E por Falar em Alienação

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E POR FALAR

EM

ALIENAÇÃO…

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E por falar

Em

Alienação ...

Jean Bartoli

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RESUMO:

Falar em alienação tornou-se comum e perde-se a abrangência e a força desse conceito.

Tentaremos resgatar sua dimensão antropológica e religiosa para mostrar o quanto ele

pode ajudar-nos a entender por que a organização empresarial apresentada como

fundamento de uma sociedade das organizações e do conhecimento torna-se um lugar de

alienação para os executivos que nela trabalham. O impasse nasce do fato que a empresa

está toda construída sobre a rentabilidade e o consumo. Tentaremos m ostrar que a

primazia da dimensão consumista pode reforçar o processo de alienação que desafia todo

ser humano a se reencontrar pelo menos parcialmente reconciliado. Sendo este conceito

de alienação m uito próximo do conceito de idolatria, pensamos que o presente trabalho

pode ser conduzido no âmbito das ciências da religião.

ABSTRACT:

Talking about alienation becom es comm on and this concept's range and strength is often

lost. We shall try to find out its anthropological and religious dimension thus evidencing how

much it can help us to understand why the business organizations self-introduced as the

foundation of a learning and business society is a place where executives become

alienated. The impasse is due to the fact that business organization is wholly profit and

consume-oriented. We shall try to demonstrate that the primacy of the consume dimension

may strengthen the alienating process that challenges executives as every human being to

experience at least a partial reconciliation. This concept of alienation is like the concept of

idolatry: therefore it seems to us that this analysis may be developed in sciences of

religions.

PALAVRAS-CHAVES

Alienação

Reconciliação

Executivos

Sociedade do conhecimento

KEY-WORDS

Alienation

Reconciliation

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Executives

Learning organization

A organização empresarial é considerada pelos seus mais ardorosos defensores como um

lugar de busca e de realização do sentido da existência humana nas suas dimensões

material, psicológica, social e, para alguns, espiritual. Apresentando-se assim, ela pretende

mobilizar as pessoas de talento e tomar a direção do processo econômico-social. Ela

pretende também estar na vanguarda da construção de uma sociedade das organizações e

do conhecimento que possa abrir uma página nova na história da humanidade. Os

executivos têm o papel especial de zelar por esta nova utopia. Esta pretensão pode levar,

porém, a um impasse porque a empresa está toda construída sobre a rentabilidade e o

consumo. Tentaremos mostrar que a primazia da dimensão consumista pode reforçar o

processo de alienação cuja tentativa de superação é o desafio de todo ser humano para se

reencontrar pelo menos parcialmente reconciliado. Sendo este conceito de alienação muito

próximo do conceito de idolatria, pensamos que o presente trabalho pode ser conduzido no

âmbito das ciências da religião. Este trabalho comportará três partes:

1. O que se pode entender por alienação: Erich Fromm e Paul Tillich fornecerão

algumas pistas para entender o conceito.

2. O consumo, finalidade de toda a atividade empresarial concorre ao processo de

alienação do ser humano. Portanto, a organização empresarial apresentada como

lugar de realização pode, ao invés, concorrer ao processo de alienação do executivo

que nela trabalha.

3. Existe um a possibilidade, mesmo que parcial, de um processo de reconciliação?

Analisaremos se Paul Tillich pode oferecer alguma pistas de reconciliação parcial ao

executivo que queira sair do processo de alienação.

1. O QUE PODEMOS ENTENDER POR ALIENAÇÃO?

Discutiremos o conceito de alienação a partir de dois autores: Marx, que leremos com a

ajuda e a interpretação de Erich Fromm, e Paul Tillich. A escolha vem do fato que Marx deu

grande notoriedade ao conceito focando sua importância como chave de interpretação do

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relacionamento do ser humano com o mundo econômico. Na sua época, o mundo da

produção econômica parecia bastante simples e dividido em duas classes: oprimidos e

opressores, operários e patrões. Fromm, lendo Marx, acrescenta um terceiro ator, chamado

hoje de executivo, que aparece entre as duas classes como agente manipulado e

manipulador. Tillich analisa o conceito de alienação (estrangement) numa dimensão mais

existencial e teológica. As duas abordagens, portanto, parecem complementares.

