Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação (1909 ...

546
SIMONE PETRAGLIA KROPF Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação (1909-1962) Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em História. Área de Concentração: História Social. Orientador: Prof . Dr. André Luiz Vieira de Campos Niterói 2006

Transcript of Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação (1909 ...

  • SIMONE PETRAGLIA KROPF

    Doena de Chagas, doena do Brasil: cincia, sade e nao (1909-1962)

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do Grau de Doutor em Histria. rea de Concentrao: Histria Social.

    Orientador: Prof . Dr. Andr Luiz Vieira de Campos

    Niteri

    2006

  • SIMONE PETRAGLIA KROPF

    Doena de Chagas, doena do Brasil: cincia, sade e nao (1909-1962)

    Aprovada em junho de 2006

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do Grau de Doutor em Histria. rea de Concentrao: Histria Social.

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________________________ Prof. Dr. Andr Luiz Vieira de Campos (orientador)

    Departamento de Histria/Universidade Federal Fluminense

    ________________________________________________________ Prof Dr Silvia F.M. Figueira

    Instituto de Geocincias/Universidade de Campinas

    ________________________________________________________ Prof. Dr. Jaime L. Benchimol

    Casa de Oswaldo Cruz/Fundao Oswaldo Cruz

    ________________________________________________________ Prof Dr ngela M. de Castro Gomes

    Departamento de Histria/Universidade Federal Fluminense

    ________________________________________________________ Prof. Dr Magali Engel

    Departamento de Histria/Universidade Federal Fluminense

    _______________________________________________________ Prof Dr Nsia Trindade Lima (suplente)

    Casa de Oswaldo Cruz/Fundao Oswaldo Cruz

    ________________________________________________________ Prof. Dr. Ronald Raminelli (suplente)

    Departamento de Histria/Universidade Federal Fluminense

  • K93d Kropf, Simone Petraglia Doena de Chagas, doena do Brasil: cincia, sade e nao (1909-1962) /

    Simone Petraglia Kropf.--- Niteri, 2006. 2 V. Tese (Doutorado em Histria Social) Universidade Federal Fluminense, 2006.

    Bibliografia: f. 497-513.

    1. Doena de Chagas. 2. Histria 3. Trypanosoma Cruzi

    4. Histria das Cincias 5. Histria da Medicina 6.Sade Publica 7. Brasil. CDD 616.9363

  • Para Gilberto e Ana Clara

  • RESUMO O objetivo deste estudo analisar o processo pelo qual a doena de Chagas ou tripanossomase americana (descoberta em 1909, em Minas Gerais, por Carlos Chagas, mdico e pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz/IOC) foi estabelecida e reconhecida como um fato cientfico e uma questo de sade pblica no Brasil. Para isso, focalizamos dois momentos deste processo, no qual a definio da nova doena tropical como entidade nosolgica especfica deu-se de modo indissociado de sua caracterizao como fato social, a representar uma dada viso da cincia e da sociedade brasileiras. Numa primeira fase, abordamos as pesquisas realizadas por Chagas e seus colaboradores, no IOC, desde 1909 at o seu falecimento, em 1934. Desde 1910, os enunciados sobre o quadro clnico e a importncia mdico-social da nova enfermidade ensejaram o debate sobre as condies do atraso das regies do interior do pas, a relao entre endemias rurais e identidade nacional e o papel social da cincia. Tal debate culminaria no chamado movimento pelo saneamento dos sertes, entre 1916 e 1920. Ao mesmo tempo, tais enunciados foram objeto de crticas, formuladas inicialmente na Argentina, entre 1915 e 1916, e aprofundadas no campo mdico brasileiro, entre 1919 e 1923. Estes questionamentos marcaram de modo decisivo o encaminhamento dos estudos sobre a doena. Um segundo momento de nossas anlise diz respeito s pesquisas realizadas, aps 1934, por dois discpulos de Carlos Chagas em Manguinhos: Evandro Chagas, seu filho mais velho e criador do Servio de Estudo das Grandes Endemias (SEGE), e, principalmente, Emmanuel Dias, que dirigiu o Centro de Estudos e Profilaxia da Molstia de Chagas (CEPMC), posto do IOC na cidade de Bambu, Minas Gerais, desde sua criao, em 1943, at seu falecimento em 1962. Nesta fase, foram estabelecidos um novo enquadramento para a fisionomia clnica da doena e os recursos tcnicos para a sua profilaxia, mediante aplicao de inseticidas. Tal processo transcorreu sob as condies histricas especficas da sociedade brasileira ps-1930 e sob os significados particulares conferidos relao entre sade e desenvolvimento nos cenrios internacional e nacional, especialmente a partir da II Guerra Mundial. Mediante intensa mobilizao dos cientistas para difundir os conhecimentos sobre a doena e conquistar o interesse de distintos grupos sociais, foram produzidos os meios para que, durante a dcada de 1950, a tripanossomase americana fosse reconhecida publicamente e se institucionalizasse como objeto cientfico e tema inscrito nas polticas sanitrias do Estado brasileiro.

  • ABSTRACT This study analyzes the process by which Chagas disease, or American trypanosomiasis, was established and recognized as a scientific fact and a public health issue in Brazil. This tropical disease was discovered in 1909, in the state of Minas Gerais, by Carlos Chagas, physician and researcher at the Oswaldo Cruz Institute (IOC). The process of its definition as a specific nosological entity was something that occurred concomitantly with its characterization as a social fact, representing a specific outlook of Brazilian science and society. Focusing on two moments in the process, I first address the research conducted by Chagas and his collaborators at the Institute from 1909 until his death in 1934. Starting in 1910, statements concerning the new diseases clinical presentation and its medical and social importance stirred a debate encompassing basically three questions: the backward conditions characterizing the serto (Brazilian hinterlands), the relationship between diseases endemic to rural areas and national identity, and the social role of science. The debate was to culminate in the 1916-20 rural sanitation movement. Furthermore, these statements were the object of criticisms raised first in Argentina (1914-16) and then expanded within the Brazilian medical field (1919-23), coming to have a decisive impact on the direction of research into the disease and on public recognition of it as a social issue. My second point of analysis focuses on the post-1934 research conducted by two disciples of Carlos Chagas at Manguinhos: Evandro Chagas, his elder son and founder of the Servio de Estudo das Grandes Endemias (SEGE, or Bureau for Studies on Major Endemic Diseases), and, chiefly, Emmanuel Dias, who directed the Centro de Estudos e Profilaxia da Molstia de Chagas (CEPMC, or Center for Studies and Prophylaxis on Chagas Disease, an IOC post in the city of Bambu, Minas Gerais) from its creation in 1943 until his death in 1962. This period saw a reframing of the diseases clinical physiognomy and the development of technical methods for preventing it, through the use of insecticides. Forming the backdrop of this process were the unique historical circumstances of post-1930 Brazilian society and, further, the specific meanings assigned to relations between health and development on the international and national fronts, particularly as of World War II. Scientists mobilized their forces to disseminate knowledge of the disease and to interest various social groups in the topic. During the 1950s, these efforts fostered public recognition and the institutionalization of Chagas disease as a scientific object and an issue on the roster of the Brazilian governments sanitary policies.

  • NDICE

    VOLUME 1

    AGRADECIMENTOS p.01

    INTRODUO p. 05

    CAPTULO 1 - MEDICINA TROPICAL E CINCIA NACIONAL: CARLOS CHAGAS E A DESCOBERTA DE UMA NOVA TRIPANOSSOMASE HUMANA

    p. 31

    1.1 - Medicina nos trpicos antes de Pasteur, Manson e Oswaldo Cruz p. 35

    1.2 - Carlos Chagas e um bando de idias novas: formao mdica,

    microbiologia e medicina tropical p. 48

    1.3 - A tese de doutoramento: o primado do laboratrio (1902-1903) p. 66

    1.4 - Chagas e as campanhas de profilaxia da malria: a ida ao campo e a

    expanso de Manguinhos p. 73

    1.5 - O Instituto Oswaldo Cruz e a medicina tropical p. 81

    1.6 - Descoberta no interior de Minas: um vetor, um parasito e uma nova

    doena tropical (1908-09) p. 87

    1.7 - Os sentidos da descoberta p. 95

    CAPTULO 2 - MOLSTIA TROPICAL, ENDEMIA DOS SERTES: O DESENHO DA DOENA DO BRASIL (1910-1913)

    p. 107

    2.1 O primeiro quadro clnico: a tireoidite parasitria e o selo da doena p. 110

    2.2 - O encontro da Academia com o serto: o espetculo da doena p. 123

    2.3 - Endemias rurais, obstculo ao progresso: a tripanossomase brasileira p. 141

    CAPTULO 3 - ENTRE DVIDAS E GLRIAS: A TRIPANOSSOMASE AMERICANA NO FOCO DA CINCIA E DA POLTICA (1914-1918)

    p. 156

    3.1 - Bociosos, vinchucas e nenhum caso da tripanossomase: controvrsia

    na Argentina (1914-1916) p. 157

    3.2 - A resposta de Chagas aos argentinos p. 165

    3.3 - A reviso de Chagas: um novo desenho clnico para a tripanossomase

    americana p. 172

  • 3.4 - A doena do Brasil e o movimento pelo saneamento dos sertes: trs

    milhes de idiotas e papudos (1916-1918) p. 176

    3.5 - Carlos Chagas na cena pblica p. 194

    CAPTULO 4 - CALAMIDADE NACIONAL OU MAL DE LASSANCE? A DOENA DO BRASIL EM QUESTO (1919-1934)

    p. 198

    4.1 - Os primeiros movimentos da contenda (1919-1920) p. 199

    4.2 - A polmica na Academia Nacional de Medicina (1922-1923) p. 207

    4.3 - A sentena: mrito reconhecido, questes em aberto p. 218

    4.4 - Uma polmica para a histria p. 228

    4.5 - Os caminhos de Chagas e da doena aps a polmica (1923-1934) p. 239

    4.6 - Uma doena a ser procurada pelos clnicos p. 248

    VOLUME 2

    CAPTULO 5 - MANGUINHOS E A SADE PBLICA A PARTIR DE 1930: NOVOS CAMINHOS PARA O ESTUDO DAS ENDEMIAS RURAIS

    p. 255

    5.1 - O Instituto Oswaldo Cruz e as novas estruturas da sade pblica ps-1930

    p. 255

    5.2 - Evandro Chagas e o Servio de Estudo das Grandes Endemias (SEGE) p. 264

    5.3 - Uma guerra mundial contra as doenas: o otimismo da era DDT p. 272

    5.4 - O Instituto Oswaldo Cruz entre dois projetos p.

