Educação, direitos humanos e organização do trabalho ... · um compromisso ético e político...

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C K M Y CM Y K CM Y K C M Y K Paralelo 15 Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico Ália Maria Barrios González, Eder Alonso Castro, Gabriela Sousa de Melo Mieto, Julia Chamusca Chagas, Larissa Medeiros Marinho dos Santos, Regina Lúcia Sucupira Pedroza & Silvia Lúcia Soares Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos volume III O volume III – Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico versa sobre a escola como lugar de educação socialmente reconhecido, que se constitui como espaço/tempo de encontro entre educadoras/es e educandas/os e desses entre si, e que, ao viverem em comunidade, se encontram com o mundo, o que promove uma transformação, uma ressignificação tanto do mundo como das pessoas – educandas/os e educadoras/es. A cada geração que ingressa na escola, esta se transforma, as crianças ou jovens se transformam e o mundo que aí se apresenta é ressignificado. Assim, o que caracteriza a educação é o movimento, a mudança, o processo. É nesse movimento que este livro nos propõe inserir a educação em e para os direitos humanos, assumindo que não vamos "ensinar", "instruir" as pessoas a viverem em paz na escola, não vamos esperar que necessariamente as crianças e os jovens mudem do dia para a noite e comecem a respeitar uns aos outros. Reconhecemos que este é um processo que dura toda a vida, que é complexo e requer que consideremos novas maneiras de nos relacionarmos com as crianças e os jovens, que criemos recursos, estratégias e materiais que promovam mediações condizentes com as nossas perspectivas e os nossos valores. “Este livro trata de educação, de direitos humanos e de diversidade. Por ser obra coletiva, traz pontos de vista dos diferentes autores sobre o tema. Entretanto, essas visões pessoais estão amalgamadas por um compromisso ético e político assumido por nós, autores, o que nos une como um sujeito coletivo, possibilitando uma atuação concreta no contexto da educação em e para os direitos humanos. Cabe a vocês, leitoras/es, educadoras/es, realizarem uma leitura que permita que vocês se desloquem dessas páginas – que tratam de concepções, leis, documentos – para revisitarem suas próprias histórias de formação e exercício profissional, suas escolas, o cotidiano, suas salas de aula, com as/os estudantes, num esforço de eliminar a dualidade teoria/prática, assumindo-se como autores de sua práxis. Isso permitirá que vocês deem um sentido pessoal/profissional a este livro, não o reduzindo a ideias e a ideais, mas a uma proposta concreta de educação no contexto da diversidade.” Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos volume I volume II volume III Educação e diversidade cultural Educação em e para os direitos humanos Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino, Sílvia Lúcia Soares, Cléria Botêlho da Costa, Clerismar Aparecido Longo & Francisco Lopes de Sousa (orgs) Lúcia Helena C. Z. Pulino, Sílvia L. Soares, Cléria B. da Costa, Clerismar A. Longo & Francisco L. de Sousa (orgs) Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos v. 3 Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico ISBN - 978-85-5588-005-6 9 788555 880056 Ministério da Educação Instituto de Psicologia

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Paralelo 15

Educação,direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

Ália Maria Barrios González,Eder Alonso Castro,Gabriela Sousa de Melo Mieto,Julia Chamusca Chagas,Larissa Medeiros Marinho dos Santos,Regina Lúcia Sucupira Pedroza &Silvia Lúcia Soares

Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos

volume III

Ovolume III – Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico – versa sobre a escola como lugar de educação socialmente reconhecido, que se constitui

como espaço/tempo de encontro entre educadoras/es e educandas/os e desses entre si, e que, ao viverem em comunidade, se encontram com o mundo, o que promove uma transformação, uma ressignificação tanto do mundo como das pessoas – educandas/os e educadoras/es.

A cada geração que ingressa na escola, esta se transforma, as crianças ou jovens se transformam e o mundo que aí se apresenta é ressignificado. Assim, o que caracteriza a educação é o movimento, a mudança, o processo.

É nesse movimento que este livro nos propõe inserir a educação em e para os direitos humanos, assumindo que não vamos "ensinar", "instruir" as pessoas a viverem em paz na escola, não vamos esperar que necessariamente as crianças e os jovens mudem do dia para a noite e comecem a respeitar uns aos outros. Reconhecemos que este é um processo que dura toda a vida, que é complexo e requer que consideremos novas maneiras de nos relacionarmos com as crianças e os jovens, que criemos recursos, estratégias e materiais que promovam mediações condizentes com as nossas perspectivas e os nossos valores.

“Este livro trata de educação, de direitos humanos e de diversidade. Por ser obra coletiva, traz pontos de vista dos diferentes autores sobre o tema. Entretanto, essas visões pessoais estão amalgamadas por um compromisso ético e político assumido por nós, autores, o que nos une como um sujeito coletivo, possibilitando uma atuação concreta no contexto da educação em e para os direitos humanos.Cabe a vocês, leitoras/es, educadoras/es, realizarem uma leitura que permita que vocês se desloquem dessas páginas – que tratam de concepções, leis, documentos – para revisitarem suas próprias histórias de formação e exercício profissional, suas escolas, o cotidiano, suas salas de aula, com as/os estudantes, num esforço de eliminar a dualidade teoria/prática, assumindo-se como autores de sua práxis. Isso permitirá que vocês deem um sentido pessoal/profissional a este livro, não o reduzindo a ideias e a ideais, mas a uma proposta concreta de educação no contexto da diversidade.”

Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino

Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos

volume I

volume II

volume III

Educaçãoe diversidade cultural

Educaçãoem e para os direitos humanos

Educação,direitos humanos e organização

do trabalho pedagógico

Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino, Sílvia Lúcia Soares, Cléria Botêlho da Costa, Clerismar Aparecido Longo

& Francisco Lopes de Sousa (orgs)

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Ministério daEducação

Instituto dePsicologia

Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

Biblioteca

Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos

volume III

Biblioteca

Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos

Conselho editorial

Álvaro Sebastião Teixeira Ribeiro (mestre em ciências da saúde pela UnB,

professor na Secretaria de Educação do GDF), Bernardina Maria de Sousa

Leal (doutora em educação pela UERJ, professora adjunta na Faculdade de

Educação da UFF), Cristiano Otavio Paixão Araujo Pinto (doutor em direito

pela UFMG, professor adjunto na Faculdade de Direito da UnB), Deborah Silva

Santos (mestre em história pela PUC-SP, professora assistente na Faculdade de

Ciência da Informação da UnB), João Carlos Teatini de Souza Clímaco (doutor

em engenharia estrutural pela Polytechnic of Central London, professor

associado IV na Faculdade de Tecnologia da UnB), Menelick de Carvalho Netto

(doutor em direito pela UFMG, professor associado na Faculdade de Direito

da UnB), Silviane Bonaccorsi Barbato (doutora em psicologia pela UnB,

professora associada no Instituto de Psicologia da UnB).

Educação,

direito humanos e

organização do trabalho pedagógico

Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino, Sílvia Lúcia Soares, Cléria Botêlho da Costa,

Clerismar Aparecido Longo & Francisco Lopes de Sousa (orgs)

Ália Maria Barrios González, Eder Alonso Castro, Gabriela Sousa de Melo Mieto, Julia Chamusca Chagas,

Larissa Medeiros Marinho dos Santos, Regina Lúcia Sucupira Pedroza & Silvia Lúcia Soares

Biblioteca

Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos

volume III

2016

Ficha catalográfica

Pulino, Lúcia Helena Cavasin Zabotto; Soares, Sílvia Lúcia; Botêlho da Costa, Cléria; Longo, Clerismar Aparecido; Sousa, Francisco Lopes de (orgs.).

Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico / Ália Maria Barrios González, Eder Alonso Castro, Gabriela Sousa de Melo Mieto, Julia Chamusca Chagas, Larissa Medeiros Marinho dos Santos, Regina Lúcia Sucupira Pedroza & Silvia Lúcia Soares / Brasília : Paralelo 15, 2016.

Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos, vol. III 182 p. 1. Educação. 2. Pedagogia. 3. Diversidade cultural. 4. Currículo. I. Autores. II. Título.

Direitos para esta edição:

Copyright © 2016 by: Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Coordenação de Pós-Graduação lato sensuInstituto de Psicologia (Universidade de Brasília)Pode ser reproduzido, desde que mencionada a fonte.

Preparação dos originais: Clerismar Aparecido Longo

Edição: Paralelo 15Fone: (61) 3478 [email protected]

ISBN: 978-85-5588-005-6

Este material é resultado do Convênio/Termo de Cooperação no 1690/2013, firmado entre esta Instituição de Ensino Superior e o Ministério da Educação. As opiniões expressas neste livro são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a posição oficial do Ministério da Educação ou do Governo Federal.

SumárioApresentação, 9 Equipe organizadora

Prefácio, 19Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino

Capítulo 1

Direitos humanos, cultura da paz e currículo, 31Ália Maria Barrios González & Eder Alonso CastroCurrículo e direitos humanos, 31; Cultura da paz, 51; Os direitos humanos nas concepções e práticas pedagógicas, 61; Referências, 74.

Capítulo 2

Direitos humanos e o Projeto político-pedagógico, 81Regina Lúcia Sucupira Pedroza & Julia Chamusca ChagasDemocracia e direitos humanos na escola, 81; Definição, função e características do PPP: elaboração e implementação, 91; Construção cotidiana do PPP como efetivação da democracia na escola e da qualidade da educação, 104; Referências, 114.

Capítulo 3

Direitos humanos e a produção de materiais didáticos, 117Larissa Medeiros Marinho dos Santos & Gabriela Sousa de Melo MietoSituando o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), 117; A dimensão e as imagens do outro e do eu nos materiais didáticos, 128; Referências, 144.

Capítulo 4

Direitos humanos e cotidiano escolar, 149Silvia Lúcia SoaresIntrodução, 149; Educação em e para os direitos humanos, 151; Entendendo o significado de trabalho pedagógico, 153; As categorias de organização do trabalho pedagógico: a interlocução necessária, 156; Considerações finais, 171; Referências, 172.

Autoras e autores, 175.

Minha mãe costumava dizer que a mulher negra é a mula do homem branco e que a mulher branca é o seu cachorro. Agora, ela disse isso para dizer o seguinte: nós fazemos o trabalho pesado e apanhamos, quer façamos um bom trabalho ou não. Mas a mulher branca está mais próxima do patrão, e ele faz um carinho em sua cabeça e a deixa dormir dentro de casa, mas não vai tratar nenhuma das duas como se estivesse lidando com uma pessoa.

John Langston Gwaltney(Drylongso, a self-portrait of Black America,

New York: Vintage, 1980, p. 148).

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Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

Apresentação

A presentar ao público leitor a biblioteca “Educação: Diver-sidade Cultural e Direitos Humanos” – coleção em três volumes produzida no cenário da oferta do curso de “Espe-

cialização em educação em e para os direitos humanos, no contexto da diversidade cultural” – é tarefa prazerosa e de grande responsabi-lidade social.

O curso se viabilizou no contexto das políticas públicas de edu-cação em e para os direitos humanos, por meio do edital ligado à Ação 20 RJ, publicado pela Secretaria de Educação Continuada, Al-fabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), do Ministério da Edu-cação, em iniciativa articulada ao Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada dos Profissionais de Educação Básica do Decanato de Graduação da Universidade de Brasília (Comfor/DEG/UnB). Ao submeter-nos à seleção pelo referido edital, tivemos nosso projeto político-pedagógico aprovado e iniciamos os trâmites burocráticos e as ações de preparação para ofertar o referido curso de especialização.

O curso, com financiamento do Fundo Nacional de Desenvolvi-mento da Educação (FNDE) e sob a coordenação geral do Comfor/DEG/UnB, teve lotação no Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento e subordinado à Coordenação de Pós-Gradua-ção lato sensu, do Instituto de Psicologia.

Para a realização do curso de especialização, foram produzidos textos cujos autores são professores doutores da Universidade de

Apresentação

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Brasília ou colaboradores de outras instituições superiores de ensino e pesquisa. Esses textos consistiram nos módulos usados no curso de especialização, visando a introdução dos cursistas a temas e a situa-ções relacionados à educação em e para os direitos humanos, no con-texto da diversidade cultural.

A elaboração do projeto do curso, a montagem de sua estrutura na plataforma Moodle, o convite a pessoas para compor as equipes de coordenação, secretaria, desenvolvimento técnico-educacional, produção de materiais, orientação das monografias, assim como a se-leção da equipe de tutoria/docência foram configurando o processo como algo realizável. O curso, na modalidade de educação a distân-cia (EAD), com três encontros presenciais, tornou-se o projeto de muitas pessoas, todas comprometidas com a educação em e para os direitos humanos, no contexto da diversidade cultural. O entusias-mo que experimentamos desde o início estendeu-se para nosso pú-blico-alvo de 360 pessoas, cursistas selecionados como participantes discentes da especialização.

Tivemos, durante todo o curso, a consciência de que, além dessas pessoas que participaram formalmente do curso, há muitas outras, que – presentes nas salas de aula do ensino básico, nas equipes de profissionais de pedagogia e psicologia e de gestão das escolas e na comunidade escolar, incluindo as famílias de estudantes – fazem par-te do processo. Todas essas vozes são autoras, de alguma maneira, dos discursos registrados nos fóruns de estudo do curso on line, das tare-fas realizadas pelos cursistas, da mediação da equipe de tutoras/es, dos textos dos módulos, dos trabalhos teórico-práticos de elaboração e realização da pesquisa intervenção e da monografia ou do trabalho de final de curso.

Nossas palavras, nossas ideias, imagens, ações, nossos afetos têm ecoado nas salas de aula, nos pátios, nas reuniões das escolas, explíci-ta ou implicitamente, já que as/os educadoras/es, durante o curso e depois de sua conclusão, têm modificado sua maneira de pensar, agir,

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Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

sentir, relacionar-se com a comunidade escolar e, especialmente, com suas/seus estudantes. Há mesmo cursistas que, atuando em lugares outros que as escolas, têm desenvolvido suas pesquisas em seu local de trabalho ou estudo.

Somos muitos. No Distrito Federal e em outros estados do Brasil. E todas nós, somos pessoas envolvidas com o curso, temos nos sensi-bilizado em relação à diferença, à singularidade das demais pessoas, das/dos estudantes, ao mesmo tempo em que temos nos mobilizado em direção a sensibilizá-las, a educá-las em e para os direitos huma-nos na diversidade cultural.

Nosso prazer em formar e dinamizar essa rede de relações, pau-tada no respeito à dignidade do humano e da pessoa, não constitui algo abstrato, mas se processa na concretude de nossas vidas, como educadoras de outras pessoas para as quais nos abrimos para também sermos educadas. Educar “em” e “para” é a criação de um espaço de sensibilidade, aprendizagem e atuação “em” relações de respeito aos direitos humanos, que possam ecoar, ampliar-se para uma perspecti-va prenhe de novas possibilidades de educar e ser educado “para” a cultura dos direitos humanos. Assim, em nosso cotidiano, propomo--nos a experienciar, já, as relações de respeito aos direitos humanos que projetamos para tempos/espaços futuros.

Esta biblioteca significa, para todas nós, milhares de pessoas en-volvidas nesse processo, o registro de nossas vozes, de nossas ações, de nosso trabalho realizado durante o curso. Representa, além dis-so, o que sentimos, aprendemos, como nos envolvemos na realização do curso e como nos abrimos para as reflexões, críticas e autocríticas inspiradas no processo. A coleção é um convite aos leitores para co-nosco se envolverem neste projeto, propondo uma visão crítica dos direitos humanos e de sua educação, mostrando-nos caminhos que, eventualmente, podemos vir a construir juntos e a trilhar no futuro.

Apresentação

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Estrutura da coleção

O Volume I – Educação e diversidade cultural – compõe-se de três capítulos e convida as/os leitoras/es a pensarem a educação contem-porânea relacionada à diversidade cultural. No Capítulo 1 – “Diver-sidade cultural e ambiente escolar” – a autora, Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino, tece considerações sobre a escola, sua história e seu papel social. Reflete sobre os direitos dos sujeitos da desigualdade social e da diversidade cultural, no contexto da escola. No Capítulo 2 – “Sujeitos da diversidade” – Polianne Delmondez e Wanderson Flor do Nascimento discutem questões relacionadas às múltiplas di-versidades e aos sujeitos envolvidos em situação de vulnerabilidade social, por problemas de intolerância e discriminação. Propõem uma perspectiva ética e estética envolvida na produção dos sujeitos dos direitos humanos. No Capítulo 3 – “Atualização da Lei de Diretri-zes e Bases da Educação Nacional” – o autor, José Vieira de Sousa, apresenta a perspectiva legal relacionada à diversidade cultural, no contexto da educação no Brasil, analisando as alterações ocorridas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

O Volume II – Educação em e para os direitos humanos – com-põe-se de quatro capítulos. No Capítulo 1 – “Algumas questões re-levantes para a compreensão dos direitos humanos: problemas his-tóricos, conceituais e de aplicação” – o autor, José Geraldo de Sousa Júnior, apresenta um panorama dos conceitos históricos, filosóficos e culturais dos direitos humanos e oferece uma visão dos direitos humanos sintetizada a partir da relação dialética entre o jurídico, o legal e o cotidiano vivido. A educação em e para os direitos huma-nos fundamenta-se em um caminho teórico-prático de libertação e emancipação do humano. No Capítulo 2 – “Retrospectiva histórica e concepção da educação em e para os direitos humanos” – a autora, Nair Heloísa Bicalho de Sousa, introduz a história da educação em direitos humanos nas esferas internacional e nacional, numa pers-

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Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

pectiva crítica, definindo e articulando as propostas de educação em e para os direitos humanos. Ressalta que a educação em direitos humanos se sustenta em três pilares: o reconhecimento legal do di-reito à educação em direitos humanos (EDH); o desenvolvimento de políticas públicas educativas; e o fortalecimento das condições e recursos pedagógicos do sistema educativo para a EDH. Relaciona a cultura dos direitos humanos à democracia e ao processo de constru-ção da cidadania, visando a uma sociedade mais justa. No Capítulo 3 – “Tornar-se humano e os direitos humanos” – a autora, Lúcia He-lena Cavasin Zabotto Pulino, propõe uma visão do humano em pro-cesso de tornar-se membro da espécie, ser singular e cidadão, capaz de transformar o meio ambiente e a si mesmo. Aborda a educação para a cidadania e pela cidadania e considera a comunidade da sala de aula como um espaço/tempo de exercício da cidadania, no qual a educação científica e humanística se processa, embasada pelo desen-volvimento de pesquisas. Instiga-nos ainda a pensar estratégias para o convívio na comunidade escolar, visando à educação em e para os direitos humanos, inserida no projeto de escola cidadã. No Capítulo 4 – “Educação ambiental e cidadania planetária” – a autora, Isabel Cristina Bruno Bacellar Zaneti, desenvolve a concepção de cidada-nia planetária, propondo a educação ambiental como caminho que conduz a nós, seres humanos, à compreensão responsável de que nossos valores e nossas ações se transformam por meio da experiên-cia. Sustenta que essa transformação gera a consciência da necessida-de de vivermos de acordo com uma ética do cuidado, da cidadania e da participação, propondo uma relação ecológica harmônica entre os seres humanos e deles com o ambiente.

O Volume III – Educação, direitos humanos e organização do tra-balho pedagógico – compõe-se de quatro capítulos. No Capítulo 1 – “Direitos humanos, cultura da paz e currículo” – os autores, Ália Maria Barrios Gonzáles e Eder Alonso Castro, apresentam as teorias do currículo, problematizando-as histórica e epistemologicamente.