Segundo E rich Fromm1,

“a alienação (ou “alheamento” para Marx significa que o homem não se vivencia como

agente ativo de seu controle sobre o mundo, mas que o mundo (a natureza, os outros, e

ele mesmo) permanece alheio ou estranho a ele. Eles ficam acima e contra ele como

objetos, malgrado possam ser objetos por ele mesmo criados. Alienar-se é, em última

análise, vivenciar o mundo e a si mesmo passivamente, receptivamente, como o sujeito

separado do objeto”2.

O autor liga o conceito de alienação ao conceito de idolatria3. Os ídolos são a obra das

mãos do próprio homem que adora o que ele mesmo criou. Ao fazê-lo, ele se transforma

em coisa. Transfere às coisas de sua criação os atributos de sua vida e, em vez de

experiencar-se como a pessoa criadora, só entra em contato consigo mesmo através da

adoração do ídolo. Não é só o mundo das coisas que se torna superior ao homem, mas

também as circunstâncias sociais e políticas por ele criadas se tornam seus senhores4. O

homem acaba alienado da essência humana e levado a um egoísmo existencial porque a

essência humana se transforma em meio para a existência individual dele. A alienação

conduz à perversão de todos os valores. Cada homem especula sobre como criar uma

nova necessidade em outro homem a fim de forçá-lo a um novo sacrifício, coloca-lo numa

nova dependência e incita-lo a um novo tipo de prazer e, por conseguinte, à ruína

econômica. Com a massa de objetos cresce o número de entidades estranhas a que o

homem fica sujeito e o homem se torna cada vez mais pobre como homem.

Fromm acrescenta que Marx não previu até que ponto a alienação chegaria a ser o destino

principalmente das pessoas, como por exemplo, os executivos, que manipulam símbolos e

1 FROMM, Erich, Conceito Marxista do homem, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 8ª edição, 1983, capítulo V

p.50 ss.

2 Op.cit. p.50

3 Podemos acrescentar que esta ligação entre alienação e idolatria é um tema amplamente desenvolvido por

autores da teologia da libertação como F.J. Hink elammert, Hugo Assmann, Jung Mo Sung.

4 Op.cit. p. 57

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homens em vez de máquinas. O operário depende da expressão de certas qualidades

pessoais como habilidade e confiança de que é merecedor e não é obrigado vender sua

personalidade, seu sorriso e suas opiniões ao ser contratado. Os manipuladores de

sím bolos não são contratados apenas por sua perícia, m as também por suas qualidades

pessoais que os tornam “acondicionamentos de personalidades atraentes” de fácil trato e

manuseio. São verdadeiros homens da organização cujo ídolo é a empresa.

O próprio Fromm5 sugeriu a leitura de Paul Tillich6. Numa visão teológica, Tillich considera

que o conceito de alienação (estrangement), em bora não bíblico, está presente em muitas

descrições das dificuldades e difíceis escolhas do ser humano. Está presente na descrição

que o apóstolo Paulo faz da luta interior do homem contra si mesmo quando perverteu a

imagem de Deus transformando-a em ídolo7. O autor prossegue mostrando que esta

alienação traduz-se por duas expressões na Confissão de Ausburgo: o ser humano se

encontra “sem fé e com concupiscência” (sine fide erga deum et cum consupiscentia)8. Ele

acrescenta uma terceira expressão: a hubris que poderia se traduzir por orgulho no sentido

de auto-elevação. Pensamos que as duas últimas expressões (hubris e concupiscência)

ajudam a entender com mais profundidade o conceito esboçado por Marx e permitem uma

análise mais acurada da alienação presente nas organizações.

Alienado, o homem se encontra fora do centro divino ao qual seu próprio centro

pertence. O ser humano é centro de si mesmo e do seu mundo; por isto, ser si mesmo e

ter um mundo constitui para ele, com o perfeição da criação, o desafio. Esta perfeição

desperta ao mesmo tempo a tentação de criar imagens de deuses imortais porque é

consciente da sua infinidade potencial. Isto faz com que pode chamar os homens

mortais e as imagens divinas imortais. Se não reconhecer a ambigüidade desta

situação, cai na hubris. Eleva a si mesmo além dos limites do seu ser finito e provoca a

vingança divina que o destrói. A hubris é o chamado pecado espiritual cujo sintoma é

que o homem não reconhece sua finitude: identifica verdade parcial com verdade

absoluta, povos confundem sua bondade limitada com bondade absoluta (fariseus e

5 menciona na nota 1 da pág. 50 a conexão que Paulo Tillich faz entre os dois conceitos.