    282

    5.5 - Manguinhos vai guerra: o reencontro com a sade pblica p. 288

    5.6 - Uma nova agenda para o saneamento do interior p. 295

    5.7 - Combatendo endemias em Minas Gerais: as preocupaes com a

    superao do atraso econmico p. 299

    CAPTULO 6 - DE VOLTA ARGENTINA E AO SERTO MINEIRO: OS ESTUDOS SOBRE A DOENA APS CARLOS CHAGAS (1935-1943)

    p. 303

    6.1 - Novo encontro com os argentinos: um sinal clnico para os mdicos do

    interior

    p. 304

  • 6.2 - O SEGE e as pesquisas sobre a tripanossomase americana p. 316

    6.3 - Um front para a luta: a criao do Centro de Estudos e Profilaxia da

    Molstia de Chagas (CEPMC) p. 324

    CAPTULO 7 - IDENTIFICANDO O INIMIGO E AS ARMAS: AS PESQUISAS DO INSTITUTO OSWALDO CRUZ EM BAMBU, MINAS GERAIS (1943-1949)

    p. 331

    7.1 - Guerra aos vetores: testando estratgias p. 331

    7.2 - A arma qumica contra os barbeiros p. 340

    7.3 O primado da clnica: o olhar da cardiologia p. 342

    7.4 - O eletrocardiograma e os novos traados para a doena: a cardiopatia

    chagsica crnica p. 349

    7.5 - Convencendo os que ainda queriam ver o parasito p. 358

    7.6 - Provando os enunciados do mestre: novo enquadramento para a

    tradio p. 362

    CAPTULO 8 - PARA ALM DO LABORATRIO: ARREGIMENTANDO ALIADOS NA GUERRA CONTRA A DOENA DO CORAO DO BRASIL (1942-1950)

    p. 371

    8.1 - O apelo aos mdicos p. 372

    8.2 - A divulgao nos fruns mdico-cientficos p. 382

    8.3 - Ampliando as associaes para conquistar as agncias sanitrias p. 387

    8.4 - Os mdicos do Brasil Central e a doena do serto p. 393

    8.5 - A primeira campanha (1950) p. 399

    8.6 - O otimismo do ps-guerra: um mundo confiante no desenvolvimento p. 407

    8.7 - Sade e desenvolvimento na democratizao brasileira p. 411

    8.8 A recuperao econmica do celeiro do Brasil p. 415

    CAPTULO 9 - A DOENA DE CHAGAS EM TEMPOS DE DESENVOLVIMENTO (1951-1962)

    p. 422

    9.1 Sade, desenvolvimento e endemias rurais na dcada de 1950: o

    crculo vicioso da doena e da pobreza p. 422

    9.2 A tripanossomase americana em destaque nos eventos mdico-

    sanitrios

    p. 428

  • 9.3 Pedidos ao Doutor Dias: a doena vista pela populao p. 435

    9.4 Novos espaos de pesquisa p. 438

    9.5 A doena do Brasil Central na era JK p. 443

    9.6 Divergncias na guerra aos barbeiros p. 451

    9.7 A busca de novos aliados: doena de Chagas como problema

    continental

    p. 454

    9.8 Um fato da cincia e da sade pblica: novas perspectivas e desafios p. 460

    CONSIDERAES FINAIS p. 466

    FONTES ARQUIVSTICAS p. 479

    FONTES IMPRESSAS p.481

    FONTES ORAIS p. 499

    BIBLIOGRAFIA p. 500

    ANEXO IMAGENS p. 517

  • 1

    AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, agradeo a meu orientador, Andr Luiz Vieira de Campos, cujo

    compromisso com o ofcio da orientao eu muito admiro, pela ateno sempre presente, pela

    leitura cuidadosa das minhas muitas pginas, por todas as sugestes e comentrios e pelo

    carinho e a confiana com que me acolheu durante estes anos, ao final dos quais chego no

    apenas com uma tese, mas com um novo e querido amigo.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense,

    agradeo as condies para a realizao deste trabalho, entre as quais a disciplina Viagens

    cientficas e colonialismo, ministrada pelo Prof. Ronald Raminelli, que me proporcionou,

    alm de amplas discusses sobre cincia, a oportunidade de aprofundar minhas leituras de

    Bruno Latour.

    s professoras Silvia Figueira e ngela de Castro Gomes, que compuseram minha

    banca de qualificao, sou muito grata pelos comentrios e sugestes, e pela oportunidade de

    t-las, junto aos professores Jaime Benchimol e Magali Engel, em minha banca de defesa.

    Casa de Oswaldo Cruz instituio em que, desde 1991, quando fui bolsista de

    iniciao cientfica, venho trilhando minha vida profissional agradeo pelas amplas

    condies proporcionadas para que eu desenvolvesse este estudo, condies preciosas e raras

    no cenrio acadmico brasileiro. A COC e seus profissionais permitiram-me realizar esta tese

    no como um esforo solitrio, mas como caudatria de um empreendimento que, em vinte

    anos comemorados a partir deste ms de maio, conformou no apenas uma equipe de

    trabalho, mas um campo de pensamento no domnio da histria.

    Foi no mbito do Programa de Ps-Graduao em Histria das Cincias e da Sade da

    COC que cursei a disciplina Histria e historiografia da sade pblica. Ministrada por

    Jaime Benchimol e Gilberto Hochman, ela foi fundamental, pela bibliografia e pelas questes

    discutidas, para alguns encaminhamentos tericos seguidos na tese. Como ouvinte, cursei no

    mesmo programa, a disciplina Sociologia da cincia, oferecida por Nara Azevedo e Luiz

    Otvio Ferreira, que igualmente constituiu uma ocasio de grande importncia para alinhavar

    a perspectiva terica que adoto neste trabalho.

    Agradeo a meus colegas do Departamento de Pesquisa da COC, que por tanto tempo

    me ouviram falar de Carlos Chagas, doena de Chagas e assuntos correlatos, e que

    compartilharam, nos corredores e almoos, os passos desta longa trilha. A Maria Rachel Fres

    da Fonseca, pelos muitos envelopes de seu arquivo de biografados do precioso Dicionrio

    Histrico e Biogrfico da Sade Pblica e das Cincias Biomdicas. A Flvio Edler, pelas

  • 2

    conversas sobre assuntos mdicos e pela leitura crtica que fez da seo deste trabalho relativa

    medicina no sculo XIX. A minha mais nova companheira de trabalho, Magali Romero S,

    a quem recorri muitas vezes para esclarecer dvidas e discutir questes relativas medicina

    tropical. A Cristina Fonseca, pelo carinho sempre presente e por importantes referncias e

    informaes que me forneceu sobre sade pblica na era Vargas. A Ana Teresa Venncio, por

    indicaes bibliogrficas acerca do debate em torno das patologias mentais no incio do

    sculo XX. A Nsia Trindade Lima, com quem compartilho do encanto pelos caminhos dos

    sertes, agradeo pelas conversas que, desde o centenrio do clssico de Euclides da Cunha,

    temos tido sobre os personagens que habitam este mundo, conversas estas que, mais

    recentemente, vm gerando agradveis trocas tambm com Dominichi Miranda de S. A estes

    e a todos os outros colegas, como Marcos Chor Maio, Robert Wegner, Anna Beatriz de S

    Almeida, Laurinda Maciel e ngela Porto, sou grata pelo apoio e pelo carinho.

    Luiz Otvio Ferreira, meu professor e orientador de graduao no Departamento de

    Sociologia da PUC/RJ, no apenas despertou meu interesse pela histria dos intelectuais e da

    cincia, mas, ao fazer-me reescrever por duas vezes um captulo de minha monografia,

    ensinou-me que o trabalho intelectual para ser feito e refeito, tantas vezes quantas forem

    necessrias, com persistncia e dedicao.

    A Nara Azevedo e a Luiz Otvio, com quem trabalhei, inicialmente como bolsista de

    aperfeioamento, no projeto que coordenavam sobre a histria da doena de Chagas, agradeo

    muitas coisas. Em primeiro lugar, o encontro com este tema, que abracei desde 1998, quando,

    com Fernando Pires Alves, coordenei o projeto da Biblioteca Virtual Carlos Chagas. Alm

    disso, a grande amizade, compartilhada tambm com Wanda Hamilton, que se juntou ao

    grupo em outros projetos, entre os quais o que abordou a trajetria do IOC nas dcadas de

    1940 e 1950. Com Luiz Otvio e Nara, que leram tantos textos meus sobre doena de Chagas

    alm deste trabalho, e com quem publiquei artigos que aguaram ainda mais meu desejo de

    realizar esta tese, aprendi, na prtica, o princpio terico que a orienta: o conhecimento um

    processo coletivo. Nas incontveis horas em que, com Nara, conversei sobre a cincia de

    Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, muitas vezes fora das salas da COC, reafirmei que o lema de

    Vinicius de Morais vale tambm para o trabalho intelectual: s sei que preciso paixo!

    Foi no espao deste grupo, por sua vez inscrito no grupo maior que o Departamento

    de Pesquisa da COC, que me formei como pesquisadora e recebi os instrumentos tericos e as

    condies materiais para realizar o meu trabalho. E, privilgio ainda maior, este grupo legou-

    me os referenciais afetivos para que ele pudesse ser feito como uma tessitura que se cria no

  • 3

    tempo, alinhavada pelo prazer. J que se falar em Thomas Kuhn, este o paradigma mais

    slido do qual sou seguidora, com muito orgulho.

    A outros profissionais da COC, tambm registro meus agradecimentos. A Claudia

    Costa, Sheyla Lacerda e Rogrio da Silva Brum, da Secretaria do Departamento de Pesquisa,

    que nos auxiliam, de distintas maneiras, no encaminhamento da vida institucional. A Jean

    Maciel e, em especial, a Rose Oliveira, arquivistas da Sala de Consulta do Departamento de

    Arquivo e Documentao, que com competncia, ateno e presteza me auxiliaram no acesso

    s dezenas de caixas de documentos nas quais mergulhei durante estes anos. equipe da

    Biblioteca, particularmente a Wanda Weltman, sempre solcita na busca de livros e

    publicaes diversas, muitas vezes em bibliotecas fora do Rio de Janeiro, e equipe do

    Arquivo Iconogrfico da COC, em especial a Roberto Jesus Oscar, que digitalizou as imagens

    que compem o Anexo.

    Agradeo ainda a Rita de Cssia Marques, historiadora do Programa de Ps-

    Graduao em Enfermagem da UFMG, que gentilmente enviou-me de Belo Horizonte alguns

    documentos e textos.

    Entre os muitos mdicos que entrevistei sobre a histria da pesquisa sobre a doena de

    Chagas no Brasil, agradeo particularmente ao Dr. Joo Carlos Pinto Dias, doador do arquivo

    constitudo por seu pai, Emmanuel Dias, no Centro de Estudos e Profilaxia de Molstia de

    Chagas em Bambu, Minas Gerais, precioso e vasto material de pesquisa que utilizei neste

    trabalho. Foi uma honra ouvi-lo, em seu logo e valioso depoimento e em outras conversas,

    sobre Carlos Chagas e seus seguidores.

