Do sonho de Josué de Castro às políticas de distribuição ... · Além de pensar a fome como...
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Do sonho de Josué de Castro às políticas de distribuição de renda no início do
século XXI: É possível superar a fome na América Latina?
Mariana Rocha Malheiros1
01. Introdução
“Metade da humanidade não come; e a outra metade não dorme, com medo da que não come”
(Josué de Castro).
A América Latina é marcada por imensas desigualdades sociais,
provavelmente as maiores do planeta. As teorias desenvolvimentistas nascidas nos
EUA e na Europa explicam que os principais motivos da fome e miséria são nossas
culturas atrasadas, pouco desenvolvidas. Todavia, no auge do Welfare State,
enquanto estadunidenses e europeus invadiam novamente nossas terras a partir de
justificativas com bases teóricas biológicas e culturais, que predominavam pra
explicar o subdesenvolvimento latino-americano, o pernambucano Josué de Castro
apontou que os principais problemas da fome eram as estruturas políticas e
socioeconômicas.
Somente no início do século XXI, os governos latino-americanos,
pressionados por movimentos e organizações sociais, iriam se empenhar no
combate à fome. Mas, essas políticas foram capazes de romper com as estruturas
apontadas por Josué de Castro, que provocam a fome no continente? Mais que
pensar políticas públicas: é possível pensar a superação da fome? O objetivo desse
trabalho é apresentar um panorama das políticas de transferência de renda no início
do século XXI, com uma avaliação, a luz de Geografia da Fome, se essas políticas,
de fato, transformaram as estruturas de fome e pobreza na América Latina.
Para alcançar o objetivo, será apresentada, resumidamente, a contribuição de
Josué de Castro no combate à fome em Geografia da fome; contexto e organização
1 Universidade Federal da Integração Latino-Americana, mestranda em Integração Contemporânea na América Latina (PPGICAL), advogada, militante da Marcha Mundial das Mulheres no Paraná e multiplicadora do projeto “Católicas pelo Direito de Decidir”. E-mail: [email protected].
das políticas de combate à pobreza na América Latina no início do século XXI e, por
fim, os limites dessas políticas, com posterior conclusão.
Além de pensar a fome como questão meramente teórica, é preciso pensá-la
como uma realidade que massacra milhões de pessoas, matando diariamente outros
tantos milhares. Como ensina Josué de Castro, fome é uma realidade, não um mero
debate teórico.
02. Josué de Castro e Geografia da Fome
Nascido em 1908, no Recife, Josué de Castro estudou medicina na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Retornou ao Recife em 1929, onde abriu
uma clínica especializada em problemas de nutrição, a primeira do Nordeste. Em
1932 ele publicou “O problema fisiológico da alimentação no Brasil” e começou a
construir uma carreira com foco na alimentação/nutrição (MELO; NEVES, 2007).
Todavia, somente em 1946, publicou sua principal obra, referência mundial
nos estudos sobre a fome. Provavelmente, “Geografia da Fome” é das grandes
obras produzidas no Brasil.
É interessante perceber que já nessa época, o autor coloca a fome como “um
silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os
preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada
civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido” (1980, p. 28). Já no
início, o autor aponta que a fome não é um problema biológico ou cultural, mas uma
consequência política e econômica.
O autor justifica a escolha de um estudo geográfico como “único método que
a nosso ver, permite estudar o problema em sua realidade total, sem arrebentar-lhe
as raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras outras manifestações
econômicas e sociais da vida dos povos” (idem, p. 31). A novidade da proposta é
encontrar justificativas socioeconômicas, não culturais ou biológicas, para entender
a fome, e pensar a sua superação estrutural, não emergencial ou paliativa.
Enquanto publicava-se Geografia da Fome, iniciavam-se, no cenário
internacional, os debates sobre desenvolvimento, a partir da criação da Organização
das Nações Unidas, do Banco Mundial e da forte influência estadunidense no
Ocidente. A grande questão era: por que no norte global existe desenvolvimento,
enquanto no sul os países são subdesenvolvidos? As justificativas do norte eram a
cultura do sul.