Apresentação

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Sustentam que, desde as concepções teóricas até sua contextualiza-ção na concretude das relações, o currículo – que abarca a educação de valores, afetos, práticas, além de conteúdos científicos – confi-gura-se como processo dinâmico, em constante recriação, coerente com a proposta pedagógica e de gestão escolar, voltada para o de-senvolvimento global dos sujeitos que fazem parte da comunidade escolar, numa cultura de paz. No Capítulo 2 – “Direitos humanos e o projeto político pedagógico” – as autoras, Regina Lúcia Sucupira Pedroza e Júlia Chamusca Chaves, discutem a construção do Pro-jeto Político Pedagógico, a partir da perspectiva da educação em e para os direitos humanos e da noção de democracia. Consideram a Constituição de 1988 – a nossa “Constituição Cidadã” –, e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira como sustentação legal da proposta de gestão democrática na escola. Nesse contexto, o Pro-jeto Político Pedagógico constitui-se como documento histórico e propositivo, elaborado por toda a comunidade escolar, alicerçado na perspectiva da escola democrática e dos direitos humanos. No Ca-pítulo 3 – “Educação em e para os direitos humanos: discutindo os materiais didáticos” – Larissa Medeiros e Gabriela Mieto de Souza apresentam criticamente os materiais didáticos produzidos e utiliza-dos na educação em e para os direitos humanos. Refletem sobre as diferentes concepções de ser humano que podem estar envolvidas nas escolhas de determinados tipos de materiais didáticos; proble-matizam a questão do respeito às diferenças e discutem a evidência de preconceitos na produção e seleção de materiais didáticos; pro-movem uma reflexão sobre os princípios éticos e de construção de cidadania, valorizando a escolha de livros didáticos comprometidos com os direitos humanos. No Capítulo 4 – “Direitos humanos e co-tidiano escolar” – a autora, Sílvia Lúcia Soares, analisa a organização do trabalho pedagógico, em seu sentido amplo, no que se refere às possibilidades de articulação da diversidade cultural e dos direitos humanos, entre a micro e a macroestrutura sociopolítica, com o co-

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Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

tidiano docente e, em sentido restrito, à materialidade do processo de ensino e de aprendizagem, no espaço da sala de aula; aborda a educação em direitos humanos como a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana, que se efetiva por meio da vivência dos valores de liberdade, justiça, igualdade, solidariedade, cooperação, tolerância e paz. Sustenta que a organização do trabalho pedagógico está relacionada aos princípios, às concepções e às posturas pedagó-gicas, conforme os critérios e as concepções das pessoas que conce-bem e vivenciam tal organização.

O sentido da coleção

O conteúdo desses livros, concebidos por muitas mãos, mentes e afetos, resgata-nos experiências passadas e nos projeta para o futuro, instigando-nos a refletir sobre a existência do livro.

O livro, “diferentemente das muitas invenções do homem, que são extensões de seu corpo, como o arado e a espada, que são extensões de seu braço, é uma extensão da memória e da imaginação humanas”. Assim Jorge Luis Borges, o grande escritor argentino, no ensaio “O livro” de sua coletânea Cinco visões pessoais (Borges, 1987: 9), define esse objeto que nos é tão próximo.

Memória e imaginação do ser humano estão contidas entre as duas capas de um livro. Os livros nos acompanham, complemen-tando nossa condição humana para além dos limites de nosso cor-po e existência individuais. Eles participam de nosso processo de nos tornarmos humanos, possibilitando que nos encontremos, por meio deles, com outras pessoas, contemporâneas nossas ou não, que vivem ou viveram em outros lugares, em outras condições e momen-tos históricos.

O livro é nossa “memória vegetal”, conforme o “Professor” Um-berto Eco (2009) sustenta em sua obra assim intitulada. Ao reavivar a história da memória humana, Eco distingue três tipos de memó-

Apresentação

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ria: a memória orgânica, registrada e administrada pelo cérebro, já que nos primórdios da humanidade eram os velhos que guardavam e transmitiam a memória dos grupos humanos; a memória mineral, que nasceu com a invenção da escrita, já que “ os primeiros signos foram gravados em tabuinhas de argila ou esculpidos sobre pedra”; e, finalmente o terceiro tipo, a memória vegetal – que nasce com o livro (Eco, 2009: 14-15).

Em verdade, as três formas ainda hoje coexistem, por meio da transmissão de experiências e informações pelos mais velhos, pelos meios digitais e pelos livros.

Nesta nossa Biblioteca, oferecemos estes volumes que registram a memória vegetal construída coletivamente durante o curso, organi-zada e editada de modo a permitir que nossas/os leitoras/es partici-pem das nossas reflexões e práticas educativas, de maneira crítica e criativa.

Para nós, que participamos do processo de construção efetiva do curso – como cursistas, escritores, mediadores, professores-tutores, orientadores, membros do apoio administrativo ou da equipe de coordenação –, esta publicação nos traz alegria e uma sensação de missão cumprida, marcadas pela cumplicidade deste trabalho em co-laboração.

Esperamos contribuir para o descerramento de canais de comuni-cação futura com vocês, leitoras/es, com as comunidades escolares, os movimentos sociais, educadores, estudiosos e militantes da educação em e para os direitos humanos, no contexto da diversidade cultural.

Agradecemos por este encontro e lhes desejamos boa leitura!Abraços,

Equipe organizadora.

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Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

Referências

Borges, J. L. O livro. In: Borges, J. L. Cinco visões pessoais. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1987.

Eco, U. Memória vegetal e outros escritos sobre bibliografia. Rio de Janeiro: Record, 2010.

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Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

Prefácio

Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino

O tema que me foi dado é Educação e Direitos Hu-manos, Educação Libertadora. Vou colocar questões a mim mesmo a respeito disso.

A primeira questão que me ponho é a de como falar sobre Educação e Direitos Humanos já nos coloca um primeiro direito negado e negando-se, que é o direito à educação. É a própria educação… como di-reito de todos, que é negada a grande parte da po-pulação. E esta primeira reflexão me leva imediata-mente a constatar outra obviedade que é exatamente a natureza política que a educação tem, isto é, cons-tatar a absoluta impossibilidade de termos um pro-cesso educativo que esteja dirigido ao “bem-estar da humanidade”…

A politicidade da educação demanda veementemen-te do professor e da professora que se assumam como um ser político, que se descubram no mundo como um ser político e não como um puro técnico ou sá-bio, porque também o técnico e o sábio são substan-tivamente políticos.

[…]

Para o professor reacionário, a Educação em Direitos Humanos tem a ver com a educação da classe domi-nante, lutando para preservar as condições materiais da sociedade que aí está.

[…]

Prefácio

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Enquanto o professor elitista orienta a educação como uma espécie de freio para as classes populares, e de crescimento para os representantes da elite, um educador progressista, necessariamente, não pode caminhar assim. Portanto, a visão ou a compreensão dos Direitos Humanos e da Educação depende de como eu me vejo no mundo politicamente, depende de com quem eu estou, a serviço de quem e a serviço de que eu sou um educador.

Paulo Freire (2001: 94-97).

Nesta epígrafe, Paulo Freire nos fala da educação, especial-mente em direitos humanos como ação política que se processa por motivações e objetivos, apoiando-se em de-

terminadas concepções e práticas que se constituem como opções políticas dos educadores.

Nesse sentido, convidamos vocês, leitoras/es, a lerem criticamente os capítulos que compõem este volume, seguindo as pistas que lhes apresentamos neste Prefácio, de modo a entrarem em contato com a opção política que dá sentido às palavras e às colocações das/os auto-ras/es.

Como foi colocado na Apresentação, apesar de muitos autores te-rem escrito os volumes, eles se unem por seu compromisso ético e político em relação à educação em e para os direitos humanos.

Adentremos, juntas/os, o espaço escolar.Quando um/a estudante ingressa na escola, com ele/a entra o seu

mundo de relações, a sua cultura, as suas preferências, as caracterís-ticas e os valores relacionados a seu pertencimento étnico e racial, religioso, de gênero, etário, a sua maneira de ver o mundo, a si mesmo e aos outros, de viver enfim.

A escola, portanto, configura-se como o tempo/lugar de apren-dizagem, de educação, num processo que envolve a socialização, a subjetivação e a humanização das pessoas.

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Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

Este livro nos abre as portas da escola, convidando-nos a olhá-la como um espaço/tempo de humanização, de experiência nesse pro-cesso de nos tornarmos educadoras/es e educandas/os.

A existência da escola em nossa cultura tem um significado muito importante para a educação em e para os direitos humanos, e em e para a diversidade cultural. A escola, especialmente a escola pública – como lugar de todos e para todos, como instituição da sociedade que acolhe as pessoas desde a infância, levadas a ela por suas famílias –, tem como missão socializar as crianças e os jovens de acordo com os parâmetros da cultura na qual vivem.

A escola constitui-se como o espaço/tempo que viabiliza o exercí-cio do direito declarado no artigo XXVI da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior está baseada no mérito.

Além de ser, por sua própria existência, a instituição que viabiliza o exercício do direito à instrução, a escola é um espaço/tempo de construção de um tipo de instrução ela mesma pautada em todo o rol dos direitos humanos. Poder entrar na escola, por si só é um direito da criança articulado ao dever de seus pais de matriculá-la na idade prescrita pela lei.

Este livro nos dá a dimensão da complexidade envolvida na entrada da criança e do jovem na escola, que significa sua entrada numa insti-tuição pública para uma experiência de saída do mundo privado da fa-mília, iniciando-a num processo de relacionar-se com outras crianças, cada uma vinda de um núcleo familiar. Na infância e na juventude, a escola é o espaço/tempo de convívio com as pessoas mais velhas, mais experientes de nossa cultura. É lugar de convivência com a diversida-de e de construção das formas de lidar com os conflitos advindos dela.

Prefácio

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Ao adentrarem os portões da escola, todas as crianças, agora es-tudantes, começam a aprender uma nova linguagem – a linguagem culturalmente significada –, a pautar suas ações, seus afetos, seus dis-cursos em regras aceitas social e culturalmente e a elas introduzidas por educadoras e educadores.

Em nosso país, a regência das relações na comunidade escolar, mais amplas e diversas do que no círculo familiar, é dinamizada pela mediação do/a educador/a, e se baseia em princípios e diretrizes es-tabelecidos pela Constituição Federal, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, por orientações específicas do Ministério da Educação e das Secretarias Estaduais, Distritais e Municipais de Educação.

Esse conjunto de leis, diretrizes e orientações do processo educa-cional – em nosso país, assim como em outros da cultura ocidental – apoia-se, implícita ou explicitamente, na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Dessa forma, concebe-se que:

Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade (artigo I).

Assume-se ainda que:

Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espé-cie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição (artigo II).

Esses princípios, entretanto, são imperativos éticos, que falam de uma condição ideal, referem-se a um dever ser. A nós, educadoras/es dedicadas/os à educação em e para os direitos humanos, apresen-ta-se, então, um desafio: como considerar esses direitos universais, que se referem a um humano ideal, e trazê-los para a dimensão des-se humano que existe na condição da finitude, da singularidade, da diferença, da diversidade cultural? Quem é o sujeito concreto dos direitos humanos? Os direitos humanos existem em si, em princípio?

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Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

Podem ser traduzidos no cotidiano? Como experienciar um convívio a ser construído coletiva e conscientemente no exercício dos direitos humanos? Como viver relações que reconheçam o caráter processual da assunção dos direitos humanos, não impostos como deveres en-sinados, mas como construção conjunta de valores e de práticas que reconheçam a dignidade do humano e a justiça social?

Ao assumirmos as relações humano/mundo e humano/humano, marcadas pela cultura e pela singularidade dos sujeitos envolvidos, propomos um tipo de educação como construção conjunta do co-nhecimento, como processo de subjetivação e socialização.

A escola, como lugar de educação socialmente reconhecido, cons-titui-se como espaço/tempo de encontro entre educadoras/es e educandas/os e desses entre si, que, ao viverem em comunidade, en-contram-se com o mundo, o que promove uma transformação, uma ressignificação tanto do mundo como das pessoas – educandas/os e educadoras/es.

A cada geração que ingressa na escola, esta se transforma, as crian-ças ou os jovens se transformam e o mundo que aí se apresenta é res-significado. Assim, o que caracteriza a educação é o movimento, a mudança, o processo.

É nesse movimento que este livro nos propõe inserir a educação em e para os direitos humanos, assumindo que não vamos “ensinar”, “instruir” as pessoas a viverem em paz na escola, não vamos esperar que necessariamente as crianças e os jovens mudem do dia para a noite e comecem a respeitar uns aos outros. Reconhecemos que este é um processo que dura toda a vida, que é complexo e requer que consi-deremos novas maneiras de nos relacionarmos com as crianças e os jovens, que criemos recursos, estratégias e materiais que promovam mediações condizentes com as nossas perspectivas e os nossos valores.

Pensamos que o processo de introdução da educação em e para os direitos humanos requer que assumamos uma postura política pau-tada na democracia, que revisemos a maneira como temos posto em

Prefácio

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prática o currículo e, acima de tudo, que assumamos, como educado-ras/es, que estamos nos transformando, aprendendo o tempo todo – assim como os nossos estudantes – e que cultivemos uma visão crítica da criança e do jovem, considerando-os coparticipantes das ativida-des na comunidade escolar.

Nos capítulos deste livro, seremos convidadas/os a reconhecer a complexidade de se introduzir a educação em e para os direitos hu-manos no cotidiano da escola, concretizando, em nossas ações, pro-postas, relações, valores, ou seja, uma ética de compartilhamento ba-seada no cuidado mútuo.

Democracia, justiça, igualdade de direitos nos move no processo de construção do conhecimento na comunidade escolar, formada por pessoas que se comprometem coletivamente como partícipes da edu-cação, e que, por meio das relações e das ações, constituem-se como sujeitos originais, que se tornam humanos e reconhecem o outro tanto como ser igual, com o qual se identificam em sua humanidade, quanto como ser diferente, do qual se distinguem, por sua singularidade.

A escola é o lugar em que não só somos introduzidos ao mundo so-cial, como se fosse uma antessala da sociedade, mas se constitui como um espaço/tempo de vida, de experiência concreta do processo de nos tornarmos humanos, seres sociais que produzem conhecimento, relações, afetos, o que, efetivamente, ultrapassa a noção de “ensaio para a vida pública” e se configura como uma das instituições da vida pública. A escola, nesse sentido, deixa de ser ensaio para se tornar a vida concreta mesma, em sua dramaticidade, tão povoada de verdade e de autenticidade como o lugar de trabalho do mundo adulto.

Neste volume, tratamos desse lugar no qual nos tornarmos huma-nos, desse espaço/tempo de ócio, no sentido em que a moeda usada na comunidade escolar não é o dinheiro, o salário, não se trata de um negócio. Na escola, a moeda – ou o que move as relações – são os afetos, a curiosidade de conhecer mundos e tempos distintos, de imaginar outras possibilidades de se tornar humano, de explorar o

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Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

pensamento, de “conversar” com os antepassados e de desbravar os livros, os filmes, a poesia, a música.

O que move a escola é o movimento do mundo, de si mesmo, do outro. Um movimento que não é totalmente mensurável no tempo cronológico, ainda que se tenha a intenção de avaliá-lo. É um movi-mento criativo, que se rege também pela temporalidade de Aion, que é, segundo Heráclito, no Fragmento 51: “o tempo da criança jogan-do, brincando; o tempo da criança criançando” (Costa, 2000). É a mudança, a transformação da qual participamos e que nos permite sentir compartilhando o mundo, ou, como diz Carlos Drummond de Andrade, termos um “sentimento de mundo”.

E, o que nos move aqui é a força da ideia de que todos temos o direito à educação, todos temos o direito de sermos acolhidos na es-cola pelos educadores, e por nossos pares contemporâneos. O que nos move é sabermos que todos temos o direito de nos encontrarmos com os nossos antepassados ou contemporâneos que, embora não estejam mais presentes fisicamente, nos recebem na escola, para nos contarem, por meio de livros de literatura e de ciências, por meio de obras de arte, sua experiência como humanos que nos precederam e nos deixaram seu legado, que tem como matéria-prima esforço e afeto, expressando sua aventura como humanos.

Essas reflexões sobre o significado cultural e histórico da escola, nos inspiram a pensar sobre como queremos e podemos preparar a escola para receber as novas gerações, as nossas crianças e os nossos jovens.

O compêndio

Este volume traz, em seus capítulos, propostas para fazer da escola um tempo/lugar de acolhimento, de educação política, social, ética, estética e afetiva, de construção do conhecimento, de constituição de cada sujeito cidadão, na perspectiva da educação em e para os direitos humanos.

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No capítulo 1, “Direitos humanos, cultura da paz e currículo”, Ália Maria Barrios González e Eder Alonso Castro apresentam as teorias do currículo – tradicionais, críticas e pós-críticas –, proble-matizando-as histórica e epistemologicamente, conforme concebam o humano, seu desenvolvimento, a aprendizagem, o conhecimento, a cultura, a sociedade, as relações de poder.

Desde as concepções teóricas até sua contextualização na concre-tude das relações, o currículo – que não se resume a conteúdos cog-nitivos, mas abarca a educação de valores, afetos, práticas – configu-ra-se como processo dinâmico, em constante recriação, coerente com a proposta pedagógica e de gestão escolar, voltada para a construção global dos sujeitos que fazem parte da comunidade escolar.

Assim, a educação em e para os direitos humanos numa cultura de paz não se resume a concepções exteriores à nossa “prática-teóri-ca”, ela está presente em nossa concepção de humano, ao propormos um currículo em movimento, um projeto político pedagógico, assim como em nossas práticas no cotidiano da sala de aula, expressando--se nas relações com o conhecimento, com o ambiente escolar e com cada estudante.

Trata-se de uma educação democrática e pautada na igualdade e na justiça social, considerando que a diversidade cultural pode ser pen-sada como uma educação em e para os direitos humanos que cultiva uma cultura de paz.

Os autores trabalham ainda a dimensão da concretização teórico--prática do currículo, numa perspectiva transversal, sugerindo a im-plementação da educação em e para os direitos humanos no currículo manifesto por meio da pedagogia de projetos, e a importância de se atentar justamente para as manifestações da educação em e para os direitos humanos no currículo oculto.

Enfatizam a importância de uma educação reflexiva, ético-políti-ca, no sentido do desenvolvimento de um cidadão autônomo e res-ponsável. O educador, ao mesmo tempo em que educa em e para a

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Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

cidadania, educa-se como pessoa e profissional, comprometido com a cultura da paz e dos direitos humanos.

Em suas relações com as crianças, o educador abre espaço para a criança se colocar como sujeito ativo e reflexivo do processo educa-cional em e para os direitos humanos.

No capítulo 2, “Direitos humanos e projeto político-pedagógico”, as autoras Regina Lúcia Sucupira Pedroza e Julia Chamusca Chagas, discutem justamente a construção do projeto político-pedagógico, visando à educação em e para os direitos humanos.

Apresentam a complexidade da noção de democracia e a relacio-nam com a de direitos humanos, desde a Constituição de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, ambas colocadas como sustentação legal da proposta de gestão democrática na escola. Essa gestão democrática alicerça a construção do projeto político-peda-gógico por toda a comunidade escolar.

Ao considerar a educação em e para os direitos humanos, orientada pelo Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, as autoras referem-se à Declaração Universal dos Direitos Humanos, relacionan-do o desenvolvimento da educação em e para os direitos humanos no Brasil às propostas da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Ressaltam que a construção coletiva do projeto político pedagógi-co permite que a democracia e a cidadania se realizem no cotidiano pelo coletivo da comunidade escolar, com a participação de crianças, educadores, professores e funcionários, familiares e membros da co-munidade maior, comprometidos com a educação e a segurança dos estudantes.

Dessa forma, a escola democrática torna-se escola de todos e para todos. Neste contexto, as autoras situam a promoção da educação em e para os direitos humanos e apresentam uma proposta de democra-cia expressa no projeto político pedagógico, que cultive a reflexão,

Prefácio

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a crítica e a negociação, e que não elimine os conflitos, já que estes fazem parte do desenvolvimento das pessoas.

No capítulo 3, “Direitos humanos e produção de materiais didáti-cos”, Larissa Medeiros Marinho dos Santos e Gabriela Sousa de Melo Mieto apresentam criticamente os materiais didáticos produzidos e utilizados na educação em e para os direitos humanos.