    Ao Dr. Anis Rassi, que pacientemente e com muita solicitude, deu-me uma aula de

    cardiologia e de doena de Chagas, agradeo o esclarecimento das muitas dvidas que

    enfrentei ao aventurar-me neste fascinante campo do conhecimento mdico.

    E, muito especialmente, ao Dr. Joffre Rezende, que com sua gentileza bem-humorada

    disse-me, em uma das muitas mensagens que trocamos entre o interior e o litoral, que eu

    havia sido inoculada com a paixo que a histria de Carlos Chagas desperta e que, para este

    mal, no h cura... com o maior respeito e admirao que agradeo ao meu caro Dr. Joffre

    que, depois de tantas conversas, considero um amigo pela enorme disponibilidade em

    responder minhas muitas perguntas e em orientar-me. A ele, que tem um papel to importante

    na histria da medicina brasileira, sou grata por me ajudar a compreender os vrios sentidos

    da tradio que uniu Manguinhos aos mdicos do Brasil Central.

    A estes mdicos, zelosos guardies da memria de Carlos Chagas e que fazem parte

    desta histria, manifesto a expectativa de que compreendam que a perspectiva da historiadora,

  • 4

    ao refletir sobre os caminhos da consagrao de Carlos Chagas e tambm sobre seus

    percalos, controvrsias e sobre suas idias que foram abandonadas, a de compreender que a

    cincia, inclusive a dos grandes nomes, feita de trilhas complexas, numa composio de

    acertos e desacertos, idas e vindas, como qualquer atividade humana.

    Registro ainda meus agradecimentos aos que, fora do domnio profissional, trouxeram

    apoios fundamentais no percurso que me trouxe at aqui.

    Minha amiga Ktia Lerner, companheira desde os tempos da graduao e que, como

    eu, viveu nos ltimos trs anos a experincia de ser me fazendo tese, compartilhou

    comigo, como ningum, os sentimentos, medos e alegrias que isso significa.

    Meu av Francisco Petraglia, minha av Rene, minha tia-av Nadyr, apesar de j

    terem partido h alguns anos, acompanham-me na memria, como parte especial de minha

    prpria histria. Com eles aprendi, desde cedo, o gosto pelos relatos dos tempos passados.

    Minha prima-av Neusa Feital Wrhle, pioneira da educao no Brasil, nos seus 90 anos,

    conta com a minha profunda admirao. prima Neusa, agradeo o apoio para que eu

    seguisse, da graduao ao doutorado, esse caminho do saber que ela prpria trilhou, numa

    poca em que eram poucas as mulheres que a isso se aventuravam.

    A meus pais e meu irmo, agradeo pelo carinho de sempre e pela experincia de ter, a

    partir do nascimento de Ana Clara, re-aprendido o sentido de famlia e recomposto, sob um

    afeto renovado, os laos que nos unem.

    A Gilberto Hochman, meu querido Gil, que leu com tanta ateno cada parte deste

    trabalho, um registro mais do que especial. Companheiro de muitas e intensas travessias, que

    esteve ao meu lado a cada minuto destes ltimos seis anos, em todos os sentidos, com quem

    dividi no apenas meus afetos, mas todos os passos deste caminho profissional, minhas

    questes, minhas dvidas, meu entusiasmo, e de quem eu recebi preciosos apoios, no sentido

    intelectual, no sentido afetivo e tambm nos sentidos mais corriqueiros de uma vida

    compartilhada. A voc, o meu amor. E a feliz constatao de que, mesmo sem termos subido

    ao altar, temos honrado o juramento de fazer com que nosso casamento seja para sempre, na

    sade e na doena ... de Chagas.

    E, acima de tudo, agradeo minha filha, que, ao longo destes dois anos e sete meses,

    trouxe um sentido absolutamente novo para minha vida, ao me mostrar que o afeto

    sobretudo este que to especial permite-nos enfrentar todos os desafios e seguir nossa vida

    com prazer. Graas minha to amada Aninha, apesar das tenses, das angstias e do cansao

    inerentes a um trabalho como este, eu pude realiz-lo entre cantigas de roda, brinquedos e

    programas do Discovery Kids com muita alegria.

  • 5

    INTRODUO

    Em 1958, quando o trao de arquitetos modernistas riscava, no Brasil Central, os

    contornos do que se esperava ser a nova capital do desenvolvimento, um mdico goiano

    lamentava a triste sorte dos trabalhadores do interior do pas, acometidos pela doena de

    Chagas ou tripanossomase americana, descoberta quase cinqenta anos antes, nos sertes de

    Minas Gerais.

    Vis insetos, prias do campo, Dizimadores em srie do meu povo. Apetrechos que no desintegram o ncleo Mas bombardeiam impiedosamente Aqueles que mais trabalham. Claudica a enxada que mal se erguia; As pernas bambas cruzam com os caules tenros Para que uma safra de cruzes Preceda a colheita do trabalho. Quando a lavoura encurta sem miopia E o ar que falta no se renova, As noites sucedem em pleno dia Nas vrias fugas da conscincia. Bate no peito, lenta revolta, Na luta pelo po que estanca. O avexume agonia eterna Nascido no sereno desejo de viver. Oh! Deus do Brasil, do mundo ou de Gois! Atentai ao crime perpetrado E fazei nascer nos semi-mortos A esperana de sol e de tratores!1

    Em abril de 1909, na pequena cidade de Lassance, Carlos Chagas, mdico e

    pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC ou Instituto de Manguinhos), descrevera uma

    nova doena humana, o protozorio que a causava (uma nova espcie de tripanossoma,

    batizado ento de Trypanosoma cruzi, em homenagem a Oswaldo Cruz) e o inseto que a

    transmitia, um percevejo popularmente conhecido como barbeiro, muito comum no interior

    das casas de pau-a-pique tpicas das reas rurais do Brasil. A tripla descoberta realizada, nos

    marcos da medicina tropical, sob a seqncia incomum de se partir do encontro do vetor e do

    parasito para, em seguida, identificar a patologia foi comemorada como uma das maiores

  • 6

    proezas da cincia nacional. Ela tornou-se a principal vitrine do projeto de Oswaldo Cruz para

    criar um centro de excelncia de medicina experimental nos trpicos. definio de seus

    elementos clnicos, entre outros aspectos, Chagas e outros pesquisadores de Manguinhos

    dedicariam suas carreiras profissionais.

    Nos versos citados de Omar Carneiro, esta uma enfermidade que ataca o corao dos

    trabalhadores rurais. Avexume era o termo popular usado para expressar diversas sensaes

    de distrbios cardacos. Numa evoluo lenta, silenciosa e progressiva, esgota a capacidade

    produtiva de suas vtimas e as leva morte, muitas vezes subitamente. Num pas que, na

    dcada de 1950, estava em plena marcha para o interior, as metforas associadas quele

    rgo vital faziam-se particularmente eloqentes e reforavam a dimenso simblica de uma

    doena cardaca que sintetizava a nao. No diagnstico de suas mazelas as pernas

    bambas do homem do campo e no receiturio de sua redeno: uma esperana de

    tratores, para a colheita do trabalho.

    Em 1918, num outro contexto em que o interior do Brasil projetou-se na cena pblica,

    Monteiro Lobato igualmente denunciou o monstruoso quadro patolgico que [Carlos

    Chagas] entrevira na paisagem rude dos sertes guisa de um crculo indito de Dante,

    como o emblema de um pas que se constitua como um vasto hospital. Tambm ele

    clamava pela recuperao dos braos aleijados da lavoura brasileira e apontava a cincia e o

    saneamento como solues. Contudo, conforme os primeiros estudos de seu descobridor, esta

    era uma doena caracterizada, fundamentalmente, por distrbios endcrinos e neurolgicos.

    Apesar de se apontarem aspectos cardacos, reconhecia-se como seus principais sinais clnicos

    o aumento anormal da tireide (bcio ou papeira), paralisias, retardo no desenvolvimento

    fsico e uma escala de depresses mentais oscilantes entre o simples aparvalhamento e o

    cretinismo completo. As vtimas da doena de Chagas eram, nas palavras do criador do Jeca

    Tatu, idiotas e papudos.2

    Se as citaes de Omar Carneiro e de Lobato expressam diferenas na definio dos

    sinais clnicos da enfermidade, elas se aproximam na sua caracterizao enquanto problema

    sanitrio de dimenso nacional, por prejudicar a produtividade do trabalho agrcola e,

    conseqentemente, o progresso do pas. Entretanto, tambm neste aspecto, nem sempre houve

    1 Carneiro, Omar. Ode aos chagsicos, Revista Goiana de Medicina, v. 4, n.2, abril/junho de 1958, p. 196. 2 Lobato, Monteiro. Mr. Slang e o Brasil e Problema Vital. So Paulo, Brasiliense, 1957, 7. edio, [1918], p. 240, 242, 239.

  • 7

    acordo. Chegou-se a afirmar que se tratava de um mal menor, restrito a um punhado de

    doentes na regio em que fora descoberta.3

    Como se deu o percurso pelo qual a nova entidade mrbida de Carlos Chagas foi

    estabelecida e aceita como um fato cientfico, uma entidade nosolgica definida e

    individualizada por certas caractersticas clnicas e patognicas peculiares?4 Como se

    produziu o reconhecimento pblico de que se tratava de uma questo de relevncia para a

    sade pblica? Em que medida se pode considerar esta doena um produto da histria? Estas

    so as perguntas que nos motivaram a realizar o presente estudo, que tem como argumento

    mais geral o de que, desde o incio daquele percurso, a doena de Chagas foi sendo

    construda, ao mesmo tempo, como fato cientfico e fato social.