En estas concepciones, el desarrollo se produciría como consecuencia de la difusión cultural, que llevaría a un estadio superior de la evolución de la modernidad. (...) se partía del supuesto de que nuestras sociedades eran “subdesarrolladas”. La cultura de los latinoamericanos y caribeños era considerada como un todo homogéneo de características: “tradicionales”, “arcaicas”, “atrasadas” y poco proclives a comportamientos denominados “modernos”. Al mismo tiempo, el conjunto de estos atributos constituía la causa de su pobreza (ALVAREZ LEGUIZAMON, 2008, p.83).
Contestando essa lógica, Josué de Castro descreve, em detalhes, os hábitos
alimentares e nutricionais nas regiões brasileiras, divididas em áreas, considerando
cultura, clima, sociedade e economia. As áreas são: Amazônica e Nordeste
Açucareiro – áreas de fome endêmica; Sertão Nordestino – área de epidemias de
fome; Centro-Oeste e Extremo Sul – áreas de subnutrição (1980, p. 37), e, para
finalizar Geografia da Fome apresenta um estudo geral do Brasil.
Ao falar do Brasil aponta que a fome é consequência de um processo
causado, quase sempre, “por inabilidade do elemento colonizador, indiferente a tudo
que não significasse vantagem direta e imediata para os seus planos de aventura
mercantil” (idem, p. 250). O autor atribui à exploração colonial, mesmo no Brasil
República, um dos principais problemas que provoca a fome. “Desenvolveu desta
forma o Brasil a sua vocação oceânica, exportando toda a sua riqueza potencial por
preços irrisórios. E não sobrando recursos para atender as necessidades internas do
país: bens de consumo para o seu povo (...)” (ibidem, p. 251)2.
Com o avanço das teorias sobre desenvolvimento, emergiu o
neomalthusianismo que visava o controle de natalidade dos povos do “terceiro
mundo”, tendo em vista que a produção de riquezas não era suficiente para
satisfazer as necessidades da população global (ALVAREZ LEGUIZAMON, 2008).
Josué de Castro aponta novamente um problema de ordem socioeconômica que
justifica a falta de alimentos: “o domínio monopolista de grandes extensões de terra,
2 Essa perspectiva caracterizou Josué de Castro como um dependentista, conforme lição de ALVAREZ LEGUIZAMON (2008). O objetivo desse trabalho não é classificar a dependência de Castro dentro das correntes marxistas ou estruturalistas. Para maiores informações sobre o posicionamento do autor, recomenda-se o artigo de ALVAREZ LEGUIZAMON (2008), devidamente referenciado neste trabalho.
por vezes as de melhor qualidade, exercido por uma classe social de fazendeiros
capitalistas e latifundiários, que impedem a mais ampla utilização dos solos no
processo produtivo” (1980, p. 265).
Ainda, é importante mencionar a militância social de Josué de Castro. Ao
narrar as Ligas Camponesas em Sete palmos de terra e um caixão, o autor declara
que “não tem o menor interesse em encobrir os traços de uma realidade social, cuja
revelação possa acarretar prejuízos a determinados grupos ou classes dominantes”
(1967, p. 15). E, conforme afirmou, era um “eterno regionalista” (idem, p. 17),
apaixonado por sua terra, o Nordeste do Brasil “onde nasceu e onde formou sua
mentalidade” (ibidem). O autor foi um entusiasta das mudanças sociais, em que a
massa explorada e marginalizada, assumia a frente dos processos de transformação
social.
O fato de Josué de Castro ser assumidamente um regionalista não torna sua
obra regionalista, ainda que o Nordeste e o Norte do Brasil sejam relatados em
detalhes. Ao falar das estruturas, o autor sempre aponta o colonialismo como
gerador da monocultura e do latifúndio, que causam a concentração de renda e a
fome. Essas estruturas marcam profundamente a América Latina. Não por acaso, o
autor se tornou referência latino-americana nessa questão (ALVAREZ
LEGUIZAMON, 2008).
Todavia, infelizmente, como tantos intelectuais brasileiros, Josué de Castro
precisou exilar-se durante a ditadura civil-militar e viveu em Paris, onde faleceu em
1974. “Um militar vinculado ao Serviço Nacional de Informações (SNI) comunicava-
lhe (à filha), em nome do seu chefe, que havia sido revalidado o passaporte do pai”
(MELO; NEVES, 2007, p.244). Lamentavelmente, por um “detalhe”, como disse sua
filha, o processo só foi concluído após sua morte.