6 TILLICH, Paul, Sy stematic Theology three volumes in one, Chicago, The University of Chicago Press, 1967,

Volume two, Part III, I, C e D p. 45 ss.

7 Op.cit. p.45.

8 Op.cit. p. 47

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puritanos) e o homem identifica sua criatividade cultural com a criatividade divina. O ser

humano confunde uma auto-afirmação natural com uma auto-elevação destrutiva9.

A vontade do ser humano em trazer a totalidade do seu mundo dentro de si mesmo é a

tentação de quem está entre o finito e o infinito. Todo indivíduo, consciente do seu

alheam ento do mundo, deseja uma reunião com o mundo. Sua “pobreza” o faz buscar a

abundância: é a raiz do amor em todas as suas formas. A possibilidade de atingir uma

abundância ilimitada é a tentação de quem está ao mesmo tempo consciente de ser si

mesmo e estar situado num mundo. É a concupiscência ou desejo ilimitado de trazer

para dentro de si a totalidade da realidade. Isto se refere à fome ou ao sexo, ao

conhecim ento ou ao poder, à riqueza material ou aos valores espirituais10.

Segundo Tillich11, Adão deve ser entendido como o hom em essencial que simboliza a

transição da essência para a existência e o que a teologia cristã costuma chamar de

pecado original não tem nada de original nem de hereditário: é o destino universal de

alienação que diz respeito a cada ser humano. O pecado é um fato universal que se torna

um ato individual ou, m ais precisamente, o pecado individual transforma em ato o fato

universal da alienação. Como ato individual, o pecado é um problema de liberdade, de

responsabilidade e de culpa individual de tal modo que, em cada ato livre, o destino

humano universal de alienação está envolvido e passa ao ato. Não se pode então separar

o pecado como fato do pecado como ato. A alienação é, muitas vezes, entendida como

determinismo físico, biológico, psicológico, sociológico, econôm ico ou cultural. Nenhuma

destas explicações por si só permite entender o sentimento existencial de responsabilidade

pessoal que o homem alienado experimenta em seus atos. Mas cada uma destas teorias

contribui para a compreensão da condição humana. A percepção da universalidade da

alienação não torna a consciência de culpa do ser humano irreal; liberta-o da pretensão

que a todo o momento tem a liberdade indeterminada de decidir qual caminho ele escolhe.

Que dizer da alienação e da culpa coletivas? O autor mostra que a culpa individual participa

da criação do destino universal da humanidade e do destino especial do grupo ao qual

pertence o indivíduo12. Talvez seja a partir da consciência desta dialética entre a

9 Op.cit. p.51

1 0 Op.cit.p. 52

1 1 op.cit.p. 56ss

1 2 op.cit.p.59

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responsabilidade pessoal e a percepção de uma alienação presente na nossa experiência

existencial que exista uma possibilidade de construir uma reconciliação ainda que parcial.

2. O QUE ESTE CONCEITO DIZ A RESPEITO DO DIA A DIA DO CONSUMIDOR E DO

EXECUTIVO ATUANDO NUMA ORGANIZAÇÃO EMPRESARIAL?

Queiramos ou não, não podemos negar que gastamos muito tempo e energia para

consumir. Podem variar a proporção ou o empenho, a satisfação ou o tédio, a submissão à

necessidade ou ao desejo: ninguém escapa à condição de consumidor. O que se entende

por consumo? O que o conceito de alienação pode esclarecer a respeito?

O hábito de consumo com o filosofia de vida não é um fenômeno natural. Trata-se de um

comportamento induzido que corresponde, segundo Rifkin13, a uma religião ou a um

evangelho chamado por ele de Evangelho do Consumo de Massa. Literalmente, consumir

significa destruir, saquear, subjugar, exaurir. A metamorfose do consumo de víc io a virtude