    No plano terico, tais questes esto referidas questo central que inspirou as novas

    abordagens propostas para a sociologia e a histria da cincia, a partir da dcada de 1970,

    pelo chamado Programa Forte da Sociologia do Conhecimento: possvel analisar a dimenso

    histrico-social dos fatos cientficos no apenas no que diz respeito s circunstncias que

    envolveram sua produo (ou aos significados que lhes foram atribudos), mas tambm no

    que se refere aos contedos dos conhecimentos que os definiram enquanto tal? Qual a

    dimenso social dos processos pelos quais o conhecimento cientfico produzido,

    transmitido, se estabiliza e muda ao longo do tempo?5

    Criado em Edimburgo por David Bloor e Barry Barnes, o Programa Forte filiava-se

    perspectiva pioneira de Ludwig Fleck (que, em 1935, afirmou que os fatos da cincia no

    eram meros construtos formais mas sim produtos de pensamentos e prticas coletivas) e, mais

    3 Segundo informaes da Organizao Mundial da Sade, a doena de Chagas ou tripanossomase americana atinge entre 16 e 18 milhes de indivduos neste continente. Depois de uma fase aguda de curta durao (cujos sintomas so febre, engurgitamento dos gnglios linfticos, aumento do bao e do fgado e inflamao no local de entrada do parasito no organismo), que pode provocar a morte especialmente em crianas de baixa idade, os indivduos, em geral, entram numa fase assintomtica (fase indeterminada), que pode durar muitos anos. Os que vm a manifestar a doena crnica sofrem de progressivos distrbios cardacos e digestivos, podendo falecer, em geral por insuficincia cardaca. Existem formas de tratamento especfico e sintomtico para a doena e, em alguns casos, possvel considerar-se o paciente curado. Ver World Health Organization, Chagas disease, http://www.who.int/ctd/chagas/burdens.htm; World Health Organization. Tropical Diseases Research. Chagas disease, http://www.who.int/tdr/diseases/chagas/default.htm, acesso em 04 de abril de 2006. Para informaes gerais sobre a doena no Brasil, ver: Dias, Joo Carlos Pinto; Coura, Jos Rodrigues (orgs.). Clnica e teraput ica da doena de Chagas: uma abordagem prtica para o clnico geral. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1997; Brasil. Ministrio da Sade. Consenso Brasileiro em doena de Chagas, Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 38, suplemento III, 2005. 4 Uma primeira aproximao deste tema deu origem s seguintes publicaes: Kropf, Simone; Azevedo, Nara; Ferreira, Luiz Otvio. Doena de Chagas: a construo de um fato cientfico e de um problema de sade pblica no Brasil. Cincia e Sade Coletiva, Rio de Janeiro, v.5, n.2, 2000, pp. 347-365; Kropf, Simone; Azevedo, Nara; Ferreira, Luiz Otvio. Biomedical research and public health in Brazil: the case of Chagas disease (1909-1950), Social History of Medicine, v. 16, n. 1, 2003, pp.111-129. 5 Bloor, David, Knowledge and social imagery. Chicago/ London, The University of Chicago Press, 1991, 2nd edition, p. 5.

  • 8

    diretamente, nova amplitude que esta perspectiva viria a encontrar nas formulaes de

    Thomas Kuhn. O livro A estrutura das revolues cientficas, publicado em 1962, tornou-se

    um marco na histria das cincias ao postular, com base no conceito de paradigma, a natureza

    convencional do conhecimento cientfico e que a cincia uma atividade indissociavelmente

    scio-cognitiva, produzida por coletividades concretas e historicamente situadas, tanto do

    ponto de vista de sua organizao social, quanto no que diz respeito aos esquemas

    intrepretativos compartilhados para dar sentido ao mundo e natureza. Nesse sentido, a

    chamada Escola de Edimburgo pretendia estender para o domnio da cincia a tese proposta

    por Karl Mannheim, com base em mille Durkheim, segundo a qual o conhecimento um

    produto historicamente e socialmente determinado.6

    O ponto de partida desta nova sociologia do conhecimento cientfico (por muitos

    designada como estudos sociais da cincia) a idia de que, como outras formas de produo

    e representao simblica, os produtos intelectuais da cincia constituem um sistema de

    crenas socialmente produzido e sustentado. Fruto dos acordos resultantes de um processo

    coletivo de negociao, no qual os atores se comportam em funo dos interesses que os

    constituem como diferentes grupos sociais, a prtica e, sobretudo, os contedos da cincia

    passaram a ser tratados como objetos legtimos para a investigao sociolgica.7

    O objetivo era superar os limites da sociologia de Robert Merton, que, analisando a

    cincia em termos das caractersticas e normas peculiares de sua organizao institucional,

    considerava seus produtos intelectuais como objetos no para os socilogos, mas para os

    epistemlogos.8 O Programa Forte corroborava as crticas feitas por Kuhn concepo da

    filosofia da cincia, segundo a qual este seria um saber epistemologicamente superior, cuja

    certificao se dava como resultado da aplicao correta de um mtodo racional, ou seja, da

    lgica interna de seus contedos, sendo, portanto, independente de fatores histricos ou 6 Idem; Barnes, Barry. Scientific knowledge and sociological theory, London: Routledge & Keagan Paul, 1974; Fleck, Ludwig. La gnesis y el desarrollo de um hecho cientfico. Madrid, Alianza Editorial, 1986; Kuhn, Thomas, A estrutura das revolues cientficas. So Paulo, Perspectiva, 3 ed., 1989; Mannheim, Karl, Sociologia da Cultura. So Paulo, Perspectiva, 1974. 7 Segundo David Bloor, o estudo sociolgico da cincia deveria se pautar por quatro princpios metodolgicos fundamentais. O princpio da causalidade estabelece que o objetivo no apenas descrever o processo de produo do conhecimento, mas explic-lo, ou seja, identificar as condies que o determinam. O princpio da imparcialidade significa que tanto os conhecimentos considerados verdadeiros, como aqueles abandonados como falsos, devem ser explicados, ou seja, h que se buscar meios de se explicar as crenas independentemente da maneira pela qual elas so avaliadas. Conforme o princpio da simetria, para que a sociologia do conhecimento seja capaz de produzir teorias generalizadoras, deve-se recorrer ao mesmo tipo de causa para explicar crenas verdadeiras e crenas falsas. Questiona-se assim frontalmente a concepo tradicional de que causas sociais interferem somente no que diz respeito ao erro, e no ao conhecimento tido como verdadeiro. Finalmente, as anlises devem se pautar pelo princpio da reflexividade, que estabelece que os padres de explanao utilizados pela sociologia do conhecimento devem ser aplicveis prpria sociologia, para ser coerente com sua pretenso generalizadora. Bloor, D., Knowledge and social immagery, op. cit., p. 7.

  • 9

    sociais.9 Buscava-se, em suma, transcender as fronteiras que limitavam o acesso dos

    socilogos e historiadores aos aspectos ditos externos cincia, reservando seus elementos

    internos para inquiries no mbito da lgica e da epistemologia.10

    Estas novas diretrizes tericas provocaram uma importante reconfigurao no campo

    dos estudos histricos e sociolgicos da cincia, tendo como uma de suas principais

    implicaes o estmulo s investigaes empricas sobre como se produzem concretamente os

    conhecimentos cientficos, por grupos sociais especficos, em determinados contextos

    histricos. Foi a partir desta orientao que surgiram as abordagens do chamado

    construtivismo social da cincia, como as etnografias de laboratrio e os estudos sobre

    controvrsias cientficas produzidos, entre outros, por Karin Knorr-Cetina, Bruno Latour,

    Steve Woolgar e Harry Collins.11 Os trabalhos de Steven Shapin, por sua vez, exemplificam a

    fecundidade do dilogo estabelecido, no campo da histria da cincia, com a perspectiva

    sociolgica do Programa Forte, que veio a reforar a perspectiva mais geral de que a

    reconstruo histrica deve ser pautada por conceitos e teorias capazes de imprimir narrativa

    uma dimenso explicativa, que confira aos objetos situados em outras temporalidades uma

    inteligibilidade para alm de sua dimenso contingente.12 Por outro lado, afirma Shapin, a

    anlise emprica dos casos histricos constitui uma dimenso fundamental compreenso

    sociolgica da cincia, pois, se partimos do postulado terico geral de que ela est relacionada

    8 Merton, Robert K. La Sociologia de la Ciencia. Madrid, Alianza Editorial, 1985, 2 vols. 9 Ver Lakatos, Imre; Musgrave, Alan (orgs.), A Crtica e o Desenvolvimento do Conhecimento Cientfico. So Paulo, Editora Cultrix / Editora da Universidade de So Paulo, 1979. 10 Para coletneas e textos que traam um panorama do campo dos estudos sociais da cincia, ver: Callon, Michel; Latour, Bruno (eds.), La science telle quelle se fait. Paris, La Dcouverte, 1991; Pickering, Andrew, (ed.). Science as practice and culture. Chicago, London, The University of Chicago Press, 1992; Woolgar, Steve. Ciencia: abriendo la caja negra. Barcelona, Anthropos, 1991; Shapin, Steven. History of science and its sociological reconstructions, History of Science, v. 20, n. 49, september 1982, pp. 157-211; Shapin, Steven, Discipline and bounding: the history and sociology of science as seen through the externalism-internalism debate, History of Science, v. 30, 1982, pp.333-369; Portocarrero, Vera (org.), Filosofia, histria e sociologia das cincias. Abordagens contemporneas. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1994; Pestre, Dominique, Por uma nova histria social e cultural das cincias: novas definies, novos objetos, novas abordagens, Cadernos IG/Unicamp, v. 6, n. 1, 1996, pp. 3-56; Kreimer, Pablo, De probetas, computadoras y ratones. La construccin de una mirada sociolgica sobre la cincia, Quilmes: Universidad Nacional de Quilmes, 1999. 11 Knorr-Cetina, Karin, Scientific communities or transepistemic arenas of research? A critique of quasi-economic models of science, Social Studies of Science, v. 12, 1982, pp. 101-30; Latour, Bruno; Woolgar, Steve. A vida de laboratrio. A construo dos fatos cientficos. Rio de Janeiro, Relume-Dumar, 1997; Latour, Bruno. Cincia em ao. Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. So Paulo, Unesp, 2000; Collins, Harry, The seven sexes: a study in the sociology of a phenomenon or the replication of the experiment in physics, Sociology, v. 9, n. 2, 1975, pp. 205-24. 12 Ver, entre outros, Shapin, Steven. La revolucin cientfica. Una interpretacin alternativa. Barcelona/ Buenos Aires/ Mxico, Paids, 2000. O prprio trabalho de Bloor, que aplica seu modelo terico anlise da matemtica na Grcia antiga, expressa a proximidade entre histria e sociologia da cincia nesta nova chave interpretativa. Para uma avaliao dos benefcios e desafios deste dilogo, ver Jasanoff, Sheila, Reconstructing the past, constructing the present: can science studies and the history of science live hapilly after ever?, Social Studies of Science, v. 30, n. 4, 2000, pp.621-31.