Refletem sobre as diferentes concepções de ser humano que po-dem estar envolvidas nas escolhas de determinados tipos de materiais didáticos. Problematizam a questão do respeito às diferenças e discu-tem a evidência de preconceitos na produção e seleção de diferentes materiais didáticos.

Promovem uma reflexão sobre os princípios éticos e de constru-ção de cidadania, valorizando a mediação cultural na educação e a escolha de livros didáticos comprometidos com os direitos humanos. Analisam o Programa Nacional do Livro Didático (PNL), os princí-pios éticos, estéticos e epistemológicos que o orientam.

Consideram outros materiais, tanto os criados pela comunidade escolar, como aqueles disponíveis na sociedade e apropriados pelas/os educadoras/es, como vídeos, documentários, filmes, revistas.

Ressaltam a responsabilidade das/os educadoras/es na escolha e construção dos materiais, atentando para a questão da diversidade cultural em nosso país e as conquistas e os desafios da educação em e para os direitos humanos, levando em conta aspectos relacionados à desigualdade social e à diversidade de gênero, étnica e racial, religio-sa, estética, etária, entre outras, assumindo uma postura de cuidado e respeito pelo outro, pelo diferente.

Assim, a educação na escola se torna potente para a construção de um conhecimento crítico e criativo para a constituição de sujeitos que respeitam os outros e são respeitados por eles, no exercício de-mocrático da cidadania.

No capítulo 4, “Direitos humanos e cotidiano escolar”, a autora Silvia Lúcia Soares analisa a organização do trabalho pedagógico,

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Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

em seu sentido amplo, no que se refere às possibilidades de articula-ção da diversidade cultural e dos direitos humanos entre a micro e a macroestrutura sociopolítica com o cotidiano docente e, em sentido restrito, à materialidade do processo de ensino e de aprendizagem, no espaço da sala de aula.

Aborda a educação em e para os direitos humanos como a forma-ção de uma cultura de respeito à dignidade humana, que se efetiva por meio da vivência dos valores de liberdade, justiça, igualdade, so-lidariedade, cooperação, tolerância e paz.

Sustenta que a organização do trabalho pedagógico está relaciona-da aos princípios, às concepções e às posturas pedagógicas, conforme os critérios e as concepções das pessoas que concebem e vivenciam tal organização.

Ao longo desses quatro capítulos podemos perceber a complexida-de da introdução de uma proposta de educação em e para os direitos humanos na escola, uma vez que, longe de se constituir como uma educação prescritiva, mostra-se como um processo vivo, uma rede de relações sensíveis à diversidade, que vai tecendo sua maneira de lidar com conflitos e de promover mediações, criando uma cultura pautada pela ética do cuidado, visando à participação de cada uma e de todas as pessoas, tendo como horizonte a construção de uma comunidade educativa justa, responsável e feliz.

A leitura deste livro nos mostra que o desafio da educação em e para os direitos humanos perpassa as relações de todos os membros da comunidade escolar e se coloca como um processo que faz parte da nossa experiência de nos tornarmos humanos.

Boa leitura!

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Referências

Costa, A. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel, 2000.

Freire, Paulo; Araújo Freire, Ana Maria (Orgs.). Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Editora Unesp, 2001.

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Direitos humanos, cultura da paz e currículo

Direitos humanos, cultura da paz e currículo

Ália Maria Barrios González &Eder Alonso Castro

Currículo e direitos humanos

Conversando sobre a teoria do currículo

A teoria do currículo, na tradição americana, foi se estabele-cendo de forma a-histórica, e difundiu, em grande medi-da, modelos descontextualizados no tempo e em relação

aos seus fundamentos, sob a preocupação de buscar os “melhores” resultados educativos e o currículo torna-se um processo industrial e administrativo. As ideias desse grupo têm como principal expoen-te John Franklin Bobbitt, com o livro The curriculum (1918). Esse utilitarismo – afirma José Gimeno Sacristán (2000) – traduz-se pela falta de um desenvolvimento teórico.

Ainda, de acordo com Sacristán (2000), as teorias do currículo são metateorias que repensam os códigos e as formas que o estruturam, o que retoma a ideia pós-estruturalista de teoria, ou seja, aproxima-se mais de um discurso do que de uma simples descrição do objeto.

As teorias do currículo afiguram-se como mediadoras entre o pen-samento e a ação em educação. Nesta perspectiva, o aluno não “rece-

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Ália Maria Barrios González & Eder Alonso Castro

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be” o currículo pronto do professor, mas essa relação é muito mais complexa e envolve outras relações que se estabelecem tanto dentro quanto fora das instituições educativas.

Vamos pensar as teorias do currículo não como algo que defina o que é o currículo, mas como o que determinada teoria pensa ser o currículo. Para tanto, nosso caminho deverá relevar os aspectos his-tóricos, ou seja, como em diferentes momentos, em diferentes teo-rias, o currículo tem sido definido.

Vários teóricos do currículo afirmam que a questão central que permeia qualquer teoria do currículo é: O quê? (qual tipo de conhe-cimento é considerado importante ou válido ou essencial para me-recer sua inserção no currículo?). E para responder a essa questão as diferentes teorias recorrem a discussões sobre a natureza humana, sobre a natureza da aprendizagem ou do conhecimento, da cultura e da sociedade. Tais teorias se diferenciam, de maneira geral, pela ênfa-se que dão a um ou a outro aspecto.

Ao centrar-se na pergunta “o quê?” as teorias buscarão, implícita ou explicitamente, critérios que justifiquem a resposta que darão a essa pergunta. Assim,

O currículo é o resultado de uma seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai constituir precisamente o currículo (Silva, 2005: 15).

As teorias, nesse sentido, buscam decidir quais “conhecimentos” serão selecionados e quais devem ser deixados de lado.

Ainda de acordo com Silva (2005), outra questão muito importan-te para as teorias do currículo diz respeito aos sujeitos em formação, ou seja, para quem o currículo se destina, uma vez que esses sujeitos “seguirão” determinado currículo com o objetivo de “mudar” os seus conhecimentos para se adequarem a determinado tipo de contexto social. Nesse sentido, “o tipo de pessoa que se quer formar” precede a questão de quais conteúdos o currículo deve ter.

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Direitos humanos, cultura da paz e currículo

A cada questionamento acerca de qual pessoa se deseja formar há uma maneira de expressão curricular e, consequentemente, uma con-cepção pedagógica. Nesse sentido, podemos considerar que o pensa-mento pedagógico acerca do currículo é muito heterogêneo e disper-so, apresentando posições, que até mesmo

desprezam a análise e as decisões sobre os conteúdos, pretenden-do unicamente proposicionar esquemas de como organizá-los e manejá-los por parte dos professores/as (Sacristán & Pérez Gó-mez, 1998: 122).

Quando se procede à escolha de determinados conteúdos e se dei-xa outros de lado, ou quando se opta por uma ou outra postura peda-gógica, em realidade o que se expressa é a relação de poder que existe dentro do currículo.

Privilegiar um tipo de conhecimento é uma operação de poder. Destacar, entre múltiplas possibilidades, uma identidade ou sub-jetividade como sendo a ideal é uma operação de poder (Silva, 2005: 16).

As teorias do currículo não transitam, dessa maneira, num campo epistemológico “neutro” (aliás, nenhuma teoria, em princípio, faz esse percurso), mas estão envolvidas com as determinantes sociais e com os aspectos hegemônicos. “As teorias do currículo estão situadas num campo epistemológico social”, completa Silva (2005).

Ao entender que o currículo é uma opção cultural, não há uma definição capaz de estabelecer o que ele é, mas, no campo de estudo do currículo, há diversas teorias que procuram buscar seus diferentes significados em diferentes contextos, como veremos a seguir.

Currículo sob a ótica tradicional, crítica e pós-crítica

O estudo do currículo torna-se necessário quando o processo de escolarização cresce, criando a demanda por reestruturação da edu-cação em níveis a abarcarem tanto o crescente ingresso de alunos como as demandas sociais por mão de obra qualificada.

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O sistema educativo, cada vez mais ampliado, necessita de organi-zação, abandonando a configuração, de certa forma aleatória, e bus-cando formas de organização que respondam aos interesses sociais. A educação tende, portanto, a ser controlada por aqueles que detêm o poder, o que implica em regular e em controlar a distribuição de conhecimento. A interligação entre poder e cultura é analisada por Michael Apple (2006), que afirma haver uma interconexão dialética entre poder e controle econômico, de uma parte, e poder e controle cultural, de outra.

De acordo com Silva (2005), é no âmbito das relações de poder que as teorias sobre currículo se delineiam em tradicionais, críticas e pós-críticas. As teorias tradicionais procuram valorizar as “teorias neutras”, “científicas” a serviço da verdade. As teorias críticas e as pós-críticas, em contrapartida, defendem a perspectiva de não haver teoria neutra, ao contrário, asseveram que toda teoria está implicada em relações de poder.

As teorias tradicionais se concentram em questões técnicas, muito mais do que nos conteúdos propriamente dito (considerados como óbvios, como inquestionáveis). A questão recai sobre como esses conteúdos serão abordados, ou seja, qual é a melhor forma de trans-miti-los. Dessa maneira, as teorias tradicionais preocupam-se com questões relativas à organização.

As teorias críticas e pós-críticas procuram problematizar justa-mente os conteúdos do currículo, estabelecendo relações entre esses e as motivações da escolha por determinados conteúdo em detrimen-to de outros; estão, nesse sentido, preocupadas com as conexões en-tre saber, identidade e poder (Silva, 2005).

Neste texto, nos propomos a analisar o currículo na perspectiva das teorias pós-críticas, portanto, nossa reflexão se dará a partir das relações entre saber, identidade e poder. Neste sentido, a prática do-cente assume um importante papel na análise e compreensão do con-ceito de currículo.

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Direitos humanos, cultura da paz e currículo

O currículo e a prática pedagógica

O currículo se traduz em uma prática pedagógica a expressar a função social e cultural das instituições educativas. Por meio do cur-rículo, as práticas pedagógicas diversas se entrecruzam, dialogam en-tre si e se configuram.

O currículo adquire significados concretos dentro das salas de aula. As leituras e interpretações feitas desse currículo se materiali-zam nas atividades propostas pelos professores que se traduzem em práticas pedagógicas. O professor seleciona e adapta os conteúdos conforme as concepções com as quais fundamenta sua prática (mes-mo que isso corra de forma inconsciente). O currículo se concretiza neste movimento que precisa o diálogo entre o professor e sua prática pedagógica.

Assim, currículo não pode ser entendido como lista de conteúdo a serem ensinados, mas como prática pedagógica que se dá de maneira efetiva nas ações e posturas dos educadores diante dos conteúdos a serem trabalhados nos ambientes educativos.

O professor não constrói isoladamente esse diálogo, mas recebe influências de todo o contexto educacional no qual está inserido, de outras práticas pedagógicas das quais participou enquanto aluno, do seu contexto familiar e social, da forma como a escola se organiza e da cultura subjacente implícita em sua formação. A constituição des-se sujeito – professor – tem estreita relação na forma como o currícu-lo será por ele desenvolvido. Suas concepções político-filosóficas se tornarão claras à medida que enfatiza este conteúdo em detrimento de outro prescrito no currículo ou na forma como promove as si-tuações de aprendizagem, como organiza os conhecimentos e como compreende os alunos.

O funcionamento da instituição educativa influencia na prática pedagógica e, por consequência, no currículo. A organização da ges-tão, seja ela democrática ou autoritária, os recursos materiais e finan-

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ceiros disponíveis, o suporte pedagógico oferecido ao trabalho do-cente, a formação continuada do docente e da equipe pedagógica etc. Todos estes fatores, que refletem a ação da instituição, demandam uma postura profissional a ser seguida, mesmo parcialmente, pelos professores e, de alguma maneira, implicam formas diversas de se vi-venciar o currículo.

Os fatos do cotidiano escolar, em sua grande maioria, têm relação com o currículo. Ao se estabelecer períodos, ciclos, etapas e outras formas de distribuir o currículo em tempos e espaços definidos, iden-tificamos, como pano de fundo, concepções de aprendizagem e de desenvolvimento. Quais “conteúdos” são mais bem ajustados a essa ou àquela faixa etária, o que se pretende com o ensino e as infinitas possibilidades de agrupamentos de temas e formas. É nesse ir e vir de escolhas de organizações do currículo que se estabelece um espaço privilegiado para a comunicação entre a teoria e a prática.

É no âmbito da instituição educativa que se entrelaçam, por meio do currículo, as práticas políticas administrativas, econômicas, orga-nizativas e institucionais aos pressupostos e às práticas estritamente didáticas (Sacristán, 2000). É assim que se deve buscar a análise dos parâmetros que norteiam as práticas pedagógicas no embate dessas forças e no coletivo das instituições, palco onde se engendram os as-pectos políticos, pedagógicos e sociais do currículo.

Quando se fala em qualidade do ensino, a atenção, tanto dos edu-cadores como das políticas públicas, recai sobre o currículo. No en-tanto, não há como mudar o currículo de forma isolada, arbitrária, num movimento descontextualizado, é necessário ter em conta toda a relação que se estabelece em torno desse currículo, ou seja, o currículo deve ser compreendido como processo dinâmico e contextualizado.

Por esse motivo, é difícil introduzir as práticas de cultura da paz e direitos humanos nos currículos escolares se os mesmos não fizerem parte de um contexto maior, no qual estão envolvidos todos os ato-res deste processo educativo. Os direitos humanos não podem ser

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Direitos humanos, cultura da paz e currículo

apenas mais um tema na lista dos conteúdos a serem ensinados, pre-cisam estar presentes nas concepções e práticas pedagógicas diárias nos diferentes contextos educativos; precisam ser apreendidos pelos educadores como estilo de vida, como ideal a ser seguido, para que sua prática diária se traduza em ações que aspirem a paz e os direitos humanos, de forma que se tornem parte de sua cultura. Faz-se neces-sária uma mudança interna, por meio da transformação da consciên-cia, a ponto de esta nova postura estar plenamente consolidada como modo de vida do/a educador/a.

De acordo com Sacristán (2000), o processo de ensino-aprendiza-gem não ocorre sem os conteúdos culturais. Qualquer que seja a pro-posta educacional, necessariamente tratará dos conteúdos culturais explicitando, assim, o referencial curricular no qual está respaldada. Não há modelo educativo que não esteja fundamentado em uma op-ção cultural determinada. Uma proposta pedagógica que deixe de lado esses conteúdos estará influenciada pelo psicologismo que, de alguma maneira, perde o elo necessário entre a escola e a sociedade. Ao priori-zar o “como” em detrimento do “que”, a prática pedagógica estabelece uma ruptura drástica no processo de ensino, uma vez que ambas as proposições só fazem sentido uma em relação à outra. Ao se priorizar uma delas, corre-se o risco de esvaziar o sentido da prática pedagógica.

Outro agravante dessa ruptura diz respeito à educação para as clas-ses menos favorecidas, cuja principal oportunidade cultural é a esco-larização. Quando os interesses dos alunos não encontram resposta na cultura escolar, esses acabam por evadir-se. Nessa concepção, são alijados do processo embora permaneçam “dentro” da instituição educativa. A significação dos conteúdos e a análise crítica dos mes-mos deveriam estar em primeiro plano, sobretudo se considerarmos os princípios de “igualdade” que regem a educação. Ao refletir sobre as práticas educativas, em seus diferentes níveis e modalidades, faz-se necessário, ainda que de forma breve, tecer uma análise crítica sobre a construção social desses alunos enquanto sujeitos de direitos.

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De acordo com Santos (2013: 42), “[...] a grande maioria da po-pulação mundial não é sujeito de direitos humanos. É objeto de dis-cursos de direitos humanos”. Isso pode ser identificado nos projetos pedagógicos das escolas que, em sua maioria, apresentam um dis-curso maravilhoso, mas que, na prática, não tratam os estudantes e a comunidade na qual está inserida como sujeitos deste processo de construção do conhecimento.

Um dos agravantes desta ruptura entre os conteúdos a serem ensi-nados e o contexto social aponta para as diferenças culturais entre do-centes e educandos. Muitas vezes essas diferenças se estabelecem como desrespeito aos direitos fundamentais, no qual uma cultura se sobrepõe a outra. Na concepção da cultura de paz e de direitos humanos, não há cultura maior, ou melhor, existe, sim, a necessidade de valorização e de respeito entre as diferentes manifestações. Assim, o docente que se propõe uma prática pedagógica nestes termos precisa despir-se de seus preconceitos e abrir-se para um mundo de diversidade no qual cada um é respeitado e valorizado naquilo que é. Tarefa difícil e desafiante, mas imprescindível para os que almejam a cultura da paz.

Assim, acreditamos que só haverá uma mudança efetiva no cur-rículo das escolas quando ela ocorrer na vida dos docentes que al-mejam uma tal transformação. Isso porque compreendemos que o currículo, conforme Antônio Flávio Barbosa Moreira e Vera Maria Candau (2007), é fortemente influenciado pelo docente.

Em outras palavras, o currículo é o coração da escola, o espaço cen-tral em que todos atuamos, o que nos torna, nos diferentes níveis do processo educacional, responsáveis por sua elaboração. O papel do educador, no processo curricular, é, assim, fundamental. Ele é um dos grandes artífices, queira ou não, da construção dos currículos ar-quitetados que sistematizam as escolas e as salas de aula (Moreira & Candau, 2007: 19).

Portanto, as mudanças na concepção de currículo demandam uma mudança de postura pessoal e de prática pedagógica, o que resulta na

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Direitos humanos, cultura da paz e currículo

transformação de visão das relações interpessoais. Não basta incluir novos temas a serem estudados nas escolas se as práticas educativas não forem inovadoras.

Níveis do currículo

Estudos realizados sobre currículo, a partir dos anos 1960, des-tacam a existência de vários níveis de currículo denominados como formais, reais e ocultos, classificação que nos auxilia na identificação da distinção entre a teoria e a prática curriculares.

O currículo formal refere-se àquele estabelecido pelos sistemas de ensino, sejam eles federal, estaduais ou municipais. É expresso em diretrizes curriculares, objetivos e conteúdo das áreas de conheci-mentos ou disciplina de estudo. Estabelece os tempos, os espaços e a forma na qual estes conteúdos serão ensinados. Prescreve institucio-nalmente os conjuntos de diretrizes a serem seguidos pelas institui-ções vinculadas a determinado sistema.

O currículo real é aquele que ocorre dentro da sala de aula com professores e alunos a cada dia, em decorrência de um projeto pe-dagógico e dos planos de ensino elaborados pelos professores e pela coordenação pedagógica.

Currículo oculto é o termo usado para denominar as influências que afetam a aprendizagem dos alunos e o trabalho dos professores. O currículo oculto representa tudo o que os alunos aprendem diaria-mente em meio às várias práticas, atitudes, comportamentos, gestos, percepções, que vigoram no meio social e escolar. O currículo está oculto por não aparecer no planejamento do professor, mas se evi-dencia em sua prática pedagógica (Moreira & Silva, 1997).

Podemos afirmar que os currículos formal e real estão diretamen-te relacionados com “o que” deve ser trabalhado nas instituições de ensino, enquanto o currículo oculto foca a forma “como” cada con-teúdo é abordado, a forma como os docentes aproveitam os temas trabalhados em sala de aula para reafirmar ou refutar a ideologia sub-

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jacente em suas práticas pedagógicas. É neste sentido que enfatiza-mos a mudança de postura pessoal do docente para que realmente os direitos humanos e a cultura da paz deixem de ser algo proposto nos currículos formal e real e passem a fazer parte do currículo oculto.

Neste estudo, denominaremos o primeiro e o segundo níveis de currículo (formal e real) como “currículo manifesto”, uma vez que estes podem ser identificados em documentos escritos tais como: le-gislações, projetos políticos pedagógicos, planos de ensino, planos de aula, entre outros. E o currículo oculto, para nós o mais importante, revela as práticas pedagógicas que, muitas vezes, contradizem aquilo que está expresso no currículo manifesto.

O currículo oculto será tratado em detalhe na seção terceira de nosso estudo, quando identificaremos certas contradições por meio de exemplos de práticas pedagógicas analisadas sob a perspectiva dos direitos humanos e da formação de valores.