É importante considerar a perspectiva central da sua obra para a
compreensão da fome em países com capitalismo dependente, desigualdades
sociais gritantes e um histórico colonial comum. Por esses motivos, sua obra é
atemporal para se pensar o combate à fome e se apresenta como um caminho de
questionamento sobre as estruturas socioeconômicas na América Latina.
03. Políticas Públicas de Combate à Pobreza e à Fome no início do século XXI
No início do século XXI, quase trinta anos depois da morte de Josué de
Castro, a América Latina - especialmente a América do Sul - viveu um processo de
ascensão de governos progressistas, que emergiram num cenário marcado por
extremas desigualdades sociais acentuadas nos anos 1990, com as politicas
neoliberais. Neste período, ocorreram grandes rebeliões sociais. “Estas
mobilizações puseram um limite à ofensiva do capital e ao projeto desenvolvido pela
direita para sepultar a ascensão revolucionária dos anos 1970” (KATZ, 2016, p. 59).
É importante destacar que no fim dos anos 1990, as políticas neoliberais globais e
os interesses externos prevaleceram frente a proposta de desenvolvimento e
integração latino-americanas, elaboradas a partir dos anos 1950 – período
vivenciado socialmente e intelectualmente por Josué de Castro - e, nesse momento,
se sobrepôs na política externa da maioria dos países do continente, a concepção
de regionalismo aberto. “O ‘regionalismo aberto’ parece ter invertido a pauta, ao
propor voltar-se ‘para fora’ e adequar-se integralmente às exigências ‘de fora’”
(CORAZZA, 2006, p.150), e foi um importante meio para a efetivação dos interesses
externos, principalmente dos EUA na região.
Por isso, em 2001, a América Latina enfrentou desemprego em massa,
dificuldades nas políticas de reforma agrária, fome endêmica. Nesse cenário,
movimentos e organizações sociais, protagonizados por trabalhadores/as,
desempregados/as, sem-terras, indígenas, negros/as, emergiram buscando
melhores condições de vida.
Entre 2000 e 2005 ocorreram grandes levantes vitoriosos, populares, em que
os mandatários identificados como neoliberais foram retirados do poder pelas
organizações e movimentos populares. KATZ (2016) destaca os processos vividos
na Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela, que tiveram ampla participação dos
setores populares, e também menciona a situação do Brasil, Colômbia, Paraguai e
Uruguai, em que os movimentos sociais também contribuíram, ainda que de forma
mais tímida, nesses processos.
Todavia, cabe mencionar que “nenhuma revolta se transformou em revolução
triunfante, mas as classes dominantes não puderam retomar a ofensiva ou dissipar a
relação social de forças criada pela ação popular” (idem, p. 65). Mesmo não
ocorrendo uma ruptura revolucionária com os modelos socioeconômicos, emergiram
vários programas de combate à pobreza e desigualdades sociais no continente.
Fome e pobreza não se constituem como um mesmo fenômeno, e é preciso
marcar essa diferença. Ao se falar em pobreza se pretende falar em estruturas
sociais, políticas e econômicas para sua produção (e reprodução), principalmente a
pobreza massiva, que atinge bilhões de pessoas.
Su reproducción tiene que ver en mayor medida con relaciones sociales más coyunturales o contextuales. También es cierto que en su producción hay distintos factores que se conjugan: económicos, políticos, sociales y culturales. Sin embargo, los aspectos histórico estructurales vinculados con la dinámica económica de la acumulación de la riqueza, son fundamentales para entender la producción masiva de la pobreza (ALVAREZ LEGUIZAMÓN, 2008, p. 80).
A fome é um dos resultados da pobreza e da desigualdade social.
Derivada de fame, do latim, e essa de famulus – escravos ou servos – também do latim, na língua portuguesa vão gerar vocábulos como fâmulo, famulentos, famélicos, ou que têm fome. Fome e família vinculam-se, na origem de suas expressões fundantes: servidão, escravidão e pobreza. Com o surgimento da divisão social do trabalho associada à apropriação da riqueza coletiva, rompe-se a condição de acesso à alimentação para uma parcela da população, o que resulta em fome coletiva, com fortes contrastes com outros corpos satisfeitos em nutrição. A fome crônica não é apenas uma sensação individual da necessidade de ingerir alimentos, mas também, uma condição que revela a dificuldade coletiva de manter níveis ideais de nutrição (FREITAS, 2003, p. 13 e 14).
