Editora Revista Direito Numero 22

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Revista da Faculdade Mineira de Direito

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Revista da Faculdade Mineira de Direito

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ConsElho CiEntífiCo / Scientific council •AldacyRachidCoutinho(UFPR) •AlexandredeMoraisRosa(Univali) •AlexandreRonaldodaMaiadeFarias(UFPE) •CarlosAugustoCanêdoGonçalvesdaSilva(PUCMinas) •CarlosMariaRomeoCasabona(UniversidaddeDeusto) •CésarAugustodeCastroFiuza(PUCMinas) •DaviMonteiroDiniz(UnB) •EduardoBiancaBittar(USP) •FaustodeQuadros(UniversidadedeLisboa) •FernandoHortaTavares(PUCMinas) •FlavianedeMagalhãesBarros(PUCMinas) •FlorivaldoDutradeAraújo(UFMG) •GabrielaNevesDelgado(UFMG) •GiacomoMarramao(UniversitàdegliStudidiRomaIII) •JoaquimdeSouzaRibeiro(UniversidadedeCoimbra) •JorgeBacelarGouveia(UniversidadeNovadeLisboa) •JorgeDouglasPrice(UniversidaddeComahue) •JoséLuisBolzandeMorais(Unisinos) •LeonardoNemerCaldeiraBrant(PUCMinas) •MarceloCamposGaluppo(PUCMinas) •MarcianoSeabradeGodoi(PUCMinas) •MariadeFátimaFreiredeSá(PUCMinas) •MaurícioJoséGodinho(PUCMinas) •MenelickdeCarvalhoNetto(UnB) •NádiaAraújo(PUCRJ) •ViginiaZambrano(UniversitàdegliStudidiSalerno)

AindicaçãodoEditor,ConselhoCientíficoeConselhoEditorialépeloprazode3(três)anos,renováveis,ecompreendeoperíodoentreo2osemestrede2007eo1osemestrede2010.Thenominationforthepublisher,forthepublishingcouncilandforthescientificcouncilistoaperiodofthreeyears(2007-2010).

indExadorEs / IndexersLatindex|Ulrichs|BibliotecadoSenadoFederal(Brasil)|Clase

EDITORA PUC MINASComissão Editorial ÂngelaVazLeão(PUCMinas);GraçaPaulino(UFMG);JoséNewtonGarciadeAraújo(PUC

Minas);MariaZildaCury(UFMG);OswaldoBuenoAmorimFilho(PUCMinas)

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dirEtor CoordEnação Editorial

assistEntE Editorial

rEvisão

GeraldoMárcioAlvesGuimarãesCláudiaTelesdeMenezesTeixeiraMariaCristinaAraújoRabeloAstridMasettiLoboCostaeVirgíniaMataMachado

EDITORAPUCMINASPontifíciaUniversidadeCatólicadeMinasGerais|RuaPe.PedroEvangelista,377|Cep30535.490|CoraçãoEucarísticoTel(31)3319.9904|Fax(31)3319.9901|BeloHorizonte|MinasGerais|Brasilwww.pucminas.br/editora|[email protected]

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ISSN 1808-9429

PontifíciaUniversidadeCatólicadeMinasGerais Faculdade Mineira de Direito

Revista da Faculdade Mineira de Direito

Rev. da Fac. Min. de Direito Belo Horizonte v. 11 n. 22 p. 1-228 2º sem. 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAISGrão-ChanCElEr

rEitor

viCE-rEitora

assEssor EspECial da rEitoria

ChEfE dE GabinEtE do rEitor

DomWalmorOliveiradeAzevedoDomJoaquimGiovaniMolGuimarãesPatríciaBernardesJoséTarcísioAmorimPauloRobertodeSousa

pró-rEitorEs ExtEnsão WanderleyChieppeFelippe GEstão finanCEira PauloSérgioGontijodoCarmo Graduação MariaInêsMartins infra-Estrutura RômuloAlbertiniRigueira loGístiCa SérgiodeMoraisHanriot pEsquisa E dE pós-Graduação JoãoFranciscodeAbreu planEjamEnto E dEsEnvolvimEnto instituCional CarlosFranciscoGomes rECursos humanos AlexandreRezendeGuimarães arCosMarceloLeiteMetzker barrEiroRenatoMoreiraHadad bEtimEugênioBatistaLeite ContaGEmMariaJoséVianaMarinhodeMattos poços dE CaldasIranCalixtoAbrão são GabriElMiguelAlonsodeGouvêaValle sErro E GuanhãEsRonaldoRajãoSantiago

FACULDADE MINEIRA DE DIREITO

COLEGIADO DE COORDENAçãO DIDáTICA WalsirEdsonRodriguesJúnior(CoordEnador) EdimurFerreiradeFaria LeonardoMacedoPoli MariaCristinaSeixasVilani

COORDENADORIAS ACADêMICAS pEsquisaMarinellaMachadoAraújo atividadEs ComplEmEntarEsFlavianedeMagalhãesBarros ExtEnsãoFernandoHortaTavares monitoriaÁlvaroRicardodeSouzaCruz monoGrafiaCarlosAugustoCanedoGonçalvesdaSilva LusiaRibeiroPereira(CoordEnadora adjunta)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAçãO EM DIREITO MarceloCamposGaluppo(CoordEnador)

ElaboradapelaBibliotecadaPontifíciaUniversidadeCatólicadeMinasGerais

R449 RevistadaFaculdadeMineiradeDireito.–v.1,n.1(jan./jun.1998-).– BeloHorizonte:Ed.PUCMinas,1998-. v.

ISSN1808-9429 Semestral

1.Direito-Periódicos.I.PontifíciaUniversidadeCatólicadeMinasGerais. FaculdadeMineiradeDireito.

CDU:34(05)

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Sumário|Contents

7 A história dos sistemas de pensamento e as condições de possibilidade do discurso dos direitos humanos no Brasil hoje

(History of the systems of thought and conditions of feasibility of the human rights discourse in Brazil today)

adalbErto antonio batista arCElo

19 Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

(Transitional justice, human rights and the selectivity of judicial activism in Brazil)

alExandrE Garrido da silva

josé ribas viEira

47 A dialética entre os processos de globalização e de integração na perspectiva de construção de um espaço comunitário

(The dialectics between globalization and integration processes in the perspective of a communitarian space construction)

bruno WandErlEy júnior

silvEstrE Eustáquio rossi paChECo

65 Perigos de uma hermenêutica civil-constitucional

(Dangers of a constitutionalized hermeneutics of Private Law)

César fiuza

77 Aplicabilidade do mandado de injunção como viabilizador do exercício do direito social ao lazer

(Applicability of Writ of Injunction as a vehicle for the exercise of the social right to leisure)

fErnando josé armando ribEiro

bErnardo auGusto fErrEira duartE

101 Direito civil (em crise) e a busca de sua razão antropocêntrica

(Civil Law (in crisis) and the search of its anthropocentric reason)

Gustavo pErEira lEitE ribEiro

113 A eficácia imediata dos direitos fundamentais individuais nas relações privadas e a ponderação de interesses

(The immediate efficacy of individual basic rights in private relations and the balance of interests)

josé robErto frEirE pimEnta

juliana auGusta mEdEiros dE barros

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129 Uma perspectiva histórica do conceito de propriedade

(A historical perspective of the concept of property)

júlio aGuiar dE olivEira

EdGar Gastón jaCobs florEs filho

141 Direito de propriedade intelectual, tecnologia e interoperabilidade: estudo à luz das limitações aos direitos patrimoniais de autor

(Law of intellectual property, technology and interoperability: a study based on limits to copyright)

miChaEl César silva

robErto hEnriquE porto noGuEira

sávio dE aGuiar soarEs

alisson Costa

samuEl moura

EriC fErnandEs

157 O procedimento discursivo de elaboração das convenções de condomínio

(The speech procedure of elaboration of Master Deeds in condominiums)

rEnato marCuCi barbosa da silvEira

167 Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

(Codification and interpretation in the historical development of the Roman juridical experience)

saulo dE olivEira pinto CoElho

197 O reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière

(The concept of recognition in Hegel’s Phenomenology of Spirit: Labarrière reading Hegel)

thErEsa CalvEt dE maGalhãEs

223 Normas para os colaboradores

225 Rules for collaborators

227 Outros periódicos/ PUC Minas

Rev. da Fac. Min. de Direito Belo Horizonte v. 11 n. 22 p. 1-228 2º sem. 2008

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7

Ahistóriadossistemasdepensamentoe ascondiçõesdepossibilidadedodiscursodosdireitoshumanosnoBrasilhoje(History of the systems of thought and conditions of feasibility of the human rights discourse in Brazil today)

adalbErto antonio batista arCElo*

R E S U M OEstetrabalhoobjetivaanalisarcondiçõesdepossibilidadeparaaefetividadedodiscursodosdireitoshumanosnoBrasilapósavigênciadaConstituiçãoFederalde1988.Partindo-sedoprincípiodadignidadedapessoahumanae do paradigma do Estado Democrático de Direito, relacionados com apossibilidadede livreafirmaçãodas identidades individuais e coletivas emum horizonte de cultura política de direitos humanos, desenvolve-se umaanálisenormativaesociológicasobreoquedeveserosujeitodedireitoesobreascondiçõesaqueessesujeitoestásubmetidonasociedadebrasileiracontemporânea.Utiliza-se,comopontodepartidaereferencialteóricodestapesquisa,ametodologiadahistóriadossistemasdepensamentopropostaporMichelFoucault,quesedestacacomopontodereflexãointerdisciplinarparaainvestigaçãocríticasobreaefetividadedodiscursodosdireitoshumanosnoBrasilatualpormeiodatrípliceerelacionaltematizaçãoenvolvendoosujeito,opodereosaber,ouseja,aÉtica,aPolíticaeaCiência.

P A L A V R A S - C H A V EHistóriadossistemasdepensamento;Direitoshumanos.

A B S T R A C TThis paper aims to analyze conditions of feasibility of the human rightsdiscourseinBrazilafterthepromulgationofthe1988FederalConstitution.BasedontheprincipleofdignityofthehumanbeingandontheparadigmoftheDemocraticRuleofLaw,relatedwiththepossibilityoffreeaffirmationofindividualandcollectiveidentitiesinahorizonofpoliticalcultureofhumanrights,anormativeandsociologicalanalysis isdevelopedconcerningwhatmustbethecitizenoflawandtheconditionsthiscitizenissubmittedtoincontemporaryBraziliansociety.ThestartingpointandtheoreticalreferenceofthisresearchisMichelFoucault’smethodologyofhistoryofthesystems

* Mestre e doutorando em Filosofia do Direito, professor da PUC Minas.

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8 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 7-17, 2º sem. 2008

A história dos sistemas de pensamento e as condições de possibilidade do discurso dos direitos humanos no Brasil hoje

of thought, an outstanding landmark for interdisciplinary reflection inthecritical inquiry into theeffectivenessof thehuman rightsdiscourse incontemporaryBrazil,throughtherelationsbetweencitizen,socialpowerandknowledge,thatis,Ethics,PoliticsandScience.

K E y w O R D SHistoryofthesystemsofthought;Humanrights.

Este trabalho propõe uma análise do discurso dos direitos humanos no Brasil

contemporâneo a partir da metodologia da história dos sistemas de pensamento,

desenvolvida por Michel Foucault.1

Nessa perspectiva, a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de

Direito emergem como estruturas paradigmáticas, jurídica e politicamente institu-

cionalizadas pela Constituição Brasileira de 1988. Assim, o discurso dos direitos

humanos desponta como estrutura das práticas discursivas que configuram a socie-

dade brasileira contemporânea.

Contudo, sustenta-se que a dimensão jurídico-normativa do discurso dos di-

reitos humanos é insuficiente para os propósitos de uma reflexão pautada na com-

plexa metodologia de Foucault. Considerar a relação constitutiva entre a dignidade

da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito pela história dos sistemas de

pensamento, ou seja, analisar o discurso dos direitos humanos consignado na atual

Constituição Brasileira pela história dos sistemas de pensamento demanda atentar

para as formas de racionalidade que organizam as maneiras de fazer dos sujeitos de

direito brasileiros – aspecto tecnológico – e para a liberdade com a qual os indivídu-

os-sujeitos agem – aspecto estratégico (FOUCAULT, 2000, p. 335-351).

Para Foucault, as estruturas de pensamento prático-discursivas de uma so-

ciedade específica decorrem de três grandes eixos: “(...) o das relações de domínio

sobre as coisas, o das relações de ação sobre os outros, e o das relações consigo

mesmo” (2000, p. 335-351). Essas relações, em suas implicações recíprocas, revelam

a complexidade da metodologia da história dos sistemas de pensamento, composta

por “três eixos dos quais é preciso analisar a especificidade e o intricamento: o eixo

do saber, o eixo do poder e o eixo da ética” (FOUCAULT, 2000, p. 335-351).

O discurso dos direitos humanos, constitucionalmente positivado nos prin-

cípios da dignidade da pessoa humana e do Estado Democrático de Direito, remete

às indagações: o que somos em nosso próprio tempo e espaço? Qual a semântica

subjacente ao discurso de ser cidadão brasileiro hoje? Como, na sociedade brasileira

sob a vigência do ordenamento jurídico-constitucional de 1988, as pessoas têm se

reconhecido como sujeitos de direito?

1 A metodologia da história dos sistemas de pensamento aplicada ao discurso dos direitos humanos no Brasil atual deve responder a uma série aberta de questões e se relacionar, transdisciplinarmente, com um número não definido de pesquisas que, embora autônomas, trazem a seguinte sistematização: “(...) como nos constituímos como sujeitos de nosso saber; como nos constituímos como sujeitos que exercem ou sofrem as relações de poder; como nos constituímos como sujeitos morais de nossas ações” (FOUCAULT, 2000, p. 335-351).

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adalbErto antonio batista arCElo

Adensando essas indagações, questiona-se: como a metodologia da história

dos sistemas de pensamento pode contribuir para que as práticas discursivas dos

direitos humanos – em suas dimensões política, científica e ético-subjetiva – se efe-

tivem como processos de afirmação das identidades individuais e coletivas, ou seja,

como processos de empoderamento individual e social?

Para as respostas é necessário reconstruir o caminho crítico-investigativo da

metodologia da história dos sistemas de pensamento. Faz-se também oportuno tecer

algumas considerações sobre as condições de possibilidade da ciência do direito e

do discurso dos direitos humanos na contemporaneidade.

Michel Foucault e a história dos sistemas de pensamento

Foucault desenvolve uma reflexão crítica e interdisciplinar através de um

olhar normativo e sociológico (2000, p. 234-239), pois a história dos sistemas de

pensamento investiga o que deve ser o sujeito e as condições a que esse sujeito

está submetido. Nessa perspectiva, as tradicionais concepções jurídica e filosófica

da sociedade e do sujeito modernos se fundem com a abordagem histórico-política

(FOUCAULT, 1999a), trazendo maior consistência e complexidade para a tematiza-

ção das condições de possibilidade dos sujeitos de direito no paradigma do Estado

Democrático de Direito.

A metodologia da história dos sistemas de pensamento pressupõe que a dinâ-

mica social emerge como um complexo de relações de poder que transcende o poder

político juridicamente institucionalizado. Nesse sentido as sociedades complexas

contemporâneas podem ser concebidas como movidas por processos de subjeti-

vação (FOUCAULT, 1995, p. 231-249), que se concretizam e objetivam os sujeitos

de direito pela relação entre práticas discursivas. Essas estruturas discursivas ou

sistemas de pensamento, contudo, se desdobram em diferentes construções socio-

culturais, quais sejam: os saberes científicos, os poderes político-jurídicos e as indi-

vidualidades ético-subjetivas.

Ao trazer a tríplice e relacional tematização da ética, da política e da ciência

para a dimensão das práticas discursivas, Foucault apresenta um sofisticado método

de trabalho que revitaliza as condições de análise das ciências sociais aplicadas e da

filosofia social. Para Foucault, as relações sociais no sentido mais amplo são técni-

cas ou tecnologias de governo (2004, p. 252-263) que se materializam socialmente

de duas maneiras: por estratégias entre liberdades e por estratégias de dominação

(FOUCAULT, 2004, p. 252-263). Sustenta-se que as estratégias entre liberdades indi-

cam condições de possibilidade para práticas discursivas no Estado Democrático de

Direito. Já as estratégias de dominação revelam um empecilho ao exercício ético dos

processos sociais de subjetivação, ou seja, trata-se de uma estratégia de exclusão e

de obstrução da livre afirmação das identidades.

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10 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 7-17, 2º sem. 2008

A história dos sistemas de pensamento e as condições de possibilidade do discurso dos direitos humanos no Brasil hoje

As práticas discursivas indicam jogos de verdade2 gestados por e, simulta-

neamente, geradores de processos de subjetivação. Quer dizer que, assim como as

práticas discursivas podem determinar as subjetividades, a permanente busca pela

livre afirmação das identidades pode ressignificar as práticas discursivas hegemôni-

cas em uma estrutura social específica.

Aplicando-se a metodologia da história dos sistemas de pensamento à comple-

xidade característica do Estado Democrático de Direito brasileiro, percebe-se que a

ambivalência que permeia tanto os processos de subjetivação quanto os sistemas de

pensamento (práticas discursivas) no Brasil contemporâneo implica a incontornável

necessidade de uma problematização ética. Segundo Foucault, o exercício ético da

liberdade pressupõe que essa mesma liberdade seja a condição de existência do po-

der nas sociedades democráticas (1995, p. 231-249).

Percebe-se que Foucault viabiliza uma intrincada e densa reflexão em que se

conecta a problematização ética da subjetividade com as condições de possibilidade

do poder, seja através da microfísica do poder, da biopolítica ou da institucionaliza-

ção do poder enquanto saber científico.3

Destaca-se, nesse panorama, a relevância que assume a permanente busca pela

afirmação das identidades individuais e coletivas. Partindo-se da perspectiva ética

do governo de si e dos outros, busca-se aplicar a metodologia da história dos sis-

temas de pensamento para sustentar que a dinâmica contemporânea dos processos

sociais deve se fundar em relações democratizadas de poder. Isso porque, segundo

Foucault, o problema ético nas sociedades complexas repercute nas possibilidades

de se praticar eticamente a liberdade, ou seja, nas relações de poder que se exercem

com o mínimo de dominação (1995, p. 231-249).

Seguindo as pistas de Foucault e conectando-as aos princípios da dignidade

humana e do Estado Democrático de Direito, considera-se que os jogos estratégicos

entre liberdades estruturam os sistemas de pensamento, ou seja, as condições de

possibilidade dos saberes e poderes que sedimentam um paradigma sociocultural.

Contudo, sustentando-se o nexo paradigmático entre a modernidade clássica (Ilus-

tração) e a modernidade tardia (contemporaneidade), nexo que se traduz em práticas

discursivas ou em tecnologias de governo que expressam a tematização ética de sis-

temas de pensamento tão discrepantes quanto os de Kant e de Nietzsche, Foucault

possibilita a leitura dos jogos estratégicos entre liberdades como uma permanente

reconstrução da identidade dos sujeitos de direito (2000, p. 335-351).

2 Segundo Foucault, os “jogos de verdade” e seus efeitos em sociedade devem ser analisados a partir da “analítica do poder”, que atenua drasticamente a relevância dada ao edifício jurídico da soberania, ao aparelho estatal e às ideologias que os acompanham. Tematizam-se, assim, os operadores materiais, as formas de sujeição e de resistência, as conexões e utilizações dos sistemas locais das sujeições e das insurreições no âmbito dos dispositivos de saber. Nesse sentido Foucault acredita poder encontrar o que designa por fatos históricos maciços (FOUCAULT, 1999a, p. 40).

3 No curso no Collège de France de 1975-1976, intitulado “Em defesa da sociedade”, Foucault, depois de tematizar a “analítica do poder”, aponta o fenômeno da assunção da vida pelo poder, ou seja, da tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo. Trata-se de uma complexificação dos jogos de verdade e de poder que caracterizam as sociedades ocidentais modernas, que passam a ter, adicionadas à microfísica do poder, o biopoder ou a biopolítica (1999a, p. 285-286).

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adalbErto antonio batista arCElo

Para tanto, Foucault propõe um olhar transdisciplinar e pluriperspectivo, que

viabilize uma reflexão simultaneamente arqueológica e genealógica das sociedades

e dos sujeitos na modernidade. Nessa perspectiva Foucault indica que a moderni-

dade, em sua ambiguidade fundamental de lugar da emancipação e da dominação,

emerge como o tempo e o espaço das formas de constituição de subjetividades e de

verdades a partir de “relações de poder, de estados de dominação e de técnicas de

governo” (2004, p. 252-263).

Nesse cenário o poder desponta como instrumento de liberdade e de subju-

gação, objeto de resistência e de assimilação, forma de subjetivação e de sujeição.

Foucault afirma que “o poder só se exerce sobre sujeitos livres” (1995, p. 231-249),

ao que acrescenta que esse mesmo poder também é exercido por sujeitos livres.

A modernidade, como um paradigma sociocultural ou estrutura de pensamen-

to hegemônica nas sociedades ocidentais, abrange uma forma de poder que se aplica

à vida cotidiana, transformando o indivíduo em sujeito. Essa mesma estrutura de

pensamento, contudo, promove a atitude de transfiguração que, embora não liberte

o sujeito em seu ser próprio, lhe impõe a tarefa de elaborar-se a si mesmo (FOU-

CAULT, 2000, p. 335-351). Percebe-se que a modernidade se afirma como um fenô-

meno ambíguo e complexo por excelência.

Foucault, ao propor uma “hermenêutica do sujeito”4 aplicada ao sujeito moder-

no, demonstra que a liberdade do sujeito é seu instrumento de emancipação. Nesse

sentido cabe ao sujeito moderno, por meio das técnicas de si (aspecto ético-moral),

da organização social e da resistência às prescrições institucionais que reproduzem

a desigualdade (aspecto político), e da insurreição dos saberes sujeitados contra os

saberes hegemônicos excludentes (aspecto do saber), produzir um contrapoder que

afirme o sentido edificante da subjetividade.

A ciência do direito contemporânea respalda essa proposta ao tematizar, por

exemplo, a identidade do sujeito constitucional (ROSENFELD, 2003) e ao demandar a

semântica de “povo” como um conceito de combate (MÜLLER, 2000).

Foucault relativizou a ideia de que em uma sociedade em que a comunica-

ção possui um grau de transparência muito elevado os jogos de verdade são mais

independentes das estruturas de poder. O problema de se tratar utopicamente as

relações de comunicação – um problema que, segundo Foucault (2004, p. 264-287),

se percebe na teoria da ação comunicativa de Habermas – encontra-se na ideia de

que poderia haver um estado de comunicação no qual os jogos de verdade poderiam

circular sem obstáculos e sem efeitos coercitivos.

Para Foucault, não há sociedade sem relações de poder. Tais relações, contu-

do, não devem ser concebidas como alguma coisa má em si mesma, mas como estra-

tégias pelas quais os indivíduos tentam conduzir e determinar a conduta dos outros.

4 Utiliza-se a expressão “hermenêutica do sujeito” para designar uma série de pesquisas que se complementam e que caracterizam o eixo da reflexão ético-moral da história dos sistemas de pensamento. Tais pesquisas se encontram, por exemplo, nas obras: História da sexualidade 2: o uso dos prazeres (FOUCAULT, 2003); História da sexualidade 3: o cuidado de si (FOUCAULT, 2002); A hermenêutica do sujeito (FOUCAULT, 2004).

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A história dos sistemas de pensamento e as condições de possibilidade do discurso dos direitos humanos no Brasil hoje

Nessa perspectiva Foucault indica que, em vez de tentar dissolver as relações de

poder na utopia de uma comunicação perfeitamente transparente, deve-se atentar

para os princípios jurídicos, as técnicas de gestão, a moral, o êthos e a prática de si,

que permitirão, por meio dos jogos de poder e de verdade, jogar com um mínimo

possível de dominação (FOUCAULT, 2004, p. 264-287).

Percebe-se a proposta de uma nova ética fundada nas relações de poder que

se exercem com o mínimo de dominação. Foucault propõe um ponto de articulação

entre a preocupação ética e a luta política pelo respeito dos direitos fundamentais;

entre a reflexão crítica contra as técnicas abusivas de governo e a investigação ética

que permite instituir a liberdade individual.

Partindo-se da concepção arqueológica das práticas discursivas, ou seja, da

análise dos discursos constituintes de verdades e de subjetividades, é possível apre-

ender o poder normalizador dos fatos de discurso que forjaram a emergência das

ciências humanas (FOUCAULT, 1999b, p. XXI). Nesse sentido as ciências humanas

derivam de uma estratégia característica da modernidade dos séculos XVIII e XIX: a

invenção da racionalidade moderna, que se reflete na invenção do sujeito moderno

(FOUCAULT, 1999b, p. 438).

A razão moderna sedimenta a visão sistemática do mundo, em que a racionali-

dade implica ordem, coerência, certeza. Foucault considera que essa racionalidade,

que se pretende o método de acesso à verdade e a ferramenta de emancipação do

sujeito moderno, não passa de uma ritualização que mescla saberes e poderes nor-

matizados (institucionalizados) e normalizados (naturalizados) por meio de regras

válidas para toda a sociedade. Assim, as regras que passam a vincular as sociedades

e os sujeitos modernos revelam estratégias de poder que adquirem vulto a partir da

chancela da racionalidade científica (FOUCAULT, 2001).

Foucault demonstra que tal racionalidade não é imanente à natureza das coi-

sas, mas uma construção cultural que tem a função precisa de estabelecer determi-

nados modos de proceder, convenientes às demandas filosóficas, políticas e eco-

nômicas de uma conjuntura específica. É assim que o homem moderno, segundo

Foucault, desponta como uma invenção recente (1999b, p. 445), que já não se adapta

à modernidade tardia do século XXI.

Segundo Foucault, a história dos sistemas de pensamento busca determinar o

que deve ser o sujeito e a quais condições ele está submetido. Por meio de tal meto-

dologia indaga-se qual o status do sujeito, que posição ele deve ocupar na figuração

do real ou no imaginário para se tornar sujeito legítimo deste ou daquele tipo de

conhecimento (FOUCAULT, 2004, p. 234-239).

A história dos sistemas de pensamento busca, ainda, analisar os modos de

subjetivação e de objetivação que, segundo Foucault, se distinguem de acordo com o

tipo de saber em questão. Para Foucault, a objetivação e a subjetivação não são inde-

pendentes, uma vez que do seu desenvolvimento mútuo e da sua ligação recíproca

se originam “jogos de verdade” (2004, p. 234-239), ou seja, regras segundo as quais,

a respeito de certas coisas, aquilo que um sujeito pode dizer decorre da questão do

verdadeiro e do falso.

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adalbErto antonio batista arCElo

Assim a história dos sistemas de pensamento revela-se como a história da

emergência dos jogos de verdade em que o sujeito é colocado como objeto de saber

possível. Nesse sentido indaga-se pelos processos de subjetivação e de objetivação

que fazem com que o sujeito possa se tornar, na qualidade de sujeito, objeto de co-

nhecimento (FOUCAULT, 2004, p. 234-239).

Analisando a formação dos procedimentos pelos quais o sujeito é levado a se

observar, se decifrar e se reconhecer como campo de saber possível, Foucault pre-

tende estudar a constituição do sujeito como objeto para ele próprio.

Esse estágio de pesquisas, contudo, é a culminação de um projeto geral que se

iniciou com a análise do aparecimento e da inserção da questão do sujeito em domí-

nios e segundo a forma de um conhecimento científico, e prosseguiu com a análise

da constituição do sujeito enquanto objetivado por uma divisão normativa por meio

de práticas como as da psiquiatria e da penalidade.

Nos últimos trabalhos de Foucault a história dos sistemas de pensamento re-

vela-se como a história da subjetividade, ou seja, a história de como o sujeito faz

a experiência de si mesmo em um jogo de verdade, no qual se relaciona consigo

mesmo. Para tanto, Foucault propõe um ceticismo sistemático em relação a todos os

universais antropológicos e uma inversão do procedimento filosófico de remontar

ao sujeito constituinte (2004, p. 234-239).

Nesse sentido Foucault indica a necessidade de se analisar as práticas concre-

tas pelas quais o sujeito é constituído na imanência de um campo de conhecimento.

Foucault sustenta que isso não significa considerar que o sujeito não exista, abs-

traindo-o em benefício de uma “objetividade pura” (2004, p. 234-239). Trata-se, an-

tes, de fazer aparecer os processos próprios a uma experiência em que o sujeito e o

objeto se formam e se transformam um em relação ao outro e em função do outro.

Outro princípio de método destacado por Foucault para o empreendimento da

história dos sistemas de pensamento é dirigir-se, como campo de análise, às “práti-

cas” (2004, p. 234-239), ou seja, aos modos de agir e de pensar que dão a chave de

inteligibilidade para a constituição correlativa do sujeito e do objeto.

Pretende-se, a partir dos aportes da metodologia da história dos sistemas de

pensamento, analisar o discurso dos direitos humanos não como estrutura prático-

discursiva que diz o que é o sujeito a partir de um jogo particular de verdade, mas

como fatos de discurso em que os jogos de verdade não são simplesmente impostos

de acordo com uma causalidade necessária ou determinações estruturais. Tais jogos

refletem, ainda e principalmente, um exercício ético-subjetivo, uma relação de si

para consigo próprio.

Ciência do direito, discurso dos direitos humanos e história dos sistemas de pensamento

A história dos sistemas de pensamento proporciona a concepção do discurso

dos direitos humanos como uma prática discursiva inserida nos jogos estratégicos

de subjetividade e de verdade. Tal prática, a princípio, caracteriza-se como tecnolo-

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14 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 7-17, 2º sem. 2008

A história dos sistemas de pensamento e as condições de possibilidade do discurso dos direitos humanos no Brasil hoje

gia governamental, que pode se tornar um jogo estratégico entre liberdades, o que

condiz com o paradigma contemporâneo do Estado Democrático de Direito, ou pode

se tornar uma estratégia de dominação, condizente com as estruturas de poder cen-

tralizadas e autoritárias, em que a cultura política de direitos humanos, garantidora

da livre afirmação da identidade dos sujeitos constitucionais, encontra-se previa-

mente impossibilitada de ser exercida.

Propõe-se, no rastro do pensamento de Foucault, que a Ética, como prática

refletida da liberdade e como consequência do cuidado de si, seja o parâmetro para

que o discurso dos direitos humanos se efetive por meio dos jogos estratégicos en-

tre liberdades na sociedade brasileira contemporânea. A noção de governabilidade

proposta por Foucault implica a relação de si consigo mesmo (2004, p. 264-287). O

governo de si e dos outros a partir do cuidado de si indica o que Foucault chama de

“atitude de modernidade” (2000, p. 335-351): uma atitude de transfiguração através

de estratégias entre liberdades em que o alto valor do presente se mostra indissoci-

ável da obstinação de imaginar e transformar (FOUCAULT, 2000, p. 335-351). Nessa

perspectiva o homem moderno é aquele que busca inventar-se a si mesmo.

Arnaud et al. (1999, p. 271) definem os direitos humanos como o conjunto de

princípios e de normas fundamentadas no reconhecimento da dignidade inerente a

todos os seres humanos, visando a assegurar o seu respeito universal e efetivo.

Percebe-se que a expressão procede simultaneamente da Ética, pelos valores a

ela subjacentes, como os de justiça, de liberdade, de igualdade, de fraternidade ou

de solidariedade, e do Direito, pelo processo de reconhecimento e suas modalidades

de exercício, bem como dos sistemas de garantia implicados (ARNAUD et al., 1999,

p. 272).

Santos (2006, p. 433) considera que a forma como os direitos humanos se

transformaram, nas duas últimas décadas, na linguagem da política progressista e

em quase sinônimo de emancipação social causa alguma perplexidade. Para o soci-

ólogo, o fato de, após a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos terem sido

usados como parte integrante da política da Guerra Fria, colocou-os numa posição

de suspeita.

Contudo, perante a crise aparentemente irreversível dos projetos de emanci-

pação alternativos, como as práticas discursivas da revolução e do socialismo, os

jogos estratégicos entre liberdades comprometidos com a livre afirmação das iden-

tidades individuais e coletivas recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar

a linguagem da emancipação. Santos indica que os direitos humanos só poderão

ocupar, na contemporaneidade, o lugar de um projeto emancipatório com a adoção

de uma política de direitos humanos radicalmente diferente da hegemônica, uma

política que integre a composição de um complexo mais vasto de lutas pela emanci-

pação social (2006, p. 433).

Tais precauções revelam as concepções contraditórias e as violações em esca-

la global que tornaram o discurso dos direitos humanos altamente controverso na

atualidade (SANTOS, 2006, p. 437). Assim Santos demanda “uma nova arquitetura

de direitos humanos baseada numa nova fundamentação e com uma nova justifica-

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Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 7-17, 2º sem. 2008 15

adalbErto antonio batista arCElo

ção” (2006, p. 463). Para tanto, o sociólogo se pauta na arqueologia e na genealogia

foucaultianas para encontrar “a transcrição oculta das origens” (2006, p. 463), in-

dicando que a construção de uma concepção intercultural e contra-hegemônica de

direitos humanos implica um exercício epistemológico.

Os direitos humanos, enquanto estrutura prático-discursiva implicada na

construção de subjetividades, de verdades e de relações de poder compromissadas

com a dignidade da pessoa humana e com o Estado Democrático de Direito, despon-

tam atualmente como horizonte de sentido para a operatividade e para a legitimida-

de do Direito.

Nessa mirada as doutrinas jurídicas mais consistentes afirmam que “a políti-

ca jurídica utópica continua sendo direito” (DWORKIN, 1990, p. 488), uma vez que

qualquer reflexão sobre o Direito hoje deve atentar para “a pressão do direito além

do direito” (DWORKIN, 1990, p. 488).

A assimilação do discurso dos direitos humanos pela dogmática jurídica tra-

dicional, contudo, repercute as consequências de práticas discursivas hegemônicas

em uma sociedade específica, respondendo pela permanência de um imaginário nor-

malizado, oprimido e subserviente, em que o discurso dos direitos humanos, assimi-

lado ao formalismo caracterizador da concepção de ciência do direito prevalecente

até a primeira metade do século XX, parece assegurar um estatuto de não humanida-

de a determinados grupos em situação de vulnerabilidade social.

Outras vezes a estrutura discursiva dos direitos humanos emerge como o cul-

tivo de mentalidades e atitudes críticas, transgressoras em alguma medida, posto

que por esse ângulo os direitos humanos representam práticas discursivas abertas,

ou seja, não construídas, mas em construção e reflexivas.

Essa condição de possibilidade emancipadora e emancipatória do discurso

dos direitos humanos só pode ser consistentemente sustentada a partir de uma

perspectiva expandida, ou seja, interdisciplinar, senão transdisciplinar, do fenôme-

no jurídico, pois do contrário a tensão entre a segurança e a ordem jurídicas, de um

lado, e os direitos humanos, de outro, ficaria omitida pela redundância do discurso

jurídico oficial, que pretende sustentar que a garantia dos direitos humanos está na

preservação da segurança e da ordem jurídicas.

O discurso dos direitos humanos se apresenta atualmente como uma possi-

bilidade factível de reestruturação dos processos de subjetivação, seja por meios

institucionais derivados do poder político estatal, seja pelo saber científico que con-

forma, por exemplo, o Direito, a Ética e a Política, seja pelos movimentos sociais,

organizados ou não, que remetem às tecnologias de governo pautadas no cuidado

de si e dos outros.

No que concerne especificamente ao Direito, faz-se oportuno situar a ciência

do direito no paradigma da complexidade ou, em uma perspectiva técnico-jurídica,

no paradigma do Estado Democrático de Direito. A ciência do direito, nesse sentido,

deve ser considerada como discurso de fundamentação e de aplicação do Direito,

uma produção teórica de conhecimento que objetiva materializar seus jogos de po-

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16 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 7-17, 2º sem. 2008

A história dos sistemas de pensamento e as condições de possibilidade do discurso dos direitos humanos no Brasil hoje

der e de verdade em sociedades, grupos e sujeitos específicos. Isso porque a ciência

do direito hoje só tem sentido se concebida como ciência social aplicada.

Assim, a efetividade do discurso dos direitos humanos, enquanto permanente

processo de empoderamento individual e coletivo, implica a demanda por uma ciên-

cia do direito engajada na constituição de capital humano e social para uma socieda-

de específica. Para tanto, a ciência do direito deve se reestruturar, tendo como eixo

central a cultura política de direitos humanos.

Nesse panorama a concretização do princípio constitucional da dignidade da

pessoa humana reitera a permanente necessidade de livre afirmação das identidades

individuais e coletivas. Essa afirmação, segundo Foucault, demanda uma “ontologia

crítica de nós mesmos” (2000, p. 335-351), o que não deve ser considerado “um cor-

po permanente de saber que se acumula”, mas “uma atitude, (...) uma via filosófica

em que a crítica do que somos é simultaneamente a análise histórica dos limites

que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem possível” (FOUCAULT, 2000, p.

335-351).

Conclusão

O pluriperspectivismo da história dos sistemas de pensamento, ao possibilitar

o questionamento sobre o que deve ser o sujeito de direito e sobre quais condições

esse sujeito está submetido na sociedade brasileira atual, indica condições de possi-

bilidade alternativas para a efetividade do discurso dos direitos humanos no Brasil

contemporâneo.

Essas condições emergem como propícias à ressignificação da Ética, aqui con-

siderada um complexo de jogos estratégicos entre liberdades, ou seja, uma tecnolo-

gia de governo fundada no cuidado de si e dos outros. Nessa perspectiva as relações

de poder que caracterizam a dinâmica das sociedades complexas sob o paradigma

do Estado Democrático de Direito devem indicar a liberdade de autoconstituição dos

sujeitos de direito.

Assim a dignidade humana, enquanto caracterizadora da efetividade do dis-

curso dos direitos humanos através dos processos de superação das necessidades

individuais e coletivas a partir da afirmação das identidades individuais e coletivas,

implica a tarefa ético-moral de elaborar-se a si mesmo por meio do cuidado de si e

dos outros.

A Filosofia do Direito nas sociedades complexas viabiliza-se pela articulação

da preocupação ética com a luta política pelo respeito dos direitos de todos e de to-

das. Nesse sentido demanda-se a complementaridade crítico-heurística entre a Ética,

a Política e a Ciência, ou seja, entre a subjetividade, o poder e o saber.

A cultura política de direitos humanos, como estrutura de pensamento con-

temporânea apta a concretizar o valor do justo, destaca-se como compromisso prio-

ritário da Filosofia do Direito no paradigma do Estado Democrático de Direito. Isso

porque, confirmada a hipótese de que o discurso dos direitos humanos revela con-

dições de possibilidade normalizadoras e emancipatórias, as práticas discursivas

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adalbErto antonio batista arCElo

dos direitos humanos, filtradas pela teoria do Direito e aplicadas socialmente pelas

instituições político-jurídicas, devem refletir uma atitude de modernidade, ou seja,

uma ação ética e crítica em que o eu e o outro se afirmam como um povo livre e

responsável.

Nessa perspectiva a Filosofia do Direito contemporânea tem o objetivo pri-

mordial de imaginar e construir conceitualmente alternativas à situação de naturali-

zação do atual estado de exceção que caracteriza a sociedade brasileira.

Referências

ARNAUD, André-Jean et al. Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999b.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 7. ed. São Paulo: Loyola, 2001.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999a.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. 10. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002.

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. (Ditos e escritos; 2).

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MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.

RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.

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Justiçatransicional,direitoshumanoseaseletividadedoativismojudicialnoBrasil(Transitional justice, human rights and the selectivity of judicial activism in Brazil)

alExandrE Garrido da silva* josé ribas viEira**

R E S U M OO artigo pretende estudar as relações entre a justiça transicional, ainternacionalização dos direitos humanos e o caráter seletivo do ativismojudicial noBrasil. Em primeiro lugar, o artigo analisará as dimensões dajustiça transicional. Em segundo lugar, com apoio na obra de Jon Elster,serãodiscutidasasprincipaismotivações,instituições,decisõeselimitaçõesimpostasàjustiçatransicional.Porúltimo,apósaanálisedecasosjurídicos,serão problematizados os principais fatores responsáveis pela seletividadedoativismojudicialemmatériadejustiçatransicionalnocontextojurídico-políticobrasileiro.

P A L A V R A S - C H A V EJustiça transicional; Direitos humanos; Judicialização da política; Ativismojudicial;Tortura.

A B S T R A C TThisarticle intends to study the relationsbetween transitional justice, theinternationalizationofhumanrightsandtheselectivecharacterof judicialactivism inBrazil.First, it analyzes thedimensionsof transitional justice.Then,onthebasisofJonElster’swork,themainmotivations, institutions,decisionsandlimitationsimposedtotransitionaljusticearediscussed.Finally,after an analysis of juridical cases, the main factors responsible for theselectivityofjudicialactivismrelatedtotransitionaljusticeintheBrazilianpoliticalandjuridicalcontextareconsidered.

K E y w O R D STransitional justice; Human Rights; Judicialization of politics; Judicialactivism;Torture.

∗ Doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), bolsista de pesquisa em doutorado pelo CNPq.

∗∗ Professor associado de Direito do Estado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor titular de Direito Constitucional na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

O tema da justiça transicional, retroativa ou reparadora (transitional justice),

vem ganhando destaque no debate jurídico nos últimos anos na América Latina. O

caso Barrios Altos no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no qual

o Estado peruano foi responsabilizado pelo massacre de dissidentes políticos do

regime autoritário de Alberto Fujimori,1 bem como por ter anistiado de modo uni-

lateral tais delitos, a importante decisão da Suprema Corte de Justiça da Argentina,

proferida no ano de 2005, sobre a inconstitucionalidade das Leis do Ponto Final e

da Obediência Devida2 e a repercussão do caso Pinochet em termos de justiça in-

ternacional, contribuíram, sem dúvida, para o ingresso de tal temática nos fóruns

jurídicos. Antes, as demandas sobre justiça transicional eram discutidas – tanto do

ponto de vista teórico quanto prático – quase exclusivamente por militantes e atores

políticos, cientistas sociais e historiadores.

Após vinte anos da promulgação de nosso texto constitucional, mesmo com

a estruturação de planos, secretarias e comissões pelo Poder Executivo destinados

à garantia e promoção dos direitos humanos em suas múltiplas dimensões, a pro-

mulgação de importantes leis que representam um avanço significativo no tema,3

assim como o reconhecimento e a incorporação de normas internacionais de direitos

humanos ao longo dos anos 1990,4 violações sistemáticas de tais direitos persistem

e se intensificam atualmente na sociedade brasileira. A realidade constitucional bra-

sileira, com a exceção de relevantes avanços pontuais no que se refere à sua efeti-

vidade, permanece essencialmente “simbólica”, muito distanciada das pretensões

normativas do texto constitucional em matéria de garantia e promoção dos direitos

humanos e fundamentais (NEVES, 2007).

Como exemplos, podemos citar as reiteradas violações de direitos humanos

praticadas pelas instituições policiais nos grandes centros urbanos, a persistência

de trabalho escravo em pleno século XXI, as diferentes formas de discriminação,

veladas ou não, com apoio em critérios de raça, opção sexual, gênero e deficiência,

a criminalização das lutas pela reforma agrária e a violência praticada sistematica-

mente contra as populações indígenas. Além disso, recentes relatórios de organiza-

ções internacionais de direitos humanos apontam para a persistência, a aceitação

1 Caso Chumbipuma Aguirre y otros vs. Peru, Corte Interamericana de Direitos Humanos, sentença proferida em 14 de março de 2001.

2 CSJN, Simón, Julio Héctor y otros, Causa n. 17.768, decisão de 14 de junho de 2005.

3 Criação em 1996 do Programa Nacional de Direitos Humanos (Decreto 1.904/96) e da Secretaria Nacional de Direitos Humanos no ano de 1998. Criação, em 1995, da Comissão Especial de Reconhecimento dos Mortos e Desaparecidos Políticos com a promulgação da Lei 9.140/95. Criação, pelo governo Lula, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, ambas com status ministerial. Atribuição de status ministerial, também, à Secretaria Nacional de Direitos Humanos, agora com o nome de Secretaria Especial de Direitos Humanos (http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/). Aprovação pelo Congresso e promulgação da Lei 11.340/2006, conhecida como a “Lei Maria da Penha”.

4 Os Pactos Internacionais sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foram aprovados pelo Decreto Legislativo nº 226 de 1991 e promulgados, respectivamente, pelos Decretos nº 592 e nº 593 de 1992. A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº 27 de 1992 e promulgada pelo Decreto nº 678 de 1992.

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alExandrE Garrido da silva|josé ribas viEira

e a difusão do emprego de tortura pelas instituições responsáveis pela repressão

estatal.5 Ao lado de tais graves problemas, tivemos ao longo desse período, com a

contribuição – por via omissiva – dos principais meios de comunicação de massa, a

construção de uma “política do esquecimento” no tocante às pretensões de busca

pela verdade, resgate da memória, condenação e reparação dos delitos cometidos

por militares e burocratas civis vinculados ao regime autoritário no Brasil. Criou-

se, assim, a ideia de reconciliação como esquecimento e, consequentemente, como

impunidade.

Em primeiro lugar, o presente artigo abordará as principais dimensões da jus-

tiça transicional, segundo uma perspectiva normativa. Em segundo lugar, com apoio

em importante obra de Jon Elster (2006) sobre o tema, serão estudadas as motiva-

ções, as instituições, as decisões e as limitações impostas à justiça transicional se-

gundo uma perspectiva descritiva. Em seguida, a partir da análise e problematização

de casos jurídicos na Argentina e no Brasil, serão discutidos os temas da interna-

cionalização dos direitos humanos, da judicialização da megapolítica e do Estado

de Exceção e sua relação com a temática sobre a justiça de transição no contexto

político-jurídico brasileiro. Finalmente, será discutida e defendida a tese acerca do

caráter essencialmente seletivo, ainda hegemônico, do ativismo judicial no tocante,

especialmente, ao tema da justiça transicional no âmbito do Poder Judiciário brasi-

leiro.

As dimensões da justiça transicional

A justiça transicional (ou “justiça retroativa”) abarca os diferentes enfoques

utilizados pelas sociedades para enfrentar as consequências de abusos generaliza-

dos ou sistemáticos em matéria de direitos humanos, tendo em vista a sua transição

a partir de um período de opressão ou de conflitos violentos para uma etapa de paz,

democracia, predomínio do Estado de Direito e de respeito aos direitos individuais

e coletivos6 (Relatório ICTJ, p. 2).

Segundo Jon Elster, “a justiça transicional é composta pelos processos de ju-

ízos, expurgos e reparações que têm lugar no período de transição de um regime

político para outro” (2006, p. 16). Nesse período de transição politicamente turbu-

lento surgem os seguintes problemas práticos que necessitam ser resolvidos em um

curto espaço de tempo: (a) como fazer com que os líderes do regime político anterior

“prestem contas” de seus atos políticos e, também, dos crimes cometidos e impedir

que continuem exercendo influência política relevante no futuro? (b) Como construir

um novo – e melhor – regime político? (c) O que fazer com as vítimas do regime po-

lítico anterior? (d) Como conciliar a busca por justiça – rápida, ágil e severa com os

criminosos – com a reestruturação econômica e política da sociedade?

5 Por exemplo, o relatório da organização não governamental Human Rights Watch divulgado em janeiro de 2007. Disponível em: http://hrw.org/portuguese/.

6 Cf. Relatório das atividades do Centro Internacional para Justiça Transicional (Relatório ICTJ) no período 2004-2005. Disponível em www.ictj.org.

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Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

De acordo com a perspectiva transicional de justiça, “não reconhecer os abu-

sos do passado pode perpetuar conflitos ingovernáveis. As estratégias de consolida-

ção da paz devem basear-se no exame rigoroso das causas subjacentes e dos efeitos

derivados de conflitos anteriores” (Relatório ICTJ, p. 4). As violações dos direitos

humanos não constituem uma propriedade exclusiva de sociedades pobres, em de-

senvolvimento ou que enfrentaram recentemente um processo de transição política

em direção à democracia. Segundo tal perspectiva de justiça, os desafios globais

presentes na atualidade exigem que enfrentemos a história oculta das injustiças em

democracias consolidadas com o mesmo vigor com o qual atacamos os abusos em

sociedades que emergem de um conflito ou ditadura7 (Relatório ICTJ, p. 7).

A justiça, em sua dimensão transicional, pressupõe uma confrontação com o

passado e apoia-se no pleno reconhecimento da universalidade dos direitos huma-

nos, exigindo, assim, que os Estados detenham, investiguem, castiguem, reparem e

impeçam futuras violações de tais direitos em seus territórios.

Nesse sentido, as principais dimensões da justiça transicional são:

1) Julgamento dos responsáveis pelos abusos em matéria de direitos humanos

nos planos nacional e internacional;

2) Determinação do caráter e da magnitude total dos abusos do passado através

de iniciativas que busquem a verdade, tais como “comissões da verdade”

nacionais e internacionais;

3) Reparações compensatórias, restauradoras, reabilitadoras e simbólicas às

vítimas do regime político anterior. Essa dimensão envolve as seguintes di-

ficuldades: definir conceitos e objetivos de modo claro, abordar as questões

financeiras e responder de modo equitativo às diferentes classes de viola-

ções dos direitos humanos;

4) Reformas institucionais que incluam, por exemplo, a “depuração adminis-

trativa”, isto é, “o processo de exclusão de pessoas de cargos públicos sobre

as quais se tem conhecimento da prática de abusos em matéria de direitos

humanos ou participado em práticas de corrupção” (Relatório ICTJ, p. 2);

5) Promoção de reconciliação em comunidades divididas, o que inclui trabalhar

com as vítimas em mecanismos de justiça tradicional e facilitar a reconstru-

ção social8 (Relatório ICTJ, p. 13);

6) Construção de monumentos e museus para preservar a memória sobre o

passado;

7 Nesse sentido, podemos citar o caso canadense das escolas residenciais responsáveis pela aculturação da população indígena Inuit, bem como o caso da morte de cinco manifestantes por adeptos da Ku Klux Klan e do neonazismo na cidade de Greensboro na Carolina do Norte (EUA). Confira também o excelente artigo de Ramona Vijeyarasa sobre a busca por verdade e reconciliação a partir de 1995 para as “gerações roubadas” na Austrália (VIJEYARASA, 2007, p. 129-151).

8 A reconciliação legítima deve distinguir-se dos esforços para usar a reconciliação como um elemento que substitua a justiça. Não pode haver desigualdades na distribuição dos ônus da reconciliação. Os esforços de reconciliação não devem preconizar uma “amnésia forçada”, mas, pelo contrário, um processo que confronte abertamente o passado.

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alExandrE Garrido da silva|josé ribas viEira

7) Consideração da questão de gênero com o objetivo de melhorar a justiça para

as mulheres que foram vítimas de violações dos direitos humanos.

A implementação das dimensões da justiça transicional é atravessada por uma

tensão permanente entre fato e norma, ou seja, entre as condições objetivas (polí-

ticas e econômicas, por exemplo) existentes na sociedade e os ideais de verdade,

reparação e reconciliação propugnados pela justiça de transição. Uma dimensão par-

ticularmente controversa é a que se refere à reconciliação das forças antagônicas de

cada país. Na América Latina, em particular, o termo “reconciliação” tem sido utiliza-

do como argumento pragmático para justificar a ausência ou limitação de medidas

de justiça, verdade, reparação das vítimas e punição dos responsáveis (MEZAROBBA,

2007, p. 171). Segundo Juan Méndez, “a reconciliação é um objetivo fundamental de

qualquer política de justiça de transição porque o que não queremos é que se repro-

duza o conflito” (MEZAROBBA, 2007, p. 171).

A justiça transicional em perspectiva histórica: a tensão entre fato e norma para a consolidação da democracia

No tópico anterior a justiça transicional foi apresentada de um modo pres-

critivo ou normativo, ou seja, destacando-se os objetivos e ideais inscritos em suas

diferentes dimensões. Jon Elster, seguindo perspectiva distinta, propõe um estudo

positivo ou descritivo do tema, afastando-se, assim, da tentativa teórica de desen-

volver uma teoria da justiça transicional com pretensões universalizantes.

Na segunda parte da obra Closing the books: transitional justice in histori-

cal perspective, Elster desenvolve uma teoria analítica – não normativa – da justiça

transicional ao estudar os seus principais padrões de variação ao longo do tempo em

diferentes sociedades e momentos históricos decisivos. Segundo o autor, a análise

da justiça transicional é parte de um “estudo empírico da justiça” (ELSTER, 2006, p.

100). As variáveis estudadas pelo autor, importantes para a explicação da forma e do

grau de intensidade assumidos pelo processo de justiça transicional em diferentes

países e momentos históricos, são as seguintes:

A motivação da justiça

Para Jon Elster, a motivação dos agentes que promovem o processo de

“reparação” ou “prestação de contas” baseia-se em uma tríade integrada pela

(a) razão como concepção de justiça, (b) interesse e (c) emoção. A ideologia

política é um componente que sintetiza os três elementos (razão + interesse +

emoção). De acordo com o autor, “na justiça transicional, o desejo de vingança

de base emocional pode, em certo sentido, ser mais forte do que o desejo de

que se faça justiça de modo imparcial” (2006, p. 103).

As instituições da justiça

A justiça transicional pode assumir diferentes formas institucionais, mais ou

menos legais, percorrendo um espectro, com a justiça política pura em um

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24 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 19-46, 2º sem. 2008

Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

extremo e a justiça legal pura em outro. Os dois “tipos ideais” (no sentido

weberiano) de institucionalização da justiça transicional são:

(a) justiça política pura: ocorre quando o Poder Executivo do novo governo

(ou potência ocupante), de modo unilateral e sem possibilidade de apela-

ção, decide quem são os criminosos e o que deverá ser feito com eles. A

justiça política pura assume, em regra, a forma de uma “justiça orques-

trada”, isto é, uma modalidade de justiça política pura com “aparência de

legalidade”, cuja principal característica consiste na certeza de que o resul-

tado do julgamento encontra-se definido de antemão.

(b) justiça legal pura: seus pressupostos são a independência e a imparciali-

dade do Poder Judiciário, a definição de regras “claras” a serem aplicadas,

o respeito ao devido processo legal e a incerteza do resultado. Segundo Jon

Elster, com apoio em boas ou más razões, a história tem demonstrado que

“estes requisitos são violados sistematicamente no âmbito da justiça tran-

sicional” (2006, p. 109). Constituem, ainda, requisitos da justiça legal pura

as audiências públicas, o direito de escolher um advogado, o direito de

apelação, a observância do princípio da irretroatividade da lei, o respeito

aos prazos de prescrição, a individualização da culpabilidade, a presunção

de inocência, dentre outros.

Até que ponto a justiça transicional se aproxima de um dos dois tipos ideais

explicitados acima depende do tipo de sociedade e da natureza da situação. As tran-

sições políticas ocorrem em contextos históricos e institucionais excepcionais, de

tal modo que, inclusive em sociedades acostumadas com a “observância da lei”, um

ou mais critérios da justiça legal pura foram violados em período de justiça transi-

cional.

O principal critério para análise do caráter minimamente legal da institucio-

nalização da justiça de transição é a existência de relativa incerteza sobre os resul-

tados dos julgamentos levados a termo pelos órgãos competentes para tanto, que,

em regra, são os tribunais. Elster aplica, assim, à justiça transicional a característica

fundamental dos regimes democráticos apontada por Adam Przeworski (1999): em

uma democracia ninguém pode estar completamente certo ex ante de que seu par-

tido vencerá as eleições. No mesmo sentido, a “depuração administrativa”, outra

dimensão da justiça de transição, apenas se aproxima da justiça legal quando as san-

ções impostas aos membros da burocracia estatal ligada ao regime político anterior

podem ser revistas pelos tribunais.

As decisões da justiça transicional

O resultado da justiça transicional consiste em uma série de decisões legis-

lativas, administrativas e judiciais. Evidentemente, muitas dessas decisões não são

tomadas levando-se em consideração todas as opções existentes ou idealmente

possíveis. Nas transições políticas negociadas, em especial, nem todas as opções

– sobretudo aquelas consideradas mais radicais pelos detentores do poder – são

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alExandrE Garrido da silva|josé ribas viEira

discutidas como requisito para a “entrega” ou “transmissão” do poder político aos

representantes recém-eleitos.

Nas transições negociadas, os líderes ou grupos políticos até então dominan-

tes podem excluir algumas opções como condição necessária para a passagem do

poder político, como, por exemplo, a manutenção do sigilo de documentos estatais

referentes ao período em que estiveram no poder por tempo determinado ou não,

assim como a aprovação de leis de anistia ou, ainda, a simples decretação unilateral

de autoanistia pelo Poder Executivo. Em um contexto de transição política, a justiça

transicional envolve uma série de decisões substantivas e procedimentais que, nas

palavras de Jon Elster, são, a um só tempo, “dramáticas e traumáticas” do ponto de

vista político (2006, p. 142):

Decisões substantivas: (a) ocupar-se ou não com os crimes do passado? Em

caso afirmativo: (b) quais são os crimes e quem são os criminosos? (c) O que

fazer com eles? (d) O que fazer com os funcionários públicos que colaboraram

com o regime anterior? (e) Como compensar ou reparar os danos sofridos

pelas vítimas?

Decisões procedimentais que afastam a justiça transicional do modelo

legal puro: (a) detenções ilegais; (b) presunção de culpabilidade; (c) seleção

parcial de jurados e magistrados; (d) ausência ou insuficiência de procedimentos

contraditórios; (e) ausência de apelação; (f) seleção arbitrária de acusados; (g)

constituição de tribunais especiais; (h) legislação retroativa; (i) extensão ou

redução dos prazos de prescrição; (j) justiça demorada ou acelerada.

As decisões substantivas referem-se a quem o novo regime deve julgar, san-

cionar e reparar e, ainda, como deverá fazê-lo. Além disso, a justiça de transição

abarca certas decisões procedimentais que a afastam do tipo ideal, anteriormente

visto, da justiça legal pura, principalmente no tocante ao princípio da irretroativi-

dade das leis (nulla poena sine lege) para o processamento e a punição de crimes

cometidos no período político anterior.

Dentre as decisões elencadas acima, a primeira questão – e a mais fundamen-

tal – é se o novo regime irá ou não ocupar-se com os crimes cometidos no passado.

No Brasil, com a promulgação da Lei de Anistia (Lei 6.683/79) durante o último

governo militar do general João Batista Figueiredo, assim como o exemplo da auto-

anistia outorgada pelos próprios militares no Chile, a resposta à referida questão

foi negativa. A Lei de Anistia foi interpretada e aplicada de modo a ampliar os seus

efeitos para abarcar, também, militares e policiais envolvidos com a violação de

direitos humanos contra opositores políticos do regime. De modo geral, os meios

de comunicação de massa não conferiram destaque às questões sobre a busca pela

verdade, os pleitos e a situação dos familiares de desaparecidos políticos e a ne-

cessidade de reparação para as vítimas da ditadura.

Com relação à luta de perseguidos políticos e de familiares de mortos e

desaparecidos políticos pela memória da ditadura, em 1995 foi promulgada, pelo

então presidente Fernando Henrique Cardoso, a Lei 9.140/95, responsável pela

criação da Comissão Especial de Reconhecimento dos Mortos e Desaparecidos

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Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

Políticos (CEMDP), por intermédio da qual o Estado brasileiro reconheceu a sua

responsabilidade no assassinato de 136 pessoas desaparecidas por razões políticas

(SANTOS, 2007, p. 34 et seq.).

No ano de 2003 o presidente Luís Inácio Lula da Silva criou uma comissão

interministerial com o objetivo de obter informações sobre os corpos de desapare-

cidos políticos durante a guerrilha do Araguaia.9 Os objetivos da comissão consisti-

ram na responsabilidade de restituir às famílias os restos mortais de desaparecidos

políticos que fossem encontrados e estabelecer a versão oficial do Estado brasileiro

acerca dos acontecimentos. Os trabalhos da comissão foram desenvolvidos, porém,

sob duas condições impostas pelos militares: em primeiro lugar, as informações

eventualmente encontradas não seriam utilizadas para a proposição e justificati-

va pelo governo de uma eventual revisão da Lei de Anistia. Em segundo lugar, na

busca pelos corpos dos desaparecidos políticos da guerrilha do Araguaia deveriam

ser mantidas em sigilo as identidades das fontes de informação no âmbito das For-

ças Armadas. Como resultado das atividades das comissões supramencionadas, foi

publicado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos no ano de 2007 o relatório

intitulado “Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desa-

parecidos Políticos”.10

No entanto, anos após a redemocratização do país, tanto o governo de Fer-

nando Henrique Cardoso quanto o de Luís Inácio Lula da Silva foram responsáveis

pela promulgação de decretos que estenderam por prazo indeterminado o caráter

sigiloso de documentos oficiais considerados “altamente secretos”, vindo a ser tal

matéria, posteriormente, disciplinada em lei e promulgada pelo atual governo, que

invoca, como o seu antecessor, a segurança da sociedade e do Estado como justifica-

tiva para a manutenção do caráter sigiloso de tais documentos.11

Limitações impostas à justiça transicional

Jon Elster enumera três limitações fundamentais à efetivação da justiça transi-

cional: em primeiro lugar, a questão das cláusulas ou leis de anistia como condição

política necessária para a transição negociada e a consolidação do novo regime po-

lítico. Em situações extremas, em regra em regimes militares autoritários, a transfe-

rência pacífica do poder político e, principalmente, a sua consolidação, dependem,

em grande medida, de uma limitação contextual das pretensões normativas erguidas

pelas diferentes dimensões da justiça transicional. Em segundo lugar, a existência

de limitações econômicas e administrativas para a implementação das diferentes

dimensões da justiça de transição já analisadas. Essa limitação pode ser sintetizada

9 Decreto nº 4.850/03.

10 Disponível em http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh.

11 Cf. Lei nº 11.111/2005 (disciplina o acesso aos documentos públicos); Decreto nº 5.301/2004, assinado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva; Decreto nº 4.553/2002 (que dispõe sobre a classificação segundo o grau de sigilo de documentos no interesse da segurança da sociedade e do Estado, assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso); Lei nº 8.159/1991 (que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados).

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alExandrE Garrido da silva|josé ribas viEira

na seguinte pergunta dramática: “reconstruir ou punir”? Por último, há também o

problema da existência de aspirações incompatíveis em um cenário de escassez de

tempo e de recursos, ou seja, é impossível alcançar, de uma só vez, uma justiça ve-

loz, ágil, severa, justa, exaustiva e eficaz (ELSTER, 2006, p. 247).

Como a justiça de transição é, conforme vimos, fortemente marcada pela car-

ga emotiva dos atores envolvidos, o fator tempo também se revela como uma im-

portante limitação das pretensões normativas da justiça transicional, pois, como

ressalta Jon Elster, “o desejo de retribuição diminui se é demasiado longo o intervalo

entre os crimes e a transição, e também se passa muito tempo entre a transição e os

julgamentos dos crimes” (2006, p. 260).

Com relação ao Poder Judiciário, assevera o autor que “em muitos casos, o

Poder Judicial fez parte do regime que deve ser julgado”, constituindo a escassez

de juízes “confiáveis” uma limitação muito importante para a justiça de transição

rumo a um regime democrático (2006, p. 249). Um caso emblemático é o da Alema-

nha após a derrota do nacional-socialismo em 1945, oportunidade na qual “o Poder

Judicial alemão caracterizou-se particularmente por sua atitude obstrucionista ante

os crimes cometidos pelos criminosos nazistas, incluídos (especialmente) os juízes

nazistas” (ELSTER, 2006, p. 249). No âmbito da justiça transicional, especialmente

em contextos políticos marcados pela transição negociada (Brasil, Argentina e Chile,

por exemplo), os tribunais e as legislaturas constituem fontes de incerteza quanto

à manutenção dos termos pactuados entre as forças políticas antagônicas ao tempo

da transição do regime.

Nesse sentido, nada impede que, no futuro, diante de uma situação de con-

solidação das instituições democráticas, a corte suprema e os tribunais inferiores

venham a invalidar os termos da negociação ao tempo da transição, materializados

“juridicamente” em decretos de autoanistia ou em leis sobre anistia política com a

pretensão de manter a impunidade de políticos, militares e burocratas vinculados

ao regime anterior.

Conforme veremos adiante, essa parece ser a situação atual no caso da Argen-

tina, concretizada em importante decisão da Suprema Corte de Justiça da Argentina

no ano de 2005 sobre a inconstitucionalidade das leis sobre o “Ponto Final” e a “Obe-

diência Devida” e que, por diferentes fatores analisados adiante, não vem sendo

perfilhada, na mesma intensidade, pelo Poder Judiciário brasileiro sobre o tema.

Justiça transicional e a internacionalização dos direitos humanos

Com o objetivo de conferir maior concretude à análise da justiça transicio-

nal, serão abordados casos jurídicos e uma pesquisa empírica referentes às reali-

dades argentina e brasileira. Em primeiro lugar, será abordada a recente decisão da

Suprema Corte de Justiça da Nação Argentina sobre a inconstitucionalidade, com

suporte em normas internacionais de direitos humanos, das leis de anistia promul-

gadas durante o processo de redemocratização do país durante o governo de Raul

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Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

Alfonsín, concebidas à época como instrumentos de “pacificação” e de “reconcilia-

ção” indispensáveis para a consolidação do novo regime político. Esse importante

ponto relaciona-se com a afirmação de Jon Elster, analisada anteriormente, sobre o

papel desempenhado pelos tribunais e legislaturas como fontes de incerteza para

a manutenção, no futuro, dos acordos políticos pactuados no período de transição

política.

Em seguida, com apoio em pesquisa empírica realizada com juízes e desem-

bargadores do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (Cf. CUNHA, 2005, p.

139-172), discutir-se-á como o desconhecimento do funcionamento dos sistemas

internacionais de proteção dos direitos humanos da ONU e OEA, do conteúdo das

decisões de suas cortes internacionais de justiça, assim como o baixo índice de uti-

lização das convenções internacionais de repúdio e combate à tortura, contribuem,

em grande medida, para a seletividade do ativismo judicial brasileiro em matéria de

justiça transicional.

Por último, serão apresentados diferentes posicionamentos doutrinários sobre

os polêmicos temas acerca da revisão da Lei de Anistia e da abertura e publicação

dos documentos altamente secretos referentes ao período militar de nossa recente

história política.

A reabertura pelo Poder Judiciário dos processos pelos crimes da ditadura militar argentina

Em 14 de junho de 2005, a Corte Suprema de Justiça da Nação da Argentina

declarou a inconstitucionalidade das leis do Ponto Final (23.492) e de Obediência De-

vida (23.521), que impediam a punição dos crimes contra a humanidade cometidos

pela ditadura militar argentina entre os anos de 1975 e 1983.

O objetivo das leis do Ponto Final e da Obediência Devida foi o de anistiar os

oficiais em postos de níveis médio e baixo na hierarquia militar. O principal argu-

mento apresentado à opinião pública no período da redemocratização considerou

tal medida como necessária para a promoção da paz social e da reconciliação nacio-

nal. Em 1987,12 pela primeira vez a Corte Suprema de Justiça da Argentina analisou a

constitucionalidade das referidas leis, oportunidade em que as declarou constitucio-

nais com fundamento no argumento de que não caberia ao Poder Judiciário avaliar

a conveniência dos meios escolhidos pelo Poder Legislativo e pelo Executivo em

questões eminentemente políticas. Caberia aos tribunais, segundo o entendimento

majoritário, acatar a ponderação de interesses realizada pelo legislador no momento

da elaboração das leis mencionadas. Nessa oportunidade, em plena redemocratiza-

ção, a Corte assumiu uma postura clara de self-restraint, evitando adentrar no mérito

e revisar o acordo político firmado entre os diferentes grupos de interesse na socie-

dade naquele momento excepcional de transição política.

12 CSJN, decisão de 22 de junho de 1987.

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alExandrE Garrido da silva|josé ribas viEira

Após a incorporação dos tratados de direitos humanos à Constituição argen-

tina em 1994 com status de norma constitucional,13 a Corte Suprema da Nação Ar-

gentina passou a firmar um entendimento distinto, no sentido de que “as obrigações

de hierarquia constitucional assumidas diante da comunidade internacional, cujo

alcance foi definido ao longo do tempo, limitam o poder do direito interno de per-

doar ou omitir a punição dos fatos que constituem graves violações aos direitos

humanos” (GUEMBE, 2005, p. 122). Em 1998, após o julgamento pela Corte Interame-

ricana de Direitos Humanos do caso Velásquez Rodríguez, no qual foi estabelecida

a obrigação dos Estados-membros de prevenir, investigar e punir as violações de

direitos humanos,14 a Suprema Corte reconheceu o dever do Estado de investigar os

fatos e delitos ocorridos durante a ditadura, sendo estabelecido, assim, um direito

à verdade. Em seguida, passaram a ser abertos nas instâncias inferiores processos

de busca pela verdade em todo o país. Nos anos seguintes, progressivamente, os tri-

bunais inferiores começaram a declarar a nulidade das leis e a reabrir processos por

violações dos direitos humanos cometidas durante a ditadura militar, que haviam

permanecido arquivados por aproximadamente duas décadas.

No ano de 1998, pressionado política e socialmente, o Congresso Nacional de-

cidiu pela revogação das leis do Ponto Final e da Obediência Devida, mas o entendi-

mento predominante, em nome da segurança jurídica, restringiu os efeitos da revo-

gação somente para o futuro, não sendo aplicáveis às decisões anteriores à mesma.

Anos depois, em 2005, a Corte Suprema argentina decidiu – adotando uma postura

abertamente internacionalista em matéria de direitos humanos – que os tribunais

deveriam adotar as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos como

paradigma interpretativo, além do informe nº 28/92 da Comissão Interamericana de

Direitos Humanos. Segundo a recomendação da Comissão,

o fato de os processos criminais por violações dos direitos humanos – desa-

parecimentos, execuções sumárias, tortura, sequestros – cometidos por mem-

bros das Forças Armadas terem sido cancelados pelas leis (...) e pelo Decreto

1002/89, constitui violação aos direitos garantidos pela Convenção, e (...) que

tais dispositivos são incompatíveis com o artigo 18 (direito à justiça) da Decla-

ração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e com os artigos 1º, 8º e 25

da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. (GUEMBE, 2005, p. 131)

A Corte Suprema, em sintonia com as decisões e recomendações das organiza-

ções internacionais, também buscou fundamentar a sua decisão com apoio nas dire-

trizes do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, segundo o qual, “quando

funcionários públicos ou agentes do Estado cometeram violações dos direitos esta-

belecidos pelo Pacto (...) os Estados-parte não podem eximir os autores de sua res-

ponsabilidade pessoal, como ocorreu com determinadas anistias” (GUEMBE, 2005,

p. 132-133).

13 Art. 75, inciso 22 da Constituição Argentina.

14 Corte IDH, sentença de 29 de julho de 1998, série C, n. 4.

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Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

Nesse sentido, a Suprema Corte da Nação Argentina declarou a inconstitu-

cionalidade das leis do Ponto Final e da Obediência Devida, a imprescritibilidade

dos crimes contra a humanidade e a ilegalidade de qualquer ato nelas fundado que

tivesse como objetivo obstaculizar o avanço dos processos que estavam sendo ins-

truídos, ao julgamento e eventual condenação dos responsáveis ou, ainda, que pu-

dessem obstruir as investigações sobre a prática de crimes contra a humanidade

cometidos naquele período político em território argentino.

Poder Judiciário e os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos

Nos anos de 2004 a 2006 foi realizada uma pesquisa empírica, mediante en-

trevistas e aplicação de um questionário estruturado,15 na comarca da capital do

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de aferir o grau de

justiciabilidade das normas internacionais de direitos humanos nas decisões dos

juízes e desembargadores do tribunal. Dentre outras perguntas, os juízes foram

indagados a respeito do seu conhecimento acerca dos sistemas internacionais de

proteção dos direitos humanos da ONU e da OEA: 59% admitiram conhecê-los apenas

superficialmente, percentual consideravelmente mais elevado do que o dos desem-

bargadores que afirmaram o mesmo, 43%. Além disso, 28% dos desembargadores, em

comparação com 20% dos juízes, informaram que não conheciam o funcionamento

dos sistemas internacionais de proteção. Por fim, apenas 21% dos desembargadores

afirmaram conhecer o funcionamento dos sistemas internacionais de proteção da

ONU e OEA, enquanto somente 16% dos juízes responderam no mesmo sentido.

Em outra pergunta, os magistrados informaram sobre a frequência com que

tomavam conhecimento de decisões das cortes internacionais de proteção dos di-

reitos humanos. A maioria dos juízes (55%) e desembargadores (46%) afirmou que

recebia informações a respeito das decisões apenas eventualmente. Um percentual

significativo dos magistrados declarou que as recebiam raramente (21% dos juízes e

dos desembargadores) ou nunca (10% dos juízes e 13% dos desembargadores).

No plano do sistema global de proteção dos direitos humanos, o artigo V da

Declaração Universal dos Direitos Humanos estatui que “ninguém será submetido

à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. O Pacto

Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, firmado em 1966, estabelece idêntica

vedação em seu artigo 7º: “Ninguém será submetido à tortura, nem a penas ou trata-

mentos cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma

pessoa, sem o seu consentimento, a experiências médicas ou científicas”.

Conjuntamente, no âmbito dos sistemas regionais de proteção, o repúdio à

prática da tortura também foi confirmado pela Convenção Americana de Direitos

15 Pesquisa coordenada pelo Prof. Dr. José Ricardo Cunha na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). A pesquisa foi dividida em duas fases: a primeira com os juízes e a segunda com os desembargadores do TJERJ. Os gráficos, tabelas e resultados na íntegra estão disponíveis na Revista Sur, n. 3, ano 2, p. 139-172, 2005. Acesso gratuito em: http://www.surjournal.org/.

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Humanos – Pacto de San José de Costa Rica de 1969 – ao prever, em seu artigo 5º

(2), que “ninguém deve ser submetido a torturas, nem a pena ou tratos cruéis, desu-

manos ou degradantes”. Proibições semelhantes à prática de tortura, tratamento ou

imposição de penas cruéis, desumanas ou degradantes também foram positivadas

no artigo 3º da Convenção Europeia de Direitos Humanos de 1950 e no artigo 5º da

Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos – Carta de Banjul – aprovada em

1981 pela Organização da Unidade Africana (OUA). Nesse sentido, tanto no plano do

sistema global de proteção dos direitos humanos quanto nos diferentes sistemas

regionais, há um amplo e sólido consenso positivado em torno da absoluta vedação

da prática de tortura, bem como de tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou

degradantes.

No tocante ao combate à prática de tortura, os instrumentos internacionais e

regionais de proteção dos direitos humanos supramencionados foram especificados

pela Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos

ou Degradantes,16 aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1984, e

pela Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura17 concluída na cidade

de Cartagena, na Colômbia, em 1985. Essas convenções integram o sistema especial

de proteção dos direitos humanos, “na medida em que (...) é voltado, fundamental-

mente, à prevenção da discriminação ou à proteção de pessoas ou grupos de pessoas

particularmente vulneráveis, que merecem proteção especial” (PIOVESAN, 1996, p.

