas disponíveis no organismo humano, seja por um processo primário de

descarga de tensão, que é realizado pela utilização de uma imagem mental, que traga uma

forma ilusória de satisfação de determinado impulso.

Seguindo a lógica da dinâmica fornecida por Freud, vê-se que o aparato psíquico de um

indivíduo tem ainda em sua superfície um segundo elemento, denominado ego, que representa

a parte racional da personalidade, moldada pela influência do mundo exterior. O ego tem a

árdua missão de ser o mediador entre a satisfação das necessidades do id e as conseqüências

externas que os atos destinados ao seu atendimento podem ocasionar.218

Além do id e do ego, a estrutura psíquica dos seres humanos conta ainda com um

216 FREUD, Sigmund Schlomo. As duas classes de instintos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1970, p. 55. 217 FREUD, Sigmund Schlomo. O ego e o id. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1970, p. 36. 218 ______. A consciência e o que é inconsciente. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1970, p. 28/29.

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terceiro elemento que Freud219 chama de superego, o qual representa internamente todos os

valores morais que são transmitidos aos indivíduos desde a sua infância, tanto pelos pais

quanto por outras pessoas que sejam consideradas como modelos sociais. Assim, enquanto o

id simboliza as necessidades inatas dos seres humanos, cabe ao ego avaliar os possíveis meios

de satisfação que respeitem as restrições exteriores, além de observar o conjunto de valores

morais listados e impostos pelo superego.

Freud adverte que a complexa relação existente entre id, ego e superego pode conduzir

as pessoas a materializarem um fenômeno conhecido por sublimação, o qual significa a

adoção de um comportamento, em conformidade com os padrões valorativos sociais,

aprendidos na família e no meio social externo, renunciando-se ao atendimento dos instintos

inatos, permanecendo, no lugar destes, apenas as expressões culturais.220

Diante das informações colhidas nas pesquisas de Freud, pode-se observar que todos os

seres humanos, desde os que estão inseridos em comunidades tribais até os que vivem nas

grandes civilizações, possuem a mesma base estrutural de personalidade que tem como raiz a

satisfação dos instintos de autoconservação. Esses instintos formam o conjunto de

necessidades básicas que o homem precisa atender para alcançar uma vida minimamente

digna, sendo que a sua desconsideração pode comprometer não só a sobrevivência humana,

mas também gerar sérios transtornos emocionais, tais como a neurose, a ansiedade neurótica,

entre outros.221 Assim, também a psicologia confirma que os direitos humanos devem ser

universais, uma vez que eles representam o conjunto de normas protetoras e garantidoras da

dignidade da pessoa humana, em suas diversas dimensões, assegurando aos indivíduos os

meios para a satisfação dos seus instintos de conservação e outras demandas inerentes à

efetivação de uma existência plena.

No mesmo sentido, tem-se o reforço das teorias metafísicas do filósofo polonês Arthur

Schopenhauer222, o qual exerceu forte influência sobre o trabalho de Freud e que defende a

existência de uma vontade universal, força fundamental da natureza, que se manifesta

individualmente em cada ser humano, na busca da sobrevivência e da auto-realização. Para o

219 ______. O ego e o superego (ideal do ego). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1970, p. 43. 220 ______, v. XIX., p. 61. 221 FREUD, Sigmund Schlomo. A perda da realidade na neurose e na psicose. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1970, p. 229. 222 SCHOPENHAUER, Arthur. The world as will and representation. Tradução do alemão para o inglês E. F. J. Payne. v. II. New York: Dover Publication Inc., 1969, p. 97-99.

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autor, todo o homem, desde o despertar da consciência, é dotado de anseios que estão

diretamente conectados com sua inteligência, a qual realiza constantes buscas no sentido de

compreender os objetos de sua vontade a fim de, na seqüência, procurar os meios necessários

para alcançá-los. Nessa dinâmica, a primeira tendência do indivíduo será sempre a busca da

autoconservação.

Como se pode observar na teoria de Schopenhauer, há também a constatação no sentido

de que os seres humanos possuem uma vontade universal, que é traduzida primordialmente

pela busca dos meios necessários à sua sobrevivência. Esse argumento reforça a tese da

necessidade da universalização dos direitos humanos, uma vez que eles foram concebidos

justamente para atender e proteger a vontade de autopreservação, inerente a todas as pessoas.

Por fim, John Finnis223 explicita que os seres humanos possuem valores básicos que não

são meras abstrações, mas que constituem aspectos os quais representam um real bem estar,

necessário à sua sobrevivência, como, por exemplo, o direito à vida, o direito de não ser

privado da capacidade procriadora, entre outros. Por conta dessa característica, ressalta o

autor, essas necessidades formam um corpo de direitos inatos que não admitem exceções ou

restrições, razão pela qual assumem o caráter universal.

A questão que surge a partir da análise dessas diversas fundamentações é compreender a

questão: como os seres humanos podem possuir tantos traços comuns e, ao mesmo tempo,

desenvolver uma tamanha diversidade cultural, com valores morais diferentes e, em alguns

casos, até mesmo antagônicos, que têm tornado tão difícil a implementação universal dos

direitos humanos?