é, no entender deste autor, um dos fenômenos mais importantes, no entanto, o m enos

analisado do século XX14. O consumo de massa não ocorreu espontaneamente tampouco

foi o subproduto inevitável de uma natureza humana insaciável. O fato de as pessoas

preferirem trocar horas a mais de trabalho por horas a mais de ociosidade tornou-se uma

preocupação crítica e a ruína de empresários cujos estoques de produtos se acumulavam

rapidamente. A empresa precisa do consumo para poder sobreviver e produzir dinheiro

para seus donos ou seus acionistas. O consumo nasce da necessidade dela poder

continuar a vender as quantidades cada vez maiores produzidas com os avanços

tecnológicos. Por isto que deve livrar-se da durabilidade dos produtos: eles não podem ter

uma vida útil muito grande para poder ser substituídos rapidamente. Novos conceitos de

marketing e de propaganda deslancharam na década de 1920 refletindo a determinação

crescente da comunidade empresarial para esvaziar seus depósitos e acelerar o ritmo do

consumo a fim de acompanhar a produtividade cada vez maior. A mudança dos hábitos de

compra dos assalariados foi obra do crédito ao consumidor que permitiu que, em menos de

uma década, uma nação de americanos esforçados e frugais se transformasse em adeptos

de um a cultura hedonista em busca dos caminhos sempre novos da gratificação imediata.

Os novos esquemas publicitários estimulavam uma nova psicologia de consumo em

1 3 RIFKIN, J eremy,O fim dos empregos, MAKRON Books 1996

1 4 Parece que não teve acesso aos teólogos citados na nota 3!

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massa. Não é preciso acrescentar que o resto do mundo entrou com alegria e dedicação

nesta religião. O modelo de sociedade das organizações precisa do consumo para poder

se manter. É um sistema ancorado sobre a acumulação e a destruição compulsivas. O ser

humano é chamado a reavaliar seu ideal de perfeição e os fundamentos das suas relações

com os outros.

O consumo leva ao isolamento. A mudança de comportamento foi analisada pela

"Nostradamus do marketing" segundo a revista Fortune: Faith Popcorn15. As pessoas que

atingem um determ inado patamar de consum o ficam cada vez mais separadas do resto das

pessoas e se entrincheiram na privacidade de condomínios. A residência-fortaleza será o

centro da produção (se trabalha em casa), o centro da segurança (deverá ser a prova de

intrusos) e o centro do consumo (compra-se pizza, carro etc. por telefone, fax ou via

Internet). O relacionamento se limita a um círculo bastante fechado de pessoas que

seguem o mesmo modo de vida, que têm o mesmo padrão de renda e os mesmos centros

de interesse. Deste modo, segundo Canclini16, forja-se um consenso em relação a um

modelo socio-econômico apresentado como o único possível. Ao mesmo tempo, uma

violenta manipulação de símbolos por modalidades audiovisuais e massivas de

organização da cultura, subordinadas a critérios empresariais de lucro assim como a um

ordenamento global que desterritorializa seus conteúdos e suas formas de absorção,

reforçam este consenso que vira pensamento único17. A perda de eficácia das formas

tradicionais e ilustradas de participação cidadã (partidos, sindicatos, associações de base)

não é com pensada pela incorporação de massas consumidoras ou participantes ocasionais

dos espetáculos que os poderes políticos, tecnológicos e econômicos oferecem através dos

meios de comunicação de massa. Desaparece a cultura política que via as ações presentes

como parte de uma história e procura de um futuro renovador. As decisões políticas e

econômicas são tomadas em função das seduções imediatistas do consumo. Homens e

mulheres convencem-se de que muitas das perguntas próprias dos cidadãos – a que lugar

pertenço e que direitos isso me dá? Como posso me informar? Quem representa meus

1 5 POPCORN, Faith,O relatório Popcorn, Editora Campus 1993, pag.2 e 3. O título de Nostradamus aparece

na capa do livro logo embaixo do nome da autora.

1 6 CANCLINI, Nestor García, Consumidores e cidadãos , conflitos multiculturais da globalização, Editora UFRJ,

Rio de Janeiro 1995, pag.27ss

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interesses? – recebem sua resposta mais através do consumo privado de bens e dos

meios de comunicação, dos circuitos da comunicação de massa cada vez mais sofisticados

de informação18, considerados como diversões e lazer, do que nas regras abstratas da

democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos19. Como não reconhecer

neste processo o desdobramento e a verificação das observações de Fromm?