201).

No artigo 1º da Convenção da ONU é definida a prática de tortura18 e, em

seu artigo 2º (2) e (3), é estabelecido, peremptoriamente, que “em nenhum caso

poderão invocar-se circunstâncias excepcionais, tais como ameaça ou estado de

guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública como

justificação para a tortura”, deixando claro que “a ordem de um funcionário superior

ou de uma autoridade pública não poderá ser invocada como justificação para a

tortura”.

A Convenção prevê, ainda, a proibição de expulsão, devolução ou extradição

de uma pessoa para outro Estado quando houver razões substanciais para crer que

ela provavelmente será submetida à tortura (artigo 3º); o ensino e a informação

16 Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 4 de 1989 (DO de 24/5/1989) e promulgada pelo Decreto nº 40 de 1991.

17 Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 5 de 1989 (DO de 1/6/1989) e promulgada pelo Decreto nº 98.386 de 1989 (DO de 13/11/1989).

18 Artigo I: “(1.) Para os fins da presente Convenção, o termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.

(2.) O presente artigo não será interpretado de maneira a restringir qualquer instrumento internacional ou legislação nacional que contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo.”

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Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

sobre a proibição de tortura no treinamento de civis e militares encarregados da

aplicação da lei, da custódia e do interrogatório de pessoa submetida a qualquer

forma de prisão, detenção ou reclusão (artigo 10); o direito das vítimas à reparação

e à indenização justa e adequada (artigo 14) e a proibição da utilização de declara-

ção proveniente de tortura como prova em processo de qualquer natureza (artigo

15). Em seu artigo 17, a Convenção da ONU dispõe sobre a constituição de um Co-

mitê contra a Tortura responsável pelo monitoramento e investigação – inclusive

de ofício19 – das violações dos direitos humanos em razão da prática de tortura na

jurisdição dos Estados-partes mediante a apreciação de relatórios governamentais,

comunicações interestatais e petições individuais.

A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura contempla dis-

positivos semelhantes em seus artigos 4º, 5º, 7º, 9º e 10. A definição da prática de

tortura é, no entanto, mais ampla, ao entender como tortura “a aplicação, sobre uma

pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua

capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica”

(artigo 2º, in fine).

Em seus artigos 1º, III; 4º, II; e 5º, parágrafos 1º, 2º e 3º, a Constituição bra-

sileira de 1988 demonstra sua inserção na tendência das demais Constituições da

América Latina no sentido de conceder tratamento especial aos direitos e garantias

internacionalmente consagrados. Além disso, os incisos III e XLIII da Constituição

Federal definem, respectivamente, que “ninguém será submetido a tortura nem a

tratamento desumano ou degradante” e que a lei considerará como crime inafiançá-

vel e insuscetível de graça ou anistia a prática da tortura. No plano infraconstitucio-

nal, foi promulgada em 7 de abril de 1997 a Lei n. 9.455, responsável pela tipificação

das práticas que definem o crime de tortura.20 Desse modo, o Brasil cumpriu com as

obrigações legislativas estabelecidas pelo artigo 4º da Convenção contra a Tortura

e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes21 da ONU e pelo

artigo 6º da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.22

19 Artigo 20 da Convenção da ONU.

20 “Art. 1º Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou

mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça,

a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos. (...) § 6º. O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.”

21 “Artigo 4º: (1.) Cada Estado-Parte assegurará que todos os atos de tortura sejam considerados crimes segundo a sua legislação penal. O mesmo aplicar-se-á à tentativa de tortura e a todo ato de qualquer pessoa que constitua cumplicidade ou participação na tortura.”

22 “Artigo 6º: (...) Os Estados-Partes assegurar-se-ão de que todos os atos de tortura e as tentativas de praticar atos dessa natureza sejam considerados delitos em seu Direito Penal, estabelecendo penas severas para sua punição, que levem em conta sua gravidade.”

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alExandrE Garrido da silva|josé ribas viEira

Apesar da existência de importantes normas internacionais de combate à

tortura regularmente incorporadas ao direito pátrio, ao serem questionados sobre a

aplicação de tais convenções, apenas 11% dos juízes da comarca da capital do Tribunal

de Justiça do Estado do Rio de Janeiro afirmaram que utilizam frequentemente a

Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Com relação à Convenção

contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes

da ONU, o percentual de juízes que afirmaram utilizar frequentemente essa normativa

internacional foi de apenas 12%. Raramente utilizam as convenções contra a tortura

da ONU e da OEA, respectivamente, 14% e 16% dos juízes entrevistados. Por último,

o grau de não utilização das convenções supramencionadas é idêntico, alcançando o

alarmante percentual de 72% dos magistrados entrevistados.

Na segunda fase da pesquisa, verificou-se um pequeno decréscimo no percen-

tual de magistrados que utilizam frequentemente as convenções contra a tortura da

ONU e da OEA em comparação com a primeira instância do TJERJ, respectivamente,

10% e 8% dos desembargadores. Por outro lado, 31% dos desembargadores entrevis-

tados afirmaram raramente utilizar as normativas internacionais supramencionadas,

percentual muito superior ao encontrado na primeira instância. Finalmente, 58% e

61% dos desembargadores entrevistados afirmaram não recorrer, respectivamente,

à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou

Degradantes da ONU e à Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura

para motivar suas decisões.

Nas duas fases da pesquisa, tanto entre os juízes quanto entre os desembarga-

dores entrevistados, constatou-se que o grau de não utilização das convenções su-

pracitadas é muito elevado. Apesar de tais normas criarem importantes obrigações

para o Estado brasileiro nos planos interno e externo, tais instrumentos internacio-

nais de proteção especial dos direitos humanos, fundamentais para a implemen-

tação de uma perspectiva transicional de justiça, carecerão de efetividade se não

forem utilizados in concreto pelos juízes e desembargadores na fundamentação de

suas decisões judiciais.

Em recentes casos jurídicos,23 alguns ministros do STF têm destacado a im-

portância do processo de internacionalização dos direitos humanos e a necessidade

de revisitar a questão da incorporação dos tratados internacionais de direitos hu-

manos ao direito interno. A jurisprudência do STF sobre o tema consolidou o enten-

dimento de que as normas de tratados internacionais de direitos humanos, após a

sua incorporação ao direito interno, assumem o status normativo de lei ordinária.

Esse posicionamento recebeu, durante anos, inúmeras críticas por parte da doutrina

constitucional e, sobretudo, internacionalista. No início de 2008, o ministro Celso

de Mello, em seu importante voto no HC 87.585-8, afirmou que “o Supremo Tribunal

Federal se defronta com um grande desafio, consistente em extrair, dessas mesmas

23 São eles o HC 87.585-8 TO (sobre a prisão do depositário infiel), RE 466.343 SP (caso no qual é exposta a tese do ministro Gilmar Ferreira Mendes sobre o status de supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos) e ADI 3510-0 (voto do ministro Ricardo Lewandowski no caso da Lei de Biossegurança).

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34 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 19-46, 2º sem. 2008

Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, a sua

máxima eficácia”.24

Aproximadamente um mês após a elaboração do voto supramencionado, o

ministro Celso de Mello ratificou, em seu discurso proferido em nome do STF na

solenidade de posse do ministro Gilmar Mendes, o seu posicionamento sobre a re-

levância em se conferir urgentemente efetividade aos tratados internacionais de di-

reitos humanos:

Torna-se essencial, portanto, ter consciência de que se revela inadiável conferir

real efetividade, no plano interno, aos compromissos internacionais assumidos

pelo Estado brasileiro em tema de direitos humanos, aqui compreendidos os

direitos dos Povos Indígenas, tais como consagrados em documentos promul-

gados sob os auspícios da Assembleia Geral da ONU e, sobretudo, no texto de

nossa própria Constituição.25

Com apoio nesse pressuposto (o da extensão do princípio da efetividade ou

máxima eficácia ao plano internacional), o min. Celso de Mello assumiu uma postura

de revisão do seu entendimento anterior no sentido de reconhecer, diante de um

contexto de internacionalização do Direito Constitucional, o status constitucional

dos tratados internacionais de direitos humanos. Esse posicionamento teórico, bas-

tante inovador no âmbito da jurisprudência do STF, não se aplica apenas aos trata-

dos internacionais celebrados pelo Brasil após a EC nº 45/2004, que instituiu o § 3º

do art. 5º da CF, mas, sobretudo, aos tratados internacionais de direitos humanos

regularmente incorporados à ordem interna em momento anterior à promulgação

da referida emenda constitucional e, inclusive, antes da promulgação da própria

Constituição Federal.26

Segundo o ministro Celso de Mello, as normas oriundas de tratados interna-

cionais de direitos humanos assumem um caráter materialmente constitucional e,

com fundamento no § 2º do art. 5º da CF, compõem o conceito de “bloco de consti-

tucionalidade”, isto é, “o somatório daquilo que se adiciona à Constituição escrita,

em função dos valores e princípios nela consagrados”.27 Esse novo posicionamen-

to, ainda minoritário, representa um grande avanço no tocante à incorporação das

convenções anteriormente citadas e um importante passo na construção de teoria

jurídica capaz de oferecer fundamentação normativa para uma progressiva judicia-

lização de temas vinculados à justiça transicional.

24 Voto do min. Celso de Mello no HC 87.585-8 (STF), 12/3/2008, p. 6. Disponível em http//: www.stf.gov.br.

25 Discurso proferido pelo ministro Celso de Mello, em nome do Supremo Tribunal Federal, na solenidade de posse do ministro Gilmar Mendes na presidência da Suprema Corte do Brasil, em 23/4/2008. Disponível em http//: www.stf.gov.br.

26 Voto do min. Celso de Mello no HC 87.585-8 (STF), p. 27-28. Disponível em http//: www.stf.gov.br.

27 Idem, p. 28.

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alExandrE Garrido da silva|josé ribas viEira

O caso brasileiro: o debate sobre a revisão da Lei de Anistia e a questão do acesso público aos documentos secretos referentes ao período militar

Com apoio na decisão da Suprema Corte argentina mencionada acima, no caso

Barrios Altos julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, assim como

em inédita ação declaratória de autoria de ex-presos políticos na justiça brasileira

sobre a prática de tortura cometida por ex-comandante militar do DOI-CODI28 de

São Paulo, Flávia Piovesan e Hélio Bicudo defendem uma revisão da Lei de Anistia,29

ao chamarem a atenção para “o risco [de que] as concessões do passado possam

comprometer e debilitar a busca democrática, corrompendo-a com as marcas de um

continuísmo autoritário” (2006). A justiça de transição teria, assim, o delicado de-

safio de “romper com passado autoritário e viabilizar o ritual de passagem à ordem

democrática” (PIOVESAN; BICUDO, 2006).

Segundo os autores, a anistia perdoou as vítimas e não os que cometeram

crimes em nome do Estado autoritário. Além disso, ao direito à justiça conjuga-se

o direito à verdade e, consequentemente, o direito de acesso aos arquivos e às in-

formações classificados “no mais alto grau de sigilo”. Somente assim seria possível

concretizar os princípios da publicidade e da transparência democráticas. Nesse

sentido, asseveram:

O direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da história

e da memória coletiva. Serve a um duplo propósito: proteger o direito à me-

mória das vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir

a repetição de tais práticas. Sob a ótica republicana e democrática, a releitura

da Lei de Anistia e o direito à verdade rompem com o pacto de silêncio e com

uma injustiça continuada. Lançam luzes à dimensão sombria de nossa história,

na defesa dos direitos à justiça, à verdade e à memória individual e coletiva.

(2006)

Em sentido contrário, Tércio Sampaio Ferraz Júnior menciona o fundamento

histórico da anistia como “milenar instituto político de clemência, esquecimento e

concórdia” para afirmar como acertada a jurisprudência do Superior Tribunal Militar

no sentido de expandir o escopo de abrangência da anistia, tornando-a, de fato, geral

e irrestrita (2006). Antes, a anistia era interpretada como válida apenas para os tortu-

radores, mas não para aqueles considerados pelo regime militar como “terroristas”.

Nesse sentido, após a interpretação extensiva do STM, o instituto desvinculou-se de

quaisquer cálculos ou ponderações sobre a gravidade dos atos praticados e corres-

pondentes punições aos seus agentes.

28 Notícia “Julgamento mostra que ferida do regime militar ainda não sarou” publicada no jornal O Globo de 11/11/2006.

29 Lei de Anistia (Lei nº 6.683/1979); Lei nº 11.111/2005 (Disciplina o acesso aos documentos públicos); Decreto nº 4.553/2002 (Dispõe sobre a classificação segundo o grau de sigilo de documentos no interesse da segurança da sociedade e do Estado); Lei nº 8.159/1991 (Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados).

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36 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 19-46, 2º sem. 2008

Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

Segundo Tércio Sampaio Ferraz (2006), a revisão da anistia promoveria conse-

quências negativas, pois, com o objetivo de punir os militares, a jurisprudência do

STM seria revertida e, assim, resgataria “todo o universo de avaliações mutuamente

negativas (exclusão/inclusão de terrorismo/tortura)”, isto é, “voltaria a necessidade

de avaliações de atos e de suas consequências, vinculando sua discussão a um cál-

culo de relações meio/fim, com distinções de natureza ética e jurídica”. Por último,

os próprios torturadores passariam a exigir a revisão da anistia conferida aos “terro-

ristas”, tornando a revisão um “esforço inútil” que, no final das contas, “mudaria [a

lei] para tudo ficar como está”.

Ao lado da pressão política e da mobilização social sobre a abertura dos arqui-

vos ainda sigilosos referentes à ditadura militar, revela-se como importante estraté-

gia a proposição de ações judiciais sobre a questão da justiça transicional para que

a temática ingresse no âmbito da judicialização da política nas instâncias inferiores

do Poder Judiciário.30 Seguindo outra estratégia, a mobilização política pode, me-

diante a atuação dos partidos políticos, por exemplo, suscitar um pronunciamento

do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei de Anistia por meio de uma ação direta de

inconstitucionalidade (ADI). Como veremos a seguir, a temática da justiça transicio-

nal ainda não foi suficientemente “judicializada” nos contextos político e jurídico

brasileiros, daí a enorme importância da discussão sobre as estratégias de judiciali-

zação desse relevante tema.

A judicialização da política pura e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

A expansão do protagonismo político dos tribunais nas democracias contem-

porâneas, ao menos no Ocidente, constitui um fenômeno que caracteriza este início

de século. “Revoluções constitucionais” vêm sacudindo, inclusive, os últimos bas-

tiões da democracia majoritária, tais como os sistemas políticos da África do Sul,

Canadá, Israel e Nova Zelândia (HIRSCHL, 2004). Inúmeros são os fatores apontados

pelos cientistas políticos, sociólogos e juristas responsáveis pela ampliação e con-

solidação desse processo.

Ernani Rodrigues de Carvalho (2004, p. 117-120), inspirado em obra funda-

mental sobre o tema,31 elenca seis condições para o surgimento e a consolidação

da judicialização da política: a existência de um sistema político democrático, a

separação dos poderes, o exercício dos direitos políticos, o uso dos tribunais pelos

grupos de interesse, o uso dos tribunais pela oposição e, por último, a inefetividade

das instituições majoritárias.

30 Nesse sentido, confira o posicionamento do historiador da UFRJ Carlos Fico na notícia “Memórias da ditadura” disponível em: http://www.olharvirtual.ufrj.br/2006/index.php?id_edicao=214&codigo=2. Confira também o site do Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar (GEDM-IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro: http://www.gedm.ifcs.ufrj.br/.

31 Confira: TATE, C. N.; VALLINDER, T. (Ed.). The global expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1997.

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Marcus Faro de Castro (1997), por sua vez, menciona, dentre outros, a cons-

titucionalização do Direito após a Segunda Guerra Mundial, o resgate do tema da

legitimação dos direitos humanos, o exemplo institucional da Suprema Corte norte-

americana e a tradição europeia (kelseniana) de controle concentrado de constitu-

cionalidade das leis como fatores importantes para a explicação do fenômeno da

judicialização.

Todos esses fatores, em maior ou menor intensidade, encontram-se presen-

tes nos sistemas político e jurídico brasileiros na atualidade. De acordo com José

Eisenberg, a judicialização da política é um processo complexo composto por dois

movimentos distintos:

(1.) refere-se a um processo de expansão dos poderes de legislar e executar leis

do sistema judiciário, representando uma transferência do poder decisório do

Poder Executivo e do Poder Legislativo para os juízes e tribunais – isto é, uma

politização do judiciário; (2.) a disseminação de métodos de tomada de decisão

típicos do Poder Judiciário nos outros Poderes. Em nosso juízo, este segundo

movimento é mais bem descrito como uma “tribunalização” da política, em

oposição à judicialização representada pelo primeiro movimento. (2002, p. 47)

Ran Hirschl define esse processo como um caminho rumo à “juristocracia” (ju-

ristocracy), ou seja, como a progressiva transferência de poderes decisórios das ins-

tituições políticas representativas para o Poder Judiciário (2004, p. 1). Esse fenôme-

no é acompanhado e alimentado por uma mudança na ideologia jurídica, consistente

em uma crítica crescentemente realizada pelas principais elites políticas, jurídicas e

econômicas à premissa majoritária que define a democracia em sua dimensão popu-

lar. Haveria, assim, uma convergência entre distintos interesses políticos, econômi-

cos e jurídicos na defesa da democracia constitucional, por um lado, e no ataque à

democracia como premissa majoritária, por outro. Hirschl assume uma metodologia

de análise que procura afastar o tema em questão dos debates normativos usuais

nesse campo de investigação,32 procurando estudar empiricamente as origens e con-

sequências das “revoluções constitucionais”, isto é, da consolidação histórica do

novo constitucionalismo (new constitutionalism) em diferentes sociedades.

Nesse sentido, o autor enumera três postulados responsáveis pela orientação

metodológica de sua abordagem sobre o tema da judicialização da política. O pri-

meiro postulado metodológico afirma que a transferência progressiva de poderes do

Legislativo para o Judiciário, assim como para outras instâncias administrativas de

decisão cujos representantes não são eleitos democraticamente – agências adminis-

trativas independentes ou agências reguladoras, por exemplo – não pode ser estuda-

da separadamente das lutas políticas, econômicas e sociais que modelam o sistema

jurídico-político de uma determinada sociedade. Em segundo lugar, as instituições

políticas e jurídicas (bem como as suas reformas) promovem efeitos distributivos

32 O principal representante do debate em sua versão normativa é Ronald Dworkin, pois, segundo Hirschl, “nenhum dos seis livros de Dworkin sobre constitucionalismo cita qualquer estudo empírico sobre as origens e consequências da constitucionalização e da revisão judicial” (2004, p. 3).

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Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

diferenciados, isto é, tendem, inevitavelmente, a privilegiar mais alguns grupos e

indivíduos do que outros. Por último, em regra, os diferentes atores políticos, eco-

nômicos e jurídicos tendem a agir estrategicamente no sentido de apoiar a conso-

lidação de estruturas institucionais que beneficiarão, na maior medida possível, os

seus próprios interesses particulares ou corporativos (2004, p. 38 et seq.).

Segundo Hirschl:

O poder judicial não cai do céu; ele é politicamente construído. Acredito que a

constitucionalização dos direitos e o fortalecimento do controle de constitucio-

nalidade das leis resultam de um pacto estratégico liderado por elites políticas

hegemônicas continuamente ameaçadas, que buscam isolar suas preferências

políticas contra mudanças em razão da política democrática, em associação

com elites econômicas e jurídicas que possuem interesses compatíveis. (2004,

p. 49)

A abordagem realista do fenômeno da judicialização da política permite afir-

mar que a progressiva transferência de poderes para o Judiciário nas democracias

contemporâneas “serve aos interesses de uma Suprema Corte que procura ressaltar

sua influência política” (HIRSCHL, 2004, p. 49). Segundo Alec Stone Sweet, há um

interesse institucional dos tribunais em “resolver conflitos legislativos sobre consti-

tucionalidade, mantendo e reforçando, ao mesmo tempo, a legitimidade política da

revisão constitucional para o futuro” (2000, p. 199-200). O interesse dos ministros

do STF na legitimação do próprio tribunal para a resolução – ativista e criativa – de

problemas e questões controvertidas no futuro pode ser vislumbrado, de modo cla-

ro, no voto do min. Gilmar Ferreira Mendes na ADI 1351-DF (caso sobre a cláusula

de barreira):

É possível antever que o Supremo Tribunal Federal acabe por se livrar do

vetusto dogma do legislador negativo e se alie à mais progressiva linha ju-

risprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotadas

pelas principais Cortes Constitucionais europeias. A assunção de uma atuação

criativa pelo Tribunal poderá ser determinante para a solução de antigos pro-

blemas relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que muitas vezes

causam entraves para a efetivação de direitos e garantias fundamentais asse-

gurados pelo texto constitucional.33

Para Alec Stone Sweet, a judicialização da política constitui também uma ten-

dência de difusão das técnicas de argumentação e de adjudicação típicas do Direito

Constitucional em outros poderes, ou seja:

o processo pelo qual os legisladores absorvem as normas de conduta da

adjudicação constitucional, a gramática e o vocabulário do Direito Consti-

tucional (...). Em uma política judicializada, o discurso legal é responsável

33 Trecho do voto do min. Gilmar Ferreira Mendes na ADI 1351-DF (cláusula de barreira), p. 53, disponível em www.stf.gov.br.

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pela mediação entre o debate partidário e as estruturas de exercício do poder

legislativo. (2000, p. 203)

Além disso, a judicialização promove o “entrincheiramento constitucional de

direitos” (HIRSCHL, 2004, p. 44) e, nesse sentido, tanto o Executivo quanto o próprio

Poder Legislativo podem, mediante o apoio (deliberado) a essa estratégia de transfe-

rência de poderes, retirar temas controvertidos do debate público, onde dificilmente

seriam decididos em sentido favorável. A judicialização de questões políticas, eco-

nômicas ou sociais polêmicas pode também reduzir os custos (eleitorais ou de apoio

político) de uma decisão controvertida.34

De modo original, Ran Hirschil chama a atenção para uma terceira dimensão

da judicialização da política para além das outras duas citadas por Tate e Vallinder

(1997), qual seja: a judicialização da “política pura” ou da “megapolítica” (2006, p.

727 et seq.). Assim como C. N. Tate e T. Vallinder, Ran Hirschil trabalha com a dis-

tinção entre a judicialização da política e o ativismo judicial, percebido como uma

atitude, decisão ou comportamento dos magistrados no sentido de revisar temas

e questões – prima facie – de competência de outros poderes. A judicialização da

política, mais ampla e estrutural, cuidaria de metacondições jurídicas, políticas e

institucionais que favoreceriam a transferência decisória do eixo Poder Legislativo-

Poder Executivo para o Poder Judiciário. Segundo C. Neal Tate, o ativismo judicial

constitui uma espécie de atitude ou comportamento dos juízes no sentido de “par-

ticipar na elaboração de políticas que poderiam ser deixadas ao arbítrio de outras

instituições mais ou menos habilitadas (...) e, por vezes, substituir decisões políticas

deles derivadas por aquelas derivadas de outras instituições” (TATE; VALLINDER,

1997, p. 33).

A “judicialização da política pura” ou da “megapolítica” lida, assim, com ca-

sos “mais do que difíceis”, ou seja, com questões e decisões “puramente” políticas

em seu sentido mais amplo e em seu estado mais bruto, amplamente controverti-

das, sem perspectiva de consenso entre os diferentes grupos de interesse em dis-

puta na sociedade. Constituiriam exemplos de judicialização da pura política, den-

tre outros: a judicialização do processo eleitoral (Brasil, por exemplo), questões de

segurança nacional e combate ao terrorismo (EUA), questões de identidade nacional

(o caso do Canadá e de Israel), questões macroeconômicas de amplo alcance, de-

bates sobre o caráter secular do Estado (Turquia), questões de justiça transicional

e a legitimação de um novo regime constitucional (África do Sul). Em todos esses

casos, questões eminentemente políticas, existenciais no sentido schmitteriano,

profundamente controvertidas, não sujeitas a um “amplo acordo constitucional”,

foram “constitucionalizadas” e transferidas para fóruns judiciais. Nesses casos,

em especial, as cortes supremas transformam-se em uma “parte crucial do aparato

nacional de elaboração de políticas” (HIRSCHL, 2006, p. 727 et seq.). Essa terceira

34 Certamente, do ponto de vista político, é melhor para um governo – diante das pressões políticas exercidas pelos setores militares – que o Judiciário determine a abertura dos arquivos da ditadura militar do que o Poder Executivo mediante uma decisão política de sua iniciativa.

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Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

dimensão é qualitativamente distinta da segunda, que trata do controle de constitu-

cionalidade das leis em seu sentido ordinário.

No entanto, a judicialização da política no Brasil tem sido bastante seletiva

quanto ao seu conteúdo. Nem todos os temas, demandas ou questões políticas, so-

ciais e econômicas foram judicializados. Não há uma postura inequívoca, por exem-

plo, assumida pelos magistrados e tribunais, principalmente pelo Supremo Tribunal

Federal, no sentido de “judicializar” ou “constitucionalizar” a discussão de questões

referentes à justiça de transição política em nossa sociedade. Nos discursos dos

ministros Celso de Mello e Gilmar Ferreira Mendes na cerimônia de transmissão da

presidência do STF não há menção ao tema da justiça transicional,35 apesar de desta-

carem a importância em se atribuir, progressivamente, maior efetividade às normas

internacionais de direitos humanos no plano do direito interno. Diferentemente da

postura claramente ativista assumida em outros temas – fidelidade partidária, cláu-

sula de barreira, pesquisa com células-tronco embrionárias, análise da urgência e

necessidade das MPs, direito de greve dos servidores públicos – o Poder Judiciário

brasileiro, em especial o STF, tem procurado se preservar em questões polêmicas so-

bre justiça transicional, evitando posicionar-se extrajudicialmente sobre tais ques-

tões políticas.36

Além disso, apenas em novembro de 2006 foi ajuizada a primeira ação acu-

sando um militar pela prática de tortura nas dependências do DOI-CODI de São Pau-

lo entre os anos de 1974 e 1979. Nessa oportunidade, de modo inédito, a primeira

instância da justiça de São Paulo decidiu que a Lei de Anistia não impedia a abertu-

ra de processo contra militar, o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra,

pela prática de tortura durante o regime de exceção. Essa decisão judicial, bastante

inovadora, gerou grande repercussão na mídia e promoveu o resgate de um debate

político até então evitado pelos principais fóruns de discussão da sociedade.

Mesmo diante desse aspecto inovador em termos de justiça transicional em

nosso país, cabe refletir, mais especificamente, sobre as possíveis causas desse ca-

ráter seletivo do nosso Poder Judiciário com relação a questões políticas institucio-

nalmente mais sensíveis para a sociedade brasileira.

A judicialização do estado de exceção e a temática da internacionalização

Os estudos desenvolvidos por Ran Hirschl, como já mencionado, estão fun-

damentados na compreensão de uma juristocracia em sociedades com raízes no

sistema anglo-saxão. Em ordens jurídicas como a brasileira, de padrão dogmático

35 Discursos de posse realizados em 23/4/2008 e disponíveis no site http//:www.stf.gov.br.

36 Como bem destaca Marcus Faro de Castro, um comportamento ativista pode ser exercido em dois planos de ação distintos: em primeiro lugar, no plano das ações políticas ou não-jurisdicionais definidas pelo exercício informal do poder (exemplos: pronunciamentos de magistrados – discursos de posse, declarações à imprensa etc.); em segundo lugar, no plano das ações jurisdicionais caracterizadas pelo exercício formal da autoridade judicial (despachos, decisões monocráticas, decisões liminares, sentenças, votos e acórdãos) (Cf. CASTRO, 1997, p. 147-156).

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europeu, muitas vezes reforçadas por um puro formalismo, é improvável que se

prospere um quadro principiológico a favor de procedimentos reparadores em ter-

mos de violações de direitos humanos.

Entretanto, não se pode esquecer a situação da República Federal alemã após

1945. No contexto político-jurídico alemão, a reconstrução de seu modelo jurídico

esteve ancorada em um resgate da noção filosófica de direito natural. Inspirado nes-

se processo é que cresceu, por exemplo, em termos de jurisprudência de seu Poder

Judiciário e do próprio Tribunal Constitucional Federal o recurso à fórmula de Gus-

tav Radbruch no sentido de que “não se deve cumprir o direito extremamente injus-

to” (1997, p. 417). Com apoio nesse standard, foi possível efetivar uma sistemática

de justiça transicional a respeito dos responsáveis pela repressão violenta daqueles

que tentaram ultrapassar o muro de Berlim. Desse modo, a República Federal Ale-

mã, após unificar-se à extinta República Democrática Alemã, pôde processar, julgar

e condenar os culpados no famoso caso das sentinelas do muro de Berlim (ALEXY,

2000; FIGUEIREDO, 2008).

Há outro fator explicativo bastante apropriado para a análise do sistema ju-

dicial latino-americano. Roberto Gargarella aponta estarmos diante de uma “justiça

dependente”. A conclusão delineada pelo autor considera, em particular, a trajetória

do Poder Judiciário argentino:

Llegados a este punto, muchos puedem considerar que, em verdad, en países

como la Argentina no corresponde hacer referencia al problema de la “dificul-

tad contramayoritaria” del poder judicial. Aqui podria decirse, el problema es

otro y tiene que ver con la falta de independencia de la justicia, y sobre todo,

com la falta de independencia de ésta respecto de los órganos políticos (em

particular, el Ejecutivo). (1996, p. 233)

A mencionada dependência do Poder Judiciário em relação ao Poder Executivo

não nos aproximaria, porém, do sistema norte-americano? Pois, de fato, a composi-

ção da Corte Suprema norte-americana fica sob a influência da maioria integrante do

poder político. Poder-se-ia argumentar a existência de uma forte tradição americana

de supremacia do seu Poder Judiciário em relação aos demais poderes de Estado.

Com a leitura da recente obra de Keith E. Whittington (2007), constatamos a elabora-

ção de uma crítica à “noção de supremacia judicial”, demonstrando a sua construção

artificial no modelo constitucional norte-americano. Mas, se, em grande medida, o

nosso Judiciário se aproxima desse modelo americano mais politizado, por que seria

forte entre nós essa “dependência” apontada por Roberto Gargarella? Os estudiosos

americanos, como o próprio Keith Whittington, procuram classificar, na história po-

lítica estadunidense, presidências fortes ou fracas em termos institucionais. Ape-

sar dessa oscilação, não se deve desconhecer que há um caráter majoritário dando

respaldo à atuação do Executivo e sua relação com o Judiciário americano. Assim,

torna-se necessário explicitar, para compreendermos a seletividade da nossa Justiça

em termos reparadores de direitos humanos, a permanente fragilidade do Poder Exe-

cutivo. O nosso sistema judiciário apresenta, sim, um caráter de “dependência” tal

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Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

como explicitado por Gargarella, mas a um poder político transpassado por forças

sociais conflitantes e, frequentemente, antagônicas. Tal quadro possibilita a pas-

sagem para o estudo, em seguida, de um Direito marcado permanentemente pelo

processo de estado de exceção.

A noção de estado de exceção vem merecendo estudos atentos como o de

Giorgio Agamben (2004) e Clinton Rossiter (2004), no sentido de demonstrar o papel

assumido pelo Direito para encobrir o aspecto de violência caracterizador da noção

do poder político. Desse modo, é naqueles momentos de estado de exceção, lembra-

nos Giorgio Agamben, que se revela, dramaticamente, a real natureza do processo

político. Em sociedades como a brasileira, em razão desse fracionamento do poder

político, o estado de exceção sempre se caracterizou como parte inerente ao pro-

cesso institucional (VIEIRA, 1987). Nesse sentido, a cultura política de países como

o Brasil é responsável pela difusão para todo o aparato estatal desse ajuste com a

exceção. Nesse padrão, não se revela incoerente o fato de que o Poder Judiciário

brasileiro, como regra geral, acabou por assumir um caráter seletivo em termos de

justiça de transição. Mesmo em momentos democráticos experimentados pelo or-

denamento jurídico brasileiro, tendo como exemplo os 20 anos de promulgação de

nosso texto constitucional, a atuação do Supremo Tribunal Federal não deixa de ser

sensível, na atualidade, a apelos como a “força normativa dos fatos” e a “situações

consolidadas”,37 demonstrando que esse estado de exceção permanente ainda está

presente nas vísceras de nosso sistema institucional.

Essa lógica do estado de exceção predominou na trajetória do nosso Poder

Judiciário republicano. Comparando com a sociedade argentina, examinada por

Roberto Gargarella, o nosso sistema judicial não sofreu rupturas institucionais em

momentos de transição política. Mesmo nos momentos mais agudos e dramáticos

do estado de exceção permanente no Brasil, o Poder Judiciário, de forma sistêmica,

adaptou-se às circunstâncias. É o caso, por exemplo, da primeira República (1889-

1930), período no qual o Supremo Tribunal Federal teve um papel de protagonista

no alargamento do instituto do habeas corpus. Nos anos 1920, com a grave crise

do Estado brasileiro, nossa Suprema Corte soube recuar em termos de sua atuação

jurisdicional. Não estamos tão distantes do sistema jurídico autoritário de 1964. O

Poder Judiciário entre nós, ao contrário de outras sociedades latino-americanas –

Chile, Uruguai e Argentina – nas quais houve a mencionada “ruptura”, reconheceu

uma jurisdição de Segurança Nacional, que traduzia uma jurisprudência e doutrina

amplamente estudadas e apoiadas no período.

Acrescente-se, para além desse fator explicativo de estado de exceção per-

manente, outro aspecto institucional importante. O sistema judiciário brasileiro, ao

contrário do ocorrido na América Latina, ao longo de sua existência foi sempre atra-

vessado por uma dicotomia entre centralização e descentralização. Inclusive após a

vigência da Constituição Federal de 1988, vem se intensificando a tensão em torno

37 Cf., por exemplo, os votos do ministro Eros Roberto Grau nos casos dos municípios inconstitucionais de Luís Eduardo Magalhães e de Vila Arlete, respectivamente, nas ADIs 2240-BA e 3489-SC.

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alExandrE Garrido da silva|josé ribas viEira

desse dualismo jurisdicional entre tribunais superiores, sobretudo o STF, e as ins-

tâncias inferiores das Justiças Federal e Estaduais. Esse quadro voltou a se agravar

após o fortalecimento do papel institucional do Supremo Federal, mais nitidamente

em consequência da Emenda Constitucional nº 45/04, responsável pela ampliação

de suas competências constitucionais no sentido de uma centralização e vinculação

de suas decisões. Esse debate sobre dualidade ou não de jurisdições mobilizou para

essa temática as energias do nosso Judiciário e, muitas vezes, na discussão de com-

petências normativas, acabou por fortalecer uma visão excessivamente formalista

do nosso ordenamento jurídico. Essa variável acaba por levar a uma menor atenção

aos aspectos principiológicos tão próprios de uma justiça transicional.

Outro fator explicativo para o caráter seletivo de nossa judicialização em de-

terminadas questões políticas foge desse universo mais interno da sociedade bra-

sileira. Mais uma vez, acompanhando as lições de Roberto Gargarella, temos de

comparar o nosso processo político-institucional com o da Argentina. Após a sua

transição política para a democracia em 1983, devido ao total descrédito de que

seu ordenamento jurídico fosse apto a viabilizar uma justiça de transição, criou-se,

como examinado anteriormente neste nosso trabalho, uma forte cultura de inter-

nacionalização da proteção dos direitos humanos. Conforme vimos, esse processo

de promoção da efetividade das normas internacionais de direitos humanos apenas

recentemente teve o seu início na jurisdição constitucional brasileira.

No Brasil, apesar da recente mudança do entendimento de alguns ministros do

STF, ainda não conseguimos romper completamente com a tradição de um formalis-

mo em que a ordem jurídica interna prevalece sobre o sistema internacional (artigo

102, inciso III, alínea b, da Constituição Federal de 1988). Estamos, ainda, dentro de

um quadro indefinido a respeito da aplicação dos artigos 5º, parágrafos 2º e 3º, prin-

cipalmente em relação aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados

antes da Emenda Constitucional nº 45/04.

Contudo, como bem destaca Cecília MacDowell Santos (2007), devido à pro-

funda crise de legitimidade de nosso ordenamento jurídico em termos de uma

efetiva proteção dos direitos humanos, vários setores organizados da sociedade

brasileira têm apelado para uma maior efetividade entre nós do sistema interame-

ricano de proteção dos direitos humanos. Essa estratégia internacional de aciona-

mento e proteção dos direitos humanos por meio de um ativismo jurídico trans-

nacional pode possibilitar, a médio e longo prazo, a construção de uma cultura

jurídica capaz de promover a concretização tardia das diferentes dimensões da

justiça transicional no país.

Considerações finais

Durante as décadas de 1970 e 1980 na América Latina, foi muito comum

a utilização do argumento de que “esquecer o passado” constituía uma variável

significativa para a obtenção da estabilidade democrática. Em muitos casos – e o

Brasil é um exemplo – a transição negociada foi realizada à custa da investigação, do

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Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil

processamento e da punição de líderes, burocratas e agentes estatais encarregados

da censura e repressão durante a vigência do regime político autoritário.

A perspectiva da justiça transicional, em sua versão normativa, afirma que

somente a busca da verdade, a punição dos culpados por crimes contra os direitos

humanos, a indenização e a reparação, quando possíveis, dos danos e prejuízos

sofridos pelas vítimas são capazes de conduzir ao fortalecimento da democracia

e à estabilidade institucional. As variáveis destacadas por Jon Elster em sua obra

comentada são importantes para a análise das particularidades da transição política

e da justiça transicional nos casos brasileiro e argentino, principalmente no tocante

ao papel desempenhado pelos tribunais.

Com apoio nas reflexões de Ran Hirschl, é possível afirmar que o processo de

judicialização da política no Brasil é altamente seletivo, tendo em vista que o Poder

Judiciário brasileiro ainda não assumiu uma postura estratégica no equacionamento

de questões relativas à justiça transicional em razão das variáveis explicativas elen-

cadas ao longo do artigo. É possível constatar, assim, uma postura de self-restraint

do Poder Judiciário no caso da justiça transicional por dois motivos fundamentais:

em primeiro lugar, porque ainda não há um número suficiente de ações em curso

sobre a temática capaz de estimular a “judicialização” da justiça transicional e, con-

sequentemente, eventuais posturas ativistas por parte dos magistrados. Em segundo

lugar, não há um interesse institucionalmente compartilhado de legitimação do ati-

vismo judicial dos tribunais superiores, especialmente do Supremo Tribunal Fede-

ral, em casos “politicamente custosos” como aqueles que envolvem as pretensões

de verdade, memória, punição e reparação inscritas no ideal de justiça transicional.

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Adialéticaentreosprocessosdeglobalizaçãoedeintegraçãonaperspectivadeconstruçãodeumespaçocomunitário(The dialectics between globalization and integration processes in the perspective of a communitarian space construction)

bruno WandErlEy júnior* silvEstrE Eustáquio rossi paChECo**

R E S U M OTrata-sedeumartigoquesepropõeaestudararelaçãodialéticaentreosprocessosdeglobalização,comoseudiscursoderacionalidadeinstrumental,edeintegração,comasuarespostaalémdoEstadoDemocráticodeDireito,na busca de construção de um espaço comunitário. Nessa perspectiva,abordar-se-ãoosubstratodoDireitoComunitárioeaconstitucionalizaçãodoDireitoInternacionalparaquepossahaverademocratizaçãodoprocessodeintegraçãoeuropeia.

P A L A V R A S - C H A V EDireitointernacionalpúblico;Processodeintegraçãoregional; Direitocomunitário;Globalização.

A B S T R A C TThis article aims to analyze the dialectic relation between globalizationprocesses,withtheirdiscourseofinstrumentalrationalityandintegration,andtheiranswerbeyondtheDemocraticRuleofLaw,inanattempttoconstructacommunitarianspace.Inthisperspective,ittakesintoaccountthesubstractofCommunitarianLawand theconstitutionalizationof InternationalLawsothatthedemocratizationof theEuropean integrationprocessmaytakeplace.

K E y w O R D SPublicinternationallaw;Regionalintegrationprocess;Communitarianlaw;Globalization.

* Mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFMG, professor nos programas de bacharelado, mestrado e doutorado da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas e Faculdade de Direito da UFMG.

** Mestrando em Direito Público na linha de pesquisa de Direitos Humanos, Processos de Integração e Constitucionalização do Direito Internacional na Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas.

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A dialética entre os processos de globalização e de integração na perspectiva de construção de um espaço comunitário

A dialética entre os processos de integração e de globalização

As nomenclaturas referentes ao Estado Democrático de Direito, aos processos

de integração e de globalização constituem-se nos pilares do presente estudo, con-

siderando que, no momento atual de interdependência das relações internacionais

entre os assimétricos Estados, há um fenômeno de desregulamentação e de informa-

tização que resulta no fim das limitações geográficas em todos os tipos de atividade

econômica e financeira, buscando construir um mercado econômico global.

Em virtude do propósito da globalização referente à constituição de uma so-

ciedade global livre de fronteiras e de barreiras alfandegárias, na qual a economia

mundial ocasiona a internacionalização dos Estados, impulsionada pelas forças do

mercado econômico global, a constelação histórica do Estado Nacional, que consiste

na concepção de uma sociedade democraticamente estruturada, atuando reflexiva-

mente sobre si mesma, é hoje colocada em questão pelos desenvolvimentos do pro-

cesso de globalização.1

Portanto, segundo Jürgen Habermas, trata-se de um paradoxo entre o Estado

Democrático de Direito e o processo de globalização, visto que a perspectiva histó-

rica de uma sociedade agindo democraticamente sobre si mesma foi concebida até

agora somente sob o prisma nacional. No entanto, as políticas nacionais passarão

a se restringir a uma adequação dos imperativos globais do mercado econômico

neoliberal.

A situação é paradoxal. Só percebemos as tendências que anunciam uma cons-

telação pós-nacional como desafio político porque as descrevemos a partir da

habitual perspectiva do Estado Nacional. No momento em que essa situação se

torna consciente, abala-se a autoconfiança democrática que é necessária para

que se percebam os conflitos como desafios, ou seja, como problemas que

esperam por um trabalho político. (HABERMAS, 2001, p. 78)

Nesse contexto, segundo Luciana Medeiros Fernandes, pode-se compreender

o cenário internacional do processo de globalização como uma multiplicidade de

apresentação do fenômeno de extinção das divisas territoriais e de construção de

novos marcos de integração e globalização:

A globalização, num primeiro momento, pode ser entendida como o processo

crescente de abertura, há quem fala de supressão, das economias nacionais ao

fluxo de mercadorias e capitais alienígenas, seja pela permissividade das políti-

cas adotadas pelos Estados, como a uniformidade de tratamento entre o capital

nacional e o capital estrangeiro, seja pela queda das barreiras alfandegárias e

1 “O aparelho econômico, antes mesmo de planejamento total, já provê espontaneamente as mercadorias dos valores que decidem sobre o comportamento humano. A partir do momento em que as mercadorias, com o fim do livre intercâmbio, perderam todas suas qualidades econômicas salvo seu caráter de fetiche, este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos os seus aspectos” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 35).

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bruno WandErlEy júnior | silvEstrE Eustáquio rossi paChECo

entraves vários (como o excesso de intervenção estatal na seara econômica),

com vistas de formação de um mercado global unificado. Disso resulta o seu

caráter prevalentemente econômico, podendo ser visualizada sob variadas pers-

pectivas: a globalização produtiva, a globalização financeira, a globalização dos

mercados, a globalização da concorrência. (FERNANDES, 2002, p. 144)

O atual panorama da economia mundial mostra as dimensões do processo de

globalização que, ao favorecer alguns setores da população mundial, coloca em xe-

que as condições de sustentabilidade do sistema, pressupondo a preponderância dos

imperativos econômicos em relação ao controle político-democrático das atividades

financeiras no paradigma global. Tal paradigma distancia-se da economia real, pois,

segundo Rapoport (2003, p. 38), no que se refere à globalização econômica, “há um

divórcio crescente entre a produção e o consumo e não existem mecanismos regula-

dores nem estatais nem supraestatais que permitam ordenar o caos de um sistema

de valores que põe em perigo a democracia mesma”.2

Em decorrência da globalização, a concepção constitucionalista do Estado

Democrático de Direito torna-se um obstáculo para a realização dos imperativos

econômicos da global governance, a qual preconiza axiologicamente a liberdade eco-

nômica, a eficácia do Estado Mínimo em detrimento da legitimidade, o paradigma da

ideologia neoliberal, desconhecendo, portanto, qualquer esfera de decisão político-

democrática, com o fundamento da autorregulação dos atores econômicos e sociais

no mercado internacional.

A perversidade do sistema econômico encontra-se no cerne da evolução nega-

tiva da sociedade humana, com a adesão aos comportamentos competitivos e ins-

trumentais, peculiares à lex mercatoria, tendo em vista que a globalização pode ser

concebida como o ápice do processo de internacionalização do sistema capitalista,

que se impõe à maior parte da humanidade como uma globalização nefasta.

A globalização, dessa forma, torna-se um fenômeno repleto de contradições.

De um lado, apresenta-se como um processo de construção de nichos de desenvol-

vimento econômico. Doutro, contorna-se de oceanos de miséria, como um processo

de industrialização excludente que desfaz as estruturas constitucionais do Estado

Democrático de Direito. Esse processo de globalização tem como consequência ime-

diata o desvirtuamento do Estado Democrático de Direito, na medida em que os

imperativos globais influem na coesão das comunidades nacionais e nas economias

nacionais, ao obliterar o Estado nacional. Nesse sentido, corroboram-se os ensina-

mentos de Milton Santos:

A máquina ideológica que sustenta as ações preponderantes da atualidade é

feita de peças que se alimentam mutuamente e põem em movimento os ele-

mentos essenciais à continuidade do sistema. Fala-se, por exemplo, em aldeia

global para fazer crer que a difusão instantânea de noticias realmente informa

2 “Hay un divorcio creciente entre la producción y el consumo y no existen mecanismos reguladores ni estatales ni supraestatales que permitan ordernar el caos de un sistema de valores que pone en peligro la democracia misma” (tradução nossa).

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A dialética entre os processos de globalização e de integração na perspectiva de construção de um espaço comunitário

as pessoas. A partir desse mito e do encurtamento das distâncias, para aqueles

que realmente podem viajar também se difunde a noção de tempo e espaços

contraídos. É como se o mundo se houvesse tornado, para todos, ao alcance

das mãos. Um mercado avassalador dito global é apresentado como capaz de

homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferenças locais são aprofun-

dadas. Há uma busca de uniformidade, ao serviço dos atores hegemônicos,

mas o mundo se torna menos unido, tornando mais distante o sonho de uma

cidadania verdadeiramente universal. Enquanto isso, o culto ao consumo é es-

timulado. (SANTOS, 2006, p. 19)

A sociedade mundial, em termos de globalização, consiste numa diversidade

sem unidade, cuja multiplicidade de elementos não integra todos os envolvidos.

Segundo James Petra (2001, p. 33):3

O termo “globalização” é utilizado em muitos sentidos. Conceitos tais como a

interdependência global das nações, o crescimento de um sistema mundial, a

acumulação em escala mundial, a aldeia global e muitos outros estão enraiza-

dos na noção mais geral de que a acumulação de capital, o comércio e a inver-

são já não estão confinados ao Estado-nação. Em seu sentido mais geral, a glo-

balização se refere aos fluxos de mercadorias, inversões, produção e tecnologia

entre as nações. Para muitos partidários da tese da globalização, esses fluxos,

tanto seu alcance como sua profundidade, criaram uma nova ordem mundial,

com suas próprias instituições e configurações de poder, que recolocaram as

estruturas previamente associadas com o Estado-Nação.

Desse modo, pode-se inferir que a pretensão de uniformidade, imposta pelo

discurso instrumental desse processo, quer vincular-se à sua efetivação, no tocante

aos seus agentes econômicos e aos seus destinatários. Contudo, não abrange todos

os povos, mas tão-somente aqueles capazes de contribuir para a sua expansão, em

termos de mercado. Numa perspectiva pós-nacional, o fenômeno da globalização,

em relação aos aspectos da segurança e da efetividade do Estado, da soberania terri-

torial e da legitimidade democrática, elimina paulatinamente a capacidade de auto-

determinação de cada Estado para a proteção de seus cidadãos contra os efeitos de

decisões realizadas além da esfera de sua soberania.

Portanto, não se pode ater-se ao processo de decisão intergovernamental já

em curso, porém é imperativo reforçar uma integração normativa dos cidadãos que

possibilitaria a definição de objetivos para além da perspectiva histórica do Esta-

do nacional. Dessa forma, há a subversão da soberania estatal sob os auspícios do

3 “El término globalización se há utilizado en muchos sentidos. Conceptos tales como la interdependência global de las naciones, el crecimento de un sistema mundial, la acumulación a escala mundial, la aldeã global y muchos otros están enraizados en la noción más general de que la acumulación del capital, el comercio y la inversión ya no están confinados al Estado-nación. En si sentido, la globalización se refiere a los flujos de mercancias, inversiones, producción y tecnología entre las naciones. Para muchos partidarios de la tesis de la globalización, estos flujos, tanto su alcance com su profundidad, han creado un nuevo ordem mundial, con sus propias instituciones y configuraciones de poder que han reemplazado las estructuras previamente asociadas con el Estado-nación”. (tradução nossa)

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bruno WandErlEy júnior | silvEstrE Eustáquio rossi paChECo

mercado econômico internacional com a sua diluição para as corporações multina-

cionais, economicamente poderosas, que se envolvem no exercício democrático do

poder, sem a legitimidade necessária, e não se sujeitam às responsabilidades dos

órgãos do Estado Constitucional. Nesse sentido, Mário Lúcio Quintão Soares (2006,

p. 53) ensina que, “no âmbito da Teoria do Estado, há de se recorrer à reengenharia

constitucional, visando compreender a refundação do Estado em face da globaliza-

ção, adotando-se o paradigma do Estado Democrático de Direito como contraposição

ao Estado mínimo”.

Sugere-se um Estado minimalista, que deve abandonar as utopias relativas à

obrigatoriedade de proteção das fontes do mundo da vida, ou seja, resta ao Estado

reduzir os gastos públicos, assumir as funções mínimas de ordem e de segurança

públicas nas suas políticas internas e atender aos anseios utilitaristas do capitalis-

mo selvagem, segundo Sebastián Alegrett (2007, p. 132):

A internacionalização da produção, das finanças e dos serviços, sobrepujada

pela revolução da informática e das comunicações, desemboca no atual proces-

so de globalização econômica. Transcendendo o econômico, a globalização é

um fenômeno muito mais amplo e multidimensional destinado a incidir pode-

rosamente na política, na cultura e na organização das sociedades e do mundo

como um todo. Em paradoxal concomitância com a globalização, registra-se um

processo geral de desagregação em distintos níveis, que vai desde a formação

de megablocos regionais e grupos subregionais até o fortalecimento das auto-

nomias locais. Atropelado no meio desse turbilhão de correntes divergentes,

o conceito de Estado nacional se arruina em seu poder e estremece em suas

bases.4

Numa ordem internacional caracterizada pelas assimetrias, pelas discrepân-

cias entre os países do Norte, opulentos e desenvolvidos, e os países do Sul, periféri-

cos e dependentes, buscam-se formulações eficazes que contribuam para o progres-

so das relações internacionais e a superação das intempéries social e econômica,

através da construção de blocos político-econômicos com a finalidade de integração

das inúmeras sociedades nacionais num prisma global. Nesse sentido, Habermas

apresenta as suas considerações acerca da possibilidade de superação dessa cir-

cunstância para além da perspectiva do Estado Democrático de Direito:

Uma alternativa à alegria imposta por uma política neoliberal, que se autossolu-

ciona, poderia consistir, no entanto, em encontrar formas adequadas para o pro-

cesso democrático também para além do Estado nacional. As nossas sociedades

4 “La internacionalización de la producción, de las finanzas y de los servicios catapultada por la revolución de la informática y de las comunicaciones, desembocam en el actual proceso de globalización econômica. Transcendiendo lo econômico, la globalización és un fenômeno mucho más amplio y multidimensional destinado a incidir poderosamente en la política, en la cultura y en la organización de las sociedades y del mundo como um todo. En paradójica concomitância con la globalización, se registra um proceso general de desagregación, a distintos niveles, que va desde la formación de mega-blocos regionales y grupos subregionales, hasta el fortalecimento de las autonomias locales. Atropado en médio de este torbellino de corrientes, el concepto de Estado Nacional se erosina en su poder y se estremece en sus estructuras”. (tradução nossa)

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A dialética entre os processos de globalização e de integração na perspectiva de construção de um espaço comunitário

compostas com base no Estado nacional, mas atropeladas pelos impulsos de

desnacionalização, abrem-se hoje diante de uma sociedade mundial inaugurada

pelo âmbito econômico. (HABERMAS, 2001, p. 78)

O desenvolvimento econômico, através da construção de um espaço comu-

nitário, torna-se mais significativo, no momento de superação da ideia de isola-

mento, em face das exigências de uma sociedade global aberta, já que o processo

de globalização fundamenta-se em três aspectos: a intensificação da circulação de

mercadorias, a perda do controle democrático do Estado sobre os fluxos mundiais e

a redução da relação espaço/tempo, o que confronta a soberania popular do Estado

Constitucional e a ordem internacional. Conforme Celso Albuquerque:

A sociedade internacional encontra-se em profunda transformação. O fenôme-

no da globalização só produziu a miséria. Todo capitalismo é selvagem, mas

talvez esta seja a sua fase mais selvagem. A grande questão é saber se é possí-

vel parar com a globalização e se voltar a valorizar o homem e não o capital. Ou

ainda, quando será revertido este processo. (MELLO, 1996, p. 35)

O processo de globalização, portanto, pode ser considerado como uma obra

inacabada, cujo perfil não se definiu completamente, porém, embora haja distintas

concepções imprecisas constantemente abordadas, não restam dúvidas de que tal

fenômeno é concebido como uma nova etapa capitalista, fruto do incessante pro-

cesso de acumulação e internacionalização dos capitais, o que leva o processo de

integração a ser considerado um meio de evitar os males perversos da globalização,

contrapondo-se à acirrada competição no mercado econômico mundial. No caso da

União Europeia, o que torna o novo processo de integração regional distinto da tra-

dicional abertura das economias nacionais e da promoção de não discriminação é a

conjuntura geopolítica e a afinidade cultural dos países da região.

Do substrato do Direito Comunitário para a realização da integração europeia

A União Europeia se fundamenta, axiologicamente, no conjunto de princípios

constitucionais considerados comuns a todos os Estados integrantes do processo

comunitário, sendo consagrado tal arcabouço jurídico no artigo 6o no 1 do Tratado

da Comunidade Europeia.

“A caracterização constitucional do TUE pressupõe que ele tem subjacente

uma determinada ideia de Direito. Qual seja essa ideia de Direito depende dos valo-

res que vigorarem na União e dos princípios que se retiram de sua ordem jurídica”

(MARTINS, 2004, p. 133). A constituição da União Europeia institui um ordenamento

jurídico com fundamento axiológico próprio, assentando-se em valores humanistas,

pois a construção do espaço comunitário europeu se realiza ao ter como seu centro

o homem, fim último do processo de integração dos povos europeus. Todavia, no

início das comunidades europeias, buscou-se primeiramente uma integração econô-

mica, em razão das circunstâncias político-econômicas do período da pós-Segunda

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Guerra, o que se traduziu na preponderância da vertente econômica dos objetivos

originários dos tratados comunitários. Deixaram-se de lado os ideais de paz e bem-

estar social dos povos europeus, sempre afirmados nos preâmbulos dos tratados co-

munitários e confirmados pelo desenvolvimento do direito constitucional da União

Europeia. Ensina João Mota de Campos:

Quando a guerra chega a seu termo, após seis anos de luta devastadora e san-

grenta, a Europa não é mais do que um vasto campo de ruínas: exausta espiri-

tualmente, dividida por ódios indizíveis, profundamente endividada e econo-

micamente destroçada, defronta-se com a necessidade imediata de um ingente

esforço de recuperação de sua capacidade de produção, destinado antes de

mais a alojar, vestir e alimentar populações carecidas de meios para satisfazer

as necessidades elementares. Mas o aparelho europeu de produção, que du-

rante seis anos fora em larga escala posto em serviço do esforço de guerra ou

destruído no decurso das hostilidades, não dispunha de equipamentos, nem

de capital, nem de matérias-primas que lhe permitissem retomar a actividade

normal. (CAMPOS, 2004, p. 33)

O direito constitucional da União Europeia, que se constrói com fundamen-

to nos valores constitucionais dos Estados-membros, assenta-se em princípios tais

como a democracia, o Estado de Direito, a proteção dos direitos fundamentais, a jus-

tiça social e o pluralismo. Contudo, o Tratado da União Europeia, que dispõe de uma

identidade europeia conferida pela existência do aparato axiológico da Comunidade,

pode ser considerado como uma Constituição, tendo algumas particularidades com

relação aos Estados nacionais europeus. Segundo Ana Maria Guerra Martins:

Essas particularidades são as seguintes: a) o TUE é uma constituição contratual,

pois resulta da vontade comum de todos os Estados-membros; b) o TUE é uma

constituição ainda em formação, que se baseia numa ordem de valores e esta-

belece uma determinada estrutura, mas ainda tem algumas insuficiências, que

terá de resolver; c) o TUE é uma constituição em transformação, pois é a expres-

são jurídica de uma entidade que possui um caráter dinâmico e evolutivo; d)

o TUE é uma constituição complementar, ou seja, deve respeitar os princípios

comuns às constituições dos seus Estados-membros, ao mesmo tempo que con-

tribui para a formação de um direito constitucional comum europeu; e) o TUE

é uma constituição finalística, uma vez que tem por objectivo a união cada vez

mais estreita entre os povos europeus. (MARTINS, 2004, p. 134)

Dessa forma, os valores constitucionais do Direito Comunitário Europeu fun-

damentam-se na liberdade, na democracia, na proteção dos direitos fundamentais,

na solidariedade, na justiça social e no pluralismo cultural. A expressão da liber-

dade aparece nos tratados da União Europeia com diversos propósitos. Na versão

originária dos tratados comunitários que instituíram as comunidades europeias, a

liberdade era princípio econômico fundamental do processo de integração europeia.

Tratava-se da liberdade de circulação de bens, pessoas, serviços e capitais no espaço

comunitário, consagrando-se no artigo 23 do Tratado da Comunidade Europeia.

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A dialética entre os processos de globalização e de integração na perspectiva de construção de um espaço comunitário

“Os princípios e regras comunitárias, distintos das normas constitucionais,

são peculiares à natureza jurídica de ordenamento supranacional, exigindo metódi-

ca criativa para sua concretização” (SOARES, 2000, p. 225). Nesse sentido, o princí-

pio democrático também se faz presente nas tradições constitucionais dos Estados-

membros do processo de integração europeia, sendo afirmado pela Comunidade

Europeia, embora não conste do Tratado Constitutivo. Segundo Ana Maria Guerra

Martins, o princípio da democracia, como um dos fundamentos das comunidades

europeias, é afirmado em diversos documentos do acervo comunitário:

Os antecedentes da afirmação do valor da democracia são os seguintes: Do-

cumento sobre a identidade europeia adoptado em Copenhaga, em 14 de De-

zembro de 1973 – os Chefes de Estado e de Governo sublinham a sua vontade

de salvaguardar os princípios da democracia representativa, do império de lei,

da justiça social e do respeito dos direitos do homem, enquanto elementos da

identidade europeia; Preâmbulo da AUE: refere que os Estados-membros estão

dispostos a promover em conjunto a democracia; a jurisprudência do TJ relativa

ao princípio democrático – no caso Roquete Frère, o TJ anulou um regulamento

do Conselho, por falta de consulta ao Parlamento Europeu, argumentando que a

Comunidade respeita os princípios democráticos fundamentais em que o povo

deve tomar parte no exercício do Poder por intermédio de sua assembleia re-

presentativa. (MARTINS, 2004, p. 212-213)

Dessa forma, o princípio democrático se encontra fundamentado no acervo

comunitário da União Europeia, o que se traduz no artigo F no 2 do Tratado de Maas-

tricht, com a exigência de respeito do mencionado princípio, no artigo 6o no 1, com a

possibilidade de suspensão de um Estado-membro que fere esse valor constitucional

e como condição de adesão à União nos termos do artigo 49 do Tratado de Amsterdã

e, finalmente, no Tratado de Nice, com a alteração do artigo 7, referente à possibili-

dade de verificação pelo Conselho Europeu da existência de um risco manifesto de

violação grave de algum dos princípios enunciados no artigo 6 do Tratado da União

Europeia.

Todavia, argumenta-se acerca da existência ou não do respeito ao valor cons-

titucional da democracia no seio da Comunidade e da União Europeia. Por um lado,

alega-se que a Comunidade Europeia, na sua constituição, não se vinculou ao prin-

cípio democrático, tendo em vista que os tratados comunitários não passaram pelo

crivo de nenhuma assembleia representativa dos povos europeus, tão-somente se

realizaram conforme os processos de vinculação internacional dos Estados. A re-

presentação popular em alguns órgãos comunitários é desproporcional à popula-

ção de cada Estado, o que é manifestamente contrário a tal valor constitucional.

Finalmente, a regra de unanimidade das decisões comunitárias se opõe ao consenso

democrático. Por outro lado, pondera-se favoravelmente ao caráter democrático da

União Europeia no tocante à participação de órgãos estatais dos países-membros

nas decisões comunitárias, tendo em vista que se procura fundamentar a integração

europeia em três pilares: a Comunidade, os Estados e os cidadãos. Dessa forma,

pondera Carlos del Pozo (2003, p. 12):

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O sistema institucional comunitário foi criado com cada uma das três Comu-

nidades Europeias nos anos cinquenta. O constituir, precisamente, um sistema

foi vital para a manutenção de um funcionamento correto e harmonioso de

cada uma das instituições existentes ao longo de quase cinco décadas. Nesses

anos, o sistema institucional suportou não somente os avatares lógicos de um

andamento que ia, nas ocasiões, fazendo-se, constituindo-se, fabricando-se no

dia-a-dia, como também resistiu ao peso de sucessivas ampliações no número

de Estados que aderiram ao esquema.5

A desigual representação popular somente se revela referente ao Parlamento

Europeu e, finalmente, a regra da unanimidade pode ser considerada um reflexo da

distinção entre a representação dos Estados-membros e dos povos europeus nos

órgãos comunitários da União, pois o procedimento decisório no cerne dos órgãos

comunitários resulta da perspectiva de que determinados órgãos representam os

países e outros representam os cidadãos europeus.

Contudo, os tratados comunitários, após sucessivas transferências de atri-

buições à Comunidade Europeia, procuraram minimizar essa ausência de legitimi-

dade democrática do referido órgão, na medida em que reforçaram os poderes do

Parlamento Europeu com a concessão de poder constituinte referente ao parecer

favorável do processo eleitoral uniforme, poder legislativo com a regulamentação

do processo de codecisão, controle político com a possibilidade de comissões de

inquérito e, finalmente, a participação na designação de membros de outros órgãos

comunitários.

Portanto, a possibilidade de o poder público da Comunidade Europeia emanar

atos normativos que conferem direitos e, simultaneamente, estipulam deveres aos

cidadãos europeus se fundamenta essencialmente no princípio democrático a ser

observado pelos órgãos comunitários e pelos Estados-membros, uma vez que as

suas normas jurídicas vinculam diretamente os seus destinatários. Assim, ensina

Jürgen Habermas (1998, p. 172), no marco da teoria discursiva do Direito, sobre o

princípio discursivo, que “válidas são aquelas normas (e somente aquelas normas)

às quais todos os que podem ver-se afetados por elas pudessem assentir como par-

ticipantes em discursos racionais”.6 Logo, o princípio democrático pode ser conside-

rado como resultado da correspondente especificação do princípio discursivo para

as normas de ação que se prestam em forma de direito e que podem ser justificadas

através de razões pragmáticas, políticas e morais. Desse modo, é imperativo analisar

a concretização do princípio democrático na União Europeia, tendo em vista que se

5 “El sistema institucional comunitario fue creado con cada una de las tres Comunidades Europeas en los anõs cincuenta. El constituir, precisamente, un sistema ha sido vital para el mantenimiento de un fincionamento correcto y armoniso de cada una de las instituciones existentes a lo largo de casi cinco décadas. En estos años, el sistema institutional há soportado no solo los avatares lógicos de una andadura que iba, en ocasiones, haciéndose, constuyéndose, fabricándose en el día a dia, sino que también dicho sistema há resistido el peso de sucesivas ampliaciones en el número de Estados que se adherían al esquema.” (tradução nossa).

6 “Válidas son aquellas normas (y sólo aquellas normas) a las que todos los puedan verse afectados por ellas pudiesen prestar assentimiento como participantes en discursos racionales” (tradução nossa).

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A dialética entre os processos de globalização e de integração na perspectiva de construção de um espaço comunitário

trata de uma instituição na qual o processo decisório se realiza sob distintos pris-

mas de legitimidade.

“A União é uma entidade única e diferente de tudo o que se conhece nas rela-

ções internacionais, pelo que não é possível proceder à importação de um qualquer

modelo que já tenha provado noutras instâncias” (MARTINS, 2004, p. 216-217). Con-

sequentemente, é necessário haver requisitos mínimos na construção de um espaço

comunitário com um fundamento democrático, os quais devem permear a existência

de um órgão representativo dos cidadãos europeus, como o Parlamento a ser com-

posto por sufrágio direto e universal, a democrática participação dos cidadãos euro-

peus no exercício do poder político no seio da comunidade, o que vem a se confron-

tar com a ausência de uniforme sistema eleitoral europeu e com a inexistência de um

sistema de partidos políticos e de associações públicas europeias para a formação

de uma opinião pública. Conforme ensina Carlos del Pozo (2003, p. 25):

A participação dos cidadãos constitui um elemento essencial a ter bem pre-

sente. Efetivamente, qualquer reforma que se pretenda levar a cabo não pode

realizá-la, em nenhum caso, de costas para aqueles a quem é dirigida, isto é,

aos cidadãos. Já terminaram os tempos nos quais os políticos tomavam deci-

sões que se imporiam, de alguma maneira, aos que tinham de cumpri-las.7

Assim, não haverá a construção de uma democracia política efetiva no seio do

espaço comunitário se o Parlamento Europeu, como órgão comunitário representati-

vo dos povos dos Estados-membros, não detiver competências comunitárias com a

mesma equivalência que as outras instituições da União Europeia, nas quais a pers-

pectiva representativa dos cidadãos não pode ser considerada imediata, tendo em

vista que aquele órgão comunitário representa a principal forma de democracia e de

responsabilidade política da comunidade, tão imprescindível à construção de uma

identidade europeia. Nesse sentido, Mário Lúcio Quintão Soares afirma:

O princípio pós-nacional, por sua vez, vincula-se à ideia de cidadania europeia,

consagrada no Tratado de Maastricht, repousando em núcleo universal da ide-

ologia democrática, pressupondo igualdade jurídica ou de disposições. Cabem

às instituições comunitárias, assentes em seus tratados comunitários, aplicar

e implementar os aludidos princípios, visando à adequação política das sobe-

ranias estatais e, em consequência, à construção do necessário espaço público

para a concretização da cidadania europeia. (SOARES, 1999, p. 56)

O Parlamento, como uma das mais importantes instituições do processo de

integração europeia, é o único órgão comunitário cujas competências legais foram

ampliadas, mediante as modificações realizadas nos tratados constitutivos e nas

7 “La participación de los ciudadanos constituye un elemento esencial a tener bien presente. Efectivamente, cualquier reforma que se pretenda llevar a cabo não pude realizarla, en ningún caso, de espaldas a aquellos a quienes va dirigida, es decir, a los ciudadanos. Ya terminaron los tiempos en los que los políticos tomaban decisiones que se impodrían, de alguna manera, a los que habían de cumplimentarlas” (tradução nossa).

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demais normas comunitárias que correspondem ao Direito Europeu Comum, ou seja,

os Acordos Orçamentários de 1975, o Ato Único Europeu e o Tratado da União Euro-

peia. Kriztina Gosztonyi pondera, acerca da legitimidade democrática do Parlamento

Europeu:

O maior problema enfrentado por esta Instituição refere-se ao déficit demo-

crático, que afeta o Sistema institucional da União, já que à diferença dos

Parlamentos nacionais, que ostentam o pleno direito de legislar, o PE tem um

papel secundário na elaboração das normas comunitárias. (GOSZTONYI, 2003,

p. 186)

Assim, o princípio constitucional da democracia é, portanto, consolidado no

âmbito da União Europeia sob uma dupla perspectiva. Enquanto os povos europeus

estão representados no Parlamento Europeu, exige-se a democracia nos países como

conditio sine qua non para o ingresso no espaço comunitário. Sob essa perspectiva

constitucional da Comunidade Europeia, a União Europeia também se fundamenta

no Estado de Direito, profundamente relacionado ao valor da democracia, no qual o

exercício democrático dos poderes públicos significa a total subordinação dos titu-

lares dos órgãos comunitários às normas jurídicas preestabelecidas. Assim, pondera

Mário Lúcio Quintão Soares:

A determinação do conteúdo do princípio democrático estabelece o alicerce

democrático em que os Estados-membros pretenderam fazê-la assentar, enun-

ciado nos preâmbulos do Ato Único Europeu e do Tratado de Maastricht. A

União Europeia se estrutura, portanto, em Estados democráticos de Direito, que

constituem a imagem de Estado recepcionada por suas instituições. (SOARES,

2000, p. 233)

O arcabouço jurídico da Comunidade Europeia se encontra no seu acervo co-

munitário, em especial em seus tratados constitutivos, os quais determinam os ob-

jetivos a serem concretizados na construção do espaço comunitário, a constituição

de um quadro institucional fundado no princípio de equilíbrio de poderes, de um

sistema próprio de contencioso com a garantia de proteção judicial e um sistema de

fontes. No entanto, nenhum dos tratados comunitários possuía um catálogo de direi-

tos fundamentais, consagrando algumas garantias, porém observavam a separação

clássica dos poderes, o que não impossibilita a afirmação da comunidade jurídica.

Logo, o valor da proteção dos direitos fundamentais consiste também num elemen-

to essencial da identidade europeia, pois não se poderá conceber uma constituição

moderna sem a concretização da democracia e sem o respeito dos direitos da pessoa

humana como tal. Habermas pondera:

A estrutura da solidariedade entre cidadãos de um Estado não coloca empe-

cilho à sua possível ampliação para além das fronteiras nacionais. Por sinal,

a confiança crescente não é apenas consequência de uma formação política

comum de opinião e vontade, mas também a sua precondição. Até agora, a

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A dialética entre os processos de globalização e de integração na perspectiva de construção de um espaço comunitário

União Europeia realizou-se sob a forma desse processo circular. Hoje o caminho

para o aprofundamento democrático da União e para o necessário cruzamento

recíproco das esferas públicas nacionais também envolve necessariamente um

capital de confiança já acumulado. (HABERMAS, 2006, p. 84)

Os valores constitucionais da solidariedade e da justiça social, no seio do

processo de integração europeia, implicam a melhoria das condições de vida das

populações, a redução das desigualdades e de atrasos das diferentes regiões, o que

veio a ser considerado no artigo 136 do Tratado da Comunidade Europeia, original-

mente pensado em relação à livre circulação de trabalhadores. Assim, os tratados

da União constituem um ordenamento jurídico fundamental, mas também vinculam

os poderes públicos, sendo dotados de supremacia, o que significa que todos os

atos emanados dos órgãos públicos comunitários devem ser compatíveis, formal-

mente, processualmente e materialmente, com eles. Portanto, o projeto de Consti-

tuição para a Comunidade Europeia possibilitará uma base jurídica necessária, sob

a perspectiva da União Europeia, com a adesão às normas da Convenção Europeia

de Direitos Humanos, tendo em vista que os direitos fundamentais constantes desse

tratado normativo e das tradições constitucionais dos Estados-membros incluem-

se no ordenamento jurídico da União como os seus princípios gerais. O princípio

da solidariedade é aplicado no seio da Comunidade Europeia com a manifestação

da coesão e da comunhão entre os Estados e povos europeus, o que implica o com-

prometimento dos Estados-membros na adoção de todas as medidas necessárias à

concretização dos objetivos enumerados nos tratados comunitários, abstendo-se de

adotar ações que ponham em xeque a realização das finalidades comunitárias. João

Mota de Campos ensina:

O princípio da solidariedade implica, indiscutivelmente, um dever geral de co-

operação leal. Também o princípio da solidariedade está ao serviço da coesão

comunitária, inscrito nos artigos 158 a 162, CE, porque a realização do objecti-

vo comunitário da promoção de um desenvolvimento harmonioso do conjunto

da Comunidade, tendo em vista que o reforço da sua coesão econômica e social

através, designadamente, da redução da diferença entre as diversas regiões e

do atraso das regiões menos favorecidas, incluindo as zonas rurais, supõe que

os Estados mais ricos da Comunidade exprimam a sua solidariedade em relação

aos menos desenvolvidos consentindo, através da sua contribuição para o orça-

mento comunitário e, portanto, do financiamento das despesas comuns, numa

transferência de recursos financeiros que implica o correspondente sacrifício

próprio. (CAMPOS, 2004, p. 359)

Outro princípio constitucional do Direito Europeu diz respeito ao acervo co-

munitário, visto que, em decorrência dos alargamentos sucessivos ao longo do

processo de integração e com a finalidade de se evitar a modificação do aspecto

específico e inovador do ordenamento jurídico comunitário, tal norma constitu-

cional tem como objetivo a manutenção da integralidade e do desenvolvimento

do complexo normativo da União. Dessa maneira, os novos Estados, no processo

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de adesão ao espaço comunitário, devem observar integralmente todo o Direito da

União no estágio de desenvolvimento em que se encontra, mas também todas as

decisões políticas tomadas até o momento de adesão.

O princípio de respeito às identidades nacionais tem como finalidade deter-

minar os fundamentos que individualizam um Estado relativamente aos outros,

conferindo-lhes especificidade. O respeito às identidades nacionais manifesta-se

em diversas ocasiões nos tratados comunitários, no que se refere à preservação da

língua de cada país, à diversidade cultural, às tradições constitucionais dos Estados-

membros, mas também há a manifestação da identidade europeia no que diz respei-

to à existência de valores comuns, de laços de solidariedade, à criação da cidadania

comunitária, à instituição da moeda única e à afirmação da União perante terceiros

Estados no contexto das relações internacionais. Portanto, segundo Ana Maria Guer-

ra Martins:

A par das identidades nacionais o TUE refere a identidade europeia, que a União

também deve respeitar. A União dispõe de uma autonomia e de uma especifici-

dade em relação aos Estados que a compõem. Existe um espírito, uma consci-

ência, uma identidade europeia, que é prévia à União e que ela deve aproveitar,

aprofundar e desenvolver progressivamente. A identidade europeia existe an-

tes da União, mas a sua consciencialização vai passar em grande parte por ela.