Bhikhu Parekh224 dá a resposta a esse questionamento aduzindo que o fato de os

indivíduos estarem em diferentes ambientes naturais, enfrentando desafios peculiares a cada

região do planeta e possuírem histórias que acabam se desenvolvendo de variadas formas,

contribui para o surgimento de culturas específicas que adotam diversas visões da vida

humana, dos sentidos e dos significados. Essas peculiaridades estruturam suas vidas,

estabelecendo várias capacidades, emoções e até mesmo necessidades, que dão surgimento a

uma comunidade cultural única e geram aquilo que se conhece por diversidade cultural.

223 FINNIS, op. cit., p. 253. 224 PAREKH, op. cit., p. 285.

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Já Freud225 complementa esse raciocínio aduzindo que, embora as pessoas possuam

instintos inatos comuns, personificados no id, recebem ao longo da vida, em especial durante

a infância, influências dos pais e de vários modelos sociais que vão formar o conjunto de

valores internos, armazenados no superego, os quais passarão a influenciar suas condutas,

crenças e formas de ver a vida e o mundo. Nesse processo, o id continuará exigindo a

satisfação dos instintos de conservação, cabendo ao ego avaliar os meios de atendimentos

dessa demanda, dentro das conseqüências culturais que essa conduta pode alcançar. Desse

modo, quando um indivíduo nasce em uma determinada cultura que possui peculiaridades

próprias pelas razões listadas por Bhikhu Parekh, mantém consigo um conjunto inato de

necessidades, mas acaba recebendo os valores dessa sociedade, incorporando-os à sua

estrutura de personalidade e passando a reforçá-los e a perpetrá-los na sua comunidade.

Recorde-se que esse rol axiológico pode alcançar tal patamar de importância na vida de um

ser humano que poderá chegar, inclusive, ao grau de sublimação, ocasionando a supressão de

alguns instintos inatos, substituídos por expressões culturais.

Como se vê, a abordagem interdisciplinar acerca da universalização dos direitos

humanos mostra que todas as pessoas, ainda que inseridas em especificidades culturais

distintas, mantêm alguns atributos humanos comuns que independem da cultura. Nessa

realidade, o isolamento e a não abertura para o diálogo entre os diferentes tipos de sociedades

representam um risco ao ser humano, uma vez que qualquer sociedade que pretenda fechar-se

em torno de seus valores pode utilizar esse subsídio para suprimir os direitos básicos que

asseguram a fruição de uma vida digna a seus integrantes. Além disso, deve-se recordar a

lição de Immanuel Kant226 no sentido de que, no atual estágio da humanidade, os povos da

terra alcançaram tal grau de desenvolvimento que constituem, em diferentes níveis, uma

comunidade cosmopolita, a qual está tão intimamente relacionada que a violação de um

direito num ponto do planeta acaba por repercutir em todos os demais.

Todavia, adverte-se que, se por um lado não se pode defender o isolamento cultural, de

outro também deve ser evitado, na busca dessas regras universais, a utilização de formas de

imposição e uniformização de uma cultura sobre outra. Esse cuidado se justifica, uma vez que

qualquer tentativa de supressão de valores morais esbarraria no próprio sistema da

personalidade humana, moldado e influenciado desde tenra idade para uma visão de mundo

fulcrada em conjuntos éticos próprios, adquiridos na cultura em que cada ser humano está 225 FREUD, v. XIX, p. 39. 226 KANT, Immanuel. Kant´s Political Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1970, p. 107.

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inserido. Assim, para evitar-se que males decorrentes da prepotência cultural venham a afetar

a própria dignidade da pessoa humana, deve-se estabelecer um conjunto de valores mínimos e

universais que sejam capazes de dialogar com as diferentes culturas e, com isso, garantir-se o

respeito e a preservação da vida humana, onde quer que esteja presente.

Por tais motivos, infere-se que os direitos humanos, para serem universais, não podem

pretender encampar valores uniformes a serem observados por todos os tipos de sociedades227

e tampouco necessitam da descoberta de uma fundamentação filosófica absoluta e

incontroversa. Isso ocorre porque eles são constituídos basicamente de valores morais e a

forma de sua interpretação pode sofrer variações de uma cultura para outra, em razão das

peculiaridades de cada grupo social, fato que é justificado na filosofia, na antropologia e na

própria psicologia, conforme se estudou anteriormente. Para ilustrar essa afirmação vale

observar o exemplo do direito universal à vida. A interpretação no sentido de estabelecer qual

o momento inicial de sua proteção, ou quando se considera que ela findou, sofre diferentes e

legítimas variações diante de cada tipo de sociedade, sendo o assunto tão complexo que até

mesmo dentro do mesmo grupo cultural encontram-se diferentes formas de compreensão

dessa questão. Desse modo, vê-se que o direito à vida, como direito humano universal, deve

ser respeitado e preservado em todos os tipos de culturas. Contudo, o início e o fim dessa

proteção estarão sujeitos a algumas peculiaridades sociais, necessárias para o ajuste dessa

categoria a cada realidade valorativa.