O consumo é a causa, a razão de ser e a finalidade das empresas. Peter Drucker, autor

clássico nesta matéria, ensina o que se deve entender por organização empresarial20:

uma organização empresarial é um grupo humano, composto por especialistas que

trabalham em conjunto em uma tarefa comum: produzir bens ou serviços. A organização

empresarial é uma ferramenta e, como tal, quanto mais especializada, maior será seu

desempenho. Como a empresa é composta por especialistas, cada um na sua área

restrita de conhecimento, sua missão tem que ser muito clara. Os seus resultados

somente existem externamente e ela e estão sem pre distantes da contribuição de cada

membro. Enquanto as outras comunidades (sociedade, família) têm, como meta, a

sobrevivência e não o desempenho, as organizações empresariais não existem primeiro

para as pessoas que nelas trabalham e, sim, para e em função dos bens e dos serviços

que elas produzem e para o resultado financeiro que conseguem gerar a partir desta

produção. Cada membro de uma organização dá (ao menos em teoria) uma

contribuição vital mas nenhum deles sozinho produz os resultados. O que se espera é

que os bens e serviços produzidos com uma qualidade cada vez m aior e mais garantida

por controles cada vez mais aprimorados, contribuam para uma melhor qualidade de

vida entendida como posse de bens ou acesso a serviços cada vez mais sofisticados. E

esta qualidade de vida representa o único horizonte prometido por uma sociedade que

se recusa a sair do aqui agora e que elegeu o consumo como seu objetivo fundamental.

o papel do conhecimento é gerar esta “sociedade das organizações”21. Por isto terá um

papel fundamental na medida em que se transforma em conhecimentos

1 7 Expressão cada vez mais us ada para designar este consenso forjado: cf. por exemplo as análises feitas por

vários autores e intelectuais publicadas mensalmente no periódico le Monde diplomatique.

1 8 LASCH,Christopher The revolt of the elites and the betrayal of democ racy, W.W. Norton Company, New

York-London 1995 pag.34

1 9 CANCLINI, op.cit. pag.13

2 0 DRUCKER, Peter,Sociedade pós-capitalista, Ed. Pioneira Novos Umbrais 1994, capítulo 2

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“A função das organizações é tornar produtivos os conhecimentos. As organizações

tornaram-se fundamentais para a sociedade em todos os países desenvolvidos, devido à

passagem do conhecimento para conhecimentos22”.

“como a organização moderna é uma organização de especialistas do conhecimento,

ela precisa ser uma organização de iguais, de “colegas”, de “associados”. Nenhum

conhecimento se “classifica” acima do outro23.”

Aqui está o ideal, ou o paraíso a ser construído pela organização empresarial: moldar a

sociedade transform ando-a em sociedade de organizações na qual o cimento da

unidade e da igualdade entre seus m embros seja a partilha dos conhecimentos, todos

colocados em pé de igualdade e avaliados pela sua eficaz na produção de bens e

serviços de uma qualidade reconhecida, subordinada, porém, aos resultados monetários

esperados pelos acionistas que podem ser os próprios produtores/consumidores, via sua

participação em fundos de pensão24. A unidade possível é a da contribuição de

conhecimentos esparsos e fragmentários que possam ser im ediatamente usados na

produção de objetos tangíveis (bens de consumo), intangíveis (economia de serviços) ou

virtuais (nova economia) e não a busca de um conhecimento unificado e orgânico que

permita uma tentativa de apreensão da realidade na sua totalidade e sua diversidade. O

consumo, a destruição e a renovação destes bens é o alicerce sobre o qual será

edificada a sociedade unida e globalizada.

Para que tudo isto possa acontecer deve ser feita uma “revolução gerencial”25. Antes

desta "era do conhecimento" como os consultores gostam de chamá-la, o papel do

gerente se parecia bastante com o papel de um oficial militar: era avaliado pela

competência que demonstrava ou não de comandar pessoas e definido como alguém

responsável pelo trabalho dos subordinados. Hoje, passou a ser visto como responsável

pelo desempenho de pessoas e pela aplicação e pelo desempenho do conhecimento.

Isto gera uma angústia muito grande nos executivos que não foram formados para este

modelo. O conhecimento está sendo aplicado hoje ao conhecimento26: descobrir com o o

2 1 DRUCKER, op.cit. pág.39: “ass im como a sociedade pós-capitalista tornou-se uma sociedade de

organizações, ela também se tornou uma sociedade de empregados.”

2 2 DRUCKER,op.cit. pág. 28

2 3 DRUCKER, op.cit. pág.33

2 4 DRUCKER, op.cit. pág. 33

2 5 DRUCKER, op.cit. pág. 20ss

2 6 DRUCKER, op.cit. pág. 21

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conhecimento existente pode ser mais bem aplicado para produzir resultados. É o

manipulador de símbolos do qual falava Erich Fromm. O executivo foi promovido a

sacerdote do meta-conhecimento, da reconciliação e da harmonia organizacional na

medida em que abre mão do comando para se tornar o catalisador do conhecimento.