  • 10

    sociedade na qual praticada, o desafio mostrar como e porqu esta relao acontece e

    assume formatos especficos em diferentes temporalidades e espacialidades.13

    No domnio especfico da histria da medicina, a discusso sobre a construo social

    das doenas assumiu grande projeo nas ltimas dcadas, ainda que nem sempre referida

    diretamente aos princpios do construtivismo formulados no mbito dos estudos sociais da

    cincia. Utilizando perspectivas tericas diversas, tanto da histria social e cultural quanto de

    outros campos disciplinares, como a antropologia e a sociologia, muitos autores vm se

    debruando sobre os processos pelos quais, num dado contexto histrico-social, indivduos e

    grupos atribuem sentidos particulares experincia da doena, e sobre como esta experincia

    gera conseqncias sobre a organizao e a percepo do mundo social.14

    O pressuposto destes trabalhos a crtica concepo tradicional de que as doenas

    so eventos essencialmente biolgicos, isentos de determinaes culturais ou atributos sociais,

    constituindo-se como fatos do mundo da natureza que caberia medicina desvendar,

    explicar e desenvolver meios eficazes para seu tratamento e preveno. O corolrio imediato

    desta crtica a afirmao das doenas como objetos historicamente situados. Os significados

    pelas quais elas so reconhecidas, bem como suas implicaes na vida dos indivduos e da

    sociedade, devem ser compreendidos a partir de mltiplos fatores relacionados ao contexto

    scio-cultural especfico no qual ocorrem. Segundo Allan Brandt,

    Disease is not a merely biological phenomenon: it is shaped by powerful behavioral, social and political forces. Social values affect both the way we come to see and understand a particular disease and the interventions we undertake.15

    Ou, como afirma Claudine Herzlich,

    [...] illness, health and death are highly natural, physical and objective subjects, so that they seem at first to fall outside the realm of social reality; [...] but they are indissolubly linked to social reality in many ways. Illness is first of all a social fact.16

    13 Como diz Shapin, An empirical sociology of knowledge has [] to go on to show why particular accounts were produced and why particular evaluations were rendered; and it has to do this by displaying the historically contingent connections between knowledge and the concerns of various social groups in their intellectual and social settings. Shapin, S., History of science and its sociological reconstructions, op. cit., p. 164. 14 Ver Hochman, Gilberto; Armus, Diego. Cuidar, controlar, curar em perspectiva histrica: uma introduo, in: Hochman, Gilberto; Armus, Diego (orgs.). Cuidar, controlar, curar. Ensaios histricos sobre sade e doena na Amrica Latina e Caribe. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2004, pp. 11-27; Silveira, Anny J.Torres; Nascimento, Dilene R. A doena revelando a histria. Uma historiografia das doenas, in: Nascimento, Dilene Raimundo do; Carvalho, Diana Maul de (orgs.), Uma histria brasileira das doenas, Braslia, Paralelo 15, 2004, pp. 13-30. 15 Brandt, Allan. AIDS and metaphor: toward the social meaning of epidemic disease, in Mack, Arien (ed.). In time of plague. The history and social consequences of lethal epidemic disease. New York/London, New York University Press, 1991, pp. 91-110, p. 93.

  • 11

    Partindo deste pressuposto, muitos trabalhos vm abordando os sentidos sociais

    atribudos s doenas em distintos momentos histricos. As epidemias tm sido

    particularmente privilegiadas, por constiturem situaes percebidas como de grande

    gravidade e impacto na vida social. Assim, so recorrentes as anlises que apontam como os

    significados e estigmas atribudos s doenas epidmicas derivam da associao com

    comportamentos ou prticas socialmente qualificados como desviantes ou das

    conseqncias que produzem como fatores de desarticulao da ordem econmica, poltica e

    cultural mais ampla.17

    Uma noo bastante utilizada para caracterizar a doena como construto social tem

    sido a de que ela se configura como forma de representao da sociedade. Esta , por

    exemplo, a perspectiva seguida no livro organizado por Jacques le Goff, para quem

    a doena pertence no s histria superficial dos progressos cientficos e tecnolgicos, mas tambm histria profunda dos saberes e das prticas ligadas s estruturas sociais, s instituies, s representaes, s mentalidades.18

    Segundo Herzlich, constituindo-se como fenmeno que requer interpretao, a

    doena se apresenta como um significante, cujo significado a relao do indivduo com a

    ordem social.19 nesse sentido que funciona como metfora, como acentuou Susan Sontag.20

    Ou seja, atravs dela, fala-se de outras coisas: as normas sociais e as maneiras como os

    indivduos so vistos em sua relao com estas normas.

    Contudo, ao se enfatizar a dimenso simblica das enfermidades, sua dimenso como

    evento biolgico via de regra considerada um terreno natural, previamente dado, sobre o

    qual incidem os significados e as representaes sociais. Sob tal perspectiva, se a sociedade

    16 Herzlich, Claudine. Modern medicine and the quest for meaning. Illness as a social signifier, in: Aug, Marc; Herzlich, Claudine (eds.). The meaning of illness. Anthropology, history and sociology of illness. Harwood Academic Publishers, 1995, pp. 151-73, p. 151. 17 Ver, por exemplo, Rosenberg, Charles. Explaning epidemics and other studies in the history of medicine. Cambridge, Cambridge University Press, 1992; Evans, Richard J., Epidemics and revolutions: cholera in nineteenth-century Europe, in: Ranger, Terence; Slack, Paul (eds.). Epidemics and ideas. Essays on the historical perception of pestilence. Cambridge, Cambridge University Press, 1992, pp. 149-173. 18 Le Goff, Jacques. Uma histria dramtica, in: L Goff, Jacques (org.). As doenas tm histria. Lisboa, Terramar, 1991, p. 7-8, p.8. 19 Herzlich, C., op. cit., p. 161. 20 Sontag, Susan. A Aids e suas metforas. So Paulo, Cia. Das Letras, 1989. Devemos observar que a autora, amplamente reconhecida por esta proposio, destacou-se pela militncia poltica visando denunciar as conseqncias profundamente negativas que as metforas e significados associados Aids e a outras enfermidades geram nas vidas dos doentes, em termos de estigmatizao e isolamento. Marcada pela experincia pessoal com o cncer, reivindicava que as doenas deixassem de ser tratadas como metforas, sendo encaradas enquanto fenmenos orgnicos aos quais se deve responder com esforos teraputicos precisos e no com condenaes morais ou sociais. Tal formulao despertou muita polmica entre os historiadores. Ver, por exemplo, Brandt, A., op. cit., p. 94.

  • 12

    est implicada na construo das doenas, isso acontece essencialmente no que diz respeito ao

    em torno de uma realidade orgnica j definida.

    Com base nas diretrizes tericas dos estudos sociais da cincia, acreditamos ser

    possvel ampliar estas fronteiras e afirmar que as doenas constituem objetos histrica e

    socialmente construdos no que diz respeito s maneiras pelas quais os indivduos ou grupos

    as percebem ou respondem a elas em termos de valores e prticas, e tambm no que concerne

    sua prpria conceituao como entidades biolgicas especficas. Em outras palavras, o

    desafio analisar como os fatores sociais interferem no somente na maneira de se

    representar, atribuir significados e enfrentar concretamente um fenmeno da natureza, j

    definido enquanto tal, mas inclusive no processo de definio e aceitao deste fenmeno

    como realidade orgnica, dotada de caractersticas especficas. Trata-se, em suma, da

    perspectiva de analisar a dimenso social das doenas em seu estatuto de fatos produzidos

    pela cincia mdica.21

    Acreditamos que a aproximao entre a histria social da medicina e a histria social

    da cincia associada s perspectivas lanadas pelo Programa Forte constitui um caminho

    promissor para que possamos, mediante o estudo do caso da doena de Chagas, seguir tal

    perspectiva.22 Como eixo para tal aproximao, recorreremos s formulaes propostas por

    Charles Rosenberg.

    Segundo este historiador da medicina, a noo de que os fenmenos patolgicos

    constituem entidades conceitualmente especficas e ontologicamente reais, tipos-ideais que

    existem para alm da natureza idiossincrtica dos distrbios que se manifestam em indivduos

    particulares, vem assumindo, desde o sculo XIX (especialmente aps a chamada revoluo

    pasteuriana), cada vez maior centralidade na maneira pela qual a prpria categoria de doena

    faz sentido e se justifica, cientfica e socialmente. Trata-se de um processo histrico que se

    intensificou, sobretudo, no incio do sculo XX. Diz o autor: In our culture, its existence as

    21 Como sublinha Paula Treichler, to call AIDS cultural may mean simply that like any great event or crisis AIDS significantly affects social life and symbolic expression. But to call it culturally constructed invokes long-standing debates about human knowledge and the nature of the world.. Treichler, Paula, AIDS, HIV and the cultural construction of reality, in: Treichler, Paula. How to have theory in an epidemic. Cultural chronicles of AIDS. Durham/London, Duke University Press, 1999, pp. 149-175, p. 149. 22 Por outro lado, seguindo uma concepo que articula os estudos histricos da sade pblica s questes mais gerais da histria social, o estudo que pretendemos realizar converge tambm com uma vertente de investigao que, conforme assinala Dorothy Porter, focaliza a relao, historicamente circunscrita, entre atuao dos cientistas no campo biomdico e a formulao de polticas pblicas, prticas e valores para a sade. Fee, Elizabeth, Public health, past and present: a shares vision, in: Rosen, George. A history of public health. Baltimore/London, The Johns Hopkins University Press, 1993, p. xxxviii. Porter, Dorothy. The history of public health: current themes and approaches, Hygea Internationalis, v. 1, n.1, 1999, pp.9-21.

  • 13

    specific entity is a fundamental aspect of intellectual and moral legitimacy of disease. If it is

    not specific, it is not a disease.23

    exatamente neste processo, pelo qual as categorias do conhecimento mdico

    definem a materialidade e a especificidade destas entidades, que se pode dizer, que elas so

    histrica e socialmente constitudas. Como chave conceitual para apreender este movimento,

    o autor utiliza a noo de framing.24 Trata-se da idia de que uma doena, concebida e aceita

    como entidade especfica, produto de um enquadramento a partir de determinados

    esquemas interpretativos e classificatrios, referidos a contextos histrico-sociais particulares.

    Ao mesmo tempo em que emoldurada, assinala Rosenberg, a doena tambm gera aes

    especficas sobre o mundo, constituindo-se ela mesma um frame, um fator estruturante para

    diversas situaes da vida social. Nesse sentido, funciona como uma fora social concreta que

    orienta o comportamento e a prtica dos atores humanos em complexas redes de negociaes

    sociais.25

    Nas duas direes deste movimento, pelos quais a doena emoldurada como

    entidade particular e se torna ela prpria uma moldura da vida social, existe uma intricada

    articulao entre fatores de ordem cognitiva e social. O processo de enquadramento , como

    aponta Rosenberg, resultado de um acordo coletivamente produzido: in some ways disease

    does not exist until we have agreed that it does, by perceiving, naming and responding to it.26

    Ou seja, os esquemas pelos quais a doena compreendida e explicada, bem como o papel

    que desempenha como fora social, implicam, ao mesmo tempo, maneiras socialmente

    partilhadas de se conceber as caractersticas do evento biolgico ao qual ela referida e certas

    formas e esforos coletivos de se lidar com este evento. Cabe aos historiadores estabelecer

    como se articulam, em distintos marcos temporais e espaciais, as dimenses biolgica e social

    desta realidade, acentua o autor.27

    23 Rosenberg, Charles. Framing disease: Illness, society and history, in: Rosenberg, Charles. Explaning epidemics and other studies in the history of medicine. Cambridge, Cambridge University Press, 1992, pp. 305-18, p. 310, grifo do autor. Este texto tambm foi publicado como introduo a uma coletnea organizada pelo autor. Rosenberg, Charles; Golden, Janet (eds.). Framing disease. Studies in Cultural History. New Brunswick/New Jersey, Rutgers University Press, 1992. 24 De difcil traduo para o portugus, o substantivo frame tem o sentido material de uma estrutura, armao que d forma e sustenta algo (a moldura de um quadro, uma porta, etc.) e um sentido figurado, enquanto ordem ou sistema geral que origina e estrutura alguma coisa. Como verbo, poderia ser traduzido como moldar, emoldurar, enquadrar. Ao longo do presente trabalho, usaremos tais verbos (e os substantivos associados) remetendo-nos noo de Rosenberg. Oxford Advanced Learners Dictionary. Oxford, Oxford University Press, 1991. 25 Rosenberg, C., Framing disease, op. cit., p. 312. 26 Idem, p. 305. 27 Rosenberg reuniu, na coletnea acima citada, uma srie de estudos de caso bastante interessantes como exemplos de operacionalizao desta perspectiva. Rosenberg, Charles E.; Golden, Janet (eds.), Framing disease, op. cit.