Além disso, a União funciona como um espécie de catalisador dessa identidade,

pois as suas realizações vão contribuir para a sua construção, aprofundamento

e desenvolvimento. A identidade europeia define-se a partir da existência de

determinadas semelhanças que aproximam mais os Estados e os povos da Euro-

pa uns dos outros do que de terceiros, o que conduz à criação de determinados

laços de solidariedade que unem esses Estados e esses povos. A identidade

europeia pressupõe a identificação dos cidadãos com um determinado modelo

econômico, social e político protagonizado, por enquanto, pela União. (MAR-

TINS, 2004, p. 254)

E, finalmente, os princípios da subsidiariedade, da proporcionalidade e da

flexibilização dizem respeito à repartição de competências, de atribuições entre a

União e seus Estados-membros, bem como a seu exercício na construção de um es-

paço comunitário, no tocante também à aceitação da realização do interesse público

pelo cidadão e pelos corpos sociais situados entre os Estados-membros e as insti-

tuições comunitárias. Com relação à constitucionalização do Direito Internacional,

Habermas pondera:

A constitucionalização do Direito Internacional não pode ser compreendida

como a continuação lógica da domesticação constitucional de um poder estatal

que surgiu naturalmente. O ponto de partida para a juridicização das relações

internacionais é constituído por um direito internacional que, do ponto de vis-

ta da sua forma clássica, inverte a relação entre Estado e constituição. Pois ele

não é destituído daquilo que, no âmbito do direito internacional, corresponde a

uma constituição, criada por sócios jurídicos livres e iguais. Falta-lhe um poder

supranacional, para além dos Estados rivais, que forneceria à comunidade de

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A dialética entre os processos de globalização e de integração na perspectiva de construção de um espaço comunitário

Estados, constituída segundo o direito internacional, a possibilidade de sanção

necessária para a realização de suas regras. (HABERMAS, 2003, p. 135)

No caso da União Europeia, é necessário considerar que, na perspectiva cons-

titucional do Direito Europeu, a aplicação da concepção de Constituição a outros

modelos de agregação do poder político implica a superação dos quadros tradi-

cionais, que vão além do prisma da constelação nacional e histórica dos Estados

constitucionais que atualmente conhecemos. Primeiramente, pode-se considerar a

possibilidade de uma constituição democrática além da perspectiva nacional, ou

seja, uma constituição transnacional, cujas exigências podem não refletir as deman-

das estaduais sem a perda de seu perfil constitucional, em virtude da necessidade

de enquadramento constitucional do poder político que afeta diretamente a esfera

jurídica dos seus destinatários. Secundariamente, é possível conceber o Tratado Co-

munitário da União Europeia como uma constituição, sem que, para tal concepção,

haja consequentemente o desaparecimento dos textos constitucionais dos Estados-

membros da comunidade. Porém, a Constituição transnacional deve necessariamen-

te estar em consonância com as tradições constitucionais dos países, como também

as constituições dos Estados precisam respeitar a Constituição da União Europeia. E,

finalmente, a construção do texto constitucional da Comunidade Europeia é um tra-

balho permanente, em constante formação, visto que o perfil dinâmico e evolutivo

da integração europeia reflete-se na sua Constituição, que poderá ser vista como um

processo com o necessário respeito às identidades nacionais. Nesse sentido, Martins

afirma:

A eventual qualificação constitucional do TUE deve ser compreendida no qua-

dro de um constitucionalismo global, ou, pelo menos, de um constituciona-

lismo europeu, em que coexistem vários níveis constitucionais, que tanto se

podem situar aquém como para lá do Estado. (MARTINS, 2004, p. 123)

Portanto, a Constituição transnacional, nessa perspectiva pós-nacional do

constitucionalismo moderno, pode ser considerada como uma realidade além

dos Estados nacionais e que os interliga numa comunidade política mais ampla e

complexa a partir da construção de um espaço comunitário. A Comunidade Europeia

se encontra no processo de construção do espaço comunitário, em permanente

formação e transformação, o que leva a considerar que o poder constituinte no

seio da União não pode estar atrelado às concepções tradicionais, oriundas das

revoluções burguesas do século XVIII, mas precisa comungar com esse aspecto

dinâmico de transformação, próprio da integração europeia. Todavia, pondera

Franscico Llorente:

Por outro lado, no entanto, não podemos continuar estudando o Direito Consti-

tucional dos países-membros da União como se entre eles não houvesse outros

vínculos além daqueles derivados da cultura e da história comum, tão marcadas,

ademais, por enfrentamentos e discórdias, ou como se o processo de integração

não implicasse uma transformação profunda do Estado, que obriga a reelaborar

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velhas categorias e a criar outras. Os Estados-membros da União conservam a

sua identidade nacional, que a União há de respeitar, mas uma boa parte de sua

legislação é legislação comunitária ou está determinada por ela (fala-se em 80%

das normas de conteúdo econômico). (LLORENTE, 2006, p. 298)

Os tratados comunitários devem observar os requisitos mínimos para uma

Constituição ser qualificada como tal em seu sentido material, mesmo que nem to-

das as normas comunitárias estejam inseridas no ordenamento constitucional da

União Europeia. E, finalmente, a concepção de promulgação de uma Constituição

formal para a democratização do Direito Comunitário no seio do processo de inte-

gração europeia deve vislumbrar três importantes razões: a necessária adequação

do modelo internacional formal ao modelo constitucional material, a limitação do

poder político da Comunidade com a maior garantia dos direitos fundamentais dos

cidadãos no quadro constitucional e a falência da atual estrutura internacional.

Conclusão

Diante dos desafios do processo de globalização, é necessário, a partir da

perspectiva pós-nacional dos Estados constitucionais, ponderar os princípios jurídi-

cos referentes essencialmente à soberania estatal, à transferência de competências

legais a entidades comunitárias, à aplicação direta dos atos normativos da Comuni-

dade e de normas comunitárias e, finalmente, à concretização das quatro liberdades

comunitárias na construção de um espaço democrático de integração.

Consequentemente, o Estado Democrático de Direito, limitado pelo direito e

legitimado pela soberania popular, é subordinado a princípios e regras internacio-

nais, como a autodeterminação dos povos, a proteção dos direitos fundamentais,

dentre outros, o que revela o Estado constitucional como estrutura política funda-

mental, embora fracionada pelos perversos parâmetros do processo de globalização

e com dificuldades para alcançar a eficácia de suas normas na esfera interna.

Assim, o processo de integração pode ser a resposta que está além da perspec-

tiva do Estado nacional. Porém, uma integração entre economias distintas e com um

grau sem precedentes de assimetria entre os Estados-membros deve ser realizada

através da participação dos destinatários das decisões num medium que possibilita

a formação da vontade e a tomada de posição comunicativamente, com a finalidade

de aprofundar a inserção dos países no cenário internacional e de concretizar um

consenso democrático.

Dessa forma, a construção histórica do Estado nacional possibilitou uma fun-

damentação em que se articula e se institucionaliza a concepção republicana de uma

comunidade jurídica de sujeitos de direitos livres e iguais no Estado de Direito, po-

rém agora no contexto de sociedades pluralistas, que já não podem ser concebidas

no Estado homogêneo. E, em razão da multiplicidade de formas culturais do mundo

da vida, a perspectiva habitual do Estado nacional já não pode propiciar os funda-

mentos para a manutenção da cidadania.

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A dialética entre os processos de globalização e de integração na perspectiva de construção de um espaço comunitário

A Constituição da comunidade político-econômica no seio da União Europeia,

cuja forma final ainda não se pode vislumbrar, em razão de seu caráter dinâmico,

ainda se encontra em elaboração, tendo em vista que se trata de uma Constituição

distinta, mas complementar, das tradições constitucionais dos Estados europeus

num processo de integração ainda aberto e sem uma estrutura já definida e comple-

ta, sendo que a constitucionalização do Direito Comunitário deve assentar-se nos

modelos constitucionais dos países-membros na construção da comunidade.

No contexto da Comunidade Europeia, são necessários requisitos mínimos na

construção de um espaço comunitário, com um fundamento democrático, os quais

devem permear o órgão representativo dos cidadãos europeus, o Parlamento, a ser

composto por sufrágio direto e universal. A democrática participação dos cidadãos

europeus no exercício do poder político no seio da Comunidade vem a se confrontar

com a ausência de um sistema eleitoral europeu uniforme e de um sistema de par-

tidos políticos e de associações públicas europeias para a formação de uma opinião

pública.

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65

Perigosdeumahermenêutica civil-constitucional(Dangers of a constitutionalized hermeneutics of Private Law)

César fiuza*

R E S U M OOpresentetrabalhotemporobjetivoapresentaralgunsquestionamentosàrecém-instituídacivilísticaconstitucionalizada.OconceitoatualdeDireitoCivil-constitucionaljánãocoincidecomoconceitodosanos1990,tampoucocomaqueledosprimórdiosdoséculoXXI.AinterpretaçãodoDireitoPrivadoà luz daConstituição pode levar a alguns abusos, a situações de invasãoilegítimanaesferaprivada,porvezesmesmonaesferaindividual.Hádeseimporlimitesàhermenêuticacivil-constitucional.

P A L A V R A S - C H A V EHermenêutica;Direitocivil-constitucional;Perigos;Limites.

A B S T R A C TThisarticleaimsatposingsomequestionsconcerningtherecentlyinstitutedconstitutionalizedhermeneuticsofPrivateLaw.Thecurrentconceptofaso-calledconstitutionalizedPrivateLawisnolongerthesameasitusedtobeinthe90’s,norinthethresholdofthe21stcentury.TheinterpretationofPrivateLawaccordingtotheConstitutionmayleadtosomeabusesandsituationsofillegitimateinvasionintotheprivatesphere,attimesevenintotheindividualscope.Theremustbeboundaries to theconstitutionalizedhermeneuticsofPrivateLaw.

K E y w O R D SHermeneutics;ConstitutionalizedPrivateLaw;Dangers;Limits.

Fala-se muito no fenômeno da constitucionalização do Direito Civil. Que sig-

nifica isso? Significa que o Direito Civil se acha contido na Constituição? Significa

que a Constituição se tornou o centro do sistema de Direito Civil? Significa que as

normas de Direito Civil não podem contrariar a Constituição?

* Doutor em Direito pela UFMG, professor titular na Universidade Fumec, professor adjunto de Direito Civil nos cursos de graduação e de pós-graduação da PUC Minas e da UFMG, professor colaborador na Universidade de Itaúna, advogado militante.

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Perigos de uma hermenêutica civil-constitucional

De fato, não significa nada disso. Por constitucionalização do Direito Civil

deve-se entender, hoje, que as normas de Direito Civil têm de ser lidas à luz dos

princípios e valores consagrados na Constituição, a fim de se implementar o pro-

grama constitucional na esfera privada. A bem da verdade, não só as normas de

Direito Civil devem receber leitura constitucionalizada, mas todas as normas do

ordenamento jurídico, sejam elas de Direito Privado, sejam de Direito Público. Esse é

um ditame do chamado Estado Democrático de Direito, que tem na Constituição sua

base hermenêutica, o que equivale a dizer que a interpretação de qualquer norma

deverá buscar adequá-la aos princípios e valores constitucionais, uma vez que esses

mesmos princípios e valores foram eleitos por todos nós, por meio de nossos repre-

sentantes, como pilares da sociedade e, consequentemente, do Direito.

Falar em constitucionalização do Direito Civil não significa retirar do Código

Civil a importância que merece como centro do sistema, papel que continua a exer-

cer. É no Código Civil que iremos buscar as diretrizes mais gerais do Direito Comum.

É em torno dele que gravitam os chamados microssistemas, como o imobiliário, o da

criança e do adolescente, o do consumidor e outros. Afinal, é no Código Civil, princi-

palmente na posse e na propriedade, na teoria geral das obrigações e dos contratos,

que o intérprete buscará as normas fundamentais do microssistema imobiliário. É

a partir das normas gerais do Direito de Família e da própria Parte Geral do Código

Civil que se engendra o microssistema da criança e do adolescente. Também será no

Código Civil, mormente na Parte Geral, na teoria geral das obrigações e dos contra-

tos, além dos contratos em espécie, que se apoia todo o microssistema do consumi-

dor. Não se pode furtar ao Código Civil o trono central do sistema de Direito Privado.

Seria incorreto e equivocado ver nesse papel a Constituição.

No entanto, apesar disso, se a Constituição não é o centro do sistema juscivi-

lístico, é, sem sombra de dúvida, o centro do ordenamento jurídico como um todo.

É, portanto, a partir da Constituição que se devem ler todas as normas infraconstitu-

cionais. Isso é o óbvio mais fundamental no Estado Democrático.

Vejamos um exemplo de como deve ser essa leitura.

Partamos de um problema concreto, talvez um tanto caricatural, mas esclare-

cedor: A celebrou com B contrato de prestação de serviços de jardinagem. No con-

trato havia cláusula que concedia a A, na condição de tomador do serviço, poderes

de castigar B fisicamente, caso este cometesse alguma falha. Pergunta-se: é válida a

cláusula contratual? Por quê?

Qualquer que seja a posição doutrinária, a resposta genérica será não, não é

válida a cláusula. Ao responder o porquê é que as diferenças aparecem.

Antigamente, quando não se falava em Direito Civil-constitucional, a resposta

teria como fundamento exclusivo o Código Civil. A cláusula não é válida porque seu

objeto é ilícito, e segundo o art. 104, II, do Código Civil, a validade do contrato re-

quer objeto lícito. Essa seria uma possível resposta tradicional à pergunta.

Uma resposta radical, dentro do movimento de constitucionalização do Direito

Civil, teria em conta ser a Constituição o centro do ordenamento juscivilístico. Assim,

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César fiuza

a resposta seria não, a cláusula é inválida porque contrária ao princípio da dignidade

humana, consagrado no art. 1º, III da Constituição.

A resposta que reputo correta, porém, leva em conta o papel central exercido

pelo Código Civil, lido, entretanto, à luz da Constituição. Por esse prisma, de acordo

com o art. 104, II do Código Civil, a cláusula é inválida por ter objeto ilícito. E o obje-

to é ilícito porque afronta diretamente o princípio da dignidade humana, consagrado

no art. 1º, III, da Constituição. Essa sim é uma leitura correta do problema, sob o

enfoque constitucionalizado do Direito Civil. Isso é Direito Civil-constitucional, que

parte dos ditames e dos limites do Direito Positivo, para, num enfoque constitucio-

nal, resolver o problema.

Outro exemplo que poderíamos dar é o do imóvel residencial da pessoa soltei-

ra. Seria ele passível de execução por dívidas?

Segundo uma leitura tradicional, seria, uma vez que a Lei 8.009/90, que trata

do assunto, refere-se ao imóvel residencial da entidade familiar. Como não existe

família de uma pessoa só (não há conjunto unitário no Direito), então a conclusão

óbvia que se segue inexoravelmente é a de que o imóvel da pessoa solteira pode ser

penhorado por dívidas. Mesmo porque, se a Lei 8.009/90 se refere a entidade fami-

liar, é porque entendeu não merecer a pessoa solteira a mesma proteção conferida à

família. O alargamento da interpretação dessa norma, mesmo com base em valores e

princípios constitucionais, não se justificaria, diante da mens expressa da lei de não

estender ao solteiro a mesma dignidade da família. Isso, às vezes, ocorre; na balança

de valores e princípios, pode um valor, em tese maior, ceder a um aparentemente

menor: é o caso da permissão expressa de lançamento do nome do devedor inadim-

plente nos órgãos de proteção ao crédito. A dignidade cede ao crédito; por outro

lado, pensa-se também na dignidade do credor.

Todavia, numa interpretação civil-constitucional, que parta dos limites da pró-

pria Lei 8.009/90, podemos perfeitamente invocar o princípio da dignidade humana

(art. 1º, III da CF) a favor da pessoa solteira. É que a lei em análise expressamente

se refere a dívidas do filius-familias, portanto pessoa solteira, para efeito da impe-

nhorabilidade do imóvel residencial. Com base, pois, nessa disposição legal, lida à

luz do princípio constitucional da dignidade humana, pode-se estender a impenho-

rabilidade ao imóvel da pessoa solteira. Afinal, se é esse o princípio que fundamen-

tou a impenhorabilidade do imóvel residencial familiar (Lei 8.009/90), então deverá

também fundamentar a proteção ao imóvel do solteiro. Afinal, as pessoas solteiras

têm, elas também, dignidade a ser promovida, mas isso a partir de uma “brecha” na

própria Lei 8.009/90. Fosse ela taxativa, a dignidade do solteiro deveria ceder ao

crédito, como, aliás, ocorre em outros casos.

O que não se pode, definitivamente, é admitir uma interpretação absoluta-

mente inopinada, descompromissada com os ditames da norma posta, apenas com

base nos valores constitucionais, ao sabor do arbítrio do juiz, de forma absurdamen-

te alternativa e, por vezes, até surpreendente. Isso é arbitrariedade, é insegurança

jurídica. E, infelizmente, exemplos não faltam. Recentemente, tive notícia de uma

decisão que obrigava uma pessoa a prestar alimentos a um seu primo, com base no

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Perigos de uma hermenêutica civil-constitucional

princípio da dignidade humana. Trata-se, a toda vista, de decisão ilegítima, contra

legem. O Código Civil e a Lei de Alimentos são claros: a obrigatoriedade de pres-

tar alimentos se limita aos cônjuges, companheiros, descendentes, ascendentes e

irmãos. Primos não entram. Quis a Lei que, faltando essas pessoas, a incumbência

fosse do próprio Estado, quando muito. Isso ocorre também na esfera trabalhista: é

do Estado, não do patrão, o dever de prestar assistência, inclusive salários à mulher

que acaba de dar à luz, ou ao enfermo, além de quinze dias, dentre outros casos. A

opção é consciente. Não se pode, assim, ferir limites legítimos da lei, mesmo infra-

constitucional, em nome de valores constitucionais, por mais nobres que sejam. A se

aceitar a decisão em vista, em breve uma pessoa será obrigada a prestar alimentos

aos vizinhos, com base na dignidade humana.

E assim como esses problemas foram solucionados, assim também deverão

ser todos os problemas na esfera do Direito Civil, de todo o Direito infraconstitucio-

nal (FIUZA, 2008, p. 118-120).

Como vimos, o Direito Civil-constitucional não se resume à interpretação do

Direito civil à luz da Constituição. Devemos entendê-lo também como instrumento

de implantação do programa constitucional na esfera privada, sem, no entanto, fe-

rir os limites legítimos impostos pela Lei, nem suprimir liberdades privadas, como

abordado a seguir.

Evolução da civilística constitucional no Brasil

A civilística constitucional no Brasil passou por três fases.

A primeira delas teve caráter meramente conteudístico. Em outras palavras, a

preocupação era tão-somente a de identificar o conteúdo de Direito Civil na Consti-

tuição da República. Identificaram-se normas de Direito Contratual, de Direito das

Coisas (principalmente relativas à propriedade), normas de Direito de Família, de

Direito das Sucessões e de Direito Empresarial. Esse era o chamado Direito Civil-

constitucional no fim dos anos 1980 e no início dos anos 1990.

O grande marco teórico dessa fase foi o eminente professor da Universidade

de São Paulo, Carlos Alberto Bittar. Após a promulgação da Carta de 1988, veio a

lume a obra Direito Civil Constitucional, que visava a apontar o conteúdo de Direito

Civil no texto constitucional. Assim ficou a primeira fase, adstrita a uma análise de

conteúdo somente.

A segunda fase pode ser denominada interpretativa. É totalmente diferente da

primeira e teve por escopo inverter a hermenêutica tradicional que, de certa forma,

interpretava a Constituição à luz do Código Civil. Nessa segunda fase, destacaram-se

a necessidade e a importância de uma interpretação dos problemas de Direito Priva-

do sob a ótica dos valores e princípios constitucionais.

Na verdade, essa segunda fase ainda não passou nem passará, enquanto per-

durar o Estado Democrático de Direito, que tem por base a Constituição.

O marco teórico dessa segunda fase foi a escola do Rio de Janeiro e, princi-

palmente, a obra do também eminente professor da Uerj, Gustavo Tepedino. Seus

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principais escritos a respeito do tema ainda encontram-se, até hoje, no livro Temas

de Direito Civil, editado pela Renovar, no fim da década de 1990.

Para Tepedino, o centro do ordenamento juscivilístico é a própria Constitui-

ção, não o Código Civil.

A escola carioca, diga-se, inspirou-se nas teses de Pietro Perlingieri, civilista

italiano de grande envergadura.

Outro marco importante foi a obra do professor argentino Ricardo Luis Loren-

zetti, editada pela RT, em 1998, com o nome de Fundamentos do Direito Privado.

Esse trabalho teve enorme repercussão em nossos meios acadêmicos, e ainda tem.

Embora Lorenzetti não identifique qualquer centro no sistema, reconhece a

importância da Constituição como irradiadora de valores e princípios que devem

guiar o intérprete no Direito Privado.

Por fim, a terceira fase da civilística constitucional pode ser denominada de

fase programática.

Nessa etapa, a preocupação já não é tão-somente a de ressaltar a necessidade

de uma hermenêutica civil-constitucional, mas também a de destacar a imperiosida-

de de se implantar o programa constitucional na esfera privada.

Mas que programa constitucional?

Ora, a Constituição, ao elevar a dignidade humana ao status de fundamento da

República, traçou um programa geral a ser cumprido pelo Estado e por todos nós.

Esse programa consiste em promover o ser humano, em conferir-lhe cidadania, por

meio da educação, da saúde, da habitação, do trabalho e do lazer, enfim por meio

da vida digna. E a própria Constituição, por vezes, fixa parâmetros e políticas para

a implementação desse programa. Assim, o Direito Civil-constitucional não se resu-

me mais ao Direito Civil interpretado à luz da Constituição, mas interpretado à luz

da Constituição com vistas a implantar o programa constitucional de promoção da

dignidade humana. Em outras palavras, não se trata mais de simplesmente dizer o

óbvio, isto é, que o Direito Civil deve ser lido à luz da Constituição, mas antes de

estabelecer uma interpretação civil-constitucional que efetivamente implante o pro-

grama estabelecido na Constituição. Trata-se de estabelecer um modus interpretandi

que parta dos ditames e dos limites da norma posta, numa ótica constitucional, as-

sim promovendo a dignidade humana.

Resta a pergunta: como implementar esse programa?

O Estado e o indivíduo são corresponsáveis nessa tarefa. O Estado deve elabo-

rar políticas públicas adequadas, não protecionistas, que não imbecilizem o indiví-

duo, nem lhe deem esmola. Deve disponibilizar saúde e educação de boa qualidade;

deve financiar a produção e o consumo; deve engendrar uma política de pleno em-

prego; deve elaborar uma legislação trabalhista adequada; deve garantir infraestru-

tura; deve também garantir o acesso de todos à Justiça; deve criar e estimular meios

alternativos de solução de controvérsias, dentre milhares de outras ações que deve

praticar.

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Perigos de uma hermenêutica civil-constitucional

Os indivíduos, pessoas naturais e jurídicas, também têm sua parcela, não me-

nos importante, na construção de uma sociedade justa. São atitudes condizentes

com o programa constitucional pagar bem aos empregados (repartir o pão); agir com

correção e não lesar a ninguém, como já dizia Ulpiano, há 1.800 anos; exercer o do-

mínio e o crédito tendo em vista a função social; dentre outras.

Mas como exigir dos indivíduos a implementação do programa?

Seguramente através do convencimento, em conformidade com uma política

de coerção mínima, ou seja, a coerção entra quando o convencimento não funcionar.

Os estímulos tributários e de outras naturezas são também um bom instrumento de

convencimento. O que não se pode admitir é a invasão violenta, ilegítima, ditatorial

na esfera privada, por vezes íntima, em nome da dignidade ou da função social.

Isso representaria um retrocesso histórico; estaríamos abrindo mão de liberdades

duramente conquistadas. Há que sopesar os dois valores, dignidade e liberdade.

Um não pode sobreviver sem o outro. O ser humano só pode ser digno se for livre.

Sem liberdade, não há dignidade. Assim, a dignidade há de ser implementada pelo

indivíduo não por força da coerção, mas da persuasão, da opção livre, obtida pelo

convencimento, fruto da educação. São muito importantes e eficazes as campanhas

educativas. Exemplo é a campanha antitabagista, que reduziu consideravelmente o

consumo do cigarro, sem se valer praticamente de qualquer tipo de coerção. Para

que, então, a violência da coerção, a supressão da liberdade em outras hipóteses? O

que vemos hoje é a invasão pura e simples do Estado na esfera individual, por vezes

em nome da dignidade, por vezes sem nenhuma legitimidade, no fundo só para au-

mentar sua receita.

Limites à interpretação civil-constitucional

Como visto acima, uma interpretação civil-constitucional radical, literal, pode

levar a situações-limite de supressão das liberdades individuais na esfera privada e,

às vezes, mesmo na esfera íntima. Em nome da dignidade, não podemos abrir mão

da liberdade tão duramente conquistada. Não há dignidade sem liberdade.

Temos todos o dever de ficar alertas para o grave perigo de uma hermenêutica

civil-constitucional radical e leviana, que conduz inexoravelmente à perda da liber-

dade. Isso, diga-se de passagem, já vem ocorrendo.

Tudo começou, talvez, com um inocente cinto de segurança. Tão útil, tão

benéfico à saúde e à vida, mas tão perverso, quando imposto coercitivamente ao

motorista, como se fosse ele um imbecil, sem temor pela própria vida. Em nome da

saúde pública, o Estado invadiu a intimidade de nossos veículos, chamando-nos a

todos de idiotas e nos impondo violentamente o uso do cinto de segurança. É como

se, de fato, não possuíssemos qualquer zelo pela própria vida. Se fosse pela vida

do próximo, ainda seria de se entender. Mas não. O Estado estava muito preocu-

pado com o descaso que nutríamos por nós mesmos. Assim, o cinto de segurança

se tornou obrigatório. E nós, o que fizemos? Nada? Antes tivesse sido nada; pior,

aplaudimos a supressão de nossa liberdade, liberdade de sermos tratados como

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César fiuza

pessoas conscientes e responsáveis, liberdade de assumir um pequeno risco calcu-

lado, em que os únicos prejudicados seríamos nós mesmos. Tudo isso em nome da

dignidade, da saúde pública. Como se o cinto de segurança fosse responsável pelas

mortes no trânsito. Como se as ruas e estradas mal desenhadas e esburacadas, fru-

to da incompetência e da corrupção, não desempenhassem o papel preponderante.

Como o Estado não tem dinheiro para arrumar as ruas e as estradas, então, que seja-

mos forçados a usar o famigerado cinto. Pois há que dizer com todas as letras: com

o dinheiro que gastamos para construir, mal e porcamente, uma estrada superfatura-

da, seria possível construir dez highways de dar inveja aos alemães. Com o dinheiro

que se gasta para ganhar uma medalha olímpica de mentira e, de verdade, levar uma

malta de incompetentes para se divertir em Pequim, ou seja lá onde for, às custas do

erário público, seria possível tapar mil vezes os buracos da grande São Paulo. Mas

vivemos na ditadura das mil maravilhas, onde ninguém diz nada, todo mundo aceita

impassível os maiores absurdos contra a liberdade, com os aplausos da imprensa e

da comunidade acadêmica civil-constitucional. Vivas para a dignidade humana!!!

Tudo começou também com uma “revolucionária” lei regulamentando a

união estável. O negócio passou a ser o seguinte: ou você se casa, ou se casa....

Entendeu?

Hoje, no Brasil, temos que ser perfeitos. As câmeras nos vigiam a todo

instante. Basta uma “pisadinha” um pouco mais pesada no acelerador, pouco im-

porta em que condições, e “smile! You’re on candid camera!” Pouco depois, vem

a inexorável multa. Mas será que esse Estado que exige a perfeição, que não ad-

mite qualquer deslize, será ele perfeito? Com o cidadão honesto, que transgride

minimamente uma norma de trânsito, não há comiseração. Por outro lado, toda a

comiseração para os assaltantes, os traficantes, os políticos corruptos, os empre-

sários desonestos, os sequestradores e por aí vai.

Recentemente, o país assistiu ao sequestro de duas adolescentes em Santo

André. Infelizmente, a polícia, com medo de agir, acabou por meter os pés pelas

mãos, e uma das moças morreu, vindo a outra a sofrer lesões graves. Que dizer do

episódio? A polícia deveria ter atirado no psicopata, quando teve oportunidade, é o

que ouvi muitos dizerem. Para isso ela possui atiradores de elite. Realmente, deveria

mesmo. Num país de verdade, numa democracia de verdade, onde o cidadão hones-

to é protegido, é isso que teria sido feito. Mas no Brasil, em nossa ditadura de ba-

nanas, tivesse a polícia encostado num fio de cabelo do bandido, seriam imprensa,

Igreja, MST, ecologistas, Movimento das Donas de Casa, OAB, PT, PCB, PC do B, PCC,

PCCC e sabe-se lá mais o que a defender, com unhas e dentes, o coitadinho do rapaz,

que estava apenas expressando o seu amor, já estava prestes a libertar as duas me-

ninas. Pobrezinho, mais uma vítima da truculência policial. É assim que vivemos, é

assim que enfrentamos uma guerrilha urbana, com juízes e promotores defendendo

o Direito Penal mínimo. As estatísticas demonstram que o sistema de lei e ordem,

de tolerância zero não funciona. É isso o que dizem. Mas que estatísticas seriam es-

sas? Seguramente não as dos países árabes, não as da China, não as de Cuba, não as

da Inglaterra (para citar a mãe da democracia moderna), não as dos Estados Unidos

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Perigos de uma hermenêutica civil-constitucional

(principalmente de Nova Iorque) e de muitos outros países. Já que nada se pode con-

tra os bandidos, então suprima-se a liberdade dos homens de bem. Daqui a pouco es-

taremos sendo filmados dentro de nossa casa, em nosso banheiro, em nosso quarto,

em nossa mesa. Afinal interessa à sociedade (ao Estado) saber se estamos dormindo

corretamente, comendo corretamente, se estamos tomando banho e escovando os

dentes adequadamente, por questões de saúde pública, de diminuir os gastos com o

SUS etc. Mas os gastos com as mordomias, com aviões presidenciais, com medalhas

olímpicas (cada uma custou a nós por volta de 53 milhões – para a “tchurma” se di-

vertir em Pequim às nossas custas), ah... isso tudo pode. Aliás, deve ser mesmo com

o dinheiro das multas arrecadadas com os “graves crimes” cometidos pelo cidadão

honesto que o Estado financia a bandalheira.

A vigilância exagerada não deixa ninguém respirar. Uma verdadeira invasão

na esfera privada e, pior, na esfera íntima. O cidadão passa a viver com medo, não

só do bandido, mas do Estado, que tudo vê por suas câmeras, seus alcaguetes e seus

agentes. Tudo em nome do bem comum, da dignidade humana, da função social e

de outros valores.

Não somos contra a dignidade humana, a função social da propriedade, da em-

presa, dos contratos e tudo o mais. Mas não podemos deixar que, em nome disso, as

liberdades conquistadas a duras penas, por vezes com sangue, sejam sumariamente

suprimidas.

Não bastasse o violento confisco da liberdade de ir e vir, agora o foco são

as liberdades intelectuais. ATENçãO! ESTãO CASSANDO A LIBERDADE DE EXPRES-

SãO DENTRO DAS UNIVERSIDADES. Antigamente, quando a universidade não tinha

a famosa autonomia consagrada na Constituição, tinha inteira liberdade de expres-

são. Parece um contrassenso, não é? Mas fato é que os currículos eram elaborados

com liberdade; respeitava-se a autonomia acadêmico-científica; confiava-se na in-

telligentsia universitária; os professores tinham liberdade de pensar e de publicar.

Bastou a Constituição consagrar em seu texto a autonomia das universidades que

toda essa liberdade foi suprimida. Hoje, a universidade está completamente à mercê

das comissões de “notáveis” do MEC, da Capes, do Conselho disso e daquilo. Se o

currículo implantado pela universidade não estiver de acordo com a cartilha dos tais

“notáveis”, a instituição é punida, execrada, ameaçada, para dizer o mínimo. É como

se os “notáveis” dissessem aos acadêmicos: “Vocês não passam de um amontoado

de imbecis, que não têm condições de formular um projeto pedagógico. Sendo as-

sim, copiem nossa cartilha, que tudo estará bem. E não ousem discordar de nós”. É a

infantilização, para não dizer imbecilização da universidade (professores e alunos),

que se segue à infantilização (imbecilização) do consumidor, do devedor, do traba-

lhador, da mulher etc.

Antes os professores publicavam o que quisessem, onde quisessem. Hoje, não.

Ai do professor que fugir das tais linhas de pesquisas; ai do professor que publicar

em revista científica que esteja fora da lista de revistas indexadas no sistema

Qualis, imposto violenta e arbitrariamente pelos “notáveis” da Capes. Isso tudo tem

nome: chama-se patrulhamento ideológico, supressão de liberdades, DITADURA.

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Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 65-75, 2º sem. 2008 73

César fiuza

Seria a volta do index librorum prohibitorum? Tenho medo de responder... mas, pelo

menos, o index não se disfarçava.

Leis importantes, que poderiam e deveriam ser discutidas com a comunidade

por meio de congressos e seminários, são votadas a toque de caixa, como o próprio

e deplorável Código Civil. Técnicos de órgãos públicos, como o Ibama, achando-se

detentores da verdade, do monopólio do conhecimento, impõem normas agressivas

e invasivas à intimidade dos lares, a título de defesa da ecologia, quando nada mais

fazem do que promover, quero crer que de boa-fé, os interesses dos traficantes de

animais. Recentemente, os técnicos do Ibama tentaram, espero que continue em vão,

restringir a um mínimo os criatórios legalizados e o comércio legítimo de espécies

da fauna brasileira. Em nenhum momento a comunidade dos interessados foi con-

vidada à reflexão. A norma é imposta “goela abaixo” de todos. Quem sai ganhando?

Ninguém. Talvez os traficantes de aves e de animais silvestres.

A invasão não para. Não há limites. Em 2006, em nome da celeridade do pro-

cesso, da efetividade processual, da dignidade humana, impôs-se ao juiz o dever de

decretar de ofício a prescrição. A norma, a toda vista, invade a esfera privada, que

pertence só ao devedor. A prescrição, ao atingir a responsabilidade do devedor, seja

por extinguir a pretensão do credor, ou a subordinação patrimonial do devedor,

torna-se meio de defesa do réu. A ele e a mais ninguém interessa. É matéria de ordem

privada. O Estado não tem nada a ver com isso. E não se diga que a medida é para

agilizar o processo e garantir a dignidade humana, em última análise. Primeiro por-

que não é isso que vai agilizar a Justiça; segundo que agilizar o processo às custas

da liberdade é pagar um preço muito alto, é atentar contra a dignidade humana, que

tem na liberdade seu maior baluarte.

Até no pãozinho francês nosso de cada dia o Estado quis meter o bedelho,

agora impondo um percentual de farinha de mandioca na massa. Corremos o risco

de não termos mais a opção de escolher nossa comida. Tudo em nome da dignidade

e, creio, nesse caso, da função social das padarias.

E vêm a imprensa e os publicistas defender essas medidas. A nós, cultores do

Direito Privado, caberia propugnar vigorosamente pela liberdade, pela autonomia

privada, baluartes da dignidade. Em vez disso, aplaudimos esse Estado ditador, esse

Estado invasivo, e ainda fornecemos a legitimidade: função social, dignidade huma-

na, Direito Civil-constitucional. Mas função social e dignidade humana não é isso,

muito antes pelo contrário. É na liberdade que tem início a dignidade. Interpretar o

Direito Civil à luz da Constituição, implementar o programa constitucional de pro-

moção da dignidade humana não pode significar o desmantelamento das liberdades

privadas, não pode implicar a invasão arbitrária, ditatorial, estúpida e ilegítima da

intimidade do indivíduo. Não podemos nos calar, não podemos aceitar tudo isso de

braços cruzados. Até quando ficaremos cegos ao que está acontecendo debaixo de

nosso nariz?

Será que estou exagerando? Será que minhas preocupações não passam de

delírio? Pode ser que tenha exagerado um pouco, aqui e ali, ao longo deste desabafo,

mas não creio esteja delirando.

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Perigos de uma hermenêutica civil-constitucional

Felizmente, algumas vozes, não só a minha, se levantam. Uma das primeiras

foi a do grande jurista mineiro, Prof. João Baptista Villela, que hoje, mais do que

nunca admiro. Mas há outras, como o desabafo anônimo, que recentemente li na

internet, e que partilho com os leitores, à guisa de conclusão.

Racismo, sexismo, especismo. Tudo a mesma coisa. No entanto, pessoas que

lutam contra o racismo, costumam ser especistas e sexistas. Pessoas que lutam

contra o sexismo, costumam ser racistas e especistas. Pessoas que lutam contra

o especismo, costumam ser racistas e sexistas. Como entender isso?

A Lógica de Herodes – Lei Seca!

Pois é, o bicho tá pegando! Tá difícil de aguentar esses discursos moralistas,

apoiados pela “grande” imprensa, que simplesmente abdicou do conceito de

jornalismo e aderiu franca e abertamente à campanha. É, virou campanha mes-

mo. Fazia tempo que não via tantos jornalistas do horário nobre tão indigna-

dos. E a cantilena diária é: olha como diminuíram os acidentes graves depois

da lei seca!

Então tenho sugestão ainda melhor: que tal toque de recolher após as 22h?

Hein? Reduziria a zero a violência de um modo geral. Assassinatos, roubos e

estupros cairiam drasticamente. E estado de sítio, então? Uma beleza! Todo

mundo proibido de pegar estrada nos finais de semana. Fiquem onde estão!

Nenhum acidente nas estradas. Afinal, o que as pessoas têm que fazer na rua

após as 22h? Não é mesmo?

Outra coisa que me revolta: as materiazinhas de jornalistazinhos com os ins-

pirados títulos do tipo “Soluções criativas para enfrentar a lei seca”. Aí, tome

sugestões cretinas do tipo “galera aluga vans para ir à balada”. Haja paciência. E

eu sou obrigado a andar em bando, agora? Nunca andei. Vou ter que andar ago-

ra? De turminha? Feito adolescente? Só falta sugerir que todos cantem “Andan-

ça” nos trajetos de ida e volta: “Me leva, amor! Amooooooor! Me leeeva amor...”

Aos quarenta e tantos anos de idade...

E acabou-se aquela história de tomar um bom vinho tinto no jantar com sua

querida companhia e chegar em casa, os dois “meio groguezinhos”, de orelha

quente, para uma noite muito especial, aquecida pelos prazeres de Baco.

Não! Se você for parado por uma blitz no caminho, é preso como um bandido!

Crime: duas taças de vinho. Aí vem mais uma “solução criativa”: - Vão de táxi,

oras! Nessa hora prefiro me calar para não ser preso por um crime, esse sim,

bem mais grave: lesão corporal. Quem sugere uma coisa dessas nunca bolinou

ninguém com uma mão no volante e a outra livre para voar. Sou de Áries, porra!

E nem todo mundo é obrigado a ser exibicionista, ou leonino, e fazer isso diante

dos olhos do motorista atento ao retrovisor. Tenha a santa paciência!

Esse mundo está tomado de moralistas, de gente que já entregou os pontos,

pendurou as chuteiras e se horroriza com qualquer pequeno delito. Querem um

mundo sem barulhos depois das dez, ninguém dirigindo “meio alto” ao volante,

sexo exclusivamente para procriação, estádios de futebol sem cerveja. Que tal

umas borboletinhas azuis e cor-de-rosa revoando às margens das estradas e

imagens da Virgem Maria descendo dos céus em cascata? Casinhas de chocolate

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César fiuza

e “waffers” com anjinhos tocando harpas? Se isso é o paraíso, eu quero é o

inferno. Deus me livre dessa “sociedade ideal”, a partir de medidas reacionárias

e de um sistema de governo que se funda no despotismo.

Querem baixar os índices de violência no trânsito? Ótimo, eu também. Então,

fiscalizem e prendam os bêbados de fato, aqueles que bebem em excesso, que

fazem pega nas avenidas, andam em alta velocidade. Ou seja: POLÍCIA, TOME

VERGONHA E TRABALHE! NÓS PAGAMOS IMPOSTOS PARA ISSO.

Sem essa de “passar a régua”, igualar a todos e tratar-nos como bandidos.

Como essa polícia cretina não sabe em quem atirar, atira em todos. Imagina

que, assim, acerta no bandido. Como, de novo incompetente, não sabe prender

os beberrões, quer prender a todos. Como não sabe enfrentar e inibir os brigões

das torcidas organizadas, proíbe a venda de cerveja nos estádios.

Os bandidos têm demonstrado mais inteligência do que as autoridades. Sinto

que querem nos pegar para Cristo. Isso me faz lembrar Herodes. Um otário que

usou essa mesma lógica da generalização e ordenou que matassem todas as

crianças porque, assim, estaria garantido que mataria um sujeito que, quando

crescesse, iria botar pra quebrar. Pois é. O tal sujeito escapou. E botou pra

quebrar.

Importante: não bebi nada hoje.

Bibliografia

SEM, bibliografia. Às favas com a ABNT. Belo Horizonte: eu mesmo e um herói anônimo, 2008.

Referência

FIUZA, César. Direito civil – curso completo. 12. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

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Aplicabilidadedomandadodeinjunção comoviabilizadordoexercíciodo direitosocialaolazer(Applicability of writ of Injunction as a vehicle for the exercise of the social right to leisure)

fErnando josé armando ribEiro* bErnardo auGusto fErrEira duartE**

R E S U M OOpresentetrabalhocientíficovisaademonstrar,deformaclaraeinteligível,queomandadodeinjunção,descritonoroldosdireitosfundamentaiscomogarantia constitucional, é o instrumento jurídico próprio e eficaz para asolução,nocasoconcreto,dainviabilidadedeexercíciododireitosocialaolazer,descritonosartigos6º,7º,incisoIV;e227,caput,todosdaConstituiçãoFederalde1988,causadapelainexistênciadenormaregulamentadora.

P A L A V R A S - C H A V EMandado de injunção; Direito social ao lazer; Norma regulamentadora;EstadoDemocráticodeDireito.

A B S T R A C TThispaperaimstodemonstrateclearlyandintelligiblythatWritofInjunction,described in thearrayofbasic rightsasaconstitutionalguarantee, is theproperandefficientjuridicalinstrumenttosolve,inaconcretecase,thenon-viability, causedby the inexistenceofa rulingnorm,of theexerciseof thesocialrighttoleisure,asdescribedinarticles6;7,subdivisionIV;and227,caput,allofthemofthe1988FederalConstitution.

K E y w O R D SWritofInjunction;Socialrighttoleisure;Rulingnorm;Democratic RuleofLaw.

* Doutor em Direito pela UFMG, professor dos cursos de graduação e mestrado da PUC Minas e da Faculdade de Direito Milton Campos, diretor do Departamento de Teoria do Direito do IAMG.

** Bacharel em Direito pela PUC Minas, advogado em Belo Horizonte.

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Aplicabilidade do mandado de injunção como viabilizador do exercício do direito social ao lazer

Descrito no art. 5º, inciso LXXI da Constituição Federal de 1988, o mandado de

injunção é, com certeza, uma das garantias constitucionais mais importantes para

a efetivação da nossa Lei Maior, sobretudo no que tange ao exercício dos direitos e

liberdades constitucionais, além das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à so-

berania e à cidadania.

Muito já se escreveu acerca desse instituto jurídico, principalmente no que

diz respeito à sua finalidade. Todavia, poucas foram as pesquisas científicas que,

de fato, tenderam a solucionar o problema de sua ineficácia. Diante disso, apesar de

constituir uma das garantias constitucionais mais importantes para a real efetivação

do Estado Democrático de Direito no Brasil, o mandado enfrenta, hoje, passados

dezoito anos da promulgação da nossa Constituição, uma crise inefável, tendente a

suprimir, inclusive, a sua utilidade.

Pela presente pesquisa científica, tentaremos demonstrar que o mandado de

injunção é o instrumento próprio e eficaz para solucionar o problema da inexis-

tência de norma regulamentadora que, no caso concreto, viabilize o exercício do

direito social ao lazer, descrito nos artigos 6º, 7º, inciso IV, e 227, caput, todos da

Constituição Federal de 1988. Para tanto, será necessário criticar o entendimento

jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal acerca dessa garantia constitucional,

o que faremos com base nos ensinamentos de Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

e, ainda, de Jürgen Habermas sobre o que seria, de fato, o Estado Democrático de

Direito.

O estudo em epígrafe, indiscutivelmente, contribuirá para a evolução da Ci-

ência do Direito, em especial no que tange ao writ of injunction, visto que discutirá

a possibilidade de solução do problema relacionado à inviabilidade do exercício

do direito social ao lazer pelo (ou através desse) instituto, cuja utilidade foi quase

eliminada após a “leitura” a ele atribuída pela corrente majoritária do Supremo Tri-

bunal Federal.

Compreensões acerca do mandado de injunção

Compreensões doutrinárias

Consoante a doutrina pátria, três foram as compreensões que inicialmente

se formaram acerca da aplicabilidade do mandado de injunção. A primeira delas,

defendida por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, entendia que a norma definidora

do mandado de injunção não seria autoaplicável. A segunda, defendida, a título de

exemplo, por Gilmar Ferreira Mendes e adotada pela corrente majoritária do Supre-

mo Tribunal Federal, entendia que a norma definidora do mandado de injunção seria

autoaplicável e que o referido instituto seria um modelo procedimental que teria a

finalidade de declarar a omissão inconstitucional de Poder, órgão ou autoridade,

sem contudo regulamentar o caso concreto, sendo, portanto, muito semelhante à

ação direta de inconstitucionalidade por omissão. A terceira, defendida, dentre ou-

tros, por Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, entendia que a norma definidora do

mandado de injunção seria autoaplicável. Além disso, em contraponto às demais

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fErnando josé armando ribEiro | bErnardo auGusto fErrEira duartE

correntes, defendia que o instituto visaria, declarada a falta de norma regulamenta-

dora, a garantir o exercício do direito constitucional inviabilizado, regulamentando

a Constituição para o caso concreto (OLIVEIRA, 1998, p. 102).

Para os defensores da primeira corrente, tornar autoexecutável uma norma

incompleta (tal como a norma definidora do mandado de injunção, na opinião des-

ses doutrinadores) seria contrário à natureza das coisas. Essa ideia foi severamente

combatida por Marcelo Cattoni:

Ora, qual é a racionalidade de um argumento como esse que, além do mais, não

reconhece normatividade à Constituição? Até que ponto é possível apelar para

uma possível natureza em si da norma constitucional? E, mais, quando é a pró-

pria Constituição, como vimos, que estabelece e explicita a sua própria vincula-

bilidade? Claro que não se pode fazê-lo, até mesmo porque não é possível, com

base num mínimo de consciência hermenêutica, falar em algo como “natureza

das coisas”. (OLIVEIRA, 1998, p. 103-104)

A ideia de Marcelo Cattoni de Oliveira está em perfeita consonância com os

“princípios de interpretação constitucional” descritos por Hesse e reproduzidos por

Rodolfo Viana Pereira, dentre os quais destacam-se o da “unidade da Constituição”,

o da “concordância prática” e, finalmente, o da “força normativa da Constituição”

(OLIVEIRA, 1998, p. 103) Aludidos princípios pautam-se na moderna concepção da

hermenêutica jurídica (gênero), a qual defende o afastamento dos velhos métodos

de interpretação (CAMARGO, 2003, p. 65 e 74 e 80) (literal (gramatical), lógico, siste-

mático, histórico e teleológico) e a criação de novos critérios interpretativos no que

toca à espécie hermenêutica constitucional, advindos da especificidade da natureza

da Constituição (Cf. PEREIRA, 2001, p. 100-103).

Nesse sentido, não mais se discute que a norma definidora do mandado de

injunção seja autoaplicável (ou norma de eficácia plena), porquanto essa foi a leitura

a ela atribuída pela própria Constituição da República de 1988, no sentido de que “as

normas definidores de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”

(Artigo 5º, parágrafo único, CR/88). Atualmente, o grande debate doutrinário é

acerca da natureza da decisão concessiva do mandado de injunção, discussão que

repercute, obviamente, na aplicabilidade e na efetividade desse instituto.

Compreensões existentes no Supremo Tribunal Federal acerca da natureza da decisão concessiva do mandado de injunção

Segundo Alexandre de Morais, dentro do Supremo Tribunal Federal existem

basicamente duas correntes, as quais podem ser denominadas, respectivamente,

concretista e não concretista. Para a primeira, presentes os requisitos constitucio-

nais exigidos para o mandado de injunção, caberia ao Poder Judiciário, através de

uma decisão constitutiva, declarar a existência de omissão administrativa ou legis-

lativa e implementar o exercício do direito, até a incidência de regulamentação, a

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80 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 77-99, 2º sem. 2008

Aplicabilidade do mandado de injunção como viabilizador do exercício do direito social ao lazer

ser imposta pelo poder competente. Por sua vez, a segunda vertente, adotada pela

jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal:

(...) se firmou no sentido de atribuir ao Mandado de Injunção a finalidade es-

pecífica de ensejar o reconhecimento formal da inércia do Poder Público, ‘em

dar concreção à norma constitucional positivadora do direito postulado, bus-

cando-se, com essa exortação ao legislador, a plena integração normativa do

preceito fundamental invocado pelo impetrante do Writ como fundamento da

prerrogativa que lhe foi outorgada pela Carta Política. Sendo esse o conteúdo

possível da decisão jurisdicional, não há falar em medidas jurisdicionais que

estabeleçam, desde logo, condições viabilizadoras do exercício do direito, da

liberdade ou da prerrogativa constitucionalmente prevista, mas, tão-somente,

deverá ser dada ciência ao poder competente para que edite a norma faltante.

(MORAES, 2006, p. 162)

A posição concretista pode ser subdividida em duas espécies: concretista ge-

ral, para a qual “a decisão produzirá efeitos erga omnes, implementando o exercício

da norma constitucional através de uma normatividade geral, até que a omissão fos-

se suprida pelo poder competente” (MORAES, 2006, p. 160); e concretista individual,

que defende que a decisão do Poder Judiciário só produzirá efeitos para o autor do

mandado de injunção, portanto, in concreto. Essa última ainda possui duas subes-

pécies: concretista individual direta e concretista individual intermediária. Pela pri-

meira, defendida pelos ministros Carlos Velloso e Marco Aurélio, “o Poder Judiciário,

imediatamente ao julgar procedente o mandado de injunção, implementa a eficácia

da norma constitucional ao autor” (MORAES, 2006, p. 160). Pela segunda, defendida

pelo ministro Néri da Silveira, “após julgar a procedência do mandado de injunção,

fixar-se-ia ao Congresso Nacional o prazo de 120 dias para a elaboração da norma

regulamentadora” (MORAES, 2006, p. 160), ao término do qual, mantida a inércia do

Congresso em elaborar a norma, caberia ao Poder Judiciário fixar as condições ne-

cessárias ao exercício do direito pelo autor.

Todas essas concepções, conforme se demonstrará, são passíveis de crítica,

uma vez que não se adaptam ao paradigma1 do Estado Democrático de Direito.

Problema das compreensões do Supremo Tribunal Federal acerca dos efeitos da decisão concessiva do mandado de injunção

Conforme exposto de forma genérica no tópico anterior, as posições do Su-

premo Tribunal Federal acerca da decisão concessiva do mandado de injunção são

problemáticas, sobretudo se analisadas à luz do paradigma democrático, porquanto

1 Acerca do termo “paradigma”, Cattoni afirma que “as compreensões jurídicas paradigmáticas de uma época, refletidas na dinâmica das ordens jurídicas concretas, referem-se a imagem implícitas que se têm da própria sociedade; um conhecimento de fundo, um background, que confere às práticas de fazer e de aplicar o Direito uma perspectiva, orientando o projeto de realização de uma comunidade” (OLIVEIRA, 2002, p. 81-82).

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fErnando josé armando ribEiro | bErnardo auGusto fErrEira duartE

estão pautadas em uma interpretação paradigmática liberal e/ou social do princípio

da separação dos poderes.

Antes de criticá-las, portanto, é necessário discorrer sobre os paradigmas jurí-

dicos do Estado moderno,2 para, então, dissertar sobre o princípio da separação dos

poderes à luz de cada um deles.

Sinteticamente, sob o paradigma liberal, cabe ao Estado, “através do Direito

Positivo, garantir a certeza nas relações sociais, através da compatibilização dos

interesses privados de cada um com o interesse de todos, mas deixar a felicidade

ou a busca da felicidade nas mãos de cada indivíduo” (OLIVEIRA, 2002, p. 37). Em

linhas gerais:

Em nível de esfera privada, reconhecem-se direitos naturais, vida, liberdade

e propriedade. Em nível de esfera pública, convencionam-se direitos perante

o Estado e direitos à comunidade estatal: status de membro (nacionalidade),

igualdade perante a lei, certeza e segurança jurídicas, tutela jurisdicional, segu-

rança pública, direitos políticos etc. (OLIVEIRA, 2002, p. 37)

A Constituição, no Estado liberal, é lida como “lei fundamental do Estado”

(SILVA, 2001, p. 37). É ela “que juridifica o Estado, que legitimado pelo Direito e pelo

regime representativo, passa a ser concebido como Estado de Direito, como Estado

Constitucional” (OLIVEIRA, 2002, p. 38).

O constitucionalismo liberal é marcado pela ideia de Estado mínimo, cuja fun-

ção é proteger o indivíduo contra qualquer forma de opressão – vinda do próprio

Estado ou das massas (conjunto de indivíduos, sociedade) – o que é feito sobretudo

por meio da Constituição, através da garantia dos direitos fundamentais do indi-

víduo, da divisão de poderes3 e da representação política (Cf. VILANI, 2002, p. 5).

Nesse diapasão, à luz do paradigma liberal, o Poder Legislativo possui supremacia

sobre os demais órgãos governamentais (Poder Executivo e Judiciário). A ele cabe a

elaboração das leis, as quais sofrem limitações negativas, presentes na Declaração

dos Direitos. Ao Poder Judiciário cabe dirimir os conflitos existentes entre os parti-

culares, ou entre estes e o Estado, desde que provocado a exercer a sua função (juris-

dicional). Ele deve, respeitada a igualdade formal expressa na Constituição, aplicar

o direito positivo vigente de modo estrito, solucionando os conflitos intersubjetivos

“através de processos lógico-dedutivos de subsunção do caso concreto às hipóteses

normativas, estando sempre vinculado ao sentido literal, no máximo lógico, da lei,

enfim, sendo a boca da lei” (OLIVEIRA, 2002, p. 57; OLIVEIRA, 1998, p. 39). Por sua

2 Consoante Mário Lúcio Quintão, Estado é uma expressão que “deve ser observada como uma comunidade de indivíduos, tornados cidadãos, estabelecida em determinado território e com poder político capaz de impor-se a todos os membros dessa comunidade” (QUINTãO, 2001, p. 141).

3 A separação dos poderes, hoje considerada como princípio geral do Direito Constitucional (cf. SILVA, 2001, p. 106; OLIVEIRA, 2002, p. 56; OLIVEIRA, 1998, p. 38), consiste na atribuição das diferentes funções governamentais a órgãos estatais distintos. Não obstante ter adquirido projeção internacional com Montesquieu, que lhe inseriu o sistema de freios e contrapesos, sua gênese remonta à Grécia Antiga (cf. SILVA, 2001, p. 109; QUINTãO, 2001, p. 109). Ele é recepcionado pelas Constituições de todos os paradigmas modernos de Estado e, sob o paradigma do Estado liberal, tem a sua operacionalidade adstrita ao sistema de freios e contrapesos, em fidedigna obediência à ideia de Montesquieu.

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Aplicabilidade do mandado de injunção como viabilizador do exercício do direito social ao lazer

vez, ao Poder Executivo cabe implementar o Direito, garantindo a certeza e a se-

gurança, tanto sociais quanto jurídicas, interna ou externamente. Para Habermas,

essa visão clássica decorre de uma interpretação limitada do conceito de lei (cf.

HABERMAS, 2003, p. 4, p. 236).

O grande problema desse paradigma é que a simples garantia das liberdades

individuais acaba por não garantir a igualdade de fato (material) entre os cidadãos,

mas tão-somente a igualdade formal (perante a lei). Exatamente em virtude disso, com

o fim da Primeira Guerra Mundial, marco da crise da sociedade liberal, tem início

a fase histórica do constitucionalismo social (OLIVEIRA, 1998, p. 40 ; OLIVEIRA,

2002, p. 59).

O Estado social, que se firma com o fim da Segunda Grande Guerra, acaba

por redefinir os clássicos direitos de vida, liberdade, propriedade, segurança e

igualdade. O antes “cidadão-proprietário” (OLIVEIRA, 2002, p. 59) do Estado liberal

torna-se “cliente de uma Administração Pública garante de bens e serviços” (OLI-

VEIRA, 2002, p. 59). Sob esse paradigma, cabe ao Estado, através de ações diretas e

indiretas, intervir na economia com o intuito de manter o capitalismo, o que é feito

“através de uma proposta de bem-estar (welfare state) que implica uma manuten-

ção artificial da livre concorrência e da livre iniciativa, assim como a compensação

das desigualdades sociais através de direitos sociais” (OLIVEIRA, 2002, p. 59).

O texto da Constituição (que continua sendo a lei fundamental do Estado)

passa a conter normas (princípios) que consagram programas de aplicação futura,

ou seja, que serão efetivamente implementados à medida que o Estado possuir

condições (financeiras, espaciais, estruturais etc.) para tanto. Assim, a Constitui-

ção passa a ser “o estatuto jurídico-político fundamental” também da sociedade,

representando a “medida material” desta (OLIVEIRA, 2002, p. 60; OLIVEIRA, 1998,

p. 41). Dessa forma, “o Direito passa a ser interpretado como sistema de regras

e de princípios otimizáveis, consubstanciadores de valores fundamentais, bem

como programas de fins, realizáveis no ‘limite do possível’” (OLIVEIRA, 1998, p.

41). Paulo Bonavides descreve com maestria essa quebra de paradigmas:

Quando as Constituições contemporâneas, ao constituírem o Estado de Direito

sobre bases normativas, pareciam haver resolvido a contento, durante o século

XIX, esse desafio, eis que as exigências sociais e os imperativos econômicos,

configurativos de uma nova dimensão da sociedade a inserir-se no corpo jurídi-

co dos textos constitucionais, trouxe à luz a fragilidade de todos os resultados

obtidos. As antigas Constituições, obsoletas e ultrapassadas, viram então ao

redor de si o clima da programaticidade com que os modernos princípios bus-

cavam concretizar um novo direito, por onde afinal se operou a elaboração das

Constituições do século XX. (BONAVIDES, 2004, p. 232)

Com a crise do paradigma liberal e o consequente apogeu do Estado de bem-

estar, o princípio da separação dos poderes é reinterpretado. Nesse contexto, per-

de importância a expressão “separação dos poderes”, a tal ponto que os doutrina-

dores passam a falar em funções do Estado, “já que não haveria propriamente uma

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fErnando josé armando ribEiro | bErnardo auGusto fErrEira duartE

atribuição de diferentes poderes a órgãos distintos, mas sim a de funções a órgãos

distintos que as exercem cooperativamente, na unidade da soberania estatal” (OLI-

VEIRA, 2002, p. 50; OLIVEIRA, 1998, p. 41-42). Sob o paradigma de Estado social:

O Poder Executivo, na figura do presidente da República ou do primeiro-mi-

nistro, passa a ser dotado de instrumentos jurídicos, inclusive legislativos, de

intervenção direta e imediata na economia e na sociedade civil, em nome do

“interesse coletivo, público, social ou nacional”.

Ao Poder Legislativo, na figura do Congresso ou Assembleia, além da atividade

legislativa cabe o exercício de funções de fiscalização e de apreciação da ativi-

dade da administração pública e da atuação econômica do Estado.

Ao Poder Judiciário, seus Tribunais e juízes, cabe, no exercício da função juris-

dicional aplicar o direito material vigente aos casos concretos submetidos à sua

apreciação, de modo construtivo, buscando o sentido teleológico de um imenso

ordenamento jurídico. Não se prendendo à literalidade da lei e à de uma enor-

midade de regulamentos administrativos ou a uma possível intenção do legis-

lador, deve enfrentar os desafios de um Direito lacunoso, cheio de antinomias.

E será exercida tal função através de procedimentos que muitas vezes fogem

ao ordinário, nos quais deve ser levada mais em conta a eficácia da prestação

ou tutela do que propriamente a certeza jurídico-processual-formal: no Estado

Social, cabe ao juiz, enfim, no exercício da função jurisdicional, uma tarefa

densificadora e concretizada do Direito, a fim de se garantir, sob o princípio da

igualdade materializada, “a Justiça no caso concreto”. (OLIVEIRA, 2002, p. 42;

OLIVEIRA, 1998, p. 60-61)

Dessa forma, o princípio da separação dos poderes deixa de ser interpretado

sob uma ótica de subordinação e passa a ser entendido sob uma perspectiva de

colaboração, cujo objetivo final é o de propiciar aos cidadãos – clientes da Adminis-

tração – os direitos consubstanciadores de valores fundamentais e de programas de

fins, desde que, evidentemente, haja aportes materiais para tanto, ou seja, no “limite

do possível”.

O inchaço do aparato estatal, os custos crescentes do Estado de bem-estar e a

incapacidade das empresas públicas, ante a ausência de investimentos, de gerarem

lucros, foram alguns dos vários problemas enfrentados pelo Estado social. Como se

não bastasse, o Estado social, em contraposição à positivação dos direitos indivi-

duais, acabou por não tornar efetivos muitos dos valores (pois, como já dito, assim

foram entendidos os direitos) que se propôs a garantir através da Constituição:4

A programaticidade dissolveu o conceito jurídico de Constituição, penosamente

elaborado pelo constitucionalismo do Estado Liberal e pelos juristas do

positivismo. De sorte que a eficácia das normas constitucionais volveu à tela de

debate, numa inquirição de profundidade jamais dantes lograda. (BONAVIDES,

2004, p. 232)

4 A crise do Welfare State, que se desencadeou também para as suas instituições, foi causada, ainda, pela internacionalização dos mercados e pela transnacionalização da produção (ver QUINTãO, 2001, p. 295).

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Aplicabilidade do mandado de injunção como viabilizador do exercício do direito social ao lazer

Nesse contexto, surge, como forma de “ruptura com as ordens constitucionais

anteriores” (OLIVEIRA, 2002, p. 63), um novo paradigma de Estado, a saber, o Estado

Democrático de Direito:

No esteio de novos movimentos sociais, tais como o estudantil de 1968, o paci-

fista, o ecologista e os de luta pelos direitos das minorias, além de movimentos

contraculturais, que passam a eclodir a partir da segunda metade da década

de 60, a “nova esquerda”, a chamada esquerda-não stalinista, a partir de duras

críticas tanto ao Estado de Bem-Estar (...), quanto ao Estado de socialismo real

(...), cunha a expressão Estado Democrático de Direito. O Estado Democrático

de Direito passa a configurar uma alternativa de superação tanto do Estado

de Bem-Estar quanto do Estado de socialismo real. (OLIVEIRA, 2002, p. 62;

OLIVEIRA, 1998, p. 43)

Habermas defende que o Estado Democrático de Direito deve ser entendido

com base na teoria do discurso (do Direito e da democracia) (HABERMAS, 2002, p. 9,

p. 280-281 e, ainda, HABERMAS, 2003, p. 4, p. 221). Para ele, embora no meio aca-

dêmico seja comum abordar “o direito, o Estado de Direito e a democracia como ob-

jetos pertencentes a disciplinas diversas”, isso não significa, de modo algum, “que

possa haver do ponto de vista normativo um Estado de Direito sem democracia”

(HABERMAS, 2002, p. 10, p. 285-286). Em suas palavras:

A organização do Estado de direito deve servir, em última instância, à auto-

organização política autônoma de uma comunidade, a qual se constituiu, com o

auxílio do sistema de direitos, como uma associação de membros livres e iguais

do direito. As instituições do Estado de direito devem garantir um exercício

efetivo da autonomia política de cidadãos socialmente autônomos para que

o poder comunicativo de uma vontade formada racionalmente possa surgir,

encontrar expressão em programas legais, circular em toda a sociedade através

da aplicação racional, da implementação administrativa de programas legais e

desenvolver a sua força de integração social – através de estabilização de ex-

pectativas e da realização de fins coletivos. (HABERMAS, 2003, p. 4, p. 211-213,

p. 220)

Sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, a Constituição “determina

procedimentos políticos, segundo os quais os cidadãos, assumindo o seu direito de

autodeterminação, podem perseguir cooperativamente o projeto de produzir con-

dições justas de vida” (OLIVEIRA, 2002, p. 66; OLIVEIRA, 1998, p. 47). O Direito,

portanto, “só cumpre a sua função de estabilizar expectativas de comportamento

quando preserva uma conexão interna com garantia de um processo democrático

através do qual os cidadãos alcancem um entendimento acerca das normas de seu

viver em conjunto” (OLIVEIRA, 2002, p. 66; OLIVEIRA, 1998, p. 47).

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fErnando josé armando ribEiro | bErnardo auGusto fErrEira duartE

À luz dessa quebra de paradigmas, o princípio da separação dos poderes é (re)

interpretado.5 Assim é que os “poderes” (ou órgãos do Estado) passam a exercer as

suas funções (executivas/administrativas, legislativas e jurisdicionais) de forma in-

dependente, mas harmônica,6 com o intuito de tornar efetivos os direitos fundamen-

tais, o que se faz através da institucionalização destes (OLIVEIRA, 2002, p. 72-73).

Nas palavras de Habermas, sob o paradigma democrático, o princípio da separação

dos poderes deve ser entendido com base na teoria do discurso (HABERMAS, 2003,

p. 4, p. 238-239). Nesse diapasão, as funções executiva, legislativa e jurisdicional

são exercidas de forma a, através de um processo democrático baseado no discurso,

garantir direitos fundamentais aos cidadãos. Assim é que o Poder Executivo deve ser

organizado a ponto de implementar, através de tecnologias e estratégias de ação, os

programas por ele propostos. O Poder Judiciário, igualmente independente, organi-

zado e sobretudo imparcial, deve solucionar as controvérsias que lhe são propostas

pelos cidadãos, proferindo decisões fundamentadas e consistentes (não atreladas a

uma mera interpretação literal do conteúdo da lei), as quais respeitem as garantias

constitucionais processuais. Finalmente, o Poder Legislativo deve elaborar as leis,

respeitando um processo democrático de formação da vontade (caracterizado pelo

discurso), que garanta um assentimento intersubjetivo, de forma que os cidadãos

(entendidos como coassociados livres e iguais perante o direito) possam ser consi-

derados, ao final, como os formadores de suas próprias leis.

Crítica às posições do STF relativamente à decisão concessiva do mandado de injunção

Diante das explicações acima, torna-se evidente que o Supremo Tribunal Fede-

ral necessita, urgentemente, rever as suas posições acerca da decisão concessiva do

mandado de injunção, posto que elas são “fruto de uma compreensão dos princípios

da separação dos poderes e dos direitos e garantias fundamentais inadequada ao

paradigma do Estado Democrático de Direito, paradigma, esse, refletido na Ordem

Constitucional brasileira” (OLIVEIRA, 1998, p. 26).

A bem da verdade, todas as concepções do Supremo Tribunal Federal acerca

dos efeitos da decisão concessiva do mandado de injunção derivam, ou de uma

leitura do princípio da separação dos poderes com base no paradigma do Estado

liberal, ou de uma interpretação do aludido princípio à luz do paradigma do Welfare

State. A posição não concretista, por exemplo, é pautada no clássico sistema de

freios e contrapesos (checks and balaces) idealizado por Montesquieu, o qual é

5 Essa nova interpretação (ou reinterpretação) foi pautada na garantia dos direitos fundamentais (ou direitos básicos), a saber, o direito a iguais liberdades subjetivas, o direito a iguais direitos de pertinência (direitos de nacionalidade), o direito à tutela jurisdicional, o direito à elaboração legislativa autônoma e os direitos participatórios, substáculos do novel paradigma democrático (ver OLIVEIRA, 2002, p. 71-73; OLIVEIRA, 1998, p. 53-54).

6 A própria Constituição, já em seu artigo 2º, define que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Vide BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 30 abr. 2006 e 14 mar. 2007.

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Aplicabilidade do mandado de injunção como viabilizador do exercício do direito social ao lazer

caracterizado, como já dito, por uma compreensão estrita do princípio da separação

dos poderes (Ver OLIVEIRA, 1998, p. 95). Ao discorrer sobre a posição não concretista,

sem contudo utilizar essa classificação, Marcelo Cattoni afirma:

O entendimento jurisprudencial dado ao Mandado de Injunção pelo Supremo

Tribunal Federal compromete a eficácia desse instituto como garantia consti-

tucional, já que nega a possibilidade jurídica de o Poder Judiciário suprir in

concreto a falta de norma regulamentadora que torne viável o exercício desses

direitos, liberdades e prerrogativas e, com base nisso, apresentar solução para

o caso concreto, praticamente reduzindo os efeitos da decisão concessiva do

MI à mera declaração de inconstitucionalidade por omissão. (OLIVEIRA, 1998,

p. 24)

Prosseguindo em suas críticas, ele afirma:

É como se a Constituição tivesse criado dois institutos cujos efeitos práticos

seriam os mesmos, ou seja, os da Ação Direta de Inconstitucionalidade por

Omissão. E nesse caso, qual seria o interesse processual de qualquer um para

agir em juízo? Qual a necessidade de se estabelecer, como fez a Constituição

no artigo 103, os legitimados para a Ação Direta de Inconstitucionalidade por

Omissão, se qualquer um pode conseguir o mesmo por via do Mandado de

Injunção? Como é que o Mandado de Injunção, nos termos adotados por esta

tese, pode ser interpretado como garantia constitucional de direitos se, com

base nesta posição, ele, por fim, nada ou quase nada garantiria? (OLIVEIRA,

1998, p. 105-106)

O fato é que, ao igualar dois institutos diferentes da Constituição, o Supre-

mo Tribunal Federal claramente o faz em virtude de uma interpretação liberal do

princípio da separação dos poderes. Isso porque, em sede de mandado de injunção,

regulamentar o caso concreto significaria, para a posição não concretista do Supre-

mo Tribunal Federal, adentrar o campo de competência do Poder Legislativo, uma

vez que o Poder Judiciário estaria exercendo atividade legislativa. Para que isso não

ocorresse, a decisão concessiva do mandado de injunção só poderia gerar efeitos

declaratórios, significando apenas um reconhecimento formal da inércia do Poder

Legislativo em dar concreção à norma constitucional positivadora do direito postu-

lado, pelo que seus efeitos seriam os mesmos da ação direta de inconstitucionalida-

de por omissão.

Ocorre que, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, a interpreta-

ção do princípio da separação dos poderes está intimamente ligada à garantia de

direitos fundamentais (ou básicos). Por esse motivo, não faz sentido privar o Poder

Judiciário da prerrogativa de resolver o caso específico (concreto) através da ati-

vidade de regulamentação, quando, in casu, esteja sendo tratada questão atinente

a direitos fundamentais. Uma compreensão pautada no paradigma democrático

assegura ao Poder Judiciário, portanto, a função de garantir, processualmente, o

exercício de direitos constitucionais inviabilizados por falta de norma regulamen-

tadora. Essa atividade jurisdicional, em sede de mandado de injunção, não deve

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ser compreendida “como sendo legislativa, mas de regulamentação, e regulamen-

tação para o caso concreto” (OLIVEIRA, 1998, p. 105-106).

Diante da explicação acima, percebe-se que a posição concretista do Supremo

Tribunal Federal também deriva de uma compreensão inadequada do princípio da

separação dos poderes à luz do paradigma do Estado Democrático de Direito. Essa

inadequação se reflete em todas as suas espécies e subespécies, inclusive na concre-

tista individual direta.

A posição concretista individual intermediária, p. ex., cuja gênese se deve à

decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no MI nº. 2327 (relator ministro

Moreira Alves), é severamente criticada por Marcelo Cattoni:

Até essas últimas decisões pecam tanto pelos fundamentos, quanto por condi-

cionarem os efeitos constitutivos da decisão concessiva do Mandado de Injun-

ção a transcurso de prazo fixado para que o Poder Legislativo legisle; também,

por ainda deixarem, de um modo ou de outro, o caso concreto sem solução, já

que não há expedição de ordem, com base na decisão, para que se garanta de

fato o exercício do direito, liberdade ou prerrogativa, negado sob a alegação de

falta de norma regulamentadora. (OLIVEIRA, 1998, p. 25-26)

Uma reflexão acerca da posição concretista intermediária comprova, mais

uma vez, que o STF confunde a atividade de implementação do exercício de direitos

inviabilizados por ausência de norma regulamentadora – exercida pelo Poder Judi-

ciário – com o exercício de legislar. É em razão dessa confusão que os defensores

dessa posição sustentam a necessidade de prévia comunicação, ao Poder Legislativo,

da “omissão inconstitucional”, para só depois, mantida a inércia desse em legislar,

admitir a implementação in concreto, pelo Poder Judiciário, do exercício dos direi-

tos, liberdades e prerrogativas, inviabilizados em virtude da ausência de norma re-

gulamentadora.

Essa proposição fica ainda mais evidente se a posição em análise for a con-

cretista geral, para a qual os efeitos da decisão concessiva do mandado de injunção

são erga omnes. Em verdade, em sede de mandado de injunção, isso claramente

ultrapassa a atividade de regulamentação do caso concreto, invadindo a função le-

gislativa; e “sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, não caberia ao Su-

premo Tribunal legislar” (OLIVEIRA, 1998, p. 95). O equívoco deriva da já criticada

comparação do mandado de injunção com a ação direta de inconstitucionalidade

por omissão (OLIVEIRA, 1998, p. 95). Essa comparação, aliás, também contaminou a

posição concretista individual do STF, tendo em vista que os ministros Carlos Veloso

e Marco Aurélio, que lhe são adeptos, a justificam através do argumento de que a

Constituição criou mecanismos distintos voltados a controlar omissões inconstitu-

cionais. O mandado de injunção, todavia, não se destina à declaração de omissões

7 MI nº 232 - RJ, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ v. 00137-03, p. 965-984, DJ 27/3/1992 http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp. Acesso em: 30 abr. 2006 e 14 mar. 2007

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Aplicabilidade do mandado de injunção como viabilizador do exercício do direito social ao lazer

inconstitucionais, pelo que o STF precisa rever os argumentos que fundamentam a

posição concretista individual.

Diante disso tudo é evidente a urgência de uma reflexão, por parte do Supre-

mo Tribunal Federal, das suas posições sobre a decisão concessiva do mandado de

injunção, sob pena de essa garantia constitucional processual jamais vir a ser, efeti-

vamente, implantada no Brasil. E nos dizeres de Marcelo Cattoni:

Somente uma reconstrução, em termos discursivos, da separação dos pode-

res, que ultrapasse uma leitura liberal, mas também republicana, da política e

do Direito, poderá romper, devidamente, com oposições como essa. Com isso,

resultará falsa a ideia segundo a qual o Supremo Tribunal Federal estaria des-

respeitando o princípio democrático ao assumir a tarefa de concretização dos

direitos fundamentais, determinada pela própria Ordem Constitucional. (OLI-

VEIRA, 1998, p. 97)

Atualmente começam a surgir novas posições dentro do STF acerca do princí-

pio da separação dos poderes:

Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evi-

dência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição

constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo

encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se

identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positi-

vas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. Celso de Mello) –, sob pena

de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, compro-

meter, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional:

(...)