Currículo e formação docente

O discurso acerca da grande quantidade de conteúdo para pouco tempo pedagógico é levado a cabo com grande veemência nas escolas em nossa sociedade atual. Os professores argumentam que o currícu-lo está sobrecarregado e, dessa maneira, necessitam acelerar o ritmo de ensino para que possam “dar conta” dos programas estabelecidos. O que se tem em consequência é certa superficialidade e apressamen-to no trato dos temas previstos. Podemos observar este fenômeno na relação estreita entre o currículo e a forma como os conteúdos são ministrados.

Vários autores têm se manifestado sobre a quantidade de conteú-dos que são ensinados na escola e são totalmente descontextualiza-dos e, desta forma, não apresentam qualquer sentido para a vida dos estudantes.

A relação professor-aluno é outro exemplo em que podemos iden-tificar as influências/interferências do currículo. Quem determina o

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que deve ser ensinado? Quantos conteúdos comporão este ou aquele ciclo? Quais são os critérios de aprovação em determinado curso? Para todas essas perguntas a resposta passa pelo currículo, embora o professor exerça um papel fundamental no processo educativo.

A atuação profissional do professor (sua prática pedagógica) não pode ser considerada separadamente da análise curricular. A forma como os currículos se estabelecem, tendo o professor maior ou menor participação nesse processo, influenciará a prática pedagógica e tecerá novas narrativas conforme se delineia o cotidiano escolar. Como afir-ma Sacristán:

O conteúdo da profissionalidade docente está em parte decidido pela estruturação do currículo num determinado nível do siste-ma educativo (Sacristán, 2000: 32).

O que nos chama atenção é que, embora o currículo tenha tanta importância para a prática pedagógica, o professor dificilmente par-ticipa da discussão e da proposição do mesmo. Essa tarefa geralmente fica a cargo das entidades burocrático-administrativas. Ao professor cabe adequá-lo à sua prática. Temos mesmo a impressão de que o pró-prio professor assiste passivo a essa problemática, pois já está socializa-do profissionalmente a lidar com o currículo de forma passiva.

Assim, o currículo deve ser compreendido numa visão dinâmica, admitido como instrumento que se realiza em diferentes âmbitos de decisões e realizações, a ganhar vida no processo de implantação e materializar-se no processo de concepção, desenvolvimento e expres-são de práticas pedagógicas e em sua avaliação, cujo valor para os/as estudantes depende dos processos de transformação por eles/elas vivenciados (Sacristán, 2000).

Fica evidenciado o caráter político do currículo. Precisamos pen-sá-lo dessa maneira e desenvolver uma postura de embate frente às vertentes não democráticas de considerá-lo.

Impossível discutir currículo, proposta pedagógica, práticas refle-xivas, sem antes admitir ou afirmar que estas questões estão direta-

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mente relacionadas com a formação de professores, seja ela inicial ou continuada. Da mesma maneira, não é possível discutir orienta-ções curriculares sem analisar o processo formativo dos profissionais que irão atuar em sala de aula, especialmente quando se trata de edu-cação superior.

Nesse sentido, compreender o currículo, como ele se estabelece, suas diferentes teorias, é parte primordial da formação do educa-dor e deve refletir uma análise crítica de sua prática. Conhecer o currículo faz parte da competência do educador, de outra maneira, torna-se uma repetição acrítica de conjunturas e condutas pensados por outros.

Assim, é necessário ressignificar os processos de formação nos di-versos contextos em que estes vêm ocorrendo. Abramowicz (2006), ao discutir a importância de fortalecimento da concepção de grupos de formação com ênfase na reflexão, destaca a importância de um espaço especial de construção do conhecimento em que a reflexão é a mola propulsora do trabalho. A autora indica ainda que os profes-sores se tornam sujeitos de seu processo de conhecimento, produ-zem seu próprio conhecimento, com base na reflexão de sua prática.

De volta às questões de formação, quem é esse sujeito educador diante desse currículo? Quem é esse sujeito que lida com todas essas subjetividades, aparentes ou não? A dar e a receber respostas rapida-mente em direção ao mais contemporâneo que surge? Certamente não temos, no meio universitário, a formação adequada a essa com-plexidade, então vale lembrar e refletir, se esse sujeito é o referendado para atuar com esse currículo, com essa complexidade... Pensar em sua formação é urgente!

É importante indagar o que propõe ou pretende um currículo? O que objetiva ele construir com os sujeitos dele protagonistas? Um currículo se desenvolve ou se constitui apenas e tão somente entre as paredes da escola? Quem deseja, quem pode ou se autoriza na escrita desse texto multifacetado?

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Ao responder a tais questões, colocamo-nos criticamente frente à construção do currículo, uma postura que jamais pode ser des-prezada por aqueles que se designam educadores. Ao eleger como pressupostos a teoria crítica, o educador deve questionar o que pode parecer natural na sociedade como desigualdades sociais, hegemonia do conhecimento científico em relação a outras formas de conhe-cimento, neutralidade do currículo e dos conhecimentos, busca de uma racionalidade emancipatória para fugir da racionalidade instru-mental, busca de um compromisso ético que vincula valores univer-sais a processos de transformação social (Pucci, 1995).

Currículo e direitos humanos

Os temas direitos humanos e currículo têm sido estudados nos úl-timos dez anos e ainda são pouco explorados no ambiente escolar. Perpassam as questões do multiculturalismo que se pautam pela moral e pela ética, que nos ambientes educacionais se traduzem no trabalho com o respeito e a tolerância às diferentes manifestações culturais que se apresentam em alguns projetos escolares. Nesta perspectiva, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) apresen-taram a discussão da temática por meio de propostas como eixos transversais: educação para a diversidade, educação para a cidada-nia, educação para a sustentabilidade e educação para e em direitos humanos.

Todos estes temas abordam a diversidade como eixo central, sendo que, muitas vezes, os temas são apresentados superficialmente, sem atingir alguns grupos de excluídos que, historicamente, têm vivencia-do a desigualdade em virtude de suas diferenças dos padrões prees-tabelecidos. São eles: os povos indígenas, os negros, as mulheres, as pessoas com deficiências, os quilombolas, as pessoas do campo e os pobres, a população de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT), entre outros. Assim, aquilo que está proposto nos PCN não atinge os direitos humanos em suas diferentes formas de manifestação.

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Quando pensamos as questões étnico-raciais na escola, devemos estar atentos, dentre outros documentos, ao Estatuto dos Povos In-dígenas (Brasil, 2009), em seu artigo 180, inciso VI, que apresenta como princípio da educação escolar indígena:

A garantia aos indígenas de acesso a todas as formas de conhe-cimento, de modo a assegurar-lhes a defesa de seus interesses e a participação na vida nacional em igualdade de condições, como povos etnicamente diferentes.

Identificamos aí uma política pública educacional indígena que não se restringe ao reconhecimento das diferenças, mas à garantia da valorização tanto de sua identidade étnico-cultural como dos direi-tos humanos de toda sua população.

Para pensarmos sobre os negros, devemos nos fixar a conceitos como afro-brasileiro, antirracismo, etnocentrismo, xenofobia, entre outros. Eles precisam estar presentes e serem abordados no currículo escolar, para que profissionais da educação e estudantes os compreendam e percebam a importância de sua presença na prática pedagógica. Por exemplo, o termo afro-brasileiro é um adjetivo utilizado para referir-se a 50,7% da população brasileira com ascendência parcial ou totalmen-te africana, que se autodeclaram pretos e pardos. Foi um termo cons-truído a partir de uma árdua discussão sobre quem representa efetiva-mente esse segmento populacional no Brasil (Domingues, 2002). Mas somos conscientes de que apresentar estes termos, e de forma superfi-cial, não muda as posturas pedagógicas que os contradizem. Por isso, é necessário que estas discussões se efetivem em diferentes ambientes educacionais, para que educadores e estudantes as incorporem como postura pessoal. Assim, elas passariam de um discurso vazio e sem sen-tido para uma postura a engendrar ações e práticas diárias.

O mesmo ocorre quando se discute os direitos das mulheres ou as questões de gênero. O conceito de gênero surgiu entre as estudiosas feministas para se contrapor à ideia da essência, recusando qualquer explicação pautada no determinismo biológico. O sexo é atribuído

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ao biológico, enquanto o gênero é uma construção social e histórica. Ainda hoje, em nossa sociedade, a postura machista é preponderante entre os meninos e as meninas e se fortalece no período da adolescên-cia. A noção de gênero aponta para a dimensão das relações sociais do feminino e do masculino (Louro, 1997; Braga, 2007). Assim, as relações entre homens e mulheres são entendidas como fenômeno de ordem cultural e que, por isso, podem ser transformadas, sendo fun-damental o papel da educação para repensar esta realidade. Portanto, a educação é um valioso instrumento na reconstrução dos valores, das compreensões e das regras de comportamento em relação ao con-ceito de gênero, o que permite pensar nas diferenças sem transformá--las em desigualdades, sem que estas sejam ponto de partida para as discriminações e violências.

No caso das pessoas com alguma deficiência, é preciso estar aten-to para as diferentes concepções e transformações que o termo foi ganhando ao longo da história. A ideia de inclusão tem feito muitos educadores repensarem sua prática pedagógica e a reorganizarem seus conceitos nos mais variados níveis didáticos. Na maioria das vezes, ob-servamos que os estudantes encaram a inclusão dos alunos com defi-ciência com mais naturalidade do que os professores, isso porque os professores ainda sonham com um ideal de homogeneidade para que a aprendizagem ocorra de forma retilínea e uniforme em sala de aula. A presença do diferente impede, visivelmente, a realização deste sonho. Embora esta atitude não seja unânime, as resistências ocorrem mais por parte dos adultos (professores e pais) do que pelas crianças que, rapida-mente, aprendem a se relacionar com o diferente. Assim, mais uma vez aparece a discrepância entre o currículo manifesto, que, na maioria das vezes, fala de inclusão e de igualdade, e o currículo oculto, que camufla os problemas e as discrepâncias apresentados na realidade escolar.

Quando se trata dos quilombolas, de pessoas do campo e pobres no ambiente escolar, estes temas são normalmente tratados como situa-ções históricas, distantes e sem relação com a realidade presente. Na

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atualidade, temos muitos movimentos engajados na luta por estes po-vos que são, sem sombra de dúvidas, os precursores de nossa história e, por isso, não podem ser estudados como fenômenos científicos, mas como pessoas vivas e presentes em nosso meio. Este fato ocorre porque, na maioria das vezes, os desníveis sociais que existem entre educadores e educandos são muito discrepantes.

Por fim, mas nem por isso menos importante, um dos temas mais polêmicos da atualidade e que muitas escolas não abordam pelo fato de se confrontarem com valores religiosos e tradicionais é aquele que diz respeito à população de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT). Ao pensarmos em direitos humanos, não podemos deixar de levar em consideração esta população que, há muito tempo, vem sendo negli-genciada nos ambientes educativos. Cada vez mais nos deparamos com pessoas que assumem sua condição sexual diferente daquela estipulada tradicionalmente em masculino e feminino. Voltamos aqui à discus-são de gênero que ultrapassa o biológico e recebe uma carga cultural muito forte. Na escola, em particular, muitas vezes são encontradas pessoas nestas condições que não podem manifestar-se em função de um preconceito evidente. O mesmo ocorre nos debates relacionados a este tema que muitas vezes ganham um apelo naturalista ou biológico para justificar reações preconceituosas e discriminatórias. Como falar em direitos humanos sem respeitar a diversidade humana em suas dife-rentes formas de manifestação?

Educação em e para os direitos humanos

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (Brasil, 2007) define a educação em direitos humanos como um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito de direitos, articulando as seguintes dimensões:

a. apreensão de conhecimentos historicamente construídos sobre direitos humanos e sua relação com os contextos internacional, nacional e local;

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b. afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos direitos humanos em todos os espaços da socie-dade;

c. formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer presente em níveis cognitivo, social, cultural e político;

d. desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção coletiva, utilizando linguagens e materiais didá-ticos contextualizados;

e. fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção, proteção e defesa dos direitos humanos, bem como reparação das violações.

No campo da educação básica, o plano orienta que a educação em direitos humanos vá além de uma aprendizagem cognitiva, incluindo o desenvolvimento social e emocional de quem se envolve no proces-so de ensino-aprendizagem. Reitera que a educação deve observar metodologias e dispositivos que possibilitem uma ação pedagógica progressista e emancipadora, voltada para o respeito e a valorização da diversidade, para os conceitos de sustentabilidade e de formação da cidadania ativa.

O Ministério da Educação, por sua vez, aprovou a Resolução MEC n.o 01/2012, em consonância às Diretrizes Nacionais de Edu-cação em Direitos Humanos do Conselho Nacional de Educação (CNE – Parecer 08/2012), deliberando que a educação em direitos humanos deve ser um dos eixos fundamentais do direito à educação e sua inserção no currículo da educação básica. Estes documentos são o resultado da luta pelo reconhecimento, pela realização e universa-lização da dignidade humana.

A Resolução MEC n.o 01/2012 estabelece as diretrizes nacionais de educação em direitos humanos apontando para a necessidade de uma formação ética, crítica e política. Por formação ética com-preende-se a promoção de atitudes orientadas por valores humanís-

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ticos, como dignidade da pessoa, liberdade, igualdade, justiça e paz, reciprocidade entre povos e culturas. A construção de uma atitude crítica diz respeito ao exercício de juízos reflexivos sobre as relações entre contextos sociais, culturais, econômicos e políticos, promo-vendo práticas institucionais coerentes com os direitos humanos. E a formação política deve estar pautada na perspectiva emancipatória e transformadora dos sujeitos sociais na busca de seus direitos e deve-res como cidadãos conscientes (Brasília, 2014).

As políticas públicas que abordam os direitos humanos são fruto de uma realidade apresentada pela democratização do ensino e pelo acesso à escolarização, transformando o ambiente escolar em um es-paço no qual as desigualdades se evidenciam. Esta diversidade requer uma nova forma de organização educacional que vai desde a reade-quação de metodologias até a superação do paradigma da homoge-neidade nas aprendizagens.

Diante disso, evidencia-se a necessidade e a importância de tornar a escola um espaço de fortalecimento da participação individual e coletiva, que reconheça e valorize todos os grupos. A educação em e para os direitos humanos na escola é, assim, uma forma de repo-sicionar compromissos nacionais com a fomentação de sujeitos de direitos e de responsabilidades, podendo influenciar na construção e consolidação da democracia (Brasília, 2014: 57).

A educação em e para os direitos humanos requer dos ambientes educacionais uma postura dialógica na qual todos os atores sejam ou-vidos e tratados como sujeitos deste processo de construção da cida-dania. Não basta estipular formas de participação na gestão escolar, é preciso capacitar as pessoas neste processo de participação, fazen-do-as acreditar na força de sua participação e na importância de sua colaboração para a construção de um projeto no qual todos podem ser protagonistas e, por isso, seus direitos serem respeitados.

Não há modelo pronto, não há fórmula correta. É no processo de discussão e participação coletiva que estas situações vão se ajustando.

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O importante é que haja uma abertura para a construção de um novo modelo educacional. Este modelo só será possível quando os edu-cadores estiverem abertos às críticas sobre suas práticas pedagógicas e forem capazes de construir novos modelos nos quais o respeito à diversidade esteja presente.

No currículo proposto pela Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (Brasília, 2014: 58) são apresentadas quatro linhas de atuação da educação em e para os direitos humanos:

a. educação para a promoção, defesa, garantia e resgate de direitos fundamentais;

b. educação para a diversidade;

c. educação para a sustentabilidade; e

d. formação humana integral.

A primeira linha de atuação tem como objetivo a sensibilização e a mobilização da comunidade escolar para a importância da efetivação dos direitos humanos fundamentais, apresentados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e pela Constituição Federal (1988), entre outros marcos legais. Ao se enfatizar que o ambiente escolar não é apenas um espaço de afirmação dos direitos humanos, mas deve ser também o espaço de enfrentamento às violações desses direitos, que se concretizam em diversos tipos de violências vivido no cotidiano daqueles atores. Assim, a escola deve ser um espaço de dis-cussão e diálogo para que os sujeitos envolvidos percebam em quais relações os diretos humanos não estão sendo respeitados, e a partir da percepção dessas ofensas se tornem defensores destes direitos nas diferentes situações de seu cotidiano.

Na linha da educação para a diversidade enfatizam-se

os fenômenos sociais como racismo, machismo, homofobia, les-bofobia, transfobia, depreciação de pessoas que vivem no campo, entre outras discriminações a grupos historicamente marginali-zados (Brasília, 2014: 58).

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O objetivo desta linha é trazer para o ambiente escolar discussões que busquem valorizar os diferentes agrupamentos humanos, reco-nhecendo sua importância como sujeitos históricos e coautores de nossa realidade. Por isso, independentemente de sua condição, os negros, os indígenas, as mulheres, a população LGBT, os moradores do campo, os moradores de rua, entre outros, devem ser respeitados como pessoas humanas.

A educação para a sustentabilidade propõe atividades pedagógicas que integrem a comunidade com vistas a uma educação ambiental. Assim, passa a ser função social da escola a promoção de uma educa-ção para o consumo consciente, a alimentação saudável, a economia solidária, a valorização da diversidade, entre outros. São ações que começam pelas crianças, mas que devem atingir a comunidade como um todo.

Todas essas linhas de ações apontam para a formação integral do ser humano, isto é, amplia os horizontes da formação humana que não pode ser reduzida a aspectos cognitivos. Neste sentido, a formação integral propõe uma educação que associe a formação teórica à prática cotidiana que interfere diretamente na vida da comunidade. Assim, a proposta do Currículo em movimento, da Secretaria de Educação do Distrito Federal (Brasília, 2014), considera que a formação para os di-reitos humanos deve perpassar pelas seguintes etapas: sensibilização, percepção dos problemas sociais, reflexão crítica e ação por meio do estímulo à participação das crianças e dos adolescentes nas atividades sociais que visem à transformação do ambiente e da vida das pessoas.

Quando nos deparamos com todas essas propostas e os documen-tos oficiais acerca dos direitos humanos, identificamos que em nosso país há uma legislação muito profícua sobre o tema. Não é diferente quando recorremos aos documentos que fundamentam as propos-tas curriculares dos diversos sistemas de ensino. Em alguns estados e municípios, há uma vertente mais conservadora; em outros, propos-tas avançadas e condizentes com a legislação atual. Como afirmamos

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anteriormente, no currículo manifesto essas questões são apresenta-das, fundamentadas e, em muitos casos, elaboradas numa perspectiva crítica, mas isso não basta para que as mesmas se efetivem no espaço da sala de aula. É preciso uma mudança de postura do educador, um repensar de sua prática pedagógica e uma abertura para que essa nova dimensão cultural se evidencie. Se isso não ocorrer, não haverá qual-quer transformação nas práticas educativas.

Cultura da paz

Abordaremos agora a cultura da paz no contexto escolar, ressal-tando sua importância para a real implementação de uma educação em direitos humanos (EDH). Nessa perspectiva, a presente seção ob-jetiva analisar:

a. as bases legislativas e teóricas da cultura da paz;

b. a concepção de paz vigente em nossa sociedade;

c. a importância e a possibilidades da construção de uma cultura de paz para a educação em direitos humanos no contexto escolar.

Nos últimos anos, a cultura da paz tem se constituído no tema central, em nível mundial, e tem merecido atenção especial por parte de entidades internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU). Sendo assim, e para começar uma reflexão abrangente so-bre o significado da construção de uma cultura de paz no contexto escolar garantindo o respeito pelos direitos humanos, é fundamental conhecer alguns dos principais documentos que a definem e carac-terizam. Em nível internacional, podemos citar documentos como a Declaração dos Direitos da Criança (ONU, 1959), a Declaração sobre a Preparação das Sociedades para Viver em Paz (ONU, 1978) e a Declaração sobre os Direitos dos Povos à Paz (ONU, 1984). Além desses, um dos mais importantes é a Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura da Paz, aprovada pela ONU em 1999, que expres-

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sa uma profunda preocupação com a proliferação da violência e dos conflitos nos diferentes países. Um dos objetivos principais desse do-cumento é que os diversos governos, as organizações internacionais e a sociedade civil orientem suas atividades para o fortalecimento da paz no século XXI (Dusi, Araújo & Neves, 2005).