  • 14

    Considerando-se que, a partir de um determinado momento histrico, o saber mdico

    se institucionalizou e se legitimou socialmente como responsvel por definir as verdadeiras

    caractersticas biolgicas das doenas, uma questo central acompanhar como este saber

    atua na construo social das enfermidades. Para Rosenberg, o pensamento e a prtica mdica

    constrem socialmente as doenas no apenas porque, ao aplicarem certos esquemas

    conceituais que as classificam como realidades biolgicas (como o paradigma da

    microbiologia, por exemplo), sancionam determinadas condutas e valores. Isso acontece

    tambm no que diz respeito prpria formulao destes frames. Ou seja, se a utilizao das

    teorias e modelos mdicos socialmente negociada, tambm o so os contedos que

    conformam tais esquemas interpretativos, mediante os quais determinadas ocorrncias fsicas

    so classificadas como sinais de uma dada entidade nosolgica.

    no mbito deste processo, assinala Rosenberg, que o ato do diagnstico assume um

    papel fundamental, como instrumento que nomeia e garante especificidade s doenas. Pondo

    em ao um conjunto de procedimentos, aparelhos e registros tcnico-cientficos tidos como

    objetivos e inquestionveis, o diagnstico materializa a crena coletiva e a aprovao social

    indispensveis para que tais entidades existam, bem como a autoridade daqueles que

    produzem os conhecimentos que as desenham.

    Diagnosis is central to the definition and management of the social phenomenon that we call disease. It constitutes an indispensable point of articulation between the general and the particular, between agreed-upon knowledge and its application. [...] Diagnosis labels, defines, and predicts and, in doing so, helps constitute and legitimate the reality that it discerns.28

    Ao enfatizar a dimenso scio-cognitiva dos processos pelos quais o conhecimento

    mdico produz o enquadramento das doenas, a perspectiva terica de Rosenberg converge

    com as diretrizes terico-metodolgicos dos estudos sociais da cincia, especialmente com as

    perspectivas construtivistas.

    Segundo Ludmilia Jordanova, um dos fatores que dificultou uma utilizao mais

    consciente e sistemtica, por parte dos historiadores da medicina, das ferramentas conceituais

    do construtivismo social foi a tendncia, que apontamos acima, de considerar como sujeitos

    influncia de fatores sociais apenas os aspectos externos da medicina (em geral associados

    prtica mdica) e no o seu ncleo interno, ou seja, as idias e teorias constitutivas do

    conhecimento mdico. Segundo a autora, somente transcendendo-se a distino entre fatores

    28 Rosenberg, Charles. The tyranny of diagnosis: specific entities and individual experience, The Milbank Quaterly, v. 80, n.2, 2002, pp. 237-260, p. 240.

  • 15

    internos e externos, contedos e contextos, aspectos cognitivos e sociais da medicina, que

    possvel trat-la como atividade social em todas as suas facetas.29

    Outra fonte de reservas, por parte dos historiadores da medicina, em relao s teses

    construtivistas , aponta Jordanova, a preocupao quanto s implicaes relativistas destas

    abordagens. A questo que, muitas vezes, se coloca : como pensar a realidade dos

    fenmenos naturais no caso, a materialidade biolgica doenas uma vez que se considere

    que os contedos do conhecimento mdico so determinados socialmente? Ou seja, como

    evitar uma posio relativista ou idealista radical segundo a qual a noo de construo

    equivaleria a tratar as doenas como invenes arbitrrias das categorias de pensamento?

    No caso de Rosenberg, a preocupao em no incorrer neste tipo de relativismo, que,

    segundo ele, marcou uma certa vertente historiogrfica influenciada sobretudo pelas

    formulaes de Michel Foucault, foi um dos motivos que o levou a evitar o termo construo

    social e optar pela noo de framing, para analisar os processos sociais de conceituao e

    reconhecimento das doenas.30 Segundo este autor, os historiadores da medicina das dcadas

    de 1960 e 1970, politicamente comprometidos com a crtica s, at ento, inquestionveis

    legitimidade e autoridade social da profisso mdica, foram particularmente eficazes no

    questionamento da concepo positivista que tomava as doenas como entidades objetivas,

    neutras e naturais, afirmando que, ao contrrio, tratava-se de objetos socialmente

    negociados. Contudo, representando, muitas vezes, mais uma posio poltica do que

    epistemolgica, estes argumentos relativistas foram a partir de ento, acentua Rosenberg,

    utilizados para negar a efetividade do conhecimento mdico e a prpria existncia concreta e

    material das doenas. O surgimento da AIDS na dcada de 1980 reforou as crticas s

    posies positivistas, mas tambm colocou a necessidade de se rever este tipo de argumento

    relativista.

    Aids could hardly be dismissed as an exercise in stigmatizating the deviant; it obviously had a strong biological component. It was not simply a construction, even if it had been constructed [...] Aids has, in fact, helped to create a new consensus in regard to disease, one that finds a place for both biological and social factors and emphasizes their interaction.31

    29 Jordanova, Ludmilla. The social construction of medical knowledge, Social History of Medicine, v. 8, n.3, 1995, pp. 361-81. Embora conceda especial importncia, nesta anlise, s abordagens filiadas aos estudos sociais da cincia ps-1970, a autora refere-se a outras correntes intelectuais que partilham de uma perspectiva construtivista, como certas abordagens da antropologia cultural e da filosofia da cincia e alguns autores filiados ao marxismo. 30 Rosenberg manifesta sua crtica perspectiva construtivista dirigindo-se aos que, recorrendo a Foucault, reduzem os sujeitos do conhecimento mdico a meros agentes legitimadores de uma ordem social opressiva, no curso da chamada medicalizao da sociedade. Rosenberg, C., Framing disese, op. cit., p. 307. 31 Rosenberg, Charles. Disease and social order in America: perceptions and expectations, in Rosenberg, Charles. Explaning epidemics and other studies in the history of medicine. Cambridge, Cambridge University Press, 1992, pp. 258-77, p. 258, 260, grifo nosso.

  • 16

    Em suma, reivindica o autor, no devemos incorrer nem no reducionismo biolgico

    positivista nem em um construtivismo social exclusivo.32

    Ainda que algumas verses do construtivismo possam sugerir ou afirmar a posio a

    que Rosenberg se refere, cabe destacar que esta no uma conseqncia necessria dos

    princpios do construtivismo social. Como afirma Jordanona:

    On the contrary, material world is constantly shaped and interpreted through human actions and consciousness. Social constructionism takes this as one of its main tenets and without the dynamic relationship just described it would have no meaning. It is not a form of idealism. But it does insist that there is a room for a variety of interpretations and meanings, that behind consensus or knowledge lie social processes, and that such processes involve negotiations and conflict, both overt and implicit. It follows that forms of knowledge and the social processes whereby they are created are given intellectual priority. I does not follow that materiality and physical embodiment are denied.33

    Este um ponto fundamental para se compreender o que significa dizer que uma

    doena no apenas como fenmeno social, mas tambm como entidade biolgica

    socialmente construda ou emoldurada. Vejamos como o prprio David Bloor esclarece as

    fronteiras que distinguem a abordagem relativista da sociologia do conhecimento cientfico do

    relativismo em sua verso radical. Segundo o criador do Programa Forte, o conhecimento

    deve ser compreendido nos termos de uma interao entre o objeto do conhecimento e o

    sujeito conhecedor, a partir de determinados princpios de receptividade poderamos aqui

    nos referir aos frames conceituais classificatrios de que fala Rosenberg. Respondendo s

    crticas de que tal programa incorreria no subjetivismo ou idealismo por pretender explicar a

    natureza concentrando-se nos sujeitos sociais do conhecimento e rejeitando a importncia dos

    fatos da natureza, Bloor afirma:

    [...] the aim isnt to explain nature, but explain shared beliefs about nature. The enquiry is into the character and causes of knowledge, or what passes as knowledge, and not (in general) into the objects which the knowledge is meant to be about.34

    32 Rosenberg, C., Framing disease: Illness, society and history, op. cit., p. 307. 33 Jordanova, Ludmila, op. cit., p. 368. 34 Bloor, David. Anti-Latour, Studies in History and Philosophy, v. 30, n.1, 1999, pp.81-112, p. 87. Neste trabalho, entre outros aspectos, Bloor defende os princpios do Programa Forte diante da proposta de simetria generalizada de Latour, segundo a qual as categorias sociolgicas usadas para explicar a cincia deveriam ser postas em suspeio tanto quanto as categorias utilizadas pelos cientistas que constituem objeto de anlise. O texto provocou um interessante debate. Ver Latour, Bruno. For David Bloor... and beyond: a reply do David Bloors Anti-Latour, Studies in History and Philosophy of Science, v. 30, n. 1, 1999, pp.113-129; Bloor, David. Reply to Bruno Latour, Studies in History and Philosophy of Science, v. 30, n. 1, 1999, pp.131-136.

  • 17

    Segundo Bloor, o relativismo deve ser um princpio acionado em oposio ao

    absolutismo, funcionando como uma relativismo metodolgico. Da mesma maneira que a

    moral, apesar de sua natureza compulsria e inquestionvel, a verdade lgica no absoluta,

    mas relativa. O Programa Forte no considera a objetividade ilusria, mas atribui este efeito

    de realidade aos acordos coletivos que a sustentam. Adotando uma abordagem derivada da

    tradio empirista, o objetivo deste programa compreender como sujeitos do conhecimento

    descrevem e respondem ao mundo e como estas descries e respostas so viabilizadas graas

    a padres de compreenso coletivos, com suas convenes e tradies compartilhadas.

    somente mediante esta separao entre objeto do conhecimento e sujeito cognoscente, ou seja,

    entre a natureza e as descries que os atores sociais fazem dela, que se pode apontar como

    estas duas instncias interagem na produo destas descries, assinalando o carter relativo,

    varivel, socialmente negociado do conhecimento.