É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem

com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direi-

tos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma

injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamen-

tal, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de

condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria

sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já

enfatizado – e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico

–, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a

todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo

Estado. ADPF 45 MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 4.5.2004, p. 12.8 (Grifo

acrescido)

A decisão acima não está de todo “descontaminada” da influência causada

pela teoria alexiana, que entende os direitos como valores ou comandos otimizáveis

(bens de fruição). Não obstante, já representa um avanço considerável, sobretudo

porque reconhece a impossibilidade de omissão (ou inércia) do Poder Judiciário em

8 Decisão monocrática disponível no site http://www.stf.gov.br/jurisprudencia. Acesso em: 14 mar. 2007.

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face da não implementação dos direitos sociais, econômicos e culturais pelos Pode-

res Executivo e Legislativo. Em virtude disso, ainda que não se trate, especificamen-

te, de uma posição relativa à decisão concessiva do mandado de injunção, possui

extrema relevância para o caso em comento, visto que o raciocínio por ela desenvol-

vido, com algumas ressalvas,9 pode ser perfeitamente aplicado à referida garantia

constitucional.

Crítica ao entendimento dos direitos fundamentais como co-mandos otimizáveis e à tese da “reserva do possível”

Normas versus valores: direitos fundamentais como princípios deontológicos ou como comandos otimizáveis

Feitas as devidas críticas às posições do Supremo Tribunal Federal acerca do

mandado de injunção, desenvolvidas a partir da análise do princípio da separação

dos poderes à luz do paradigma de Estado Democrático de Direito, passa-se à análise

de como devem ser concebidos os direitos fundamentais.

Em linhas gerais, um dos grandes problemas gerados pela mudança de para-

digma, do Estado liberal para o Estado social, adveio da tentativa de construção de

uma tipologia estrutural e/ou funcional das normas constitucionais, baseada em

critérios semânticos. Daí o porquê do surgimento das doutrinas norte-americanas

das normas self-executing e das normas not-self-executing, das teorias weimarianas10

das “normas meramente diretivas” (cf. SILVA, 1999, p. 79-80), das “normas precep-

tivas” e, ainda, das várias teorias da aplicabilidade e da eficácia, dentre as quais

destaca-se a de José Afonso da Silva.11 Essa tentativa de enquadrar as normas consti-

tucionais em uma classificação baseada no sentido das palavras (cf. PEREIRA, 2001,

p. 108)12 motivou os órgãos jurídicos, no auge de sua “discricioridade ou liberdade”

(OLIVEIRA, 2001, p. 186), a interpretar inadequadamente as normas constitucionais,

igualando-as a valores jurídicos (jurisprudência dos valores) (CAMARGO, 2003, p.

117-127; HABERMAS, 2003, p. 6, 314). O grande problema é que, como assevera

Marcelo Cattoni, o fato de as normas poderem refletir valores não significa que “elas

sejam ou devam ser tratadas como valores” (OLIVEIRA, 1998, p. 139). Nas palavras

de Habermas:

9 Algumas dessas ressalvas são as seguintes: a) em sede de mandado de injunção o Poder Judiciário não exerce atividade legislativa, mas de regulamentação do caso concreto. b) conforme já se destacou, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais não podem ser entendidos como valores, ou comandos de otimização, mas como princípios deontológicos, devendo ser aplicados, e não priorizados. Destarte, não podem ser entendidos como bens de fruição, visto que os bens, assim como os valores, são atrativos, possuindo aplicabilidade ponderada.

10 Advindas da Constituição de Weimar, na Alemanha, conhecida como o marco inicial do que se convencionou chamar de constitucionalismo social.

11 Sobre o assunto, conferir Silva, 1999, p. 99-141; Bonavides, 2004, p. 232-233, 236 e 237; Oliveira, 1998, p. 41; Oliveira, 2001, p. 185; Oliveira, 2002, p. 59.

12 A interpretação das normas jurídicas com base em critérios semânticos compreende o clássico método (de interpretação) literal.

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Aplicabilidade do mandado de injunção como viabilizador do exercício do direito social ao lazer

Normas e valores distinguem-se, em primeiro lugar, através de suas respectivas

referências ao agir obrigatório ou teleológico; em segundo lugar, através da co-

dificação binária ou gradual de suas pretensões de validade, em terceiro lugar,

através dos critérios aos quais o conjunto de sistemas de normas ou de valores

deve satisfazer. Por se distinguirem segundo essas qualidades lógicas, eles não

podem ser aplicados da mesma forma. (HABERMAS, 2003, p. 6, 317-318)

Assim, os direitos fundamentais adquirem sentido distinto se concebidos,

como entende Dworkin, como princípios jurídicos deontológicos, ou, como pensa

Alexy, como bens jurídicos otimizáveis. Tanto é assim que Habermas chega a afir-

mar: “Quando Dworkin entende os direitos fundamentais como princípios deontoló-

gicos do direito e Alexy os considera como bens otimizáveis do direito, não estão se

referindo à mesma coisa” (HABERMAS, 2003, p. 6, 318). Essa afirmação, como bem

analisa Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira:

(...) deriva do fato de que as normas – quer como princípios, quer como regras

– visam ao que é devido, são enunciados deontológicos: à luz de normas, posso

decidir qual é a ação ordenada. Já os valores visam ao que é bom, ao que é me-

lhor; condicionados a uma determinada cultura, são enunciados teleológicos;

uma ação orientada por valores é preferível. Ao contrário das normas, valores

não são aplicados, mas priorizados. (OLIVEIRA, 1998, p. 139)

É exatamente em virtude disso que os direitos fundamentais, à luz do para-

digma do Estado Democrático de Direito, não podem ser entendidos como valores

(ou, como propôs Alexy, como comandos/mandamentos otimizáveis), devendo ser

aplicados, e nunca priorizados. Nas palavras de Jürgen Habermas:

Os que pretendem diluir a Constituição numa ordem concreta de valores des-

conhecem seu caráter específico; enquanto normas do direito, os direitos fun-

damentais, como também as regras morais, são formados segundo o modelo

de normas de ação obrigatórias – e não segundo o modelo de bens atraentes.

(HABERMAS, 2003, p. 6, 318)

Portanto, qualquer tese que defenda a existência de normas de conteúdo pro-

gramático é, com base no paradigma do Estado Democrático de Direito, completa-

mente infundada. Foi exatamente isso que Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira quis

dizer quando afirmou que “não há normas programáticas ou de eficácia diferida”

(OLIVEIRA, 1998, p. 27).

Crítica à tese da garantia do exercício dos direitos no limite ou na reserva do possível

Diante da realidade de que os direitos fundamentais (entendidos como prin-

cípios deontológicos) devem ser aplicados, e não priorizados, coloca-se em xeque a

tese que defende a tutela jurisdicional do exercício de direitos no limite ou na “re-

serva do possível”. A crítica a ser desenvolvida nesse tópico, obviamente, também

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fErnando josé armando ribEiro | bErnardo auGusto fErrEira duartE

se fundamenta na correta compreensão do princípio da separação dos poderes à luz

do paradigma do Estado Democrático de Direito.

A bem da verdade, sob a égide da Constituição Federal de 1988, não há espa-

ço para a visão “jurídico-materializante do Estado Social” (OLIVEIRA, 2001, p. 185),

segundo a qual o texto da Constituição possui normas (princípios) que consagram

programas de aplicação futura, ou seja, a serem efetivamente implementadas à me-

dida que o Estado possuir condições (financeiras, espaciais, estruturais etc.) ( cf.

OLIVEIRA, 1998, p. 27).

O fato é que a teoria da reserva do possível só possui fundamento num con-

texto do Estado de bem-estar social, em que os direitos são entendidos como regras

e princípios otimizáveis (consubstanciadores de valores fundamentais, bem como

de programas de fins), e os cidadãos, como clientes da administração pública. Não

obstante, não há como negar que, mesmo sob a égide da Constituição da República

de 1988, ainda se discute a possibilidade de efetivação do exercício de direitos so-

ciais, econômicos e culturais, frente à inexistência de aportes materiais para tanto.

Essa questão é analisada no já citado julgamento da ADPF 45 MC/DF:

Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo re-

levo ao tema pertinente à “reserva do possível” (Stephen Holmes, Cass R. Suns-

tein, The cost of rights, 1999, Norton, New York), notadamente em sede de

efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração

(direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Públi-

co, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais

prerrogativas individuais e/ou coletivas. É que a realização dos direitos eco-

nômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu

processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável

vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de

tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financei-

ra da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a

limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto

da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hi-

pótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou polí-

tico-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e

censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento

e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mí-

nimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva

do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível –

não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumpri-

mento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta

governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação

de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamen-

talidade. Daí a correta ponderação de Ana Paula de Barcellos (A eficácia jurídi-

ca dos princípios constitucionais, 2002, p. 245-246, Renovar): “Em resumo: a

limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O

intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido

judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo

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Aplicabilidade do mandado de injunção como viabilizador do exercício do direito social ao lazer

Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao

obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de

serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos

fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da

Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção

do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições

de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individu-

ais, condições materiais mínimas de existência.(...) O mínimo existencial, como

se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de

conviver produtivamente com a reserva do possível.” (grifei) Vê-se, pois, que os

condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do possível”, ao proces-

so de concretização dos direitos de segunda geração – de implantação sempre

onerosa –, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a ra-

zoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público

e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar

efetivas as prestações positivas dele reclamadas. (ADPF 45 MC/DF, Rel. Min.

Celso de Mello, DJ 4.5.2004, p. 12. Decisão Monocrática disponível em: http://

www.stf.gov.br/jurisprudencia. Acesso em: 14 mar. 2007. – grifo acrescido)

Esse julgado, apesar de conceber como válidas algumas das teses já criticadas

nesta pesquisa – tal como a das teorias das normas programáticas, por exemplo – já

representa um avanço no que tange à concepção dos direitos fundamentais, visto

que reconhece a obrigatoriedade de garantia deles pelo Estado, ainda que num pa-

tamar mínimo (“o mínimo essencial”). A interpretação dada pelo ministro Celso de

Mello ao princípio da reserva do possível, nesse sentido, representa uma alternativa,

até certo ponto plausível, para superar o conflito entre a inexistência de aportes ma-

teriais e a efetivação de direitos fundamentais.

Obviamente não se pretende, através desse julgado, justificar a tão criticada

teoria alexiana, nem reafirmar as teorias defensoras das normas programáticas, as

quais não se coadunam com o paradigma democrático de Direito. A intenção, aqui,

é de, tão-somente, apresentar opções para a solução do conflito entre a inexistência

de aportes materiais e a efetivação de direitos fundamentais, sem contudo deixar de

ter em mente que, sob o paradigma do Estado de Direito, aludidos direitos devem ser

entendidos como princípios deontológicos, de ação obrigatória, cujo exercício deve

ser garantido pelo Estado.

Análise do direito social ao lazer e da importância de sua efetividade

Após a descrição dos problemas paradigmáticos que circundam as compreen-

sões dominantes do mandado de injunção, e sobretudo dos direitos fundamentais,

passa-se a analisar o direito social ao lazer.

Seguindo a linha de pesquisa de Fernando Henrique Soares de Oliveira, pauta-

da na definição de lazer elaborada por Joffre Dumazedier e, ainda, de José Guilherme

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C. Magnani, o direito ao lazer seria o direito ao gozo efetivo da livre vontade, seja

para repousar, divertir-se, recrear-se, entreter-se ou para desenvolver uma formação

voltada à participação social voluntária e à livre capacidade criadora.

Em que pese o valor didático dessa definição, o que de fato interessa, para a

presente pesquisa, é que o direito ao lazer, sob a perspectiva do paradigma do Esta-

do Democrático de Direito, não pode ser entendido como um comando otimizável,

realizável na medida do possível, mas como princípio deontológico, cujo exercício

deve ser assegurado ao cidadão pelo Estado, porquanto, enquanto direito (e direito

fundamental), não constitui um valor, mas um dever (ser).

Obviamente, quem optará por exercer determinada atividade que ilustre, no

caso específico, o lazer, será o próprio indivíduo ou um determinado conjunto de

indivíduos, para quem a atividade escolhida represente, eventualmente, o pleno

gozo do direito ao lazer.13 O Estado jamais deverá, nesse diapasão, determinar o

que seja ou não o direito ao lazer, cabendo-lhe implementar as condições neces-

sárias ao exercício efetivo desse direito, por todos os membros da comunidade.14

Isso porque, conforme já dito exaustivamente, a atividade estatal, à luz do paradig-

ma democrático, deve estar relacionada com a garantia dos direitos fundamentais,

o que não quer dizer, definitivamente, que esses direitos, dentre eles o direito

social ao lazer, devam ser entendidos como uma concessão estatal (que justificaria

uma incompreensível delimitação do lazer).

E, sem dúvidas, uma das formas viáveis à garantia e efetivação de direitos

fundamentais é a regulamentação do caso concreto, em sede de mandado de in-

junção. Obviamente, essa proposição está pautada na indelével afirmação de que,

sob o paradigma democrático, a norma definidora do direito social ao lazer, não

obstante a sua abstratividade, garante ao cidadão um direito que “não pode ser

compreendido como um bem, mas como algo que é devido e não como algo que é

atrativo” (OLIVEIRA, 1998, p. 27). Nesse sentido, toda alusão ao direito social ao

lazer deve respeitar a realidade de que ele é um direito fundamental e, a partir daí,

13 Nos dias atuais, devido ao crescente anseio da comunidade pelo lazer, muitas são as políticas desenvolvidas pela administração pública (Poder Executivo) com a finalidade de ampliar esse direito. Essa é, inclusive, uma característica comum aos programas de governos dos diversos candidatos ao Executivo, seja no âmbito municipal, estadual ou federal. Ocorre que essas políticas, na maior parte das vezes, são reduzidas a programas de incentivo à prática desportiva e ao turismo, o que, inegavelmente, acarreta uma considerável delimitação do lazer. Isso se deve, principalmente, a uma compreensão “clientelista” do direito social ao lazer, cuja implementação é confundida com concessão estatal. Como se não bastasse, essas políticas estão estritamente vinculadas a uma determinada gestão administrativa, o que dificulta a implementação continuada desses programas, mormente quando da sucessão eleitoral. Um exemplo é o Programa Esporte e Lazer da Cidade, criado pelo Ministério do Esporte – Secretaria Nacional de Desenvolvimento do Esporte e do Lazer (SNDEL), disponível em: http://www.esporte.gov.br/esporte_lazer/default.asp. Cf. p. 2.

14 Atualmente, no âmbito do Poder Executivo municipal, algumas políticas são criadas com o objetivo de atender diretamente aos anseios da população. Um exemplo dessas políticas é o orçamento participativo (conceito disponível em: http://pt.wikipedia.org. Acesso em: 12 fev. 2007). Algumas dessas consultas mostram claramente o anseio da população brasileira por áreas de lazer, como p. ex., indicam os resultados das decisões comunitárias realizadas nas cidades de Porto Alegre (RS), Bangu (RJ) e Belo Horizonte (MG), disponíveis, respectivamente, no site da Prefeitura de Porto Alegre. http://www1.prefpoa.com.br/op/default.php?p_secao=25), acesso em: 11 fev. 2007; no site da Prefeitura de Bangu/RJ: http://www.rio.rj.gov.br/planoestrategico, acesso em: 11 fev. 2007; e no site da Prefeitura de Belo Horizonte: http://www.quinzenario.com.br/modules.php?name=News&new_topic=7, acesso em: 11 fev. 2007.

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Aplicabilidade do mandado de injunção como viabilizador do exercício do direito social ao lazer

compreendê-lo como norma sujeita à regra prevista no artigo 5º, §1º da Constituição

da República de 1988.

Análise dos reais efeitos da decisão concessiva do mandado de injunção à luz do Estado Democrático de Direito

Consoante Marcelo Cattoni de Oliveira, “se o mandado de injunção é uma ga-

rantia constitucional processual do exercício de direitos constitucionais, inviabili-

zado por falta de norma regulamentadora” (1998, p. 184), para se determinarem os

efeitos da decisão que o conceda (do provimento jurisdicional) é necessário ter em

mente a resposta de três questões:

1. O que é falta de norma regulamentadora que torne inviável o exercício desses

direitos?

2. Como compreender a inviabilização do exercício de direitos por falta de nor-

ma regulamentadora diante do previsto pelo art. 5º, §1º, da Constituição?

3. O que é garantir processualmente o exercício de direitos constitucionais in-

viabilizado por falta de norma regulamentadora? (OLIVEIRA, 1998, p. 184-185)

As respostas a essas perguntas são dadas por ele próprio:

A falta de norma regulamentadora pode inviabilizar o exercício dos direitos e

não as normas que prescrevem ou “definem” esses direitos. Isso, inclusive, por-

que a Constituição fala em “falta de norma regulamentadora que torne inviável

o exercício de direitos constitucionais” (art.5º, LXXI) e ao mesmo tempo, ao ex-

plicitar o seu caráter vinculante, determina a “aplicação imediata“ das normas

definidoras de direitos e garantias fundamentais (art. 5º, §1º) expressos, im-

plícitos ou decorrentes (art. 5º, §2º). É pois necessário distinguir a “definição”

dos direitos (seu caráter prima facie) do seu “exercício” (o caráter definitivo das

normas que irão reger, em cada caso, esse último), como base na diferenciação

avançada, no marco do Estado Democrático de Direito, entre discursos de jus-

tificação e discursos de aplicação. O que quer dizer, pois, que a atividade reali-

zada pelo Poder Judiciário em sede de MI não deve ser compreendida, como o

foi pela doutrina da tutela do exercício dos direitos no limite do possível, como

sendo legislativa, mas de regulamentação, e regulamentação para o caso con-

creto. Tal atividade não deve ser, portanto, compreendida como sendo de jus-

tificação, mas de aplicação do Direito. Diante disso, garantir processualmente,

através do Mandado de Injunção, o exercício de direitos constitucionais, cujo

exercício está inviabilizado por falta de norma regulamentadora, consiste em

aplicar diretamente a norma constitucional definidora de um direito a um caso

concreto, estabelecendo como esse direito deverá ser exercido. Tal ação deverá

ser julgada através de um procedimento jurisdicional especial. Mas especial em

que sentido? No sentido de que o Mandado de Injunção é uma ação especial que

visa à tutela de direitos constitucionais, cujo exercício está inviabilizado por

falta de norma regulamentadora. (OLIVEIRA, 1998, p. 185-186)

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fErnando josé armando ribEiro | bErnardo auGusto fErrEira duartE

Com base nessas respostas, o autor justifica a sua posição de que a decisão

concessiva do mandado de injunção possui efeitos declaratórios, constitutivos, mas

também condenatórios (OLIVEIRA, 1998, p. 186). Essa assertiva contribui sobrema-

neira para a compreensão do mandado de injunção como o instrumento constitucio-

nal próprio para, no caso concreto, solucionar o problema da inexistência de norma

regulamentadora, que inviabiliza o exercício do direito social ao lazer.

Mandado de injunção viabilizador do direito social ao lazer

Se, dentre as obrigações do Estado Democrático de Direito, está a de imple-

mentar condições que garantam, a todos os membros da comunidade, o efetivo

exercício dos direitos fundamentais, obviamente a atividade realizada pelo Poder

Judiciário é determinante para que essa função deixe o plano teórico para alcançar

o plano pragmático. Em sede de mandado de injunção, por exemplo, cabe ao Poder

Judiciário regulamentar o caso concreto, suprindo a ausência de norma que impede

o efetivo exercício dos direitos e liberdades constitucionais, além das prerrogativas

inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.

No que tange ao direito social ao lazer, tendo em vista o seu caráter extrema-

mente abstrato, não caberá ao Poder Judiciário (em sede de mandado de injunção)

solucionar o caso concreto através da determinação do que seja ou não o lazer para

o indivíduo (ou conjunto de indivíduos). É o titular do direito inviabilizado quem

definirá, no caso específico, a modalidade de lazer cujo exercício está sendo impos-

sibilitado pela ausência de norma regulamentadora.

É necessário esclarecer, desde já, que as eventuais normas elaboradas pelo

Poder Legislativo com o intuito de regulamentar o direito ao lazer, ao contrário do

que possa parecer até o momento, não deveriam estar relacionadas com uma deter-

minada espécie de lazer, cuja infinidade é uma característica marcante, porquanto,

nesse caso, estar-se-ia criando uma série de “estatutos” regulamentadores do la-

zer, tal como o Estatuto do Torcedor, descrito pela Lei 10.761/2003. Ao contrário,

o que o Poder Legislativo deveria fazer para, eficazmente, regulamentar o direito

ao lazer, seria criar leis, em primeiro lugar, contextualizadas com os anseios da

comunidade em relação ao lazer. Para isso, essas leis deveriam, necessariamente,

ser discutidas com a comunidade, a fim de que fosse respeitado um processo de-

mocrático de formação da vontade (caracterizado pelo discurso), que garantiria

um assentimento intersubjetivo, de forma que os cidadãos (entendidos como co-

associados livres e iguais perante o direito) pudessem ser considerados, ao final,

como os seus próprios formadores. Essas normas, intimamente vinculadas a uma

generalidade de anseios da comunidade em relação ao direito ao lazer, tenderiam

a criar centros de entretenimento (nas escolas, bairros, vilas, guetos, favelas etc.),

onde esses anseios viessem a ser efetivamente postos em prática (sua criação se-

ria de competência do município, uma vez que a regulamentação do exercício do

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Aplicabilidade do mandado de injunção como viabilizador do exercício do direito social ao lazer

direito ao lazer representaria, a priori, uma questão de interesse local);15 ou, ainda,

caracterizar-se-iam pela criação de formas de acesso a áreas eventualmente exis-

tentes, embaraçadas, por exemplo, pelo exercício do direito à propriedade privada

(como, por exemplo, criando servidões de trânsito a fim de possibilitar o acesso

de turistas a cachoeiras localizadas em cidades históricas, ou praias cravadas em

propriedades privadas. Nesse caso, a lei seria de competência da União, diante do

disposto no artigo 20, inciso III, da CR/88).

Diante dessas explicações, resta claro que o mandado de injunção deverá ser

impetrado por um cidadão (ou por um conjunto de cidadãos) sempre que a ausência

de norma regulamentadora torne inviável o exercício do direito social ao lazer; ou

melhor, sempre que inexistirem normas tendentes a regulamentar as circunstâncias

que tornem possível o exercício dos anseios dessa comunidade em relação ao lazer.

A atividade jurisdicional consistirá, pois, em regulamentar essas circunstâncias, de

modo a criar condições que viabilizem, no caso concreto, o exercício do direito so-

cial ao lazer.16

15 ”Art. 30 - Compete aos municípios: Inciso I – legislar sobre assuntos de interesse local” (CR/88).

16 Infelizmente não há, no Judiciário brasileiro, casos concretos que ilustrem a tese aqui defendida. Contudo, inúmeras são as situações que, se aparecessem em demandas judiciais na forma de MI, serviriam como exemplos pragmáticos da hipótese aqui descrita. Como exemplo, afigura-se a situação dos deficientes visuais que, ao menos no Brasil, raramente encontram à sua disposição áreas (centros de entretenimento) projetadas para o exercício do lazer. Acerca do tema, cf. Julião; Ikimoto (disponível em http://www.ivt-rj.net/sapis/pdf/DanielleJuliao.pdf.) Nesse caso, a inexistência de uma norma que regulamente a implantação, em parques ou em centros de entretenimento, de atrativos aos deficientes visuais, acaba por resultar na inércia do Poder Executivo em implementar políticas públicas como essas. De fato, como alguns podem vir a indagar, a implementação desse tipo de política pública pelo Executivo poderia viabilizar o exercício desse direito. Contudo, como a questão não está regulamentada, essas políticas tenderiam a perder força e, com o tempo, ser esquecidas ou mesmo preteridas, sobretudo pelo seu alto custo e pela complexidade de sua manutenção. É exatamente em virtude disso que a regulamentação da situação se mostra essencial, sob pena de a falta de norma inviabilizar o exercício dessa modalidade de lazer atinente aos deficientes visuais de determinada municipalidade. Ademais, só é possível exigir da administração pública a implementação de uma política que ultrapasse o plano médio de normalidade (ou seja, as que geralmente se implementam), se há obrigatoriedade de sua implementação em virtude de lei (legalidade) ou de decisão judicial. É uma linha muito tênue, não há como negar. Todavia, a ausência de norma regulamentadora, in casu, indubitavelmente, é fator inviabilizador do exercício do direito ao lazer, pelo que é cabível a impetração do mandado de injunção. (O(s) deficiente(s) visual (ais) e, ainda, o Ministério Público (artigo 127 da CR/88) seriam partes legítimas para impetrar MI com a finalidade de obter a regulamentação da situação acima descrita).

Outro exemplo é a inviabilidade de acesso de pessoas carentes, de baixa renda, ou que vivem abaixo da linha de miséria – cf. Mundo Desigual. Disponível em: http://www.consciencia.net/mundo/desigual.html. Acesso em: 17 abr. 2007 –, em shows musicais, espetáculos artísticos e estádios de futebol, causada sobretudo pelo elevado preço dos ingressos. A impossibilidade de acesso nesses locais é ainda maior quando há grande corrida pela busca dos ingressos, como em jogos da seleção brasileira, shows internacionais e espetáculos de clássicos cantores de MPB. O fato é que a ausência de uma norma que regulamente a situação, no sentido, por exemplo, de disponibilizar uma quantidade de vagas para essa camada da população economicamente desfavorecida (consideradas a capacidade de espectadores no local e a procura de ingressos) acaba por inviabilizar o exercício do direito ao lazer nesse caso específico, como ocorre na situação anteriormente descrita. Em virtude disso, também aqui caberia a impetração de MI pelos interessados (aqueles que, em virtude da ausência dessa norma, tivessem inviabilizados o exercício dessa modalidade de lazer), ou pelo Ministério Público. Obviamente, está-se a pensar na hipótese de venda antecipada de ingressos, uma vez que, in casu, para não haver problemas (de ordem) de implementação, é imprescindível que existam vagas, ou seja, que a capacidade não esteja esgotada. Caso todos os ingressos já tenham sido vendidos, não haverá, infelizmente, possibilidade de solução do

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fErnando josé armando ribEiro | bErnardo auGusto fErrEira duartE

Conclusão

Esta pesquisa comprova que o mandado de injunção, compreendido à luz do

paradigma do Estado Democrático de Direito, é o instrumento próprio e eficaz para

solucionar o problema da inviabilidade do direito social ao lazer, causado pela ine-

xistência de norma regulamentadora.

Para que isso fosse possível, foi necessário discorrer acerca dos paradigmas

do Estado moderno, para, então, demonstrar a inadequabilidade das posições do

Supremo Tribunal Federal sobre a decisão concessiva do mandado de injunção ao

paradigma do Estado Democrático de Direito, descrito na Constituição Federal de

1988.

Demonstrou-se que o problema das posições do STF devia-se a uma compreen-

são inadequada, à luz do paradigma do Estado Democrático de Direito, do princípio

da separação dos poderes e, principalmente, dos direitos fundamentais.

A partir daí, com base nos estudos de Jürgen Habermas e sobretudo de Mar-

celo Andrade Cattoni de Oliveira, provou-se de forma concludente que a atividade

jurisdicional, em sede de mandado de injunção, não era legislativa, mas de regula-

mentação do caso concreto, fundamental para a sua solução.

Logo após, dissertou-se sobre os direitos fundamentais e, a partir de uma

diferenciação entre normas e valores, fez-se ver que esses direitos não podiam ser

entendidos como comandos otimizáveis, realizáveis na medida do possível, mas

como princípios deontológicos, devendo ser aplicados e não priorizados.

Em seguida, desenvolveu-se um estudo acerca do direito social ao lazer, bus-

cando adequá-lo a essa concepção dos direitos fundamentais, para, então, finalizar o

trabalho com a demonstração de que, se corretamente entendido com base no para-

digma do Estado Democrático de Direito, o writ of injunction é o instrumento próprio

para a solução do problema relacionado à inviabilidade do exercício do direito social

ao lazer causado pela inexistência de norma regulamentadora.

caso concreto por meio do writ of injunction, haja vista não ser prudente, nem viável, a disponibilização de vagas além da capacidade máxima comportada. Isso, contudo, não descaracteriza o exemplo proposto, visto que, indubitavelmente, a ausência de norma regulamentadora, nessa hipótese, acaba por inviabilizar o exercício do direito ao lazer pelos menos favorecidos economicamente. Quanto à indagação de que, in casu, estar-se-ia diante de uma hipótese em que haveria a necessidade de lei prévia, o que alguns poderiam interpretar como um argumento contrário ao cabimento do MI, é necessário esclarecer que a própria redação do artigo 5º, inciso LXXI, da CR/88 – “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais, e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” – já indica que o writ of injunction

é uma medida de emergência, posta à disposição dos cidadãos brasileiros para a solucionar situações em que a ausência de norma regulamentadora (dentre as quais está a lei) torna inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais, bem como das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Dessa forma, não há como negar, o ideal seria que já houvesse uma lei prévia, editada pelo Poder Legislativo, a qual, eventualmente, regulamentasse a situação. Isso, contudo, não invalida o exemplo; ao contrário, dá-lhe credibilidade.

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Aplicabilidade do mandado de injunção como viabilizador do exercício do direito social ao lazer

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DireitoCivil(emcrise)eabuscade suarazãoantropocêntrica(Civil Law - in crisis - and the search for its anthropocentric reason)

Gustavo pErEira lEitE ribEiro*

R E S U M OO artigo pretende demonstrar a possibilidade de perceber as principaistransformações do direito civil contemporâneo como indicativo de suavitalidade. Além disso, destacar que as atuais mutações do direito civilapontamparaoresgatedatuteladadignidadedapessoahumana.

P A L A V R A S - C H A V EDireitocivil;Codificação;Crise;Legitimidade;Dignidadedapessoahumana.

A B S T R A C TThis article intends to demonstrate the possibility of perceiving themaintransformationsofcontemporaryCivilLawasevidenceofitsvitality.Besides,it points out that current changes in Civil Law seem to reestablish theguardianshipofthehumanbeing’sdignity.

K E y w O R D SCivilLaw;Codification;Crisis;Legitimacy;Humanbeing’sdignity.

O direito civil, desde suas remotas raízes romanas, passando pela formulação

moderna das codificações, articula-se sobre um núcleo material constante, ocupado

pelo tripé formado pela pessoa, família e patrimônio, sendo que seus principais ca-

racteres foram se aperfeiçoando e se conservam como valor de herança tradicional.

Do ponto de vista histórico-cultural, o direito civil apresenta-se como aquele setor

da disciplina jurídica dotado de certa estabilidade, especialmente quando confron-

tado com o direito público, altamente sensível às contingências de ordem política

e ideológica que atingem determinada sociedade no decorrer de sua existência (DE

CUPIS, 1986, p. 195).

* Professor de Direito Civil no Centro Universitário Una, doutorando em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com estágio de investigação na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Bolsista da Capes.

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Direito Civil (em crise) e a busca de sua razão antropocêntrica

O direito civil mantém, dessa forma, ao longo dos séculos, uma linha de con-

tinuidade histórica nos seus aspectos formais e materiais, estando menos sujeito a

transformações bruscas (TOBEÑAS, 1961, p. 77-78). Contudo, parece que sua estabi-

lidade é gravemente ameaçada pelas transformações contemporâneas que atingem

o seu âmago, pois, num curtíssimo espaço de tempo, o direito civil vem sofrendo

substanciais alterações, que atingem tanto sua estrutura como seu conteúdo, aca-

bando naturalmente por ensejar um certo estado de perplexidade nos juristas, que

passam a proclamar sua crise (DE CUPIS, 1986, p. 202-204).

Como bem adverte o professor italiano Michele Giorgianni, “são conhecidas as

reações de consternação muitas vezes expressas pelos civilistas” diante das signi-

ficativas transformações contemporâneas do direito civil, “como as de quem, retor-

nando de uma longa ausência, encontrasse a sua casa invadida por gente estranha

que derrubara muros e portas, modificara tapeçaria e móveis” (GIORGIANNI, 1998,

p. 36). A crise do direito é anunciada, por vozes autorizadas, com certo assombro

e melancolia (vide RIPERT, 1953). Aliás, chegou-se, inclusive, a afirmar que, se o

direito civil continuasse transformando-se substancialmente, acabaria mesmo por

desaparecer (AZEVEDO, 1975, p. 16).

No que tange à sua estrutura, presencia-se o declínio dos dogmas fundantes

do movimento clássico de codificação, como a completude, a coerência e, obviamen-

te, a segurança jurídica. Acredita-se que a proliferação das leis especiais ameaça a

unidade do sistema privado, acabando por exigir o desenvolvimento de instrumen-

tal que facilite a compreensão e manipulação das possíveis relações entre os vários

núcleos normativos fragmentados.

Evidencia-se a fragilidade da técnica legislativa rígida e casuística, que defini-

tivamente não consegue dar tratamento adequado às novas situações que emergem

das complexas relações sociais. A seu turno, ganham prestígio as cláusulas gerais,

que não utilizam termos de conteúdo prefixado, mas de conteúdo determinável,

o que acarreta uma maior possibilidade de adaptar a norma às situações de fato.

Reconhecem-se também a relevância e a prevalência normativa dos princípios ju-

rídicos, especialmente daqueles de índole constitucional, na solução concreta dos

litígios privados.

Enfim, as mudanças estruturais convergem para a valorização da atividade

do intérprete, que não se limita mais à rasa e literal exegese. O intérprete passa a

contribuir efetivamente para a construção da decisão justa em cada litígio concreto,

participando ativamente do preenchimento do conteúdo da norma jurídica. Mais

que isso, evidencia-se que somente através da atividade interpretativa é possível

criar as condições necessárias para o diálogo e harmonização das diversas fontes

normativas.

No que tange ao seu conteúdo, parece que as transformações são mais signi-

ficativas. Percebe-se o declínio da proteção abstrata da pessoa, típica das primeiras

codificações modernas, implementando-se a promoção da igualdade substancial, que

reconhece as desigualdades fáticas e legitima seu tratamento diferenciado como me-

dida de inclusão. Projeta-se a ampliação da proteção dos direitos de personalidade,

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Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 101-112, 2º sem. 2008 103

Gustavo pErEira lEitE ribEiro

com a consequente valorização da autonomia privada também nas relações de cunho

existencial.

Na família, abandona-se o modelo matrimonializado e hierarquizado, de forte

conteúdo patrimonial. Promove-se a igualdade entre os cônjuges e entre os filhos,

reconhecendo-se, posteriormente, a pluralidade das entidades familiares, que pas-

sam a ser vistas como locus de afeto e de tutela do pleno desenvolvimento dos seus

integrantes. Vivencia-se a desbiologização dos laços paterno-filiais, com a conse-

quente valorização do melhor interesse da criança e a relativização da autoridade

parental. A seu turno, percebe-se que as inovações biotecnológicas no campo da

procriação humana acabam por exigir uma radical redefinição do sistema clássico

de filiação.

No patrimônio, supera-se a concepção absoluta de propriedade através do

reconhecimento de sua imanente função social. Percebe-se que o proprietário não

tem apenas poderes, mas também deveres no exercício do seu direito; sendo que a

destinação dada à sua propriedade deve harmonizar-se com os interesses sociais,

sem que, contudo, isso leve ao exagero da coletivização dos bens. Supera-se também

o caráter unitário e abstrato de sua disciplina jurídica, tendo em vista a pluralida-

de de modalidades da situação proprietária, dada a diversidade de seus objetos.

Distinguem-se, dentre outros, regimes jurídicos voltados para o atendimento das

intrínsecas peculiaridades da propriedade rural, da propriedade industrial, da pro-

priedade urbana, da propriedade acionária, da propriedade dos bens de consumo,

da propriedade intelectual.

Quanto ao contrato, o princípio fundamental da autonomia da vontade e seus

principais corolários são amplamente mitigados. Torna-se frequente a intervenção

estatal na regulação do conteúdo do contrato, bem como na liberdade de escolha

do parceiro contratual; medidas que objetivam claramente resguardar as legítimas

expectativas dos contratantes em posição de vulnerabilidade, uma vez que se ex-

pande a utilização das técnicas massificadas de contratação – cláusulas contratuais

gerais e contratos de adesão, que utilizam um esquema contratual predisposto por

um dos contratantes e que, posteriormente, é oferecido ao outro para simples ade-

são. Além disso, atenua-se o rigor do princípio da obrigatoriedade contratual, com o

consequente reconhecimento da admissibilidade da revisão judicial dos contratos,

tendo em vista a constatação de excessiva onerosidade prestacional suportada por

apenas uma das partes. Mais do que isso, o princípio da boa-fé objetiva reveste-se

de extrema importância, passando a ocupar o centro da regulação, interpretação e

execução dos contratos, assumindo definitivamente a posição ocupada outrora pelo

princípio da autonomia da vontade. Impõem-se aos contratantes uma série de deve-

res de comportamento recíproco, a partir de parâmetros de lealdade, transparência,

cuidado, auxílio e confiança.

Por fim, percebem-se uma valorização e ampliação da extensão da responsa-

bilidade civil, que passa, inclusive, por um gradual processo de objetivação. O dever

jurídico de recomposição de dano passa a fundar-se, cada vez mais, no risco ineren-

te às atividades, pois se constatou que a demonstração da culpa do agente causador

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Direito Civil (em crise) e a busca de sua razão antropocêntrica

do dano, em inúmeras situações corriqueiras, tornava-se extremamente penosa ou

até impossível, o que acabava impedindo qualquer tipo de reparação. Ultrapassa-

se a noção de responsabilidade civil derivada exclusivamente de atos ilícitos, bem

como aquela restrita à recomposição apenas de danos materiais, que fundamenta-

vam a tímida disciplina do instituto jurídico de outrora.

Um olhar contemplativo sobre a paisagem e o horizonte do direito civil con-

temporâneo revela importantes questionamentos. Qual o significado da crise do di-

reito civil? O que justifica as transformações do direito civil? O direito civil corre

mesmo o risco de desaparecer?

As respostas dessas indagações não podem ser apresentadas de maneira sim-

plista, devendo estar bem expostos e claros os seus pressupostos, tendo em vista a

coetânea banalização da ideia de crise. Para tanto, parece-nos adequado caminhar

por três passos.

Acepções do termo “crise”: o resgate do sentido originário

É imprescindível deixar bem claro o sentido que será atribuído ao termo “cri-

se”, o que, muitas vezes, passa despercebido pelos seus manipuladores.

Na atualidade, o conceito de crise alcança uma extraordinária abrangência,

que o faz perpassar por praticamente todas as esferas dos fenômenos que repercu-

tem no nosso meio social. A propósito, afirma Gerd Bornheim que “o grande palco

das crises chega a adensar-se de modo até espetacular no evolver da história, a pon-

to de se poder avançar que as palavras história e crise quase acabaram por fazer-se

sinônimas” (BORNHEIM, 1996, p. 47). E continua o autor: “No que concerne ao nosso

tempo as crises parecem mudar substancialmente a sua fisionomia, seja pelo inedi-

tismo de sua extensão como também pela radicalidade das metamorfoses que tudo

se vê” (BORNHEIM, 1996, p. 49).

Mais que isso, o termo passa a ostentar uma dimensão essencialmente nega-

tiva, consequência do seu uso corriqueiro. Toda crise seria em si mesma maléfica,

apontando necessariamente para uma fatalidade, isto é, para a transição de uma

época de prosperidade para outra de depressão ou decadência. Outras vezes, a ideia

de crise designaria um estado de dúvidas, aflições e incertezas, bem como uma con-

juntura grave, tensa ou perigosa ou, ainda, uma deficiência, penúria ou extinção.

No entanto, a origem grega da palavra “crise” nada tem de intrinsecamente

negativo. Etimologicamente, krisis, derivada do verbo krino, quer designar escolha,

julgamento, decisão (BORNHEIM, 1996, p. 49). Tal acepção encontra sua origem na

medicina hipocrática, que utilizava o termo para indicar uma transformação decisi-

va ocorrida no ponto culminante de uma doença, orientando o seu curso em sentido

favorável ou não.

A crise apontaria tão-somente o momento determinante entre vida e morte,

ensejando, ou melhor, exigindo um julgamento, uma escolha ou uma decisão pelo

médico. Pode-se, portanto, dizer que a ideia de crise está ligada “a um momento

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decisivo no seio de um processo, a um momento em que as condições, mais ou

menos conflitantes, que prepararam uma mudança substancial da situação global,

atingiram seu desfecho” (ARNAUD, 1999, p. 185).

Em geral, não se pode valorar a priori uma crise, positiva nem negativamente,

já que ela abre iguais possibilidades para o surgimento de algo benéfico ou maléfico;

ou melhor, para o aparecimento de uma época de prosperidade ou de decadência

para a entidade que a experimenta. Além disso, toda crise mostra-se essencialmente

crítica, uma vez que, de certo modo, procede a uma comparação do período imedia-

tamente anterior a ela (BORNHEIM, 1996, p. 61). Na verdade, toda crise destina-se

mesmo a “reinventar a realidade” (BORNHEIM, 1996, p. 63).

No estudo do fenômeno jurídico, parece imprescindível promover o resgate

da origem grega do termo, utilizando-o simplesmente para indicar um momento de

ruptura no funcionamento do sistema normativo, a partir de uma mudança qualita-

tiva em sentido positivo ou em sentido negativo nos seus elementos e nas relações

entre eles. Por tudo isso, a ideia de crise deve ser utilizada sem qualquer sentido pe-

jorativo, designando tão-somente uma fase de transição, ou melhor, de superação de

paradigmas ou modelos normativos, podendo gerar tanto um período de progresso

como um período de decadência.

Em busca da legitimidade do direito civil: a revolta dos fatos contra o código

O estudo da crise do direito civil torna-se infecundo quando não ligado aos

diversos fenômenos sociais que compõem a comunidade que aquele setor da disci-

plina jurídica pretende regular (TOBEÑAS, 1961, p. 7-9).

A convivência em qualquer ambiente social depende da existência de normas

que disciplinem as diversas relações possíveis entre os seus membros, o que parece

ser alcançado precipuamente a partir do estabelecimento de normas jurídicas, ten-

do em vista a reforçada pretensão de efetividade dessas. Chega-se a afirmar, com

acerto, que o ordenamento jurídico é mesmo inerente à vida dos seres humanos em

sociedade.

Para cumprirem sua função, as normas jurídicas devem atender às necessi-

dades e expectativas dos membros de determinada comunidade, refletindo a sínte-

se dos sentimentos de juridicidade então vivenciados naquela organização social.

Como muito bem observado por Eros Roberto Grau, podemos claramente identi-

ficar um conjunto de sentimentos dotados de certa juridicidade que se irradiam

das próprias interações sociais (GRAU, 2002, p. 77); cabe ao legislador absorvê-los

e, consequentemente, transformá-los em direito positivo, pois este somente será

considerado legítimo quando “produzido com autoridade, de modo a expressar os

padrões de cultura, ou seja, os sentidos forjados pela sociedade como expressões

das aspirações e rumos que ela, sociedade, pretende seguir” (GRAU, 2002, p. 88).

A legitimidade das normas jurídicas não pode mais se limitar à mera legalida-

de. De fato, um direito positivo, fundado exclusivamente na vontade arbitrária de

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Direito Civil (em crise) e a busca de sua razão antropocêntrica

um legislador supostamente onipotente, desapegado completamente dos valores,

sentimentos, necessidades e expectativas compartilhados pelos membros de deter-

minado grupamento social, torna-se um direito ilegítimo e até mesmo ineficaz ou

impotente, o que, por sua vez, pode dar ensejo a um verdadeiro caos social.

Aliás, a legitimidade das normas jurídicas não é aferível apenas no momento

de sua produção, mas também na ocasião de sua aplicação. Adverte Orlando de Car-

valho que “nenhum direito ou ramo do direito admite uma paralisação no tempo:

mesmo que as normas não mudem, muda o entendimento das normas, mudam os

conflitos de interesses que se têm de resolver, mudam as soluções de direito, que

são o direito em ação” (CARVALHO, 1981, p. 50). Durante todo o seu período de

vigência, as normas jurídicas devem apresentar-se compatíveis com os padrões de

juridicidade de determinado grupamento social, sob pena de configuração de sua

ilegitimidade superveniente.

Por tudo isso, não se pode esquecer que a visualização do fenômeno jurídi-

co, sob a perspectiva reducionista da norma, é mesmo parcial e incompleta (GRAU,

2002, p. 19). O direito civil, assim como as demais facetas do fenômeno jurídico, é

produto histórico e cultural, construído no cotidiano dos indivíduos.

A propósito, leciona Francisco Amaral:

A compreensão do que seja realmente o fenômeno jurídico não deve partir

da visão do direito como simples conjunto de normas ou como determinado

procedimento de solução de conflitos de interesses, mas da certeza de ser ele

produto de uma realidade complexa e dinâmica, que é a vida em sociedade,

com seus problemas e controvérsias. (AMARAL, 2000, p. 6)

E acrescenta:

Creio ser impossível uma perfeita compreensão do fenômeno jurídico, prin-

cipalmente do direito civil, sem recurso à investigação histórica, que permite

identificar os fatores que nele vêm influindo, ao longo do seu processo de

formação, principalmente os que se verificam no seu estágio atual de profun-

das transformações. (...) As estruturas jurídicas não são neutras, e os sistemas

de direito não se constituem em instrumentos técnicos para fins de qualquer

natureza, mas para a realização dos valores essenciais da sociedade de que

emergem. O estudo do direito civil e, particularmente do direito civil brasileiro,

deve, portanto, levar em conta a realidade que o produz, não somente os aspec-

tos formais de suas instituições, pois o direito se torna incompreensível com o

exame apenas de suas normas e sem a necessária perspectiva histórica e social.

(AMARAL, 2000, p. 108-109)

O direito civil, portanto, não encerra uma estrutura neutra, mas dinâmica,

que acompanha a evolução da comunidade na qual está inserido. Mais que isso, não

deve ser entendido como uma mera representação da realidade social, externo a ela,

mas como um dos seus componentes. Deve-se perceber que o direito civil não está

imune às ações dos outros elementos formadores da estrutura social, mas com eles

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Gustavo pErEira lEitE ribEiro

mantém uma constante relação de tensão, sendo que alterações de ordem política,

econômica, social ou ética podem muito bem repercutir no seu terreno.

Quando mudam as condições de vida, parece inevitável também a alteração

das ações jurídicas, para que se possa assegurar uma ordem social melhor (TO-

BEÑAS, 1961, p. 54). Noutros termos, à medida que os interesses e as necessidades

dos membros de determinado agrupamento social se alteram, por quaisquer moti-

vos, legitima-se, consequentemente, a mudança do modelo vigente de direito civil.

Não se pode desejar explicar e tutelar novas situações jurídicas – como aquelas

envolvendo os embriões criopreservados ou os contratos eletrônicos – com institu-

tos jurídicos concebidos no pretérito, quando nem mesmo se cogitava a existência

dessas situações.

O contexto de inserção da sociedade contemporânea é bem diverso daquele

sob o qual se construiu o modelo codificado de direito civil. No Brasil, por exemplo,

a população cresceu de maneira surpreendente. Em 1900, estima-se que era compos-

ta por pouco mais de 17 milhões de habitantes. Em 2000, a população aproximou-se

de 170 milhões de pessoas. Em 1940, menos de 30% da população vivia nas cidades.

Em 2000, mais de 80% dos brasileiros ocupavam os centros urbanos. Em 1900, cerca

de 60% da população economicamente ativa se dedicava à agricultura e ao extrati-

vismo, enquanto apenas 5% estavam alocados nas atividades industriais. Em 1990,

aproximadamente 80% da população economicamente ativa estava vinculada às ati-

vidades industriais e aos serviços, sendo responsável por cerca de 90% da produção

da riqueza nacional (vide IBGE, 1990; IBGE, 2001). Presenciamos transformações de

várias ordens, que modificaram substancialmente a fisionomia social, tornando-a

bem mais complexa, aberta, plural e dinâmica. A sociedade contemporânea é marca-

da, entre outros fatores, pela mundialização da economia, pelo domínio do conheci-

mento e rapidez da informação, pelo espantoso desenvolvimento tecnológico, pelos

diversos desafios de melhoria das condições básicas de convivência social.

Por todo o exposto, parece evidente que a crise do direito civil nada mais é do

que a repercussão na esfera jurídica das transformações verificadas na nossa atual

sociedade, pois “a complexidade dos fatores que determinam a mudança da socieda-

de atinge, reflexamente, o direito que experimentamos em nossos dias” (TOBEÑAS,

1961, p. 10).

O direito civil está em crise, pois sua conformação tradicional – projetada pelo

movimento de codificação – não consegue mais dar respostas adequadas às emer-

gentes demandas da sociedade contemporânea. Ocorre a “revolta dos fatos contra o

Código” (FACHIN, 2000a, p. 324).

Superação do modelo codificado: a indispensabilidade do direito civil e sua razão antropocêntrica

Não se pode deixar de reconhecer que a superação de certo modelo de mani-

festação do direito civil não tem o condão de, reflexamente, determinar o desapare-

cimento do próprio direito civil (TOBEÑAS, 1961, p. 48). “A modificação das regras

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Direito Civil (em crise) e a busca de sua razão antropocêntrica

e das instituições de direito civil para ampliá-las ou restringi-las em razão das mu-

danças sociais, não quer dizer que esteja este dito direito em fase de destruição ou

desaparecimento” (TOBEÑAS, 1961, p. 75-76).

A propósito, adverte Antônio Hernandez Gil:

A expressão crise do direito civil tem-se generalizado perigosamente; a meu

juízo, infundadamente. Os que assim pensam, o fazem em nome de um relati-

vismo histórico. E o erro que todos cometem passa por uma falta de perspectiva

histórica. De um lado, porque consideram como o único direito civil possível o

que se mostra como tal na penúltima etapa de sua evolução; e assim, toda mu-

dança posterior, toda falta de coincidência, se concebe como negação da exis-

tência, perecimento, antítese, extinção. E de outro lado, porque não delimitam

cuidadosamente aquilo que no direito civil há de substancial daquilo outro que

é secundário, perfeitamente mutável, sem comprometer a essência do direito

civil. (GIL, 1958, p. 20)

Com isso, quer-se enfaticamente afirmar que a crise do direito civil, tomada

em sentido positivo ou negativo, não leva ao declínio ou desaparecimento do direito

civil, pois este se destina a regular a convivência social, disciplinando os aspectos

mais íntimos e corriqueiros da vida do ser humano. Como esta evolui com o trans-

curso do tempo, faz-se necessário que as manifestações jurídicas se adaptem a ela,

para que não fiquem completamente inoperantes. O direito civil é inerente à vida

em sociedade. Enquanto houver necessidade de os indivíduos interagirem com seus

pares, torna-se imprescindível a sua existência.

Nesse sentido, aponta José Castán Tobenãs:

Como as normas jurídicas deste [do direito civil] não têm outra finalidade que

a de regular o mais justamente possível a vida humana, e esta evolui de uma

maneira constante com o transcurso do tempo, é necessário que as manifes-

tações da ação jurídica se adaptem a ela, o que equivale a dizer que, se não o

direito em si mesmo, as manifestações positivas deste também têm que evoluir,

a fim de não ficarem completamente inoperantes e produzirem uma absoluta

disparidade entre a teoria e a prática, até o ponto de que podemos dizer que o

ordenamento jurídico mais perfeito será aquele que melhor assimile as contí-

nuas modificações que experimentam periodicamente a vida social. (...) Não há

tal agonia do direito civil, nem ontem nem agora, pois facilmente se percebe

que se existe um ramo jurídico que não pode desaparecer de nenhuma maneira

é precisamente este, por estar dedicado a regular a esfera mais íntima do indi-

víduo, é dizer, seu nascimento, seu matrimônio, sua família, sua propriedade,

sua vida contratual, sua morte e seu patrimônio hereditário, pelo que, quais-

quer que sejam as vicissitudes pelas quais possa passar a sociedade, enquanto

haja seres humanos sobre a Terra, existirá direito civil, encarregado de regular

entre eles as relações de caráter privado, sem que seria completamente impos-

sível a convivência social. (TOBEÑAS, 1933, p. 13-18)

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Gustavo pErEira lEitE ribEiro

As alterações sofridas pelo direito civil constituem, por um lado, os sinais

inevitáveis do aparecimento da crise de seu modelo codificado e, por outro lado,

as primeiras respostas para a superação desse mesmo modelo normativo, com a

consequente inauguração do seu paradigma pós-moderno ou contemporâneo. Esse

ramo jurídico não desaparece, somente se transforma com o transcurso dos séculos,

como tudo na vida.

Por sua vez, parece que a despontada crise do direito civil, pelo menos para os

mais lúcidos, não vem carregada de negatividade, pois se configura como a supera-

ção de paradigma jurídico que não mais se apresenta consentâneo com os atuais an-

seios sociais. A crise abre, portanto, as portas para a renovação do direito civil, com

a sua consequente preservação. O direito civil está em pleno vigor, em verdadeira

efervescência, preparando-se continuamente para acompanhar os mais urgentes re-

clamos sociais (TOBEÑAS, 1933, p. 5).

A atual crise do direito civil, antes de indicar o seu enfraquecimento ou até

mesmo o seu desaparecimento, realça a sua vitalidade, uma vez que não se pode

esquecer que o fenômeno jurídico é essencialmente histórico e, consequentemente,

em constante mutação, tendo em vista as incessantes exigências de harmonização

do convício social.

Obviamente, não há como determinar com exatidão a nova fisionomia da dis-

ciplina civilística, no entanto, as mais relevantes tendências apontam para a perso-

nalização do direito civil, isto é, pela busca da raiz antropocêntrica desse setor da

disciplina jurídica que de mais perto convive com a intimidade dos seres humanos

e seus afazeres mais corriqueiros. Esse movimento “reencontra a trajetória da lon-

ga história da emancipação humana, no sentido de repor a pessoa humana como

centro do direito civil, passando o patrimônio ao papel coadjuvante, nem sempre

necessário” (LÔBO, 1999, p. 103), projetando, assim, uma evidente discussão sobre

os valores que o sistema jurídico colocou em seu centro e em sua periferia, ontem e

hoje (FACHIN, 2000a, p. 74-75).

Sob o manto de uma pretensa neutralidade, o nosso primeiro Código Civil

acabou privilegiando o patrimônio como valor necessário da plena realização da

pessoa (FACHIN, 2000a, p. 55). O ser humano era valorizado pela sua aptidão para

ter patrimônio e não por sua dignidade como tal. Assim, o Código serviu para aten-

der aos interesses de uma classe social bem definida, que pretendia essencialmente

otimizar com segurança suas relações de aquisição, transmissão e manutenção de

bens, aparecendo como protetor dos valores econômicos, especialmente daqueles

incidentes sobre bens corpóreos, não guardando espaço adequado para a tutela dos

valores existenciais do ser humano.

O Código Civil reconheceu a pessoa como “um homem que resume todos os

seus direitos a possuir e a saber como possuir”, assim ignorando o “homem concre-

to, o homem de carne, sujeito a debilidades, presa de necessidades, esmagado por

forças econômicas” (CARVALHO, 1981, p. 33-34). A própria sistemática de exposição

de suas normas evidenciou esse certo desprezo pela dimensão concreta do ser hu-

mano, reduzindo-o, tal como as coisas e os fatos, sem qualquer específica posição

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Direito Civil (em crise) e a busca de sua razão antropocêntrica

de privilégio, a um simples elemento da categoria abstrata da relação jurídica (CAR-

VALHO, 1981, p. 48). Ser sujeito de direito dependia do enquadramento do indivíduo

naquelas hipóteses previamente dispostas na lei, que coordenavam e limitavam sua

atuação nas relações sociais.

Hoje, já não pode ser mais assim. A instauração da nossa ordem constitucio-

nal vigente consolidou certa subversão axiológica no âmbito do direito civil, que

desde o segundo pós-guerra vinha se operando timidamente através das leis espe-

ciais: ontem, o patrimônio recebia proteção prioritária; hoje, a dignidade da pessoa

humana.

Ao enunciar no seu dispositivo introdutório que a dignidade da pessoa hu-

mana constitui o fundamento de nossa sociedade e, consequentemente, de todo o

nosso ordenamento jurídico, o texto constitucional exaltou o suporte normativo que

possibilita a reconstrução axiológica e sistemática do direito civil. Afinal, como bem

observou Orlando de Carvalho, um direito civil que não arranque da pessoa humana

é um direito civil sem sentido, tornando-se mesmo imprescindível acentuar sua raiz

antropocêntrica, sua ligação visceral com a pessoa e as suas intrínsecas necessida-

des (CARVALHO, 1981, p. 90-91).

A exaltação axiológica da dignidade da pessoa humana tem levado o direito ci-

vil a sofrer um processo de despatrimonialização, através do qual se evidencia a sua

maior sensibilidade às situações existenciais, que recolhem dados não confináveis

nos esquemas normativos de índole econômica (PERLINGIERI, 1991, p. 55). Mais do

que isso, destaca-se progressivamente a maior importância atribuída aos interesses

personalíssimos em detrimento daqueles interesses patrimoniais, como evidencia-

do na tutela dos direitos de personalidade. Não se projeta, contudo, a expulsão ou

a redução quantitativa do conteúdo patrimonial do sistema jurídico civilístico, mas

se reconhece que os bens e os interesses patrimoniais não constituem fins em si

mesmos, devendo ser tratados como meios para a realização da pessoa humana,

ou melhor, como justificativa institucional de suporte ao livre desenvolvimento da

pessoa (PERLINGIERI, 1991, p. 55).

Nesse sentido, adverte Paulo Luiz Netto Lôbo:

O desafio que se coloca aos civilistas é a capacidade de ver as pessoas em toda

a sua dimensão ontológica e, através dela, seu patrimônio. Impõe-se a mate-

rialização dos sujeitos de direitos, que são mais que apenas titulares de bens.

A restauração da primazia da pessoa humana, nas relações civis, é condição

primeira de adequação do direito civil à realidade e aos fundamentos constitu-

cionais. (LÔBO, 1999, p. 103)

Tendo em vista todo o exposto, reforçamos nosso entendimento sobre a ino-

portuna promulgação do novo Código Civil, uma vez que esse ostensivamente re-

produziu o perfil patrimonialista e conceitualista do seu antecessor, em evidente

desacordo e afronta às escolhas axiológicas de nossa ordem constitucional (vide

FACHIN, 2000b; ROBERTO, 2008).

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Gustavo pErEira lEitE ribEiro

Contudo, não se deve sucumbir ao pessimismo e ao desânimo. Cabe ao intér-

prete a defesa do tratamento evolutivo que tem caracterizado as relações privadas

na contemporaneidade, salvaguardando os interesses inerentes à dignidade da pes-

soa humana.

Um direito civil para todos. Um direito civil mais humanizado, atendendo às

aspirações do projeto de vida e felicidade de cada ser humano, sem descuidar de sua

dimensão solidária. Esse é o nosso desafio. Esse é o desenho que temos de continuar

a pintar.

Referências

AMARAL, Francisco. Direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

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113

Aeficáciaimediatadosdireitosfundamentaisindividuaisnasrelaçõesprivadaseaponderaçãodeinteresses(The immediate efficacy of individual basic rights in private relations and the balance of interests)

josé robErto frEirE pimEnta* juliana auGusta mEdEiros dE barros**

R E S U M OAtualmente, um dosmais polêmicos debates na seara doDireitoPrivadoé a questãodaaplicaçãodireta e imediatados direitos fundamentais nasrelaçõesprivadas.AlémdeestudarasváriascorrentesdoDireitoComparadoque tratam do assunto, é imprescindível conhecer os principais pontos dateoria dos direitos fundamentais, quais sejam a natureza dos princípios,adiferençaentreprincípioseregras,aanálisedosconflitosentreeleseaponderaçãodeinteresses.Semembargo,énecessáriotambémcompreenderqueaConstituiçãoFederalde1988estáalicerçadasobrebasespluralistas,oquerefleteasespecificidadesdasociedadebrasileira.Atravésdessasbalizas,serápossívelsistematizarparâmetrosparaaeficáciaimediatadosdireitosfundamentaisindividuaisnasrelaçõesprivadas.

P A L A V R A S - C H A V EDireitosfundamentais;Relaçõesprivadas;Eficáciaimediata;Ponderação.

A B S T R A C TOneofthemostpolemicdebatesinthecontextofPrivateLawrecentlyhasbeenthequestionofdirectandimmediateapplicationoffundamentalrightstoprivaterelations.BesidesstudyingvariouslinesofthoughtofComparedLawconcerningthematter,itisindispensabletoknowthemajorpointsofthetheoryoffundamentalrights,thatis,thenatureofprinciples,thedifferencebetweenprinciplesandrules,theanalysisofconflictsbetweenthemandthebalance of interests. However, it is also necessary to understand that the1988 Federal Constitution is founded on pluralistic bases, which reflects

* Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 3a Região, doutor em Direito Constitucional pela UFMG, professor adjunto III da Faculdade de Direito da PUC Minas nas áreas de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho, nos cursos de graduação e de pós-graduação

** Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes-RJ, mestranda em Direito do Trabalho pela PUC Minas, pesquisadora do CNPq.

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114 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 113-127, 2º sem. 2008

A eficácia imediata dos direitos fundamentais individuais nas relações privadas e a ponderação de interesses

specificitiesofBraziliansociety.Throughthosemarks,itispossibletocreateparameterstopromotetheimmediateapplicationofindividualfundamentalrightstoprivaterelations.

K E y w O R D SFundamentalrights;Privaterelations;Immediateapplication;Balance.

Antes de adentrar no objeto da presente explanação, é necessário tecer um

breve estudo sobre alguns tópicos da teoria dos direitos fundamentais e sua influ-

ência no ordenamento jurídico brasileiro, com o intuito de contextualizar a questão

da eficácia dos princípios constitucionais.

Os direitos fundamentais apresentam-se como uma importante categoria ju-

rídica no constitucionalismo do século XX, que se insere na fase denominada de

pós-positivismo. O movimento acredita na razão e no Direito como instrumento de

promoção de mudanças sociais e busca, recorrendo aos princípios constitucionais e

à racionalidade prática, catalisar as potencialidades emancipatórias da ordem jurídi-

ca (SARMENTO, 2006, p. 57).

O positivismo1 não renegava completamente os princípios, mas atribuía-lhes

uma função meramente subsidiária e supletiva na ordem jurídica, ou seja, eles ape-

nas seriam aplicados quando houvesse lacuna legal, como meio de integração do

Direito. No campo do Direito Constitucional, eles eram classificados como normas

não autoaplicáveis, ou seja, não se lhes reconhecia nenhuma eficácia jurídica. Com a

crise do positivismo no período pós-Segunda Guerra Mundial, os princípios passam

a ser reconhecidos como normas jurídicas e, consequentemente, nasce a possibili-

dade de possuírem alguma eficácia jurídica.

Os direitos fundamentais são positivados no ordenamento jurídico através de

normas com estrutura de princípio, situando-se no ápice da pirâmide normativa.

O ilustre doutrinador alemão Robert Alexy afirma que um princípio comanda

a realização de um fim, constituído por um valor, que deverá ser buscado por meio

de condutas, ou seja, ações e omissões (ALEXY apud GUERRA, 2003, p. 84). Assim,

uma norma-princípio implica um conjunto de normas-regra que regerão as condutas

capazes de realizar o fim prescrito naquele mesmo princípio.

Alexy, através da diferenciação entre princípios e regras, e da definição dos

princípios como normas jusfundamentais, apresenta um fio condutor capaz de re-

solver os conflitos entre os direitos fundamentais e fornecer subsídios para a apli-

cabilidade imediata dos princípios.

As regras são normas dotadas de uma estrutura fechada, nas quais uma con-

duta determinada é qualificada como obrigatória, proibida ou permitida. Podem ser

1 A teoria positivista tinha como ideias centrais a separação completa entre o campo jurídico e o da moral e a concepção de que o processo de aplicação das normas deveria valer-se apenas da racionalidade formal, reduzindo-se à subsunção do fato à norma. A atividade do aplicador do Direito era reduzida à declaração do que já estava pronto, não sobrando espaço para a interpretação da norma.

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josé robErto frEirE pimEnta | juliana auGusta mEdEiros dE barros

cumpridas ou não, uma vez que, se uma regra é válida, há de ser feito exatamente o

que ela exige, nem mais, nem menos.

O conflito entre regras gera uma antinomia jurídica que será solucionada atra-

vés de critérios fornecidos pelo próprio sistema, quais sejam o hierárquico, o crono-

lógico e o da especialidade, de forma a aplicar somente uma das regras, excluindo-se

a outra (ALEXY apud GUERRA, 2003, p. 85).

Os princípios, por sua vez, são normas dotadas de uma estrutura aberta, ou

seja, mandados de otimização que ordenam que se realize algo na maior medida

possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes, limitadas pelos

princípios opostos e, assim, exigem a ponderação dos pesos relativos dos princípios

em colisão, segundo as circunstâncias do caso concreto.

Alexy, citado por Galuppo (1998, p. 134-142), explica que a colisão entre prin-

cípios só pode ser observada no caso concreto; a solução deverá ser buscada através

da harmonização dos princípios em tela, ambos mantendo-se igualmente válidos,

mesmo que um venha a ceder diante do outro. Assim, tanto os princípios que con-

sagram direitos como os que protegem bens jurídicos da coletividade podem ser

ponderados.

Barcellos (2006, p. 55) afirma que, em função do princípio da unidade da

Constituição, o qual determina a mesma hierarquia das disposições constitucionais

e da sua interpretação harmônica, não é possível a escolha de uma norma em detri-

mento das demais. O mesmo ocorre com normas infraconstitucionais que, refletindo

os conflitos internos da Constituição, encontram suporte lógico e axiológico em

normas constitucionais, mas parecem afrontar outras. Nesse caso, a verificação da

constitucionalidade dessas normas ordinárias não poderá ser resolvida por simples

subsunção.

No que tange à colisão entre direitos fundamentais, Alexy desenvolveu a re-

gra da proporcionalidade (regra, pois se aplica mediante subsunção da norma ao

caso concreto), a qual se subdivide nas regras da adequação, da necessidade e da

proporcionalidade em sentido estrito. A regra da adequação visa a buscar uma exata

correspondência entre meios e fins, de modo que os meios empregados sejam com-

patíveis com os fins adotados. A da necessidade impõe o emprego de um meio que,

limitando-se ao estritamente necessário para a consecução do fim buscado, resulte

na menor restrição possível a outros direitos fundamentais. E, finalmente, a propor-

cionalidade em sentido estrito impõe uma correspondência jurídica entre meios e

fins, no sentido de estabelecer as vantagens e desvantagens no emprego dos meios,

à luz de outros fins envolvidos na questão (BARCELOS, 2006, p. 55). Daí nasce a cha-

mada lei da ponderação, segundo a qual quanto maior o grau de não satisfação de

um princípio, maior deve ser a importância de se satisfazer o outro.

A estrutura da ponderação envolve três estágios: no primeiro, busca-se esta-

belecer o grau de não satisfação ou de interferência em um primeiro princípio; após,

deve-se avaliar a importância de se satisfazer o princípio concorrente; e finalmente

observa-se se a importância de se satisfazer o último princípio justifica a interferên-

cia ou não satisfação do primeiro (ALEXY, 2007, p. 296).

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116 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 113-127, 2º sem. 2008

A eficácia imediata dos direitos fundamentais individuais nas relações privadas e a ponderação de interesses

Alexy (2007, p. 297) sustenta que a busca da melhor resposta para o caso

concreto por meio dos princípios deve se dar através de procedimentos racionais,

permitindo, assim, um controle social sobre a argumentação jurídica desenvolvida

pelos magistrados. De maneira a exteriorizar essa dimensão racional em um discur-

so, criou-se a fórmula da ponderação, assim expressa: Wij=Ii/Ij, no qual Wij repre-

senta o peso concreto do princípio I, Ii a intensidade de interferência do princípio Pi

e Ij a necessidade de se satisfazer o princípio concorrente.

A fórmula sustenta que o peso concreto de um princípio é um peso relativo,

posto que o peso concreto seria o quociente entre a interferência no princípio Pi

e a importância concreta do princípio concorrente Pj. Dessa forma, atribuindo-se

números para Pi e Pj, como, por exemplo, 2 e 4, de acordo com a intensidade da

infringência do princípio Pi e a satisfação do princípio Pj, pode-se concluir que a

precedência do princípio Pi será expressa por um peso concreto maior que 1 (4/2).

Já se a precedência for do princípio Pj, o peso concreto será menor que 1 (2/4). A

fórmula da ponderação, portanto, é uma estrutura racional para se estabelecer a

correção de um juízo jurídico em um discurso, ou seja, é uma forma de argumento

que irá definir a estrutura dos atos da fala de um discurso proferido pelo aplicador

da norma (BARCELOS, 2007, p. 299).

Segundo Sarmento (2006, p. 65), a Constituição Brasileira de 1988 está alicer-

çada sobre princípios e regras jurídicas e foi desenvolvida sobre bases pluralistas,

contendo princípios e diretrizes normativas não convergentes. Dessa forma, a me-

lhor maneira para solucionar os conflitos entre os princípios seria através da ponde-

ração de interesses pois, em certas situações, o intérprete será levado à conclusão

de que dois princípios são igualmente adequados para incidir sobre determinado

caso e terá de buscar uma solução que, à luz das circunstâncias concretas, sacrifique

o mínimo possível de cada um dos interesses salvaguardados pelos princípios em

confronto.

Ao lado do estudo da ponderação de interesses, é importante destacar a im-

portância da constitucionalização dos diversos ramos do Direito, sobretudo do Di-

reito Privado, e das dimensões subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais.

O fenômeno da constitucionalização do Direito Privado

A Carta Magna Brasileira de 1988 trouxe novas diretrizes sociais para o Brasil,

estabelecendo novos parâmetros para a interpretação e aplicação do direito positivo

pátrio. A Constituição vigente tem como diretriz a mescla de valores advindos do

Estado Social de Direito com valores oriundos da Revolução Francesa, que inspirou

as Constituições de matriz liberal. Isso demonstra a complexidade dos valores conti-

dos na Constituição de 1988 e a necessidade da utilização da técnica da ponderação

dos princípios constitucionais para a solução de conflitos normativos.

O exemplo recente de maior visibilidade do procedimento de constituciona-

lização de um ramo jurídico está no Direito Privado, sobretudo com a vigência do

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josé robErto frEirE pimEnta | juliana auGusta mEdEiros dE barros

Código Civil de 2002 (TEPEDINO apud TARTUCE; OPROMOLLA, 2007). Esse diploma e

a Constituição passaram a interagir de uma forma totalmente nova, criando espaço

para a consolidação do Direito Civil Constitucional.

Na fase do Estado Liberal, é marcante a dicotomia entre Direito Público e Di-

reito Privado. No primeiro têm-se como finalidade a ordem e a segurança geral e

somente se pode fazer aquilo que está autorizado pela norma, enquanto o segundo

rege-se pela igualdade e pela liberdade, podendo-se fazer tudo aquilo que não está

proibido pela norma. Entretanto, essa dicotomia não é absoluta e intransponível e

com o tempo tornou-se pequena a distância entre a Constituição e o novo Código

Civil, em virtude da busca pelo “Estado Social”, diferentemente da ideologia em que

foi construído o Código de 1916, fruto do Código Napoleônico e das codificações do

século XIX, sendo extremamente forte a relação entre indivíduo e propriedade.

O Direito Civil Constitucional não é, ainda, um novo ramo do Direito, mas uma

nova forma de interpretação, de hermenêutica da Lei Civil em relação à Lei Maior, ou

seja, as regras específicas do Código Civil voltadas para a atuação dos particulares

devem ser interpretadas em harmonia com as regras gerais da Constituição, que re-

gem a atuação do Estado e a sociedade.

Para a professora Hironaka (2007), trata-se de um momento de incrível trans-

formação do pensamento jurídico e de crise das instituições, que tem operado no

sentido de se buscar modificar o significado constitucional outrora atribuído aos

códigos civis modernos e carrear para o âmbito da Constituição os princípios funda-

mentais do Direito Privado.

Para entender a influência constitucional nos diversos ramos jurídicos, sobre-

tudo no âmbito do Direito Privado, faz-se necessário o estudo das dimensões dos

direitos fundamentais, tema que trará implicações substanciais na eficácia direta

desses direitos nas relações entre particulares.

Dimensão objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais

O movimento de construção de Constituições esculpidas em valores que irão

orientar a ordem jurídica estatal e a sociedade determina que as escolhas valorati-

vas imprimidas nos direitos fundamentais devem orientar a ação, não somente do

Estado, mas também de toda a sociedade. A partir desse processo, reconhece-se aos

direitos fundamentais uma dupla dimensão, ou seja, ao mesmo tempo em que asse-

guram posições subjetivas dos indivíduos em face do Estado, veiculam uma ordem

objetiva de valores, que deverá comandar a vida social e as ações dos poderes públi-

cos (PEREIRA, 2006, p. 149-151).

A dimensão subjetiva dos direitos fundamentais corresponderia à sua com-

preensão como fonte de posições subjetivas de vantagens, enquanto faculdades e

poderes atribuídos aos seus titulares. Já a dimensão objetiva consiste nos efeitos

jurídicos resultantes do reconhecimento de tais direitos como valores fundamentais

e constitutivos da ordem jurídica.

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118 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 113-127, 2º sem. 2008

A eficácia imediata dos direitos fundamentais individuais nas relações privadas e a ponderação de interesses

As normas consagradoras de direitos fundamentais afirmam valores, os quais

incidem sobre a totalidade do ordenamento jurídico e servem para iluminar as ta-

refas dos órgãos judiciários, legislativos e executivos, apresentando uma eficácia

irradiante sobre toda a ordem jurídica (MARINONI, 2007).

Segundo Barroso, a eficácia irradiante desempenha os papéis de princípio her-

menêutico e de mecanismo de controle de constitucionalidade, através da interpre-

tação conforme a Constituição (BARROSO apud SARMENTO, 2006, p. 149-151). No

primeiro papel, ela impõe ao operador do direito que, diante da ambiguidade de de-

terminada norma jurídica, opte pela exegese que torne essa norma compatível com

a Constituição, mesmo que não seja a exegese mais óbvia do preceito. No segundo,

permite ao Supremo Tribunal Federal que elimine, por contrariedade à Lei Maior,

possibilidades interpretativas de determinada norma, sem redução do seu texto.

Cada juiz, no que tange ao controle difuso de constitucionalidade, também tem a

obrigação de interpretar as normas jurídicas de modo mais consentâneo com a Lei

Fundamental.