Definição de cultura da paz

Na Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura da Paz, a paz é definida como um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida que traduzem o respeito à vida, ao ser humano e à sua dignidade, com destaque aos direitos humanos, e o repúdio à violência em todas as suas formas, bem como a adesão aos princípios da liberdade, justiça, solidariedade, tolerância e com-preensão entre os povos e as pessoas (ONU, 1999). A partir dessa definição, podemos dizer que a construção de uma cultura de paz re-mete a um processo dinâmico e participativo que busca promover o diálogo e a resolução criativa e cooperativa dos conflitos que surgem no decorrer das interações e relações humanas.

De acordo com a Declaração e Programa de Ação sobre uma Cul-tura da Paz, o fortalecimento da paz deve e pode acontecer através de diversas medidas em diferentes áreas ou aspectos da vida: educação, desenvolvimento econômico e social sustentável, respeito a todos os direitos humanos, garantia da igualdade entre mulheres e homens, participação democrática, promoção da compreensão, da tolerância e da solidariedade, apoio da comunicação participativa e a livre cir-culação de informação e conhecimento e a promoção da paz e da segurança internacionais. Vejamos, a seguir, as medidas no contexto educativo e em relação ao respeito pelos direitos humanos, que são os aspectos que nos interessam mais de perto.

Em referência às medidas para promover uma cultura de paz, por meio da educação, a Declaração e Programa de Ação sobre uma Cul-tura da Paz estabelece:

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q Revitalizar as atividades nacionais e a cooperação internacional destinadas a promover os objetivos da educação para todos, com vistas a alcançar o desenvolvimento humano, social e econômi-co, e promover uma cultura de paz.

q Zelar para que as crianças, desde a primeira infância, recebam formação sobre valores, atitudes, comportamentos e estilos de vida que lhes permitam resolver conflitos por meios pacíficos e com espírito de respeito pela dignidade humana, pela tolerância e contra a discriminação.

q Preparar as crianças para participar de atividades que lhes indi-quem os valores e os objetivos de uma cultura de paz.

q Zelar para que haja igualdade de acesso das mulheres, especial-mente das meninas, à educação.

q Promover a revisão dos planos de estudo, incluindo os livros didáticos, levando em conta a Declaração e o Plano de Ação Integrado sobre a Educação para a Paz, os Direitos Humanos e a Democracia, de 1995, para o qual a Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (Unesco) prestaria cooperação técnica, quando solicitada.

q Promover e reforçar as atividades dos/as agentes destacados/as na Declaração, em particular a Unesco, no sentido de desenvol-ver valores e aptidões que beneficiem uma cultura de paz, com destaque para a educação e a capacitação na promoção do diálo-go e do consenso.

q Estimular as atividades em curso das entidades vinculadas ao sistema das Nações Unidas a capacitarem e educarem, quando necessário, nas esferas da prevenção dos conflitos e gestão de cri-ses, resolução pacífica das controvérsias e na consolidação da paz após os conflitos.

q Ampliar as iniciativas em prol de uma cultura de paz empreen-didas por instituições de ensino superior de diversas partes do

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mundo, incluindo a Universidade das Nações Unidas, a Univer-sidade para a Paz e o projeto relativo ao Programa de Universi-dades Gêmeas e de Cátedras da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (ONU, 1999).

Sobre as medidas para promover o respeito a todos os direitos hu-manos, a Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura da Paz sugere:

q Aplicar, integralmente, a Declaração e Programa de Ação de Viena (Declaração e Programa de Ação de Direitos Humanos de Viena, 1993).

q Estimular a formulação de planos de ação nacionais para promo-ver e proteger todos os direitos humanos.

q Fortalecer as instituições e capacidades nacionais na esfera dos direitos humanos, incluindo as ações das instituições nacionais de direitos humanos.

q Realizar e aplicar o direito ao desenvolvimento estabelecido na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento e a Declaração e Programa de Ação de Viena.

q Alcançar os objetivos da década das Nações Unidas para a edu-cação na esfera dos direitos humanos.

q Difundir e promover a Declaração Universal dos Direitos Hu-manos em todos os níveis.

q Dar apoio mais significativo às atividades que o Alto Comissio-nado das Nações Unidas para os Direitos Humanos realiza no desempenho de seu mandato, estabelecido na resolução 48/141 da Assembleia Geral, de 20 de dezembro de 1993, bem como as responsabilidades estabelecidas em resoluções e decisões subse-quentes (ONU, 1999).

Ao analisar as medidas promulgadas pela ONU (1999), podemos concluir que a construção de uma cultura de paz é um processo que

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envolve todos nós. Além disso, construir uma cultura da paz é um processo ativo de interação saudável com os diferentes contextos nos quais o sujeito se insere como agente de mudanças, para a realização das transformações sociais e a ação cidadã (Milani, 2003). Seguin-do essas ideias, diferentes autores/as (Adams, 2009; Dusi, Araújo & Neve, 2005; Milani, 2004) enfatizam que a paz deve ser construída nas ações do cotidiano, das mais simples às mais complexas. Enfati-zam, também, que as ações constitutivas da paz devem envolver to-das as interações e relações do sujeito: consigo, com o outro e com o ambiente. Por outro lado, os autores pontuam que a construção de uma cultura de paz não deve ser entendida nem reduzida ao “com-bate à violência”, nem a “não fazer o mal”. A construção de uma cul-tura de paz deve ser entendida desde uma perspectiva mais ampla: a perspectiva de promover a paz, de fazer o bem, de reconhecer e res-peitar os direitos de todos, de promover o desenvolvimento pessoal, econômico e social e de buscar e incentivar a participação democrá-tica em diferentes níveis sociais, lembrando que “direitos humanos e democracia são dois conceitos que se requerem mutuamente” ( Jares, 2002: 126).

Entretanto, para levar à prática cotidiana a perspectiva de ação an-terior, é fundamental que analisemos de maneira crítica a concepção de paz vigente em nossa sociedade e a releitura que dela fazemos. Segundo diversos/as autores/as – como Elizabeth dos Santos Colu-ma (2007), M. Nascimento (2000) e Xesús R. Jares (2002) –, refle-tir sobre o nosso próprio conceito de paz e sobre o conceito de paz compartilhado pelos/as atores/as do contexto escolar é um primeiro passo fundamental para a educação para a paz (EPP).

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Então, o que é paz?

Elizabeth dos Santos Columa (2007), ao fazer uma revisão do vo-cábulo paz, sinalizou suas diversas conotações na língua portuguesa, destacando o significado de paz como ausência de guerra e/ou con-flito, união, concordância nas e entre as famílias e tranquilidade da alma. Segundo a autora, na língua portuguesa, a paz se refere a uma condição de vida que almejamos em todas as dimensões da vida hu-mana: política, social, psicológica e pessoal.

Para Xesús R. Jares (2002), o termo paz é um dos mais mani-pulados na história da humanidade e tem servido para garantir a supremacia de alguns povos sobre outros. Sendo assim, precisamos refletir sobre o conceito de paz em uma perspectiva histórica. Para Jares (2002), não existe uma ideia universal de paz, uma vez que as civilizações e as culturas têm apresentado concepções diferenciadas do conceito. No entanto, essas concepções diferenciadas contêm elementos comuns que podem ter sua base no conceito de paz da cultura ocidental e no conceito de pax romano, que se refere à au-sência de conflitos bélicos entre os Estados. Entre os elementos ou as características compartilhadas pelas diversas concepções de paz, Jares (2002) destaca:

a. a paz como conceito negativo que se refere à ausência de confli-tos, os quais são inerentes às interações e relações humanas;

b. a paz como conceito passivo que se refere à harmonia, à sereni-dade e à tranquilidade que dependem da não afloração de con-flitos.

Segundo Xesús Jares (2002), o conceito de paz vigente na atua-lidade continua sendo o conceito ocidental tradicional, que associa a paz com ideias como a não agressão bélica e a ausência geral de conflitos. Para o autor, esse conceito de paz é um conceito pobre, classista e interessado politicamente. Além disso, e como colocado anteriormente, é um conceito de paz que se define em negativo (de

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acordo com o que ele não é) e, portanto, passivo, ou que não incenti-va atividades e ações conjuntas para a construção de interações e re-lações sem nenhum tipo de violência. Não é possível falar de paz nas situações e em sociedades onde a violência se manifesta na desigual-dade (poder desigual, distribuição desigual de recursos, distribuição distorcida da renda, distribuição desigual da educação e dos serviços de saúde). Para o autor, não é possível falar de paz em situações onde impera a pobreza, a repressão e a alienação. Falar de paz, nessas situa-ções, é uma manifestação de mera paródia do conceito.

No contexto escolar brasileiro, destaca-se o conceito tradicional de paz conforme as ideias criticadas por Jares (2002). Pesquisadores/as que estudam a formação de valores sociais, em contextos educati-vos, têm apresentado dados relevantes sobre as concepções de paz e violência de crianças e jovens de vários estados do Brasil (Biaggio & Souza, 2001; Souza, 2007).

Luciana Karine de Souza (2007) realizou um estudo empírico sobre a compreensão da paz entrevistando 124 estudantes de Porto Alegre com idade entre 7 e 12 anos. Nas entrevistas, a paz foi defi-nida pela maioria (73% dos entrevistados) como ausência de guerra e violência. Somente 5% dos estudantes relacionaram a paz com os direitos humanos, ressaltando questões de liberdade, democracia e justiça. Entretanto, muitos dos estudantes entrevistados ressaltaram a importância de ações positivas (diálogo, conscientização, ajuda, igualdade e cooperação) no cotidiano para se alcançar e se manter a paz.

A partir dos resultados de pesquisa apresentados, Luciana Souza (2007) sublinha a importância e necessidade de discussões amplas sobre o conceito de paz no contexto da escola, assim como a possibi-lidade de as crianças e os jovens se engajarem na construção de uma cultura de paz.

Mas ao final, como podemos pensar ou definir a paz? Em função das questões anteriores, o conceito de paz deve ser definido numa

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perspectiva positiva (e não negativa) e numa também perspectiva di-nâmica (e não passiva). Isso significa, para Jares (2002), que a paz repousa em duas ideias fundamentais:

a. a paz não é o contrário da guerra, é o contrário da violência;

b. a violência não se exerce unicamente por meio da agressão física direta, mas através de formas menos visíveis, mais difíceis de re-conhecer, e mais perversas pelo tipo de sofrimento humano que produzem.

O conceito de paz abrange a liberdade e a identidade do ser hu-mano, abrange tudo o que o ser humano precisa para o seu desen-volvimento pleno, implicando, assim, o cumprimento dos direitos humanos. Para Elizabeth dos Santos Columa (2007), a paz também significa seres humanos trabalhando em conjunto para resolver os diferentes conflitos da vida cotidiana; a paz respeita padrões de justi-ça, satisfaz necessidades básicas do homem e honra todos os direitos humanos.

Como construir uma cultura da paz se vivemos em uma cultura da violência?

Na atualidade, os diferentes cenários socioculturais estão longe de propiciar a paz que desejamos. A mídia e as fontes de entrete-nimento têm agravado essa situação reportando constantemente e abrindo espaço para diversas formas de violência e opressão. Na es-cola, a situação não é diferente. Nos últimos anos, as notícias sobre a violência escolar têm aumentado em função de suas frequentes ex-pressões: interferência e presença do narcotráfico no cotidiano esco-lar, depredação dos prédios e materiais escolares, brigas e agressões entre estudantes e entre estes e os adultos que trabalham nas escolas (Columa, 2007).

A violência no contexto escolar apresenta-se de distintas manei-ras, preocupando pais e educadores e mostrando que é um reflexo de uma crise de valores mais ampla. De acordo com José Vicente

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Tavares dos Santos (2001), Luciana Karine de Souza (2007) e Ma-rilia Pontes Sposito (2001), a violência no meio escolar se constitui num reflexo da violência que acontece em nível mais amplo nas so-ciedades contemporâneas. E, essa violência pode ser o resultado de processos de fragmentação social e de exclusão econômica e social. Com esse panorama, é difícil pensar na educação para a paz (EPP) na perspectiva dos direitos humanos.

Por onde começar? Como sistematizar a educação para paz?Bom, como colocamos anteriormente, um primeiro passo funda-

mental é a reflexão sobre o real significado de paz. Outra questão importante é refletir sobre o que é educação para a paz. De acordo com alguns autores (Columa, 2007; Souza, 2007), educar para a paz pressupõe um processo de construção de valores sociais voltados para a promoção de um mundo mais justo e igual, e esse processo de cons-trução deve acontecer em todas as modalidades de ensino e em todos os contextos educativos, sejam eles formais ou não. Como processo, envolve um conjunto sequencial de ações com o objetivo comum e resultados a longo prazo, com destaque para a conscientização dos problemas de nossa convivência social.

Se revisarmos a literatura sobre o tema, teremos a oportunidade de ver várias propostas metodológicas que podem tornar-se úteis na hora de pensar a educação para a paz. Algumas dessas metodologias são mais gerais e abrangentes, centrando-se na formação de valores humanos e enfatizando ações voltadas para a cooperação, a cola-boração e o diálogo. Outras são mais específicas, centrando-se em questões do cotidiano escolar como o entendimento pedagógico dos conflitos inerentes às relações humanas. Diversos autores e especia-listas no tema destacam a necessidade de desenvolver metodologias voltadas para:

a. o desenvolvimento de uma cultura dos direitos humanos através do reconhecimento da diversidade humana e da dignidade de cada pessoa;

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b. a redefinição do papel da educação nos contextos onde predo-mina a violência, seja ela direta ou estrutural;

c. a valorização da ética e a reflexão constante sobre o impacto de nossas ações no meio físico e social da escola e do ambiente a nossa volta;

d. o desenvolvimento de diferentes estratégias participativas que garantam a construção conjunta dos valores e das normas da es-cola;

e. a abertura de espaço para a formação de um ser social com o potencial de falar e se comunicar, como principal estratégia para a resolução das diferenças e dos conflitos (Columa, 2007).

Se analisarmos essas propostas metodológicas, veremos que as mesmas enfatizam aspectos e ações que se encontram com as bases legislativas da cultura da paz que abordamos no começo do texto. Entretanto, quase todas as propostas metodológicas da educação para a paz enfatizam a importância de pensar ações a partir das ne-cessidades e das características específicas dos contextos sociocultu-rais onde essas metodologias serão desenvolvidas. A educação para a paz deve ser contextualizada e não rígida, nem padronizada; deve ser estudada e discutida em diversos países por educadores/as, filósofos/as, sociólogos/as, antropólogos/as e psicólogos/as, a partir de múlti-plas perspectivas teóricas que coincidem em um ponto específico: a verdadeira educação para a paz não deve consistir em simples ensino das ideias pacifistas (Piaget, 1998).

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Os direitos humanos nas concepções e práticas pedagógicas

A presente seção trata sobre os direitos humanos nas concepções e práticas pedagógicas. Nessa perspectiva, abordará a possibilidade de implementar a educação em direitos humanos (EDH) no currículo manifesto através da pedagogia de projetos, assim como a importân-cia de cuidar das manifestações da EDH no currículo oculto. Ao par-tir desses pressupostos, objetiva analisar:

a. o significado pedagógico da EDH desde a perspectiva da trans-versalidade curricular, partindo de sua base legislativa em nível nacional e internacional;

b. a EDH no currículo manifesto, a partir da pedagogia de proje-tos;

c. a necessidade e a importância de analisar o currículo oculto para uma real EDH.

A educação em direitos humanos na perspectiva da transversalidade curricular

A educação em direitos humanos (EDH) é abordada por vários documentos nacionais e internacionais, que estabelecem seus prin-cipais objetivos, suas possíveis metodologias e práticas pedagógicas. De forma geral, esses documentos partem da finalidade ulterior da EDH, que é a formação da pessoa em todas as suas dimensões com o intuito de contribuir para o desenvolvimento de sua condição cidadã (Tavares, 2007).

Quais seriam esses documentos? O que eles sugerem em termos práticos?

No âmbito nacional, podemos citar documentos como a Cons-tituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996, os Parâmetros Curriculares da Educação de 1997,

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o Programa Nacional de Direitos Humanos de 1996 e de 2002, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, em suas duas versões de 2003 e 2006, e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica, de 2013.

Como vimos anteriormente, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica pautam o trabalho com os direitos huma-nos como tema transversal em função de sua complexidade, de sua presença intensa no cotidiano dos diferentes sistemas sociais (co-munidade, família e escola), e por sua existência explícita e implícita nas diversas áreas do currículo (Brasil, 2013). Todas as áreas do co-nhecimento têm ensinamentos acerca dos direitos humanos como tema transversal, mas não são suficientes para explicá-los de maneira abrangente, porque seus “conteúdos” – ou “conhecimentos” – tra-tam da formação pessoal do indivíduo, mas especificamente acerca do desenvolvimento pessoal de todo um conjunto de crenças, valo-res e normas morais e éticas compartilhadas nos diferentes contex-tos socioculturais onde cada indivíduo atua e se desenvolve. Sendo assim, a transversalidade se refere à possibilidade de estabelecer, na prática educativa, uma relação entre aprender conhecimentos teori-camente sistematizados das diferentes áreas ou disciplinas e as ques-tões da vida real e de sua transformação. A maneira de sistematizar essa transversalidade é incluir o trabalho com os temas transversais na organização curricular, de forma a garantir sua continuidade e seu aprofundamento.

A formação ética para a cidadania ou formação em valores deman-da um posicionamento reflexivo, crítico e ativo dos/as atores/as do processo educativo em relação à nossa realidade sociocultural, com o objetivo ulterior de transformá-la em uma vida plena de qualidade e com a garantia dos direitos fundamentais para todos/as. Assim sen-do, a formação ética para a cidadania demanda um ensino dialógico e democrático que parta dos saberes e das experiências cotidianas e contextualizadas dos/as alunos/as.

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No contexto de uma aula de história, por exemplo, a formação éti-ca estará presente na medida em que o/a professor/a possibilita o diálogo reflexivo, o encontro de diferentes saberes, o questionamen-to crítico do conhecimento histórico e da realidade em uma perspec-tiva histórica, e o compartilhar de experiências significativas entre ele/ela e seus/suas alunos/as e entre seus alunos/as.

A transversalidade no currículo

Para Ulisses Ferreira de Araújo (2008), a transversalidade no currículo também significa trazer situações concretas para ilustrar, discutir e protagonizar essas situações que exigem “conhecimentos tradicionais”. De acordo com o autor, a aprendizagem dos conteúdos científicos e culturais que a escola trabalha, pode se dar

[...] procurando trazer situações concretas para ilustrar o que propomos, o problema da poluição do córrego que passa no meio de uma favela, por exemplo, pode ser o eixo em torno do qual serão desenvolvidos ou trabalhados na escola que atende aquela comunidade. Os conhecimentos matemáticos, a língua portu-guesa, a história, a geografia, os diversos conteúdos de ciências, as atividades de educação artística, serão desenvolvidos com o objetivo de levar as crianças que ali vivem a: tomar consciência das causas da poluição; conhecer a história da ocupação daquele local pelo ser humano; buscar o conhecimento de todos os agen-tes sociais envolvidos com o problema e suas responsabilidades sociais e éticas; avaliar as consequências para a saúde das pessoas e para o meio ambiente; procurar caminhos sociais e políticos para a resolução do problema e para a melhoria da qualidade de vida das pessoas, etc. (Araújo, 2008: 195-196).

Nessa perspectiva, e ainda de acordo com Ulisses de Araújo (2008), os temas transversais se convertem no eixo vertebral e na própria fi-nalidade do sistema educativo. Os conhecimentos sistematizados e tradicionais das diferentes áreas deixam de ser a finalidade da edu-cação para serem concebidos como instrumentos que permitem a abordagem de temas que estão no centro das preocupações sociais.