Essa distinção se faz necessária para entender a motivação dos governos
latino-americanos, apoiados por movimentos e organizações sociais, no combate à
pobreza, e, consequentemente, à fome. A fome surge como uma consequência – a
pior – da produção de pobreza massiva.
A pobreza pode ser vista exclusivamente por seu aspecto econômico e
medida a partir da renda e renda per capita, traçando uma renda mínima como linha
que aufere a pobreza, e considerando somente este fator.
Todavia, no início dos anos de 1990, passou-se a verificar a pobreza
englobando também as possibilidades do indivíduo desenvolver ou não as suas
capacidades. Essa concepção surgiu a partir dos estudos de Amartya Sen, que
apontou pobreza como a impossibilidade dos indivíduos desenvolverem suas
capacidades. Não se trata de desconsiderar os aspectos econômicos, mas ampliá-
los para além dessa dimensão, considerando o acesso à saúde, educação, bens de
consumo de longa duração, condições de moradia, nutrição ou subnutrição e outros,
fundamentais para o desenvolvimento humano.
O desenvolvimento tem de estar relacionado, sobretudo com a melhora da vida que levamos e das liberdades que desfrutamos. Expandir as liberdades que temos razão para valorizar não só torna nossa vida mais rica e mais desimpedida, mas também permite que sejamos seres sociais mais completos, pondo em prática nossas volições, interagindo com o mundo em que vivemos e influenciando esse mundo (SEN, 2010, p.29).
A definição de SEN sobre a pobreza influenciou governos e instituições no
mundo todo. Não por acaso, ao pensar no combate a pobreza, não se pensou
exclusivamente na transferência de renda, como combate à concentração, mas no
compromisso do Estado com o acesso de seus cidadãos aos serviços públicos
essenciais: saúde e educação.
Abaixo, segue tabela mostrando as políticas de distribuição de renda na
América do Sul.
Tabela 01 – Programas de distribuição de renda nos países sul-americanos
na primeira década do século XXI.
PAÍS
Programa
Ano
Objetivos
Valores
Condicionalidade
Abrangência
ARGENTINA
Jefes de Hogar
2001 Renda para famílias pobres
150 Pesos
Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
1.5 milhões de famílias em 2008
ARGENTINA
Plan Familias
2004 Renda para famílias pobres
155 a 305 Pesos
Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
500.000 famílias 2008
BOLÍVIA
Plan Bolivia 2002 e 2007
Renda para famílias pobres
25 a 135 bolivia- nos
Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
350.000 famílias em 2008
BRASIL
Bolsa Família
2003 Renda para famílias pobres
R$ 50,00 a R$ 95,00
Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
11 milhões de famílias em 2008
CHILE
Chile Solidario
2002 Renda para famílias pobres
US$ 15 a US$ 30
Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
262.000 famílias em 2008
COLÔMBIA
Famílias en Acción
2001 Renda para famílias pobres
US$ 20 a US$ 38
Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
300.000 famílias em 2008
EQUADOR
Bono de Desarrolo Humano
2003 Renda para famílias pobres
US$ 37 Sem condicionalidades
237.000 famílias em 2008
PARAGUAI
Tokepora
2005 Renda para famílias pobres
US$ 21 Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
13.000 famílias em 2008
PERU
Programa Juntos
2005 Renda para famílias pobres
US$ 33 Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
355.000 famílias em 2008
URUGUAI
Panes 2005 Renda para famílias pobres
US$ 56 Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
80.000 famílias 2008
VENEZUELA
Bolsa Bolivariana
2001 Subsídio alimentar
40% dos preços
Sem condicionalidade
8 milhões de pessoas
Fonte: MATTEI, 20143.
Também o México e os países da América Central.
Tabela 02 – Programas de distribuição de renda no México e em países da
América Central na primeira década do século XXI.
PAÍS Programa Ano Objetivos Valor Condicionalidade Abrangência
COSTA RICA
Superémonos
2000 Renda para famílias pobres
Até US$ 25,00
Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
50.000 famílias em 2005
EL SALVADOR
Red Solidaria 2005 Renda para famílias pobres
Até US$ 20,00
Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
79.000 famílias em 4 anos
GUATEMALA
Mi Familia Progresa
2008 Renda para
Até Q 150
Crianças nas escolas e cuidados
15.000 famílias em
3 Todas as informações nas tabelas 01 e 02 estão contidas no artigo “Políticas de Combate à Pobreza na América Latina: o caso dos programas de transferência de renda (CTP)” do professor Lauro Mattei, do Departamento de Ciências Econômicas da UFSC. Este artigo discute as políticas de combate à pobreza na América Latina, com ênfase nas políticas de distribuição de renda.