A eficácia irradiante dos direitos fundamentais manifesta-se, sobretudo, em

relação à interpretação e à aplicação das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos

indeterminados presentes na legislação infraconstitucional. Entretanto, o reconhe-

cimento da função hermenêutica dos direitos fundamentais não exclui, de modo

algum, a função normativa desses direitos e a possibilidade de incidência direta

dessas normas sobre relações jurídicas concretas, de caráter público ou privado.

A eficácia dos direitos fundamentais: correntes doutrinárias no Direito Comparado

De acordo com o disposto no art. 5º, § 1º, da Constituição Brasileira de 1988

(BRASIL, 2007, p. 30), os direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imedia-

ta, vinculando os poderes públicos independentemente do reconhecimento expres-

so por lei infraconstitucional, estando protegidos não apenas diante do legislado

ordinário, mas também da ação do poder constituinte reformador, por integrarem o

rol das denominadas cláusulas pétreas, explicitadas no art. 60, § 4º, inc. IV do diplo-

ma constitucional (BRASIL, 2007, p. 66).

Antes de analisar as correntes doutrinárias e jurisprudenciais existentes no

Direito Comparado acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, faz-se

necessário apresentar o contexto histórico em que se desenvolveu a teoria da eficá-

cia imediata dos direitos fundamentais.

No século XIX, o Estado Liberal de Direito considerava os direitos fundamen-

tais como direitos públicos subjetivos, o que veio a se tornar um dos principais obs-

táculos à ideia de aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas. Tal no-

ção harmonizava-se perfeitamente com o modelo liberal de estrita separação entre

direito público e direito privado e da sua ideia de se prestigiar a lei em detrimento

da Constituição.

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josé robErto frEirE pimEnta | juliana auGusta mEdEiros dE barros

A emergência do Estado Social de Direito e a ênfase na concretização dos di-

reitos humanos, ocorridas no período pós-guerra, trouxeram um contexto favorável

para a crítica à noção de direitos fundamentais como direitos subjetivos públicos

postos em lei, tendo a Alemanha desenvolvido, de maneira ímpar, o estudo do tema

da eficácia de direitos fundamentais, vindo a se tornar ponto de referência para toda

a doutrina europeia. Dessa forma, romperam-se os obstáculos que inviabilizavam a

aplicação direta dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas, entre

eles a estanque separação entre o Estado e a sociedade civil; a noção de igualdade

formal, evoluindo para o conceito de igualdade material e a neutralidade do Estado

em face da dinâmica social (PEREIRA, 2006, p. 132-134).

De maneira didática, pode-se definir a eficácia vertical dos direitos funda-

mentais como aquela que vincula o legislador, o juiz e os entes estatais em geral.

A eficácia horizontal diz respeito à incidência das normas jusfundamentais às rela-

ções privadas, havendo discussão se tal eficácia seria mediata ou imediata, isto é,

se as normas de direito fundamental atingiriam os particulares, seja nos casos em

que uma das partes ostenta poder econômico ou social, seja nas relações jurídicas

entre iguais.

A primeira vertente é conhecida como doutrina da negação da eficácia hori-

zontal dos direitos fundamentais ou doutrina do state action, e predomina no Direito

Constitucional norte-americano. Tal teoria defende que os direitos fundamentais

apenas impõem limitações para os poderes públicos, não atribuindo aos particu-

lares direitos frente a outros particulares. Ademais, o Congresso Nacional não tem

poderes para editar normas protegendo os direitos fundamentais nas relações pri-

vadas, pois a competência para disciplinar essas relações é exclusiva do legislador

estadual.

A public function theory veio para amenizar um pouco essa tendência, limi-

tando a atuação de particulares quando esses agirem no exercício de atividades de

natureza tipicamente estatal, embora a jurisprudência não apresente critérios segu-

ros para a sua aplicação.

A teoria da eficácia indireta ou mediata dos direitos fundamentais na esfera

privada, hoje adotada pela maioria da doutrina alemã e pela sua Corte Constitucio-

nal, nega a possibilidade de aplicação direta de tais direitos nas relações privadas

(SARMENTO, 2006, p. 197-198).

Entendem os partidários dessa vertente que a Constituição contém normas

objetivas, cujo efeito de irradiação leva à impregnação das leis infraconstitucionais

pelos valores consubstanciados nos direitos fundamentais. Assim, a força jurídica

dos preceitos constitucionais se afirma, perante os particulares, por meio de princí-

pios e regras de direito privado. Os princípios constitucionais serviriam para ajudar

a interpretação das cláusulas gerais e conceitos indeterminados suscetíveis de con-

cretização, desde que sempre dentro das linhas do direito privado (PEREIRA, 2006,

p. 200).

Conforme Hesse, citado por Sarmento (2006, p. 199), competiria ao Legislativo

proceder a uma ponderação entre interesses constitucionais em conflito, no qual lhe

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120 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 113-127, 2º sem. 2008

A eficácia imediata dos direitos fundamentais individuais nas relações privadas e a ponderação de interesses

é concedida certa liberdade para acomodar os valores contrastantes, em consonân-

cia com a consciência social de cada época. Ao Poder Judiciário sobraria o papel de

preencher as cláusulas indeterminadas criadas pelo legislador, levando em conside-

ração os direitos fundamentais, bem como o de rejeitar, por inconstitucionalidade,

a aplicação das normas privadas incompatíveis com tais direitos.

A teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais, defendida ini-

cialmente na Alemanha por Hans Carl Nipperdey nos anos 1950, não logrou grande

aceitação nesse país, mas é majoritária na Espanha e em Portugal.

Quadra-Salcedo, citado por Sarmento, explica:

A obrigação de respeitar os direitos fundamentais pelos cidadãos surge e ema-

na diretamente da Constituição e não somente das normas infraconstitucionais

que decorrem desta, não sendo, portanto, um mero reflexo do ordenamento

que pode sofrer alterações, modificações e supressões que o legislador decida,

posto que há um núcleo essencial que se deduz diretamente da Constituição e

que se impõe a todos os cidadãos. (SARMENTO, 2006, p. 206, tradução nossa)2

Bilbao Ubillo afirma que existem direitos na Constituição espanhola cuja pró-

pria estrutura pressupõe a eficácia horizontal imediata, como, por exemplo, os direi-

tos à honra, à intimidade, à imagem e à liberdade de religião. Outros, pela natureza,

vinculam apenas o Estado (UBILLOS apud SARMENTO, 2006, p. 206).

Sarmento, citando Rafael Naranjo de la Cruz, defende que:

Os direitos fundamentais, em sua dupla vertente subjetiva e objetiva, consti-

tuem o fundamento de todo o ordenamento jurídico e são aplicáveis em todos

os âmbitos de atuação humana de maneira imediata, sem intermediação do

legislador. Por isso, as normas de direitos fundamentais contidas na Consti-

tuição geram, conforme a sua natureza e teor literal, direitos subjetivos dos

cidadãos oponíveis tanto em relação aos poderes públicos como no que tange

aos particulares. (SARMENTO, 2006, p. 206, tradução nossa)3

No Direito português, a extensão dos direitos fundamentais às relações pri-

vadas foi prevista direta e genericamente pelo próprio constituinte na Lei Maior

Lusitana, inclinando-se a corrente dominante, composta por autores de renome

como Canotilho (1992) e Prata (1982), ao acolhimento da vinculação direta dos

particulares aos direitos fundamentais.

2 La obligación de respectar los derechos fundamentales por los ciudadanos surge y emana directamente de la Constitución y no sólo de las normas de desarrollo de ésta, no es por lo tanto un mero reflejo del ordenamiento que puede sufrir las alteraciones, modificaciones e supresiones que el legislador decida, sino que hay un núcleo esencial que se deduce directamente de la Constitución y que se impone a todos los ciudadanos.

3 Los derechos fundamentales, en su doble vertiente subjetiva e objetiva, constituyen el fundamento del entero ordenamiento jurídico y son aplicables en todos los ámbitos de actuación humana de manera inmediata, sin intermediación del legislador. Por ello, las normas de derechos fundamentales contenidas en la Constitución generan, conforme a su naturaleza y tenor literal, derechos subjetivos de los ciudadanos oponibles tanto a los poderes públicos como a los particulares.

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josé robErto frEirE pimEnta | juliana auGusta mEdEiros dE barros

Os adeptos dessa teoria não negam a existência de especificidades na incidên-

cia dos direitos fundamentais, nem a necessidade de ponderar, em contraposição, a

relevância do direito fundamental da autonomia privada dos particulares envolvidos

no caso concreto.

Segundo Canotilho, citado por Sarmento (2006, p. 210), é necessária a criação

de soluções diferenciadas, para harmonizar a tutela de tais direitos com a proteção

da autonomia privada, pois, embora a vinculação direta dos direitos fundamentais

atinja a todos os particulares e não apenas aos poderes sociais, a desigualdade das

partes em uma relação jurídica privada é um dado que não pode ser desconsiderado

quando se observa a intensidade da eficácia horizontal de tais direitos.

De acordo com José João Nunes Abrantes (1990, p. 94-113), a eficácia direta

dos direitos fundamentais visa a assegurar o respeito ao núcleo desses direitos. En-

tretanto, não importa na submissão dos particulares ao mesmo regime de sujeição

aos direitos fundamentais válido para os poderes públicos. A proteção dispensada

à autonomia privada e a incidência das normas jusfundamentais nas relações priva-

das impõem o equacionamento do caso através de uma ponderação de interesses,

na qual um dos fatores que deverá ser necessariamente considerado é a maior ou

menor desigualdade entre as partes. Quanto maior o desequilíbrio, mais intensa será

a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.

Existe ainda uma quarta teoria, denominada de teoria dos deveres de prote-

ção, surgida na doutrina alemã e representada por autores como Claus-Wilhelm Ca-

naris (2003) e Klaus Stern (1987), que sustenta não estarem os sujeitos de Direito

Privado vinculados diretamente aos direitos fundamentais, como estão os poderes

públicos. Contudo, o Estado, tanto ao editar normas como ao prestar a jurisdição,

está obrigado não apenas a abster-se de violar os direitos fundamentais, como

também a protegê-los diante das lesões e ameaças provenientes dos particulares

(SARMENTO, 2006, p. 216-219).

Ocorre que, para Marinoni (2007), essa eficácia horizontal direta sobre os

particulares não exclui a eficácia horizontal mediata ou indireta, que se dá justa-

mente através da lei e da decisão judicial.

Análise da doutrina brasileira da eficácia imediata dos direitos fundamentais individuais nas relações privadas

No Brasil, a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais

nas relações privadas vem sendo desenvolvida por autores como Daniel Sarmento

(2006), Ingo Wolfgang Sarlet (2007) e Luís Roberto Barroso (2003).

No entanto, antes de analisar os argumentos dos autores supramencionados, é

importante classificar os direitos fundamentais, posto que o foco do presente debate

são os direitos de defesa, ou direitos negativos, e não os direitos sociais que deman-

dam o estudo de parâmetros como a “reserva do possível” e o “mínimo razoável”.

Dessa forma, cumpre desde logo advertir que a complexa questão da aplicabilidade

imediata dos direitos sociais não será objeto da análise a seguir.

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A eficácia imediata dos direitos fundamentais individuais nas relações privadas e a ponderação de interesses

Adotando-se a classificação dos direitos fundamentais em virtude da sua fun-

ção, Sarlet (2007, p. 258-260) divide os direitos fundamentais em duas categorias:

direitos prestacionais e direitos de defesa. Os direitos às prestações subdividem-se

em direitos à proteção, direitos à participação na organização e no procedimento e

direitos às prestações em sentido estrito. É necessário lembrar que a aplicabilida-

de imediata das normas jusfundamentais exige um tratamento específico e suscita

questões complexas e de difícil solução no que tange aos direitos fundamentais

prestacionais, encontrando limites na “reserva do possível”.

Os direitos de defesa ou direitos negativos, englobados na esfera dos direitos

individuais, consistem na salvaguarda de uma esfera individual de liberdade inviolá-

vel, inicialmente pelo Estado, para que esse se abstenha de promover agressões aos

bens jurídicos fundamentais. De acordo com a teoria da eficácia direta dos direitos

fundamentais individuais, também os particulares não podem praticar ações que

possam lesar esses bens.

A aplicabilidade direta e imediata dos direitos de defesa é clara para Sarmento

(2006, p. 238) e Sarlet (2007, p. 258-260), pois, segundo os autores, não há no texto

constitucional brasileiro nada que sugira a ideia de vinculação direta aos direitos

fundamentais apenas dos poderes públicos. Ao contrário, a linguagem adotada pelo

constituinte na estatuição da maioria das liberdades previstas no art. 5º do texto

magno transmite a ideia de uma vinculação passiva universal.

Em segundo lugar, para Sarlet (2007, p. 258-260) e Sarmento (2006, p. 238),

a sociedade brasileira é muito mais injusta e assimétrica do que as da Alemanha,

dos Estados Unidos ou qualquer país desenvolvido, justificando, em nosso país, um

reforço na tutela dos direitos humanos no campo privado, onde reinam a opressão

e a violência.

A Constituição Federal de 1988 dispõe que a República Federativa do Brasil

tem como um dos seus fundamentos a busca da redução das desigualdades sociais

e a construção de uma sociedade justa e solidária. É uma Constituição progressista,

que visa a promover a liberdade, a justiça e a emancipação social dos excluídos.

Nesse sentido, só existirá efetivamente autonomia privada quando o agente tiver

mínimas condições materiais de liberdade, o que não ocorre na maioria dos casos,

em que a manifesta desigualdade entre as partes obsta, de fato, o exercício dessa

autonomia.

Em terceiro lugar, o fato de os juízes aplicarem normas jusfundamentais ins-

tituídas pelo legislador infraconstitucional não significa que, quando inexistir regra

ordinária específica tratando da matéria, o juiz não possa se valer diretamente das

normas constitucionais para solucionar o caso concreto posto a seu exame.

Sendo os direitos fundamentais exteriorizações do princípio da dignidade da

pessoa humana, este, por sua vez, o centro de gravidade da ordem jurídica, é preciso

expandir sua incidência para todas as esferas da vida humana, pois, do contrário,

a concretização desse princípio estará inexoravelmente comprometida (SARMENTO,

2006, p. 244-245).

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josé robErto frEirE pimEnta | juliana auGusta mEdEiros dE barros

Os autores brasileiros supramencionados defendem a existência de especi-

ficidades na incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares,

decorrentes, sobretudo, da necessidade de ponderação entre o direito em tela e a

autonomia privada da pessoa cujo comportamento se cogita restringir.

Barroso explica que, no processo ponderativo, devem ser observados os se-

guintes fatores: igualdade ou desigualdade material entre as partes; manifesta injus-

tiça ou falta de razoabilidade de critério; preferência pelos valores existenciais em

detrimento dos meramente patrimoniais; risco para a dignidade da pessoa humana

(BARROSO apud SARMENTO, 2006, p. 249).

Assim, quanto maior for o grau de desigualdade fática entre os envolvidos,

mais intensa será a proteção ao direito fundamental em jogo e menor a tutela da

autonomia privada e vice-versa. Nessa seara, a enorme vulnerabilidade de amplos

setores da população em suas relações travadas com outros particulares mais pode-

rosos, como empregadores e fornecedores de bens e serviços, exige a proteção aos

direitos fundamentais dos hipossuficientes.

Sarmento (2006, p. 238) e Sarlet (2007, p. 152-153), não obstante, defendem

que, mesmo no caso de relações jurídicas paritárias, os direitos fundamentais vin-

culam diretamente os particulares, sob pena de proporcionar-se uma garantia in-

completa e insuficiente à dignidade da pessoa humana. Nesses casos, entretanto, a

proteção à autonomia privada, também assegurada constitucionalmente, há de ser

mais intensa no momento da ponderação dos interesses em conflito, à luz dos direi-

tos fundamentais de ambas as partes.

Finalmente, a tutela da autonomia privada, em relações em que estão em jogo

bens existenciais como, por exemplo, a relação entre um filho e seu pai, é muito

mais intensa do que a conferida às relações econômico-patrimoniais, assim como

ocorre em um contrato de compra e venda de imóvel.

Parâmetros para a eficácia imediata de direitos fundamentais individuais nas relações privadas

As relações privadas podem envolver uma enorme gama de situações em que

há possibilidade de lesões a direitos fundamentais individuais, como, por exemplo:

os conflitos entre as liberdades religiosas de residência, de associação ou direitos

personalíssimos, como integridade física, intimidade, imagem, e a autonomia pri-

vada contratual; a celebração de contratos de trabalho contendo cláusulas em que

empregados renunciem a seu direito de exercer atividade partidária ou de sindicali-

zar-se ou que obrigue o trabalhador a não ter filhos durante a vigência contratual; a

legitimidade de um clube ou escola particular recusar o ingresso de um novo aluno

ou sócio, sem explicitar a motivação ou proibir o acesso a pessoas de determinado

sexo, idade ou raça; a possibilidade de um contrato de compra e venda de imóvel ter

cláusula vedando futura venda ou locação a pessoa de determinada religião.

De acordo com Pereira (2006, p. 138-140), a peculiaridade do problema da efi-

cácia de direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas consiste em que am-

bas as partes envolvidas são titulares de direitos constitucionalmente assegurados,

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A eficácia imediata dos direitos fundamentais individuais nas relações privadas e a ponderação de interesses

formando uma complexa rede de direitos e deveres que se limitam e se condicionam

mutuamente.

Dessa forma, para possibilitar a utilização da teoria da eficácia imediata dos

direitos fundamentais individuais nas relações privadas, são necessários parâme-

tros que possibilitem ao intérprete aplicá-la com base em fundamentos sólidos.

Nesse sentido, o primeiro ponto a ser abordado diz respeito às situações em

que pessoas ou empresas privadas estão investidas de competências públicas, atra-

vés da descentralização administrativa, como concessionárias e permissionárias de

serviços públicos etc. Embora nos EUA ainda haja certa controvérsia em tais cir-

cunstâncias, de modo geral é pacífico o entendimento da vinculação dessas pessoas

privadas aos direitos fundamentais de seus usuários.

Em segundo lugar, é importante observar o fenômeno, propiciado pelo libe-

ralismo, da extensão do poder aos entes privados, antes restrito ao Estado. Essa

mudança se deu através das crescentes formas de organizações privadas que assu-

miram pouco a pouco papéis importantes na sociedade. O poder passa a não ser atri-

buto exclusivo do Estado, manifestando-se também nas relações entre particulares e

gerando, como consequência, a desigualdade das partes, com o predomínio de fato

de uma das partes sobre a outra.

O fenômeno da exacerbação do poder privado pode ser facilmente constata-

do nas relações de consumo, seja através da pressão de empresas de assistência à

saúde e de instituições de ensino; na influência das organizações religiosas sobre os

seus discípulos e dos partidos políticos sobre os seus associados; nas relações de

emprego, por meio do poder diretivo do empregador, que dirige e fiscaliza a presta-

ção de serviços dos empregados no exercício laboral, entre outras situações.

Em tais casos, é necessária a incidência direta e imediata dos direitos funda-

mentais nas relações individuais, de modo a equilibrar as relações jurídicas fatica-

mente assimétricas, prevenindo lesões aos direitos da parte hipossuficiente. Além

da necessidade de compensar a desigualdade fática entre as partes, outro alicerce

para essa aplicação direta adviria da própria dimensão objetiva dos direitos fun-

damentais, posto que, a partir da irradiação de seus efeitos, surge um novo direito

subjetivo, qual seja o poder de reclamar do Estado uma atuação consistente em

resguardar direitos fundamentais contra qualquer ameaça, mesmo que perpetrada

por particulares.

A relação jurídica de emprego, por exemplo, é uma relação privada em que

existem dois sujeitos em situações desiguais: o empregador, que em geral é a parte

mais forte economicamente e, por definição, dirige a prestação pessoal dos servi-

ços dos trabalhadores, e o empregado, que necessita alienar seu poder de dispor

de sua própria força de trabalho para receber o salário como contraprestação. Não

obstante, devido à desigualdade entre as partes contratantes, a autonomia da von-

tade da parte mais fraca muitas vezes é mero pretexto para legitimar imposições

ditadas pela parte mais forte, tal como também acontece no Direito do Consumi-

dor. Assim, esses ramos jurídicos utilizam “discriminações positivas” de forma a

criar mecanismos para equilibrar a relação jurídica, tais como a presunção a favor

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josé robErto frEirE pimEnta | juliana auGusta mEdEiros dE barros

do hipossuficiente ou a inversão do ônus da prova em desfavor do empregador, por

exemplo (SARMENTO, 2006, p. 262-264).

Nesse sentido, a Carta Magna de 1988 apresenta em diversos artigos a inclina-

ção do legislador para a garantia de direitos dos hipossuficientes, tais como os em-

pregados na relação de emprego e o consumidor na relação de consumo, de forma a

propiciar o exercício da democracia nas relações privadas entre desiguais.

Embora incidam sobre as relações de emprego e de consumo normas cogen-

tes, de ordem pública, na realidade trata-se de relações jurídicas privadas em que é

ainda mais necessária a aplicação direta e imediata dos direitos individuais funda-

mentais, diante da desigualdade fática entre as partes.

Não se está aqui a se defender a aplicação absoluta e irrestrita dos direitos

fundamentais nas relações privadas, o que não ocorre nem mesmo quando se trata

da eficácia destes em face do Estado. É o que acertadamente adverte Pereira (2006,

p. 186): “O caráter relativo e limitado dos direitos fundamentais decorre da própria

noção de unidade da Constituição, e da consequente necessidade de coordenação e

harmonização dos valores constitucionalmente protegidos”.

A autonomia da vontade, na realidade, é um direito fundamental que está

no mesmo plano dos direitos à intimidade, à privacidade, à liberdade de crença e

religião, por exemplo. Portanto, diante de uma relação jurídica desigual, em que es-

tejam em aparente colisão a autonomia privada de uma das partes e outros direitos

fundamentais, deverá ser utilizado o princípio da proporcionalidade, com base na

fórmula da ponderação de interesses, para que seja possível chegar à solução do

impasse.

Assim, por exemplo, utilizando-se a fórmula de Alexy Wij=Ii/Ij, no qual Wij

representa o peso concreto do direito à intimidade, Ii a intensidade de interferência

desse direito e Ij a necessidade de se satisfazer o princípio da autonomia privada,

poder-se-á, em um caso concreto, chegar à conclusão de que o direito à intimidade

deverá ou não prevalecer naquela situação específica.

O terceiro ponto a ser enfocado diz respeito à escolha dos critérios para inci-

dência dos direitos fundamentais nas relações privadas. Devem ser utilizados cri-

térios de gradação e não de exclusão de possibilidades, posto que, ainda que em

relações privadas onde os entes sejam iguais em termos de poder, a presença ou

não de determinados elementos que conferem maior ou menor peso ao princípio da

autonomia poderá implicar ou não a eficácia direta e imediata de direitos fundamen-

tais. A liberdade de um indivíduo em uma relação jurídica até determinado ponto

(limite que só será possível vislumbrar na análise do caso concreto) não poderá ser

restringida pelos direitos fundamentais de outros indivíduos.

O último ponto relevante que deverá servir de parâmetro para a aplicação

dos direitos fundamentais individuais é a maior ou menor proximidade da esfera

pública da relação jurídica entre os particulares. Quanto menor essa distância,

maior a possibilidade de um direito fundamental vir a prevalecer sobre a autono-

mia privada. Assim, por exemplo, em uma relação contratual entre escola e alunos,

essa autonomia deverá ser preservada em maior grau do que em uma relação entre

marido e esposa.

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126 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 113-127, 2º sem. 2008

A eficácia imediata dos direitos fundamentais individuais nas relações privadas e a ponderação de interesses

Considerações finais

A aplicação imediata dos direitos fundamentais individuais nas relações pri-

vadas, sobretudo as assimétricas, faticamente desiguais, defendida no Brasil por au-

tores como Sarlet, Sarmento e Pereira, é tema extremamente atual e instigante, que

não se encontra pacificado na doutrina e na jurisprudência brasileiras, ensejando

inúmeras controvérsias.

Sem dúvida, o sujeito hipossuficiente de uma relação privada possui direitos

fundamentais que devem ser preservados em maior ou menor grau, em observância

ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que pode ser de fato

limitado ou ameaçado pelo maior poder e pelo abuso do exercício da autonomia

privada da outra parte.

Ademais, nos casos em que os particulares, sejam indivíduos ou empresas

privadas ou estatais, assumem funções do Estado ou recebem subsídios dos pode-

res públicos, os direitos fundamentais aplicar-se-ão diretamente na relação jurídica

travada com outros particulares. Finalmente, quanto mais próxima estiver a relação

privada de uma relação jurídica de Direito Público, mais necessária se torna a inci-

dência direta dessas normas jusfundamentais.

Em um momento histórico em que a constitucionalização de todo o Direito é

um fenômeno que torna imprescindível que o Direito Privado e, por consequência,

todas as relações jurídicas privadas mostrem-se coerentes com os valores consti-

tucionais, torna-se essencial a adequada compreensão e o domínio da técnica da

ponderação de interesses como mecanismo de solução dos cada vez mais numero-

sos casos de conflito entre princípios constitucionais, que decorrem exatamente da

aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais às relações privadas.

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Umaperspectivahistóricadoconceito depropriedade(A historical perspective of the concept of property)

júlio aGuiar dE olivEira* EdGar Gastón jaCobs florEs filho**

R E S U M OOpresentetrabalhopropõeumainvestigaçãodapropriedade,optandoportomar como ponto de partida, não as definições modernas herdadas dosséculosXVIIeXVIIIecodificadasnosséculosXIXeXX,masasteoriaspré-modernasdeapropriaçãodosbenspelohomem,queserviramdebaseparaessasdefinições.Nessasteoriaspré-modernassãoencontradasasconcepçõesde propriedade em que a função social aparece como fundamento e nãocomoummeroanexoartificialerestritivodapropriedadeprivada.Oobjetivodestetrabalhoéestabelecerumafundamentaçãoconceitualquepossibiliteadefesadatesedequeapropriedade,comodireitodeexcluir,defendidapelosautoresmodernosé,nãoasedimentaçãofinaldeumaevoluçãodaideiadepropriedade,masumainvençãoprópriadamodernidade.

P A L A V R A S - C H A V EHistóriadapropriedade;FilosofiadoDireito;Direitoeeconomia;Sociologiadapropriedade;Autonomiaprivada.

A B S T R A C TThis paper proposes an investigation of property. In that sense, it takesas starting point not modern definitions inherited from the 17th and 18th centuriesandcodifiedinthe19thand20thcenturies,butpre-moderntheoriesofownershipofgoodsbyman that servedas thebasis for thedefinitions.Thosepre-moderntheoriescontainconceptsofownershipinwhichthesocialfunctionappearsasafoundation,notmerelyasanartificialannexrestrainingprivateproperty.Thepurposeofthisstudyistoestablishaconceptualbasisthatallowsthedefenseof the thesis thatpropertyas theright toexclude,advocatedbymodernauthors,isnottheultimatesedimentationofanevolutionoftheideaofownership,butaninventioncharacteristicofmodernity.

* Professor de Introdução ao Estudo do Direito do curso de graduação em Direito da Ufop, professor de Filosofia do Direito nos cursos de graduação e pós-graduação stricto sensu da PUC Minas, mestre e doutor em Filosofia do Direito pela UFMG.

** Professor de Direito Privado nos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu da Ufop e PUC Minas, mestre em Direito Econômico pela UFMG, doutor em Direito Privado pela PUC Minas.

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130 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 129-140, 2º sem. 2008

Uma perspectiva histórica do conceito de propriedade

K E y w O R D SHistoryofproperty;PhilosophyofLaw;Lawandeconomics;Sociologyofproperty;Privateautonomy.

A propriedade privada é uma das instituições mais importantes do direito.

Na atualidade, o conceito de função social vem sendo agregado ao de propriedade,

forjado na Idade Moderna. No entanto, essa associação entre propriedade e função

social tem sido feita sem uma correspondente preocupação com a análise das ori-

gens do conceito de propriedade e de suas contradições. Ou melhor, essa associação

vem sendo feita a partir de uma compreensão incorreta da história da propriedade.

Uma compreensão que sufoca, na simplicidade enganosa de uma pretensa evolução,

a diversidade e a riqueza das diferentes formas de propriedade.

O presente estudo propõe uma discussão da história da propriedade, que

servirá de base para uma redefinição do conceito de propriedade, orientado pelo

conceito de função social, a ser desenvolvido num próximo trabalho. Para tanto,

opta por tomar como ponto de partida, não as modernas definições de propriedade

herdadas dos séculos XVII e XVIII e codificadas nos séculos XIX e XX, mas as teorias

pré-modernas de apropriação dos bens pelo homem. Nelas, a função social aparece

como fundamento da propriedade, não como um seu anexo artificial e restritivo.

Hoje, muitos entendem a função social da propriedade como algo externo e

incompatível com os direitos do proprietário. O que é reflexo de uma visão empo-

brecida da propriedade. Nesse sentido, um dos principais objetivos deste trabalho

é propor uma inversão de rota e defender a tese de que, na verdade, a propriedade

exclusivíssima pela qual lutaram os modernos, e pela qual ainda lutam, é, não a

sedimentação final de uma “evolução” da ideia de propriedade, mas uma invenção

própria da modernidade. Uma invenção que compartilha com a modernidade de seu

esgotamento.

O surgimento do direito de propriedade privadaO rompimento com a base romanística e as propriedades feudais

Muitos autores atribuem ao Direito Romano (COULANGES, 2002) a origem do

conceito de propriedade individual tal como existe em várias legislações atuais.

O desejo de ver a propriedade fundada no absoluto é tal que, segundo entendem,

deveria haver um direito de usar, fruir e dispor de um bem, da forma como se vê

no Código Civil Brasileiro, desde o período que precede a fundação de Roma.

Mas, na realidade, o conceito de propriedade individual que hoje vigora,

longe de ser uma evolução da propriedade romana, é resultado do pensamento

individualista do século XVII, que se consagrou nas codificações de direito privado

do século XX. Isso é especialmente verificável em relação ao direito de propriedade

sobre imóveis. Com foco na história da propriedade imobiliária, é possível funda-

mentar essa tese, explicitando a ruptura no conceito de propriedade estabelecida

pela modernidade.

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Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. , p. 129-140, 2º sem. 2008 131

júlio aGuiar dE olivEira | EdGar Gastón jaCobs florEs filho

No Direito Romano, a noção de propriedade individual dos imóveis limitava-se

a algumas situações específicas – nas quais se apresentava possível a propriedade

quiritária – e, dentre os poderes do titular, constava o direito de abusar de suas pos-

ses (jus abutendi). Nesse contexto, não era tratado com clareza, nem muito menos

com ênfase, o direito de dispor, faculdade, por outro lado, nitidamente destacada

na Idade Moderna.

Enquanto o ager publicus foi o principal modelo jurídico do Império Romano,

a propriedade individual não passava de uma exceção. Normalmente, abrangia ape-

nas as pequenas extensões de terra pertencentes ao chefe da família e cultivadas,

principalmente, para fins de subsistência. A esse respeito, Richard Pipes explica:

Na Roma antiga, apenas as terras localizadas na Península Itálica, a chamada

ager Romanus, poderiam ser consideradas propriedade absoluta (conhecida

como posse quiritária), permitidas apenas aos cidadãos romanos. Ela não era

taxada. A terra que Roma conquistava tornava-se ager publicus, e como tal era

sujeita à taxação (uma forma de tributo): era tanto arrendada como colonizada,

porém, sendo propriedade do Estado, não podia ser possuída na íntegra. (PIPES,

2001, p. 132)

Na Roma antiga, o pouco que existia de propriedade privada tinha fundamen-

to nas leis naturais, com base no direito do primeiro ocupante. Paolo Grossi, numa

reflexão sobre as ideias de Henry Maine, afirma:

A ocupação permaneceu uma das criações mais capciosas da capacidade in-

ventiva dos Romanos em virtude de justificar a apropriação de bens por um

indivíduo através de um apelo à natureza. Expôs a fundação para a noção de

“meu” como uma recompensa legítima para a atividade do indivíduo que gas-

tou mais força bruta, energia, volição, ou zelo que outros para isolar uma coisa

da confusão indistinta de caos primitivo. A correspondência deste instrumento

jurídico com a rerum natura parecia evidente, e a propriedade adquirida pare-

cia se revestir daquele mínimo ético próprio para toda instituição natural vali-

dar uma decisão previamente feita e obter os consensos de outros membros da

comunidade, necessários para efetuar a exclusão prática de todos os outros do

exercício de poderes sobre a coisa em questão. Em outras palavras, a proprieda-

de individual recebeu sua própria legitimidade em relação às leis de natureza.

(GROSSI, 1981, p. 37, tradução dos autores)1

1 Occupancy remained one of the more specious creations of the inventive capacity of the Romans for justifying the appropriation of goods by an individual through an appeal to nature. It laid the foundation for the notion of’’ mine’’ as a rightful reward for the activity of an individual who had spent more brute force, energy, volition, or zeal than others in order to isolate a thing from the undistinguished jumble of primitive chaos. The correspondence of this juridical instrument with rerum natura seemed evident, and the property acquired seemed to carry with it that ethical minimum proper to every natural institution to validate a previously made decision and to obtain the consensus of other members of the community, needed in order to effect the practical exclusion of all others from the exercise of powers over the thing in question. In other words, individual property had its own legitimacy in relation to the very laws of nature.

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132 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 129-140, 2º sem. 2008

Uma perspectiva histórica do conceito de propriedade

Durante a Idade Média, a condição de proprietário de terras ganhou novos

contornos. A concessão de várias formas de direitos sobre terras, pelos reis e no-

bres, com a finalidade de fomentar sua exploração (à semelhança do ager publicus

dos romanos), deu às “propriedades” na Idade Média uma feição própria, distinta – é

importante ressaltar – tanto da concepção romana como da simplificada concepção

moderna de propriedade privada.

Nesse período, as propriedades eram distribuídas normalmente com a finali-

dade de ocupar e utilizar a terra. Exemplos disso são, já no século XVI, no Brasil, as

capitanias hereditárias e as sesmarias, que tiveram importante papel na colonização

do país pela Coroa Portuguesa.

Essa forma de agir deixou o direito real produzido naquele período marcado

pela divisão, pela hierarquia e pela fusão da soberania com a propriedade (ARRUDA

ALVIM, 1987). Essas características, somadas a uma indiferença em relação ao jurí-

dico (VARELA, 2002, p. 737), favoreceram a imobilização patrimonial, consagrada

através das propriedades herdadas apenas pelo primogênito (imobilização do patri-

mônio familiar) e das restrições à alienação de imóveis (imobilização do patrimônio

da Igreja e dos Estados, por exemplo). Essa imobilização patrimonial, no momento

em que passa a ser entendida como um grave obstáculo aos interesses da burgue-

sia, desempenha um papel importante na mudança que estava por vir. Como afirma

Laura Beck Varela:

Tal imobilização patrimonial, um dos muitos signos da hierarquia social feudal,

será um dos alvos do movimento revolucionário burguês, cujo paradigma é

aquele ocorrido na França. No seio desse processo revolucionário, tanto nos an-

tecedentes filosóficos que lhe dão sustento quanto no aparato técnico-jurídico

que cristaliza as transformações da época, encontramos as bases para uma pro-

funda revolução no regime jurídico da propriedade privada. Instaura-se verda-

deiramente uma nova “antropologia dominical”, que viria fincar fundas raízes

na mentalidade jurídica posterior. (VARELA, 2002, p. 738)

Em um novo contexto, instaurado a partir do dinamismo das classes burgue-

sas, a imobilização patrimonial é um obstáculo a ser superado. Como afirma Varela,

a superação desse obstáculo impõe a necessidade de uma verdadeira revolução no

regime jurídico da propriedade privada.

A nova antropologia dominial da Idade Moderna

De acordo com Paolo Grossi, a base da “nova antropologia dominial”, constru-

ída na modernidade, foi constituída por uma relação jurídica artificialmente inserida

no conteúdo da propriedade.

Essa relação jurídica, artificialmente incluída na propriedade, pareceria a um

observador da cultura sem preconceitos, durante o século XIX, anti-histórica, antis-

social e iníqua.

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Era uma situação que se esquivou da genuína categoria da relação [de proprie-

dade], para isto confiou em duas posições que estavam agudamente separadas

na prática: a posição positiva do dominus e a posição negativa da comunidade

geral em cima de quem o dominium parecia pairar, solitário e indiferente ao

fermento de história cotidiana. (GROSSI, 1981, p. 61, tradução dos autores)2

O direito de propriedade, que até então tinha por base uma interação entre

proprietário e comunidade, passou a dar ênfase à posição negativa da comunidade.

Foi com base nesse aspecto, ou seja, com fundamento no direito de excluir, que se

construiu a portabilidade da propriedade privada, que acrescentaria à antiga fórmu-

la romana o direito de dispor. Como destaca Grossi (1981, p. 60), não se trata de uma

evolução histórica, mas de uma ruptura, ou, em outros termos, de uma deformação

da categoria essencial de apropriação de bens. A antropologia dominial da Idade

Moderna não tem fundamento na ideia original de ocupação decorrente das “leis

naturais”, mas numa nova opção feita pela burguesia em atenção aos seus próprios

interesses.

Essa nova opção tem alicerce numa nova visão de mundo, descrita por Jeremy

Rifkin nos seguintes termos:

A última grande mudança na consciência humana ocorreu no início da Era Mo-

derna, com a ascensão da classe burguesa. Sendo um produto das novas ci-

dades que foram centros de um capitalismo incipiente, a burguesia foram os

mercadores, os donos de fábricas, comerciantes, acadêmicos e profissionais

que encabeçaram o estilo industrial de vida. Em um mundo que estava sendo

transformado de casta para classe, eles eram o meio móvel em ascensão, pren-

sados entre uma aristocracia feudal esmorecendo no alto de um proletariado

volátil e oprimido de trabalhadores, pequenos agricultores e camponeses não

privilegiados, na base. Eles eram os empreendedores e acumuladores de capi-

tal, os defensores da nacionalidade e da ampliação dos mercados, os realistas

que acreditavam que a razão humana podia desvendar os segredos da natureza

e codificar as verdades de uma realidade objetiva cognoscível. Eles eram a clas-

se que gradualmente abandonou a teologia pela ideologia e a salvação celestial

pela utopia terrestre. Eles pregaram o evangelho do materialismo e exaltaram

as virtudes da propriedade privada. (RIFKIN, 2001, p. 162)

Nessa nova visão de mundo, o indivíduo, criado à imagem do burguês, é o

sujeito de direitos por excelência. O Estado legitima-se na medida em que pode ser

pensado como decorrência de um contrato entre indivíduos, que negociam seus

direitos naturais preexistentes à própria organização política. O direito de proprie-

dade individual é, antes de tudo, um direito natural, anterior ao próprio Estado.

2 The relation involved in property appeared to an unprejudiced observer of culture during the nineteenth century as antihistorical, antisocial, and iniquitous. (...) It was a situation that eluded the very category of relation, for it relied on two positions that were sharply separated in practice: the positive position of the dominus and the negative position of the general community over whom the dominium seemed to hover, solitary and indifferent to the ferment of everyday history.

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Uma perspectiva histórica do conceito de propriedade

A fim de mostrar o sentido revolucionário dessa nova visão, convém compará-

la com a perspectiva de Tomás de Aquino.

Para Tomás de Aquino, é, não a propriedade individual, mas antes a proprie-

dade comunal dos bens que se atribui ao direito natural. Isso não significa que tudo

deva ser possuído em comum, mas que a divisão das posses não se origina do direito

natural, mas de uma convenção humana, isto é, do direito positivo, dependendo,

portanto, da organização política.

(...) a comunidade de bens se atribui ao direito natural, não que este prescreva

que tudo seja possuído em comum e nada seja tido como próprio, mas sim que

a divisão das posses não vem do direito natural, porém de convenção huma-

na, dependendo, portanto do direito positivo, (...). Assim, a propriedade não é

contra o direito natural, mas a ele se ajunta, por um trabalho da razão humana.

(Suma Teológica, IIa IIae, q. 66, a. 2)

Num extremo, portanto, situa-se a propriedade comum, fundada no direito

natural; noutro, a propriedade particular, decorrente de convenção humana e depen-

dente, para sua legitimação, de um trabalho da razão humana no contexto de uma

organização política.

Para C. B. MacPherson, essa distância foi diminuída – ou obscurecida – a partir

da obra de John Locke. Em seu Segundo tratado sobre o governo civil, Locke con-

ciliou a permissão inicial de apropriação de bens para subsistência (lei natural) com

uma situação posterior, na qual seria permitida a apropriação ilimitada dos bens que

excedessem as necessidades dos homens (individualismo possessivo). O estopim de

tal conciliação, para Locke, teria sido o surgimento do dinheiro e a possibilidade de

substituição do trabalho de subsistência pelo trabalho remunerado, que, indireta-

mente, manteria o sustento do indivíduo, anteriormente dependente da propriedade

da terra para sobreviver (MACPHERSON, 1979, p. 255-256).

Justificando a apropriação dos bens que excedam as necessidades de subsis-

tência dos homens, John Locke, destoando do que mais tarde será o entendimento

liberal, entende a propriedade não apenas como um direito natural, mas como uma

convenção humana.3 Nesse sentido, ao deixar de lado a teoria do direito do primeiro

ocupante, o filósofo inglês subverte o conceito de propriedade dos romanistas. Des-

de então, a visão individualista se sobrepõe à noção funcional de propriedade. Não

é mais a propriedade privada que tem de encontrar sua justificativa no bem comum

da comunidade, mas é a comunidade mesma que só se justifica na medida em que

se apresenta como defensora da propriedade privada.

3 MacPherson demonstra que não há contradição entre a proposição inicial de Locke, no sentido de que “todos têm o direito de apropriar a terra” e a aceitação do fato de que a propriedade privada dos bens decorre das convenções humanas e, em especial, do trabalho. Para MacPherson, Locke demonstrou que “há outra maneira pela qual o direito natural à subsistência pode ser satisfeito, um meio que pode funcionar quando não há mais terras à vontade: ou seja, estipulando-se, ou supondo-se um arranjo que garanta aos que não têm terra obterem a subsistência mediante seu trabalho. Portanto, ao dizer que os homens, depois da adoção do dinheiro, têm direito a mais terra do que sobra para os outros, Locke não está contradizendo sua afirmação original do direito natural de todos os homens aos meios de subsistência” (1979, p. 255-256).

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Dessa maneira, justificada no dinheiro e no trabalho, a propriedade moderna

não se confunde com a propriedade no Direito Romano, no qual as poucas situações

de propriedade individual se justificavam no direito natural do primeiro ocupante,

que teria se esforçado para isolar o bem da confusão indistinta de caos primitivo.

Codificação, crítica e consolidação do conceito de propriedade privada

Um século depois das obras de John Locke, ganhou força o movimento de co-

dificação do direito privado, do qual é símbolo o Código Civil Francês, de 1804.4 Esse

movimento foi um marco importante para o direito de propriedade, que nele encon-

trou a justificação e força coercitiva necessárias para, da sua perspectiva, superar de

vez a ausência de padrões do sistema descentralizado de poder na Idade Média.

Nos códigos, ficou consagrada uma definição analítica da propriedade, na

qual “são explicitados todos os elementos do domínio” (FIUZA, 2006, p. 755). Esse

conceito, afastado de uma noção funcional da propriedade, serviu para manter o

laço aparente entre o Direito Civil da modernidade e o Direito Romano. A simples

substituição do jus abutendi pelo direito de dispor “da maneira mais absoluta” não

chamou a atenção dos estudiosos, criando a falsa impressão de continuidade.

Como relata Fiuza (2006), o conceito adotado no século XIX e XX responde

apenas a uma indagação: quando é que se diz ser um indivíduo dono de uma coi-

sa? O Código não traz respostas para perguntas básicas sobre a fundamentação da

propriedade privada ou sobre os limites da acumulação de bens em detrimento da

exclusão de outras pessoas necessitadas.

No entanto, certo é que o conceito analítico passou a fazer parte dos códigos

civis, inclusive do brasileiro, e que o direito privado consolidou-se como fundamen-

to da propriedade.

Poucas décadas depois das primeiras codificações, o fundamento político da

propriedade passou a ser objeto de reiteradas críticas. A contestação mais aguda é

proveniente do socialismo científico, em especial das obras de Karl Marx e Friedrich

Engels, entre 1840 e 1890.

O pensamento socialista abandonou conceitos simples, como o de “dinheiro”

e de “leis naturais”, para apoiar-se num aprofundado estudo dos meios de produção

dos bens materiais (materialismo histórico). Desse ponto, sem negar a teoria do tra-

balho de John Locke, passou a criticar o direito, especialmente o direito à proprieda-

de privada, explicitando seu caráter de instrumento de classe. De uma perspectiva

socialista, a propriedade moderna torna possível uma visão parcial e tendenciosa da

realidade social, construída a fim de favorecer a classe dominante.

4 O Código Civil Francês consagrou no art. 544 que: “La propriété est le droit de jouer et disposer des choses de la manière la plus absolue, pourvu qu’on n’en fasse pas un usage prohibé par les lois ou par les règlements”. Como “maneira mais absoluta” de fruir e dispor das coisas, a propriedade assume um contorno jurídico diferenciado e essa nova forma de ver o instituto se entranhou na quase totalidade das legislações privatísticas que se seguiram.

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Uma perspectiva histórica do conceito de propriedade

A respeito da postura marxista quanto ao caráter classista do direito, Antonio

Manuel Hespanha esclarece:

Este carácter classista do direito revelar-se-ia em dois momentos. Por um lado,

o direito estabelece directamente o domínio de classe, ao impor normas de

conduta que favorecem directamente os dominantes e subjugam os dominados.

Num artigo de juventude, Marx estuda esta questão a propósito do roubo de

lenha dos bosques renanos. A nova classe dominante, a burguesia, reduzira à

propriedade privada as florestas, antes comuns. Ao promulgar legislação proi-

bindo e punindo a apanha de lenha nos bosques – até aí permitida, tal como

outros usos comunitários – estava a proteger a propriedade agora adquirida e a

privar as comunidades da sua posse tradicional sobre estes meios de produção.

A mesma natureza classista teria a generalidade das normas jurídicas, nomea-

damente, de direito político, de direito penal, de direito do trabalho, de direito

da propriedade, pois todas elas protegeriam juridicamente direitos dos grupos

dominantes e imporiam aos dominados a obediência correspectiva. Por outro

lado, o direito burguês funcionaria também como ideologia de cobertura. Ou

seja, criaria uma imagem falseada das relações de poder, ocultando sob a capa

da igualdade jurídica – garantida, nomeadamente, pela generalidade e abstrac-

ção da lei – as reais desigualdades sociais. (HESPANHA, 2000, p. 145)

Karl Marx não discorda da intuição liberal de que propriedade é um meio de

apropriação de bens para satisfazer as necessidades dos homens. O que difere no

pensamento marxista é o posicionamento em relação à apropriação ilimitada de ter-

ras pela burguesia, fenômeno que gerou a expulsão das grandes massas dos campos

para as cidades, onde não havia mais a dupla opção de sobrevivência mencionada

por John Locke. Ou seja, os trabalhadores, expulsos dos locais em que podiam se

sustentar pelo trabalho na terra, passaram a ter, no trabalho assalariado, a única

opção de sobrevivência.

Para Marx, a propriedade privada, portanto, não é fruto de uma opção dos

homens em geral ou em abstrato. É resultado de uma deliberada ação classista, que

favoreceu o capital em face do trabalho e, ao expulsar os trabalhadores do campo,

criou o proletariado, abrindo espaço para o sistema capitalista.

Com base nessa constatação, a crítica socialista postula o fim da propriedade

privada e aponta o comunismo como meio de emancipação dos homens em todos os

sentidos (VIAL, 2003).

A reação à crítica socialista veio, dentre outras fontes, da Igreja Católica, que

promoveu uma releitura de Tomás de Aquino na encíclica Rerum Novarum de 1891,

defendendo a propriedade privada e atacando as posições socialistas:

Os socialistas (...) instigam nos pobres o ódio contra os que possuem, e preten-

dem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os

bens de um indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua adminis-

tração deve voltar para os Municípios ou para o Estado. (...) a teoria socialista da

propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles

mesmos a que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos,

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como desnaturando as funções do Estado, e perturbando a tranquilidade pú-

blica. Fique, pois, bem assente que o princípio fundamental a estabelecer para

aqueles que querem sinceramente o bem do povo é a inviolabilidade da proprie-

dade particular. (LEãO XIII, 1991)

Na Rerum Novarum, o Papa Leão XIII, no entanto, se afasta da teoria tomista

– especialmente na medida em que não atenta para a dicotomia entre lei natural e

convenções humanas – e reconstrói o conceito de propriedade como direito natural

para os homens:

A propriedade particular e pessoal é, para o homem, de direito natural. Há,

efetivamente, sobre esse ponto de vista, uma grandíssima diferença entre o

homem e os animais destituídos de razão. (...) O que em nós se avantaja, o que

nos faz homens, nos distingue essencialmente do animal, é a razão ou a inte-

ligência, e em virtude desta prerrogativa deve reconhecer-se ao homem não só

a faculdade geral de usar das coisas exteriores, mas ainda o direito estável e

perpétuo de as possuir, tanto as que se consomem pelo uso, como as que per-

manecem depois de nos terem servido. (LEãO XIII, 1991)

Nesse ponto vale lembrar que, de acordo com Santo Tomás de Aquino, “pos-

suir em separado não se fundamenta no direito natural, mas, antes, na convenção

humana, que diz respeito ao direito positivo”, ao passo que, para Leão XIII, na Rerum

Novarum, “a propriedade particular e pessoal é, para o homem, de direito natural”.

Há, entre as duas posições, um distanciamento, cuja explicação, é possível, reside no

contexto do movimento de reação ao socialismo, presente no final do século XIX.5

Por outro lado, uma aproximação da teoria de John Locke fica evidente em

diversas passagens da Rerum Novarum. Exemplo disso é a defesa da tese de que a

propriedade, como meio de subsistência, pode ser substituída pelo dinheiro, através

do trabalho, como se lê:

Dividida em propriedades particulares, a terra não deixa de servir à utilidade

comum de todos, atendendo a que ninguém há entre os mortais que não se

alimente do produto dos campos. Quem não os tem, supre-os pelo trabalho,

de maneira que se pode afirmar, com toda a verdade, que o trabalho é o meio

universal de prover às necessidades da vida, quer ele se exerça num terreno

próprio, quer em alguma arte lucrativa cuja remuneração, apenas, sai dos pro-

dutos múltiplos da terra, com os quais ela se comuta. (LEãO XIII, 1991)

Num olhar direto, a encíclica parece, na realidade, um aperfeiçoamento da

fundamentação “ética” que o filósofo inglês quis dar à doutrina política do individu-

alismo possessivo. Desse momento em diante, a propriedade imobiliária, inclusive

dos bens que excediam as necessidades do proprietário, estava justificada não ape-

nas no dinheiro ou no trabalho, mas na lei natural. Nesse ponto, ocorre um retorno

5 No mesmo sentido Migot (2003, p. 99-101).

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Uma perspectiva histórica do conceito de propriedade

artificial – e, como afirma Grossi: anti-histórico, antissocial e iníquo – ao paradigma

romano da propriedade fundada na lei natural.

Essa postura, que alicerça os ideais liberais, continua sendo contestada (vide

UNGER, 2001) e, sob o efeito dessas contestações, o conceito analítico do direito de

propriedade dos códigos vem sendo associado a uma noção funcional, que se resu-

me na expressão “função social”.

Sedimentação do direito à propriedade privada

A alteração das justificativas éticas e políticas da propriedade, que de fato

ocorre entre os séculos XVII e XIX, é causa de uma profunda modificação na matriz

ideológica e no conteúdo do direito de propriedade. A modernidade desvincula a

propriedade do sujeito (de suas crenças ou mesmo de suas necessidades vitais) e

coloca-a no mercado, espaço em que circulam os bens apropriáveis através da troca

pelo dinheiro.

Detalhando de outra maneira essas alterações, MacPherson (1991, p. 104-9)

classifica a mudança da propriedade em quatro fases: (1) Inicialmente, propriedade

deixou de ser um termo amplo, que podia referir-se à própria pessoa e a suas fa-

culdades e capacidades (propriedade do corpo, da vida etc.), para expressar apenas

o apossamento de coisas e rendas, uma propriedade materialista; (2) num segundo

momento a propriedade passou a representar apenas o direito de excluir; ocorreu

um estreitamento do conceito, que deixou para trás a propriedade que os indivíduos

tinham dos bens de uso comum, como parques, estradas, águas etc.; (3) na terceira

etapa, um novo estreitamento, a propriedade para utilização exclusiva, direta e indi-

reta, pelo titular tornou-se uma propriedade exclusiva para usar e dispor, no sentido

de alienar, transferir; (4) a última modificação, que aparentemente coincide com o

ocaso das propriedades feudais, corresponde à redução do conceito de propriedade,

de um direito sobre rendas e coisas, para um direito exclusivo sobre coisas.

Para o autor, todas essas mudanças acontecem a partir do século XVII e decor-

rem do aumento da importância dos bens materiais para o desenvolvimento da vida

e das faculdades das pessoas. Ou seja, a propriedade de si mesmo passa a ser identi-

ficada com as propriedades dos bens que a pessoa detém. Nesse ponto, a garantia da

autonomia individual começa a se confundir com a defesa da propriedade privada.

A segunda e terceira modificações na propriedade decorrem da necessidade de

deixar os bens, como propriedade exclusiva de alguém, disponíveis para o comércio.

É nessa fase que o proprietário passa a fruir a “riqueza” que seus bens representam,

deixando de lado, muitas vezes, a possibilidade de utilização direta desses bens.

Finalmente, com o fim das grandes e complexas concessões feudais, o direito

a uma renda tornou-se o direito a uma propriedade facilmente transferível. A partir

daí a riqueza poderia surgir da possibilidade de o bem, sem entraves, ser transferido

e convertido em puro capital.

A essência mesma do homem moderno é encontrada na propriedade privada.

Antes de tudo, e acima de tudo, o homem moderno se vê como proprietário de seu

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corpo. Corpo que se confunde com força de trabalho e que, enquanto tal, tem va-

lor no mercado. Nesse sentido, o direito de propriedade na modernidade não pode

ser concebido como um desdobramento, elaborado pelo direito positivo da comu-

nidade, do direito natural da propriedade em comum. Tomás de Aquino tem de ser

deixado para trás. O direito de propriedade tem de encontrar sua fundamentação

para além da comunidade, para além das convenções humanas. Para a modernidade,

o direito de propriedade privada é, antes de ser um direito positivo, presente nos

códigos civis, um direito natural, reflexo da natureza mesma do indivíduo moderno.

Uma concepção que, tornada hegemônica, é expressão de um empobrecimento tanto

da propriedade como do homem mesmo.

Conclusão

Neste estudo, foi proposta uma abordagem histórica do direito de proprieda-

de. Uma abordagem em dissonância com a típica história da propriedade contada de

uma perspectiva moderna.

Retomar essa história, passando por Roma e pela Idade Média, é relevante na

medida em que a história do direito de propriedade está muito longe de ser uma em-

preitada orientada simplesmente pela curiosidade. A história da propriedade é parte

de um esforço maior de modelação e de fundamentação da propriedade. A história

da propriedade não existe apenas nos livros de história, mas dentro dos códigos

civis vigentes por todo o mundo. A história da propriedade, contada pela moderni-

dade, é constitutiva do direito de propriedade construído na modernidade.

Desse modo, se hoje a modernidade encontra-se em crise, o direito de proprie-

dade construído na modernidade, também. A presença constante, na atualidade, de

um apelo à função social no contexto das reflexões sobre a propriedade é um sinto-

ma dessa crise, não uma solução. Simplesmente agregar ao conceito de propriedade

o de função social, pensado enquanto algo externo à propriedade e limitador dos di-

reitos do proprietário, não pode ser visto como uma resposta à altura do problema.

Uma resposta à altura do problema tem de enfrentar o desafio de pensar um

novo direito de propriedade. Nesse sentido, parece razoável começar pela busca de

um novo passado do direito de propriedade.

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140 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 129-140, 2º sem. 2008

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Direitodepropriedadeintelectual,tecnologiaeinteroperabilidade:estudoàluzdaslimitaçõesaos

direitospatrimoniaisdeautor

(Law of intellectual property, technology and interoperability: a study based on limits to copyright)

miChaEl César silva* robErto hEnriquE porto noGuEira**

sávio dE aGuiar soarEs*** alisson Costa****

samuEl moura***** EriC fErnandEs******

R E S U M OO trabalho visa a apresentar a propriedade intelectual no aspecto dosdireitossubjetivospatrimoniais,peloexamedasquestõesrelacionadascomoespaçodasmídiasdigitais.Abaseteóricaparajustificarainteroperabilidadeé formadaapartir das consequências, paraoDireito, dodesenvolvimentotecnológico, em conformidade com os princípios da função social dapropriedade,dafunçãosocialdoscontratosedaboa-féobjetiva.Oestudodosdireitosautoraissobreasobrascriadasnomeiodigitalédesenvolvidopelo entendimento das limitações impostas na regulamentação legal,para demonstrar como a interoperabilidade transforma-se em espécie delimitaçãopatrimonial ao direito de autor, na sociedade contemporânea.Ainteroperabilidadesurgecomosoluçãoviávelparaapromoçãodoequilíbrioentreasferramentastecnológicasdeproteçãoaosdireitosdeautoreousoprivadodosconteúdosdigitaisobtidoslicitamente.

P A L A V R A S - C H A V EPropriedadeintelectual;Limitações;Interoperabilidade.

* Mestre em Direito Privado pela PUC Minas, especialista em Direito de Empresa pelo Instituto de Educação Continuada (IEC) da PUC Minas, professor da Faculdade de Direito Promove, advogado.

** Mestre e doutorando em Direito Privado pela PUC Minas, especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito Milton Campos, professor da Faculdade Pitágoras de Direito, advogado.

*** Mestre e doutorando em Direito Privado pela PUC Minas, procurador do Estado de Minas Gerais.

**** Bacharel em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas, mestrando em Teoria do Direito pela PUC Minas.

***** Bacharel em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas.

****** Acadêmico de Direito pela Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas.

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142 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 141-156, 2º sem. 2008

Direito de propriedade intelectual, tecnologia e interoperabilidade

A B S T R A C TThisarticleconsidersintellectualpropertyinrelationtocopyright,focusingonissuesconcerningdigitalmedia.ThetheoreticalbasistojustifyinteroperabilityisformedbytheconsequencesoftechnologicaldevelopmenttoLaw,accordingto the principles of the social function of property and contracts, and ofobjectivegoodfaith.Thestudyofcopyrightonworkscreatedindigitalmediais based on limitations imposed by legal norms, aimed at demonstratinghow interoperabilitybecomesakindofpatrimonial limitation tocopyrightin contemporary society. Interoperability emergesasa feasible solution toensureabalancebetweenthetechnologicaltoolsofprotectiontocopyrightandtheprivateuseofdigitalcontentsobtainedaccordingtothelaw.

K E y w O R D SIntellectualproperty;Limitations;Interoperability..

Há direitos de propriedade intelectual, especialmente na espécie dos direitos

de autor, que possuem aspecto patrimonial. E como espécie de direito de proprieda-

de, revestem-se de natureza de direito subjetivo.

Tradicionalmente, o direito subjetivo, do contexto do Estado liberal, escora-se

na noção de liberdade, que converge com o paradigma do individualismo filosófico

clássico.

Entretanto, na realidade do ordenamento jurídico nacional, a Constituição da

República Federativa do Brasil formalizou o estabelecimento do Estado Democráti-

co de Direito que, por sua vez, determinou a crescente relativização de interesses

individuais.

Logo, qualquer abordagem interpretativa dos direitos de propriedade inte-

lectual não pode desconsiderar a questão da crise do caráter absoluto dos direitos

subjetivos.

Alguns limites a direitos dessa sorte encontram-se positivados. Resta saber se

a interpretação restrita de limites impostos por lei aos direitos patrimoniais de autor

é suficiente à satisfação dos anseios da comunidade jurídica hodierna.

Nesse horizonte, apresenta-se o problema do estudo. Desponta a necessidade

de conhecimento da natureza desse rol de limites, para classificá-lo como taxativo

ou exemplificativo. E mais: a eventual conclusão pela exemplificatividade do refe-

rido rol torna imperiosa a verificação de determinantes jurídicas intrassistêmicas

capazes de fazer emergir outros limites aos direitos patrimoniais de autor.

Ante a amplitude da celeuma, cabe restringir o enfoque aos direitos patri-

moniais de autor pertinentes a obras que, de algum modo, empregam tecnologia

digital.

O panorama da tecnologia sugere que o limite primordial dos direitos em

análise é a utilidade, ou possibilidade de utilização, dos bens móveis protegidos

pelo regime dos direitos de autor. A utilidade, porém, depende da viabilidade de

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compreensão de obras digitalizadas por programas de computadores, além da in-

tercompreensão entre sistemas e equipamentos informáticos. Trata-se da interope-

rabilidade.

Porém, como a interoperabilidade, assim como nenhum outro fato pode ser

considerado jurídico por natureza, tampouco suas consequências jurídicas podem

existir sem que possua, ao menos, mínima relação com algum conteúdo normativo

jurídico, pende apontar se a interoperabilidade não passa de pressuposto fático à

utilização privada de obras digitalizadas ou se, em verdade, constitui-se verdadeira

imposição, que pode ser abstraída de dispositivos normativos principiológicos ou

legais.

A hipótese a ser verificada é de que, a partir dos conteúdos normativos dos

princípios da função social da propriedade e dos contratos e da boa-fé objetiva, é

possível entender a interoperabilidade como determinação jurídica a ser observada

pelos atores do cenário dos direitos autorais sobre obras tecnodigitais.

Cumpre ressalvar que não é perseguido o estudo técnico da interoperabilida-

de, pois este dependeria da análise de obras, suportes, sistemas ou equipamentos

específicos, sob crivo de conhecimento científico especializado. É visada a aborda-

gem do direito de propriedade intelectual, no que respeita às limitações aos direitos

patrimoniais de autor, que ganham novos contornos, impulsionados pela interope-

rabilidade que a própria evolução tecnológica estabelece e exige.

Para tanto, receberão breve atenção os direitos de propriedade intelectual, sua

relação com o princípio da função social e da boa-fé objetiva. Em seguida, as limita-

ções aos direitos patrimoniais de autor merecerão tratamento, para a compreensão

do cenário no qual se insere a interoperabilidade.

A relevância deste estudo verifica-se em razão dos propósitos sociais e jurídi-

cos de proteção do desenvolvimento técnico e científico da sociedade contemporâ-

nea, na busca pelo equilíbrio entre a proteção dos interesses do titular dos direitos

patrimoniais de autor e o uso privado da obra, direito fundamental da coletividade.

A operacionalização do trabalho vale-se de procedimentos de coleta de dados

em fonte bibliográfica, além de amplos debates realizados em razão das análises

havidas no grupo que pesquisa os “Contornos do microssistema da propriedade tec-

nodigital”, integrante do Núcleo Acadêmico de Pesquisa da PUC Minas.

Direito de propriedade intelectual e direito subjetivo

O direito subjetivo pode ser entendido como “o poder que a ordem jurídica

confere a alguém de agir e de exigir de outrem determinado comportamento” (AMA-

RAL, 2003, p. 187). Trata-se do poder conferido ao seu titular de fazer valer seus

direitos individuais em face de terceiros, donde destaca-se a ideia de direito-dever

(FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 4).

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Direito de propriedade intelectual, tecnologia e interoperabilidade

A origem do conceito de direito subjetivo remonta aos tempos idos da produ-

ção da literatura jurídica da Idade Média,1 encontrando, consequentemente, solidifi-

cação no século XIX, com o movimento pandectista. Nesse período, o ius subjectvium

estava axiologicamente alicerçado na ideia de liberdade do indivíduo (AMARAL,

2003).

A utilização do termo “subjetivo” relaciona-se à titularidade do direito, ou

seja, à pessoa,2 que encontra sua limitação na órbita do direito objetivo. Nisso, o

direito subjetivo, para referido autor, apresenta-se, pois, em duas linhas, a técnica e

a ética. Em sua primeira linha, o conceito é entendido como uma forma de promover

a facilitação da incidência do Direito nos casos concretos. Ou seja, o Direito, em sua

órbita objetiva, sic et simpliciter, fixa limites dentro dos quais o indivíduo pode agir

conforme o seu entendimento.

Por outro lado, quando se estuda o direito subjetivo em sua linearidade ética,

percebe-se que nas relações jurídicas entre o Estado e o particular, e principalmente

entre os particulares, existe um papel daquele direito no sentido de proteger algu-

mas liberdades de índole fundamental, bem como algumas garantias para o exer-

cício das relações inter privatos, nas quais o indivíduo sempre busca um resultado

amparado por disposições jurídicas.

Do magistério de Francisco Amaral (2003), é possível abstrair que a importân-

cia do direito subjetivo é constatada por meio da evolução histórica dos ensinamen-

tos jurídicos relacionados com o conceito de índole liberal e capitalista.

Entrementes, a aceitação do direito em sua órbita subjetiva não é uníssona na

doutrina, haja vista a existência de várias teorias negativistas da existência desse

direito. Ocorre que, apesar dos argumentos apresentados por referidos pensadores,

Amaral (2003) constata que o direito subjetivo tem sido amplamente utilizado ho-

diernamente na práxis forense.

Nesse diapasão, ao abordar o estudo do direito subjetivo em sua classificação

tradicional, o direito de propriedade intelectual, objeto de estudo no presente tópi-

co, apresenta-se como uma espécie de direito patrimonial,3 mais precisamente como

um direito intelectual, tendo por assunto as produções relacionadas à dimensão

imaterial do ser humano, isto é, a sua intelectualidade. Desse modo, é a possibilida-

de de sua transferência, ainda que em significativa parcela, a outrem, que justifica a

classificação do direito da propriedade intelectual como um direito subjetivo patri-

monial, apesar de tal assertiva não ser de aceitação absoluta por parte da literatura

jurídica, como quase tudo no Direito.

1 Essa produção está relacionada à Escola dos Glosadores, tendo Bártolo como um dos seus expoentes.

2 A palavra aqui deve ser entendida em seu sentido amplo, abrangendo tanto a pessoa individual quanto a coletividade.

3 Nos termos da legislação civil em vigor, isto é, art. 91 do Código Civil (BRASIL, 2002), o patrimônio é entendido como “conjunto de relações jurídicas economicamente apreciáveis de que o indivíduo é o titular”.

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Dessa forma, o direito de propriedade intelectual, enquanto direito subjetivo,

é entendido como o “ramo do direito que estuda os direitos exclusivos dos autores e

inventores sobre suas obras, invenções e descobrimentos” (POLI, 2006, p. 15).

Diante da importância do direito da propriedade intelectual, como instrumen-

to de proteção do desenvolvimento técnico e científico da sociedade contemporânea,

impõe-se a análise de suas limitações e dos princípios jurídicos a ele aplicáveis.

Direito subjetivo e função social

Enquanto realidade jurídica, o direito subjetivo não é revestido de um caráter

absoluto e intocável. Pelo contrário, a dinâmica existencial do homem impossibilita

a ideia de imutabilidade do direito, uma vez que o direito é um fenômeno social e,

como tal, atrelado está à mudança contínua e gradativa da sociedade. Ora, sendo o

homem um ser social e político, ao exercer o seu direito subjetivo, encontra limita-

ções para a utilização de referido direito. Um exemplo disso se nos apresenta quan-

do o exercício de um direito pelo particular entra em “contato” com os princípios de

ordem social, atinentes, portanto, a toda a coletividade (AMARAL, 2003).

Os direitos subjetivos eram praticamente incondicionados quando do Estado

liberal. Entretanto, a ideia de ordem pública no Estado liberal é bem diferente da

ordem pública prescrita no Estado Democrático de Direito. Em verdade, a ordem

pública subsiste no tempo enquanto expressão de limite ao exercício da autonomia

privada.4 Entretanto, o regime jurídico da ordem pública ampliou-se, para impor exi-

gências maiores e ingerências mais frequentes nas relações jurídicas privadas.

Tal ampliação do conteúdo da noção limitativa dos direitos subjetivos, qual

seja, a ordem pública, deve-se, em grande parte, ao percurso histórico que, marcado

pelo desenvolvimento do capitalismo, demonstrou que o exercício desses direitos

no sentido exclusivo dos interesses individuais acentuava as discrepâncias no tra-

tamento das pessoas, pelo Estado, no plano da promoção da inclusão social e, em

determinada medida, da dignidade.

Até o estabelecimento do Estado social e o alargamento da ideia de ordem

pública, o exercício do direito à propriedade privada, direito subjetivo por excelên-

cia, acentuou as desigualdades, de maneira a evidenciar a incompatibilidade de tais

concepções com as tendências da atualidade, de consideração da pessoa e de sua

dignidade, bem como da postura intervencionista do Estado, em promoção do bem-

estar social.

Por resposta, houve um crescente condicionamento da propriedade ao atendi-

mento da função social.

4 O princípio da promoção da função social do contrato e da autonomia privada são dois lados da mesma moeda: a liberdade. O primeiro é aspecto relacionado ao exercício da liberdade, enquanto o segundo é representativo das restrições impostas pelo direito aos contratos.

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Direito de propriedade intelectual, tecnologia e interoperabilidade

A função social da propriedade,5 estabelecida constitucionalmente,6 acabou

por atingir também os contratos,7 instrumento de produção e circulação da riqueza

(patrimônio), da paz social, da consecução das necessidades humanas e da efetiva-

ção do bem comum.

Destarte, se os direitos de propriedade intelectual podem ser classificados

como direito subjetivo patrimonial, é certo que seu exercício deve submeter-se aos

preceitos decorrentes do conteúdo deôntico do princípio da promoção da função

social.

E se os contratos passam a ser concebidos em termos econômicos e sociais

(FIUZA, 2003, p. 27), também é possível a conclusão de que, nem mesmo por contra-

to, preceitos que tornem absoluto o exercício dos direitos de propriedade intelectual

podem subsistir diante da ordem jurídica atual.

A realização da função social representa a harmonização dos interesses parti-

culares e coletivos, por meio da formação de situações e relações jurídicas, sempre

constituídas a partir dos paradigmas da dignidade da pessoa humana, da solidarie-

dade social e da igualdade material dos contratantes nos moldes constitucionalmen-

te previstos.

Direito de propriedade intelectual enquanto objeto do contrato e sua correlação com o princípio da boa-fé objetiva

O princípio da boa-fé objetiva modifica profundamente o contexto das rela-

ções jurídicas obrigacionais na contemporaneidade, a partir do entendimento das

obrigações como complexas e dinâmicas, formadas por um feixe de obrigações múl-

tiplas e recíprocas.

A boa-fé objetiva representa um “modelo de conduta social, arquétipo ou stan-

dard jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse

arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, pro-

bidade’” (MARTINS-COSTA, 2000, p. 411).

O referido princípio confere ao Direito contemporâneo a roupagem de sistema

ético-jurídico, por estabelecer padrões éticos, objetivamente considerados, eviden-

ciados na intersubjetividade. A despeito dos parâmetros éticos aprioristicamente

extraídos do princípio em alusão, não se exaure a possibilidade de densificação de

5 A função social vincula-se aos princípios constitucionais do solidarismo social e da dignidade da pessoa humana.

6 Constituição da República (BRASIL, 1988). “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXIII - a propriedade atenderá a sua função social”.

7 Em verdade, a função social dos contratos e a boa-fé objetiva inserem-se no contexto contemporâneo do Direito das Obrigações, no intuito de relativizar e modelar a autonomia privada dos particulares. Alguns conteúdos contratuais passaram a ser impostos, outros proibidos, sempre com o condão de tutelar as partes da relação contratual e a sociedade, na medida em que essa poderia sofrer os efeitos do conteúdo relacional.

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seu conteúdo diante do caso concreto. Daí é possível a afirmação de que, por esse

novo modelo jurídico, prevalece a ética intersubjetiva à dogmática positiva.

A boa-fé objetiva independe da intenção ou convicção do integrante da relação

jurídica, mas volta-se para o atendimento a padrões éticos juridicamente estabe-

lecidos, considerados objetivamente. Portanto, a convicção do agente, seu estado

psicológico, deixam de ser relevantes na relação jurídica contratual, apenas sendo

primordial a avaliação da conformidade ou não do comportamento das partes com

os padrões éticos e sociais vigentes na sociedade. Isso porque o descumprimento

da boa-fé objetiva não denota má-fé do agente, mas tão-somente quebra ou simples-

mente ausência da boa-fé (FARIAS; ROSENVALD, 2006, p. 41).

Os parâmetros éticos obtidos a partir de uma análise abstrata do princípio

são a probidade, honestidade, integridade, retidão. Significam que a pessoa deve

agir em conformidade com a expectativa8 que se firmou numa relação pautada na

honestidade das partes, com retidão no cumprimento dos deveres legitimamente es-

tabelecidos. A probidade refere-se à lealdade das partes na cooperação mútua para

a satisfação dos interesses havidos na dinâmica da relação jurídica, sendo pregada

a integridade das atitudes, para que sejam irrepreensíveis.

Nesse diapasão, a boa-fé objetiva determina a consideração dos interesses

legítimos da contraparte, ainda que sejam expectativas relacionadas à relativização

do direito de propriedade intelectual, em decorrência da utilização privada de de-

terminado objeto contratual protegido pelo regime jurídico em tratamento. Significa

atestar que o exercício de um direito subjetivo, por uma das partes contratuais, não

pode impedir ou tolher legítimas expectativas da contraparte com relação à utiliza-

ção do objeto do contrato que versa sobre direito de propriedade intelectual.

Cumpre, assim, insistir que o princípio da boa-fé objetiva desempenhará sua

função no contrato de propriedade intelectual, tanto para determinar a interpreta-

ção de suas cláusulas, quanto para limitar o exercício abusivo de direitos e para fa-

zer emanar os chamados deveres anexos de conduta. Trata-se, nos dizeres de Teresa

Negreiros (2006, p. 150), da especialização da exigência de as partes comportarem-

se em conformidade com os ditames da boa-fé, o que engendraria os deveres ins-

trumentais, também denominados deveres laterais ou anexos, tais como o dever de

proteção, esclarecimento e lealdade, dentre outros.

Limitações aos direitos intelectuais e tecnologia

O Direito, enquanto fenômeno social criado pelo homem e para o homem,

exerce um papel fundamental no controle das atividades humanas no meio social.

Nesse contexto, em que o Direito ocupa-se da tutela do exercício dos direitos

subjetivos e das relações jurídicas, tem lugar o tratamento das limitações a que se

8 Trata-se da tutela da justa expectativa do contratante, que espera que a outra parte aja de acordo com o pactuado, pautando-se por parâmetro objetivo e de caráter genérico de comportamento, relacionado à lealdade e probidade na relação contratual (HIRONAKA, 2003, p. 112-113).

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Direito de propriedade intelectual, tecnologia e interoperabilidade

sujeita o exercício de todos os direitos de propriedade intelectual. Estes sempre pos-

suem limites, intrínsecos ou não, expressamente positivados ou não.