    Portanto, tanto a natureza quanto a sociedade esto implicadas na formao das

    crenas coletivas, tanto a experincia do mundo das coisas, quanto a experincia do mundo

    das pessoas. Os sistemas de crenas, referidos ao mundo da cultura, so o meio pelo qual os

    indivduos e grupos co-ordenam e do sentido, a partir de recursos cognitivos e sociais

    especficos, situados histrica e culturalmente, a suas interaes com os objetos da natureza.

    Assim, Bloor deixa claro que nunca houve nenhuma tendncia no Programa Forte de negar a

    existncia da natureza e dos objetos que os cientistas observam, ou de negar que tais objetos

    desempenhem um papel na formulao e sustentao das crenas sobre eles. Contudo, embora

    os cientistas estejam sempre reagindo e observando a natureza, eles o fazem coletivamente

    mediante conceitos compartilhados e institucionalizados. nessa medida que o conhecimento

    socialmente construdo. A observao e a formulao de enunciados sobre os objetos da

    natureza so sempre processos de filtragem, de modo a apropri-la, conforme determinados

    esquemas conceituais.

    It is because complexity must be reduced to relative simplicity that different ways of representing nature are always possible. How we simplify it, how we chose to make approximations and selections, is not dictated by (non-social) nature itself. These processes, which are collective achievements, must ultimately be referred to properties of the knowing subjetc. This is where the sociologist comes into the picture. [...]. The sorts of question that can be asked, and to whose answer the sociologist can contribute, concern the range of interpretations that might have been put on Pasteurs observations, the way his questions were framed, and his techniques for dealing with the uncertainties and unresolved problem in his data. Why did he bring these particular interpretatives resources to bear, and why did he employ them in this precise way?35

    35 Bloor, D., Anti-Latour, op. cit., pp. 90-1.

  • 18

    Aplicando estas formulaes s noes de Rosenberg sobre como o conhecimento

    mdico-cientfico enquadra socialmente as doenas, poderamos dizer que cabe ao

    historiador ou ao socilogo analisar os procedimentos pelos quais os fenmenos orgnicos, ao

    serem descritos mediante determinados recursos interpretativos, ganham o estatuto de

    entidades biolgicas (doenas) definidas e explicadas mediante certas caractersticas.

    porque tais recursos (frames) pelos quais se produz o conhecimento no so necessrios, do

    ponto de vista de uma racionalidade interna que estabelea uma correspondncia com a

    realidade a ser conhecida, mas ao contrrio se constituem como sistemas de convenes e

    crenas socialmente negociados e legitimados, que se pode afirmar a natureza social dos

    produtos deste conhecimento. No se trata, portanto, de negar a existncia da dimenso

    biolgica da doena, mas de afirmar que tal dimenso s se transforma em realidade,

    nomeada e classificada como doena especfica, mediante os procedimentos e esquemas

    particulares postos em ao no ato de conhecer.

    Poderamos lidar com a questo do realismo/relativismo, e evidenciar a proximidade

    entre as concepes de Rosenberg e os postulados da nova sociologia do conhecimento

    cientfico, aprofundando a prpria metfora do frame. Ela nos permite evitar o risco do

    relativismo radical na medida em que se considere que qualquer moldura pressupe um

    contedo, um objeto a ser emoldurado (dimenso biolgica). Por outro lado, a imagem nega

    tambm a postura positivista do realismo, uma vez que se considere que este objeto no est

    dado, mas s adquire forma especfica transformando-se na entidade doena pelos

    contornos particulares que lhe impe a moldura. E, devemos ressaltar, os contornos desta

    moldura no so prvios nem necessrios, ou seja, no correspondem ou se encaixam em

    fronteiras previamente delimitadas pelo objeto, mas so arbitrados, selecionados, negociados

    pelos sujeitos que realizam o ato de enquadramento. Assim, a possibilidade do quadro

    pressupe contedo e moldura e ele s se completa enquanto realidade distinta, recortada da

    natureza, pela interao entre estas duas dimenses ambas variveis , estabelecida de

    maneira contextual por aqueles que a implementam. nesse sentido que podemos afirmar que

    o que se v neste quadro um produto social. O potencial das formulaes construtivistas

    expresso, ao nosso ver, ainda que implicitamente, na abordagem que Rosenberg prope para a

    anlise histrica das doenas bem mais promissor do que este autor reconhece, ao

    prevenir-se contra os riscos do relativismo. Pretendemos, portanto, recorrer noo de

    enquadramento como meio de operacionalizar, no estudo especfico sobre a doena de

    Chagas, os postulados e conceitos do construtivismo social da cincia derivados do Programa

    Forte da Sociologia do Conhecimento Cientfico.

  • 19

    Alm das formulaes gerais de Bloor, consideramos pertinentes ao tratamento de

    nosso objeto algumas noes propostas por Bruno Latour a respeito da produo e da

    validao dos fatos cientficos, enquanto processos que envolvem no apenas o mundo do

    laboratrio, mas outras esferas e atores da vida social. Para este autor, o destino dos

    enunciados formulados pelos cientistas se eles vo permanecer como artefatos, isto ,

    objetos instveis, ou se estabilizar como fatos, tidos como inquestionveis e naturais dado,

    fundamentalmente, pelo uso concreto que outras pessoas, cientistas e no cientistas, fazem

    deles.36 Assim, a certificao do conhecimento cientfico depende de uma srie de

    procedimentos e estratgias por parte dos cientistas para convencerem outros indivduos e

    grupos a aceitarem e utilizarem as afirmaes e objetos por ele produzidos. Para analisar a

    cincia em ao, ou seja, os processos efetivos pelos quais se estabilizam os fatos cientficos,

    preciso, diz Latour, seguir os cientistas sociedade afora e examinar os recursos de que

    estes lanam mo para mobilizar o mundo e produzir concretamente, em circunstncias

    especficas, o consenso necessrio ao fechamento das caixas-pretas da cincia.37

    No estudo etnogrfico de laboratrio que desenvolveu com Steve Woolgar, Latour

    analisou pormenorizadamente os mecanismos e estratgias persuasivas pelos quais os

    enunciados cientficos so formulados e negociados nos espaos particulares do mundo da

    cincia, como a literatura cientfica e os instrumentos prprios aos laboratrios.38 Esta uma

    dimenso essencial do itinerrio em direo estabilizao dos fatos da cincia. Contudo,

    salienta o autor, ele se completa na medida em que o cientista ultrapassa as fronteiras deste

    mundo, imprimindo a seus enunciados a capacidade de se propagarem no tempo e no

    espao. Para isso, deve recrutar aliados os mais diversos, que vejam algum sentido em

    utilizar tais enunciados e lhes imprimam a fora para que se transformem em fatos.39

    A noo-chave para analisar esse processo a de traduo de interesses.40 Os

    cientistas, segundo Latour, devem construir uma associao de interesses em torno de seus

    enunciados, reunindo atores e elementos heterogneos, em esferas diversificadas da vida

    social. ao longo desse processo associativo que o conhecimento cientfico construdo e

    endossado como expresso da natureza e nesse sentido que se pode afirmar que a cincia

    uma atividade scio-cognitiva. Ao descrever as mltiplas estratgias e recursos de persuaso

    36 Latour, B., Cincia em ao..., op. cit., p. 52. 37 Latour utiliza a expresso caixas-pretas para designar os conhecimentos consensualmente aceitos como naturais, no-problemticos, sobre os quais no paira nenhuma dvida. Idem, p. 14. 38 Woolgar, S.; Latour, B., op. cit. 39 Latour, B., Cincia em ao..., op. cit., p.177. 40 Segundo Latour, a palavra exata seria translao, na medida em que indica um deslocamento ao mesmo tempo semntico e espacial. Idem, p. 194.

  • 20

    utilizados pelos cientistas, o autor aponta o sentido poltico da atividade cientfica: esta no

    meramente influenciada pela poltica ou pelas relaes de poder, mas , em si prpria, uma

    forma de se fazer poltica, de se estabelecer tais relaes e, assim, de agir sobre o mundo.41

    Ao recorrermos a estas formulaes de Latour, estamos conscientes, entretanto, de

    alguns limites de sua abordagem, j apontados por crticos e comentadores.42 O principal

    destes limites reside em que, ao tratar o cientista como um ator que se movimenta

    intencionalmente em busca da maximizao de seus interesses, Latour considera que no

    existe nenhuma condio prvia seja ela de natureza social, institucional, cultural,

    econmica ou poltica prpria ao, no sentido de explic-la. O comportamento dos atores

    referido unicamente ao momento contingente, circunstancial, da interao que estabelecem a

    partir de um objetivo comum.

    No compartilhamos desta concepo, na medida em que consideramos que as aes e

    a movimentao dos cientistas, inclusive nos sentidos em que Latour as descreve, s podem

    ser compreendidas a partir das caractersticas especficas do contexto institucional e social

    mais amplo que lhes confere sentido e viabilidade num dado momento histrico.43 A

    importncia da dimenso institucional, no caso que analisaremos, decisiva e pretendemos

    destac-la, considerando, como sugere Silvia Figueira, o seu sentido sociolgico, como

    espao agregador e normatizador de valores e prticas compartilhados por uma dada

    coletividade. Este o espao que estabelece, como afirma esta autora, as mediaes e

    interfaces entre a produo cientfica e as demandas e interesses sociais, materializando o

    carter scio-cognitivo desta atividade.44

    41 Em sua anlise histria sobre a chamada revoluo da microbiologia, Latour mostra que, mediante o apoio conquistado junto a diversos grupos e interesses sociais, as idias cientficas de Louis Pasteur tiveram um impacto transformador no apenas na cincia mdica, mas sobre a prpria sociedade francesa. Latour, Bruno, Les microbes. Guerre et paix, suivi de Irrductions. Paris, ditions A.M. Mtaili, 1984; Latour, Bruno, Give me a laboratory and I will raise the world, in: Biagioli, Mario (ed.). The Science Studies Reader. New York, Routledge, 1999, pp. 258-275. Este aspecto da contribuio de Latour salientado por Steven Shapin em resenha do livro Cincia em ao. Shapin, Steven. Following scientists around, Social Studies of Science, v. 18, 1988, pp.533-550. 42 Bloor, David. Anti-Latour, op. cit.; Collins, H. M.; Yearley, Steven. Epistemological chicken, in: Pickering, Andrew (ed.). Science as practice and culture. Chicago, London, The University of Chicago Press, pp. 301-326, 1992; Gieryn, Thomas. Relativism/constructivism programmes in the sociology of science: redundances and retreat, Social Studies of Science, Beverly Hills/London, v. 12, n. 2, 1982, pp. 279-98; Pickering, Andrew. From science as knowledge to science as practice, in: Pickering, Andrew (ed.). Science as practice and culture. Chicago, London, The University of Chicago Press, 1992, pp. 1-26; Shapin, Steven. Following scientists around, op. cit. 43 Para uma anlise crtica das formulaes de Latour e Woolgar, em A vida de laboratrio, quanto ao carter circunstancial da ao e dos clculos dos cientistas, num contraponto com os conceitos de capital e campo cientfico de Pierre Bourdieu e com a perspectiva mertoniana sobre a organizao institucional da cincia, ver Kropf, Simone; Ferreira, Luiz Otvio. A prtica da cincia: uma etnografia no laboratrio, Histria, Cincia e Sade - Manguinhos, v. 4, n.3, 1998, pp. 589-597. 44 Figueira, Silvia, As cincias geolgicas no Brasil: uma histria social e institucional, 1875-1934. So Paulo, Hucitec, 1997, pp. 24-5. Para um panorama das abordagens historiogrficas da cincia que focalizam a dimenso