Essa primeira verificação torna claro que a universalidade dos direitos humanos deve ser

abordada de forma intercultural, preservando a raiz comum que envolve aquelas condições e

oportunidades que os seres humanos precisam para expressar e desenvolver suas capacidades

humanas únicas e conduzir vidas significativas, respeitando-se, entretanto, as diferentes

formas culturais de interpretação desses valores. Dessa forma, impede-se que a tese

universalista venha a ser utilizada para criar uma moral homogênea e sufocadora de culturas,

ao mesmo tempo em que se assegura que a diversidade não vai se transformar numa licença

para práticas inaceitáveis.228

Mas, como definir o que é comum à humanidade e pode ser exigido de todas as culturas

e o que é privativo de cada povo? Otfried Höffe defende que esse questionamento somente

pode ser resolvido através de um diálogo intercultural de forma a criar-se um conjunto

227 SANTOS, B., 2001, p. 16. 228 PAREKH, op. cit., p. 286.

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universal de valores que possam ser cobrados de todos os tipos de sociedades, sem violentá-

las.229 Nesse sentido, também se manifesta Bhikhu Parekh que aponta para a necessidade de

adoção de um universalismo mínimo230, o qual seja capaz de admitir algumas práticas ligadas

às especificidades culturais, desde que se ajustem e respeitem um corpo básico de valores

morais, válidos universalmente. Esses valores fundamentais constituem um mínimo moral

irredutível que não pode ser desrespeitado por nenhum tipo de crença ou prática. Desse modo,

uma vez que as diferentes sociedades respeitem esses princípios, seguem livres com suas

crenças para organizar as formas de vida que considerarem apropriadas.

Como os direitos humanos representam uma categoria que busca justamente proteger a

existência humana e garantir o exercício das diversas capacidades do homem, deve-se buscar,

a partir dessa idéia, os elementos comuns que possam atender ao desafio do

multiculturalismo.231 Dentro desse propósito, tem-se a construção teórica de vários

doutrinadores, além dos já anteriormente citados, entre os quais se destacam os trabalhos de

Herbert Leonel Adolphus Hart232, ao desenvolver sua pesquisa acerca de um conteúdo

mínimo para o direito natural, John Rawls233, ao trabalhar com a questão dos bens primários,

e Michael Walzer234, ao descrever as exigências de satisfação de necessidades humanas

básicas, como a vida e a liberdade, entre outros. A base dessas teorias está na identificação de

um rol de valores morais que são comuns a todas as sociedades, diretamente relacionados com

a dignidade da pessoa humana e o bem estar dos indivíduos e que, por isso mesmo, devem ser

universalmente respeitados.

Em observância ao tema delimitado nesta pesquisa, não se fará a análise dos valores

morais mínimos discutidos pela doutrina acima citada, uma vez que essa abordagem

mereceria um estudo específico que foge ao foco deste trabalho, cujo recorte está limitado à

identificação dos fundamentos teóricos que justifiquem os direitos humanos como categoria

universal, buscando-se analisar as formar que sejam capazes de garantir o seu respeito e

efetivação no mundo globalizado.

Assim, o que se pode verificar acerca da especificação de um conteúdo moral mínimo e

229 HÖFFE, 2000, p. 174. 230 PAREKH, Bhikhu. Non-ethnocentric universalism. In: In: DUNNE, Tim e WHEELER, Nicholas. Human Rights in Global Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 130 (128-159). 231 BARRETO, 2003, p. 475. 232 HART, Herbert Leonel Adolphus. O conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986 233 RAWLS, John. A theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1972. 234 WALZER, Michael. Thick and Thin. London: University of Notre Dame Press, 1994.

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universal, defendido pelos autores antes referidos, é que ele não se efetiva pelo seu simples

reconhecimento doutrinário na vida das pessoas. Para alcançar a sua concretude, necessário se

faz a sua inclusão nos vários sistemas normativos morais e jurídicos que regem os diferentes

tipos de sociedades, uma vez que eles é que possuem a força coercitiva necessária para

garantir o respeito e a efetivação dos direitos humanos nos diversos níveis reguladores da vida

social e do Estado.235 Essa constatação é facilmente verificável quando se observa que os

direitos à vida e à liberdade, bem como as proibições de tortura e escravidão, por exemplo,

embora sejam hoje um consenso moral e representem a expressão básica e universal do

respeito à dignidade da pessoa humana, somente alcançam uma situação de garantia e

efetivação quando são objetivados em normas jurídicas nacionais e internacionais.

Nessa perspectiva, observa-se que o respeito às especificidades culturais é alcançado à

medida que cada sociedade utiliza os seus valores morais para realizar essa normatização, seja

em forma de obrigações, seja em forma de direitos. Vale lembrar, para ilustrar essa afirmação,

que, no islamismo, por exemplo, os valores inerentes à dignidade da pessoa humana são

consignados em seus textos religiosos em forma de deveres, não de direitos, como ocorre no

sistema ocidental.236 Assim, prescreve-se, por exemplo, não matarás para designar o direito à

vida, em vez de declarar que os indivíduos possuem esse direito.237

Essas peculiaridades mostram como cada cultura detalha diferentemente, dentro de seus

valores e crenças, o mesmo direito humano universal, evidenciando-se que a manutenção de

um conteúdo moral mínimo pode ser respeitado em diferentes realidades, desde que se

conserve um núcleo essencial. Para tanto, deve-se abrir espaço para um diálogo intercultural,

em que diferentes sociedades possam ter voz ativa para discutir e encontrar os pontos comuns

necessários à realização de uma vida digna para os seres humanos. Essa discussão deve

resultar no estabelecimento de valores mínimos universais, consignados em regramentos

jurídicos que devem ser observados por todos, ao mesmo tempo em que se busque preservar

as características básicas de cada tipo de sociedade, vencendo-se as barreiras atualmente

existentes que levam cada cultura a interpretar, de forma muitas vezes antagônica, a aplicação

dos direitos humanos.