Em se tratando da proteção dos direitos subjetivos intelectuais de natureza

autoral, são duas as leis ordinárias que projetam o regime jurídico do tema, quais

sejam, a Lei nº 9.609 e nº 9.610, ambas de 1998.

A Lei nº 9609 (BRASIL, 1998), Lei do Software, em seu art. 1º conceitua o objeto

da propriedade intelectual, isto é, o programa de computador, entendido como:

a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural

ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego

necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, disposi-

tivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital

ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados. (art. 1º

Lei 9609)

A Lei nº 9610 (BRASIL, 1998), Lei de Direito Autoral (LDA), conceitua os direi-

tos autorais como aqueles do autor e os que lhe estejam conexos (art. 1º). Para efei-

tos legais, os direitos autorais são vistos como bens móveis e, em âmbito contratual,

interpretados restritivamente. O art. 7º do referido texto dispõe sobre as obras in-

telectuais objeto de tutela pela Lei. A Lei de Direito Autoral também regula o direito

moral de autor, bem como a sua questão patrimonial.

As limitações sobreditas correspondem às possibilidades de utilização parcial

ou integral da obra intelectual protegida sem necessidade de prévia e expressa au-

torização (consentimento) do seu criador. Isto é, seja essa autorização do próprio

autor ou do titular derivado de direitos patrimoniais de autor, o que equivale, con-

forme a terminologia autoralista, a restrições aos princípios aplicáveis aos direitos

patrimoniais de autor.

Tais limitações são entendidas como situações em que a utilização pública da

obra não estaria compreendida pelo conteúdo do direito autoral, de modo que certas

hipóteses legais adiante analisadas, ao revés de limitar o direito autoral, suscitariam

verdadeira ampliação do seu conteúdo ante a restrição ao uso privado das obras

intelectuais em tela.

Na colocação abalizada de José de Oliveira Ascensão (2004, p. 21), “os limites

permitem conciliar o exclusivo atribuído ao autor com o interesse público e as posi-

ções de outros titulares. São fundamentos para a obtenção justa das finalidades do

direito de autor”.

Como exemplo de limitação temporal, a Lei do Software prescreve que a

tutela dos direitos autorais patrimoniais pertinentes aos programas de computa-

dor está assegurada pelo prazo de cinquenta anos, contados a partir do dia 1º de

janeiro do ano subsequente ao da sua publicação ou, na ausência desta, da data de

sua criação.

Some-se a isso a exigência legal de que a utilização do programa de com-

putador, em solo brasileiro, esteja condicionada à existência de um contrato de

licença de uso, sendo admitido o documento fiscal comprobatório da aquisição ou

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licenciamento de cópia. É certo que a licença, primordialmente, constitui contrato

por meio do qual o autor outorga a terceiro o direito de explorar a obra, por tempo

determinado, dentro dos limites estabelecidos no aludido instrumento. Ocorre que,

diante da autorização do titular dos direitos autorais para a utilização privada da

obra, esta constituirá, nas mesmas proporções, limitação aos direitos autorais.

Assim como acontece no regime jurídico do software, a Lei de Direito Autoral

apresenta limites temporais à exclusividade da exploração econômica dos direitos

autorais patrimoniais.

A legislação autoral brasileira em vigor elenca uma série de possibilidades de

reprodução lícita de obras intelectuais, isto é, hipóteses nas quais não há violação

aos direitos patrimoniais de autor. A discussão mais controvertida é a que toca aos

preceitos normativos dessas duas legislações em tratamento, que dispõem, expres-

samente, sobre as limitações aos direitos de autor. Os catálogos de limitações cons-

tam dos artigos 6º e 46 a 48, da Lei do Software e da Lei do Direito Autoral, respecti-

vamente. Esses róis seriam, portanto, taxativos ou exemplificativos?

É certo que as limitações extrapolam esses artigos, conforme exposto acima,

o que torna forçosa a conclusão de que tais catálogos não puderam apresentar, em

absoluto, todas as limitações aos direitos patrimoniais de autor.

Ademais, todas as limitações visam a assegurar, em contraposição aos interes-

ses do titular dos direitos autorais, direitos à utilização privada da obra. Trata-se,

indubitavelmente, de ponto de interlocução entre a Constituição (BRASIL, 1988) e a

legislação infraconstitucional. Afinal, tais limitações devem ser concebidas e inter-

pretadas à luz dos princípios constitucionais.

Merece destaque o princípio da função social da propriedade (art. 5º, XXIII,

CF), que deve ser estendido a todos os meios de expressão ou exercício desse direi-

to. Como exposto anteriormente, a função social é capaz de condicionar o exercício

dos direitos subjetivos, inclusive dos direitos patrimoniais de autor.

Do mesmo modo, essas limitações possuem natureza dúplice, de direito e

garantia, relativos ao usuário da obra autoral. As limitações são, fatalmente, instru-

mentos de efetivação dos direitos fundamentais à intimidade e vida privada. E, nes-

se tocante, vale destacar: trata-se de direitos constitucionais, que não comportam

rol taxativo para sua efetivação.

Assim, mesmo que haja cláusula, no contrato de licença, que mitigue os direi-

tos à intimidade e vida privada, esta será insubsistente, posto que ofende as normas

constitucionais aludidas, além de, nessa medida, atentar contra os padrões éticos

objetivamente estabelecidos pela ordem jurídica, que devem ser observados por

todos os contratantes, por força do princípio da boa-fé objetiva.

Significa que, em verdade, os limites aos direitos patrimoniais de autor pos-

suem relevância prática, no sentido de efetivar direitos de ordem constitucional.

E, por essa razão, tais catálogos não são taxativos, uma vez que os mais rígidos

limites aos direitos patrimoniais do autor dão os direitos fundamentais, constitu-

cionalmente assegurados.

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Direito de propriedade intelectual, tecnologia e interoperabilidade

É interessante contrapor o sistema brasileiro da propriedade intelectual com

o direito norte-americano (copyright), sobremaneira em razão da certa aproximação

que tem sido delineada mais profusamente por meio da implementação do ADPIC/

TRIPS no âmbito da Organização Mundial do Comércio.9

No âmbito do copyright, o instituto do fair use (uso justo ou uso honrado)

consiste numa cláusula geral de limitação ao direito de autor aplicável a situações

não predeterminadas, aferindo-se a hipótese de caracterização ou não de violação

aos direitos patrimoniais de autor, de acordo com o uso concreto da obra intelectual

alheia, a partir de critérios construídos doutrinária e jurisprudencialmente, amol-

dando-se com mais facilidade às inovações tecnológicas.

O sistema norte-americano leva em conta, na determinação do fair use, os

seguintes critérios: o propósito e natureza do uso (se é comercial ou para fins edu-

cativos e não lucrativos), a natureza da obra, a quantidade e qualidade da utilização

em relação à obra global e principalmente a incidência da utilização (efeitos do uso)

sobre o mercado atual ou potencial da obra (BRANCO JÚNIOR, 2007, p. 71-72).

Ascensão, citado por Branco Júnior (2007, p. 72), afirma que, embora maleável

e impreciso, o sistema norte-americano não é contraditório com o sistema europeu,

uma vez que mantém a capacidade de adaptação aos desafios emergentes diante das

novas condições surgidas pela evolução tecnológica, por exemplo.

Nesse passo, aponta-se também para a possibilidade do uso na esfera privada,

para a qual não se estende o monopólio de exploração econômica da obra intelectu-

al. Vale dizer, as formas de utilização da obra intelectual que se efetuam no âmbito

reservado do indivíduo e não para o aproveitamento coletivo.

Como dito acima, cuida-se de reflexo do grande princípio do direito de autor,

isto é, da liberdade do uso privado com o desiderato de tutelar o valor da vida pri-

vada.

Ademais, do ponto de vista da política de proteção dos direitos autorais, insta

examinar o uso privado no ambiente digital diante dos avanços da tecnologia da

informação e a exploração da comunicação digital.

Nesse sentido, a indústria cultural criou uma série de ferramentas tecnológicas

com o escopo de constringir o direito dos usuários de decisão acerca do uso pessoal

dos conteúdos digitais dos produtos obtidos licitamente. Isto é, trata-se das deno-

minadas restrições ou travas tecnológicas (medidas tecnológicas de proteção),10 que

correspondem a chaves criptográficas (dispositivos de codificação) inseridas nos

9 O acordo denominado TRIPS (Agreement on Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights) ou Acordo sobre Aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (ADPIC) emergiu no cenário internacional no sentido de reconhecer a extrema importância da propriedade intelectual para o desenvolvimento socioeconômico-cultural da humanidade.

10 As TPMs – Technological Protection Measure (medidas tecnológicas de proteção) – correspondem a um método de controle de acesso a materiais registrados com a utilização de meios tecnológicos, consistindo em chaves que impedem, por exemplo, a possibilidade de cópia de pequenos trechos de um DVD para o computador ou para uma fita VHS ou que um determinado CD possa tocar adequadamente num equipamento de som específico. Além disso, tais medidas impedem que música adquirida em formato digital possa ser executada por outros tocadores de áudio digital.

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bens culturais digitais, atuando no reconhecimento de características tecnológicas

programadas de fábrica.

No ambiente da internet, a justificativa para a aplicação das medidas de pro-

teção supracitadas seria lastreada no fato de que o uso privado teria deixado de ser

privado, já que os usuários finais teriam se tornado agentes intermediários destina-

dos a redistribuir o conteúdo das obras disponibilizadas no meio digital (GERVAIS,

2007, p. 217).

Impõe-se amparar a possibilidade da reprodução para uso privado e da garan-

tia ao beneficiário do direito de acesso às obras, ainda que as utilizações consistam

em reproduções em suportes digitais.

O Direito autoral perante a nova realidade tecnológica opera igualmente em

vista do necessário equilíbrio de interesses sob o qual se sustenta esse ramo do

Direito. Tem-se, de um lado, o direito de acesso da coletividade à informação e à

cultura e, do outro, a tutela dos interesses patrimoniais e morais dos titulares de

direitos autorais.

Destarte, pugna-se que a interoperabilidade seja o mecanismo que responda

às aspirações e necessidades dos usuários, dos criadores intelectuais (titulares ori-

ginários) e também dos titulares derivados (cessionários dos direitos autorais patri-

moniais), como será tratado a seguir.

Busca pela interoperabilidade

Ainda na perspectiva da compreensão do regime jurídico dos direitos de pro-

priedade intelectual, pautada na hermenêutica constitucional, cumpre analisar a in-

teroperabilidade, no que concerne às criações intelectuais desenvolvidas no campo

da tecnologia informática.

Consoante Alexandre Pereira (2001), a interoperabilidade pode ser entendida

como a aptidão para promover o intercâmbio de informações. Nesse sentido, é ob-

jeto de análise a

(...) interconexão e interação lógica e, quando necessária, física, no sentido de

permitir o funcionamento conjunto de todos os elementos do suporte lógico e

do equipamento com outros suportes lógicos e equipamentos, e com os utiliza-

dores, e todas as formas de funcionamento previstas. (PEREIRA, 2001, p. 643)

Dessa forma, a interoperabilidade é “a capacidade que possuem os aparelhos

ou equipamentos que dela fazem parte de comunicarem-se entre si, independente-

mente de sua procedência, ou do seu fabricante” (MENKE, 2005, p. 59). Essa é a cha-

mada interoperabilidade vista em seu aspecto objetivo, isto é, relacionado à questão

operacional.

Ocorre que existe um outro tipo de interoperabilidade, qual seja, a subjeti-

va, também denominada substancial ou jurídica. Esse tipo de interoperabilidade

“invoca um fundo comum principiológico, de índole normativa, que faz com que

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Direito de propriedade intelectual, tecnologia e interoperabilidade

os indivíduos envolvidos na comunicação ou transação eletrônica (...) confiem na

utilização do serviço” (MENKE, 2005, p. 127).

Assim, é buscado o alcance da segurança jurídica, por meio do conjunto de

princípios e regras que regulamentam os sujeitos que se relacionam em meio eletrô-

nico, além das criações tecnológicas que acabam por interagir. Assim, a interopera-

bilidade substancial diz respeito à efetiva confiança e segurança na integração dos

processos, que possibilitem o funcionamento conjunto e a intercompreensão entre

sistemas, além da identificação dos respectivos usuários, quando necessário, atra-

vés do emprego de certificação digital.

Logo, a interoperabilidade deve ser observada, não somente no plano das in-

terfaces programas-programas e programas-equipamentos, mas também no novo

cenário paradigmático digital, marcado pela rede em âmbito global, com a conse-

quente circulação de dados.

No âmbito da contratação em meio eletrônico, a interoperabilidade é pressu-

posto inarredável para a promoção do acesso e da integração da coletividade.

Tal conjectura interpretativa do regime estudado determina a observância dos

ditames da boa-fé objetiva, quando os direitos de propriedade intelectual integra-

rem o objeto da relação jurídica contratual.

O princípio da boa-fé objetiva impõe que, no contrato, sejam asseguradas as

expectativas mínimas, desde que legítimas, das partes, para garantir a utilização da

criação protegida pelo regime dos direitos de propriedade intelectual no âmbito da

vida privada, com reserva da liberdade que integra o conteúdo do direito à intimida-

de, ambos direitos fundamentais de índole constitucional.

O ordenamento jurídico nacional sinaliza a tendência da busca pela intero-

perabilidade, na medida em que impõe que, para serem presumidas verdadeiras as

declarações constantes em documentos eletrônicos, é imprescindível o emprego,

em sua produção, de processo de certificação disponibilizado pela Infraestrutura de

Chaves Públicas Brasileira. Significa que o documento deve ser assinado digitalmen-

te, a partir da tecnologia da criptografia assimétrica, sendo a chave pública necessa-

riamente certificada por uma autoridade certificadora ligada à autoridade certifica-

dora raiz do país, no caso o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação:

Art. 10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins

legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória.

§ 1o As declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos

com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil pre-

sumem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 da Lei no

3.071, de 1o de janeiro de 1916 – Código Civil. (BRASIL, MPV n. 2.200-2, 2001)

Essa padronização, que se dá por meio da exigência de uma tecnologia espe-

cífica, para integração no processo coordenado pela ICP-Brasil, justifica-se em razão

do interesse público na firmação e execução de contratos eletrônicos. A própria

ideia de uma infraestrutura centralizada e oficial visa a possibilitar a comunicação e,

assim, viabilizar a formação de contratos eletrônicos. Fabiano Menke esclarece:

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Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 141-156, 2º sem. 2008 153

miChaEl César silva|robErto hEnriquE porto noGuEira sávio dE aGuiar soarEs |alisson Costa|samuEl moura|EriC fErnandEs

As razões para que haja uma infraestrutura que congregue número maior possí-

vel de pessoas e entidades são simples e facilmente perceptíveis. É justamente

para que haja possibilidade de comunicação entre os envolvidos, ou, meramen-

te, a possibilidade de pronto acoplamento. A infraestrutura uniforme evita que

sejam aplicadas soluções díspares por cada indivíduo. (MENKE, 2005, p. 57)

Ainda como expressão do interesse público no regime jurídico da propriedade

intelectual, a interoperabilidade desponta para viabilizar o acontecimento do pro-

cesso eletrônico, sendo necessário, nesse sentido, estabelecer padrões de interope-

rabilidade.

A Lei n.º 11.280, de 16 de fevereiro de 2006 (BRASIL, Lei n. 11.280, 2006),

que acrescentou o parágrafo único no art. 154 do Código de Processo Civil vigen-

te11 (BRASIL, 1973), vinculou a comunicação oficial dos atos processuais por meios

eletrônicos ao atendimento dos requisitos de autenticidade, integridade, validade

jurídica e interoperabilidade, assim definidos pela Infraestrutura de Chaves Públicas

Brasileira – ICP-Brasil.

Nisso, Leal (200-) reafirma a necessidade de se buscar a interoperabilidade

entre os softwares no Poder Judiciário, uma vez que, em nome da celeridade proces-

sual, referida inclusão tecnológica no Direito restaria impossibilitada de funcionar,

haja vista que seriam formadas verdadeiras “ilhas informáticas” (LEAL, 200-), com

a adoção pelo Estado de um e-government, que não utiliza padrões uniformes na

interação entre os sistemas informáticos.

Diante do reconhecimento do interesse público que paira sobre os direitos de

propriedade intelectual, assim como do caráter subjetivo que pode ser reconhecido

a esses direitos, impõe-se a observância da sua função social. A interoperabilidade,

por sua vez, é importante mecanismo de promoção da efetividade dos direitos e

princípios constitucionais.

Portanto, a interoperabilidade é tendência nitidamente identificável para a

construção evolutiva do direito aplicável à propriedade intelectual, vez que pode

possibilitar a evolução tecnológica, a democratização da informação e da cultura. A

busca pela interoperabilidade compõe os objetivos maiores do Estado Democrático

de Direito, na medida em que o bem comum e o interesse público hão de prevalecer

sobre os interesses individuais e o exercício dos direitos subjetivos pertinentes à

propriedade intelectual.

11 “Art. 154. Os atos e termos processuais não dependem de forma determinada, senão quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados de outro modo, preencham-lhe a finalidade essencial. Parágrafo único. Os tribunais, no âmbito da respectiva jurisdição, poderão disciplinar a prática e a comunicação oficial dos atos processuais por meios eletrônicos, atendidos os requisitos de autenticidade, integridade, validade jurídica e interoperabilidade da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil”.

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154 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 141-156, 2º sem. 2008

Direito de propriedade intelectual, tecnologia e interoperabilidade

Conclusão

A releitura do direito da propriedade intelectual e dos paradigmas tecnológi-

cos sob o enfoque da limitação aos direitos patrimoniais de autor é fundamental no

contexto contemporâneo das relações jurídicas contratuais, profundamente altera-

das pela inserção de princípios constitucionais e contratuais aos conflitos relaciona-

dos à utilização de obras de criação do intelecto humano.

Trata-se o direito intelectual do ramo do direito que propugna a proteção do

autor das produções/obras relacionadas à dimensão intelectual do ser humano, de-

correntes de sua intelectualidade.

É imprescindível que o direito da propriedade intelectual seja interpretado

e exercido em consonância com os princípios da boa-fé objetiva e da função social

dos contratos, reflexos da solidariedade social (art. 3º, III CR/88) e elementos norte-

adores das relações jurídicas, os quais visam a relativizar o exercício da autonomia

privada dos contratantes, no intuito de se evitar o exercício abusivo do direito sub-

jetivo e a observância ao interesse social, e inclusive dos direitos patrimoniais de

autor.

Em face do crescente valor econômico da produção intelectual na contempo-

raneidade e de sua difusão sem precedentes pelo meio virtual, através da expansão

da internet, tornou-se imprescindível o controle do referido fenômeno por meio de

mecanismos de proteção adequados a impedir a difusão indevida dos referidos di-

reitos intelectuais.

Daí evidencia-se a relevância dos mecanismos tecnológicos de controle, entre

os quais se destacam a interoperabilidade e a tutela jurídica do exercício dos direi-

tos subjetivos, em face da limitação dos direitos patrimoniais do autor da proprie-

dade intelectual.

Em relação à proteção dos direitos subjetivos intelectuais de natureza auto-

ral, as Leis nº 9.609/98 e 9.610/98 apresentam-se como diretrizes ao exercício dos

referidos direitos, possuindo relevância no controle e vedação de condutas ilícitas

perpetradas contra o titular de direito de autor, permitindo-se conciliar o interesse

público e o direito exclusivo atribuído ao titular da obra.

Nesse escopo, surgiram inúmeras ferramentas tecnológicas visando a limitar

o uso pessoal dos conteúdos digitais obtidos licitamente, através das denominadas

restrições ou travas tecnológicas, ou seja, através de medidas tecnológicas de pro-

teção aos direitos de autor.

A interoperabilidade surge, nesse cenário, como alternativa viável à utilização

lícita dos direitos de autor e da propriedade intelectual, por meio de mecanismos

de controle eficientes e confiáveis, dentro do processo de contratação eletrônica,

principalmente relacionados com a assinatura digital e a criptografia.

Por fim, é imprescindível a compreensão de que o direito de propriedade in-

telectual propugna um cenário onde o equilíbrio de interesses deve ser observado,

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Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 141-156, 2º sem. 2008 155

miChaEl César silva|robErto hEnriquE porto noGuEira sávio dE aGuiar soarEs |alisson Costa|samuEl moura|EriC fErnandEs

para garantir o direito de acesso da coletividade à informação e à cultura, enquanto

direito fundamental, bem como a tutela dos interesses patrimoniais e morais dos

titulares de direitos autorais.

Referências

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156 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 141-156, 2º sem. 2008

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Page 157: Editora Revista Direito Numero 22

157

Oprocedimentodiscursivodeelaboração dasconvençõesdecondomínio*

(The speech procedure of elaboration of Master Deeds in condominiums)

rEnato marCuCi barbosa da silvEira**

R E S U M OO objetivo deste trabalho é verificar a assembleia de condôminos,instauradaemcondomíniosedilícios,comoum“espaço”abertoàdiscussãoe ao recebimento das diversas opiniões dos coproprietários em busca daconstruçãodointeressecomumnaqueleambientepluralecomplexo,atravésdaelaboraçãoderegrasquefarãopartedasconvençõesdecondomínio.Asregrasconvencionadasqueorganizamaconvivênciaeoexercíciododireitorealdepropriedadenaqueletipodeedificaçãosãolegítimas,namedidaemquesãosubmetidasaumprocedimentodiscursivoedemocráticodeescolhado“melhorargumento”emproldacomunidadecondominial.

P A L A V R A S - C H A V ECondomínioedilício;Convençãodecondomínio;Assembleiadecondôminos;Procedimentodiscursivo.

A B S T R A C TThispaperconsidershomeowners’corporationmeetingsinbuildingsa“space”opentodiscussionandtheexpressionoftheco-owners’differentopinionsinsearchofacommoninterestinapluralandcomplexenvironment,throughthe elaboration of a set of rules and regulations that will be part of theMasterDeed.Therulesofgovernancethatorganizedailylifeandtheexerciseoftherealrighttoownershipinthiskindofbuildingarelegitimate,aslongastheyaresubmittedtoademocraticspeechproceduretochoosethe“bestargument”tothebenefitofthecondominiumcorporation.

K E y w O R D SCondominiums;Master Deed; Homeowners’ corporationmeetings; Speechprocedure.

* Artigo apresentado como atividade de conclusão da disciplina “Tendências do Direito Administrativo”, do Programa de Pós-graduação stricto sensu (Mestrado) da PUC Minas em dezembro de 2008.

** Mestrando em Direito Privado pela PUC Minas, advogado.

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158 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 157-166, 2º sem. 2008

O procedimento discursivo de elaboração das convenções de condomínio

A vida em condomínios edilícios tornou-se uma realidade nos dias atuais em

virtude da expansão dos centros urbanos e da consequente necessidade de aprovei-

tamento do solo disponível para a edificação de imóveis destinados à moradia ou

ao comércio.

Ocorre que o convívio entre os coproprietários nos condomínios edilícios ou

condomínios por unidades autônomas exige daqueles o exercício do direito real de

propriedade em conformidade com o princípio da função social da propriedade e

nos parâmetros do Estado Democrático de Direito implementado através da norma

do artigo 1° caput da CR/88.

O cenário retratado nas democracias participativas, principalmente no que diz

respeito às relações interindividuais de formação do interesse público e de elabo-

ração e cumprimento das normas produzidas em sociedade, de certa forma, e guar-

dadas as devidas proporções, é reproduzido no âmbito privado dos condomínios

edilícios.

A eleição do síndico e do conselho consultivo e/ou fiscal do condomínio, a li-

berdade na elaboração das regras que constituem a convenção de condomínio (desde

que respeitadas as normas constitucionais e infraconstitucionais) e as assembleias

dos condôminos, onde se verifica a discussão democrática sobre as diretrizes que

deverão ser tomadas em favor daquela comunidade de coproprietários, são seme-

lhantes às esferas públicas de participação do cidadão em um Estado democrático,

demonstrando que nos condomínios edilícios há espaço para uma efetiva atuação

discursiva dos coproprietários que dele participam.

Como apresentado mais adiante, existe um conteúdo que deve, necessaria-

mente, estar presente nas convenções de condomínio por força do artigo 1.3341 do

Código Civil de 2002. Porém, o teor da segunda parte do caput desse mesmo artigo

foi deixado ao livre entendimento dos condôminos. Trata-se da produção de regras

relativas à especificidade de cada comunidade condominial.

A legitimidade das regras presentes nos textos convencionados por força de

lei – principalmente em virtude de o conteúdo já estar predeterminado – encontra-

se fundamentada no procedimento legislativo ao qual o Código Civil de 2002 (Lei

10.406/02) foi submetido para a sua promulgação.

Porém, o objetivo deste trabalho é fundamentar a legitimidade das regras pre-

sentes nas convenções de condomínio que não têm o seu conteúdo predeterminado

pelo Código Civil de 2002, ou seja, aquelas regras elaboradas pelos próprios con-

dôminos reunidos em assembleia geral através de suas deliberações discursivas a

respeito de interesses da comunidade de coproprietários.

1 “Art. 1334. Além das cláusulas referidas no art. 1.332 e das que os interessados houverem por bem estipular, a convenção determinará: (...)

Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial:

I - a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas umas das outras e das partes comuns;

II - a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns; III - o fim a que as unidades se destinam.” (Grifo nosso) (BRASIL, 2002).

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Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 157-166, 2º sem. 2008 159

rEnato marCuCi barbosa da silvEira

Para isso será necessário apresentar sucintamente as características da con-

venção de condomínio, sua natureza jurídica e a forma de elaboração de suas regras

adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito, em um processo seme-

lhante ao observado nas democracias participativas, para ao final concluir que a

legitimidade daquelas regras vem do procedimento discursivo verificado no âmbito

privado dos condomínios edilícios.

Convenção de condomínio

A convenção de condomínio e o regimento interno – este como parte integran-

te daquela – são instrumentos fundamentais na organização interna do condomínio

edilício, principalmente pelo conteúdo regulamentar que apresentam, não somente

viabilizando a convivência entre os coproprietários, mas também direcionando a

administração naquela realidade condominial, estabelecendo direitos e deveres para

todos os que dela participam, principalmente o síndico, cuja atividade é acompanha-

da pelo conselho fiscal e/ou consultivo.

Em virtude da importância daqueles instrumentos no cotidiano dos condomí-

nios edilícios é que a sua elaboração deve ocorrer em conformidade com as normas

constitucionais e infraconstitucionais, relacionadas principalmente com o exercício

do direito real de propriedade, que atualmente deve buscar o atendimento da função

social trazida pela norma do art. 5° inc. XXIII da Constituição da República de 1988.

O regimento interno, instrumento complementar à convenção de condomí-

nio (art. 1.334 inc. V do CCB/02), trata de assuntos de menor complexidade e de

interesse geral dos coproprietários, como, por exemplo, os horários destinados às

mudanças, à utilização do salão de festas ou quadra etc. Não obstante, o descumpri-

mento de suas regras acarreta aplicação das penalidades previstas na convenção de

condomínio e também na legislação pertinente.

Aquela elaboração dar-se-á em assembleia geral, onde os coproprietários, uti-

lizando a autonomia privada, decidem discursiva e democraticamente o conteúdo

que os vinculará, bem como a todas as pessoas a eles equiparadas por lei e a ter-

ceiros que frequentem o edifício, sendo aquela autonomia caracterizada como “o

poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as

relações de que participam, estabelecendo-lhes o conteúdo e a respectiva disciplina

jurídica” (AMARAL, 2006, p. 345).

A vontade explicitada na convenção de condomínio objetiva, como dito, o

estabelecimento de regras pertinentes à utilização das unidades autônomas e das

áreas comuns pelos condôminos, possuidores e detentores, além da forma de ad-

ministração, da escolha do representante dos condôminos, dos gestores dos in-

teresses da comunidade condominial e das penalidades aplicáveis aos atos que

violam as regras estabelecidas naquele instrumento regimental.

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160 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 157-166, 2º sem. 2008

O procedimento discursivo de elaboração das convenções de condomínio

Natureza jurídica da convenção de condomínio

Contudo, nota-se certa desarmonia quando o tema é a natureza jurídica da

convenção de condomínio. Avvad (2006) a classifica enfaticamente como um con-

trato típico de cunho normativo celebrado por escrito, onde os coproprietários e as

pessoas a eles equiparadas por força do artigo 1.334 §2° do Código Civil Brasileiro

de 2002 deliberam a respeito das regras que terão vigência no âmbito interno do

condomínio edilício.

Por outro lado, e contando com a simpatia de vários doutrinadores pátrios,

Pereira (1998) afirma que a convenção de condomínio não possui natureza contra-

tual, haja vista que seus efeitos extrapolam os seus signatários. O autor lhe atribui

natureza de ato-regra, explicando que as normas que formam o conteúdo daquele

instrumento traduzem, indubitavelmente, a manifestação de vontade dos coproprie-

tários, perpetuando-se com o seu efetivo registro no Cartório de Registro de Imó-

veis, adquirindo força de ato jurídico, e como tal, status de fonte de direito dotada

de força coercitiva, tornando-se obrigatória e apta a coordenar o comportamento

individual do grupo de condôminos.

Na verdade, vislumbramos a convenção de condomínio como um instrumento

regimental peculiar elaborado a partir do exercício legítimo da autonomia privada de

todos os coproprietários que, reunindo-se em assembleia geral, decidem discursiva

e democraticamente o seu conteúdo, o qual vinculará a todos os coproprietários, as

pessoas a eles equiparadas por lei, bem como terceiros que frequentem o edifício.

Apesar do caráter regulamentador verificado na convenção de condomínio,

suas regras poderão ser alteradas, principalmente quando não estiverem mais ade-

quadas à legislação vigente ou àquela realidade condominial, devendo ser obedecido

o quorum estabelecido em lei para cada tipo de matéria que se pretenda alterar.

Por fim, a prefixação de certo conteúdo que deverá fazer parte das convenções

de condomínio não lhes retira a sua maior característica, qual seja, a de ser fruto da

autonomia privada dos coproprietários, através da abertura para a manifestação dos

condôminos concedida pelo texto legal.

O procedimento de elaboração das regras das convenções de condomínio

A convivência cotidiana em condomínios edilícios resulta em uma diversidade

de problemas das mais variadas espécies, desde questões pessoais entre os condô-

minos, passando por problemas econômico-administrativos para o gerenciamento e

quitação das obrigações assumidas, até questões estruturais da edificação que, não

raramente, são objeto de fiscalização do poder público municipal.

Independentemente da dimensão das edificações nas quais se estabelecem os

condomínios edilícios – dos pequenos edifícios aos grandes conjuntos habitacionais

– cada unidade autônoma possui dentro de si uma realidade diferente, com carac-

terísticas diferentes, composta por pessoas com valores e hábitos absolutamente

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Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 157-166, 2º sem. 2008 161

rEnato marCuCi barbosa da silvEira

distintos, o que vai exigir dos administradores (síndicos) uma capacidade aguçada

de resolução e apaziguamento de conflitos.

A pluralidade dos interesses verificados internamente faz dos condomínios

edilícios realidades complexas, exigindo assim a produção de regras de conduta

capazes de viabilizar harmonicamente a convivência daquela comunidade de copro-

prietários.

O pluralismo e a complexidade também são verificados em sociedades demo-

cráticas, nas quais, para alguns autores, faz-se necessária a participação dialógica

dos interessados na elaboração e aplicação de normas, como forma de lhes conferir

legitimidade através da institucionalização de procedimentos de formação racional2

e coletiva da vontade.

Para Habermas,

O Estado democrático de direito transforma-se num projeto, resultado e, ao

mesmo tempo, mola de uma racionalização do mundo da vida, a qual ultrapas-

sa as fronteiras do político. O único conteúdo do projeto é a institucionalização

progressivamente melhorada dos processos de formação racional e coletiva da

vontade, os quais não podem prejulgar os objetivos concretos dos participan-

tes. (HABERMAS, 2003b, p. 276)

Assim, a semelhança existente entre as relações intersubjetivas ocorridas em

sociedades democráticas e as relações intersubjetivas que ocorrem no âmbito con-

dominial, além do contexto pluralizado e complexo de ambos os locais onde aquelas

relações se desenvolvem, exigem dos coproprietários em condomínios edilícios a

mesma participação dialógica e democrática quando da elaboração das regras que

constituirão o conteúdo das convenções de condomínio, como forma de conferir

legitimidade àquelas regras que não retiram o seu conteúdo do texto legal.

Da mesma forma que na esfera pública, onde a administração pública busca,

por vezes, a fundamentação de suas ações no atendimento ao interesse público,3 no

âmbito condominial também se observa a necessidade de se identificar um interesse

comum àquela comunidade de coproprietários, o qual será diferente dos interesses

particulares de cada um dos condôminos.

A busca pelo interesse comum de uma comunidade condominial ocorre atra-

vés das assembleias de condôminos, que devem ser convocadas sempre que houver

2 Galuppo (2002) trata da racionalidade de uma ação na medida da possibilidade de sua fundamentação, e exemplifica tal afirmativa informando que uma escolha entre duas opções é racional quando ao sujeito for possível indicar as razões que o motivaram àquela conduta. Da mesma forma, uma pessoa é racional quando fundamenta as suas ações. Porém, “do ponto de vista do conteúdo, as normas emitidas pelo legislador político e os direitos reconhecidos pela justiça são racionais pelo fato de os destinatários serem tratados como membros livres e iguais de uma comunidade de sujeitos de direito, ou seja, em síntese: sua racionalidade resulta do tratamento igual das pessoas jurídicas protegidas em sua integridade” (HABERMAS, 2003b, p. 153).

3 Segundo Humberto Ávila (2001), não é possível descrevermos separadamente o interesse público e o interesse privado no contexto da atividade estatal, devendo a administração pública orientar-se pelo influxo dos interesses públicos, sem que possa afirmar a existência de supremacia de um sobre o outro.

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162 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 157-166, 2º sem. 2008

O procedimento discursivo de elaboração das convenções de condomínio

determinação legal (art. 1.350 CCB/02) ou quando se fizer necessária a deliberação

sobre assuntos do interesse daquela comunidade de coproprietários.

Assim, as manifestações colhidas em assembleia são fundamentais para a con-

dução da vida em condomínio, pois é através destas – desde que obedecido o quo-

rum de votação – que o síndico é votado ou destituído, as contas da administração

são aprovadas ou negadas, as penalidades a condôminos faltosos são aplicadas ou

não, e as regras da convenção são elaboradas.

Existem regras que devem fazer parte do texto convencionado por determi-

nação legal (art. 1.334 CCB/02) e, dessa forma, estabelecido o conteúdo obrigatório,

qualquer outra regra elaborada e votada em assembleia de condôminos (desde que

seu conteúdo não afronte norma constitucional ou infraconstitucional) tem aplica-

bilidade imediata no âmbito privado do condomínio edilício, independentemente de

registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Percebe-se que a instauração das assembleias de condôminos provoca a for-

mação de um “espaço” aberto à discussão, onde estarão em pauta assuntos de in-

teresse comum de todos os coproprietários; além disso, pressupondo um contexto

democrático, a todos os coproprietários devem ser fornecidas condições adequadas

de participação nas assembleias de forma a permitir que todos os interessados con-

tribuam para a criação da regra convencional.

A exigência de convocação de todos os condôminos para as assembleias ocor-

ridas no âmbito privado do condomínio edilício (art. 1.354 do CCB/02) é um exem-

plo da preocupação do legislador pátrio em garantir àqueles o mínimo de condições

de participação na elaboração das regras da convenção.

Aquele “espaço” discursivo aberto nos condomínios edilícios com a instau-

ração das assembleias de condôminos se assemelha ao que Habermas (2007) deno-

minou de “arenas”4 destinadas à formação – mais ou menos – racional da vontade a

respeito de assuntos relevantes para o todo social. Porém, há diferenças e uma delas

está no fato de que o condômino exerce influência direta na construção racional da

regra convencional, buscando, através de um “agir comunicativo”,5 o melhor argu-

mento que convença e que tenha condições de ser sustentado publicamente como

solução representativa dos interesses daquela realidade condominial.

4 Habermas (2007) trata desses espaços informais de surgimento da opinião e vontade políticas, quando esclarece as características que a sua teoria do discurso guarda de semelhantes com as formas republicanas de formação da vontade, de como aquela teoria se torna dependente da institucionalização de procedimentos de efetivação de políticas deliberativas e de sua intersubjetividade presente em processos de entendimento passíveis de cumprimento através de formas institucionalizadas no parlamento, e através da opinião pública de cunho político em redes de comunicação sem sujeito. Para o autor, essas redes de comunicação formadas interna e externamente nas corporações políticas programadas para a tomada de decisões é que provocariam o aparecimento das arenas de elaboração (mais ou menos) racional da opinião e da vontade acerca de temas relevantes.

5 Galuppo (2002) trata do “agir comunicativo” e do “agir estratégico” da teoria do discurso de Habermas, informando que aquela ação racional tem por objetivo a formação do consenso, pressupondo transparência no comportamento do agente; já o agir estratégico é aquele em que o agente utiliza outrem como instrumento adequado para a realização de um fim desejado.

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rEnato marCuCi barbosa da silvEira

Através desse “agir comunicativo” manifestado em assembleia e vocaciona-

do ao convencimento racional do interlocutor, surge um potencial legitimador das

decisões tomadas coletivamente, semelhante (guardadas as devidas proporções) ao

“poder comunicativo” presente na teoria do discurso de Habermas e elucidado por

Galuppo (2002), que o conceitua como um poder formado a partir da vontade ou

opinião pública geral em um processo comunicativo ausente de coerção, sendo esse

poder capaz de legitimar o direito, exercido por meio da política.

Nesse processo de formação da vontade e opinião pública,

o discurso de fundamentação assume um papel central, vez que harmoniza pre-

ferências concorrentes e fixa a identidade pessoal/coletiva de uma sociedade,

na qual concorrem discursos de autoentendimento e negociações/barganhas de

interesses. Os valores fundamentais de uma sociedade são identificados, pon-

derados e acomodados entre si. O legislador político constrói essa identidade

lançando mão de forma irrestrita de argumentos normativos e pragmáticos, por

meio do consenso ou de negociações equitativas. (CRUZ, 2008, p. 203)

Portanto, a participação dos condôminos na elaboração das regras que for-

mam o conteúdo das convenções de condomínio é fundamental para que se lhes

atribuam legitimidade perante a comunidade de coproprietários. Tal participação

dar-se-á por meio de um procedimento discursivo colocado à disposição de toda a

comunidade de coproprietários, o qual estabelecerá iguais condições de participa-

ção para todos.

Repita-se que o objetivo deste trabalho é justificar, perante a comunidade de

coproprietários, a legitimidade das regras das convenções de condomínio elabora-

das pelos próprios condôminos reunidos em assembleia geral e através da permis-

são concedida pela norma do artigo 1.334 caput do CCB/02, pois as regras incluídas

nos textos convencionados em virtude de determinação legal retiram sua legitimida-

de do processo legislativo ao qual foram submetidas para a sua promulgação.

A participação capaz de atribuir legitimidade a uma regra diz respeito ao que

Galuppo (2002) denominou de “potencialidade de participação”, ou seja, se os des-

tinatários tivessem participado do discurso de construção da regra, pressupondo

que as condições de participação tivessem sido garantidas a todos os interessados e

sendo estes perfeitamente racionais (aderindo ao melhor argumento – aceitabilidade

racional), teria sido elaborada uma determinada regra e não outra. Dessa forma, a

legitimidade de uma regra não está ameaçada por um envolvido que se recusa a par-

ticipar do procedimento discursivo de sua criação.

As próprias convenções de condomínio podem estabelecer o procedimento

através do qual serão elaboradas as suas regras, ou realizadas as suas modificações,

estabelecendo datas para a realização das assembleias, formas de convocação dos

interessados, definição dos assuntos constantes na pauta de discussão, forma de

votação e as regras para a escolha do melhor argumento.

O discurso entre os coproprietários ocorrerá de forma a se buscar o melhor

argumento (racional) capaz de sustentar-se publicamente através da crítica dos

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O procedimento discursivo de elaboração das convenções de condomínio

demais interlocutores e de encontrar soluções para os interesses da comunidade

condominial.

A escolha poderá ocorrer através da “regra da maioria”, porém esta por si

só não atribui legitimidade às regras da convenção de condomínio, devendo ser

observada a racionalidade do processo dialógico/discursivo que antecede a efetiva

escolha, onde aos diversos interessados são disponibilizadas condições igualitárias

de participação e fala. Em sentido análogo, Habermas trata da validade das normas

do direito, estabelecendo que:

A legitimidade de regras se mede pela resgatabilidade discursiva de sua pre-

tensão de validade normativa; e o que conta, em última instância, é o fato de

elas terem surgido num processo legislativo racional – ou o fato de que elas

poderiam ter sido justificadas sob pontos de vista pragmáticos, éticos e morais.

(HABERMAS, 2003a, p. 50)

De qualquer maneira, as regras presentes nas convenções de condomínio que

não se submeteram a um procedimento racional e discursivo de legitimação em

assembleias de condôminos são carentes de legitimidade perante a comunidade de

coproprietários, haja vista que estes não reconheceriam, no conteúdo daquelas “re-

gras”, um interesse democraticamente deliberado.

A respeito do fator de integração da sociedade e do Estado na teoria haber-

masiana, através do reconhecimento do cidadão na produção e aplicação normativa,

Álvaro Ricardo de Souza Cruz estabelece:

A integração social não ficaria dependente de se conceber um direito natural

antecedente ao Estado ou da materialização de virtudes éticas no conjunto de

cidadãos capazes de agir, vez que a mesma se faria pela institucionalização de

procedimentos de criação e aplicação normativa, cuja racionalidade argumen-

tativa permitiria a todos perceberem-se não apenas como destinatários, mas

como verdadeiros autores do ordenamento jurídico. (CRUZ, 2008, p. 176-177)

O assentimento fundamentado pelo condômino perante a regra discutida e

convencionada em assembleia impede que esta seja vista como uma ordem, pos-

sibilitando o seu reconhecimento como um “enunciado normativo”6 a ser seguido

espontaneamente por todos os que habitam ou frequentam um determinado edifício

sobre o qual vigoram as regras de uma convenção de condomínio democraticamente

elaborada.

6 “A pretensão de correção normativa corresponde ao mundo intersubjetivo e refere-se à correspondência entre as normas elaboradas para a condução da ação social (e individual) e a solução dos conflitos práticos da própria realidade social. Os enunciados referentes ao mundo objetivo são chamados de descritivos ou representativos, os enunciados referentes ao mundo subjetivo são chamados de expressivos e os referentes ao intersubjetivo são chamados de normativos (ou prescritivos)” (GALUPPO, 2002, p. 118).

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rEnato marCuCi barbosa da silvEira

Conclusão

Tentamos demonstrar que a expansão dos centros urbanos exigiu a criação

de novas formas de utilização do solo, compatibilizando um grande contingente

populacional com o espaço limitado para as edificações destinadas ao domicílio e às

atividades comerciais.

Nessa realidade, surgem os edifícios compostos por unidades autônomas se-

paradas através de plataformas horizontais, sob os quais pode ser constituída uma

forma especial de condomínio denominado em nosso ordenamento jurídico de con-

domínio edilício.

Pereira (1998) caracteriza o condomínio edilício como um “conceito condomi-

nial novo”, onde se concilia o poder do dono da coisa com outros coproprietários que

exercem, igualitariamente, direito real de propriedade sobre partes comuns; assim,

o direito de cada condômino caracteriza-se pela combinação entre o seu direito de

propriedade independente sobre a unidade autônoma e a comunhão entre os demais

condôminos nas denominadas partes comuns, originando um direito complexo.

Torna-se imprescindível a presença de regras no âmbito privado dos condo-

mínios edilícios destinadas à viabilização da convivência em comunidade e da ad-

ministração realizada pelo síndico, haja vista que as relações intersubjetivas que se

observam naquele ambiente retratam, guardadas as devidas proporções, a dinâmica

das relações verificadas nas esferas públicas de democracias participativas, volta-

das à manifestação do cidadão para a construção do interesse público.

O instrumento que abriga todas aquelas regras é a convenção de condomínio,

cujo conteúdo possui regras elaboradas a partir da discussão democrática entre os

coproprietários, mediada por um procedimento dialógico que se instaura toda vez

que os condôminos se reúnem em assembleia geral para deliberarem sobre algum

assunto que diga respeito àquela comunidade peculiar.

A instauração válida das assembleias de condôminos provoca a formação de

um “espaço” aberto à discussão, onde estarão em pauta assuntos de interesse dos

coproprietários; além disso, pressupondo o contexto democrático, a todos os co-

proprietários devem ser fornecidas condições adequadas de participação nas as-

sembleias de forma a permitir que todos os interessados contribuam, nos limites

impostos pelo Código Civil de 2002, para a criação das regras da convenção de

condomínio.

É através daquela participação que as regras constitutivas das convenções

de condomínio adquirem legitimidade perante a comunidade de coproprietários.

A participação dar-se-á por meio de um procedimento discursivo que estabelecerá

iguais condições de participação a todos os coproprietários, para que, ao final, estes

possam se sentir como autores das regras convencionadas e não apenas seguidores

de ordens.

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166 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 157-166, 2º sem. 2008

O procedimento discursivo de elaboração das convenções de condomínio

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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

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167

Codificaçãoeinterpretaçãonodevirhistóricodaexperiênciajurídicaromana(Codification and interpretation in the historical development of the Roman juridical experience)

saulo dE olivEira pinto CoElho*

R E S U M OEstudam-seosaspectosdaexperiênciahermenêuticadosromanoscapazesdeauxiliarnaclarificaçãodarelaçãoentrecodificaçãoeinterpretaçãodoDireito,lançando-sebasesparaumamelhorcompreensãodessaquestãonostemposatuais.Entendendo-seoDireitoRomanocomomatrizhistóricadaracionalidade jurídica, recorre-seaoplanodarica simbioseentreHistóriado Direito, Direito Romano e Hermenêutica Jurídica, para problematizaruma das questões que mais tem perturbado a Dogmática do períodocontemporâneo,a saber:qualificaramedidacorretadaspossibilidadesdeatuaçãodohermeneutanumsistemadeDireitocodificado.

P A L A V R A S - C H A V EHermenêutica;Direitoromano;Codificações.

A B S T R A C TThispaperdealswithaspectsofthehermeneuticexperienceofancientRomecapable of clarifying the relation between the interpretation of Law anditscodification,thuscontributingtoabettercomprehensionofthismatterat present. Considering Roman Law the historical foundation of juridicalrationality,itfocusesonthesymbiosisbetweenHistoryofLaw,RomanLawand JuridicalHermeneutics, so as to question one of themost disturbingissues of contemporary Dogmatics: qualifying the correctmeasure of thepossibilitiesofhermeneuticswithinasystemofCodifiedLaw.

K E y w O R D SHermeneutics;Romanlaw;Codification.

* Mestre e doutorando junto ao Programa de Pós-graduação em Direito da UFMG, professor na graduação em Direito da PUC Minas, Unidade Serro, e faz parte do rol de professores do Instituto de Educação Continuada – IEC, da PUC Minas, lecionando notadamente módulos em Hermenêutica e Interpretação.

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Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

Considerações iniciais

O presente artigo tem por finalidade o estudo de aspectos da experiência her-

menêutica dos romanos capazes de nos auxiliar na clarificação da relação entre co-

dificação e interpretação do Direito, lançando bases para um melhor entendimento

dessa questão nos tempos atuais.

O Direito é fenômeno histórico-cultural. A análise da evolução histórica da

estrutura jurisprudencial ajuda-nos a contextualizar e entender melhor o presente,

bem como as perspectivas futuras. É com base nessa análise que procuraremos en-

tender a Interpretatio romana como esquema do pensar jurídico.

Percorrendo os movimentos de experiência da consciência jurídica em Roma

(Cf. SALGADO, 2001), evidencia-se que a racionalidade do Direito já se encontra for-

matada na jurística do Lácio. Em outras palavras, em Roma encontramos a matriz

racional do Direito:

É como tal justamente que ele é e continuará sendo também, não só entre nós,

como lá fora, o mais consumado e perfeito instrumento de cultura histórica

e científica do Direito, cabendo-lhe, ainda hoje, um largo papel educativo na

formação do espírito e do pensamento jurídicos modernos. (MONCADA, 1923,

p. 2)

Apontaremos, baseados principalmente nos dizeres de Moncada (1923, p.

2-15) a esse respeito, três considerações para afirmar a utilidade e a importância do

estudo do Direito Romano ainda hoje.

Primeiramente, o fato de o Direito Romano ser ainda hoje a mais importante

fonte material1 do direito moderno, influindo consideravelmente sobre o conte-

údo dos sistemas normativos atuais. Mesmo com a drástica evolução tecnológica

da civilização contemporânea nos últimos oitenta anos (a partir da Primeira Grande

Guerra), essa afirmação, feita na década de 1920, permanece válida e, a nosso ver,

reforçada pela presença cada vez maior da estrutura da Ética ocidental nos diversos

cantos do globo terrestre, notadamente no que tange à Justiça formal (Cf. SALGADO,

2006). Mesmo em outras civilizações contemporâneas, essa influência de conteúdo

(possibilitada pela implementação da estrutura jurídica ocidental nessas culturas)2

sobreviveu, visto que se adaptou às mudanças profundas de conteúdo axiológico,

tanto no que tange às transformações nas culturas ocidentais nos últimos dois mil

anos, quanto no que tange às novas culturas com as quais travou novamente conta-

to, sobretudo a partir do imperialismo moderno.

Ora, o conhecimento deste direito não pode deixar de ser de grande utilidade

no estudo dessas legislações e no exercício das diversas profissões jurídicas,

1 Se é que podemos nos referir com precisão a fontes materiais do Direito, questão inclusive interessantemente debatida por Saldanha em sua Sociologia do Direito (2005, p. 143-157).

2 Para uma interessante leitura acerca da problemática questão da exportação e importação do Direito europeu nas Américas, nas diversas culturas orientais e na África, veja-se o ensaio de Direito Comparado de Eric Agostini (2001).

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saulo dE olivEira pinto CoElho

podendo concorrer muitas vezes para uma melhor inteligência das leis moder-

nas na determinação do sentido de muitas das suas disposições. (MONCADA,

1923, p. 10)

Em segundo lugar, ressalte-se sua vocação para uma estrutura científica,

que faz com que, malgrado o espírito prático do saber jurisprudencial em Roma,

o interesse no Direito Romano vá além da imediata análise específica de sua iden-

tificação com os institutos jurídicos modernos. “É que o direito romano é indiscu-

tivelmente, como já se tem dito, o ponto de partida de todo o estudo científico do

direito. O jurisconsulto encontra aí uma escola consumada de lógica e de raciocínio

jurídico” (MONCADA, 1923, p. 11). Mais que os conteúdos normativos, são legatários

incontestes do Direito Romano a estrutura formal do Direito ocidental e o respecti-

vo raciocínio jurídico organizado, advindo do seu conhecimento.3 Evidentemente,

um sistema interpretativo consistente acompanhou a formação dessa racionalidade

jurídica e fomentou o que podemos chamar a categorização do Direito. Esse Direito

categorizado revela-se na Justiça formal e na Justiça material; nesta última, a aplica-

ção do Direito atribui à hermenêutica uma função ancilar na busca de efetivação do

justo (Cf. SALGADO, 2006).

Por fim, evidencia-se o valor histórico e filosófico de seu estudo na for-

mação cultural do jurista e a influência desse estudo para a compreensão do

fenômeno jurídico e hermenêutico. Trata-se de um Direito rico e monumental, em

virtude principalmente do inédito percorrer de mil e trezentos anos em que se ex-

perimentou uma “rica variedade de fases de desenvolvimento”. Particularmente ao

hermeneuta, esse caminhar histórico de um sistema jurídico por séculos e séculos,

adaptando-se às mais diferentes estruturas políticas e à evolução axiológica por que

passou a civilização romana, representa oportunidade única de reflexão acerca de

uma questão essencial da ciência jurídica, a atualização do Direito:

O direito, como todas as outras manifestações de vida dos povos, como a arte

e a literatura, sendo simultaneamente um produto da consciência e das condi-

ções de existência e desenvolvimento das sociedades, modifica-se e varia cons-

tantemente em função das modificações que, a cada momento, se produzem

em todos os outros fatores da vida social. (MONCADA, 1923, p. 13)4

O estudo histórico do Direito Romano é, nesse sentido, fundamental para a

compreensão de como o Direito evolui, tendo em vista suas próprias características,

quais sejam: a universalidade, a imperatividade e a atributividade, consubstanciadas,

de certa forma, na ideia de Lei (Cf. SALGADO, 2006, p. 67-87), que, numa primeira

análise, poderia indicar uma certa incapacidade do Direito de evoluir constantemente

3 Devemos, porém, fazer uma distinção clara entre o modo romano de conhecer e aplicar o Direito (uma prudência prática, tópica, dialética) e a organização e abstração cada vez mais acentuada do Direito, dada a partir da recepção do Direito Romano e da eclosão do jusracionalismo moderno.

4 Pelo mesmo motivo, Emilio Betti procedeu a uma profunda investigação da Jurística Romana, para dali revelar uma teoria da interpretação capaz de dar conta das exigências de correção (justiça) e segurança jurídica, condições inafastáveis de uma sólida atividade interpretativa do Direito (Cf. BETTI, 1949).

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Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

– uma cristalização – não cumprindo seu compromisso ético de realizar o justo a

cada decisão. Surge daí a importância da função atualizadora da interpretação e do

exemplo romano acerca dessa questão.

Se o Direito Romano constitui a gênese e o pilar sustentador dos atuais orde-

namentos jurídicos ocidentais – como o Direito italiano, o alemão, o francês e os or-

denamentos jurídicos ibero-americanos, a Interpretatio romana representa a matriz

histórica da própria lógica jurídica contemporânea – entendida como lógica da inter-

pretação/aplicação do Direito (numa espécie de método jurídico). Por conseguinte, é

ela a matriz interpretativa do Direito ocidental.

No presente trabalho, será necessário fazer valer a riquíssima simbiose entre

História do Direito, Direito Romano e Hermenêutica Jurídica para problematizar uma

das questões que mais tem perturbado a Dogmática Jurídica do período contempo-

râneo, a saber: qualificar a medida correta das possibilidades de atuação do herme-

neuta num sistema de Direito codificado.

Dada nossa pretensão de entender o papel do hermeneuta em nosso atual sis-

tema jurídico codificado, cabe esclarecer alguns pontos de partida do debate.

Primeiramente, não podemos mais entender de modo estanque as atividades

de interpretação, integração e aplicação da norma jurídica. Tais procedimentos são

momentos que podem ser individuados, porém jamais separados na realidade do

processo atualizador do Direito. Devemos considerar como hermenêutica a ativi-

dade conjunta e inerente de interpretação e aplicação do Direito. Portanto, sujeitos

dessa problemática são todos aqueles envolvidos nessa atividade, incluindo (por

que não?) a figura do juiz, o magistrado enquanto terceiro neutro que, na jurística

romana de estrutura formular,5 tem, naquilo que vem a ser a coisa julgada, o papel

de dizer o Direito na junção do momento abstrato da Lei com o momento concreto

de efetivação do justo nela previsto.

Em segundo lugar, necessário é estabelecer as bases do problema em ques-

tão. O pano de fundo de nosso estudo é, na verdade, o tema da difícil superação de

duas visões opostas acerca do método jurídico, construídas a partir das codificações

modernas e ainda presentes na dogmática jurídica: por um lado, temos o ranço lega-

lista – ou positivista-legalista (Cf. GILISEN, 2003, p. 515-517) ou até mesmo legalista-

fetichista, como da Escola de Exegese –; por outro, temos a reação imediata a essa

postura, representada pela Escola do Direito Livre. Ambas são visões reducionistas

do Direito (Cf. REALE, 2002, p. 410-493), provocadas pela eleição, já na primeira fase

do Direito moderno (Cf. REALE, 1990), da regra legal codificada como fonte primeira

da juridicidade. O problema da redução total do Direito positivo ao Direito codifi-

cado produziu efeitos nefastos nas práticas prudenciais e, a nosso ver, é também a

causa de reações precipitadas, que contribuíram para aumentar a miopia do Direito

moderno quanto à natureza da relação entre a atividade criativa (enquanto atuali-

zadora) do intérprete do Direito e o sistema jurídico, em si mesmo codificado. Tal

5 Primeira e segunda fases da história do processo jurídico romano. Para uma leitura acerca do papel concretizador do processo romano, ver Martino, 1937.

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problema é, no fundo, o mesmo enfrentado por Betti, e motivou sua procura pelos

cânones hermenêuticos, inspirados na jurística romana (Cf. BETTI, 1949).6

Nessas visões estreitas, ou o intérprete é mera boca da lei, ou seja, aplica de

modo avalorativo o direito codificado, procedendo – como se fosse possível – ao

mero deslocamento, à mera translação, ipsis litteris, daquela anterior valoração da

realidade, produzida na regra abstrata, para o momento posterior do caso concreto,

mecanicamente (é o caso paradigmático da Escola de Exegese); ou ele, reagindo ao

posicionamento anterior, não tem nenhuma obrigação para com o respeito à Lei,

sendo “livre” – como se isso fosse liberdade – para decidir as questões da vida do

modo como percebesse ser o mais justo (é o caso da Escola do Direito Livre). No

primeiro caso, há apego exagerado à pseudossegurança7 da prática de um silogismo

meramente formal; o intérprete não interpreta, nem mesmo (re)produz, é peso morto

na tarefa do Direito de realizar a justiça. Já no segundo caso, teria ele de ser um

superjurista, capaz de sempre traduzir virtuosamente e do modo mais adequado

o problema apresentado na concretude da vida, para elaborar uma regra sempre

justa para cada caso – mesmo que aqueles que se submetam às suas prolações não

possuam a mínima ideia prévia daquilo que ele irá declarar como justo, lícito e como

injusto, ilícito. Em ambos os casos, temos opositora ausência de segurança jurídica,

apenas dada por motivos diferentes. Tais concepções da interpretação no Direito,

que pretendemos afastar e que foram aqui representadas nas figuras da Escola da

Exegese e da Escola do Direito Livre, encarnam posturas ainda hoje percebidas –

ou expressamente ou como pano de fundo referencial da vida do Direito ocidental

contemporâneo.

Esse é o quadro motivador da presente investigação. Mas por que falaremos de

“codificações no Direito romano” para entender e oferecer esclarecimentos acerca

dessa questão? Pelos motivos já indicados no início desta apresentação e porque,

da experiência romana, podemos extrair variadas situações em que a relação entre

interpretação e codificação do Direito produziu avanços e lições quanto às caracte-

rísticas da disciplina interpretativa no Direito.

Para tanto, precisaremos percorrer, com essa preocupação específica, à inte-

gralidade do devir histórico da vivência jurídica desse povo. É que, acerca da codifi-

cação em Roma, muito se fala sobre o “período das compilações do Direito romano”,

na época pós-clássica, sobretudo quanto àquela empreendida por Justiniano, mas a

6 Cesarino Pessoa comunga da mesma opinião acerca do problema motivador da construção da teoria hermenêutica bettiana: superar as limitações dos extremos paradigmáticos da jurisprudência moderna representados por essas duas escolas (Cf. PESSOA, 2002, p. 89-113).

7 Assevera Plauto Faraco de Azevedo a esse respeito: “É em nome da segurança jurídica que se quer assim manietar o juiz e minimizar a função judicial. Sucede que esse juiz-computador, esse aplicador mecânico de normas, cujo sentido não lhe é dado aferir, e cujos resultados na solução dos casos concretos lhe é defeso indagar, este juiz assim minimizado e desumanizado, não é, de forma nenhuma, capaz de realizar a segurança jurídica. Preso a uma camisa-de-força teorética que o impede de descer à singularidade dos casos concretos e de sentir o pulsar da vida que neles se exprime, esse juiz, servo da extremada legalidade e ignorante da vida que neles se exprime, o mais que poderá fazer é semear a perplexidade social e a descrença na função que deveria encarnar e que, por essa forma, nega. Negando-a, abre caminho para o desassossego social e a insegurança jurídica” (AZEVEDO, 1989, p. 25).

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Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

experiência dos romanos com a ideia de codificação é muito anterior a essa época.

Abordaremos, por isso, três momentos distintos da história romana: primeiro, o

momento da codificação do ius civile, na experiência histórica da Lei das XII tábu-

as; depois, o da codificação do ius honorarium, na experiência do Édito Perpétuo

de Salvio Juliano, confeccionado por ordem do Imperador Adriano; e, por último, e

talvez aquele momento mais relevante para a nossa investigação, o da codificação

derradeira de todo o Direito romano, no Corpus Iuris8 de Justiniano, notadamente

como momento de codificação do ius prudentium, no Digesto.

Esperamos, com esse panorama da experiência codificadora do Direito nas

várias fases da história jurídica romana, entender melhor a relação entre formulação

(formalização) abstrata do Direito e interpretação, lançando, então, um olhar reno-

vado, porque amadurecido, sobre a questão da interpretação no Direito moderno

codificado.9

O sentido de “interpretação” na cultura jurídica romana Interpretatio romana como método da Justiça

A tradição romana da interpretatio revela a base de uma visão ética da apli-

cação do Direito enquanto instrumento possibilitador da ideia de justiça, capaz de

hodiernamente fornecer as estruturas fundamentais para uma sólida formação do

aplicador do Direito.

Ela surge na jurística romana como “método do direito” (meta+odos, caminho

para o Direito, ou caminho para a realização da justiça por meio do Direito) na busca

de efetivação do justo. Esse método, histórico (porque reconstrói a verdade histó-

rica) e dialético (porque capaz de um silogismo que não é puramente mecânico),

pode ser percebido na atuação do jurista, traduzida em três verbos: cavere, agere e

respondere.10

O método do Direito encontra-se, assim, irrefragavelmente ligado aos textos.

Por isso a metodologia jurídica é, por um lado, uma Hermenêutica, e, por outro,

uma Retórica. O jurista lê textos e cria textos. Em ambos os casos, interpreta.

Poderíamos ser tentados a afirmar a prevalência de uma das faces desse Jano

8 Expressão desconhecida no momento de produção da codificação justiniana.

9 As expressões “codificação”, “Direito codificado” e “Código” assumem, neste trabalho, uma ampla conotação. Referir-se-ão também à ideia de compilação, para que possamos utilizar a mesma expressão para os vários momentos da história romana em que certa ou certas fontes jurídicas foram reunidas e cristalizadas em um único texto. Veremos que essa é a essência da ideia de codificação: a importante organização do Direito em seu momento abstrato, para que, atendendo-se dessa forma à ideia de previsibilidade e clareza do Direito, possa o intérprete atuar com maior liberdade na busca pelo sentido justo da Lei em cada caso concreto, sem com isso ferir a noção de segurança jurídica.

10 O cavere é a profilaxia, o aconselhamento, em que a dialética exerce-se surdamente, no antecipar de argumentos e posições contrárias; está ligado à virtude da prudentia. É a consultoria que diz o certo e o errado no plano abstrato, envolve uma interpretação da norma no plano da abstração. O agere, momento mais claramente retórico e função por excelência do advogado, é a assistência a uma parte, o tomar posição no processo. Já o respondere são as respostas, as responsa, quer proferidas pelos pretores, quer proferidas nos pareceres dos prudentes. É o momento último da atualização do Direito, na aplicação que diz o Direito no caso concreto (Cf. VILLEY, 1991, p. 76).

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interpretativo sobre a outra. Mas não traduziríamos fielmente seu sentido para

os romanos. (...) E poderíamos dizer que a Metodologia do Direito é sobretudo

um trabalho de Interpretatio. Na própria feitura das normas, interpreta-se o

real e criam-se textos que são também seus instrumentos de interpretação. No

pleitear, de novo se interpreta, como vimos. E também no julgar. Não custará

por isso afirmar que a metodologia do Direito é uma Hermenêutica, ou uma

Retórica. Para evitar anfibologias, diríamos que é ambas as coisas. Ou a mesma

coisa que sob essas duas capas se manifesta. A expressão Interpretatio parece,

pelo menos em certo sentido, ser capaz de fundir os dois vetores, as duas ra-

cionalidades, as duas preocupações. (CUNHA, 2004)

Procuraremos retratar a Interpretatio como Hermenêutica, saber que capta da

Lei sua força (vontade) e potestade (razão de ser), ou seja, a racionalidade contida no

elemento volitivo pelo qual se manifesta a Lei; e, nesse sentido tomado, inspirado no

jurisconsulto Celso, pôde Salgado (2001, p. 85) proceder à sua conceitualização:

“Hermenêutica é a fenda da lei, aberta pelo intérprete para revelar-lhe todo o

conteúdo de significação com a finalidade prática de uma decisão justa, comprovada

nos efeitos justos de sua aplicação”.

A cada aplicação do Direito, a cada decisão proferida nos tribunais, temos a

confirmação desse movimento reforçado pela dimensão ética desse ato de efetiva-

ção. Interpretar o Direito de forma a possibilitar que à objetividade da lei una-se a

correspondente justiça dos atos humanos é a função do aplicador do Direito. Em

outros termos, a interpretatio é o método pelo qual o jurista elimina a summa iniuria

da leitura abstrata da norma objetiva, concretizando a ideia de justiça de seu tempo,

como elemento possibilitador de nossa sociedade.

A bipolaridade de sentido da interpretação em Roma tomada em sua dimensão histórica

Não obstante o sentido acabado da atividade interpretativa desenvolvido pe-

los romanos e apresentado na síntese reveladora de Salgado, mister se faz uma

compreensão histórica da noção de interpretação para os romanos e, nesse cami-

nho, identificar dois sentidos distintos para o que se conhece por interpretação

em Roma. Um original significado, mais ligado aos primeiros períodos da história

romana e um segundo, voltado para o momento final dessa história jurídica, con-

siderado pela doutrina muito mais próximo da noção que hoje atribuímos à inter-

pretação no Direito.

Com Moncada (1923, p. 41), podemos assim definir esse primeiro sentido:

No mais antigo direito, como se sabe, o costume predominava sobre a lei ou

norma escrita e esta ocupava aí, no sistema jurídico em conjunto, um lugar

muito diferente daquele que ocupa no direito moderno e ocupou ainda no direi-

to romano desenvolvido. Ao passo que nesse último a lei pretende ser a expres-

são de todo o direito que deve vigorar em um dado momento, no antigo direito

romano, pelo contrário, a lei constituía uma verdadeira exceção no conjunto

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Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

das normas jurídicas e ao lado dela existia, com um vasto campo de ação, o

costume. Ora, enquanto foi assim compreende-se como deve necessariamente

existir um ou mais meios de suprir na vida jurídica prática a falta ou a raridade

das disposições legislativas, extraindo do direito consuetudinário tudo que era

preciso para regular as múltiplas relações dessa vida jurídica, as acompanhar

no seu desenvolvimento e, enfim, conservar sempre o direito ao nível das res-

tantes condições da vida social.

Por isso, esses intérpretes (primeiramente os sacerdotes e, depois, os juris-

consultos republicanos) eram chamados de iuris conditores, os legum inventores.

Completa Moncada (1923, p. 42):

“Sua interpretação, em vez de ser, como a do juiz moderno, um trabalho me-

ramente receptivo, subordinado a um texto, foi antes um trabalho original de cons-

tante criação de novas formas jurídicas”.

A iuris interpretatio era, portanto, algo diferente do sentido que hoje a ex-

pressão possui no Direito moderno. Era entender as necessidades da vida social,

as exigências de justiça que dali advinham e, então, dar origem (forma, fonte) a um

direito. Interpretar era o mesmo que elaborar racionalmente o Direito com base nos

mores sociais, recebendo dos mores o parâmetro de justiça informador do Direito.

Nos períodos finais do Direito romano, porém, a interpretação tem um sentido

muito mais próximo do atribuído no Direito moderno:

Logo que a presença da Lei reduziu ao mínimo a esfera de ação do costume e o

Estado enfim interveio ativamente na criação do direito, então a interpretação

tornou-se naquilo que já foi dito, na forma de atividade mental destinada uni-

camente a surpreender o sentido exato e completo de um texto. (...) Essa nova

concepção das relações entre a lei e o intérprete acha-se sobretudo na Constitui-

ção Tanta que acompanhou o Digesto. (MONCADA, 1923, p. 43)

Mas, entre esses dois momentos historicamente extremados da jurística ro-

mana, haveria um meio de perceber qual o verdadeiro sentido que a interpretação

possuía para os romanos?

Bom, no momento podemos apenas oferecer a seguinte reflexão como respos-

ta: mesmo no Período Imperial (especificamente no Principado, período bem anterior

a Justiniano), quando o Direito romano tornava-se cada vez mais formalizado, pré-

vio e abstrato, e a ideia de Lei ganhava cada vez mais relevância, os juristas nunca

deixaram de reconhecer a imprescindibilidade da atividade interpretativa como ati-

vidade de adequação do direito, bem como o seu papel-chave na construção de uma

realidade jurídica efetivamente justa. Assim, a atividade de interpretação jurídica

em Roma nunca deixou de ter incutida em si o sentido de atividade de concreção,

com-criação (Cf. REALE, 1977, p. 55-74) do Direito. Mister se faz colacionar exemplos

desse posicionamento nas seguintes passagens da Codificação Justiniana:

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Bonna est lex, si quis ea legitime utatur.11

Non dubium est legem committere eum, qui verba legis amplexus, contra

legis nititur voluntatem ( ). In fraudem vero facit qui, salvis legis verbis,

sententiam ejus circumvenit.12

O papel do intérprete é mais do que o de operador passivo do já produzido

abstratamente como justo, ele é o juiz da própria Lei, enquanto aquele que a retifica,

na busca de sua adequação, no casamento dessa com a equidade (correção) no mo-

mento de concretização desse justo abstrato como justo efetivo:

Placuit, in omnibus rebus praecipumam esse justitiae aequitatisque, quam

stridti júris, rationem. Eligemdum est quod minimum habet iniquitatis.13

Impossível negar o caráter criativo e construtivo do intérprete; a Lei não é o

momento acabado da Justiça, mas o importante e indispensável ponto de partida

para sua efetiva realização.

Interpretatio illa sumenda quae magis convenit subjectae materiae;14

Quoties idem sermo duas sententias exprimit, ea potissimo excipiatur, quae

rei gerendae aptior est.15

Essa é a visão amadurecida do Período Clássico do Direito romano sobre a

interpretação. Essas passagens dos jurisconsultos clássicos foram compiladas no

Digesto de Justiniano, apesar de sua insistência, como veremos, na ideia de que o

aplicador do Direito não poderia ser intérprete do mesmo.

A interimplicação entre interpretatio e categorização do Direito em Roma

A relação entre interpretatio e categorização do Direito deve ser vista como a

chave para o entendimento do amadurecimento pelo qual passou o sentido da ativi-

dade interpretativa em Roma. Mais que isso, deve servir para elucidar o real sentido

da evolução dessa atividade, livre dos excessos de restrição de seu papel, cometidos

no período das compilações.

11 Paul. A Thimoth. 1, cap.1,v. 8: “A lei é boa, desde que dela se faça uso legítimo” (apud BAPTISTA, 1984, p. 3).

12 L. 5, C; de legib: “Não há duvida de que infringe a lei quem, respeitando as palavras da lei, desvia-lhe o sentido”. L. 29, ff; de legib: “Labora efetivamente em fraude quem, respeitando as palavras da lei, desvia-lhe o sentido” (apud BAPTISTA, 1984, p. 47).

13 L Placuit, 8, Cod; de iudiciis: “Houve-se por bem que, em todas as coisas, predominasse mais a razão da justiça e da equidade do que do estrito direito”. L. Quoties, D; de dol. mal. et met. Except, 44, 4: “Deve-se escolher o que tenha o mínimo de iniquidade” (apud BAPTISTA, 1984, p. 17).

14 Menoch; Consil. 179, nº 14: “Deve ser tomada a interpretação que mais convém à matéria em foco” (apud BAPTISTA, 1984, p. 20).

15 Dig. L. 67, de regul iuris: “Todas as vezes que a mesma frase exprime dois significados, deve-se aceitar preferentemente aquele que é mais apto para exprimir o sentido no caso concreto” (apud BAPTISTA, 1984, p.34).

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Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

O movimento de aquisição da consciência jurídica em Roma, somente pos-

sível em virtude da influência do logos grego no gênio romano, revela a natureza

universalizante do Direito; primeiro na universalidade da lei, depois na da aplicação,

racionalmente construída por meio da actio (Cf. SALGADO, 2001, p. 22).

A consciência jurídica opera o trânsito da consciência moral do justo, isto é, do

sujeito do dever moral para a consciência do justo centrada no sujeito de direi-

to, segundo a expressão do ius suum da definição de Ulpiano, mostra a natureza

recognitiva e atributiva de um sujeito universal, um nós, quer no processo de

elaboração, quer no de aplicação, cuja decisão se fundamenta racional e objeti-

vamente na norma jurídica. (SALGADO, apud FERREIRA, 2002, prefácio)

Da universalização do justo na Lei (Ius) à efetivação deste na decisão (iurisdic-

tio), o gênio romano vai progressivamente categorizando o saber do Direito e desen-

volvendo, de forma conjunta, uma “arte” de interpretar, de conhecer para aplicar, a

que damos o nome de interpretatio.16

Ao mesmo tempo em que, pela interpretatio, categorizava-se o Direito vigente,

quando da sua aplicação, era essa mesma categorização produzida pela interpreta-

tio que possibilitava a própria construção de uma legislação. Por isso, era mútuo o

movimento entre interpretação e declaração do Direito, ou melhor, entre o momento

abstrato e o momento concreto da declaração do Direito (jurisdição).

Os romanos souberam como nenhum outro povo fazê-lo, através da ordena-

ção sistemática de categorias formais (lei) com que se estabeleceram as insti-

tuições jurídicas na disciplina do caos social, e depois através das categorias

reais. Categorias formais ou simbólicas (lei) e categorias reais que substituem

os símbolos por definições científicas, ou seja, em vez de imagens, conceitos.

(SALGADO, 2001, p. 34)

É a interpretatio que dá início ao movimento de categorização do direito, que

tem seu momento primeiro na passagem do costume à Lei. E é ela que dá continuida-

de a esse movimento, operando, na aplicação da Lei, a passagem desta aos conceitos

jurídicos e à decisão jurídica. Conclui Moncada (1923, p. 54):

A incerteza do costume e a sua menor fixidez na expressão do direito, somadas

à natural tendência do poder público constituído para monopolizar a declaração

oficial das suas normas, são a origem da lei como fonte de direito. Nela adquire

o Direito, enfim, uma forma mais rigorosa e uma expressão mais estável; e se

a estes caracteres da lei pode corresponder, é certo, o perigo da sua tendência

para a imutabilidade, fazendo paralisar o natural movimento da evolução jurí-

dica, aparentemente enquadrado nas leis em fórmulas fixas e definitivas, a este

16 “Desse modo, o direito é visto pelo romano não apenas como formalização pela vontade da autoridade que o põe na existência, mas pelo momento do encontro do conteúdo justo, do equilíbrio, feito pela ratio, tanto no momento da elaboração como no da aplicação. Daí a prudência romana expressa em densa síntese por um porta-voz do tribunal dos mortos: conhecer a lei é captar sua força e potestade, sua ratio (Celso)” (SALGADO, 2001, p. 23).