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Essa mudança nos objetivos da educação também traz uma mu-dança no posicionamento do/a professor/a diante do processo de en-sino-aprendizagem, assim como uma mudança na visão que muitos/as educadores/as têm sobre o papel da escola em relação à formação de crenças e valores éticos e morais.

O/A professor/a deve assumir o processo ensino-aprendizagem como um processo de veiculação e ressignificação bidirecional de conhecimentos, experiências e valores. Deve perceber e considerar os papeis ativos e constitutivos de todos/as os/as interlocutores/as do processo educativo, independentemente de sua autoridade e com-petência. Todos/as os/as interlocutores/as devem ser entendidos/as como coconstrutores/as de novos elementos culturais, a partir de seus respectivos papéis sociais e de sua experiência pessoal. São construtores ativos e conjuntos da cultura coletiva e de sua própria cultura pessoal (Valsiner, 1989; 2007).

Ou seja, deve-se deixar de lado o modelo de transmissão unidire-cional do conhecimento, característico do ensino tradicional, e que parte da existência de conteúdos fixos e bem definidos que são trans-mitidos de geração para geração e assimilados pela pessoa de forma similar àquela em que foram transmitidos. Essa perspectiva unidire-cional promove uma visão passiva do sujeito no seu próprio proces-so de aprendizagem e desenvolvimento, em suas interações sociais e frente à influência intergeracional (Palmieri, 2003).

Além disso, a escola deve deixar de ser um espaço de reprodução de normas e regras estabelecidas sem a participação ativa dos/as estu-dantes, para permitir as possibilidades de protagonismo que crianças e jovens têm (Senna Pires, 2007). Também deve começar a assumir seu papel fundamental no desenvolvimento da educação moral do indivíduo, relegado muitas vezes a um segundo plano ou estimado como tarefa por excelência familiar (Barrios, 2009; 2013).

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Os documentos que estabelecem possíveis metodologias e práticas pedagógicas em educação em direitos humanos (EDH)

Podemos destacar, no âmbito internacional, o Programa Mundial para a Educação em Direitos Humanos, aprovado pela ONU, em 2004.

O programa oferece, de forma específica, diretrizes importantes para a EDH no currículo manifesto, entendido como construto téc-nico que orienta procedimentos, métodos e técnicas educativas, e que possibilita que a escola alcance seus objetivos. Entretanto, essa inclusão na organização curricular não é fácil e nem suficiente. Para começar, o currículo deve ser flexível, de forma a adequar-se ao con-teúdo dos direitos humanos (Tavares, 2007).

Além disso, o dito programa especifica que a EDH deve contribuir para exercitar o respeito, a tolerância, a promoção e a valorização da diversidade religiosa, de gênero e de orientação sexual e cultural. Também deve contribuir para a amizade entre as nações, os povos in-dígenas e os grupos étnico-raciais. Deve criar uma cultura universal dos direitos humanos e possibilitar a todas as pessoas a participação efetiva em uma sociedade livre (ONU, 2007).

A preconizar como ponto de partida as especificações do Progra-ma Mundial para a Educação em Direitos Humanos, podemos afir-mar que a EDH não só pressupõe uma prática educativa coerente e articulada com seus valores, como também presume a socialização dos valores que lhe são intrínsecos com o objetivo de construir e con-solidar uma cultura de direitos humanos (Tavares, 2007) e, conse-quentemente, uma cultura de paz.

No cotidiano escolar, isso significa fomentar e construir relações e interações sociais baseadas no respeito e na valorização da diversi-dade. Ou seja, a EDH deve ter as relações e interações do cotidiano escolar como palco pedagógico principal. É no contexto das rela-ções e interações que o ser humano internaliza e externa, de maneira

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singular e significativa, crenças e valores sociais compartilhados em nível sociocultural. Como pleiteado por diferentes teóricos (Piaget, 1994; Vygotsky, 1984; 2004; Rogoff, 2005; Valsiner, 1989; 2007; Ratner, 2002), as crenças e os valores éticos e morais são construídos de forma ativa pela pessoa a partir de suas interações no decorrer dos eventos cotidianos.

Entretanto, os diversos significados socioculturais veiculados nas relações e interações sociais do contexto escolar costumam fazer parte de um currículo oculto, desconhecido para a maioria dos/as educadores/as (DeVries & Zan, 1998; Branco, 1989; 2003; Branco & Mettel, 1995). Esse currículo oculto, muitas vezes, pode ir na dire-ção contrária das ações pedagógicas do currículo manifesto, gerando ambiguidades que não passam despercebidas pelas crianças e pelos jovens. As ambiguidades e contradições do currículo oculto podem interferir significativamente no papel da escola na transformação sociocultural, pois têm a faculdade de perpetuar crenças e valores contrários ao respeito pela diversidade. Como colocado por Mark B. Tappan (1997; 1998) e por Sanmya J. Salomão (2001), é de vital importância que o/a adulto/a, em sua qualidade de educador/a, per-ceba as ambiguidades e contradições presentes nas interações e na comunicação com seus/suas educandos/as.

Em suma, a EDH precisa de coerência entre as práticas pedagógi-cas e seus valores intrínsecos, conforme os significados e ressignifi-cados das interações do cotidiano. É necessário um compromisso da escola e dos/as docentes com os direitos humanos e a prática peda-gógica democrática. Sem a convicção de que o respeito aos direitos humanos é fundamental para todos/as, não será possível despertar a ideia e o sentimento nas demais pessoas (Tavares, 2007).

Segundo Abraham Magendzo (2006), o êxito do aprendizado sig-nificativo de determinadas habilidades e de certos valores é reforçado quando se cria um ambiente propício para seu desenvolvimento. No caso da EDH, isso significa assegurar que os conteúdos e valores rela-

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cionados aos direitos humanos estejam presentes tanto no currículo manifesto como no currículo oculto. Em seguida, falaremos especi-ficamente desses dois tipos de currículo, exemplificando sua impor-tância para o tema que nos ocupa.

Os direitos humanos no currículo manifesto

Agora, abordaremos de forma mais específica as possibilidades de trabalhar com a temática dos direitos humanos no currículo manifes-to, tendo os conhecimentos das áreas como instrumentos fundamen-tais para a formação em valores.

Ulisses de Araújo (2008) oferece várias sugestões ou alternativas de implementação da transversalidade curricular, partindo de uma concepção dinâmica e construtiva da prática pedagógica. Para o au-tor, a importância do lazer, do direito à diversidade de pensamento e crença e do respeito nas relações interpessoais são temáticas que podem ser trabalhadas como eixo do currículo escolar, com base no aprendizado das operações matemáticas, do processo de alfabetiza-ção etc. Uma estratégia possível para isso é o trabalho com projetos didáticos.

A partir da etimologia da palavra “projeto”, Ulisses de Araújo (2008) pesquisa e sintetiza algumas de suas características funda-mentais que permitem o trabalho com os temas transversais das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (Brasil, 2013). Para o autor, os projetos didáticos permitem a abertura para o novo e trazem referência ao futuro na medida em que planejam a transformação da realidade. Projetos também envolvem a capaci-dade de agenciação do sujeito que os projeta e dão sentido ao co-nhecimento, com base na pesquisa e na busca de relações entre os fenômenos naturais, sociais e pessoais. Ao operar como uma rede de significados, os projetos podem ir além da segmentação disciplinar e permitir a construção de novos sentidos para a educação e a esco-larização. Entretanto, importa lembrar-se que optar pelo trabalho

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com projetos didáticos não significa, automaticamente, optar pela inserção dos temas transversais no planejamento. Essa inserção real precisa da intencionalidade dos/as educadores/as e requer uma aná-lise contínua dos processos e resultados dos projetos elaborados e implementados.

De forma geral, a elaboração de projetos didáticos requer a or-ganização e o planejamento de toda uma série de conhecimentos e conteúdo a partir de uma situação-problema, articulando propó-sitos didáticos (aquilo que os/as alunos/as devem aprender) com propósitos sociais (produto final de valor social que possa ser com-partilhado, e que abra o espaço para possíveis transformações socio-culturais). Embora os projetos didáticos possam ser planejados e or-ganizados de diversas maneiras, algumas ações pedagógicas voltadas para garantir seus objetivos, considerando as necessidades de apren-dizagem dos/as alunos/as, são primordiais. Diferentes autores/as (Helm & Beneke, 2005; Martins, 2001), enfatizam a importância de delimitar de forma clara o tema e as metas ou objetivos de apren-dizagem, assim como seus objetivos ou possíveis desdobramentos sociais. O tempo, os materiais e as diferentes atividades pedagógicas que farão parte do projeto também precisam de um planejamen-to minucioso, considerando os conhecimentos que os/as alunos/as têm sobre o tema e o conteúdo do trabalho.

Para ilustrar o planejamento e a organização de projetos didáticos voltados para a formação cidadã, apresentaremos brevemente o tra-balho de Maria Nunes dos Santos e Pedro Roberto Jacobi (2011), realizado com professores/as e alunos/as sobre educação ambiental.

Santos e Jacobi (2011) implementaram uma proposta de forma-ção continuada de professores/as em exercício, visando ao desen-volvimento de projetos didáticos de educação ambiental. Durante a formação continuada, um grupo de professores/as de escolas pú-blicas de Guarulhos (SP) foi convidado a realizar projetos didáti-cos, avaliando os resultados dos mesmos para a aprendizagem e for-

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mação cidadã de seus/suas alunos/as. De forma geral, as atividades realizadas no contexto dos diferentes projetos didáticos partiram de um mapeamento socioambiental com o intuito de conhecer o ambiente, refletindo sobre suas condições reais, e propor interven-ções educativas para a resolução de problemas e transformação da realidade socioambiental. Como atividades específicas, os/as pro-fessores/as e os/as alunos/as fizeram: leitura de mapas em diferentes escalas, interpretação de imagens de satélite e fotografias aéreas e elaboração de diagnóstico socioambiental, dentre outras. As ativi-dades realizadas tiveram por objetivo compreender a realidade so-cioambiental da região de estudo, assim como suas implicações na qualidade de vida da comunidade, contribuindo para a superação de uma visão fragmentada dos conhecimentos relativos a fenômenos complexos como os ambientais.

Por outro lado, e conforme colocado por Maria Nunes dos Santos e Pedro Roberto Jacobi, os projetos didáticos realizados por profes-sores/as e alunos/as contribuíram para a construção de uma nova concepção de currículo escolar:

Ao contrário da ideia equivocada de contextualizar conteúdos predefinidos, geralmente listados nos livros didáticos, os alunos em questão, com base em sua vivência, articularam os conteúdos escolares com a realidade local, produzindo conhecimento origi-nal e singular (Santos & Jacobi, 2011: 267).

Para os autores, os projetos didáticos constituem uma etapa pre-paratória para a construção do projeto político pedagógico (PPP) da instituição escolar, resultante de uma construção coletiva do tra-balho pedagógico a partir de questões fundamentais em nível social.

Entretanto, é fundamental conhecer os desafios que os/as pro-fessores/as enfrentam ao trabalharem com a pedagogia de projetos. Alguns desses desafios podem estar relacionados ao posicionamento do/a próprio/a professor/a diante do novo e suas consequências, mas também à falta de apoio da gestão da escola para a implementa-

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ção dos projetos e sua real inserção no PPP. Contudo, transformar nossa prática pedagógica implica lidar de maneira construtiva com os desafios e as limitações.

Os direitos humanos no currículo oculto

Conforme foi anteriormente colocado, a escola é um espaço típi-co de desenvolvimento e socialização, em função do vasto mundo de relações e interações pessoais que os/as alunos/as estabelecem com seus/suas professores/as e colegas. É no contexto dessas intera-ções pessoais que se veiculam os significados, as crenças e os valores socioculturais, que são ressignificados de modo único pela pessoa em desenvolvimento (Valsiner, 1989; 2007). No entanto, o conjun-to de relações e interações pessoais que se estabelecem no contexto escolar, assim como o universo de valores que se veiculam através das mesmas, fazem parte de um currículo oculto, conforme expli-citamos no começo deste trabalho. Este currículo oculto pode ser entendido como o conjunto de fatores não programados que deter-minam a totalidade das experiências vivenciadas pelas crianças em sua rotina escolar. Sua finalidade, seus mecanismos e seus efeitos são geralmente desprezados ou desconhecidos pelos educadores (Bran-co, 1989; 2003).

De acordo com Angela Uchoa Branco (1989), no âmbito do currículo oculto aparecem diversos aspectos da educação e do de-senvolvimento que são negligenciados ou que não aparecem como objetivos específicos e primordiais da escola, mas que estão presen-tes no cotidiano da instituição. O currículo oculto abrange tanto a maneira pela qual o/a professor/a estrutura as situações de apren-dizagem (atividades e rotina), como as diferentes formas e padrões de relacionamento que se estabelecem entre o/a educador/a e os/as alunos/as. Sendo assim, o currículo oculto abrange a função socia-lizadora da escola, portanto, o desenvolvimento e a educação moral e ética. O termo “oculto” refere-se ao fato de que essa função socia-

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Direitos humanos, cultura da paz e currículo

lizadora, muitas vezes, é ignorada pelos/as educadores/as, criando um conflito não intencional entre os objetivos e a ação pedagógica.

Outros/as autores/as, como Rheta DeVries e Betty Zan (1998), também chamam a atenção para o papel e a importância do currícu-lo oculto no desenvolvimento e na educação moral dos/as alunos/as. As autoras, assim como Angela Uchoa Branco (1989), enfatizam o papel do ambiente relacional no desenvolvimento e na educação moral e ética dos/as alunos/as, e descrevem um conjunto de aspec-tos e padrões de interação que podem ser significativos para o desen-volvimento da moralidade e da ética. Alguns dos aspectos ressalta-dos por DeVries e Zan (1998) estão relacionados com o processo de estabelecimento e a possível internalização de regras, com as estraté-gias de resolução de conflitos interpessoais e com as possibilidades de participação ativa e reflexiva dos/as estudantes, dentre outros.

Com base nas ideias anteriores e com o objetivo de ilustrar breve-mente o efeito do currículo oculto, trazemos uma situação escolar específica analisada por Ália Maria Barrios González (2013), em pesquisa sobre o desenvolvimento moral no ensino fundamental.

A referida pesquisa aconteceu em uma escola de ensino funda-mental da rede pública de ensino do Distrito Federal. Participaram 22 crianças de uma turma de 5o ano (12 meninas e 10 meninos) e seu professor, com 15 anos de experiência docente e formação em peda-gogia. Como parte da pesquisa, o professor foi convidado a planejar uma atividade com o objetivo de abrir um espaço de discussão sobre questões morais entre as crianças, sendo que ele poderia escolher um dos temas sugeridos pela pesquisadora: autoridade, conflitos, obe-diência, direitos humanos, autonomia, preconceitos e diversidade.

Para a realização da atividade, o professor selecionou o tema dos direitos humanos por ser uma matéria “[...] muito importante para todos. Desde criança, temos de saber os nossos direitos e deveres”. No momento da atividade, a turma foi dividida em pequenos gru-pos que leram, discutiram e elaboraram um texto e um desenho so-

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bre um dos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Após a discussão e produção gráfica em pequenos grupos, a turma se juntou para socializar e discutir sobre o tema. Como ilustração, segue a transcrição de um breve trecho da “discussão” da turma:

Folha de Registro da Atividade do Grupo 5

Início da interação entre os participantes

Professor: Grupo 5, qual é o artigo de vocês?

Menino 8: O artigo 4. Diz que ninguém tem o direito de tomar outro ser humano como escravo/a.

Professor: O que vocês acharam desse artigo?

Menino 8: Esse artigo está extremamente correto porque as pessoas olham para os pobres e veem que estão passando fome e dor, e se imaginássemos ainda sendo escravizados, maltratados e sem lar podemos perceber que é grande injustiça (Menino 8 lê o que escreveram sobre o artigo).

Professor: Muito bem moço! Parabéns viu! Gostei de ver! E... o grupo 6. Quem é o grupo 6? Moças, quem vai falar? (olhando para as meninas do grupo 6).

Ilustração

Escola:Componentes do Grupo:

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Os/as alunos/as fizeram uma reflexão elaborada, para sua faixa etária, sobre o artigo 4o da Declaração Universal dos Direitos Hu-manos, abordando aspectos fundamentais para a atividade planejada pelo professor. Sua produção escrita e gráfica mostrou engajamento na atividade, autonomia e criatividade. As crianças conseguiram tra-zer novidades importantes para a atividade, mas essas novidades não foram aproveitadas pelo professor, que acabou perdendo a oportuni-dade de discutir com as crianças questões fundamentais dos direitos humanos, a partir da reflexão e da elaboração do próprio grupo de alunos/as. Ele limitou-se a avaliar de forma simples o que as crianças elaboraram:

— Muito bem moço! Parabéns viu!

Os aspectos históricos, políticos e econômicos implicados na questão da igualdade, da escravidão, da exploração não foram sequer mencionados pelo professor. Além disso, as reflexões das crianças que refletem a realidade social e partem de suas experiências e/ou vivências cotidianas não foram aproveitadas para uma discussão com a turma. É importante sublinhar que as crianças colocaram questões relativas à pobreza e à justiça que não foram valorizadas pelo profes-sor, e que poderiam ter sido abordadas. Desde o começo da atividade, o professor mostrou-se preocupado com os aspectos organizativos da mesma, e isso acabou prevalecendo diante dos objetivos pautados: discutir e refletir com as crianças sobre um tema importante para a formação de valores sociomorais, assim como discutir a temática dos direitos humanos. Como o trecho analisado evidencia, foi mais importante passar para a apresentação do próximo grupo do que discutir propriamente as questões sobre pobreza e justiça levantadas pelos/as alunos/as:

— Muito bem moço! Parabéns viu! Gostei de ver! E... o grupo 6. Quem é o grupo 6? Moças, quem vai falar?

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Para finalizar o nosso texto, gostaríamos de convidá-lo/a a conhe-cer um pouco mais sobre o Programa Mundial para a Educação em Direitos Humanos, primeira e segunda fases (através do site da Unes-co no primeiro link abaixo), e sobre o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos que completou dez anos em 2013 (através do vídeo “Educação com ênfase nos direitos humanos” da TV Escola, no segundo link abaixo):

Programa Mundial para a Educação em Direitos Humanos – Unesco<http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/plano_de_acao_programa_mundial_para_educacao_em_direitos_humanos_

primeira_e_segunda_fases_somente_em_pdf/#.U4TJXPldX4Y>

“Educação com ênfase nos direitos humanos” – TV Escola<https://www.youtube.com/watch?v=PcEvvlgeyK0>

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Direitos humanos e o projeto político-pedagógico

Direitos humanose o projeto político-pedagógico

Regina Lúcia Sucupira Pedroza &Julia Chamusca Chagas

Democracia e direitos humanos na escola

Democracia e direitos humanos: conceitos e realidade

D emocracia e direitos humanos são conceitos e, como tais, são palavras que podem ter significados diversos a partir de cada momento histórico, dos diferentes grupos sociais e dos

objetivos éticos e políticos de quem os enuncia. No seu dia a dia, você já deve ter percebido essas diferenças, seja em um noticiário de TV ou mesmo em uma conversa de família no almoço de domingo. Por isso, é sempre importante ressaltar que aqui trazemos uma possível concep-ção desses e de tantos outros conceitos que serão apresentados.

Entendemos que a maior expressão da democracia na escola é a gestão democrática, ou seja, é o modo de organizar a escola de forma a garantir a participação de todos na construção do projeto que é diariamente desenvolvido na escola, contribuindo, assim, para o de-senvolvimento de todas as pessoas que compõem a instituição. No Brasil, a gestão democrática está estabelecida pela Constituição Fe-

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deral de 1988 como princípio para o ensino nas escolas públicas. A inclusão desse princípio na Constituição foi resultado de uma série de discussões políticas profundamente impactadas pelo contexto de abertura democrática após a ditadura militar brasileira. Esse concei-to, construído nas lutas dos educadores, foi sendo, ao longo da histó-ria, apropriado por diferentes segmentos da sociedade e influenciado por diversos interesses. Dessa forma, apesar da garantia constitucio-nal desse tipo de gestão para as escolas públicas, sua implementação se dá varia de acordo com cada momento histórico.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (Lei n.o 9.394/96), a partir da Constituição, também coloca a gestão demo-crática como princípio e estabelece normas para sua implementação. Dentre essas normas, estão a ênfase na necessidade de “participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola” (artigo 14, inciso I) e a “participação das comunidades es-colar e local em conselhos escolares ou equivalentes”.