A questão ultrapassa, contudo, a definição de quais são os valores morais mínimos que

formam o núcleo dos direitos humanos universais, pois restou demonstrado que, para se 235 BARRETO, 2003, p. 477. 236 DONNELLY, op. cit., p. 72.

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alcançar o seu respeito numa sociedade que é global e ao mesmo tempo multicultural, deve-se

estabelecer de que forma essa categoria pode ser inclusa e efetivada nas ordens jurídicas

nacionais e internacionais. Este é o novo desafio dos direitos humanos: identificar os meios de

deferência e concretização dessa categoria através de uma objetivação jurídica

metaconstitucional, baseada em valores morais universais, que seja capaz de influenciar,

condicionar e até mesmo suplantar os diversos níveis legislativos, na busca do respeito e

efetivação desses direitos.

3.3. A busca da eficácia dos direitos humanos na sociedade global e sua efetivação nas ordens jurídicas nacionais e internacionais

Como se viu anteriormente, a superação do paradoxo entre a diversidade cultural e a

efetividade universal dos direitos humanos depende da identificação de valores morais

mínimos, compartilhados por todas as culturas e que, por essa característica, possam ser a

base para a elaboração de fundamentos racionais que sirvam de norte para a criação de

instrumentos normativos que tornem obrigatória a sua observância nas diversas esferas

polítco-jurídicas existentes.

Essa idéia em torno de um direito universal da humanidade, capaz de resguardar as

pessoas onde quer que estejam, é condição para que as sociedades modernas atinjam aquilo

que Kant238 chamava de “avanço em direção a uma paz perpétua”, pois esse tipo de ordem

dá condições não só de afirmar, mas de garantir os valores relacionados à dignidade da pessoa

humana, em todas as suas dimensões.

Para uma melhor compreensão dessa afirmação, deve-se realizar uma revisão da

concepção kantiana de paz perpétua, uma vez que ela ajuda a entender o porquê da

necessidade de uma categoria universal de direitos. Na obra Metafísica dos Costumes, Kant239

parte da premissa de que, como todas as sociedades ocupam um espaço físico limitado, que é

o planeta terra, formando uma comunidade de solo, constroem, naturalmente, uma relação

universal entre os povos, a qual é impulsionada pelas transações comerciais. Essa realidade,

segundo o autor, induz ao surgimento de um novo direito, de todas as pessoas, consideradas

não mais como membros privativos de um Estado-nação, mas como integrantes de uma

sociedade cosmopolita, em que a violação do direito de um indivíduo passa a ser uma afronta

a toda a humanidade. Dentro dessa perspectiva, salienta que, para a proteção desse conjunto 237 DALACOURA, op. cit., p. 207. 238 KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Tradução Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003, p. 162.

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de direitos cosmopolitas, os Estados devem formar uma federação de nações livres e

independentes que, mantendo a sua soberania, assumam voluntariamente esse compromisso

moral.

A manutenção de uma soberania irrestrita dos Estados e a perspectiva de efetivação de

uma categoria de direitos universais, contudo, é criticada por Habermas240, o qual adverte que

essa proposta é inócua, porque reduz o compromisso de cada membro da federação de nações

livres à seara moral, sem a possibilidade de uma coerção supranacional para o cumprimento

dos ajustes feitos. Assim, destaca o autor, não há garantias no sentido de que os Estados

efetivamente cumprirão os acordos realizados com vistas à proteção desse direito universal.

Nesse ponto, deve-se concordar com Habermas, visto que a história já deu bons

exemplos no sentido de que a soberania irrestrita dos Estados é temerosa para preservação não

só da dignidade humana, como da própria manutenção da vida sobre o planeta. Basta lembrar

a Alemanha nazista e os diversos regimes de ditadura impostos na América Latina, além do

desenvolvimento da tecnologia nuclear, capaz de, num simples apertar de botão, exterminar

toda a humanidade. Todas essas atrocidades foram concretizadas sem qualquer interferência

ou controle externo, por representarem atos de soberania nacional, os quais não admitiam

intervenção.

Por tais motivos, Habermas defende que a vinculação dos Estados ao cumprimento de

um direito universal não pode ser somente moral, mas jurídica, através da criação de

organizações e normas supranacionais que assegurem o comportamento adequado de todos os

governos, sob pena de sanções. 241

O diálogo que Habermas estabelece com Kant é enriquecido e melhor compreendido

quando se separam dois momentos históricos específicos, os quais representaram um marco

de ruptura da civilização e que coincidem com o desenvolvimento dos direitos humanos,

como categoria universal, a ser respeitada e observada por todos os povos: o primeiro

período é o imediatamente anterior às duas grandes guerras mundiais e o segundo, a nova

realidade da civilização perpetrada a partir delas.

Nesse sentido, constata-se que, antes das duas grandes guerras mundiais, não havia uma

239 Id. Ibid., p. 163. 240 HABERMAS, Jürgen. A idéia kantiana de paz perpétua – à distância histórica de 200 anos. Tradução Paulo Astor Soethe In. ______. A inclusão do outro. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2004. p. 198/9. 241 Id. Ibid., p. 209.