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inconveniente faz por outro lado face um constante trabalho de readaptação de

direito às condições reais da vida, trabalho efetuado principalmente pela inter-

pretação dos textos legislativos, pelos magistrados e pelos jurisconsultos.

Codificação do ius civile e suas consequências para a interpretação do Direito: a experiência das XII Tábuas Importância histórica da Lei das XII Tábuas

Ao desenvolver uma consciência jurídica, fica clara, como visto, a vocação dos

povos do Lácio, herdada espontaneamente dos gregos, para o universal. O que talvez

tenha sido influência direta dos gregos, por meio do posterior contato das culturas,

foi a capacidade de abstração destes, consubstanciada na ideia de “lei escrita”,17 que

veio se somar ao gênio romano. Tanto é que não foi difícil para os romanos assimi-

larem a ideia de Lei escrita, pois a abstração advinda dessa estrutura encaixava-se

perfeitamente no esquema de universalidade da consciência jurídica romana.

Deve-se somar, a essa vocação para a Lei, um entendimento do momento his-

tórico peculiar da sociedade romana ao final da realeza, para que então possamos

compreender o que chamaremos de primeiro movimento estruturante do Direito

romano (ou primeiro movimento codificador): a experiência da Lei das XII Tábuas.

No campo jurídico, a situação de ebulição de uma nova estrutura de juridi-

cidade assentava-se na rivalidade advinda do fato de que o Direito não atingia de

maneira igual a patrícios e plebeus, alimentando uma sensação de injustiça nestes.

A diferença material nascia do fato de o Direito estar ainda fundido à religiosidade.

Os plebeus, portanto, não participavam desse Direito no início de sua formação.18

Mas, na perspectiva da distribuição da Justiça (aspecto formal), também surgem di-

ferenças que tinham origem no fato de o Direito ser costumeiro, portanto, carente de

maior determinação de sentido por parte dos intérpretes, e no de ser aplicado pelos

sacerdotes, patrícios, sempre de forma velada.

Sobretudo quanto às questões estruturais do Direito, dois foram, então, os

objetivos dos movimentos plebeus. Primeiro, dar maior certeza ao Direito, por meio

da ideia de Lei escrita, que desembocou na Lei das XII Tábuas; segundo, racionalizar

e democratizar a sua aplicação pela magistratura, o que se alcançaria com a publi-

cização das práticas interpretativas e com acessibilidade dos plebeus aos cargos

públicos.

Nota-se que, em nenhum momento, aparece a intenção de se proibir ou limitar

a prática interpretativa, o que se quer é cercá-la de publicidade e de racionalidade,

para atender ao anseio de objetividade capaz de produzir uma real igualdade. Agora,

17 Podemos perceber já no ius non scriptum romano uma conotação universalizante, que, incompleta, encontrava-se no movimento de aquisição de consciência jurídica, caminhando necessariamente para a ideia de Lei (Cf. MOREIRA ALVES, 2000, p. 81).

18 Para os plebeus, que não participavam da religião familiar romana, os preceitos jurídicos dessa religião faziam pouco sentido (Cf. COULANGES, 1996, p. 260).

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Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

a atividade interpretativa, ao invés de se remeter diretamente à fluidez dos mores

para dali retirar sua medida de certeza e universalidade do justo (o Direito), buscaria

essa mesma justiça, mas pela via da referência segura e racional à estrutura precisa

da Lei.

O caráter codificador da Lei das XII tábuas

A já apontada polaridade entre patrícios e plebeus perdurou durante boa parte

da República. Após a queda dos Reis, observa-se, na estrutura jurídico-política ro-

mana, um aumento gradual da importância do Senado, seguido do desenvolvimento

das magistraturas, que surgiram para suprir o papel do rex;19 segue-se, também, um

aumento da produção legislativa por parte dos comícios, o que produzirá, no auge

da República, em relação às fontes do Direito, uma equiparação da importância dos

costumes e das leis, sem, portanto, haver uma hierarquia entre essas formas do

ius.20

Essa primeira onda de complexificação da civita romana, que consiste na in-

serção da plebe em sua estrutura, produz a necessidade de se organizar o Direito,

reuni-lo em um texto escrito, capaz de lhe atribuir publicidade e clareza, fixando-o

como seguro (portanto prévio e certo) à medida das condutas.

Guarino (1969, p. 129) delimita a dimensão codificante das XII Tábuas:

Os posteriores problemas que se apresentaram à plebe, no quadro de sua as-

piração de equiparação com os patrícios, foram os de obter, de um lado, um

acertamento definitivo dos princípios do ius quiritium, sem que este fosse sub-

traído ao arbítrio da interpretatio e da iurisdictio; de outro, e correlativamente,

um reconhecimento e uma confirmação das novas práticas consuetudinárias

patrício-plebeias como sendo ius. O coroamento de ambas as supostas aspira-

ções foi realizado sobretudo por meio da emanação das leges XII tabulorum.

(tradução nossa)

Guarino (Cf. 1969, p. 130) chega a afirmar que, pela Lei das XII tábuas, formou-

se um novo sistema jurídico, que, para ele, pode chamar-se ius legitimum vetus e

afirma que a tradição romana a considera, por isso, uma imponente codificação.

Porém, a lei decenviral não possuía um elemento que hoje é tido como essen-

cial a um código: seu caráter de completude. As XII tábuas não reuniram em si todo

19 Primeiro, os cônsules, que assumem a posição de chefe máximo do Estado, exercida a função sob os princípios da eletividade e anuidade. Com o desenvolvimento da estrutura social e a necessidade política de retardar a conquista dos plebeus da igualdade no exercício do poder, vieram os quaestores, os censores, os pretores, os tribunos, e outros como os edis curulis. As funções administrativas, policiais, bélicas e judiciárias eram repartidas entre essas magistraturas, sendo que, por condensarem importante parcela das funções judiciárias, e serem o carro-chefe das mudanças no sistema jurídico romano, os pretores, urbano e peregrino, foram um importante objeto de estudo dos jurisconsultos, assumindo um posto preponderante nas obras do período clássico (Cf. PEIXOTO, 2000, p. 29-43).

20 Na República, os comícios por cúria perdem campo para os comícios por centúria, que passam a ser o principal produtor de leis, acompanhado pelo comício por tribos e pelos comícios da plebe; esses dois últimos, até o final da República, assumirão o papel preponderante (Cf. PETTI, 1949, p. 51).

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o ius civile. E isso por uma razão muito simples: as leis no período primitivo ou

pré-clássico do Direito romano não eram revogáveis, permaneciam vigentes mesmo

existindo outras normas para regular a questão. Era, portanto, complicado e mesmo

desnecessário codificar todo o direito em vigor. O que faz a Lei das XII tábuas é co-

dificar (e, com isso, organizar) aquele Direito dúbio à época, ou mesmo lacunoso. O

que ela faz é organizar os aspectos do Direito que geravam as insatisfações e as dis-

córdias na sociedade à época, ou seja, aqueles aspectos do Direito que não podiam

permanecer como estavam, pois, ao contrário de outros aspectos, que por sua vez

funcionavam bem, estes geravam instabilidade e, com isso, injustiça.

A Lei das XII tábuas como abertura hermenêutica do Direito romano

Essas modificações na estrutura da civitas romana guardam correlações com

a evolução da estrutura interpretativa. O primeiro acontecimento nesse sentido é

a já informada laicização e publicização da atividade jurídica. A Lei das XII Tábuas

(450 a.C.) trouxe publicidade e previsibilidade ao Direito (pretensão de segurança

jurídica), com finalidade de uma equitas iuris entre as classes. Mas a interpretação

do Direito continuava secreta e nas mãos dos pontífices. Eram eles que, a partir do

costume, preenchiam as lacunas da lei decenviral, assim como diziam e regulavam

os procedimentos e “fórmulas da lei” para a resolução dos conflitos, pois a Lei “ha-

via determinado não mais que linhas gerais de alguns casos de aplicação” (PETTI,

1949, p. 54). Eram as ações da lei, leges actiones, de que falaremos adiante. Como

só os pontífices conheciam os procedimentos e as fórmulas (actiones), os plebeus

estavam obrigados a consultá-los em caso de litígio.

Nesse momento é que podemos dimensionar a importância da Lei das XII Tá-

buas como motivadora das obras de Gneus Flavius, Sexto Elio e Tibério Curnicano.

Assinala Maria Helena Megale (2001, p. 59):

Ao trabalho dos pontífices seguiu-se a obra dos jurisconsultos republicanos.

Nos meados do séc. IV a.C., Gneo Flavio tornou público o livro de Ápio Claudio

que continha o calendário e as fórmulas das ações legais. Embora não exis-

tam dados exatos sobre essa publicação, que se conhece com o nome de Jus

Flavianum, sabe-se que foi o primeiro livro que permitiu ao povo interpretar

o direito, emancipando-se da autoridade pontifical. Desde então, tornou-se o

Direito objeto de estudo dos plebeus, e Tibério Curnicano, no século III a. C.,

foi o primeiro a divulgar a matéria jurídica documentada nos arquivos judiciais

e a interpretar o Direito, emitindo pareceres ao público. No séc. II a. C, entre os

primeiros trabalhos científicos no campo da interpretação destaca-se a famosa

obra do jurisconsulto Sexto Elio Peto, denominada Tripertita, a qual é conside-

rada como sendo o primeiro comentário às XII Tábuas.

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180 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 167-196, 2º sem. 2008

Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

A primeira dessas obras deu publicidade à aplicação do Direito;21 a segunda,

já mais tarde,22 realizou a primeira sistematização do Direito. A obra tem esse nome

porque dividida em três partes: trazia o texto das XII Tábuas, sua sistematização, e

os ritos correspondentes nas ações da lei (Cf. PETIT, 1949, p. 55-56).

Segundo Petti (1949, p. 56), a abertura para a racionalização da hermenêutica

na busca da efetivação do justo completa-se com Tibério Curnicano (254 a. C.):

O primeiro plebeu a ser pontifex maximum foi também o primeiro a dar consul-

tas públicas sobre o Direito. Outros seguiram seu exemplo, e logo foi uso geral

em todas as disputas tomar consultas de um ou vários jurisconsultos. Inclusive

os magistrados acostumam-se ao uso de um consilium de prudentes, aos quais

consultavam em cada pleito.23

Percebe-se que a codificação do Direito operada pela Lei das XII Tábuas, antes

de representar uma limitação da atividade interpretativa, possibilitou o despontar

dessa atividade para a racionalidade, dando o pontapé inicial para a construção do

Direito romano em sua versão magistral, a do período clássico.

Esses jurisconsultos, que assimilaram e deram nova dimensão, mais científi-

ca, ao receptus moribus, abrem, ao lado dos magistrados com o ius honorarium, o

caminho para o momento de maior perfeição e racionalidade da jurística romana.

Faz-se mister, no tópico seguinte, uma reflexão acerca da obra dos magistra-

dos a partir desse período, principalmente acerca do papel do pretor – magistratura

criada em 367 a.C – para que possamos melhor compreender como a cristalização

do ius civile, representada pela Lei das XII Tábuas, contribuiu, na verdade, para uma

evolução no raciocínio jurídico, pois ocorreu sem deixar de possibilitar a atuação

criativa do intérprete na aplicação do Direito. Depois, passaremos a meditar sobre

os diferentes efeitos que a codificação desse Direito dos magistrados por ordem de

Adriano provocou na história jurídica romana.

Codificação do ius honorarium e suas consequências para a interpretação do Direito: a experiência do edictum perpetuum de Salvio JulianoO ius honorarium como elemento interpretativo/integrativo do ius civile

A partir das modificações apontadas, a interpretação passa a ser uma ativi-

dade marcada mais pela racionalidade que pela religiosidade, feita tendo em vista

uma maior participação da Lei como elemento do ius, o que exige uma adaptação da

21 O Ius Flavianum, ao dar publicidade ao Direito, é importante para o desenvolvimento da interpretatio, porque se passou então a esperar fundamentação racional dos pareceres e decisões jurídicas.

22 Apesar de datar de 198 a.C., as Tripertita são o resultado de compilação feita pelo autor das interpretações e fórmulas referentes às XII Tábuas, oriundas do século anterior.

23 Já Moreira Alves afirma ter sido Tibério o primeiro a ensinar publicamente o Direito (Cf. MOREIRA ALVES, 1983, p. 27).

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atividade interpretativa dos magistrados, que passaram a lidar com as questões que

a cristalização do Direito na Lei impunha numa sociedade em ebulição.

A solução mais eficaz para tais problemas operou-se com o surgimento do ius

honorarium, vez que as exigências da expansão social e comercial passaram

a ser supridas pelos próprios pretores, através da concessão de tutelas e

“remédios” processuais, muitas vezes não previstos ou contemplados pelo

ius civile – as leges, ainda nesse período, exerciam a mesma função suple-

mentar, isto é, quando não se pudesse esperar pela formação consuetudi-

nária da solução jurídica concreta e se submetiam ao mesmo e multifásico

“processo legislativo” em vigor. (DINIZ, 2004, p. 7)

A Lei surge como tentativa de suprir a lentidão da formação normativa con-

suetudinária, mas a Lei em sua abstração também era insuficiente, pois não dava

conta de por si só resolver as particularidades do caso concreto. Para suprir as difi-

culdades da desatualização do costume e da abstração (ou seja, desatualização) da

Lei, a prática dos magistrados deu origem ao ius honorarium; nesse momento, os

magistrados, auxiliados pelos jurisconsultos, mais que interpretar o Direito, recria-

vam o Direito a partir da interpretação/formação do ius.

O papel do pretor na atualização do Direito pode ser dimensionado a partir

do estudo do que foram os editos dos magistrados. Como todo Direito deveria pres-

supor ação expressamente correlata a ele – o que nos leva à metáfora do Direito dos

magistrados como sistema de ações – os editos eram verdadeiras fontes de Direito.24

Eram publicados no princípio da magistratura de cada honor, e permaneciam obri-

gatórios durante todo o ano.25 Sua autoridade terminava com o fim dos poderes do

autor. O pretor seguinte, livre para modificar suas disposições, na realidade alterava

apenas uma parte, a maioria das disposições era mantida de édito em édito, con-

servadas em virtude da verificação prática de sua utilidade; o uso acabava por lhes

dar força de lei (Cf. BONFANTE, 1944, p. 335). Por isso, esse édito, que inicialmente

24 “Enfim, por que era o edito dos magistrados fonte de direito? Eis a explicação. No edito dos magistrados judiciários eles não se limitavam a relacionar os meios de proteção (ações) aos direitos decorrentes do ius civile (na república integrados pelos costumes e leis). Desde tempos remotos, esses magistrados, com base no seu imperium (poder que lhes permitia dar ordens a que todos deviam obedecer), concediam medidas judiciais – por exemplo, os interditos – que visavam a corrigir, suprir ou afastar a aplicação do ius civile, quando este lhes parecesse iníquo. Com o advento da Lei Aebutia (que introduziu, na metade do século II a. C., o processo formulário) essa interferência aumenta, porquanto os magistrados judiciários, que passaram a redigir um documento – a fórmula – onde se fixava a demanda a ser julgada, se arrogaram, a pouco e pouco, o direito de denegar, quando lhes parecesse justo, ações que tutelavam direitos decorrentes do ius civile (o que evidentemente tirava a eficácia prática desses direitos); bem como de criá-las para proteger situações não previstas pelo ius civile – que lhes parecessem dignas de tutela. Ora, nesse último caso, tais ações assim tuteladas passavam, na prática, a ter eficácia jurídica, dando nascimento a verdadeiros direitos. Motivo por que o edito é considerado fonte de direitos em Roma” (MOREIRA ALVES, 1983, p. 23).

25 Havia também os editos repentinum, que eram promulgados no decorrer do exercício anual do magistrado, sempre que surgia situação não prevista no edictum perpetuum – o edito anual (essa expressão foi mais tarde consagrada por Adriano, na compilação que mandou fazer dos editos e a que deu o nome de Edito Perpétuo, mas o sentido original de edictum perpetuum é daquele que era promulgado no início da magistratura e era perpétuo no sentido de permanecer válido até o final desta). Mais tarde, veremos, o edictum repentinum foi abolido.

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Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

possuía o nome de edictum annuum, passou a ser também conhecido por edictum

perpetuum. Nada impedia, por outro lado, que o magistrado posterior acrescentasse

novas ações (novas fórmulas), seja no próprio édito anual (o perpétuo) ou mesmo

durante seu ano de exercício da magistratura, por um edictum repentinum.

Tal caráter construtivo da interpretatio e da aplicatio dos magistrados somente

se alcança na estrutura do processo per formulae (substituto do modelo processual

das leges actiones). E, para demonstrar esse caráter, interessa-nos, substancialmen-

te, a fase in iure desse procedimento, que começa com a editio actionis, a declaração

da ação que será demandada. Nesse momento inicial, o magistrado verifica se está

diante de ação declarada no edito, portanto conhecida, típica, ou se diante de uma

nova ação in factum. Segue a postulatio actionis ou formulae, dirigida ao pretor, que,

se percebesse ser o caso de ação conhecida e posta no edito, procedia então a uma

investigação extrínseca e limitada à análise da capacidade das partes, do cumpri-

mento satisfatório das formalidades indispensáveis e da presença de fundamento

mínimo para propositura da ação. No caso de ação in factum, após uma investigação

mais detalhada e intrínseca dos elementos da relação jurídica, o pretor apreciava a

possibilidade jurídica e a oportunidade para, então, dar assentimento à ação, ou a

denegar. A actio in factum é o momento típico da utilização da equidade na aplica-

ção (interpretativa) do Direito, que possibilitava uma atualização inovadora do ius

civile.

A mesma lógica era aplicada nas exceptionem. A exceptio era uma cláusula que

o demandado poderia propor para a fórmula, que continha argumentos que impe-

diam a pretensão do autor; se verificadas as observações da exceptio, o autor perdia

o fundamento de sua ação. Ela era concedida ou não pelo magistrado, o mesmo

ocorrendo com réplicas do autor – replicationem –, tréplicas do demandado, e assim

por diante, formando a dialética do processo na qual se dava o contraditório, fator

indispensável à cognição do juiz, já na fase seguinte, em sua busca pela verdade do

processo.26

Não é difícil concluir que esse novo processo permitia uma interpretação mais

completa, mais detalhada, mais justa da realidade normativa a ser julgada. Villey

(1991, p. 62) traz um interessante exemplo:

A antiga prática impunha estritamente ao devedor o pagamento da sua dívida,

desde que as formalidades precisas da sponsio tivessem sido cumpridas. Que

decidir, todavia, se ele não está comprometido senão em consequência de um

pequeno erro? Porque o seu credor o tinha enganado, tinha sido culpado de

mentiras, ou maquinações fraudulentas a seu respeito, a que os romanos cha-

mam um dolo. Não manda a equidade que a dívida seja anulada? Chegar-se-á a

este resultado, acrescentando à fórmula estas simples palavras, pelas quais se

prescreve ao juiz não condenar senão na ausência de dolo – e a que se destina

uma excepção:

26 Outra característica interessante da fase in iure é a possibilidade da interrogatio in iure, que nos revela mais um aspecto da racionalidade que a aplicação do Direito alcançou nessa época. Por meio da interrogatio, assim como hoje, o magistrado podia chegar às questões prejudiciais que podiam antecipar a resolução da lide (cf. BONFANTE, 1944, p. 572).

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saulo dE olivEira pinto CoElho

Parece que X deve mil.

A menos que tenha havido um dolo do credor.

Juiz, condena X a pagar mil ao litigante Y.27

Essas são as características marcantes do ius honorarium, capazes de apre-

sentá-lo como meio pelo qual o Direito, já cristalizado pela ideia de Lei, poderia

continuar evoluindo e se adequando à consciência jurídica vigente. Nas palavras de

Diniz (2004, p. 6):

A atividade desenvolvida pelos pretores através do jus edicendi (cf. PAPiniAno, D.

1.1.7.), principalmente durante a fase do processo formular, daria origem ao ius

honorarium. Superadas as rígidas formas das leges actiones, estes magistrados

passaram a gozar de uma considerável margem de discricionariedade para a

solução dos casos concretos que lhes eram propostos, o que lhes permitia con-

ceder ou negar a proteção processual suplicada, mesmo que os fundamentos

jurídicos não estivessem expressamente previstos no ius civile. Consequente-

mente, os jurisconsultos não mais exerceriam sua atividade somente com refe-

rência aos costumes sedimentados, mas também e de forma quase exclusiva,

com relação ao ius honorarium já formado, cuja importância e autoridade foi

sucessivamente crescendo em proporção direta com o seu desenvolvimento –

basta recordar a notícia de Papiniano. (Dig.,1,1,7.) 28

Agindo negativamente (negando ações) ou positivamente (concedendo novos

meios processuais nos editos), sempre numa aplicação interpretativa e integradora,

o pretor fazia valer um sentido atualizado do jurídico, no qual, por meio de uma

restrição ou de uma extensão do ius civile, opera-se progressivamente na afirmação

dos novos valores jurídicos, que nasciam no próprio seio da comunidade romana

como evolução de sua consciência, bem como da inter-relação com outras culturas,

decorrente da expansão do domínio romano:

Jus praetorium este quod praetores introduxerumt adjuvande, vel supplendi,

vel corrigendi júris civilis gratia, propter utilitatem publicam.29

27 “Assim, as fórmulas recebem ligeiras modificações; a menor palavra engendra aqui qualquer nova instituição jurídica; jurisconsultos e pretores elaboram uma técnica sábia e precisa da fórmula; aparentemente, as fórmulas tradicionais recebem ligeiras adições, no gênero das que tomamos para o exemplo; mas no fundo o conteúdo do direito sai todo transformado” (VILLEY, 1991, p. 64).

28 A nosso ver, essa liberdade de adequação do Direito que possuíam os magistrados é muito bem exemplificada pela figura dos interditos, elemento de importantes implicações para a atividade de interpretação e aplicação do Direito nessa época. Trata-se de uma ordem direta dada pelo magistrado contra alguém que esteja, presumidamente, agredindo direito de outro, que requer, então, proteção jurisdicional. Os interditos eram concedidos quando não havia proteção de lei para o esbulhado, não seguiam a ordo judicorum. Consequência direta do poder de imperium, foi o primeiro meio processual pelo qual o magistrado podia proteger direitos tidos como legítimos, mas que não tinham ainda nenhuma ação específica para protegê-los (Cf. MOREIRA ALVES, 1986, p. 235).

29 Papiniano. Dig. L. 7; de iustit.; §1: “O direito pretoriano é aquele que os pretores introduziram com o objetivo de ajudar, suprir ou corrigir o direito civil, em razão da utilidade pública” (apud PETIT, 1949, p. 57).

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Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

A codificação do ius honorarium e suas consequências hermenêuticas

O apogeu do período clássico tem como uma de suas marcas a passagem de-

finitiva da fonte normativa não escrita para a fonte normativa escrita.30 Não que os

costumes perdessem vigor nessa época, mas sua força normativa passa a ser mais

frequentemente mediada pelo texto escrito. O costume tinha força, era objetivo por-

que observado e presente na consciência de todos, e isso bastava; mas, numa socie-

dade cada vez mais heterogênea, trazia o perigo da insegurança jurídica.

Isso se infere da mudança ocorrida na atividade dos jurisconsultos; ao in-

vés de interpretarem diretamente os costumes, passaram a voltar os olhos para o

repertório de editos dos magistrados, solidificados pela sua constante reedição; a

força do costume permanece, porém, intelectualizada pelo texto. Segundo Diniz

(2004, p. 10):

O crescimento do ius honorarium, muito antes de sua petrificação na época de

Adriano em virtude do Edito Perpétuo elaborado por Sálvio Juliano (130 d. C.),

ao mesmo tempo em que proporcionou um considerável avanço no ius civile ro-

mano, acarretou uma modificação na sua estrutura ao abalar as relações costu-

me/lei. Com efeito, os editos, graças à consolidação da autoridade dos pretores,

passaram a assumir cada vez mais uma certa rigidez diante da interpretação

dos jurisconsultos, gerando uma espécie de “codificação” do ius honorarium.

Tal fato restringiu sensivelmente o âmbito de formação consuetudinária do Di-

reito, de forma que a interpretação dos costumes foi progressivamente sendo

substituída pela interpretação do direito pretoriano. Mesmo assim, não se havia

perdido ainda o caráter casuístico na formação do Direito.

O binômio costume/lei, já abalado pelo ius honorarium, começa a ganhar

novos contornos. Parece-nos que o costume deixa de atuar como fonte de onde se

busca imediatamente a norma, para ser fundamento de vigor da norma, que cada

vez mais se vincula a um texto escrito, visto como esquema interpretativo da norma.

Assim:

Quando Adriano subiu ao poder, empreendeu reformas políticas que deram um

grande passo para uma consolidação e centralização sem precedentes do poder

imperial. Por volta de 130 d.C., determinou que se fizesse uma formulação

definitiva dos editos dos pretores. A tarefa ficou a cargo de Sálvio Juliano e, a

partir daquele momento, o Edito perpétuo foi sucessivamente publicado pelos

30 Até então, o consenso tácito do povo era o fundamento do ius civile, por meio da receptur moribus; a interpretatio era o meio de recepção da normatividade, o que lhe atribuía um caráter semelhante ao dos processos de elaboração de leis; sua legitimidade advinha da sua consolidação na vida concreta pelo consensus omnium. De outro lado, nesse período, temos uma profusão ímpar de fontes normativas. O costume, as leis – leis comiciais e senatoriais, os editos dos magistrados – ius honorarium; mais tarde, as respostas dos prudentes dotadas de força normativa, o ius prudentium, e as constituições imperiais. Todas essas fontes requerem do intérprete do Direito uma elaboração teórica racional e categorizante. “Esses fatores (introdução do processo formular e maior liberdade de atuação dos pretores), conjugados com a atividade dos jurisconsultos (por esta época já bastante difundida, sistematizada e ordenada) representariam a época de ouro da criatividade do gênio romano” (DINIZ, 2004, p. 8).

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pretores sem qualquer modificação, exceto aquelas que fossem introduzidas

pessoalmente pelo príncipe. A partir de então, a clássica atividade jurisdicional

dos pretores tenderia a desaparecer paralelamente à evolução do principado e

à afirmação do autoritarismo imperial do dominato. (DINIZ, 2004, p. 9)

É chegado o ocaso da atividade de produção do Direito via edito do magistra-

do. Mas a codificação do ius honorarium por Juliano não representou uma derrocada

do caráter criativo da atividade interpretativa.

O que Juliano faz é organizar o riquíssimo Direito pretoriano produzido para

abrir o caminho a novas inovações no Direito. A Ciência Jurídica, antes de desenvol-

ver novos rumos, necessita, por vezes, organizar o que foi produzido até então. É

o que fez a codificação do Edictum perpetuum. Vejamos as observações de Pietro

Bonfante (1944, p. 465) a esse respeito:

Não obstante, parece certo que Juliano agregou pela primeira vez às cláusu-

las do edito as fórmulas das ações que anteriormente formavam um apêndice

ao edito, junto aos interdictum, exceptiones e stipulationes pretorianas. Junto

às fórmulas das ações pretorianas, foram agrupadas também as fórmulas das

ações civis (leges actiones), ainda que não lhes correspondesse nenhuma cláu-

sula do edito, foram colocadas ao lado das ações pretorianas análogas. (...) A

obra do grande jurisconsulto abarca provavelmente os diferentes editos, ou

seja, não somente o do pretor urbano e dos ediles curules que antes constituíam

um apêndice ao primeiro, mas também o edito do pretor peregrino e os editos

dos magistrados provinciais. (tradução nossa)

Bonfante (1944, p. 467) adverte que, assim como com as XII Tábuas, não se

pode pretender, com o edito de Adriano, um sistema jurídico orgânico e completo,

dada a sua própria natureza destinada a preencher lacunas e corrigir problemas no

ius civile. Não obstante, ressalta:

O edito de Adriano representa a única codificação num intervalo que corre desde

a XII Tábuas, quando se inaugura a história do Direito privado romano, até o

período das compilações, quando essa história se encerra. A tarefa essencial

do pretor havia terminado e os novos órgãos estavam mais adequados para

prosseguir a obra de adaptação do Direito romano ao novo espírito social e

às necessidades gerais dos novos cidadãos disseminados pelo vasto império.

(tradução nossa)

Revalorização da interpretatio na passagem do ius honorarium para o ius prudentium: codificação como instrumento de reorganização da Ciência do Direito

Tal vinculação, tal identificação da norma com um texto, não é, porém, nesse

período histórico, uma identificação viciosa, como se poderá observar no período

justiniano da história romana e, de modo mais evidente, no período da codificação

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Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

pós-revolucionária do séc. XVIII d.C., em que as escolas, notadamente a da Exegese,

identificaram o texto da lei com a própria Lei, a norma com o texto escrito, de tal

modo que mudar o sentido da norma só é possível mudando-se o texto da lei (Cf.

MAGALHãES, apud PEREIRA, 2001, prefácio). Pelo contrário, apesar de percebermos

esse formalismo no sentido de adoção da forma escrita e organizada conceitualmen-

te, cada vez mais evidente no Direito clássico, trata-se de formalismo instrumental,

numa busca crescente de previsibilidade para o Direito e, nesse sentido, segurança

jurídica, numa sociedade como a romano-imperial, cada vez mais complexa (Cf. DI-

NIZ, 2004, p. 6).

Ocorre também, e isso é que dá o tom da instrumentalidade referida, que os

juristas clássicos não pensavam de forma alguma na possibilidade de uma reali-

zação do justo que abrisse mão da equidade e da interpretatio. Daí o grande valor

dessa época de ouro da jurística romana: o entendimento de que a Justiça se realiza

no equilíbrio do binômio segurança/equidade e no desenvolvimento de um sistema

teórico sólido, capaz de atingir esse equilíbrio.

O formalismo do período clássico, ao encarar os textos normativos como

esquemas de interpretação, tem um caráter produtivo, vigoroso, instrumental, que

se pode observar na máxima de CelSuS – Scire legis non est verba earum sed vim ac

potestatem tenere – já estudada anteriormente e para a qual Salgado (2001, p. 84)

teceu importantes comentários:

Um dos momentos decisivos da aplicação da lei é conhecê-la. E conhecê-la não

é uma intenção ou simples vontade que colhe a sua escritura na superfície da

letra, mas tarefa do prudens, do sábio, que se reputa preparado para penetrar

seu interior e tornar possível a decisão justa materialmente (...). A voluntas

legislatoris, transmudada na voluntas legis, que por sua vez se revelaria na

ratio legis, constituem elemento do escopo da hermenêutica, cuja finalidade é

a solução, pela unidade do momento da existência empírica da lex, voluntas, e

pela sua essência ideal, o ius, dado pela sua ratio.

É à obra desses sapiens31 que Adriano confia o ius respondendi, o principal

instrumento deste na busca do controle acerca da interpretação e criação do

Direito, corroborando a mudança que veremos mais tarde, da primazia da formação

consuetudinária do Direito para a primazia da formação ex auctoritate do jurídico,

de caráter dirigente, ou seja, não a partir do caso concreto, na ratificação daquilo que

a teia social transforma em jurídico, mas a partir da formação reflexiva e abstrata

do jurídico, numa também tentativa de projetação,32 postura (positum), das práticas

concretas.

Daí a definição contida nas Institutas de Gaio:

Responsa prudentium sunt sententiae et opiniones eorum, quibus permis-

sum est iura condere. quorum omnium si in unum sententiae concurrunt,

31 Vale colacionar a máxima romana: “Iuris prudens sapiens gentium sunt – os juristas são os sábios de suas nações” (CUNHA, 2004, p. 12).

32 Do inglês drafiting, termo utilizado pela atual teoria da legislação (Cf. SOARES, 2004, p. 21-22).

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id quod ita sententium, legis vicem optinet; si vero dissentiunt, iudici licet

quam velit sententiam sequi; idque rescripto divi Hadriani significatur.33

Outro movimento que acontece na jurisprudência clássica diz respeito à gra-

dual modificação na qualidade do caráter criativo dessa atividade. Como vimos, no

período em que predomina o Direito não escrito, uma espécie de “Direito em estado

de nebulosa”, segundo Bonfante (1944, p. 323), a atividade do jurisconsulto ultra-

passa a simples interpretação, no sentido tradicional da palavra, para se caracterizar

como uma atividade de criação do Direito; nesse período, é por meio da prudentia

que o Direito ganha forma lógica (Cf. SALGADO, 1996, p. 319). Com a racionalização

cada vez maior, e com a mudança na sistemática das fontes normativas, na qual o

Direito escrito passa gradativamente a ter destaque, a atividade de interpretação e

adaptação do Direito muda de colorido, ganha ares mais conexos com o que faz o

hermeneuta de hoje, ou seja, dá à palavra “criação” um outro sentido, o de categori-

zação num plano científico daquilo que está amontoado no plano normativo. É uma

criação retificadora das novas consciências, mas que, agora, tem limites mais bem

delineados. Essa criação interpretativa tem cada vez menos o tom de discriciona-

riedade que atribuímos hoje à criação legislativa do Direito. A evolução da ideia de

Lei, norma abstrata e geral previamente posta, começa a operar a separação entre

a figura do legislador e a do intérprete, aproximando-as daquilo que nelas identifi-

camos hoje. Evidentemente, toda interpretação é, em certo sentido, uma recriação,

e toda criação não deixa de ser um ato de interpretação. Por isso, afirma Bonfante

(1944, p. 324):

As prescrições decenvirais mesmas eram objeto de uma interpretação tanto

restritiva, como extensiva; ou se arrebatava sua força por meio das exceções

e casos particulares, ou, pelo contrário, as prescrições tinham seu campo de

validade ampliado para fora de sua esfera primitiva, regulando novas situações;

sempre se considerando com absoluta liberdade, o fim, a ratio legis, mais que a

expressão literal da lei. (tradução nossa)

A codificação justiniana e suas consequências para o método de interpretação do Direito: a experiência da codificação do ius prudentium no DigestoAntecedentes históricos da codificação justiniana

Por volta de 284 d.C., o movimento de implicação recíproca entre a tendência

de fragmentação do Império e, em contrapartida, concentração das estruturas de

poder em um único órgão, o imperador, como reação às idiossincrasias de um

33 Gaio, Inst. I. 7: “As responsa prudentium constituem os pareceres e as opiniões de todos aqueles aos quais foi permitido criar Direito (ius condere). Se os seus pareceres convergem para uma mesma solução, entende-se que essas opiniões possuem o vigor das leis; ao contrário, se os pareceres são divergentes, ao juiz é lícito optar pela opinião que mais lhe aprouver; isso foi estabelecido por um rescripto de Adriano”.

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Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

Estado vasto e desarmônico, irão impulsionar o desenvolvimento do Dominato, com

consideráveis implicações na interpretação do Direito.

Após uma ameaçadora crise política e militar, Dioclesiano é proclamado im-

perador e senhor absoluto de todo o Império. As mudanças na estrutura política,

que passaram pela divisão do domínio imperial em quatro partes, cada uma com

um senhor, depois em duas, e sua reunificação até Teodosio i, quando o império é

definitivamente dividido em ocidental e oriental, têm como nota basilar o seguinte:

Dioclesiano inicia uma absorção completa dos poderes do senado e do populus, res-

tando apenas, como manifestação da soberania, a magistratura única do Imperador.

As magistraturas que perduraram nominalmente eram apenas simbólicas e somente

possuíam o ônus da promoção de jogos e o Senado não seria mais que um conselho

municipal, sem nenhum poder efetivo (Cf. PEIXOTO, 2000, p. 119).

Constantino consolida as modificações de Dioclesiano, com a nota distintiva

de ter transferido a capital do governo, em seu período reunificado, para Constanti-

nopla (Bizâncio), e de ter reconhecido o cristianismo como religião oficial (Cf. PETIT,

1949, p. 66). A essa mudança na estrutura do poder deve-se juntar o fato de já se

encontrar consolidado um novo modelo processual. Foi Dioclesiano que suprimiu

as últimas possibilidades de aplicação do processo formulário (Cf. PEIXOTO, 2000,

p. 118), ficando o magistrado agora entendido como funcionário do Imperador, sem

imperium ou potestas.

O modelo processual que corrobora para isso é o do processo extraordinário,

ou cognitio extraordinem, que possui essa nomenclatura justamente por não estar

submetido à divisão da ordo iudicorum privatorum, que impunha o julgamento apud

iudicem, pelo particular. Surgido da jurisdição administrativa, o processo extraordi-

nário, dispensando tanto o juiz particular, quanto a produção da fórmula, passou a

ser usado também na tutela dos direitos subjetivos oriundos de Constituição Impe-

rial (ius extraordinarium). No Dominato, o fato de o poder para criar e dizer o Direito

estar especialmente concentrado nas mãos do Imperador faz com que este comece a

concentrar a resolução das contendas sobre seus auspícios, extra ordinem, por meio

de seus funcionários (Cf. MOREIRA ALVES, 1983, p. 242).

O caráter público desse processo e o desaparecimento da fórmula, junto com

a possibilidade de recurso da sentença, pois proferida por funcionário do Estado,

inserido numa ordem hierárquica, cujo ápice é o imperador, revelam a impossibi-

lidade de se criar ações e de se tutelar direitos não expressamente protegidos pelo

direito objetivo.

A busca de segurança e ordem acarreta não só a concentração da produção do

Direito e sua pretensão de certeza no plano abstrato da lei, mas também a busca de

sua certeza no plano da aplicação. Por isso, o imperador concentra em sua figura a

faculdade de interpretar o Direito. Posicionamento errôneo, pois reveste de abstra-

ção a atividade de interpretação, num paradoxo infrutífero, como veremos.

A decadência da jurisprudência, com o fim do ius respondendi e com o desvio

das preocupações filosóficas do âmbito jurídico para a teologia, faz com que os con-

flitos sejam resolvidos, senão por meio das leges, sancionadas pelas Constituições

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Imperiais, por meio dos iura, regras elaboradas pelos grandes jurisconsultos clássi-

cos, agora compiladas.

Para eliminar as possibilidades de várias decisões diferentes para o mesmo

caso, devido à barafunda dos preceitos clássicos (resultante da grande produção

daquela época e de sua recepção num momento de despreparo intelectual) e ao

consequente risco expressivo e comprovado de distorções de sentido e fraude aos

textos de iura, ministram-se dois “remédios” na busca ilusória de certeza mecânica

do Direito. Primeiro, o controle dos preceitos jurisprudenciais a serem aplicados,

“se ao imperador era reservado o poder de criar e de interpretar o Direito, todas as

precedentes formas de expressão do jurídico estavam reservadas a um nível inferior

e não vinculante” (DINIZ, 2004, p. 10). As doutrinas passaram a ter apenas valor

teórico, eram vetores axiológicos, e só vinculavam quando a vontade do imperador

assim determinava. É o caso da Lei das Citações,34 em que, segundo a crítica de Petit

(1949, p. 69), o juiz deixa de ponderar sobre o valor intrínseco de cada opinião, para

apenas averiguar qual é a maioria; “aqui o juiz faz contas, não aprecia”.

Essas providências não resolveram o problema da incerteza e confusão, pelo

contrário, eram comuns a fraude e a distorção dos casos em que cada preceito se

aplicava. Daí a segunda tentativa, a tendência para as compilações, que tem como

ponto culminante a obra justiniana.

Virtude e vício de mãos dadas na aplicação do Digesto de Justiniano

Justiniano procura consolidar, na busca de uniformização e governabilidade, o

princípio, defendido desde o início do Dominato, de que a criação e interpretação do

Direito competem apenas ao imperador (ao soberano). Para tal, ele estabelece uma

inovação acerca do conceito de interpretação. Esta passava a ter um valor geral só

pelo fato de emanar do imperador, mesmo que fosse emitida para um caso singular.

Esse aspecto marca uma diferença fundamental com o período anterior, em que a

interpretação encontrava-se difusa, voltada para os casos específicos. Poderia haver

interpretações divergentes para o mesmo caso, oficialmente reconhecidas, situação

que se agravou com o ius respondendi. Era possível ao juiz recorrer a qualquer uma

delas e o que pretendia Justiniano era eliminar esse estado de incerteza.

Ao mesmo passo em que centraliza com maior eficácia toda a produção e

interpretação do Direito, Justiniano acredita que uma compilação deveria fornecer

respostas para todos os casos possíveis, presentes e futuros (Cf. DINIZ, 2004, p. 11).

Os juízes, assim, deveriam apenas considerá-la em sua literalidade, pois qualquer

34 A Lei de Citações segue o modelo iniciado por Constantino, que proibiu os comentários de Paulo e Ulpiano à obra de Papiniano. Promulgada em 426 d.C., nela fica permitido, nas contendas, somente o uso da obra de cinco jurisconsultos: Papiniano, Paulo, Ulpiano, Modestino e Gaio. Havia possibilidade de usar a obra dos jurisconsultos citados por estes, desde que fosse apresentado o respectivo manuscrito e comprovada a autenticidade. Na controvérsia entre estes, seguia-se a maioria, ou, em caso de empate, a opinião de Papiniano. Se ele não havia se pronunciado sobre a questão, o juiz escolheria livremente.

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Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

atividade que fosse além disso e buscasse dirimir dúvidas sobre sentido e alcance

estava já na esfera do poder imperial.

Os dizeres de Justiniano são esclarecedores:

Nostram autem consummtionem, quae a nobis deo adnuente componetur,

digestorum vel pandectarum nomen habere sancimus, nullis iuris peritis

in posterum audentibus commentarius illi asslicare et verbositare sua su-

pra dicit codicis compendium confundere, queadmodum et in antiquioribus

temporibus factum est, cum per contrarias interpretatium sententias totum

us paene conturbatum est; sed sufficiat per índices tantum modo et titulo-

rum suptilitatem quaedam admonitoria eius facere, nullo es interpretatio-

nen eorum vitio oriundo.35

Emanado o Direito diretamente das Constituições imperiais, ou emanado das

Compilações, restava ao juiz apenas interpretar literalmente. Os costumes já não

eram mais uma expressão da soberania popular, captados pela receptio moribus. A

consuetudo (nova denominação dos costumes) não tem mais valor vinculante como

tinham os mores, é mero fato observado como ordinário, usual, subordinado ao ius

imperial e, portanto, somente valia secundum legem, ou, no máximo, praeter legem

(nos casos de convivência do Direito romano com o Direito local), nunca contra le-

gem.36 Isso porque, se fosse possível não aplicar uma norma alegando que ela não é

mais observada, ou redimensioná-la alegando que a prática social não é mais aquela,

as propostas de Justiniano, nas quais ele depositava a esperança de uniformização e

certeza do Direito, frustrar-se-iam.

A intenção de Justiniano de acabar com as incertezas e as inúmeras possibili-

dades de interpretação quanto ao Direito produzido no passado e, ao mesmo tempo,

construir um sistema autossuficiente e duradouro, sem contradições ou lacunas,

deu-se, primeiramente, com a codificação dos iura, e teve seu desfecho com a pro-

dução das leges. Isso se operou por meio das constituições em que o próprio impe-

rador procurou dirimir as dúvidas e obscuridades restantes, já que a ele cabia não só

criar, mas interpretar o Direito. Dá-se, então, o fenômeno da interpretação autêntica.

É assim também que devemos lembrar que o Direito compilado sob Justiniano vale

não porque vigorou até então e deveria, portanto, ser consolidado, mas porque foi-

lhe atribuída a força da vontade do imperador:

[...] hasce itaque leges et adorate et obsrvate aomnibus antiquioribus quies-

contibus; nemoque vestrum audeat vel comparare eas prioribul vel, si quid

35 “Decidimos atribuir à compilação que vamos empreender com ajuda de Deus os nomes de Digesto ou Pandectas, proibindo que no futuro todos os juristas possam comentá-la, para evitar que, com sua retórica confundam a síntese realizada, tal como assim o era nos tempos antigos, quando todo o direito foi praticamente desorganizado pelas opiniões contrastantes dos intérpretes; assim, será suficiente fornecer advertências mediante sumários a especificações dos títulos, para que a atividade interpretativa dos jurisconsultos não gere incertezas”. Frag. 12, Const. Imperial Deo auctore (apud DINIZ, 2004, p. 11).

36 Aqui, a fala de Ulpiano, já citada, ganha maior significação: “Os costumes constantes devem ser observados como se fossem o Direito produzido pelas leis apenas nas matérias em que inexistem normas escritas”. D. 1;3;33.

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dissonans in utroque est, requirere, quia ome quod hic positum est hoc uni-

cum et solum obsrvari censemus.37

Era também intenção de Justiniano reduzir a quantidade de litígios e impor

uma decisão rápida, que acreditava ser possível pela literal aplicação do Direito.

Como resultado da uniformização da interpretação e, evidentemente, das decisões,

pois estas passariam a ter o mesmo fundamento jurídico, esperava-se realizar a

igualdade de todos perante o Direito, numa estrutura em que todo o povo estaria

no mesmo nível de igualdade, somente abaixo do imperador. Para tal, acreditou Jus-

tiniano que se deveria proceder eliminando-se a valoração do Direito na aplicação

para dotá-la de um caráter puramente mecânico.

A lição esquecida

Tentou-se impor, autoritariamente, uma visão simplificadora da realidade do

Direito, e o resultado foi a afirmação no plano prático da inevitabilidade da valora-

ção da norma quando confrontada com a realidade do caso concreto, portanto a ine-

vitabilidade da constante reinterpretação do Direito. Ocorreu, então, apenas a subs-

tituição de vários centros de decisão do sentido na norma por um só. Este, porém,

não pode deixar de ser solicitado sempre a reinterpretar. Disso conclui-se por um

atraso na solução dos conflitos e uma insatisfação geral, inclusive do imperador.

O Direito, obra cultural da vida comum, não pode depender da vontade de um

só. Justiniano aprende a lição e, em certa medida, volta atrás, ao editar posterior-

mente os seguintes dizeres:

Quoniam quidam iudicnatium post multa litis certamina et plurimam liti-

gantibus facta dispendia ad negotiis apud eos motis suggestionibus utuntur

ad nostram tranquilitatem, praesenti generali lege haec perspeximus emen-

dare ne dilationes ngotiis ex hoc fiant et aliud rursus principium examinatio-

nes eccipiant.Iubemus igiturnullum iudicantum quolibet modo vel tempore

pro cusis apud se propositis nuntiare ad nostrm tranquilitatem, sed exami-

nare perfecte causam et quod eis iustum legitimunque videtur decernere.38

O que ocorreu na tentativa de Justiniano – e que o levou à necessidade de

corrigir suas intenções – foi uma objetivação abstrativa do momento de aplicação do

Direito, em que se desprezam as peculiaridades do momento concreto de realização

37 “Venerai e observai estas leis, relegando ao esquecimento todas as anteriores; e nenhum de vós fará comparação entre elas nem buscará as discrepâncias entre elas existentes, vez que é a nossa vontade que se aplica exclusivamente e que foi posta nesta obra”. Frag. 19 da Const. Tanta (apud DINIZ, 2004, p. 12).

38 “Tendo em vista que alguns juízes, depois que a contenda judiciária é bastante prolongada e as partes tiverem muitas despesas nos processos que promoveram, recorrem por sugestão à nossa sapiência, determinamos que, com a presente lei geral, se corrija este estado de coisas a fim de que não mais existam reenvios e a decisão das causas não deva começar de novo desde o início. Determinamos, pois, que todos os juízes não submetam, de maneira alguma e em nenhum momento, à nossa sapiência, as causas que lhes sejam propostas e nelas decidam da maneira como lhes parecer justo e legítimo, segundo o direito em vigor”. Novela. 125 (apud DINIZ, 2004, p. 14).

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Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

do justo, tanto no que tange às propriedades e singularidades específicas de cada

demanda, quanto às implicações do momento histórico e social de cada caso. Ao

acreditar resolver o problema da interpretação trazendo a sistematização do ius

prudentium para o plano abstrato da vontade legislativa, e ao acreditar garantir a

certeza por meio da interpretação autêntica abstratamente construída, Justiniano

confiou a resolução dos problemas do Direito e da justiça apenas ao momento abs-

trato da lei (universal abstrato), desprezando o momento de atualização do Direito

e realização efetiva do justo na atividade corretiva, integradora e criativa da aplica-

ção (universal concreto). Sabemos, porém, que é nesse momento da singularidade

concreta que o justo adquire caráter atual, ou seja, realiza-se em ato (Cf. SALGADO,

2006, p. 195-212).

É comum encontrarmos nas obras jurídicas referências à primeira determi-

nação de Justiniano no sentido de se proibir interpretação na sua obra legislativa.

Curioso é notar que pouco se fala nos livros e nos manuais de Direito dessa re-

consideração do próprio Justiniano. Devemos mesmo nos perguntar pelas razões

da miopia legalista do século XIX e XX para essa verdadeira lição esquecida. Aliás,

devemos nos perguntar pelas razões da repetição na história do Ocidente desse erro

de se tentar concentrar a dicção plena do Direito apenas no momento abstrato da

Lei ou nas mãos de uma autoridade superior capaz de uma espécie de interpretação

autêntica. Postura contraditória, pois quer interpretar, com a autoridade de uma

espécie de “autenticidade”, aquilo que não é obra sua, mas do desenvolvimento de

uma cultura.39 Ao assim se proceder, deixa-se miopemente de encarar a realidade

do movimento do Direito na vida concreta de uma sociedade, fechando-se os olhos

para os problemas de legitimidade relativos à inerente subjetividade da atividade

interpretativa.

Considerações finais

A interpretação é o resultado da dialética entre a objetividade do discurso (do

texto, da obra) e a subjetividade daquele que a interpreta, o sujeito (Cf. MEGALE,

2005, p. 245-170). No Direito romano, essa observação se afirma no diálogo entre

a Lei e o Magistrado. Na imortal pena de Cícero, “pode-se dizer que o magistrado é

uma lei que fala; e a lei, um magistrado calado” (CÍCERO, 2002, p. 45).

Essa dialeticidade da compreensão não está presente apenas nesse diálogo

entre ius civile e ius honorarium (Cf. LAGES, 1947). Essa dialética, da qual resulta o

compreender, também é observada no diálogo entre os mores e os jurisconsultos

da ius receptur, entre o Direito em sua positivação imediata e sua categorização

pela atividade dos prudens, no ius prudentium. Ela, em síntese, se traduz na opo-

sição – apenas dialética – entre o Direito abstratamente dado e sua atualização

no caso concreto. A experiência jurídica romana revela-nos as verdades contidas

nesses movimentos especulativos da realização do justo.

39 O problema da concreção da Constituição, em nossos dias, pautada na concentração das tomadas de decisão acerca do sentido das normas constitucionais e das estruturas de aplicabilidade dos direitos fundamentais nos órgãos “supremos” do Estado, encarna, de certa forma, esse problema.

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Ao contrário do que se pretende com a afirmação distorcida dos exegetas fran-

ceses de que o juiz é a boca da lei, em Roma ele é como um arauto dela e, ao mesmo

tempo, um seu realizador, ele é “a Lei que fala”. Ao contrário do que prescreveram

todos os ditadores da história, a aplicação da lei não se resume à busca por um cor-

reto entendimento de sua vontade original abstrata, mas na sua conformação dia-

logal com a realidade contextual40 a ser devidamente pacificada, ou seja, pacificada

de modo justo.

A história da interpretação em Roma confunde-se com a história da formação

da doutrina do Direito, em que se busca esse equilíbrio entre segurança jurídica e

equidade (Cf. BETTI, 1949). Preserva-se o caráter de instrumentalidade do Direito, na

busca de efetivação do justo, mas não só do justo de um caso isoladamente conside-

rado. A jurística romana busca alcançar a realização do justo de um modo a torná-lo

geral, a partir do particular, por meio da construção das regras gerais e, ao mesmo

tempo, torná-lo concreto, pela efetivação desse justo que alcança o momento abstra-

to, mas que só o faz para tornar-se justo real, efetivo.

“O esforço poderoso e realista suportado pelos romanos para porem a justiça

a funcionar; o sentido prático com que se libertam dos entraves do formalismo; as

altas concepções morais que os dirigem” (VILLEY, 1991, p. 61) dão o tom da fina-

lidade ética da interpretação em Roma, apresentada como um saber virtuoso e, no

período clássico, como uma “obra-prima”, por sua capacidade de criar essas regras

gerais da doutrina, que viabilizam a aplicação das normas nos casos futuros, ao

mesmo tempo em que deixam a possibilidade e até mesmo criam as condições para

novas interpretações que respeitem a atualização das práticas e valores. Segundo

Villey (1991, p. 87-88):

Todas as forças do mundo antigo parecem pois ter concorrido para a formação

histórica do direito romano. O velho formalismo romano, o rígido respeito pelas

liberdades individuais, deram-lhe o seu preciso caráter de certeza, separaram-

no vantajosamente da moral, das regras menos precisas e sempre discutíveis.

O sentido da justiça que floresceu em Roma na época das conquistas tornou-a

relativamente apta a satisfazer as necessidades de toda a sociedade civilizada.

A lógica grega deu-lhe uma forma, que torna possível sua transmissão. Estas

breves observações relativas aos fatores da formação do direito romano permi-

tem já, talvez, pressentir a grande riqueza e a autêntica qualidade do legado de

Roma aos juristas modernos.

O Direito romano é, ainda nas palavras de Villey (1991, p. 56):

Um direito prático. O objetivo dos juristas romanos não é levar mais avante as

especulações dos filósofos gregos. É de realizar (o que os gregos nunca fize-

ram) os princípios ideais da equidade e da boa organização social. É manter de

fato a ordem e a paz romana.

40 Sobre a relação entre texto e contexto no Direito, cf. GRAU, 2007.

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Codificação e interpretação no devir histórico da experiência jurídica romana

A fala de Cícero mais uma vez vem nos lembrar que “não do Edicto do Pretor,

nem das XII Tábuas, mas da íntima filosofia, devemos haurir a disciplina do Direito”

(CÍCERO, 2002, p. 77). A ciência do Direito não se restringe à ciência da Lei, assim

como o ius não se restringe à lex. Esta é meio imprescindível sem o qual o Direito

não se realiza. Porém, o caráter normativo da interpretação jurídica (Cf. MEGALE,

2005, p. 156), somado ao resultado evolutivo e atualizador que sempre o acompa-

nha, impõe à estrutura do Direito o momento interpretativo como sendo um mo-

mento criador (ou criativo), porém não arbitrário, tão pouco discricionário, porque

partindo da Lei para realizá-la, (re)produzi-la, (re)criá-la no caso concreto.

O Direito romano, tomado em seu espírito, traduz-se numa estrutura normati-

va completa, por dar conta do movimento dialético entre formação do valor jurídico,

positivação da norma abstrata e realização concreta do justo, assim como das impli-

cações que cada um desses momentos tem nos demais.

A experiência romana revela a indubitável importância dos momentos de co-

dificação do Direito, mas, de modo correlato, ensina-nos que se trata de momento

de reorganização da normatividade; esta, incapaz de, por si só, produzir o justo

efetivo e, portanto, sempre carecedora de vivificação pela atividade hermenêutica.

Assim, antes de fecharmos os olhos para o fato da inerente subjetividade ínsita ao

processo de interpretação e aplicação do Direito, devemos reconhecer o importante

papel atualizador desse caráter subjetivo da aplicação, bem como os riscos a ele ine-

rentes, notadamente aqueles referentes à legitimidade das tomadas de decisão em

suas mais diversas manifestações no Estado Democrático de Direito.

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OReconhecimentoemHegel: leiturasdeLabarrière*

(The concept of recognition in Hegel’s Phenomenology of Spirit: Labarrière reading Hegel)

thErEsa CalvEt dE maGalhãEs**

A Nuno Manuel Morgadinho dos Santos Coelho

R E S U M OO artigo retoma a definição do reconhecimento na Phänomenologie des Geistes[1807]deHegel,talcomofoiresumidaporPierre-JeanLabarrièreem1997,ebuscaexplicitaressadefiniçãoaoapresentara(s)leitura(s)deLabarrièredessaprimeiraobrasistemáticadeHegele,maisespecificamente,dafigura“Senhorioeservidão”.

P A L A V R A S - C H A V EConceitodoreconhecimento;Essência;Infinitude;Reflexão;Autoconsciência;Reduplicaçãodaautoconsciência;Autonomiaeinautonomia;Liberdade.

a B S T R A C TMy aim in this paper is to attempt a few first steps in the direction ofreconstructingLabarrière’s reading of the concept of recognition and thefigure“Domination andServitude” inHegel’s first systematicwork – thePhilosophy of Spirit[1807].

K E y w O R D SConceptofrecognition;Essence;Infinity;Self-consciousness;Reduplicationofself-consciousness;“Self-standingnessandunself-standingness”;Freedom.

* A primeira versão deste texto foi apresentada, em Belo Horizonte, no Ciclo de Seminários do Curso de Graduação em Filo sofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 11 de outubro de 1990, e em Goiânia, numa versão modificada, no encerramento da V Semana de Filosofia da Universidade Católica de Goiás/IFITEC, em 11 de outubro de 1991. Sou grata ao professor Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, atual coordenador do Curso de Bachalerado em Ciências do Estado e Governança Social, da Faculdade de Direito da UFMG, e Professor dos Cursos de Pós-graduação em Direito da PUC Minas e da UFMG, pelo apoio e por ter acreditado que, apesar de tudo, eu podia agora voltar a Hegel. A Vilma Carvalho de Souza, Bibliotecária Chefe da Biblioteca da FAFICH/UFMG, agradeço o empenho em localizar todos os livros solicitados e a rapidez em encontrar, no site da Bibliothèque nationale de France, as datas de nascimento de Gwendoline Jarczyk e de Pierre-Jean Labarrière (não são dadas em nenhuma das obras publicadas por estes dois autores).

** Docteur en Sciences Politiques et Sociales pela UCL (Université Catholique de Louvain), professora aposentada da UFMG (FAFICH- Departamento de Filosofia), e Professora do Curso de Pós-graduação em Direito da UNIPAC (Universidade Presidente Antônio Carlos) em Juiz de Fora, Minas Gerais.

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198 Rev. da Fac. Min. de Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 22, p. 197-221, 2º sem. 2008

O reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière

Reconnaissance, Anerkennung

La reconnaissance est un concept de signification anthropologique.

Mettant en jeu le connaître aussi bien que l’agir, il traduit la pleine

réciprocité réflexive entre deux sujets qui sont en même temps objets

et d’eux-mêmes et de l’autre. Quatre vecteurs sont ici nécessaires de

concert: il faut en effet que chacun des partenaires exerce une négation

de même ampleur sur l’autre et sur soi-même, en accueillant ce même

agir double de la part de celui qui lui fait face. Tel est “le concept pur

du reconnaître, du redoublement de l’autoconsciênce dans son unité”.

(PhE, p. 219)1

A figura “Herrschaft und Knechtschaft (Senhorio e servidão)”, tal como é

apresentada por Hegel na Phänomenologie des Geistes (1807),2 na primeira divisão

do momento da Selbstbewusstsein (A- Selbstständigkeit und Unselbstständigkeit

des Selbstbewusstseins; Herrschaft und Knechtschaft),3 uma figura que coloca os

1 P.-J. Labarrière, Phénoménologie de l’esprit. Hegel. Paris: Ellipses, 1997, p. 60.

2 G. W. F. Hegel, Phänomenologie des Geistes [1807], Gesammelte Werke [GW], V. 9. Wolfgang Bonsiepen e Reinhard Heede (Ed.). Hamburg: Felix Meiner, 1980 [GW 9]. Tradução francesa de Gwendoline Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière. Phénoménologie de l’Esprit [PhE]. Paris: Gallimard, 1993 (todas as nossas referências são a esta tradução francesa da Phänomenologie des Geistes).

3 PhE, p. 216-227 (GW 9, p. 109-116). A tradução francesa do título desta primeira divisão da seção (B) Autoconsciência da Fenomenologia do Espírito, realizada por Labarrière, em 1968, retoma sem nenhuma modificação a tradução de Jean Hyppolite: “A. Indépendance et dépendance de la conscience de soi; Domination et Servitude” [G. W. F. Hegel, La Phénoménologie de l’Esprit. Tome I. Paris: Montaigne, 1941, p. 155]; em 1979, Labarrière modifica essa tradução: “A. Autonomie et inautonomie de la conscience de soi: Domination et Servitude”; Jarczyk e Labarrière traduziram o título dessa subseção em 1987: “A. Autonomie et inautonomie de l’autoconscience; Maîtrise et Servitude”; em 1988: “A. Autonomie et inautonomie de l’autoconscience; Maîtrise et Valétude” [Maître / Valet. Cinquante Ans après Kojève, La Pensée, n. 262 (mar/abril 1988), p. 90; modificado e publicado em 1996, com o título: Maître/serviteur, cinquante ans après Kojève, in: De Kojève à Hegel. 150 ans de pensée hégélienne en France. Paris: Albin Michel, p. 70-83]; e, finalmente, em 1993: “A. Autostance et inautostance de l’autoconscience; Maîtrise et Servitude” (PhE, p. 216). Diferentemente dos termos “Bewusstsein seiner” e “Bewusstsein von sich” (consciência de si), que expressam “uma apreensão de si a partir de um ponto de exterioridade” ou simplesmente “tomar-se a si mesmo por objeto de conhecimento”, o termo “Selbstbewusstsein” designa para Hegel “a reduplicação interior e imediata do Eu” (PhE, p. 207, nota 1), e é exatamente isso o que o neologismo “autoconsciência” quer significar: “Ao falar de Selbstbewusstsein, Hegel quer designar o movimento pelo qual a “consciência”, realidade essencialmente dual, se toma ela mesma como objeto de seu saber; o movimento de reflexão por meio do qual o “Eu” originário (o Ich, visado na sua qualidade de sujeito, como ponto de partida de um processo de sentido) retornou a si carregado da objetivação que ele se deu na linguagem ou no trabalho, e pode portanto ser denominado um “Si” (um Selbst)” (PhE, p. 55-56). Autoconsciência designa, assim, “a identidade processual entre o Eu e o Si” (PhE, p. 56). Seguimos aqui Jarczyk e Labarrièrre, e traduzimos sempre Selbstbewusstsein por “autoconsciência”, e não por consciência de si. Mas não tendo encontrado, em português, um termo para traduzir “autostance” [Selbständigkeit designaria, para Jarczyk e Labarrière, “uma realidade que “se tem em pé” (Stand / stehen) como um Si” (PhE, p. 57), ou o que literalmente “está em pé por si”; Labarrière já perguntava, em 1992: “[C]e qui fait qu’une réalité “se tient en soi comme un Soi”, pourquoi ne pas l’appeler son “auto-stance”? Un concept qui recouvre par exemple le sens du terme allemand Selbständigkeit, et qui n’a pas d’équivalent exact dans notre langue”, L’utopie logique (Paris: L’Harmattan, 1992), p. 120; e ele tenta familiarizar esse vocábulo (que não pode ser confundido com a autonomia no seu sentido kantiano de Selbstgesetzgebung) e legitimar seu uso no terceiro capítulo do seu livro: Au fondement de l’éthique. Autostance et relation (Paris: Kimé, 2004), p. 45-55], mantemos aqui, mas não é uma escolha feliz, para o título dessa subseção, a tradução anterior de Jarczyk e de Labarrière: “A. Autonomia e inautonomia da autoconsciência; Senhorio e servidão” [não seguimos a tradução francesa de Selbständigkeit / Unselbstständigkeit proposta mais recentemente na introdução de Olivier Tinland, Maîtrise et servitude. Phénoménologie de l’esprit (B, IV, A). Paris: Ellipses, 2003, que apenas modifica a tradução de Bernard Bourgeois (‘subsistance-par-soi” / “non-subsistance-par-soi”) acentuando agora a forma reflexiva deste vocábulo: “Autosubsistance / non-autosubsistance”; como traduzir então “das Bestehen” (“o subsistir”),

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primeiros lineamentos de uma compreensão do que é autenticamente a liberdade

concreta, não pode ser isolada do seu contexto imediato nessa subseção: o sentido

desta figura só é dado no “movimento do reconhecer [Bewegung des Anerkennens]”

(PhE, p. 217; GW 9, p. 109) ou no processo do reconhecimento em que está inscrita.

O termo “reconhecimento” traduz o alemão Anerkennung: “É claro”, dizia La-

barrière em 1979, “que temos de escutar aqui a ressonância interior dos termos

simples kennen (“conhecer”) e erkennen (“conhecer” igualmente, ou “reconhecer”

no sentido banal de “confessar”)”; mas, insistia ele, “anerkennen não é redutível à

ordem do saber”:

[E]sse verbo designa um movimento-fonte que caracteriza as estruturas

mesmas do existir, não segundo o estatismo de sua definição sincrônica, mas

no ato que as esclarece [les amène au jour] e (...) é o fundamento permanente

de sua subsistência, aquilo mesmo que as faz funcionar como estruturas-em-

-movimento.4

Opondo-se então à “leitura”, extremamente redutora e partidária,5 de Alexandre

Kojève (1902-1968) dessas páginas, nas suas “Leçons sur la Phénoménologie de

l’Esprit”, ministradas de 1933-1939 na École des Hautes Études, em Paris, que

na primeira seção (Consciência) [PhE, p. 179ss, 200; GW 9, p. 84ss, 98] e “das einfache selbständige Bestehen” (“le subsister autostant simple”) na segunda seção (PhE, p. 209; GW 9, p. 104)?]; ver o epílogo de Yvon Gauthier (“Epilogue sur le vocabulaire hégélien”), in: Moment cynétique et syllogistique dynamique chez Hegel, Philosophiques, v. 32, n. 2 (2005), p. 366-368; em Glas [1974], Jacques Derrida tinha usado o termo “stance”, na sua leitura da luta por reconhecimento na Realphilosophie (1805-1806) de Hegel: “La lutte à mort qui se déclenche alors entre deux stances paraît, en sa violence exterminante, plus impitoyablement concrète que dans les textes ultérieurs. Deux conditions la contiennent néanmoins, dont il faut bien règler les concepts” (J. Derrida, Glas 2. Paris: Denoël/Gonthier, 1981, p. 190).

4 P.-J. Labarrière, La Phénoménologie de l’Esprit de Hegel. Introduction à une lecture [IntPh]. Paris: Aubier-Montaigne, 1979, [Capítulo VII (La Reconnaissance)], p. 151 – este livro é o resultado de vinte anos de estudos dedicados a Hegel (ver a sua Introdução, p. 7-11). Ver também P.-J. Labarrière, La dialectique hegelienne (1982), in: G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Hegeliana. Paris: Presses Universitaires de France, 1986, p. 98.

5 Para uma apreciação crítica da leitura de Kojève, ver J. Hyppolite, La Phénoménologie de Hegel et la pensée française contemporaine (1957), in: Figures de la Pensée Philosophique, Écrits de Jean Hyppolite (1931-1968). Tome Premier. Paris: Presses Universitaires de France, 1971, p. 231-241; G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, De Kojève à Hegel. 150 ans de pensée hégélienne en France (1996). Numa carta, até recentemente inédita, a Tran-Duc-Thao, de 7 de outubro de 1948, Kojève confessava que usou Hegel para expor a sua própria concepção de uma antropologia dialética e histórica: “Gostaria de assinalar, entretanto, que a minha obra não tinha o caráter de um estudo histórico; não me importava muito saber o que o próprio Hegel quis dizer em seu livro; fiz um curso de antropologia fenomenológica servindo-me de textos hegelianos, mas dizendo apenas o que eu considerava ser a verdade, e deixando de lado o que me parecia ser, em Hegel, um erro. Assim, por exemplo, renunciando ao monismo hegeliano, afastei-me conscientemente deste grande filósofo. Por outro lado, o meu curso era essencialmente uma obra de propaganda destinada a surpreender os espíritos. Foi por isso que reforcei, conscientemente, o papel da dialética do senhor e do escravo e, de um modo geral, esquematizei o conteúdo da fenomenologia [Je voudrais signaler, toutefois, que mon oeuvre n’avait pas le caractère d’une étude historique; il m’importait relativement peu de savoir ce que Hegel lui-même a voulu dire dans son livre; j’ai fait un cours d’anthropologie phénoménologique en me servant de textes hégéliens, mais en ne disant que ce que je considérais être la vérité, et en laissant tomber ce qui me semblait être, chez Hegel, une erreur. Ainsi, par exemple, en renonçant au monisme hégélien, je me suis consciemment écarté de ce grand philosophe. D’autre part, mon cours était essentiellement une oeuvre de propagande destinée à frapper les esprits. C’est pourquoi j’ai consciemment renforcé le rôle de la dialectique du maître et de l’esclave et, d’une manière générale, schématisé le contenu de la phénoménologie].” (G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Alexandre Kojève et Tran-Duc-Thao. Correspondance inédite, Genèses, n. 2 (dez. 1990), p. 134).

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O reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière

foram reunidas e publicadas por Raymond Queneau em 1947,6 Pierre-Jean Labarrière

(1931- ) procurava retornar a uma leitura do texto original, atenta às estruturas da

obra e ao movimento que as anima, e portanto à função determinante que realiza

aqui, por trás da consciência, a lógica.7 Essa leitura apóia-se em uma nota redigida

6 A. Kojève, Introduction à la lecture de Hegel. Leçons sur la Phénoménologie de l’Esprit professées de 1933 à 1939 à l’École des Hautes Études (textos reunidos e editados por Raymond Queneau), Paris, Gallimard, 1947. Frequentaram todas as sessões, ou algumas dessas aulas, entre outros, Raymond Aron, Maurice Merleau-Ponty, Alexandre Koyré, Gaston Fessard, Raymond Polin, Eric Weil, Georges Gurvitch, Jacques Lacan, Pierre Klossowski, e talvez Jean-Paul Sartre. Sobre a recepção de Hegel na França, ver G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Cent cinquante années de “réception” hégélienne en France, Genèses, n. 2 (dez. 1990), p. 109-130. Ver Tran-Duc-Thao, La “phénoménologie de l’esprit” et son contenu réel, Les Temps Modernes, n. 36 (1948), p. 492-519. Jean Hyppolite, pace Labarrière (e Jarczyk), não frequentou esses cursos de Kojève: “Il y eut des cours organisés aux Hautes Etudes de 1933 à 1939. Beaucoup de futurs maîtres de la génération d’aujourd’hui (...) ont suivi ces cours, que j’ignorais à cette époque [grifos nossos]. (...) à la même époque, c’est-à-dire en 1939, je publiais la traduction d’une première moitié da la Phénoménologie, sur laquelle je travaillais depuis dix ans [grifos nossos] dans d’obscurs lycées de la province française. La deuxième partie devait paraître quelques années plus tard, en 1941. En 1946, enfin, je présentais comme thèse à la Sorbonne un commentaire de la Phénoménologie sous le titre: Genèse et structure de la phénoménologie de l’esprit” (J. Hyppolite, La Phénoménologie de Hegel et la pensée française contemporaine, p. 236). E é nessa conferência, apresentada em 1957 (em Bruxelas, na Bélgica), que ele esclarece a sua oposição a Kojève: “L’avenir m’a appris à moi-même la signification de mes différences d’interprétation avec Kojève. Après la Phénoménologie, je me suis mis au travail sur la Science de la Logique sur laquelle j’ai publié un volume: Logique et existence [1953]. Je crois l’interprétation de Kojève trop uniquement anthropologique. Le savoir absolu n’est pas, pour Hegel, une théologie, mais il n’est pas non plus une anthropologie. Il est la découverte du spéculatif, d’une pensée de l’être qui apparaît à travers l’homme et l’histoire, la révélation absolue. C’est le sens de cette pensée spéculative [grifos nossos] qui m’oppose, semble-t-il, à l’interprétaion purement anthropologique de Kojève” (Ibidem, p. 241). Ver a resenha de Gilles Deleuze, Jean Hyppolite, Logique et existence, Revue philosophique de la France et de l’étranger, v. CXLIV, n. 7-9 (julho-setembro 1954), p. 457-460 [novamente publicada, em 2002, na coletânea de textos de Deleuze, editada por David Lapoujade: L’île déserte et autres textes. Textes et entretiens 1953-1974. Paris: Minuit, p. 18-23]. Nenhuma referência, nas obras de Labarrière e de Jarczyk, a esse texto, considerado por Michel Foucault como um dos grandes livros do século XX (M. Foucault, Jean Hyppolite 1907-1968 [1969], Dits et écrits 1954-1988. v. I: 1954-1968. Daniel Defert; François Ewald (Ed.). Paris: Gallimard, 1994, p. 785), e que assim definiu a novidade da Lógica hegeliana: “La Logique hégélienne est la genèse absolue du sens, un sens qui est à lui-même son propre sens” (J. Hyppolite, Logique et existence. Essai sur la Logique de Hegel. Paris: Presses Universitaires de France, 1953, p. 209); apenas estas breves linhas, em 1990: “A signaler par ailleurs que son étude intitulée Logique et existence (un essai sur la Science de la logique) propose de la philosophie de Hegel une vue plus large, attentive aux problèmes formels que pose la gestion de ce discours, et que plusieurs autres études de sa plume ont tiré de là d’importantes conséquences en ce qui concerne les domaines de la politique et du droit” (G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Cent cinquante années de “réception” hégélienne en France, p. 124).

7 Joseph Gauvin, principal representante da “Escola de Chantilly”, desempenhou aqui um papel importante: os vários artigos, publicados nos anos 1960, sobre a interpretação da Fenomenologia do Espírito, o monumental Wortindex zu Hegels Phänomenologie des Geistes (Hegel-Studien, Beiheft 14, Bonn: Bouvier, 1977), que ele realizou a partir de um tratamento informático extremamente inovador na época, e os projetos de pesquisa que produziu ou ajudou a desenvolver, abriram um caminho para a nova leitura desta obra, que se enraíza no seu substrato lógico [ver a lista desses artigos na página final da introdução de P.-J. Labarrière, Phénoménologie de l’esprit. Hegel]. Foi inspirado por Gauvin, que Labarrière elaborou a sua primeira obra, intitulada Structures et mouvement dialectique dans la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel (Paris: Aubier-Montaigne, 1968), um estudo que ele defendeu como tese de doutorado em filosofia, em 1967, na Pontificia Università Gregoriana, em Roma. É também nesta linha de pesquisa que se inscrevem os trabalhos de Gwendoline Jarczyk (1927- ): Système et liberté dans la logique de Hegel (Paris: Aubier-Montaigne, 1980), a tese de Estado que ela havia realizado sob a direção de Paul Ricoeur*; Science de la logique, Hegel (Paris: Ellipses, 1998); a trilogia: Le négatif ou l’écriture de l’autre dans la logique de Hegel (Paris: Ellipses, 1998), Le mal défiguré. Étude sur la pensée de Hegel (Paris: Ellipses, 2000), Au confluent de la mort. L’universel et le singulier dans la philosophie de Hegel (Paris: Ellipses, 2002); La réflexion spéculative. Le retour et la perte dans la pensée de Hegel (Paris: Kimé, 2004); e Le concept dans son ambiguïté. La manifestation du sensible chez Hegel (Paris: Kimé, 2006); e os trabalhos que Jarczyk e Labarrière publicaram juntos: Hegeliana (1986); Les premiers combats de la reconnaissance. Maîtrise et servitude dans la Phénoménologie

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por Hegel em 1831, pouco antes de sua morte, no momento em que empreendia,

paralelamente à sua nova versão da Wissenschaft der Logik [1812/1813; 1816],8

a reescrita parcial de sua primeira grande obra sistemática, a Phänomenologie

des Geistes, para uma segunda edição, uma nota onde se encontra a observação

“Logik hinter dem Bewusstsein [lógica por trás da consciência]”, que orientaria essa

reescrita.9 Uma notação semelhante encontra-se na Introdução da Phänomenologie,

quando Hegel descreve as modalidades da transição de um objeto e do seu saber a

um outro objeto que marca para a consciência o acesso a uma nova figura, e sugere

que é a lógica, precisamente, como princípio, que nós vemos “funcionar” em cada

uma das experiências da consciência:

É essa circunstância que conduz em sua necessidade toda a série das figuras da

consciência. Só essa necessidade mesma, ou o surgimento do novo objeto que

se oferece à consciência sem que ela saiba como [isso] lhe advém, é o que para

nós sobrevém por assim dizer por trás de suas costas [hinter seinem Rücken].