famílias pobres
com a saúde 2008
HONDURAS
Asignación Familias
1998 Renda para famílias pobres
US$ 20,00
Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
80.000 famílias em 2002
MÉXICO
Progresa e Oportunidades
1997 2002
Renda para famílias pobres
Até 580 Pesos
Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
5 milhões famílias em 2007
NICARÁGUA
Red de Proteción Social
2002/2003
Renda para famílias pobres
US$ 28,00
Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
150.000 famílias em 2007
PANAMÁ
Red de Oportunidades
2006 Renda para famílias pobres
B 35 = US$ 35
Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
57.000 famílias em 3 anos
REPÚBLICA DOMINICANA
Programa Solidaridad
2005 Renda para famílias pobres
Até US$ 35,00
Crianças nas escolas e cuidados com a saúde
400.000 famílias em 2008
Fonte: idem.
A exceção da Venezuela e do Equador, que viveram processos de ampla
mobilização que resultou em transformações estruturais do Estado, para além do
neoliberalismo da década de 1990, todos os países condicionaram a transferência
de renda ao ingresso das crianças nas escolas e cuidados da família com a saúde.
No caso da Venezuela, o objetivo da transferência monetária era específica
aos produtos da cesta básica para elevar os níveis nutricionais do país, um
programa específico de combate à fome.
A Argentina, após a forte crise do início do século XXI, manteve dois
programas de distribuição de renda e a Bolívia, logo após a eleição de Morales,
ampliou o alcance do programa já existente. Brasil, Colômbia, Paraguai e Uruguai,
países que também vivenciaram levantes populares, também instituíram programas
de transferência de renda nesse períodos.
Em comum, essas políticas se manifestaram como processos de mobilização
popular em países que sofreram com o avanço neoliberal na década de 1990 e
apresentaram condicionalidades/obrigações para os/as beneficiários/as, numa
perspectiva de que o combate à pobreza é multidimensional.
Essas políticas foram fundamentais para a diminuição da pobreza, conforme
dispõe o gráfico abaixo.
Gráfico 01 – Evolução da pobreza e da indigência na América Latina entre
1980 – 20124.
Provavelmente, sem essas políticas, o combate à pobreza e à fome, não
teriam sofrido alterações na América Latina.
É preciso destacar o Brasil nesse processo, não só por suas dimensões
continentais, mas pelo empenho focado no combate à fome e o vínculo com a obra
de Josué de Castro.
Em 01/01/2013, o presidente Luís Inácio Lula da Silva tomou posse como
primeiro presidente declaradamente filho da classe trabalhadora e oprimida desse
país. Em seu discurso afirmou: “É por isso que hoje conclamo: vamos acabar com a
fome em nosso país. Transformemos o fim da fome em uma grande causa nacional”
(2003, p. 04).
Nascido no sertão de Pernambuco, em 1945, Lula foi uma das crianças
descritas por Josué de Castro que sobreviveu à fome, miséria e condições de vida
precária. O Fome Zero, que consistia no atendimento emergencial e imediato às
famílias que passavam fome, através do Bolsa Família, também incluía programas
de doações de cestas básicas com atendimento imediato, emergencial.
Conforme MATTEI (2008), para além do atendimento emergencial, merecem
destaque os programas estruturais: o Programa de Aquisição de Alimentos da
4 TORRES, Maria Luísa Montánchez. Evolución de la pobreza y la indigencia –1980/2012–. Fuente: CEPAL. Disponível em https://www.researchgate.net/figure/Figura-2-Evolucion-de-la-pobreza-y-la-indigencia-1980-2012-Fuente-CEPAL-Se-puede_fig1_320042501 Acesso em 01.09.2019
Agricultura Familiar (PAA) – que visava adquirir produtos oriundos da agricultura
familiar para formação de bancos estratégicos de alimentos; Programa do Leite –
visando a produção de leite especialmente nas regiões Norte e Nordeste; Programa
de Cisternas – com a construção de cisternas para o combate à seca no semiárido
brasileiro.
Também se pensava em programas regionais, com foco em restaurantes
populares, banco de alimentos e incentivo à agricultura urbana.