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preocupação internacional acerca dos direitos humanos, pois a discussão sobre o respeito à

dignidade da pessoa humana, às minorias e à expressão política, somente era realizada diante

de violações específicas cometidas durante os períodos de guerras isoladas.242 Além disso, a

questão acabava perdendo fôlego e era descartada diante do óbice intransponível do

paradigma da soberania Estatal, pois não se concebia a existência de um regramento

supranacional que pudesse subjugar os Estados soberanos. Nessa realidade temporal e, sem

ter como prever as catástrofes que viriam com as guerras mundiais, é que se pode

compreender a idéia de Kant sobre um direito cosmopolita, garantido moralmente por Estados

soberanos e livres. Ocorre que até então a disciplina dos direitos individuais era realizada no

âmbito interno de cada nação e não se tinha registro histórico de que a soberania poderia ser

utilizada como justificativa para não interferência externa diante da violação brutal da

dignidade humana.

Todavia, com o advento das duas grandes guerras mundiais e diante das barbáries

materializadas durante os anos de suas realizações, os direitos humanos consolidaram-se

como uma necessidade a ser colocada em relevo no plano internacional, retirando-se a matéria

da esfera exclusiva dos estados nacionais para inseri-la no plano mundial, em caráter

universal. Esse novo contexto levou as nações a se reunirem e a criarem uma série de tratados

internacionais que garantissem uma proteção internacional dos direitos humanos, contra a

própria soberania Estatal.243 As pessoas que até então estavam atreladas aos sistemas jurídicos

Estatais nos quais eram reconhecidas como sujeitos de direitos naquele espaço físico limitado,

passaram, gradativamente, a serem reconhecidas como titulares de direitos no âmbito

internacional. Nesse novo contexto nasceu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da

ONU, em 1948, quando se consagrou como meta de todos os povos e nações a realização dos

direitos humanos.

Como se pode observar, a idéia kantiana de paz perpétua, baseada no desenvolvimento

de um direito cosmopolita, merece uma readaptação para o período pós-moderno, na forma

apontada por Habermas. Isso se faz necessário pelo fato de que os fatos ocorridos durante as

duas grandes guerras mundiais demonstraram que o respeito à dignidade da pessoa humana

somente será alcançado com a criação de instituições e ordens jurídicas supranacionais que

sejam capazes de coagir juridicamente os Estados a cumprirem os preceitos de proteção e

242 BOBBIO, 1992, p. 49. 243 DRINAN, Robert. Cry of the Oppressed: the history and hope of the human rights revolution. São Francisco: Harper & Row, 1987, 36.

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respeito a esses valores universais.

Desse modo, o desenvolvimento de direitos humanos universais assume o papel de um

novo marco na civilização, pois esses direitos passam a servir de fundamento para criação de

uma ordem mundial que seja capaz de atuar fortemente, em diversos níveis, para limitar o

princípio absoluto da soberania dos estados, garantir o reconhecimento das pessoas como

sujeitos ativos de direito internacional e desenvolver a idéia de que existe uma legalidade

supranacional, capaz de interferir em atos de violência contra os seres humanos, em qualquer

lugar do planeta.244 A gestação dessa nova realidade é comprovada nos vários tratados

internacionais sobre direitos humanos atualmente em vigor, os quais estabelecem mecanismos

de proteção dessa categoria contra arbitrariedades Estatais.

Entre as várias formas de controle desenvolvidas nos tratados internacionais, destaca-se

a atuação de órgãos de supervisão que acompanham e fiscalizam as obrigações assumidas

pelos países participantes do acordo, sem admitir a alegação da soberania como obstáculo à

execução de seus poderes e atribuições.245 Além disso, no que concerne às diversidades

culturais, os órgãos de supervisão internacional não só respeitam como até mesmo as

incentivam, desde que suas práticas não importem na violação da dignidade da pessoa

humana. 246

Esses exemplos mostram que a humanidade está caminhando em direção à efetivação de

uma justiça global, baseada numa moral jurídica universal, veiculada pelos direitos humanos,

na qual cada vez mais se exige dos Estados e das diversas culturas a observância dos

instrumentos jurídicos internacionais reguladores do assunto.

Deve-se observar, contudo, que esse sistema não está ainda completamente definido,

pois não possui mecanismos aptos que possam garantir a paz mundial, visto que as relações

internacionais são estabelecidas por atores assimétricos e, muitas vezes, por envolverem

grandes potências mundiais, estas acabam não acatando decisões internacionais que possam

contrariar seus interesses.247 Exemplo disso pode ser colhido no relato do ex-ministro da

Corte Internacional de Haia, Francisco Resek248, ao comentar a situação da prisão de

244 RABOSSI, op. cit., p. 205. 245 SOUZA, op. cit., p. 138. 246 Id. Ibid., p. 139. 247 BOBBIO, 1992, p. 38. 248 Resek critica governo de Bush por violação de direitos. IBEST Notícias e Opinião, São Paulo, 05 novembro 2006. Disponível em

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Guantanamo, em Cuba, numa base militar do Governo dos Estados Unidos. Ele destaca que

naquele local os presos suspeitos de terrorismo são freqüentemente vítimas de tortura, fato

que viola frontalmente os direitos humanos consignados em todas os Tratados e Declarações

assinados pelos Estados Unidos, mas que, por um interesse particular daquele país, não são

respeitados, mesmo diante das diversas denúncias internacionais e repúdio de órgãos no

mundo todo.