Em cada rede municipal e estadual ocorre um estímulo maior ou menor para a aplicação dessas leis. Em alguns lugares, existe apenas uma gestão democrática que se resume em eleições de diretores, vi-ce-diretores e membros do Conselho Escolar. Em outros, há o in-centivo para as escolas elaborarem o seu próprio projeto político--pedagógico (PPP), com a participação de professoras, professores, estudantes, funcionárias, funcionários, mães e pais.

A escola em que você atua conta com um PPP? Quem participou de sua elaboração? Foi aprovado pelo Conselho Escolar? Quem são os membros do Conselho Escolar de sua instituição? Você conhece alguma ação que foi decidida por ele? Você tem alguma experiência como conselheiro/a?

A partir dos exemplos de sua e de outras escolas que você pode conhecer, fica evidente que essa realidade muda de acordo com cada local e com o tempo. Em alguns lugares, a gestão democrática equi-vale ao conceito de democracia que temos no nosso país: a demo-

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Direitos humanos e o projeto político-pedagógico

cracia representativa. Isso significa que o período eleitoral é o único momento de participação de grande parte da população, gerando um distanciamento entre as pessoas e o poder. Com frequência, nem os diretores e conselheiros sabem como representar esse poder coleti-vo, nem os outros membros da comunidade escolar sabem como se fazer representar. Além disso, acabam sendo estabelecidas relações de mando e submissão, incoerentes com um ideal democrático de partilha de poder por meio da cooperação.

Entretanto, existem outras formas de se conceber a democracia. O ideal de democracia participativa não está focado apenas no estabele-cimento de uma organização de representações escolhidas por meio de voto da maioria. Ele valoriza mais a prática da democracia, não se trata apenas de um método de organização, trazendo os indivíduos para a discussão e a problematização em público de seus desejos e insatisfações com as decisões a serem tomadas pelo grupo. Assim, a democracia participativa ressalta o exercício do poder por todos, em coletividade, por meio da construção de espaços de discussão e deci-são ampla em que todos tenham direito a se expressar. Se existe uma luta pelo direito à educação ou pelo direito de geri-la de forma demo-crática, isso significa que, apesar de todos os fundamentos legais, es-ses direitos não estão sendo contemplados no cotidiano. A existência desses documentos tão importantes não garante a sua materialização na vida real, nas práticas das pessoas reais.

A gestão democrática pressupõe a ruptura com práticas autoritá-rias, hierárquicas e clientelísticas e presume a representação legítima de todos os segmentos que envolvem a escola. Defendemos, portan-to, que uma gestão democrática não se realiza somente pela eleição de diretores. Sua efetivação apenas por meio da democracia repre-sentativa não constrói relações mais horizontais na escola, nem uma verdadeira participação de todos os seus membros em sua gestão. Essa participação deve ser feita no cotidiano, envolvendo um debate constante das diversas ideias e expectativas que esses vários sujeitos

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trazem como contribuição. Dessa forma, a ênfase na construção cole-tiva do projeto político-pedagógico (PPP) como efetivação da gestão democrática é essencial dentro de uma concepção que busca a reali-zação de fato de uma participação autônoma de todos os membros da escola.

Com esses questionamentos, começamos este texto posicionan-do-nos e convidando você a também posicionar-se em relação a es-ses temas. Defendemos a noção de direitos humanos atrelada a uma prática emancipatória e contrária a qualquer forma de dominação, sobreposição de um grupo, indivíduo, cultura em relação a outro. De alguma maneira, somos todos parte e responsáveis pelas práticas dos direitos humanos, principalmente quando nos indignamos frente às injustiças sociais.

Muitas vezes, agimos a partir de uma naturalização do que são os direitos humanos e de como deve ser a ação por sua luta. Desse lugar, acabamos por esquecer as tensões e os conflitos presentes na sociedade moderna e nos desviamos das discussões de como efetiva-mente podemos promover políticas progressistas e emancipatórias e até mesmo como encontrar um convívio pacífico, democrático e igualitário sem que nenhuma relação de opressão se exerça sobre um grupo.

Educação em e para os direitos humanos

Ao falar em democracia na escola, a discussão da educação em e para os direitos humanos ajuda-nos a pensar em uma forma de cons-truir um espaço maior para a participação de toda a comunidade escolar no seu cotidiano. Conforme foi ressaltado, atualmente, a legislação que trata da educação brasileira tem se voltado para essa questão a partir de todo um cenário internacional de mobilização para a efetivação da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que completou 65 anos recentemente. Um dos documentos decorrentes dessa mobilização é o Plano Nacional de Educação em

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Direitos humanos e o projeto político-pedagógico

Direitos Humanos, lançado em 2007 como resultado de um proces-so de elaboração iniciado em 2003.

A proposição dos conteúdos e das práticas educativas na educação em e para os direitos humanos toma por referência a concepção e as diretrizes estabelecidas no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Nesse sentido, recuperamos aqui elementos centrais da concepção expressa no plano:

A educação em direitos humanos é compreendida como um pro-cesso sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito de direitos (Brasil, 2007: 25).

A educação em e para os direitos humanos, portanto, deve ser en-tendida como “processo”, o que significa dizer que tem duração no tempo e posicionamento no espaço. Ou seja, estende-se como uma realização, uma prática, e não como um evento, um produto. A ideia de processo requer momentos diversos e complementares que este-jam articulados entre si por algum ou vários eixos. Não se trata de um processo qualquer. Espera-se que seja sistemático, ou seja, que articule os vários momentos, as várias estratégias e as várias dimen-sões da educação. Já a concepção de multidimensionalidade traduz a complexidade das exigências da educação em e para os direitos hu-manos, o que requer o reconhecimento de que existem fatores de vá-rias ordens implicados em sua concretização.

A noção de processo está presente também no entendimento de que os sujeitos de direitos não se encontram prontos e disponíveis, mas estão em formação, em construção, o que reforça essa ideia de processo. Falar de sujeitos de direitos é reconhecer a presença do ser humano como ser cuja dignidade traduz-se na construção na e pela interação com outros sujeitos, visto que sujeitos não são unidades fechadas; são, antes, relações e, por isso, multidimensionais. São com os outros, nunca antes, depois, sobre ou sob os outros.

O debate sobre os direitos humanos é marcado pela luta do reco-nhecimento dos direitos coletivos e não apenas os de cada indivíduo,

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incluindo todas as vozes não hegemônicas. Aponta para a necessi-dade do reconhecimento de todos enquanto humanos, em si e na coletividade, juntos uns aos outros.

A educação é compreendida como um direito em si mesmo e um meio indispensável para o acesso a outros direitos e ganha, portan-to, mais importância quando direcionada ao pleno desenvolvimento humano e às suas potencialidades, valorizando o respeito aos grupos socialmente excluídos. Essa concepção de educação busca efetivar a cidadania plena para a construção de conhecimentos, o desenvol-vimento de valores, atitudes e comportamentos, além da defesa so-cioambiental e da justiça social (Brasil, 2007: 25).

A partir do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, vários programas e projetos estão sendo criados para formar educa-dores e gestores do sistema de ensino com o objetivo de sensibilizá--los na construção de ações de e para os direitos humanos. Esperamos que este curso alcance seu objetivo de formação para a promoção e compreensão da educação para todos sem discriminação e sem pre-conceitos.

Educação em e para os direitos humanos e democracia na escola

Ao considerar os pressupostos e as definições acerca da educação em e para os direitos humanos expostos anteriormente, é possível perceber o quanto a educação em e para os direitos humanos ajuda--nos a considerar a necessidade de a democracia estar em todos os níveis do contexto escolar, da proposta pedagógica à organização político-administrativa, passando por todas as relações e espaços da instituição. É necessário desenvolver a construção de uma educa-ção para a democracia que trabalhe junto aos educandos não apenas em relação ao conhecimento de seus direitos, mas que proporcione a aprendizagem e o desenvolvimento de práticas cidadãs. Além do conhecimento das leis e da organização social, é preciso ensinar a reconhecer o papel de cada um na sociedade, o que começa pelo

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Direitos humanos e o projeto político-pedagógico

reconhecimento do papel de cada um na escola. Essa compreensão exige uma constante reflexão sobre a necessidade de a democracia estar em todos os níveis do contexto escolar, criando uma coerência entre proposta pedagógica e política.

Agora, convidamos você a pensar sobre a sua escola e as relações entre as pessoas que a compõem. Como estão as suas relações com os seus colegas docentes e funcionários? E com os estudantes? E en-tre os familiares dos estudantes e as pessoas que ocupam cargos de gestão? O que será que essas relações têm a dizer sobre o PPP de sua escola?

Todos nós temos de ser vistos como sujeitos de direitos e cidadãos em construção. Para isso, é necessário, além de relações democráticas, o tempo para a aprendizagem da democracia (Monlevade, 2005). Essa é uma questão fundamental que aponta para a necessidade de reconhecer que os seres humanos não nascem prontos para viver em coletividade, nem para estabelecer relações democráticas. Saber ou-vir os outros, respeitar as diferenças e construir uma comunidade são aprendizados para toda uma vida. É preciso aprender a viver e a coo-perar com os outros, mesmo com aqueles que não escolhemos para conviver. É essencial pensar que também não fomos escolhidos por todos para essa convivência.

Há certos momentos em que o professor se encontra em situações difíceis, como ter de “aguentar” um determinado aluno, sem mesmo saber por quê? Às vezes, nos sentimos incomodados com algum alu-no sem saber exatamente a razão e aí reside a dificuldade de convi-ver com quem não escolhemos por afinidade ou simpatia. O mesmo pode acontecer com um colega ou familiar de um estudante.

A implementação da educação para os direitos humanos passa por um movimento de afirmação do direito de todos à educação e por uma denúncia às suas violações. Isso significa reconhecer a educação em e para os direitos humanos para além do ensino de leis, direitos e deveres. Esse ensino é muito importante, porém efetivar uma edu-

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cação em e para os direitos humanos significa reconhecer a respon-sabilidade de cada membro da escola em construir o aprendizado da vivência democrática, além de estar aberto para aprender com ele.

Como entendemos realmente esse direito para todos? Como re-cebemos os alunos “mais diferentes” em nossas salas de aula? A mera criação de instrumentos legais não garante a transformação das prá-ticas cotidianas na escola, é preciso um movimento contínuo e diário de reflexão a fim de garantir as condições para sua efetivação.

A discussão do respeito aos direitos humanos – mais especifica-mente o direito à educação – passa por um movimento constante do universal ao individual, já que não é possível garantir a igualdade sem tolerância à diferença. Essa concepção, levada ao cotidiano escolar, exige a criação de um espaço de diálogo, no qual o respeito e a escuta ao outro são fundamentais. As relações dentro da escola precisam ser horizontais e devemos considerar a construção de saberes a partir da contextualização e problematização da realidade dos vários atores que compõem o espaço escolar. É necessário promover práticas edu-cativas de socialização para a construção de uma sociedade em que todos tenham os seus direitos respeitados. É por isso que na educação dos direitos humanos, destaca-se o ideal de democracia (Silveira et alii, 2007).

Depois de promulgada a Constituição de 1988, muita coisa mu-dou no Brasil. No entanto, ainda resta muito a fazer. Mesmo com uma lei que obriga o Estado a oferecer o ensino fundamental gra-tuito a todos – sejam crianças, adolescentes, jovens, adultos, ido-sos e pessoas com necessidades especiais –, sabemos que temos em nosso país ainda milhões de cidadãos completamente analfabetos. Esse fato demonstra que a existência por si só das leis não garante a efetivação dos direitos. É preciso exercer as leis no cotidiano, nos diferentes contextos de atuação, podendo até modificá-las ou criar novas leis, de acordo com as necessidades apresentadas pela comple-xidade das relações sociais.

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Direitos humanos e o projeto político-pedagógico

Gestão democrática e projeto político-pedagógico (PPP)

Os PPPs, anunciados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei n.o 9.394/1996) como obrigatórios nas esco-las do país, ainda suscitam dificuldades de elaboração em diversas escolas. Sendo assim, é importante a produção de discussões que es-clareçam e reflitam acerca do sentido de sua existência. A LDB trata da necessidade de elaboração de projetos pedagógicos segundo três eixos:

a. flexibilidade – autonomia das escolas para realizarem seu pró-prio trabalho pedagógico;

b. avaliação processual; e

c. liberdade – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, bem como gestão democrática do ensino público.

O fato de a lei prever a participação dos profissionais da educação na elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino, e da comunidade escolar e local em conselhos escolares ou equivalen-tes demonstra ênfase na proposta de gestão democrática do ensino. A partir desses princípios, reconhecemos principalmente a importân-cia da gestão democrática, a valorização dos profissionais do ensino e a garantia do padrão de qualidade do ensino.

Mas o que seria qualidade na educação? Qual a razão de afirmar-mos que uma escola é de qualidade superior em relação a outra, se a lei garante igualdade de qualidade para todas? Como podemos in-fluenciar para melhorar a qualidade da nossa escola?

Tudo isso deve acontecer juntamente com as três funções básicas da escola: a instrução dos alunos para que se tornem indivíduos com conhecimento e com cultura geral; a formação capaz de produzir in-divíduos aptos a se inserir na vida profissional; e a educação para a ci-dadania, que necessita de um projeto, de um objetivo a ser alcançado, tanto por parte da pessoa que se educa, quanto pela comunidade que educa. A instrução sem educação e o desenvolvimento das qualida-

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des profissionais sem a dimensão cívica podem produzir indivíduos ainda mais antidemocráticos que os sem estudo. Saberes e compe-tências podem também ser colocados a serviço das piores ambições destrutivas da pessoa e do outro.

Uma escola, por exemplo, que tem estabelecida sua concepção de cidadania, inclui em seu currículo elementos como a solidariedade, a justiça e a paz e exclui o individualismo, a competição que menos-preza o outro e o egoísmo. Dessa forma, podemos dizer que o papel de todos na escola é de preparar – e nos preparar – para o exercício de nossas responsabilidades na prática cotidiana institucional com nossos direitos. É mais do que transmitir valores, é exercê-los.

Você se sente em processo de educação contínua, permanente? Como? Que conhecimentos e habilidades fazem parte de sua forma-ção profissional para exercer a educação para os direitos humanos?

Você concorda com o art. 206 da Constituição Federal, detalhado pelo art. 3° da LDB que nos faculta como meta a “gestão democráti-ca” nas escolas? A gestão democrática pressupõe a ruptura com práti-cas autoritárias, hierárquicas e clientelísticas e supõe a representação legítima de todos os segmentos que envolvem a escola: a direção, os professores, os pais, os funcionários, os alunos e a comunidade de um modo geral.

A gestão democrática da escola se confirma a partir de seu proje-to político-pedagógico. Nesse sentido, vamos passar a refletir com mais detalhes o que entendemos por PPP e como podemos pensar iniciativas de construção do PPP em cada uma das escolas que atua-mos.

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Direitos humanos e o projeto político-pedagógico

Definição, função e características do PPP: elaboração e implementação

Projeto político-pedagógico: definição, função e características

Muitas vezes, vemos nas escolas que o projeto político-pedagógico é apenas um documento, feito às pressas pela diretoria junto com al-guns membros da equipe pedagógica, que fica engavetado em algum arquivo da escola. Essa é uma realidade que demonstra uma forma de conceber o PPP: como documento, registro feito por obrigação, alheio ao que acontece diariamente na escola. Você já presenciou isso acontecer? Na sua escola é assim? Você acha que pode ser diferente?

Entendemos o PPP como um importante mecanismo de trabalho coletivo, que permite a constituição da identidade da escola, de po-sicionamentos políticos e diretrizes de trabalho coerentes com cada realidade. Para isso, é preciso consolidar um processo de reconheci-mento da possibilidade de autonomia na construção do PPP pelos diferentes segmentos da escola. Concebemos que o PPP resulta de três dimensões, que serão aprofundadas em seguida: (1) planejamen-to, (2) posicionamento político e (3) visão de educação.

Planejar significa pensar no novo, isto é, a partir de uma história passada que se atualiza no presente visando ao futuro, em constan-te movimento de superação e de salto qualitativo. A superação não deve significar a negação das contradições que impulsionam esse movimento, sendo assim, o novo pode se encontrar no passado. Isso significa que não é preciso anular tudo aquilo que já foi construído em nome da democracia, mas buscar ressignificar de acordo com as novas demandas que se apresentam no dia a dia.

O aspecto político do PPP refere-se ao ideal de organização da sociedade que queremos construir. Neste curso, defendemos a cons-trução de uma sociedade democrática com a participação e a respon-sabilidade do Estado e da família, portanto, de todos os segmentos

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da comunidade escolar. O conceito de política pode trazer em si uma relação de força, em que um grupo assume a responsabilidade pelos interesses de uma coletividade, sendo que esta, por sua vez, abdica da exigência desses interesses por sua própria força, delegando-a ao grupo dominante. Ao falar de poder, queremos ir além do conceito usual de potência, domínio, controle e mando e demais formas. Que-remos colocar aqui a noção de poder como capacidade de ser sujeito, ou seja, de produzir sentido e significado, seja de forma material ou simbólica. Que possa significar reconhecer outros sujeitos em suas diferenças e enquanto tais.

Esse conceito caracteriza o poder antes de uma relação de domina-ção, ou seja, busca desnaturalizar o campo das relações humanas como forma necessária de dominação sem perder o aspecto de serem cons-truções sociais históricas e culturais. Busca mais do que a tolerância, perscruta o respeito e o convívio. Com isso, não temos a inocência ou a ingenuidade de não ver os abusos existentes. Acreditamos que pode-mos buscar um caminho que permita uma maior possibilidade de lutar contra discursos e práticas dominadores e em prol de uma prática mais plural visando à permanência viva do outro e de sua diferença. Trata--se, portanto, de articular atitudes, competências e habilidades que se traduzam em posicionamento e em atuação. A explicitação do conjun-to dos pressupostos e a adequação dos conteúdos de cada proposta de PPP concreta de ação formativa é que poderá tomar o que aqui se pro-põe como subsídio, nunca como norma, determinação ou suficiência.

Em relação à dimensão pedagógica, entendemos que deve existir no PPP uma intenção explícita de um ideal de educação. Acredi-tamos que esse ideal envolve indivíduos em processo de desenvol-vimento tanto cognitivo como afetivo em sua constituição de per-sonalidade, de modo que se torne um profissional no exercício da cidadania. Nesse sentido, a proposta pedagógica deve sempre consi-derar o impacto que provoca em seus alunos, de modo a se adaptar às suas necessidades.

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Direitos humanos e o projeto político-pedagógico

O que você considera como importante quando planeja suas au-las? Fica claro para seus alunos o seu ideal de educação? Como edu-cador, você acha que influencia na formação da personalidade do seu aluno? Você se vê em transformação na relação com seus alunos?

Como vimos anteriormente, a concepção da gestão democrática do ensino relaciona-se a um paradigma de qualidade na educação que se concentra nas estratégias e nos meios para proporcionar mais recursos materiais e simbólicos, principalmente aos estudantes com qualidade de vida e de educação diminuídas. Essa concepção de qua-lidade não pode, assim, ser medida pela quantidade do acesso à esco-la, mas pela qualidade dos serviços por ela oferecidos. Muitas vezes o que assistimos é um desvirtuamento e uma simplificação do conceito de qualidade relacionado à gestão democrática.

Nesse sentido, o PPP assume um papel de protagonista, como me-canismo importante de trabalho coletivo e participação de todos os segmentos envolvidos no processo educacional, bem como meio de construção, observação, reflexão, sistematização e avaliação do pro-cesso pedagógico, voltado para as necessidades e os anseios políticos, sociais e culturais de cada comunidade (Brandão, 2003).