Todavia, à exceção do PAA que obteve êxito entre os assentados da reforma
agrária e os agricultores familiares, os outros programas não tiveram a mesma força
que as políticas de distribuição de renda, e avançaram de forma tímida, ou muito
localizada, durante os Governos Lula (MATTEI, 2008).
O não êxito desses programas também apontam as limitações dos próprios
programas de transferência de renda. Somente a transferência de renda, aliada com
acesso à saúde e educação, não são suficientes para a consciência de que é
preciso combater as estruturas da fome. As políticas são efetivas em acesso a bens
de consumo, cidadania, que são frutos da ordem colonial e capitalista. As estruturas
do sistema, dessa forma, continuam intactas.
04. Limites das políticas de transferência de renda. Crítica a partir de Josué
de Castro
Após mais de uma década de empenho no combate à pobreza, a América
Latina passou a vivenciar, na segunda metade dessa década, o aumento no número
de pobres e da pobreza extrema no continente, conforme dispõe o gráfico a seguir:
Gráfico 02 – Evolução da pobreza e da pobreza extrema na América Latina
nos últimos anos da década5.
5ALVES, José Eustáquio Diniz. A pobreza voltou a subir na América Latina e Caribe, depois de
duas décadas de queda. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/586249-cresce-a-
pobreza-na-america-latina-e-caribe Acesso em 03.09.2019.
Por que após mais de uma década caindo significativamente, a pobreza
voltou a crescer na América Latina?
Josué de Castro apontou que um dos grandes problemas estruturais, que
provocava a fome endêmica, era o latifúndio. “Regime inadequado de propriedade,
com relações de trabalho socialmente superadas e com a não-utilização da riqueza
potencial dos solos” (1980, p. 269). O latifúndio gerava a monocultura, que impedia a
agricultura de subsistência e colocava em risco, também, o próprio solo.
Para o autor, a reforma agrária era primordial para a resolução do problema
da fome no Brasil, e nos países subdesenvolvidos, marcados pelo colonialismo.
Para além de entender a reforma agrária em sentido literal (que também era a
proposição de Castro), trata-se de entender que o autor buscava um processo de
ruptura com um modelo de país que privilegiava a concentração de renda e meios
de produção nas mãos de alguns, enquanto, a imensa maioria da população,
encontrava-se à margem. “Concebemos a reforma agrária como um processo de
revisão das relações jurídicas e econômicas, entre os que detêm a propriedade
agrícola e os que trabalham nas atividades rurais” (idem, p. 266).
Medidas emergenciais, paliativas, são fundamentais no combate à fome.
Popularmente: “o bucho tem pressa”. Todavia, o emergencial não pode se tornar um
fim em si mesmo, e para que a pobreza e a fome não sejam mais um problema
latino-americano, é necessário pensar as estruturas que formam governos e
sociedades civis no continente.
O caso do Brasil reflete essa crítica. Ao mesmo tempo em que os programas
de transferência de renda atendiam a população descrita por Josué de Castro em
suas obras, o agronegócio, com foco nos latifúndios, monoculturas e agricultura de
exploração, se tornava a “menina dos olhos” durante os governos petistas.
Tanto os governos de Lula como de Dilma estavam comprometidos com o agronegócio e desenvolveram uma política compensatória já que ambos não definiram metas de assentamentos e nem mencionaram em seus programas de governo a concentração fundiária presente. O trabalhador rural pobre, sem-terra, ficou desassistido, já que sua reivindicação era uma política agressiva de desapropriação de terras e criação de novos assentamentos. Porém, como o agronegócio tem uma importância fundamental para o projeto neodesenvolvimentista, pela lógica as desapropriações se inviabilizavam. Para se ter uma ideia, entre os anos de 2003 e 2007 foram desapropriados 1.646 imóveis contra 2.223 no governo de FHC. As camadas mais pobres dos trabalhadores rurais foram as mais marginalizadas pelo projeto. A reforma agrária no governo Lula (2003-2010), mais uma vez, não foi concebida como política de desenvolvimento territorial que visava romper com as práticas de concentração fundiária forjadas há mais de 500 anos; ela continuou limitada a avançar conforme pressões dos movimentos sociais (MESSIAS, 2017, p. 29)
Para a superação da fome e da pobreza, no cenário latino-americano,
enfrentar as estruturas econômicas, sociais e culturais são fundamentais para que
ocorram transformações a longo prazo na região, que superem o colonialismo e as
estruturas capitalistas.