Adiciona-se a essa dificuldade de efetivação dos direitos humanos, o problema da

globalização, uma vez que, sob o aspecto social, esse fenômeno tem trazido aos indivíduos

que antes viviam em sociedades locais, nacionais e sujeitas basicamente aos impactos

provocados pelas decisões tomadas pelos respectivos governos, a inclusão em uma

comunidade global249, transnacional e sujeita aos reflexos do mercado internacional. Nesse

novo contexto, o controle das operações é realizado por grandes corporações multinacionais

que têm imposto regras de mercado que relativizaram consideravelmente a soberania dos

Estados, além de contribuírem substancialmente para o aumento do desemprego, da

desigualdade social, da pobreza e da miséria, colocando uma grande parcela da população

numa situação de completa exclusão social, em que não há espaço para a preservação das

mínimas condições para uma existência digna.250

Essas situações evidenciam a complexidade que a efetivação dos direitos humanos

envolve e como é necessário o fortalecimento de organismos inter-governamentais para a

solução desse tipo de questão, inclusive usando de intervenções nos Estados nacionais e nas

próprias multinacionais. Habermas251 sugere que a Organização das Nações Unidas, por ser

integrada basicamente por todos os Estados e representar uma real união política do mundo,

deve assumir esse papel de controle supranacional. Para tanto, salienta o autor, ela deve passar

por uma reforma enérgica no sentido de ampliar suas forças, a fim de que seja capaz de atuar

de forma coercitiva em diferentes regiões do planeta, impondo o respeito universal aos

direitos humanos, ainda que, para isso, tenha de relativizar a soberania dos Estados diante das

situações de violação da dignidade da pessoa humana.

Esse propósito, aliás, encontra-se latente desde a criação da Organização das Nações

Unidas, sendo um grande marco nesse desiderato a Conferência de Viena, em 1993, quando <http://www.ibest.com.br/servlet/IbestNews/?p=11&x=/canais/not_opiniao/brasil/noticias/AE2581482_1.html&z=canais/not_opiniao/outras_home.html&rpl=SA%FAude>. Acesso em: 07 agosto 2007. 249 MCLUHAN, op. cit., p. 9. 250 IANNI, op. cit., 1999. p. 27/8.

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se obteve, após muita discussão, o consenso sobre o caráter universal dos direitos humanos,

retirando da esfera dos Estados a competência exclusiva para a disciplina do tema, ao mesmo

tempo em que ficou assentado que as diferenças culturais não poderiam ser opostas para

justificar a violação desses direitos.252 Também ficou consignado que é dever dos Estados

respeitar, proteger e promover os direitos humanos, independentemente do sistema político e

jurídico que adotem.

Por força dessas disposições e na tentativa de comprometer os diversos países

signatários da Declaração de Viena, os organismos internacionais passaram a desenvolver

uma série de atividades no sentido de induzir os Estados a introduzirem em seus

ordenamentos jurídicos a tutela dos direitos humanos e a adotarem formas de aperfeiçoamento

constantes, exercendo diferentes tipos de fiscalização no sentido de verificar se as

recomendações foram acolhidas pelos governos e em que nível restaram incorporadas e

respeitadas nas ordens jurídicas internas.253 Essa sistemática permitiu que se desenvolvesse,

no âmbito internacional, um parâmetro de mensuração do grau de democracia adotado pelos

diferentes governos, à medida que implementassem em suas ordens jurídicas nacionais os

preceitos relativos aos direitos humanos.254

Não obstante todo esse esforço, vê-se que ainda não existe um corpo internacional

supranacional que tenha poder de coagir os Estados à efetivação dos direitos humanos.255

Assim, embora os governos nacionais possam ser pressionados por diferentes meios

diplomáticos, são eles ainda os principais responsáveis pela concretização ou não dos direitos

humanos.

Nota-se, por conseguinte, que, embora se tenham adotados esforços louváveis na esfera

política, filosófica e jurídica para garantir-se o respeito e a efetivação dos direitos humanos, a

concretização de sua eficácia ainda está numa fase gestacional e terá de percorrer uma longa

caminhada até que se alcance um nível satisfatório de respeito à dignidade da pessoa humana

em todo o planeta. Mas essa dificuldade não pode ser vista como um desestimulo e tampouco

levar a descrença acerca das possibilidades que essa categoria de direitos representa para a

humanidade, uma vez que o grande debate realizado acerca desse tema na atualidade, deve ser

251 HABERMAS, 2004. p. 213. 252 ALVES, José Augusto Lindgren. Os Direitos Humanos como Tema Global. Brasília: Funag, 1994, p.38. 253 BOBBIO, 1992, p. 40. 254 CHACON, op. cit., p. 190. 255 GÓIS, op. cit., p. 63.

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interpretado, como destaca Bobbio256, como um “sinal premonitório do progresso moral da

humanidade”.

256 BOBBIO, 1992, p. 52.

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CONCLUSÃO

O estudo sobre a problemática dos direitos humanos no mundo globalizado, da

forma como foi desenvolvido no presente trabalho, permite a formulação de algumas

reflexões conclusivas sobre o surgimento, desenvolvimento, crise e rumo dessa

importante categoria no mundo atual.