Instado a renunciar ao poder, recebe a responsabilidade para o desempenho. Nas

empresas hoje, o executivo aparece com o uma nova versão do proletário alienado: é

submetido a uma pressão extremamente forte para ser criativo e para superar todos os

seus lim ites físicos e mentais27. O equilíbrio entre auto-afirmação e auto-elevação pende

para a última porque esta ideologia está intimam ente ligada à ideologia da

competitividade exacerbada inclusive pela exigências da sobrevivência e o medo de

perder o emprego. Ele é chamado a aceitar o sacrifício para que alguns obtenham

resultados em abundância...

Christopher Lasch28 sugere um outro enfoque sobre esta revolução gerencial! Segundo ele,

estas elites gerenciais são as responsáveis pela traição da democracia e, ao mesmo

tempo, se revoltam contra este estado de coisas. Operam uma manipulação de símbolos

não pela via ideológica, mas pela exibição dos sinais externos de sua renda e por seus

modos de vida, cada vez mais internacionalizados e desenraizados de seu país de origem,

do seu povo e de sua comunidade29. O preço a pagar é uma dependência total do emprego

e a pertença a networks (redes) que se substituem às comunidades naturais. A formação

de um network consiste numa troca de informações, de intuições (insights para usar o

linguajar) e de boatos profissionais; é diferente do processo de construção de comunidades

que repousam sobre uma continuidade, sobre uma localização e principalmente sobre

laços e modos de comportamento cultivados de geração em geração. Os executivos vivem

cada vez mais num mundo de conceitos abstratos, de imagens e de símbolos em cuja

interpretação eles se especializam . Portanto têm mais em comum com seus pares de Paris,

Hong Kong ou New York do que com a massa dos brasileiros que não estão ligados às

redes mundiais de comunicação. Consideram-se como parte da classe dos melhores e

mais brilhantes que não devem nada a ninguém porque acham que seu poder e sua

2 7 existem inclusive treinamentos ao ar livre onde está s endo colocado em situações perigosas para

experimentar situações limites.

2 8 LASCH, op.cit.

2 9 LASCH, op.cit. pag. 33ss.

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riqueza repousa somente sobre seu talento pessoal. Desenvolvem uma tendência ao

individualismo, vivem ilhados e de "animal político" (Aristóteles) viram cidadãos do

"McWorld" (Barber30), uma nova espécie de homens e de mulheres para os quais a religião,

a cultura e a pertença étnica são elementos marginais: sua identidade é antes de tudo

profissional.

Portanto, o conceito de alienação de Marx encarnou-se de vez e m ais profundamente do

que o próprio Marx poderia ter percebido mas que seu comentarista, Fromm, já vislumbrava

com acuidade. O consumo como tentativa de saciar os desejos ilimitados e acumulação de

riqueza e poder de quem produz e de quem consome mostram que quem iniciou a

sociedade de consumo atirou no que viu e atingiu o que não viu. O que parecia um projeto

meramente econômico atinge, na realidade, a essência e a existência do ser humano que

transcende as categorias de produtor e de consumidor.

3. SE RIA POSSÍVEL SAIR DES TA ALIENAÇÃO?

Segundo Tillich31, o homem pertence a um meio, mas este é somente uma parte do seu

mundo. Ele pode transcendê-lo a cada palavra que ele fala. É livre de fazer desse m undo

um objeto que ele observa e de fazer de si mesmo um objeto sobre o qual dirige sua

atenção. Nesta situação de liberdade finita, ele pode perder a si mesmo e a seu mundo e a

perda de um implica a perda do outro. Talvez a possibilidade de reconciliação individual e a

tentativa de reconciliação das pessoas que vivem dentro de comunidades, entre elas as

empresas, passe por uma tomada de consciência deste espaço de liberdade limitada mas

real que elas podem experimentar. Isto poderia ser feito concretamente na tentativa de

reencontrar o centro entre polaridades ontológicas exacerbadas no estado de alienação32.