Conforme avaliação de MATTEI sobre as políticas de combate à pobreza:
Ainda existem muitas barreiras a serem ultrapassadas na luta contra a pobreza na América Latina. Dentre elas, destacam-se o maior acesso das populações pobres aos bens e serviços públicos; melhorias nas condições de trabalho e nos níveis de emprego e de salários; combate ao desperdiço e a malversação dos recursos públicos; maior envolvimento da sociedade civil na formulação e implementação das políticas públicas; e universalização dos programas sociais visando a construção de um modelo de desenvolvimento menos desigual e assentado nos princípios da solidariedade humana (2008, p. 100 e 101).
Também é preciso considerar o papel do Banco Mundial nesse processo, que
atuou como um agente duplo. O Banco foi o principal financiador desses programas,
também na África e na Ásia6 (MATTEI, 2014) e a sua atuação teve a função de
manter as estruturas capitalistas tais como são, não modifica-las. Busca-se “auxiliar
economicamente as famílias que vivem abaixo da linha de pobreza e que nem
6 O autor não especifica quais são os países financiados pelo Banco Mundial.
sequer conseguem enviar suas crianças às escolas e participar das atividades
básicas de saúde” (idem, p. 356). Por isso também o combate à fome e à pobreza
tem um caráter muito mais assistencialista que estrutural nas áreas periféricas. “A
política social assumiu cada vez mais uma função de ‘bombeiro’, atuando em
situações que poderiam se converter em focos de tensão política ou criar
insegurança para o livre fluxo de capital e mercadorias” (MENDES, 2010, p. 275).
Essas políticas tiveram a função de conter as rebeliões.
A aproximação com o Banco Mundial por parte de governos, também
provocou o afastamento de movimentos e organizações populares que apoiaram,
efetivamente, a maior parte desses governos (MENDES, 2010), e as mobilizações
revolucionárias foram neutralizadas nesse cenário.
Para que a fome e a pobreza sejam efetivamente superadas na América
Latina, é necessário alterar todas as estruturas base da política socioeconômica no
continente, isso inclui encarar a herança colonial das relações de trabalho e
distribuição da terra, conforme a perspectiva de Josué de Castro, atualizando sua
obra, revendo a própria estrutura de Estado e fortalecendo mobilizações sociais para
que a pobreza e, consequentemente, a fome, sejam superadas.
05. Conclusão
“Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”... (Canção interpretada por Caetano Veloso)
O presente trabalho apresentou as políticas públicas de distribuição de renda
no início do século XXI na América Latina e se propôs a enfrentar as causas
socioeconômicas apontadas por Josué de Castro, em sua obra.
A partir da obra escolhida, com a perspectiva de combate à fome e à pobreza
na segunda metade do século XXI, algumas perguntas incômodas se apresentam:
por que é tão difícil encarar o problema da fome? Por que não nos sentimos falidos
com a presença dos milhares de pedintes do alimento diário? Por que naturalizamos
o fato de que milhões de criança não podem comer nesse exato momento?
Pensar a fome é pensar para além de direito ou não. O direito é a construção
moderna para a promoção da dignidade humana, que se baseia numa lógica
meritocrática e cidadã. A percepção sobre alimentação precisa ser vista como mais
que um direito. Trata-se de uma relação de sobrevivência do ser humano e das
outras espécies de animais. É nesse ponto que a obra de Josué de Castro mais
provoca. Ele mostra que um processo natural (o da alimentação nutrida e
equilibrada) foi distorcido num sistema em que tudo é mercadoria/meritocracia,
justificado de forma racional a partir de explicações biológicas e culturais, ignorado
em suas causas socioeconômicas e políticas. Falar em fome é mais impactante que
falar em pobreza porque é a necessidade para a sobrevivência humana.
Sem pretensões de criar uma verdade universal, talvez esse seja o maior
desafio para a superação da fome na América Latina: assimilar, apreender que a
fome não é natural, ou cultural. A fome é um projeto de necropolítica, provocada por
um modelo econômico destruidor. Por isso, Geografia da fome é atemporal,
podendo ser refletida em Juarez, na fronteira do México com os EUA; no sertão de
Pernambuco ou na Patagônia Argentina.
Só o combate às estruturas de pobreza e miséria combatem efetivamente a
fome.
06. Referências Bibliográficas
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