Inicialmente, evidenciou-se que não há uma concepção ou fundamentação pacífica

sobre os direitos humanos nas teorias contemporâneas, por diversos fatores: primeiro,

porque os valores incluídos no núcleo dessa categoria veiculam ideais da humanidade

que se ampliam no tempo e no espaço; segundo, por se caracterizarem como direitos

inatos, fundamentais, conferidos aos indivíduos pelo simples fato de serem seres

humanos, característica que faz com que alguns doutrinadores os qualifiquem como

valores universais; e, terceiro, porque as categorias utilizadas para identificar esses

direitos possuem, por sua própria natureza, valores éticos e morais, o que acarreta uma

pluralidade de significados e interpretações.

A dificuldade em torno dessa questão permitiu o surgimento de diversas

formulações teóricas que buscam explicar a natureza e a extensão dos direitos humanos,

entre as quais se destacam três: 1ª) a fundamentação jusnaturalista na qual estão

reunidas as teses que equiparam os direitos humanos aos direitos naturais; 2ª) a

fundamentação historicista em que se agrupam os autores que consideram os direitos

humanos como direitos históricos; e 3ª) a fundamentação ética na qual são inclusas as

teorias daqueles que consideram os direitos humanos como direitos morais.

A análise dos argumentos utilizados para a defesa dessas diferentes propostas

permite a conclusão no sentido de que, embora sigam caminhos distintos, possuem

alguns elementos comuns que podem ser reunidos para a construção dos contornos

sobre os elementos nucleares que formam os direitos humanos. Desse modo, vê-se que

todas essas fundamentações reconhecem que os objetivos desses direitos são a proteção

e a realização da dignidade da pessoa humana, em suas diversas dimensões e que, além

disso, eles têm existência supralegal, pois são constituídos de valores morais, inerentes

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aos seres humanos, cabendo ao ordenamento jurídico, nessa sistemática, o importante

papel de sua proteção e efetivação.

Essa constatação demonstra que os valores morais formadores dos direitos

humanos representam um conjunto de traços comuns à humanidade, não se restringindo

a um espaço social ou a um tempo histórico. Isso não afasta, todavia, o reconhecimento

da existência de outros valores morais, em constante evolução e que vêm sendo

construídos historicamente para a efetivação de uma vida digna, que variam no tempo e

no espaço e que representam o detalhamento dos direitos humanos dentro de cada

cultura.

Por tais motivos, conclui-se que os direitos humanos possuem duas dimensões:

uma básica, em que estão inseridos os valores mínimos e fundamentais para a

existência humana e, por isso mesmo, universais e outra, cultural, formada por

influências históricas que se ampliam gradativamente na busca da concretização de

condições que possam facilitar o completo exercício e fruição da dignidade da pessoa

humana, conforme as necessidades e possibilidades de cada época.

Na seara internacional, vê-se que a dimensão básica dos direitos humanos é

reforçada pela aspiração universal que é atribuída a essa categoria desde a aprovação da

Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela Assembléia Geral da Organização

das Nações Unidas (ONU), em 1948, haja vista que a sua inclusão nesse instrumento

internacional representou um consenso mundial sobre um sistema de valores.

Todavia, essa pretensão tem encontrado fortes resistências decorrentes de

peculiaridades culturais, fazendo surgir um grande debate político e teórico, tecido por

um grupo de autores chamados de relativistas culturalistas, os quais defendem que a

adoção de um monismo moral/cultural é impraticável, pois uma cultura somente pode

ser julgada à luz de seus valores. Além disso, alegam que a universalidade dos direitos

humanos não passa de mais uma forma de imposição do imperialismo cultural do

Ocidente, que tenciona uniformizar alguns valores de seu interesse, sem respeitar as

outras culturas e crenças.

Contra esses argumentos tem-se o fato de que os direitos humanos não são uma

descoberta exclusivamente ocidental, pois seus valores existem há muito tempo em

diferentes tradições sociais. Além disso, aceitar a negação a qualquer ser humano do

acesso aos direitos necessários à efetivação de uma vida digna, sob a alegação de

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preservação das especificidades culturais, significa deixar em situação de total

desamparo milhares de pessoas que vivem hoje em sociedades fechadas e que são

vítimas das mais horrendas violações as quais um indivíduo pode ser submetido.

Ressalta-se ainda que, no atual estágio de desenvolvimento mundial, não existe mais

espaço para o isolamento cultural, sendo o diálogo uma preciosa premissa, necessária e

fundamental para o enfrentamento dos desafios comuns a todos os seres humanos.

Além disso, a universalidade das necessidades humanas que formam o núcleo dos

direitos humanos é demonstrada em diferentes áreas do conhecimento, como na

filosofia, na antropologia e na psicologia, entre outros. Prova disso está no fato de que

todos os seres humanos, por pertencerem à mesma espécie, compartilham de

necessidades e capacidades básicas semelhantes, sendo os únicos na natureza que são

dotados de imaginação, racionalidade e autocrítica. Eles são capazes de estabelecer

relações de diferentes tipos com os objetivos de buscar a sobrevivência, dividir uma

existência com os seus semelhantes e dar significados às suas vidas. Além disso, a

psicologia revela que todas as pessoas possuem a mesma base estrutural de

personalidade que tem como raiz a satisfação dos instintos de conservação, necessários

à sua sobrevivência.