(...) para ela, o que surgiu só é como objeto, para nós ao mesmo tempo como

movimento e vir-a-ser [als Bewegung und Werden]. Por essa necessidade, esse

caminho para a ciência é já ele mesmo ciência, e, segundo seu conteúdo, desde

logo, ciência da experiência da consciência. (PhE, p. 144-145; GW 9, p.61)

Temos de situar primeiro a Phänomenologie des Geistes (uma obra escrita

em tempos difíceis, de outubro de 1805 a janeiro de 1807, e publicada em mar-

ço de 1807, dois anos antes do ensaio de Schelling sobre a essência da liberdade

de l’Esprit de Hegel (Paris: Aubier-Montaigne, 1987); Hegel: le malheur de la conscience ou l’accès à la raison. “Liberté de l’autoconscience; stoïcisme, scepticisme et la conscience malheureuse” (Paris: Aubier-Montaigne, 1989); Le syllogisme du pouvoir. Y a-t-il une démocratie hegelienne? (Paris: Aubier, 1989). Em uma entrevista recente, concedida por e-mail, à IHU On-Line (Revista do Instituto Humanitas Unisinos), Edição 217 (30 de abril de 2007), Labarrière afirma sem hesitar que hoje, na França, “bem poucos se atêm ainda à leitura kojeviana da Fenomenologia” (p. 22). Mas ver aqui B. Bourgeois, Kojève à la Bibliothèque (L’homme et le penseur); J.–F. Kervégan, Kojève. Le temps du sage; F. Terré, Légitimité du politique, in: Hommage à Alexandre Kojève. Actes de la “Journée A. Kojève” du 28 janvier 2003. Florence de Lussy (org.). Paris: Bibliothèque nationale de France, 2007, p. 12-27; 41-54.

[* Em 1973, Labarrière também escolheu Paul Ricoeur para dirigir a sua tese de Estado, e ele explica o que motivou a decisão de sua escolha numa conversa com François Dosse: “[Ricoeur] était le seul à accepter une thèse atypique et apparaissait comme un recours pour tous ceux qui n’étaient pas au centre de l’idéologie universitaire” (F. Dosse, Paul Ricoeur – Les sens d’une vie. Paris: La Découverte, 2001, p. 584); a tese de Labarrière foi defendida em 1979, e publicada em 1983: Le discours de l’altérité. Une logique de l’expérience. Paris: Presses Universitaires de France.]

8 G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik. Erster Band. Die objektive Logik [1812/1813]. GW, V. 11. Friedrich Hogemann; Walter Jaeschke (Ed.). Hamburg: Felix Meiner, 1978 [tradução francesa de Gwendoline Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière: Hegel, Science de la logique. Premier tome – Premier livre: L’Être. Paris: Aubier-Montaigne, 1972; Hegel, Science de la logique. Premier tome –Deuxième livre: Doctrine de l’essence. Paris : Aubier-Montaigne, 1976]; Wissenschaft der Logik. Zweiter Band. Die subjektive Logik [1816]. GW, v. 12. Friedrich Hogemann; Walter Jaeschke (Ed.). Hamburg: Felix Meiner, 1981 [tradução francesa de Gwendoline Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière: Hegel, Science de la logique. Deuxième tome: La Logique subjective ou Doctrine du concept. Paris: Aubier-Montaigne, 1981]. Wissenschaft der Logik. Erster Band. Die Lehre vom Sein [1832]. GW, v. 21. Friedrich Hogemann; Walter Jaeschke (Ed.). Hamburg: Felix Meiner, 1984 [tradução francesa de Gwendoline Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière: Hegel, Science de la logique. Premier tome – Logique objective – Premier livre: La doctrine de l’être (versão 1832). Paris: Kimé, 2007].

9 G. W. F. Hegel, Notiz zur Uberarbeitung des Werkes von 1807 (GW 9, p. 448). Ver G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Les premiers combats de la reconnaissance, p. 14-18 ; G. Jarczyk, Logique derrière la conscience, Revue Internationale de Philosophie, n. 204 (2007), p. 121-134.

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O reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière

humana)10 no conjunto das grandes obras sistemáticas de Hegel,11 antes de expli-

citar a leitura de Gwendoline Jarczyk e de Pierre-Jean Labarrière dos primeiros

combates do reconhecimento, nessa obra, uma leitura apresentada em 1984-1985,

num seminário de pesquisa no Collège International de Philosophie,12 que foi

publicada no livro Les premiers combats de la reconnaissance, e retoma ou de-

senvolve a leitura de Labarrière do “reconhecimento” em La Phénoménologie de

l’Esprit de Hegel. Introduction à une lecture (p. 150-194).

Para Labarrière, a Ciência da lógica é talvez a obra mais importante e re-

presenta “a expressão formal e propriamente “fundamental” dessa totalidade sis-

temática” [na Ciência da lógica, o segundo livro da Lógica objetiva (a Doutrina

da essência) “constitui evidentemente a parte central da totalidade que ela é”];13 a

Fenomenologia do Espírito é ao mesmo tempo uma obra sistemática e uma obra de

10 F. W. J. Schelling, Philosophische Untersuchungen über das Wesen der menschlichen Freiheit und die damit zuzammenhängenden Gegenstände (1809). Tradução francesa de Jean-François Courtine e Emmanuel Martineau: Recherches philosophiques sur l’essence de la liberté humaine et les sujets qui s’y rattachent (F. W. J. Schelling, Oeuvres métaphysiques (1805-1821). Paris: Gallimard, 1980, p. 115-196). Ver Th. Calvet de Magalhães, Da identidade absoluta ao Deus vivo e pessoal. Meras observações para ler o Freiheitsschrift [1809] de Schelling, in: As Filosofias de Schelling. Fernando Rey Puente; Leonardo Alves Vieira (Org.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 169-188.

11 As quatro obras “sistemáticas” que Hegel publicou: a Phänomenologie des Geistes [1807], a Wissenschaft der Logik [1812/1813; 1816], a Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse [1817; 1827-2ª edição; 1830-3ª edição] e as Grundlinien der Philosophie des Rechts, oder Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse [1820-1821]. Para Jarczyk, são esses os quatro textos fundamentais aos quais uma leitura de Hegel deveria, primeiramente, se dedicar (ver G. Jarczyk, Système et liberté dans la logique de Hegel, p. 16, nota 1; P.-J. Labarrière, IntPh, p. 23).

12 G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Maître/valet chez Hegel: alternative à la lecture kojévienne, in: Le Cahier. Séminaires 1984-1985 – Collège International de Philosophie. Yves Duroux (Ed.). Paris: Osíris, 1985 (p. 108-110) - uma leitura a dois inserida num projeto conjunto de pesquisa que consistia na exploração metódica dessa (e de qualquer outra) tradução “antropológica” ou “ética” do esquema da “reflexão-mediação” explicitado, no segundo semestre 1983-1984, na leitura e comentário do texto que Hegel, na sua Ciência da lógica, dedica à “Die Reflexion” [Doutrina da essência, primeira seção, capítulo primeiro, C.], que apresentaram no seminário “Altérité et relation, le moment hégélien”, no Collège International de Philosophie.

13 G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Présentation (1972), in: Hegel, Science de la logique. Premier tome – Premier livre: L’Être, p. XXII-XXV; Présentation (1976), in: Hegel, Science de la logique. Premier tome –Deuxième livre: La doctrine de l’essence, p. IX-XIII. Na divisão C (“A reflexão” – Die Reflexion) do primeiro capítulo (“A Aparência” – Der Schein) da primeira seção da Doutrina da essência – é essa a convicção de Jarczyk e Labarrière, não apenas expressa na tradução francesa da Ciência da lógica que publicaram mas desenvolvida ao longo dos vários estudos que dedicaram à sua obra – Hegel teria exposto, “sob sua forma lógica a mais despojada”, o que constitui o dinamismo de todo o seu pensamento: “célula rítmica originária” de todo o “sistema” de Hegel, “desde os primeiros movimentos da Fenomenologia do espírito até ao final da Enciclopédia das ciências filosóficas, a reflexão, nessa acepção lógica, se apresenta como o arquétipo da mediação; ela não requer nenhum complemento, nenhum fora, mas apenas uma “ampliação” (Erweiterung) da totalidade que, considerada nela mesma, ela ainda só diz sob a modalidade absoluta do princípio. Dito de outro modo: tudo está aí, nessa espécie de implosão especulativa, e o resto - círculo dos círculos – terá sentido de explicitar a autoestruturação do real (do imediatamente dado) que esse esquema originário anuncia. Tratando-se em particular das determinações-de-reflexão (identidade, diferença, contradição), nós [Jarczyk e Labarrière] dizemos (...) que elas não acrescentam nenhum princípio novo de inteligibilidade em relação ao que precede; de modo que não é com elas que advém a consideração da alteridade real – como se ela faltasse ao esquema da reflexão; é antes essa alteridade mesma, tal como exposta em seu princípio lógico pelo movimento da reflexão [“movimento de nada a nada (posição), e por isso (exterioridade) a si mesmo em retorno (determinação)”]* que permite a estruturação das determinações-de-reflexão elas mesmas” (G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Le statut logique de l’altérité [1986], in: De Kojève à Hegel, p. 90). * P.-J. Labarrière, Écrire, dit-elle, Posfácio a G. Jarczyk, Le négatif ou l’écriture de l’autre dans la logique de Hegel, p. 616.

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circunstância; e quanto às duas outras obras, a Enciclopédia das Ciências Filosófi-

cas e as Linhas-fundamentais da Filosofia do Direito (uma ampliação da segunda

seção [“O Espírito objetivo”] da terceira e última parte da Enciclopédia),14 elas per-

tenceriam diretamente à expressão do “Sistema” (IntPh, p. 23-24).15 Cada uma destas

obras deve a totalidade que forma ao princípio único que se expressa nela, um prin-

cípio que a Ciência da lógica explicita de modo formal.16

A Fenomenologia do Espírito tem de ser lida então, tal como ela se apresenta,

como um discurso sistemático:17 não se trata de uma simples “introdução” ao Sis-

tema da Ciência, mas sim da “apresentação do saber que-aparece [die Darstellung

des erscheinenden Wissen]” (PhE, p. 135; GW 9, p. 55), ou seja, da “apresentação do

saber no movimento de sua “aparição””, uma expressão que resume, para Jarczyk

e Labarrière, “a obra em sua totalidade enquanto “apresentação” lógica do “saber”

como “fenômeno””(PhE, p.135, nota 1).18 É desse modo que esse “saber” será desdo-

brado em sua verdade:

A experiência que a consciência faz sobre si não pode, segundo seu conceito

[grifo nosso], compreender dentro de si nada menos que o sistema total dessa

mesma [consciência], ou o reino total da verdade do espírito, de sorte que os

momentos desta mesma [verdade] se apresentam nessa determinidade caracte-

rística [que consiste] em não serem momentos abstratos, puros, mas tais como

são para a consciência (...), e por isso os momentos do todo são figuras da

consciência.19 A consciência, ao se propulsar em direção à sua existência verda-

deira, vai atingir um ponto onde ela se despoja de sua aparência de ser afetada

por [algo de] estranho que só é para ela e como um outro, ou [vai atingir um

14 Esse texto corresponde (e é tematicamente co-extensivo) à segunda seção da Filosofia do Espírito, situada, na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, entre “O Espírito subjetivo” (Iª Seção) e “O Espírito absoluto” (IIIª Seção); sobre a significação dos três momentos que compõem as Linhas-fundamentais da Filosofia do Direito – O Direito abstrato [Das abstrakte Recht], A Moralidade [Die Moralität] e A Eticidade [Die Sittlichkeit] – ver P.-J. Labarrière, Hegel, une “philosophie du droit” (1977), in: G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Hegeliana, p. 217-228. Ver também G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Le syllogisme du pouvoir, p. 9-27; G. Jarczyk, Concept du travail et travail du concept chez Hegel (1985), in: G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Hegeliana, p. 229-246.

15 Em 1979, na conclusão de sua leitura da Fenomenologia do Espírito, Labarrière dizia que se o pensamento de Hegel deve ter uma posteridade hoje – “e ele o deve, na plena liberdade e responsabilidade que nos cabem” – é da Ciência da Lógica, “a obra mais prodigiosamente novadora de Hegel”, que a luz virá (IntPh, p. 282).

16 Ver Jarczyk e P.-J. Labarrière, Réflexion et altérité: peut-on dépasser Hegel ?, in: Hegeliana, p. 20-31.

17 A ideia da Fenomenologia, dizia Gauvin, “procede de uma correspondência radical entre duas necessidades, a de que a filosofia seja Ciência, e a de que ela se torne Ciência no tempo presente, de uma correspondência radical entre a Ciência, tal como ela é em si mesma, e as experiências da consciência compreendidas como objeto de ciência; estando assim acentuado que é apenas agora, em 1807, que se tornou possível apreender a filosofia como Ciência e compreender as experiências da consciência cientificamente.” (J. Gauvin, Plaisir et Nécessité, Archives de Philosophie, I (out.-dez. 1965), p. 483-509). Ver PhE, p. 20-38.

18 Ver P-J. Labarrière, La Phénoménologie de l’Esprit cornme discours systématique: histoire, religion et science (1974), in: G. Jarczyk e P-J.Labarrière, Hegeliana, p. 123-148. Ver também G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Absolu / sujet. Le logique, le dialectique et le spéculatif, Laval théologique et philosophique, v. 51, n. 2 (junho 1995), p. 239-250.

19 Para Jarczyk e Labarrière, já estaria aqui justificado o título que Hegel finalmente deu a sua primeira obra sistemática: “A ‘experiência da consciência’, em sua dimensão de ‘ciência’, é, com efeito, manifestação do espírito, - sua ‘fenomeno-logia’” (PhE, p. 145, nota 3).

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O reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière

ponto] onde o fenômeno se torna igual à essência, [onde] sua apresentação logo

coincida justamente com esse ponto da ciência propriamente dita do espírito, e

finalmente, ao apreender ela mesma essa sua essência, ela designará a natureza

do próprio saber absoluto. (PhE, p. 145-146; GW 9, p. 61-62)20

Para Jarczyk e Labarrière, a Fenomenologia do Espírito só pode ser conside-

rada como “primeira parte do sistema” porque ela realiza a totalidade desse mesmo

sistema; o conteúdo total do sistema é exigido para que possa se operar a conversão

plena da consciência à verdade de sua própria certeza. E isso significa que temos

de prestar atenção ao modo de estruturação segundo o qual o processo das figuras

da consciência se organiza, “por trás de suas costas”, desde a certeza sensível até

ao saber absoluto:

(...) o processo da consciência, transitando de figura em figura – e que é para

ela experiência de uma perda de seu objeto na descoberta de um objeto novo -,

é na realidade comandado, “por assim dizer por trás de suas costas”, por uma

“necessidade” lógica que faz com que para nós o que surge se apresenta como

“movimento e vir-a-ser” orgânicos.21

Labarrière volta a discutir o lugar que essa obra ocupa no sistema hegeliano

em sua pequena introdução da Fenomenologia do Espírito, em 1997, e afirma mais

uma vez que ela tem de ser considerada como uma introdução científica ao Sistema

da ciência.22

O “Sumário” da edição original da Fenomenologia do Espírito (PhE, p. 63-65)

fornece dois modos de organização do texto. O primeiro comporta seis divisões

principais, designadas por Hegel pelo termo lógico de “momentos” (Momente) ou

pelo termo fenomenológico de “figurações” (Gestaltungen):23 Consciência, Autocons-

ciência, Razão, O Espírito, A Religião, O Saber absoluto; estes seis momentos são

reunidos de acordo com uma divisão ternária:

20 “Die Darstellung des erscheinenden Wissen. (...) “Apresentar”, é desdobrar um dis-curso, ex-plicitar e colocar-aí o que é da ordem da interioridade originária, fazer vir à efetividade formal o conteúdo da essência, em resumo, desdobrar o movimento de dupla pressuposição que faz com que interior e exterior encontrem um no outro o que constitui sua própria razão de ser. Nesse sentido, o “saber” não poderia se impor como um fato acabado, mas é sempre em ato de advir ou de “aparecer”. A história desse vir-a-ser, é o movimento que transita de figura em figura, desde a certeza sensível até ao saber absoluto – que representa o apagamento de todas as positividades congeladas, de todos os cerramentos, e a abertura sobre o infinito das realizações históricas.” (G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Absolu / sujet. Le logique, le dialectique et le spéculatif, p. 242).

21 G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Phénoménologie de l’esprit et Science de la logique. Perspectives nouvelles, in: Lectures de Hegel. Olivier Tinland (Org.). Paris: Le Livre de Poche, 2005, p. 66-67; sobre a distinção “para nós / para a consciência” (für uns / für das Bewusstsein) ver P.-J. Labarrière, IntPh, p. 35-64; Phénoménologie de l’esprit. Hegel, p. 59.

22 P.-J. Labarrière, Phénoménologie de l’esprit. Hegel, p. 7-9; 31. Ver P.-J. Labarrière, Structures et

mouvement dialectique dans la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel, p. 53-60.

23 PhE, p. 39; uma figuração “desdobra e reúne uma série de figuras (Gestalten) na unidade de um princípio de leitura” (PhE, p. 582, nota 2).

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thErEsa CalvEt dE maGalhãEs

(A) Consciência

(B) Autoconsciência

(C) (AA) Razão

(BB) O Espírito

(CC) A Religião

(DD) O Saber absoluto [a divisão (C) reúne, para Jarczyk e Labarrière, as

quatro últimas seções da obra e não apenas o

conteúdo da seção Razão].24

O segundo modo de organização é indicado com a divisão, em números roma-

nos, em oito partes ou capítulos propostos segundo uma ordem linear:

I. A certeza sensível, ou o isto e o opinar [das Meinen]25

II. A percepção, ou a coisa e a ilusão

III. Força e entendimento, fenômeno e mundo suprassensível [estes três primeiros

capítulos representam as divisões internas da seção (A) Consciência]

IV. A verdade da certeza de si mesmo [= seção (B) Autoconsciência]

V. Certeza e verdade da razão [= seção (C) (AA) Razão]

VI. O espírito

VII. A religião

VIII. O saber absoluto.

À primeira vista, não há nada, nesse sumário, que permita uma leitura silo-

gística da obra. No entanto, ao significar, no início da seção (C) (AA) Razão,26 que

“todo movimento conceitual está articulado segundo as categorias da identidade, da

diferença e da contradição”, Hegel possibilita a busca de uma leitura do conteúdo da

Fenomenologia segundo esse esquema. Uma primeira tentativa - que foi proposta

por Theodor Haering, em 1934, em Die Entstehungsgeschichte der Phänomenologie

des Geistes,27 e de certo modo retomada por Jean Hyppolite, em Genèse et structu-

re de la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel28 - consiste em reler esse conteúdo

segundo a organização da Terceira Parte [“A Filosofia do Espírito”] da Enciclopédia

das Ciências Filosóficas:

O Espírito subjetivo foi então identificado com os três primeiros momentos

- Consciência, Autoconsciência, Razão. (...) Ao Espírito objetivo devia corres-

ponder o conteúdo do momento do Espírito, que faz aparecer as diferentes

etapas do desenvolvimento da consciência social e política. Quanto ao Espírito

24 Ver PhE, p. 40, nota 1. Ver também P.-J. Labarrière, IntPh, p. 71; G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Les premiers combats de la reconnaissance, p. 19-23; P.-J. Labarrière, Phénoménologie de l’esprit. Hegel, p. 12.

25 Ver PhE, p. 75, nota 1.

26 Ver PhE, p. 257-258 (GW 9, p. 135-126).

27 Th. Haering, Die Entstehungsgeschichte der Phänomenologie des Geistes, in: Verhandlungen des dritten Hegelkongresses in Rom. B. Wigersma (Ed.). Tübingen, 1934, p. 118-138.

28 Ver J. Hyppolite, Genèse et Structure de la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel, p. 54-76.

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O reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière

absoluto, ele reuniria aqui os dois momentos da Religião e do Saber Absoluto.

(JARCZYK; LABARRIèRE, 1987, p. 20)

Essa leitura apoia-se numa hipótese, quanto à redação da Fenomenologia,

proposta por Haering (que foi retomada e criticada por Otto Pöggeler, em 1961):29

Hegel teria primeiro meditado uma obra de dimensões reduzidas, limitada aos

momentos da Consciência, da Autoconsciência e do início da Razão. Ela teria

simplesmente como fim significar a introdução da consciência individual no

elemento da Ciência. Daí o título primitivo dado por Hegel à sua obra: Ciência

da experiência da consciência. Foi ao redigir “A razão observante”, primeira

divisão do momento da Razão, que ele teria “perdido o controle” de seu de-

senvolvimento; ele teria então deixado seu plano primitivo se distender, até

verter nele todo o conteúdo do Espírito objetivo e do Espírito absoluto, que

devia no plano primitivo permane cer fora da consideração; foi então que o tí-

tulo mais vasto de Ciência da Fenomenologia do Espírito se impôs - simplifi-

cado pela tradição para reencontrar a sua forma atual. (JARCZYK; LABARRIèRE,

1987, p. 20-21)

Essa divisão factícia instituída entre o momento da Razão e o momento do

Espírito foi acentuada com a publicação da tradução francesa de Jean Hyppolite da

Fenomenologia do Espírito, em dois volumes, em 1939 e 194130 (e com a publi-

cação, em 1992, da tradução de Paulo Meneses dessa obra, em dois volumes, pela

Editora Vozes).31

Trata-se, ao contrário, para Labarrière, e isso já em 1968, em Structures et

mouvement dialectique dans la Phénoménologie de l’ Esprit de Hegel, de resta-

belecer a unidade do projeto sistemático de Hegel. A verdadeira estrutura da obra é

indicada por Hegel na sua introdução à seção (C) (CC) A Religião:

29 O. Pöggeler, Zur Deutung der Phänomenologie des Geistes, Hegel-Studien, 1 (1961), p. 255-294 [tradução francesa: Qu’est-ce que la Phénoménologie de l’Esprit ?, Archives de Philosophie, n. 29 (1966), p. 189-236]. Ver P.-J. Labarrière, Structures et mouvement dialectique dans la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel, p. 26-27 (nota 29).

30 Na “Présentation” da primeira edição (1993) de sua tradução francesa da Fenomenologia do Espírito, Jarczyk e Labarrière reconhecem o mérito da tradução de Hyppolite e confessam sua dívida para com ele e sua admiração: “L’édition française de la Phénoménologie de l’Esprit réalisée par Jean Hyppolite (...) a d’autres titres à faire valoir pour forcer le respect et l’admiration; il est à présumer qu’elle continuera d’être pratiquée avec profit (...). On a peine à mesurer le mérite de ce jeune universitaire qui se lança tout seul dans une aventure monumentale: s’aidant des traductions anglaise (Baillie) et italienne (de Negri), Hyppolite engagea la puissance et la finesse de l’authentique philosophe qu’il fut pour fournir un texte élégant, délivré de ses brachylogies, levant de façon presque toujours exacte les ambiguïtés qui procèdent des renvois parfois problématiques des pronoms personnels ou relatifs, et s’engageant de surcroît dans des notes explicatives souvent fort bien venues – une tâche indispensable pour un texte de cette complexité. (...) en ce qui nous concerne, et tout en ayant repris le travail à la base, en toute liberté, nous avons plaisir à avouer notre dette et notre admiration à l’égard de celui qui, cinquante années durant, fut incontestablement une référence obligée des études hégéliennes en France” (PhE, p. 50-51).

31 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito. Parte I (tradução de Paulo Meneses, com colaboração de Karl-Heinz Efken); Parte II (tradução de Paulo Meneses, com colaboração de José Nogueira Machado). Petrópolis: Vozes, 1992. Mas, finalmente, o volume único com a 2ª edição (corrigida) de 2003.

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thErEsa CalvEt dE maGalhãEs

O espírito que se sabe a si mesmo [Der sich selbst wissende Geist; L’esprit se

sachant soi-même] é, na religião, imediatamente sua própria autoconsciência

pura. As figuras desse mesmo [espírito] que foram consideradas – o espírito

verdadeiro, o [espírito] alienado de si e o [espírito] certo de si mesmo – o consti-

tuem, conjuntamente, em sua consciência, que, confrontando-se ao seu mundo,

não se conhece nele. (PhE, p. 584-585; GW 9, p. 364)

Uma divisão bipartida – o espírito em sua consciência ou em seu mundo; o

espírito em sua autoconsciência – que indicaria toda a estrutura da obra. Segundo

a lógica de seu conteúdo filosófico, a Fenomenologia do Espírito comporta assim

duas partes principais:

“1) Primeiro o espírito em sua consciência ou em seu mundo – isto é em sua fi-

gura objetiva, recapitulando as três primeiras seções (Consciência, Autoconsciência,

Razão) sob a leitura histórica que porta a quarta [seção], isto é a seção Espírito”;32

esta primeira parte termina na forma perfeita (mas toda abstrata) do “sim” da

reconciliação,33 que se tornou possível na história (a forma de uma reconciliação que

deve ainda manifestar seu conteúdo): “O sim que-reconcilia [Das versöhnende Ja], no

qual os dois Eus [beide Ich] desistem de seu ser-aí oposto, é o ser-aí do Eu estendido

até a dualidade, [Eu] que nisso permanece igual a si, e, em sua perfeita exterioriza-

ção e [seu] contrário, tem a certeza de si mesmo” (PhE, p. 580; GW 9, p. 362);

“2) Em seguida o espírito em sua autoconsciência, tal como foi levado a se

dizer a partir de sua própria interioridade e até nas formas as mais exteriores da

contingência (Religião)”;34 esta segunda parte, constituída por toda a seção (C) (CC)

A Religião, termina na comunidade dos crentes (a comunidade protestante), que

expressa em forma representativa inadequada a plenitude do conteúdo do Espírito

[o conteúdo da reconciliação religiosa deve ainda adquirir a forma do conceito] (PhE,

p. 669-672; GW 9, p. 419-421).

A última seção (a seção (C) (DD) O Saber absoluto) se apresenta então como

a unificação destas duas reconciliações (a reconciliação histórica e a reconciliação

religiosa) entre consciência e autoconsciência (PhE, p. 679; GW 9, p. 425).35 Assim se

desdobra o silogismo da obra:

32 P.-J. Labarrière, Phénoménologie de l’esprit. Hegel, p. 13 ; ver G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Le savoir absolu n’est pas l’absolu du savoir, in: De Kojève à Hegel, p. 223-224.

33 O termo “reconciliação” (Versöhnung), dizia Labarrière em 1979, “nunca designa, em Hegel, uma supressão das diferenças em qualquer identificação pálida que nos subtrairia às coações do tempo, mas [sim] um movimento que considera essas diferenças para fazê-las funcionar como diferenças, isto é, como polos em tensão de uma totalidade articulada nela mesma” (IntPh, p. 74).

34 P.-J. Labarrière, Phénoménologie de l’esprit. Hegel, p. 13. Ver também P.-J. Labarrière, Le Dieu de Hegel, Laval théologique et philosophique, v. 42, n. 2 (junho 1986), p. 243-244 ; G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Le savoir absolu n’est pas l’absolu du savoir, in: De Kojève à Hegel, p. 224.

35 Ver o esquema apresentado em Structures et mouvement dialectique dans la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel (p. 209), que continha um erro assinalado (e corrigido) por Labarrière em 1979 (IntPh, p. 87, nota 64).Ver também M. Maesschalck, La Phénoménologie de l’Esprit, in: Le principe d’autonomie. Introduction aux auteurs modernes. Louvain-la-Neuve: Éditions de l’Institut Supérieur de Philosophie, 1992 (Capítulo 8, p. 265-271); J.-F. Kervégan, Hegel et l’hégélianisme. Paris: Presses Universitaires de France, 2005 (Segunda Parte, Dans le système, Capítulo 1: “La Phénoménologie de l’Esprit”).

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O reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière

(...) a Fenomenologia do Espírito encontra sua resolução na unificação das

duas reconciliações [Vereinigung der zwei Versöhnungen] entre consciência

e autoconsciência que intervêm respectivamente ao termo da seção Espírito

(figura mundana O mal e seu perdão como forma) e da seção Religião (figura da

comunidade espiritual como conteúdo). (PhE, p. 678-679, nota 8).

Labarrière insiste que essa unificação dos extremos, que são por um lado a

história e, por outro lado, a religião, é tarefa de liberdade. Hegel não pode ser con-

siderado como um “visionário que pronunciaria de uma vez por todas uma unidade

posta e acabada”; ele propõe uma tarefa: “o caráter “absoluto” –deveríamos dizer

apenas absoluto36- do saber ao qual ele nos conduz sendo então (...) o que nos re-

corda que este, afirmado em sua verdade de princípio, deve ainda se encenar e se

autenticar no livre engajamento de cada um”.37 Chegamos ao saber absoluto - “o

espírito que se sabe em figura-de-espírito, ou o saber conceituante”38 - ao final de

uma “releitura interiorizante” dos momentos do conceito, que a análise fenomenoló-

gica desdobrou ao mostrar sua realização em figuras distintas da consciência. Cada

expressão da consciência, então, ganha sentido quando reposta no movimento refle-

xivo que articula os dois momentos (histórico e religioso), do espírito.

Reconhecimento e alteridade

Interpretar a figura “Senhorio e servidão” (Herrschaft und Knechtschaft),39 no

seu contexto imediato - a primeira divisão do quarto capítulo A verdade da certeza

36 O termo “absoluto”, usado como adjetivo ou como nome, tem sempre ou quase sempre em Hegel uma acepção lógica, escreve Labarrière, “e significa que a realidade em causa comporta decerto tudo o que é exigido para subsistir por ela mesma, mas ainda na abstração de uma afirmação de princípio que deve liberar sua própria carga de concretude medindo-se à imediatidade das coisas ou dos acontecimentos. (...) Essa dicção de si é análoga ao movimento que o conceito apenas conceito deve fazer para se determinar ele mesmo como conceito que veio-a-ser [devenu], mediatizado – conceito posto como conceito.” (P.-J. Labarrière, Phénoménologie de l’esprit. Hegel, p. 25); ver P.-J. Labarrière, IntPh, p. 255-279; G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Le savoir absolu n’est pas l’absolu du savoir, in: De Kojève à Hegel, p. 217-230; G. Jarczyk, Science de la logique. Hegel, p. 53.

37 P.-J. Labarrière, Structures et mouvement dialectique dans la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel, p. 267. O termo “liberdade” (Freiheit) resume, para Labarrière, todo o conteúdo da Fenomenologia do Espírito e das outras obras sistemáticas de Hegel (ver P.-J. Labarrière, Phénoménologie de l’esprit. Hegel, p. 58; Hegel, une “philosophie du droit”, in: Hegeliana, p. 221-222); sobre a significação da Ciência da Lógica como lógica da liberdade ver G. Jarczyk, Système et liberté dans la Logique de Hegel (1980); Science de la logique. Hegel (1998); Logique et liberté, in: De Kojève à Hegel, p. 117-125.

38 “Essa última figura do espírito, o espírito que ao seu conteúdo completo e verdadeiro dá ao mesmo tempo a forma do Si, e por isso realiza seu conceito do mesmo modo que permanece em seu conceito nessa realização, é o saber absoluto; ele é o espírito que se sabe em figura-de-espírito, ou o saber conceituante. (...) O espírito aparecendo à consciência nesse elemento, ou, o que aqui é o mesmo, produzido por ela nesse elemento, é a ciência” (PhE, p. 63; GW 9, p. 427-428).

39 Um extremo cuidado de coerência lexical levam Jarczyk e Labarrière a traduzir Herrschaft und Knechtschaft, Herr, Knecht (Diener), Dienst, das Dienen, das knechtische Bewusstsein, das dienende Bewusstsein: “Maîtrise et Servitude” (PhE, p. 216, 254, 435), “maître” (PhE, p. 222-226, 228, 236, 399, 415, 432, 603, 635), “serviteur” (PhE, p. 222-226, 230, 236, 249), “service” (PhE, p. 10, 227, 399, 454, 456, 459, 462, 478, 491, 502), “(le)servir” (PhE, p. 225, 230), “conscience servile” (PhE, p. 224), “conscience servante” (PhE, p. 226, 228) [mas traduzem Verhältnis des Herrshens und des Dienens: “relation du dominer et du servir” (PhE, p. 233)]. O mesmo cuidado nos fez optar pela correspondência servidão / servo / serviço/ servir [“O Knecht não é o escravo (der Sklave), sujeito das revoluções e das agitações

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thErEsa CalvEt dE maGalhãEs

de si mesmo (Die Wahrheit der Gewissheit seiner selbst), que corresponde à seção (B)

Autoconsciência: “A. Autonomia e inautonomia da autoconsciência;40 Senhorio e ser-

vidão” -, implica considerar as relações que ela entretém com as figuras que a pre-

cedem (a seção (A) Consciência e o seu resultado lógico: o conceito de infinitude),41

sociais legítimas, mas o membro de uma domesticidade” (G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Maître / Valet. Cinquante ans après Kojève, p. 98, nota 8), ou seja, alguém que está ligado ao serviço de um senhor e faz parte de sua domesticidade - ver PhE, p. 222, nota 3; Maître/serviteur, cinquante ans après Kojève, p. 70-71], e traduzimos: senhorio e servidão, senhor, servo (servidor), serviço, (o) servir, consciência servil, consciência servente.

40 Ver acima, nota 3. Considerados em sua verdade, os dois termos Selbständigkeit e Unselbständigkeit devem, segundo Jarczyk e Labarrière, “ser entendidos como marcando conjuntamente uma realidade qualquer assim qualificada na sua dimensão de sujeito: exata dicção (...) da dupla qualificação lógica graças à qual essa realidade, no ato de sua mediação – de sua automediação -, é ao mesmo tempo “para si” e “para um outro”, relação a si e relação à alteridade, “determinação” interior e “disposição” exterior”. E criticam a tradução francesa de Hyppolite: “Assim da autoconsciência, justamente, que é dita ao mesmo tempo selbständig e unselbständig [nessa primeira divisão do capítulo quatro da Fenomenologia], Hyppolite escolheu falar de “indépendance” e de “dépendance”; o que comporta um duplo inconveniente: primeiro, estes dois termos franceses respondem mais diretamente a duas outras palavras que Hegel usa muitas vezes (Unabhängigkeit e Abhängigkeit); em seguida, essa tradução obriga a deslocar o peso da negação, já que o conceito positivo de Selbständigkeit deve então ser expresso pelo conceito negativo de “independência” e vice versa”. Jarczyk e Labarrière confessam que por muito tempo usaram, nesse contexto, os termos “autonomia” e “inautonomia”, uma opção, dizem eles agora (em 1993), “que não parece possível, finalmente, manter, na medida em que eles [esses termos] introduzem uma ideia de “lei” ou de “norma” (nomos) totalmente estranha aos vocábulos alemães.” Na verdade, insistem eles, “a Selbständigkeit, segundo a etimologia do termo, designa uma realidade que “está de pé” (Stand / stehen) como um “Si”; uma realidade que, nesse sentido, está [se tient] ela mesma como um termo médio entre os extremos da “estranheza” (“étrangèreté”) dualizante (Fremdheit) e da “transparência” que seria, de si, o signo de um monismo redutor (Durchsichtigkeit). Uma acepção das mais precisas que nenhum termo francês pertencente à língua filosófica ou à língua comum consegue expressar; (...) forjamos os termos “autostance” e “inautostance” (...) que significam o que está (ou não está) por si mesmo [ce qui tient (ou ne tient pas) par soi même]” (“Présentation”, PhE, p. 57). Por que não traduzir esses termos, em português, por autosubsistência e não-autosubsistência? Em 2004, Labarrière explicita mais detalhadamente o neologismo que decidiram criar: “Fremdheit e Durchsichtigkeit: duas figuras conexas, variantes inimigas de uma mesma falta de pensamento, de uma mesma incapacidade de articular reflexivamente o mesmo e o outro, o sujeito e o objeto, o interior e o exterior, o ser e o agir. Que o termo Selbständigkeit esteja no ponto de difração entre estas duas negações de primeiro grau diz já por si mesmo que ele remete a um processo de reflexividade, se determinando como negação de segundo grau, ou ainda como negação de negação. Nesse sentido, a Selbständigkeit, em vez de fechar o movimento como o fazem os outros dois termos, abre um espaço de reflexão (...). Assim a autostance, transcrição exata em francês dessa Selbständigkeit, significa, no seu sentido mais preciso, que a realidade assim qualificada deve “estar de pé por si mesma”, isto é, conter em si sua própria negação – uma negação reflexiva (...).” E ao recusar tanto o termo “autonomia” como o termo “independência” para traduzir esse termo alemão, Labarrière dizia: “Ora a Selbständigkeit tem uma consonância decididamente positiva. Antes de falar a seu respeito de autonomia ou de independência, os bons dicionários retomam a significação etimológica do termo: é selbständig o que literalmente “está de pé por si” - um por si mesmo que, longe de rejeitar toda mediação pela alteridade, afirma a minima que a realidade em causa possui “nela” de que “subsistir” - e de que subsistir, justamente, nesse tipo de universalidade que a relação essencial implica com o outro de si: riqueza interior que comporta portanto uma dimensão essencial de abertura e de universalidade (...). Autonomia e independência arrastariam [tireraient] portanto o que está em causa para a ideia de uma subjetividade autosuficiente].” (P.-J.. Labarrière, Au fondement de l’éthique, p. 46-48). Mantenho a tradução anterior de Jarczyk e Labarrière mas dando aos termos “autonomia” e “inautonomia” toda a carga semântica dos vocábulos Selbständigkeit e Unselbständigkeit, já explicitada por Labarrière (e Jarczyk).

41 PhE, p. 201-206 (GW 9, p. 99-102). O movimento da infinitude se revela como “a alma do mundo” (PhE, p. 201; GW 9, p. 99), a alma do mundo subjetivo e a alma do mundo objetivo: “A infinitude [Unendlichkeit] é a alma do processo que comandara o desenvolvimento das figuras da [seção] Consciência - à maneira da Lógica que opera “por trás” dessa consciência” (PhE, p. 203, nota 1); sobre a significação da parte conclusiva do capítulo III, “Força e entendimento, fenômeno e mundo suprasensível”, ver L. A. Vieira, A Desdita do Discurso. São Paulo: Loyola, 2008, p. 118-127.

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O reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière

e com as figuras que a seguem e têm como função expressar em sua concretude

histórica o movimento do reconhecer, primeiro no cen tro da seção (C) (AA) Razão,

na segunda divisão “B. A efetuação da autoconsciência racional por si mesma (Die

Verwirklichung des vernünftigen Selbstbewusstseins durch sich selbst),42 e depois, ao

final da seção (C) (BB) O Espírito, na figura “O mal e seu perdão”.43 Tirar esta figura

de seu contexto e do movimento do reconhecer em que está inscrita, e considerar

esse texto como uma chave universal para explicar o nascimento da humanidade ou

a organização atual das relações sociais seria, para Jarczyk e Labarrière, fazer vio-

lência à “história” que conduz essa figura “e que comanda sua interpretação”,44 ou

seja, significaria não honrar a sua significação contextual.

Hegel faz, logo no primeiro parágrafo da longa introdução dessa quarta

divisão,45 uma releitura da seção (A) Consciência que nos permite apreender o que

faz sua verdade: “Nos modos precedentes [den bisherigen Weisen] da certeza, à

consciência o verdadeiro é algo outro que ela mesma. Mas o conceito desse verda-

deiro desaparece [verschwindet] na experiência que se faz dele [in der Erfahrung

von ihm]” (PhE, p. 207; GW 9, p. 103). Esse “desaparecer” coincide com o “surgir”

de uma nova figura, justamente a da verdade da certeza de si mesmo: “uma certeza

que é igual à sua verdade, já que a certeza é a si mesma seu objeto, e a consciência

é a si mesma o verdadeiro” (PhE, p. 206; GW 9 103). A consciência pode então se

apreender como autoconsciência, isto é, como consciência que é a ela mesma sua

própria verdade. Com a autoconsciência, “entramos portanto agora no reino nativo

da verdade [sind wir also nun in das einheimische Reich der Wahrheit eingetreten]”

(PhE, p. 208; GW 9, p. 103). O texto da seção (B) Autoconsciência constitui, desse

ponto de vista, como uma espécie de ampliação do resultado a que Hegel tinha

chegado ao final da seção (A) Consciência, e isso por um esclarecer do conteúdo

fenomenológico que enclausura esse movimento formal da infinitude:46 “despertar

à relação fundadora que faz com que uma autoconsciência só é por e para [grifos

nossos] uma outra autoconsciência” (IntPh, p. 113), ou seja, ascender à experiência

que faz com que a autoconsciência só alcance sua satisfação por (durch) e em (in)

uma outra autoconsciência:

Há uma autoconsciência para uma autoconsciência. É somente por isso

[hiedurch] que ela é de fato; pois só assim advém para ela a unidade de si

42 PhE, p. 338-368 (GW 9, p. 193-214).

43 PhE, p. 571-581 (GW 9, p. 356-362).

44 Ver G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Les premiers combats de la reconnaissnce, p. 23.

45 Ver a leitura de Labarrière dessa longa introdução em IntPh (p. 109-127). Ver também G. Jarczyk, Au confluent de la mort. L’universel et le singulier dans la philosophie de Hegel (“L’autoconscience dans son rapport à la vie comme conscience”, p. 162-167).

46 Esse movimento da infinitude é evocado explicitamente em posição fundamental no início de cada uma das duas divisões que constituem o conteúdo da seção (B) Autoconsciência (PhE, p. 217 e p. 228; GW 9, p. 109 e p.116); “ao final da seção (A) Consciência”, escrevem Jarczyk e Labarrière, “a Infinitude, primeira expressão significativa de uma reflexão que chegou à sua concretude lógica – dupla pressuposição do interior como exterior e do exterior como interior -, qualifica, no sentido técnico desse termo, o elemento no qual aparecerão doravante os diferentes momentos da experiência” (Maître/serviteur, cinquante ans après Kojève, p. 73).

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mesma em seu ser-outro; Eu, que é o objeto de seu conceito, de fato não é

objeto. (...) Na medida em que é uma autoconsciência que é o objeto, ele é

tanto Eu quanto objeto. – Desse modo já está presente-aí para nós o conceito

do espírito. O que para a consciência advém ademais é a experiência do que

é o espírito, essa substância absoluta que, na liberdade perfeita e autonomia

[Selbstständigkeit] de sua oposição, a saber das autoconsciências diversas sendo

para si, é a unidade dessas mesmas [autoconsciências]; Eu que [é] nós, e nós que

é Eu. A consciência só tem na autoconsciência, [entendida] como o conceito de

espírito, seu ponto-de-inflexão, onde, a partir da aparência colorida do aquém

sensível, e a partir da noite vazia do além suprassensível, ela se engaja no dia

espiritual da presença. (PhE, p. 216; GW 9, p. 108-109)

Essa é a verdade da autoconsciência, e já pode então começar, sob modo ainda

formal, o processo do reconhecimento recíproco.

O golpe de arco,47 induzido pela própria lógica das primeiras sequências da

obra, é dado no início do primeiro parágrafo da primeira divisão da seção (B) Auto-

consciência, quando Hegel introduz um conceito novo, o “conceito do reconhecer, da

reduplicação da autoconsciência em sua unidade”:

A autoconsciência é em si e para si enquanto [é] e pelo fato que ela é em si e

para si para uma outra [autoconsciência]; quer dizer, ela só é como algo reco-

nhecido [Das Selbstbewusstsein ist an und für sich, indem, und dadurch, dass

es für ein Anderes an und für sich ist; d. h. es ist nur als ein Anerkanntes]. O

conceito dessa sua unidade em sua reduplicação [Verdopplung],48 da infinitude

se realizando na autoconsciência [der sich im Selbstbewusstsein realisierenden

Unendlichkeit], é um entrelaçamento com múltiplos aspectos e múltiplos senti-

dos [eine vielseitige und vieldeutige Verschränkung], de sorte que é necessário

que os momentos dessa mesma [unidade] sejam por parte exatamente manti-

dos um fora do outro, por parte nessa diferenciação tomados e conhecidos ao

mesmo tempo também como não diferentes, ou sempre em sua significação

oposta [so dass die Momente derselben teils genau auseinandergehalten, teils

in dieser Unterscheidung zugleich auch als nicht unterschieden, oder immer in

ihrer entgegengesetzten Bedeutung genommen und erkannt werden müssen]. O

duplo sentido do diferenciado reside na essência da autoconsciência, [que con-

siste] em ser infinita ou imediatamente o contrário da determinidade na qual

ela é posta [Die Doppelsinnigkeit des Unterschiedenen liegt in dem Wesen des

Selbstbewusstseins, unendlich, oder unmittelbar das Gegenteil der Bestimmtheit,

47 Labarrière já tinha usado, em 1968, todo um conjunto de vocábulos que pertencem ao domínio musical para expressar o movimento geral da Fenomenologia do Espírito – ver P.-J. Labarrière, Structures et mouvement dialectique dans la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel (p. 265-269); ver também Au fondement de l’éthique, p. 61.

48 Seguimos aqui a tradução francesa de Jarczyk e Labarrière “redoublement” / “redoubler” para Verdopplung / verdoppeln (PhE, p. 183, 192, 201, 215, 217, 219, 236, 339, 344), e traduzimos: reduplicação / reduplicar. Essa reduplicação da autoconsciência, dizia Labarrière, “nos permite chegar ao princípio do que é o verdadeiro ponto de partida da filosofia hegeliana: a intersubjetividade.” (IntPh, p. 128). “Autonomia e inautonomia da autoconsciência”, dizem Jarczyk e Labarrière em 1996: “essa dualidade interior a toda autoconsciência é então posta como a condição de uma relação verdadeira com o mundo e com outrem” (Maître/serviteur, cinquante ans après Kojève, p. 73)

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O reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière

in der es gesetzt ist, zu sein]. A exposição do conceito desta unidade espiritual

em sua reduplicação nos apresenta o movimento do reconhecer [Die Auseinan-

derlegung des Begriffs dieser geistigen Einheit in ihrer Verdopplung stellt uns die

Bewegung des Anerkennens dar]. (PhE, p. 216-217; GW 9, p. 109)

Essa reduplicação da autoconsciência (posição de uma dualidade a partir de sua

unidade “infinita”) não é, pelo menos logo e diretamente, nos adverte Labarrière, “o

signo que uma relação social efetiva seja aqui constituída entre dois homens concre-

tos um frente ao outro” (IntPh, p. 152). Trata-se, por ora, não de duas autoconsciên-

cias, mas da autoconsciência “em sua reduplicação”:

Assim, a estrutura dual que a constitui em sua origem, e que se contrai no fato

que ela é “a reflexão a partir do ser do mundo sensível e percebido, e o retorno

a partir do ser-outro” [PhE p. 209; GW 9, p. 104], se amplifica no fato que ela “só

é como algo reconhecido”. (...) Por ora, as coisas se jogam ainda em sua interio-

ridade, em conformidade com o fato que “a essência da autoconsciência [con-

siste] em ser infinita ou imediatamente o contrário da determinidade na qual

ela é posta”. E o reconhecimento, tal como ele se perfila a partir da estrutura da

autoconsciência, não é senão a escrita [l’écriture] dessa “unidade espiritual em

sua reduplicação” [PhE, p. 217; GW 9, p. 109].(JARCZYK, 2002, p. 168)

Não se trata, portanto, para Jarczyk e Labarrière, no texto desta primeira di-

visão da seção (B) Autoconsciência – colocação, no nível lógico, de um esquema ou

modelo referencial suscetível de determinar se uma dada situação verifica, ou não

verifica, o que exige o “movimento do reconhecer” (PhE, p. 217-218; GW 9, p. 109-

110), seguida de duas experiências da autoconsciência: o combate em que estão em

jogo vida e morte (PhE, p. 219-222; GW 9, p. 110-112) e a relação senhorio/servidão

(PhE, p. 222-227; GW 9, p. 112-116) – de uma narração histórica propriamente dita,

mas sim do que se poderia chamar uma “quase-parábola”, ou uma fábula, decidida-

mente a-histórica:49

(...) a dualidade interior de cada autoconsciência encontra-se representada e

objetivada na relação entre dois indivíduos em que cada um encarna por priori-

dade um dos polos do paradoxo constitutivo de toda autoconsciência, o [para-

doxo] de uma articulação unitária entre autonomia e inautonomia.50

O esquema lógico do reconhecimento51

“Há para a autoconsciência uma outra autoconsciência; ela veio para fora de

si” (PhE, p. 217; GW 9, p. 109). O desdobramento conceitual desse estado de fato –

“ela não pode se fechar na abstração de sua autonomia; ela vem necessariamente

49 PhE, p. 216-217 (nota 4); p. 219 (nota 2), p. 222 (nota 2). Ver H. C. L Vaz, Senhor e Escravo: uma parábola da filosofia ocidental, Sín tese, n. 21 (1981), p. 7-29.

50 G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Maître/serviteur, cinquante ans après Kojève, p. 74.

51 Ver G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Les premiers combats de la reconnaissance, p. 80-90.

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para fora de si, porque ela tem de se pressupor ela mesma no acolhimento de uma

alteridade condicionante: autonomia e inautonomia, autonomia cujo conteúdo mes-

mo é uma relação de dependência relacional”52 - já esclarece os componentes do

reconhecimento a vir:

Isso tem a dupla significação, em primeiro lugar, ela se perdeu a si mesma,

pois ela se encontra como uma outra essência; segundo, com isso ela supras-

sumiu53 o outro, pois ela não vê também o outro como essência, mas si-mesma

no outro.

Ela tem de suprassumir esse seu ser-outro; esse é o suprassumir do primeiro

duplo sentido, e por isso ele mesmo um segundo duplo sentido; em primeiro

lugar, tem de tender a suprassumir a outra essência autônoma [das andere

selbstständige Wesen], e desse modo vir-a-ser a certeza de si como da essência;

segundo, com isso ela tende a se suprassumir a si mesma, pois esse outro é ela

mesma.

Esse suprassumir de duplo sentido de seu ser-outro de duplo sentido é também

um retorno em si mesma [in sich selbst] de duplo sentido; pois, em primeiro

lugar, ela se recebe ela mesma em retorno pelo suprassumir de seu ser-outro;

mas, segundo, ela dá a outra autoconsciência a ela de novo em retorno, já que

ela era a si [sich] no outro, ela suprassume esse seu ser no outro, deixa portanto

o outro de novo livre. (PhE, p. 217-218; GW 9, p. 109)

Esse movimento da autoconsciência na relação com uma outra autoconsci-

ência – a autoconsciência como saída de si, como suprassunção do outro e como

retorno a si mesma –, representado apenas como o agir de uma delas, tem a dupla

significação de ser inseparavelmente tanto o agir de uma como o agir da outra

autoconsciência:

O movimento é assim, pura e simplesmente, o [movimento] duplo das duas

autoconsciências. Cada uma vê a outra fazer a mesma coisa que ela faz; cada

uma faz ela mesma o que da outra ela exige; e faz o que ela faz na medida

somente que a outra faz o mesmo; o agir unilateral seria vão; pois, o que deve

acontecer só pode efetuar-se através das duas. (PhE, p. 218; GW 9, p. 110)

Essa complexidade54 encontra a sua escrita lógica adequada (termo médio,

extremos, mediação, silogismo): a autoconsciência tem a figura de um termo médio

em que cada um dos extremos é “passagem absoluta no [extremo] oposto” (PhE,

52 G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Maître/serviteur, cinquante ans après Kojève, p. 75. G. Jarczyk, Au confluent de la mort, p. 168-171.

53 Jarczyk e Labarrière adotam o neologismo “sursumer” / “sursomption”, que Gauthier propôs em 1967, para a tradução do verbo aufheben e do substantivo Aufhebung (Y. Gauthier, Logique hégélienne et formalisation, Dialogue, v. VI (1967), p. 151-165), uma tradução que foi retomada por Paulo Meneses e que também seguimos aqui; ver G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Sursumer / Sursomption, in: Hegeliana (p. 102-120); PhE, p. 59-60.

54 “Essa complexidade que caracteriza o esquema lógico do reconhecimento”, esvreve Jarczyk, “estava inscrita na autoconsciência enquanto ela é “a reflexão a partir do ser do mundo sensível e percebido, e o retorno a partir do ser-outro” [PhE p. 209; GW 9, p. 104]” (G. Jarczyk, Au confluent de la mort, p. 170).

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O reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière

p. 219; GW 9, p. 110). A consciência, que esse extremo conota, faz com que, vindo

“para fora de si”, ele seja ao mesmo tempo “para si”, de modo que “é para ele que

imediatamente ele é e não é consciência outra”, e também que essa consciência

outra “só é para si no ser-para-si do outro”:

Cada um [cada extremo] é com o outro o termo médio pelo qual cada um

se mediatiza e silogiza consigo mesmo, e cada um, consigo e com o outro,

[é] essência imediata sendo para si, que ao mesmo tempo só é assim para si

através dessa mediação. Eles se reconhecem como se reconhecendo mutuamente

[Jedes ist dem andern die Mitte, durch welche jedes sich mit sich selbst vermittelt

und zusammenschliesst, und jedes sich und dem Andern unmittelbares für sich

seiendes Wesen, welches zugleich nur durch diese Vermittlung so für sich ist. Sie

anerkennen sich als gegenseitig sich anerkennend]. (PhE, p. 219; GW 9, p. 110)

Ao designar esses dois extremos do silogismo por termos ao mesmo tempo

idênticos e diferentes (A1 e A2), e ao especificar sua relação estrutural através da

dupla função que faz com que cada um seja a cada vez e concomitantemente um

sujeito (s) e um objeto (o), chegamos ao esquema lógico seguinte, que Hegel propõe

como padrão interno de todo reconhecimento, segundo Jarczyk e Labarrière:55

A¹ s A ² s A¹ o A² o

O que tem de ser entendido assim, escrevem Jarczyk e Labarrière:

[O] que cada um deles, como sujeito, opera sobre o outro como objeto, ele o

faz num mesmo movimento sobre ele mesmo, de tal modo que há conjunção de

um agir próprio e de um agir outro. Se se encontra, em uma dada situação, que

falta qualquer um destes quatro vetores, o equilíbrio dinâmico e contraditório

está perturbado [se trouve mis en échec] e a situação conhece uma parada, uma

espécie de bloqueio, devido a essa dissimetria.56

Não podemos esquecer isso ao julgar as duas experiências da autoconsciência.

Para ilustrar, em sua universalidade lógica, o movimento do “reconhecimento”

entre dois indivíduos (A, A’), Labarrière propõe em Discours de l’altérité (1983) os

dois diagramas seguintes:57

55 Ver G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Maître/serviteur, cinquante ans après Kojève, p. 75-76.

56 G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Maître/serviteur, cinquante ans après Kojève, p. 76.

57 P.-J. Labarrière, Le discours de l’altérité, p. 328-329. Ver também P.-J. Labarrière, IntPh, p. 186, nota 28.

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O primeiro diagrama mostra que o “reconhecimento” só é pleno entre os dois

indivíduos “quando cada um recebe do outro a relação que ele entretém consigo

mesmo”:

Ou dito de outro modo: “a relação do outro com ele mesmo é mediadora, para

cada um dos termos em jogo, da relação que ele entretém ele mesmo como sujeito

consigo mesmo como objeto”. Daí o complemento do primeiro diagrama num segun-

do esquema, “mostrando que a relação de cada termo com o outro passa na verdade

pela relação desse outro com o primeiro termo”:

Até aqui (nos sete primeiros parágrafos), Hegel examinou o “conceito do reco-

nhecer” em sua “pureza” lógica. A partir do oitavo parágrafo desta primeira divisão

da seção (B) Autoconsciência, ele vai considerar como esse processo aparece para a

autoconsciência.58

A primeira experiência de reconhecimento da autoconsciência – o “combate em

que estão em jogo vida e morte [Kampf auf Leben und Tod]” – apresenta o impasse

a que chega para a consciência a abstração de uma pura simetria e já indica como

nasce “o lado da desigualdade dos dois [termos]”:

(...) os dois não se dão nem se recebem de volta, mutuamente um do outro

[voneinander] pela consciência, mas só se apresentam livres um e outro

[einander] de modo indiferente, como coisas. Seu ato é a negação abstrata,

não a negação de consciência, que suprassume de tal modo que ela conserva e

58 Ver PhE, p. 209-227 (GW 9, p. 110-116).

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O reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière

mantém o suprassumido, e com isso sobrevive a seu vir-a-ser-suprassumido.

(PhE, p. 221-222; GW 9, p. 112).59

A segunda experiência de reconhecimento da autoconsciência – a relação

senhorio/servidão – apresenta o fracasso da figura do senhor (“ao ato de reconhecer

propriamente dito falta o momento segundo o qual o que o senhor faz em relação

ao outro ele o faria também sobre si mesmo, e o que o servo [faz] sobre si ele o faria

também sobre o outro”),60 e o fracasso da figura do servo (“essa consciência pertence

ainda em si ao [ser] determinado; o sentido próprio é obstinação, uma liberdade que

ainda permanece no interior da escravidão”).61

Resultado do primeiro fracasso: “um reconhecer unilateral e desigual” (PhE,

p. 224; GW 9, p. 113), e transição à segunda experiência:

(...) é apenas pelo ato de engajar a vida que [se comprova] a liberdade, que se

comprova que à autoconsciência [dem Selbstbewusstsein] não é o ser, não é o

modo imediato segundo o qual ela entra em cena, não é seu ser-submergido

na expansão da vida [que é] a essência, mas que nela nada está presente-aí que

não seria para ela momento evanescente, que ela é somente ser-para-si puro.

O indivíduo que não arriscou sua vida pode bem ser reconhecido como pessoa

[ou seja, como a figura jusnaturalista do indivíduo singular, originariamente

portador de direitos subjetivos, desvinculado, num primeiro momento, das

relações intersubjetivas, sociais e políticas concretas]; mas não alcançou a

verdade desse ser-reconhecido como uma consciência autônoma. (...)

(...)

Nesta experiência advém à autoconsciência que a vida lhe é tão essencial quanto

a autoconsciência pura. Na autoconsciência imediata, é o Eu simples que é o

objeto absoluto, o qual no entanto, para nós ou em si, é a mediação absoluta,

e tem por momento essencial a autoconsciência subsistente [die bestehende

Selbstständigkeit]. A dissolução dessa unidade simples é o resultado da primeira

experiência; por ela é posta uma autoconsciência pura e uma consciência que

não é puramente para si, mas para alguma coisa outra, isto é, [que] é como (...)

consciência na figura da coisidade. Os dois momentos são essenciais; - já que

eles são primeiro desiguais e opostos, e [que] sua reflexão na unidade ainda

não se produziu, eles são como duas figuras opostas da consciência; uma a

[consciência] autônoma para a qual é o ser-para-si [que é a essência], a outra a

[consciência] inautônoma para a qual é a vida ou o ser para alguma coisa outra

que é a essência; aquela é o senhor, esta o servo [jenes ist der Herr, dies der

Knecht]. (PhE, p. 220-222; GW 9, p. 111-112]

59 Ver G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Les premiers combats de la reconnaissance, p. 93-102 ; Maître/serviteur, cinquante ans après Kojève, p. 76-78.

60 PhE, p. 224; GW 9, p. 113: “O que significa que o senhor nunca é objeto - só autônomo, de maneira nenhuma inautônomo -, e que o servo só é visado, tanto por ele mesmo e pelo outro, como objeto” (G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Les premiers combats de la reconnaissance, p. 112).

61 PhE, p. 227; GW 9, p. 115-116. Ver G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, The conceptualizing thought, The Philosophical Forum, v. XXXI, n. 3-4 (2000), p. 210-213.

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Resultado do segundo fracasso: “uma liberdade que permanece ainda no inte-

rior da servidão” (PhE, p. 227; GW 9, p. 115-116).62 Um conjunto de oito parágrafos

extremamente condensados, que não comporta uma conclusão. É no início da segun-

da divisão da seção (B) Autoconsciência (“B. Liberdade da autoconsciência; Estoicis-

mo, Cepticismo, e a Consciência infeliz”) que Hegel apresenta a conclusão da figura

“Senhorio e servidão”, uma conclusão que nos leva em direção ao advento de uma

nova figura da autoconsciência, uma consciência que pensa, ou é autoconsciência

livre:

Para a autoconsciência autônoma [Dem selbständigen Selbstbewusstsein], é por

um lado só a abstração pura do Eu que é sua essência, e por outro lado, na me-

dida em que ela [= a abstração] se cultiva e se dá diferenças, esse ato de dife-

renciar não chega para ela [= para a autoconsciência] à essência objetiva sendo-

em-si [ansichseienden Wesen]; essa autoconsciência não se torna, pois, um Eu

se diferenciando verdadeiramente em sua simplicidade ou permanecendo-igual

a si nessa diferenciação absoluta. A consciência recalcada em si, ao contrário,

[entendida] como forma das coisas cultivadas, chega para si ao objeto no ato

de formar, e no senhor ela intuiciona o ser-para-si ao mesmo tempo como cons-

ciência. Mas, para a consciência servente [dem dienenden Bewusstsein] como

tal, esses dois momentos caem um fora do outro, - de si mesmo como objeto

autônomo e desse objeto como de uma consciência, e, portanto, de sua essên-

cia própria. Mas, na medida em que para nós ou em si a forma e o ser-para-si

são a mesma coisa, e [que] no conceito da consciência autônoma o ser-em-si é a

consciência, então o lado do ser-em-si ou da coisidade, que recebeu a forma no

trabalho, não é uma outra substância que a consciência, e é uma figura nova da

autoconsciência que nos adveio; uma consciência que, [entendida] como a in-

finitude ou movimento puro da consciência, é a si [sich] a essência; que pensa,

ou é autoconsciência livre. Pois ser para si objeto não como Eu abstrato, mas

como Eu que ao mesmo tempo tem a significação do ser-em-si, ou se compor-

ta em relação à essência objetiva de tal modo que ela tenha a significação do

ser-para-si da consciência para a qual ela é, eis o que se chama pensar. [“Nem

a consciência autônoma nem a consciência servente chegaram à unidade do

interior e do exterior em sua diferença mesma; com a identificação do em-si da

coisidade e do para-si da autoconsciência se desenha para nós uma economia

nova, a do pensamento”]63 – Para o pensar, o objeto não se move em representa-

ções ou figuras, mas em conceitos, isto é, em um ser-em-si diferente que imedia-

tamente para a consciência não é um [ser-em-si] diferente em relação a ela. (...)

No pensar, Eu sou livre, porque não estou em um outro, mas permaneço pura e

simplesmente junto a mim mesmo, e o objeto que para mim é a essência é, em

[uma] unidade indivisa, meu ser-para-mim; e meu movimento em conceitos é

um movimento em mim mesmo [Im Denken bin Ich frei, weil ich nicht in einem

Andern bin, sondern schlechthin bei mir selbst bleibe, und der Gegenstand, der

62 Ver G. Jarczyk e P.-J. Labarrière, Les premiers combats de la reconnaissance, p. 104-127; Maître/serviteur, cinquante ans après Kojève, p. 80.

63 PhE, p. 229, nota 1.

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O reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière

mir das Wesen ist, in ungetrennter Einheit mein Für-mich-sein ist; und meine

Bewegung in Begriffen ist eine Bewegung in mir selbst]. (PhE, p. 228-229; GW 9,

p. 116-117)

Passagem decisiva do representativo ao especulativo. Primeiro golpe de arco

de um movimento – “a colocação das condições de um autêntico “reconhecimento”

interindividual” – que só será expresso em sua concretude histórica bem mais longe

no curso da obra – a figura “Senhorio e servidão” é apenas uma primeira tentativa,

cedo abortada, de reconhecimento. Mas isso não diminui para Jarczyk e Labarrière a

importância política desse texto: “[A] análise antropológica engajada nessas páginas

poderia valer (...) como prolegômenos a toda política futura” (JARCZYK; LABARRIèRE,

1987, p. 132-135).

De Kojève a Hegel, um outro percurso do reconhecimento. De Hegel a Jarczyk

e Labarrière (pace Ricoeur).

Por um começo.

Referências

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para ler o Freiheitsschrift [1809] de Schelling. In: As Filosofias de Schelling. Fernando Rey

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tome – Deuxième livre: La doctrine de l’essence. Paris: Aubier-Montaigne, 1976].

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Logique objective – Premier livre: La doctrine de l’être (versão 1832). Paris: Kimé, 2007].

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O reconhecimento em Hegel: leituras de Labarrière

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223

Normas para os colaboradores

A Revista da Faculdade Mineira de Direito, repertório oficial do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas, compõe-se de três seções:

1. A seção de artigos, que traz estudos sobre temas variados;

2. A seção de resenhas, que publica recensões, resenhas e notas bibliográficas;

3. O caderno de pós-graduação, que apresenta monografias e resumos de dis-sertações e de teses produzidas pelo corpo discente do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas.

Resenhas, monografias e resumos devem ser escritos, obrigatoriamente, em português. Artigos podem ser escritos em português, espanhol, inglês, francês e italiano.

Os originais devem ser enviados ao editor em duas vias escritas, sem identificação do autor, e em um disquete ou CD Rom (Word for Windows), com identificação do autor.

A chamada para artigos segue fluxo contínuo. Artigos podem ser enviados por e-mail ([email protected]) ou remetidos para o seguinte endereço:

Revista da Faculdade Mineira de Direito (editor)Av. Dom José Gaspar, 500, prédio 530535-610 – Belo Horizonte – MG – Brasil

Os textos para a seção de artigos e para a de resenhas deverão ser inéditos e apresentados juntamente com o curriculum vitae resumido de seu(s) autor(es) (nome, maior titulação, atividade atual e instituição de ensino a que pertence(m)) e a área de concentração a que se refere seu artigo ou resenha, dentre as seguintes: a) Direito Público; b) Direito Privado; c) Direito Processual; d) Direito Penal e Criminologia; e) Direito Internacional e Comunitário; f) Teoria e Filosofia do Direito; g) Direito do Trabalho. Os artigos deverão conter entre 20.000 e 40.000 caracteres, e as resenhas entre 5.000 e 20.000 caracteres.

Todos os artigos deverão ter seu título na língua em que foi escrito e em inglês, e conter resumo, de até 200 palavras, com indicação de duas a cinco palavras-chave (key words), na língua em que o artigo foi escrito e em inglês.

As obras objeto de resenha devem ter sido editadas há um máximo de dois anos, se no Brasil, ou de cinco anos, se no exterior. A Revista da Faculdade Mineira de Direito incentiva a elaboração de resenhas por alunos de pós-graduação.

Os textos que compõem o caderno de pós-graduação serão escolhidos pelos professores das disciplinas do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas dentre aqueles produzidos por seus alunos, podendo cada docente indicar, semestralmente, uma monografia que, por sua excelência, mereça

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ser publicada. Os resumos de dissertações e teses que compõem o caderno serão elaborados pelos próprios pós-graduandos em Direito da PUC Minas após a defesa de seu trabalho, e acompanharão os dados sobre a apresentação do trabalho (título da tese ou dissertação, nome do aluno e do professor orientador, nome dos integrantes da banca examinadora e data da defesa).

As notas de rodapé, em corpo 10, e as referências, em corpo 12, deverão seguir as regras vigentes da ABNT (as notas de rodapé não se destinam a referências, que devem ser feitas pelo sistema autor, ano, página).

Títulos de obras devem ser escritos em negrito. Palavras estrangeiras à língua vernácula do artigo devem ser escritas em itálico. Nomes próprios devem ser escritos em maiúsculas somente nas referências.

Não serão aceitos artigos que não atendam formalmente às exigências destas normas.

Artigos enviados à Revista da Faculdade Mineira de Direito sem prévia demanda do editor serão submetidos a análise por dois membros do conselho científico, sem que sua autoria lhes seja revelada. Os artigos serão aceitos mediante parecer favorável de ambos, ou, em caso de divergência, mediante parecer favorável de um deles e do editor.

Artigos não aceitos serão devolvidos ao autor por meio eletrônico.

Constarão da publicação do artigo os nomes dos conselheiros que a aprovaram ou, em caso de artigo solicitado pelo editor, a expressão: “Artigo solicitado pelo editor”.

Aprovada a publicação de um artigo pelo conselho científico, e na impossibi-lidade de se publicar todos os artigos aprovados em um único número, o con-selho editorial se reunirá para decidir a ordem de publicação destes, podendo desmembrar um artigo para ser publicado em dois números da revista, com prévio consentimento do autor. Também incumbe ao conselho editorial esta-belecer temas para a publicação de dossiês.

Nenhuma modificação de estrutura, conteúdo ou estilo será feita sem o prévio consentimento do autor. A Revista da Faculdade Mineira de Direito, no entanto, reserva-se o direito de adequar a apresentação, a diagramação e a correção do vernáculo do texto aos seus padrões gráficos e editoriais.

Os autores receberão cinco exemplares do número da revista em que forem publicados seus artigos.

A publicação da Revista da Faculdade Mineira de Direito atenderá ao seguinte cronograma:

Remessa de artigos ao editor: fluxo contínuo.Análise de artigos pelo conselho científico: fluxo contínuo.Reunião do conselho editorial: fevereiro e agosto de cada ano.Revisão, formatação e diagramação da revista: março a maio e setembro a

novembro de cada ano.Impressão e distribuição: junho e dezembro de cada ano.

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Rules for collaborators

The Revista da Faculdade Mineira de Direito (Minas Gerais Law School

Journal) is the official publication of undergraduate and graduate studies in

Law at PUC Minas.

The Revista da Faculdade Mineira de Direito is composed of three sections:

1. The Articles section, comprising wide range of studies;

2. The Reviews section, including reviews and bibliographic notes;

3. The Graduate Studies section, in which students from PUC Minas graduate

programs publish academic papers.

Review, dissertation and thesis abstracts must be written in Portuguese.

Articles can be presented in Portuguese, English, Spanish, French or Italian.

Texts should be sent to the publisher in compliance with the following norms:

two written copies, without identification, and another copy in electronic form

(CD, DVD or floppy, in .doc format), the latter including the author’s ID.

The call for papers is continuous. Articles can be sent, by e-mail, to

([email protected]), or mailed to the following address:

Revista da Faculdade Mineira de Direito (editor)Av. Dom José Gaspar, 500, prédio 5Belo Horizonte – MG – Brasil

Texts submitted to the Reviews and Articles sections, which must not have

been published in Portuguese yet, are to include the author’s curriculum

(summarized, containing name, academic titles, current activities and name

of the institution where the author works) and the subject area of the review

or article, to be chosen among the following: a) Public Law, b) Private Law,

c) Procedural Law, d) Criminal Law and Criminology, e) International Law, f)

Theory and Philosophy of Law, Jurisprudence,g) Labour Law.

All articles must present their titles in the original language and in English, and

include an abstract (in no more than 200 words) with two to five keywords, in

both languages.

Reviews should be about books previously published up to two years, if in

Brazil, or up to five years, if abroad. The Revista da Faculdade Mineira de

Direito encourages reviews made by graduate students.

Texts for the Graduate Studies section will be chosen, among those produced

by students, by faculty members of the graduate program in Law of PUC

Minas. Each scholar can indicate one paper to be published each semester,

to be chosen for academic excellence. Abstracts of theses and dissertations

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produced during the period also compose the section. Students should write

the abstracts after the approval of their theses or dissertations, and send them

with data concerning the presentation (title of the thesis, student’s and thesis

advisor’s names, examiners’ names and date of examination).

Footnotes, in size 10, and references, in size 12, must be presented in compliance

with the ISO standard (footnotes are not to be used for bibliographic references,

which are to follow the format author, year, page).

Titles must be written in bold format. Words in foreign languages must be written

in italics. Proper names must be CAPITALIZED only in references.

Articles that do not follow the norms above are not accepted.

Articles sent to the Revista da Faculdade Mineira de Direito without previous

demand from the publisher will be analysed by two independent members

of the scientific council, without knowing the author’s name. Articles are

appointed with the approval of both or, if they disagree, with the approval of

one member plus the publisher.

Refused articles will be returned to the authors by e-mail.

The names of the counsellors who appointed the article are included in the

publication, or, in the case of articles requested by the publisher, the expression:

“Article requested by the editor”.

Once the scientific council has appointed an article to be published, if the

number of articles exceeds the expected number for a single issue, the

publishing board assembles to decide the order of their publication. The board

may decide to split an article to be published in two parts, in two different

issues of the Revista da Faculdade Mineira de Direito, with the author’s

previous consent. It is up to the council to choose themes for the publication

of dossiers as well.

No alteration as to structure, content or style will be carried out without the

author’s previous consent. The Revista da Faculdade Mineira de Direito,

however, reserves the right to adapt the presentation according to its graphical

and editorial norms.

Authors will receive five samples of the issue of the Revista da Faculdade

Mineira de Direito in which their articles are published.

The publishing of the Revista da Faculdade Mineira de Direito follows this

schedule:

Submitting articles to the editor: continuous flow.

Analysis of articles by the scientific council: continuous flow.

Publishing board meeting: February and August, each year.

Review, formatting and diagramming of the magazine: March to May and September to November, each year.

Printing and distribution: June and December, each year.

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Outros periódicos/PUC Minas

ARQUITETURA - CADERNOS DE ARQUITETURA E URBANISMO Departamento de Arquitetura e Urbanismo

BIOS Departamento de Ciências Biológicas

CADERNOS CESPUC DE PESQUISA Caderno do Programa de Pós-graduação em Letras e do Cespuc

CADERNOS DE HISTÓRIA Departamento de História

CADERNO DE GEOGRAFIA Departamento de Geografia

ECONOMIA & GESTÃO Revista do Programa de Pós-graduação em Administração e do Instituto de Ciências

Econômicas e Gerenciais

FRONTEIRA Revista de Iniciação Científica em Relações Internacionais

HORIZONTE Revista do Núcleo de Estudos em Teologia e Ciências da Religião

PSICOLOGIA EM REVISTA Revista do Instituto de Psicologia

SCRIPTA Revista do Programa de Pós-graduação em Letras e do Cespuc

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pROjETO gRáfICO DE MIOlO E DIAgRAMAçãO Cássio Ribeiro | [email protected]

IMpRESSãO E ACABAMENTO Gráfica e Editora O Lutador

BELO HORIZONTE MG