Superar a separação da liberdade e do destino: sob o controle da hubris e da

concupiscência, a liberdade cessa de se relacionar com os objetos fornecidos pelo

destino. Ela se relaciona a um sem-núm ero de conteúdos. Quando o homem faz de si o

centro do universo, a liberdade perde sua consistência e se volta para objetos, pessoas

e coisas que são completamente contingentes para o sujeito que escolhe e que podem,

3 0 BARBER, Benjamin: Vers une société universelle de consommateurs, Culture McWorld c ontre démocratie ,

Le Monde Diplomatique, agosto 1998, p. 14 e 15

3 1 op.cit.p.60

3 2 op.cit.p.62 ss

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portanto, ser substituídos por outros tão contingentes e sem nada que os relaciona

especificamente ao sujeito. Se não existir uma relação essencial entre um agente livre e

seus objetos, nenhuma escolha é objetivamente preferível em relação à outra; nenhum

compromisso com uma causa ou uma pessoa tem significado; nenhum sentido

(finalidade) dom inante pode ser estabelecido. Na medida em que a liberdade se distorce

em arbitrariedade, o destino se distorce em necessidade mecânica. Então, a prim eira

tarefa de reconciliação seria resgatar o redimensionamento da atividade empresarial:

esquecer os discursos totalizadores e voltar à sua vocação de produzir bens ou serviços

que atendam as necessidades das pessoas permitindo que estas possam escolher suas

trilhas de realização e de felicidade como bem entendem e num horizonte mais amplo

do que o oferecido pela corrida atrás de novas marcas de roupa, whisky ou sabonetes.

Superar a separação da dinâmica e da forma: todo ser vivo acontece além de si mesmo

e além da forma através da qual ele tem acesso ao ser. Na natureza essencial do ser

humano, dinâmica e forma são unidas. Sob o controle da hubris e da concupiscência, o

ser humano está sendo arrastado em todas as direções sem rumo e substância. Sua

dinâmica distorce-se em uma urgência sem forma para a auto-transcendência. Não é

uma nova forma que o atrai: a dinâmica tornou-se fim em si mesma. Alguém pode falar

em “tentação para o novo”, que é um elemento necessário para toda auto-realização

criativa mas que distorcida sacrifica o criativo para o novo. Nada de real é criado se falta

uma forma, porque nada é real sem forma. Ao m esmo tempo, a forma sem a dinâmica é

igualmente destrutiva porque se torna uma lei externa. Se um dos pólos desaparece, o

outro desaparece também. Nas empresas, redescobrir esta verdade significa tirar dos

ombros dos executivos e do consumidor o peso da ideologia da necessidade da

mudança a qualquer preço. A corrida atrás das novidades e das modas para o

consumidor, bem como a busca de novas estruturas e métodos gerenciais para os

executivos parece fazer parte de uma tentativa de afastá-los de toda consistência e

possibilidade de emitir julgam entos a partir de uma visão crítica e de uma personalidade

definida a partir de uma consciência formada. O caminho é resgatar os princípios e os

valores que dêem uma forma e um conteúdo aos julgamentos emitidos pelas pessoas.

Superar a separação da individuação e da participação: a vida é individuação em todas

as suas formas; ao mesm o tempo, a mútua participação do ser no “sendo” mantém a

unidade do ser. Os dois pólos são interdependentes. No estado de alienação, o homem

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cai sob o poder dos objetos que tendem a fazer dele um mero objeto. O caminho de

reconciliação passa pela busca da afirmação de uma pertença à organização assumida

com toda a força da própria subjetividade e que permita que a participação à vida da

organização possa ser traduzida por um discurso também crítico e atitudes livres que

possam resultar em ações eficazes uma auto-afirmação da própria humanidade além

dos resultados econômicos conseguidos.

BIIBLIOGRAFIA:

BARBER, Benjamin: Vers une société universelle de consommateurs, Culture McWorld

contre démocratie , Le Monde Diplomatique, agosto 1998

CANCLINI, Nestor García, Consumidores e cidadãos, conflitos multiculturais da

globalização, Editora UFRJ, Rio de Janeiro 1995

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FROMM, Erich, Conceito Marxista do homem, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 8ª edição,

1983

LASCH,Christopher The revolt of the elites and the betrayal of democracy, W.W. Norton

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POPCORN, Faith,O relatório Popcorn, Editora Campus 1993

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Publicado em Último Andar, caderno de pesquisa em ciências da religião, Programa de

Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião/PUC-SP, ano 3 – n.3 - 2000