Essa unidade de características dos seres humanos confirma que os direitos

humanos, em sua dimensão básica, devem ser universais, uma vez que eles representam

o conjunto de normas protetoras e garantidoras da dignidade da pessoa humana,

assegurando aos indivíduos os meios para a satisfação de suas necessidades peculiares,

inerentes à efetivação de uma existência plena.

Adverte-se, entretanto, que os direitos humanos, para serem universais, não podem

pretender encampar valores uniformes a serem observados por todos os tipos de

sociedades, haja vista que, por serem constituídos de valores morais, sofrem diferentes

interpretações de uma cultura para outra, em razão das peculiaridades de cada grupo

social.

Assim, deve-se abrir espaço para um diálogo intercultural, no qual diferentes

sociedades possam ter voz ativa para discutir e encontrar os pontos comuns necessários

à realização de uma vida digna para todos os seres humanos. Essa discussão deve

resultar no estabelecimento de valores mínimos universais, consignados em

regramentos jurídicos que devem ser observados por todos, ao mesmo tempo em que se

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busque preservar as características básicas de cada tipo de sociedade.

A efetivação e concretização do resultado desse diálogo intercultural, contudo,

apresenta-se como o maior dos desafios dos direitos humanos na atualidade. Isso porque

durante todo o século XX acreditou-se que a simples inserção desses direitos nas ordens

jurídicas nacionais e internacionais, sem qualquer respaldo racional, fosse suficiente

para garantir o seu respeito e realização. Todavia, a história demonstrou o contrário,

pois, nesse período, proliferaram declarações, tratados internacionais e legislações

nacionais sobre o assunto, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, os seres humanos

sofriam as mais abruptas violações à sua dignidade. Basta recordar-se do holocausto

nazista e do uso da tecnologia nuclear para a destruição em massa.

Esse paradoxo é explicado porque o reconhecimento e efetivação dos direitos

humanos têm dependido até agora do poder político Estatal, o qual assume tanto o papel

de garantidor como o de violador dessa categoria de direitos, pois não existem

organismos inter-governamentais capazes de interferir nos assuntos internos das nações

para fazer cessar esse tipo de situação. Adicionado a esse problema, tem-se o fenômeno

da globalização, haja vista que ela diminuiu drasticamente a autonomia e o poder dos

Estados, gerando, em nome da formação de um capital internacional, desigualdades

sociais, miséria e pobreza nos quatro cantos do planeta.

Diante dessas dificuldades, vê-se que os direitos humanos exigem um tratamento

diverso daquele que foi desenvolvido no século XX, quando o foco estava na proteção

dos indivíduos contra o poder e a interferência arbitrária do Estado. Como a

globalização acarretou o desmoronamento da soberania Estatal e a conseqüente

dependência de vários governos às diretrizes ditadas por organismos financeiros

internacionais, proteger os direitos humanos, nesse contexto, não é mais impor limites

somente aos Estados nacionais, mas integrá-los a todo um sistema global que tenha o

poder de proteger as pessoas em todo o planeta.

Este é o novo desafio dos direitos humanos na atualidade: criar meios de respeito e

efetivação dessa categoria, através de uma objetivação jurídica metaconstitucional,

baseada em valores morais universais, que seja capaz de influenciar, condicionar e até

mesmo suplantar os diversos níveis legislativos, na busca do respeito e efetivação

desses direitos.

Para que isso seja possível, percebe-se a necessidade do reforço de organismos

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supranacionais, como a Organização das Nações Unidas, que é integrada por

praticamente todos os Estados e que representa uma real união política do mundo, os

quais devem receber poderes de coerção de forma a poderem impor aos governos

nacionais e aos diversos agentes internacionais, públicos e privados, o respeito, a

proteção e a promoção dos direitos humanos, independentemente do sistema político,

jurídico ou cultural que adotem. Esse é um ideal a ser alcançado dentro do processo

evolutivo dos direitos humanos e cujo movimento já foi iniciado, como se pode

observar pelos diversos tratados e pressões de organizações locais e internacionais em

todo o mundo.

A tarefa não é fácil e o caminho, tortuoso, mas a busca por esse ideal é

fundamental para a superação das mazelas sociais vividas na atualidade, pois não se

pode mais admitir que, em pleno século XXI, a fome continue matando uma pessoa a

cada 3,6 segundos, dentre as quais, mais de 06 milhões de crianças, com idade inferior a

05 anos. Não é mais possível que a civilização contemporânea permita que mais de 800

milhões de pessoas, destacando-se 300 milhões de crianças, deitem-se todas as noites

com fome,e que 40% da população mundial sobreviva sem saneamento básico,

ressaltando o número absurdo de mais de um bilhão de pessoas que usa fontes de água

impróprias para o consumo. E preciso considerar que a efetivação dos direitos humanos

universais, além de ser uma teoria que busca proteger a todos e respeitar as diferenças

culturais, é, hoje, uma questão de justiça. Lembra-se, nesse sentido, que Freud, ao

abordar o mal estar da civilização já advertia:

Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização, por atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um plano de vida que nos torne felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização.257

257 FREUD, Sigmund. O mal-estar da civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1970, p. 137/8.

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