  • 21

    Tendo por base tais reflexes tericas, nosso argumento geral o de que a doena de

    Chagas foi instituda, emoldurada, ao mesmo tempo como fato cientfico e fato social, num

    processo longo, que envolveu negociaes e acordos e que articulou diversos atores e

    instncias da vida social. Sua configurao como entidade nosolgica especfica, derivada das

    pesquisas de Carlos Chagas e seus colaboradores e seguidores, deu-se de modo indissociado

    do processo pelo qual a ela se atribuiu o papel de representar e dar sentido a uma certa viso

    da sociedade brasileira, de seus problemas e, sobretudo, do papel da cincia nesta sociedade.

    Ou seja, os enunciados pelos quais a doena foi definida em seu quadro clnico e tambm as

    crticas e revises destes enunciados, no processo de sua estabilizao como fato cientfico

    foram estabelecidos em estreita associao com os significados que a enquadraram como

    doena do Brasil, em vrios sentidos, alm da dimenso geogrfica: a imagem de um pas

    doente, cujo progresso se inviabilizava por conta das endemias rurais que prejudicavam a

    produtividade de seus trabalhadores, e, ao mesmo tempo, o smbolo da cincia que descobria

    este Brasil desconhecido do interior e apontava os meios para sua incorporao marcha do

    progresso nacional.

    Emoldurada pelos esquemas conceituais das novas teorias mdicas emergentes no

    cenrio internacional, na passagem do sculo XIX ao XX, em especial a medicina tropical, e

    pelo projeto institucional de cincia que Oswaldo Cruz buscava implementar em Manguinhos

    uma cincia que articulasse aplicabilidade social e excelncia acadmica , a doena de

    Chagas funcionou, por sua vez, como moldura para um dado recorte da sociedade brasileira,

    conforme tal projeto. Ela materializava o compromisso pblico da cincia com os destinos da

    nao no apenas na resposta a demandas sociais concretas, mas pela prpria capacidade de

    descortinar seus problemas e indicar caminhos para super-los. Nesse sentido, se o desenho

    deste objeto expressou as especificidades do processo de institucionalizao da cincia no

    Brasil, ele constituiu um importante elemento conformador deste processo. Em suma, esta foi

    uma doena construda e legitimada a partir dos mltiplos significados, valores e interesses

    que associavam cincia, sade pblica e nao no Brasil. Tanto as diferenas, como os

    elementos de continuidade que marcaram, em termos cognitivos e sociais, os distintos

    arranjos que ela assumiu ao longo do perodo em questo, estiveram referidos a esta

    associao, igualmente marcada por transformaes e permanncias.

    institucional, ver Dantes, Maria Amlia M., Introduo: uma histria institucional das cincias no Brasil, in: Dantes, Maria Amlia M. (ed.). Espaos da cincia no Brasil (1800-1930). Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2001, pp. 13-22.

  • 22

    Algumas particularidades deste objeto o tornam particularmente interessantes do ponto

    de vista dos desafios enfrentados para o seu reconhecimento, em termos de sua definio

    como entidade clnica e da idia de que se tratava de um problema de vasta proporo e

    gravidade no pas e no continente. A doena de Chagas foi descrita num momento em que,

    diferentemente de uma tradio mdica que definia as enfermidades sobretudo por suas

    manifestaes clnicas e sintomas, a idia de especificidade do agente causal era um elemento

    fundamental para o reconhecimento e a definio das doenas infecciosas como entidades

    patolgicas particulares. Conseqentemente, este era o critrio fundamental para o seu

    diagnstico. Contudo, no decorrer das pesquisas, verificou-se que, na grande maioria dos

    casos de infeco pelo T. cruzi, a deteco do parasito no organismo do indivduo era bastante

    difcil. Assim, o desafio que se colocou para os cientistas foi produzir o convencimento no

    apenas em relao aos elementos clnicos que definiam a doena, mas quanto prpria

    possibilidade de se garantir a convico do diagnstico com base nestes elementos. Produzida

    como um smbolo da chamada medicina de laboratrio consagrada com a teoria dos germes

    e a medicina tropical, a nova tripanossomase foi desenhada clinicamente a partir dos traos

    imputados ao do parasito que a causava, mas o seu reconhecimento enquanto entidade

    nosolgica especfica dependeria de elementos clnicos que fossem persuasivos o suficiente

    para suplantar a exigncia da demonstrao do parasito. Outro desafio peculiar enfrentado por

    Chagas era convencer sobre a importncia mdico-social de uma doena endmica,

    fundamentalmente crnica, que no tinha, como as doenas epidmicas, sua existncia e

    dramaticidade social materializada em surtos que atingiam, e muitas vezes levavam morte,

    grandes quantidades de indivduos.

    A produo dos enunciados sobre a doena de Chagas constitui, ao nosso ver, um

    objeto particularmente frtil para se refletir sobre as vrias dimenses da relao entre cincia

    e sociedade, em contextos histricos particulares. O percurso pelo qual esta doena foi

    configurada como nova patologia tropical, endemia rural e doena do Brasil faz deste um

    caso especialmente revelador de como os cientistas brasileiros se referenciaram a esquemas

    tericos produzidos fora do pas no caso, a medicina tropical europia , no apenas no

    sentido de uma insero ativa no movimento de produo e de afirmao destes esquemas,

    mas sobretudo no sentido de conferir-lhes significados e sentidos peculiares a partir dos

    contextos especficos tanto da cincia quanto da sociedade brasileira.45

    45 Para um panorama das discusses, no mbito da historiografia das cincias latino-americana, sobre a relao entre cincia e contextos culturais e nacionais especficos, ver Saldaa, Juan Jos. Cincia e identidade cultural: a histria da cincia na Amrica Latina, in: Figueira, Silvia (org.). Um olhar sobre o passado: histria das cincias na Amrica Latina. Campinas/So Paulo, Editora da Unicamp/Imprensa Oficial, 2000, pp. 11-27.

  • 23

    Nosso objetivo focalizar dois momentos na trajetria de construo e

    reconhecimento cientfico e social da doena de Chagas. Em primeiro lugar, as pesquisas

    realizadas por Carlos Chagas e seus colaboradores, no IOC, desde a identificao da nova

    doena, em 1909, at o falecimento de seu descobridor, em 1934. Ao longo deste perodo, em

    que Chagas alcanou grande proeminncia cientfica e poltica no Brasil e no exterior (foi

    diretor do IOC e dos servios federais de sade pblica), os enunciados sobre a definio

    clnica e a importncia mdico-social da nova doena ensejaram um intenso debate sobre as

    condies do atraso das reas rurais, a relao entre doena e identidade nacional e o papel

    social da cincia, debate este que culminou com o chamado movimento pelo saneamento dos

    sertes, entre 1916 e 1920. Ao mesmo tempo, tais enunciados foram objeto de intensas

    crticas e questionamentos, iniciados na Argentina, entre 1914 e 1916, e aprofundados no

    campo mdico brasileiro entre 1919 e 1923.

    Um segundo momento desta trajetria diz respeito aos estudos sobre a doena

    liderados por dois discpulos de Carlos Chagas em Manguinhos, aps 1934: Evandro Chagas,

    seu filho mais velho e diretor do Servio de Estudo das Grandes Endemias (SEGE), e,

    principalmente, Emmanuel Dias, que dirigiu o Centro de Estudos e Profilaxia da Molstia de

    Chagas (CEPMC), posto do IOC na pequena cidade de Bambu, Minas Gerais, desde sua

    criao, em 1943, at seu falecimento em 1962. Nesta fase, foi produzido um novo acordo

    sobre a caracterizao clnica e social da doena, bem como os meios tcnicos para a sua

    profilaxia. Mediante uma intensa mobilizao poltica em torno do tema, viabilizou-se seu

    reconhecimento pblico tanto como realidade mdico-cientfica, quanto como questo de

    sade pblica e objeto das polticas sanitrias do pas. Assim, o marco cronolgico final de

    nossa anlise se justifica no apenas pelo encerramento da atuao de Dias no CEPMC, mas

    porque, naquele momento, se completaria, ao nosso ver, uma fase essencial de estabilizao e

    institucionalizao deste fato cientfico. Pretendemos encaminhar a anlise deste itinerrio a

    partir dos seguintes captulos.

    No primeiro, sob uma perspectiva que considera as descobertas cientficas eventos

    socialmente circunscritos e endossados, nosso objetivo ser analisar as condies tericas,

    institucionais e sociais que propiciaram a descoberta da nova tripanossomase humana e os

    sentidos que lhe foram conferidos como grande feito da cincia nacional. Aps um breve

    panorama dos estudos sobre a patologia tropical no Brasil durante o sculo XIX,

    Marcos Cueto um dos vrios autores que publicou importantes trabalhos referidos a esta questo. Ver, entre outros: Cueto, Marcos. Nacionalismo y cincias mdicas: los incios de la investigacin biomdica en el Per: 1900-1950, Quipu, v. 4, n.3, 1987, pp. 327-55.

  • 24

    acompanharemos a formao mdica de Carlos Chagas, entre 1897 e 1903, num perodo que

    foi vivido, no cenrio internacional e no Brasil, como divisor de guas no pensamento

    mdico, em funo dos novos modelos da microbiologia e da medicina tropical, que

    ganharam significados e implicaes particulares no contexto sanitrio e poltico da capital

    federal. Procuraremos, assim, identificar os parmetros e recursos tericos e a viso a

    respeito da cincia que norteariam Chagas em seus primeiros trabalhos e seriam

    determinantes tanto para a descoberta, quanto para a produo dos conhecimentos sobre a

    nova doena. Por outro lad