A partir dessa concepção, o PPP é visto como elemento nortea-dor da organização do trabalho escolar. No entanto, vai além de um conjunto de planos e projetos de professores, não é apenas um do-cumento a tratar de diretrizes pedagógicas da instituição educativa para ficar arquivado na secretaria da escola. Ele deve ser um produto específico que reflete a realidade da escola, situada em um contex-to mais amplo que a influencia e é por ela influenciado, estando em sala de aula; deve, portanto, ser reconhecido como instrumento que permite clarificar a ação educativa da instituição educacional em sua totalidade, necessitando, para tanto, da participação de todos os seg-mentos envolvidos no processo educacional.

Em muitas escolas observamos que a equipe pedagógica alega dis-por de um PPP. No entanto, em muitos casos, contam apenas com

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projetos pedagógicos pretensamente desprovidos de uma origem política. Paulo Freire (1992) lembra que a prática educativa não é imparcial e envolve uma escolha que precisa posturas políticas. Re-conhecer tais escolhas faz com que a escola não esteja a serviço da manutenção do status quo. Essas constatações demonstram o caráter político indissociável do projeto pedagógico.

Como é em sua escola? Há uma discussão sobre a postura política frente ao que se quer da escola? Você participa dessa discussão? Dis-cuta com os seus colegas como tem se dado o processo de construção do PPP.

Um projeto político-pedagógico, como vimos anteriormente – as-sim como pressupõe qualquer projeto –, traz em si a ideia de ruptu-ras com o presente e promessas de mudanças para o futuro, mudan-ças que passam por um período de instabilidade para chegar a um de estabilidade, que pressupõe um estado melhor do que o presente (Veiga, 1995). No entanto, não devemos esquecer que essa ruptura com o presente deve levar em conta a história passada, pois o presen-te se constitui em síntese da relação entre passado e futuro.

Ilma Passos Veiga (2003) diferencia dois gêneros de inovações que podem afetar os PPP: (1) regulatória ou técnica e (2) emancipatória ou edificante. A primeira tem suas bases epistemológicas embasadas no caráter regulador normativo da ciência tradicional. Nesse contex-to, o projeto político-pedagógico volta-se para a burocratização da instituição educativa, tornando-a mera cumpridora de normas técni-cas e mecanismos regulatórios. Já a segunda pressupõe uma ruptura que predisponha os indivíduos e as instituições para a indagação e a emancipação. Aqui, o PPP concentra-se no processo de construção, manifesta a afirmação da individualidade e da particularidade da ins-tituição educativa.

Nesse sentido, a partir dessas reflexões realizadas, constatamos a necessidade de construção de propostas de ações que visem aproxi-mar a flexibilidade e a relativa abstração prevista nas leis produzidas

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pelo Estado, como é o caso da LDB, da realidade concreta das esco-las. Tais ações mostram-se importantes para que as escolas possam produzir PPPs que sejam coerentes com suas realidades específicas. Para tal, necessitam de apoio técnico e financeiro por parte da admi-nistração central, bem como de estímulo e fundamentação legal para coordenar as ações planejadas pela comunidade escolar.

É importante, ainda, buscar as raízes que expliquem o surgimen-to dessa distância entre a possibilidade de transformação da reali-dade escolar brasileira e a efetiva concretização desse processo, que demanda a participação dos indivíduos imersos nas comunidades escolares, em manifestação de autonomia, consciência de seu po-der de transformação e conhecimento da realidade historicamente construída de sua atividade.

Uma grande pensadora da filosofia – Agnes Heller – aponta um possível caminho para a compreensão dessas raízes quando analisa a estrutura da vida cotidiana e os processos de alienação na cotidiani-dade. Heller (1989) ressalta a alienação da vida cotidiana, mostrando que é representada por um abismo existente entre o homem genérico e as possibilidades individuais, isto é, entre a produção humano-ge-nérica e a participação individual consciente nessa produção.

Dessa forma, é preciso entrar em contato com os conteúdos trazi-dos por todos os segmentos da escola, salientando que esses se inscre-vem em um longo processo histórico de construção das identidades individuais e da própria escola. Vale a pena ressaltar que esse proces-so é marcado por relações de autoridade e por forças de interesses políticos de manutenção do status quo com que todos contribuem de variadas maneiras. Ao demonstrar que a realidade e a identidade escolar são historicamente construídas e influenciadas por todos, é preciso despertar a ideia de que a realidade construída pode também ser modificada pela atuação coletiva da comunidade escolar.

A identidade da escola é algo que se constrói historicamente e sua realidade pode ser modificada pela ação coletiva da comunidade. Ao

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reconhecer a importância da história da instituição na constituição de sua identidade, os diferentes segmentos contribuem para se pensar que, da mesma forma que a realidade é construída, ela pode ser mo-dificada pela ação coletiva dessa comunidade.

Autonomia aqui é entendida como construção que depende sem-pre de um outro. Mesmo reconhecendo que cada escola, com seu nome, com sua história e com sua proposta pedagógica vai cons-truindo sua autonomia para decidir sobre como resolver seus proble-mas, este processo de conquista da autonomia depende e deve contar com a cooperação das autoridades governamentais e da comunidade (Monlevade, 2005).

Desafios na elaboração e implementação do PPP

Como vimos, muitas vezes o PPP de uma escola é apenas um papel guardado em alguma gaveta de algum gestor da escola, outras vezes nem existe. Nesses casos, as pessoas que compõem a escola apontam uma série de dificuldades para justificar a inexistência do PPP. As principais questões apontadas normalmente são: a rotina corrida da escola, abrangendo assuntos de maior prioridade; o fato de o quorum presente nas reuniões acerca do tópico raramente contar com todos os profissionais; a percepção de que parece que o PPP estaria sendo retirado do vazio, isto é, de que não haveria bases para sua constitui-ção; e a percepção de que não há por parte da escola um conhecimen-to aprofundado de sua clientela, o que não permite a formulação de ações que visem atingi-la beneficamente.

Você reconhece essas dificuldades na sua escola? Converse com seus colegas sobre suas dificuldades. Às vezes as dificuldades são as mesmas e todos se encontram imobilizados frente à necessidade da construção do PPP. Parece até que seria mais fácil que alguém já chegasse com um PPP pronto. Entretanto, nesse caso, não seria um projeto construído coletivamente a partir das necessidades de cada escola. O que você acha?

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O PPP pode ser entendido como um demonstrativo da identidade da escola, além de contribuir para o desenvolvimento e o reconheci-mento dessa identidade, na medida em que é construído na coleti-vidade. Sendo assim, deve ser percebido como de suma importância por permitir que cada profissional possa se identificar individual-mente com o trabalho institucional, bem como caracterizar esse tra-balho para o público externo à escola.

É, portanto, necessário pensar em formas de superação dessas di-ficuldades. Pretendemos, com base em nossas pesquisas e experiên-cias, apresentar algumas possibilidades para essa superação. Essas são possibilidades apresentadas para promover reflexão e suscitar novas ideias, pode ser que funcionem em algumas escolas e em outras, não. Ou seja, não são receitas a serem aplicadas a todo e qualquer contex-to. O mais importante é refletir e partir dessas para construir junto com o coletivo de cada escola soluções apropriadas para esse contex-to específico.

Quanto à dificuldade frequente de reunir o conjunto dos mem-bros da escola repetidamente para construir o seu PPP, acredita-mos não ser indispensável a participação de todos nas reuniões de discussão no processo de elaboração. Basta que haja um constante movimento de circulação de informações e um acordo de que todos podem ter espaço para pronunciar-se em qualquer etapa do proces-so. Assim, ao não condicionar a elaboração do PPP à presença de todos os segmentos, uma primeira amarra que atravanca o trabalho pode ser relativizada.

Para envolver a comunidade, necessita-se de um resgate da histó-ria da escola e um conhecimento mais abrangente acerca das pessoas que a compõem. Uma possibilidade de chegar a esse conhecimento pode concretizar-se a partir do convite à comunidade para ajudar no levantamento do histórico da escola. Podemos perguntar à co-munidade, por meio de questionários ou conversas informais, o que conhecem sobre a escola, como a comunidade gostaria que ela fosse.

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É preciso criar formas de conhecer e responder as questões referen-tes à clientela e às formas de incluir a comunidade escolar como um todo na discussão acerca do PPP.

Você conhece a história da sua escola? Se não conhece, procure des-cobrir como ela surgiu, em que contexto apareceu. Quais as mudanças sofridas ao longo de sua existência? Qual era a clientela? Provavelmen-te você terá surpresas ao resgatar essa história.

Com relação à questão da clientela, às vezes os primeiros movimen-tos da escola se revelam em manifestações de descontentamento e frus-tração em relação à postura dos pais e das famílias diante da escola e do trabalho individual de cada profissional. Há muitas queixas quanto à não valorização da escola pública, à não participação dos pais nas ativi-dades realizadas pela escola, à não colaboração desses com as propostas dos professores.

A escola deve reconhecer a importância da família na constituição do sujeito, mas não pode vê-la como única determinante dessa cons-tituição. A família é a primeira rede social do sujeito e em nossa so-ciedade, letrada, a escola torna-se uma instituição que vem ampliar as possibilidades de satisfação das necessidades desse sujeito. Portanto, a família e a escola não podem ser vistas como momentos de oposição ou de disputa para ver quem é a maior responsável pela educação dos alunos. Essas duas instituições – família e escola – não são melhores ou piores, são diferentes e necessárias na constituição do sujeito.

Desse modo, a escola deve apoiar a família e ser por ela apoiada, e não a substituir. Da mesma maneira, a família não deve querer trans-ferir suas responsabilidades para a escola, exigindo do professor que desempenhe o papel dos pais. A escola tem um papel fundamental na formação do cidadão, principalmente no que se refere à transmissão do conhecimento formal, mas tem também seus limites. Nós, pro-fessoras e professores, somos privilegiados por termos tido a chance de estudar, então devemos tomar a iniciativa para buscar a parceria da família visando a um trabalho em conjunto para a formação dos

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alunos. É preciso que haja um respeito mútuo entre escola e família. Para tanto, o diálogo é fundamental.

A construção histórica é relevante pois pode apontar para aspec-tos que para os profissionais parecem óbvios, indiscutíveis, con-trariamente ao que afiguram para as pessoas da comunidade. Pelas dificuldades apontadas, é possível inferir que existe certo grau de não identificação dos profissionais com o próprio trabalho, o que pode ser gerador de intenso sofrimento e angústia. Isso fica evidente quando percebemos que, ao mesmo tempo em que manifestamos não perceber a valorização dos pais perante a escola pública, não confiamos nossos próprios filhos a ela e que ao não nos sentirmos valorizados no nosso próprio trabalho, também acabamos por não confiar nele, ou ainda por não confiar no trabalho que é desenvolvi-do por nossos colegas.

A importância da aproximação pessoal com as famílias deve ser uma conquista que permita, aos poucos, romper com a ideia de que os pais só são chamados a comparecer à escola quando há queixas contra o seu filho em relação ao comportamento ou às notas baixas. As reuniões gerais de pais e conversas com professores demonstram ser momentos importantíssimos para o estreitamento de relações da escola com sua clientela, permitindo que passe a ser conhecida de forma gradativa e natural. Também podemos aproveitar quaisquer eventos realizados pela escola, tais como os suscitados por datas co-memorativas ou demonstrações culturais, e que contam com a pre-sença das famílias, como importantes espaços de compartilhamento de experiências e acolhimento de demandas da clientela. Os pais, por exemplo, podem ser convidados a continuar suas manifestações, es-crevendo em mural colocado na entrada da escola. Dessa maneira, sentem-se verdadeiramente convidados a participar dos encontros de discussão acerca do PPP.

Como é a participação dos pais na sua escola? Eles se sentem aco-lhidos? Quais as ações que aproximam a família da sua escola? Con-

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verse com os pais de seus alunos sobre essa parceria entre família e escola. Como eles podem ajudar nessa construção?

Outra dificuldade encontrada normalmente nas escolas é a in-clusão dos funcionários nas discussões do PPP. Como se dá a par-ticipação dos funcionários em sua escola? Por exemplo, que poder de decisão a merendeira tem em relação ao cardápio? Muitas vezes constatamos que está implícita uma separação histórica em termos de hierarquia e autoridade. Assim, acabamos por decidir que é bas-tante difícil reunir os funcionários, que eles não se interessam em opinar sobre as questões do PPP, nem gostam de fazê-lo, que não têm tempo de participar das discussões por trabalharem apenas seis horas e que são, em sua maioria, desconhecidos dos próprios alunos.

No entanto, acreditamos que as coisas estejam mudando. Você co-nhece o curso técnico de formação para os funcionários da educação, o Profuncionário? É um curso que parte do princípio que o funcio-nário da escola pública é um cidadão, um educador e um profissional e que deve decerto participar da gestão da escola. O programa pre-tende incrementar pelo menos quatro identidades de funcionários de escolas com profissionalização em nível médio: técnicos em ad-ministração escolar, técnicos em multimeios didáticos, técnicos em alimentação escolar e técnicos em meio ambiente e manutenção de infraestrutura escolar. No caso de nossa merendeira, ela deixaria de ser simplesmente uma fazedora de merendas para tornar-se uma téc-nica em alimentação escolar, educadora profissional que domina os conhecimentos sobre a nutrição, para planejar, executar e avaliar o seu trabalho tanto como produtora dos cardápios, como educadora alimentar, integrada à proposta pedagógica da escola.

Em suma, as principais amarras cotidianas que parecem imobili-zar todos os segmentos na construção do PPP são: falta de tempo para reuniões, dificuldades devido à não participação de todos, sen-timentos de indignação e frustração perante as posturas da clientela atendida pela escola, impossibilidade de iniciativas que permitam

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um resgate histórico e a consequente percepção da identidade do trabalho escolar peculiar à realidade específica, profundos conflitos que deixam implícita uma não identificação com o próprio trabalho e com o dos colegas, distanciamento histórico ideologicamente man-tido em relação aos funcionários da escola que também constituem a comunidade escolar.

É fundamental, ainda, que cada pessoa se envolva na construção de sua escola e aquilate sua responsabilidade nesse processo. Muitas vezes ouvimos comentários do tipo: “nós queríamos construir o PPP, resgatar a história, participar, mudar as condições da escola, mas a secretaria de educação, os pais, o governo, a escola pública não per-mitem a ação”. Em outras palavras, todos esses sistemas aparecem nas falas como entidades autônomas, não havendo a percepção de que nós mesmos os compomos e os construímos tornando-nos profissio-nais dependentes da intervenção de outros e inconscientes de nossas possibilidades de autonomia e produção histórica. A desconstrução dessas ideologias é essencial, na medida em que propostas de trans-formação da realidade, seja no âmbito educacional ou em qualquer outro, somente são possíveis se nós nos percebermos como partes integrantes e ativas em nossos sistemas de ação cotidiana, o que so-mente ocorrerá se nos forem garantidas as condições necessárias ao nosso desenvolvimento.

Por isso, torna-se de fundamental importância a criação de um es-paço institucionalmente reconhecido de discussão permanente acer-ca do PPP. Cada escola constitui-se assim em uma instituição com objetivos próprios que agrega em torno de si uma comunidade hete-rogênea repleta de contradições. Essas contradições geram conflitos que marcam profundamente o processo educativo e requerem ações específicas de cada segmento que a compõe.

Nesse sentido, o PPP deve propor ações que visem à construção da escola como espaço de diálogo democrático e de educação e desen-volvimento de toda a sua comunidade.

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O PPP como compromisso cotidiano com o ato educativo

O termo educação pode ser entendido de diferentes maneiras. No entanto, podemos afirmar que dar uma definição para a educa-ção equivale a dizer para que serve. Acreditamos que este termo está intimamente relacionado à visão de humano, aos valores, ao que se compreende por desenvolvimento humano e ao que é útil para a so-ciedade em um determinado tempo de sua história. Além das dife-rentes ideias a respeito da educação, de sua essência e de seus fins, há também interesses econômicos e políticos que aí se projetam.

Ao longo da história da educação, podemos verificar que os edu-cadores sempre concebem a educação como um processo que visa ao desenvolvimento do ser humano, respeitando a personalidade de cada um, ou seja, desenvolvendo a autonomia do ser humano. Podemos di-zer, então, que o conceito de educação pressupõe um ideal a ser atingi-do. Porém, como não podemos dissociar esse conceito da sociedade na qual está inserido, acreditamos que são os sistemas sociais, políticos e econômicos que determinam os sistemas educativos.

Para assegurar os objetivos da educação em e para os direitos hu-manos, a educação deve ter como base a participação do indivíduo no movimento do progresso histórico e deve buscar fundamentar-se em pressupostos científicos, salientando o papel das relações e do trabalho social. É preciso perceber no cotidiano escolar seu potencial transfor-mador e questionador da sociedade e sua dimensão progressista. Cer-tamente não será a escola sozinha que irá construir todos os direitos humanos, porém encontram-se no interior da escola forças atuando para as transformações da própria escola e da sociedade. A formação do cidadão não pode – nem deve – ser de forma puramente espontâ-nea e absolutamente livre. De acordo com a visão social e histórica do homem, criticamos toda pedagogia que queira realizar um princípio de liberdade para formar um indivíduo em si, isolado dos demais.

A escola, como instituição da sociedade, deve ser analisada e es-tudada de forma contextualizada ao seu meio, à sua realidade, e sua

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função social deve ser permanentemente questionada. Isso significa dizer que cada teoria pedagógica traz consigo concepções sobre os objetivos e a função da educação. Essas concepções guiam toda a or-ganização da escola e dos processos de ensino-aprendizagem. Sendo assim, os diferentes segmentos devem ter a intenção de atuar sobre os objetivos da escola, buscando os fundamentos políticos, filosóficos e pedagógicos que embasam o PPP. Devem desenvolver um olhar críti-co sobre diferentes teorias pedagógicas para obter um entendimento mais aprofundado do contexto em que cada uma foi produzida. En-tender esse contexto é importante para perceber que nenhuma teoria pode ser considerada neutra, uma vez que cada uma é criada a partir da vida material de uma determinada realidade social, econômica e histórica. Sendo assim, as teorias pedagógicas estão extremamente relacionadas aos objetivos que uma certa sociedade (ou um segmento social) tem com a educação que pretende fundamentar.

Cada escola deve ser considerada como única e, dessa forma, de-manda um método que lhe seja específico e que só pode ser desenvol-vido no cotidiano, na relação com a escola. Entretanto, podemos re-unir algumas possíveis práticas que podem servir como guias e ideias, já que trazem os princípios que devem nortear o trabalho realizado mais responsável e comprometido com a sociedade, contribuindo para o fenômeno da educação constituir-se em objeto possível da ação humana transformadora.

É papel de todos os partícipes do processo denunciar o processo de produção social do fracasso escolar por conta de uma escola estática e preconceituosa que não busca incluir a diversidade e assumir um posi-cionamento político mais definido em relação à educação e aos conhe-cimentos construídos. É preciso superar a atitude imobilista diante das teorias e técnicas, adotando uma perspectiva crítica, para relacionar a prática e a teoria mais diretamente, e buscar, de forma dialética, uma maior consistência teórica e filosófica sempre reavaliando o compro-misso ético e social.

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Construção cotidiana do PPP como efetivação da democracia na escola e da qualidade da educação

Processos de comunicação e desenvolvimento humano

Vimos, na seção anterior, alguns desafios para a elaboração e a im-plementação do PPP coletivamente no cotidiano da escola. Entende-mos que nem sempre as relações e a qualidade da comunicação entre as pessoas favoreçam esse processo. Como estão as relações entre as pessoas que compõem a sua escola? Como estão as suas relações com os seus colegas, os estudantes e os familiares dos estudantes? Você vê possibilidades de estabelecer com eles um diálogo no sentido de promover maior participação na construção do PPP de sua escola?

Para alcançar o objetivo de compreender os fenômenos do contex-to escolar de maneira abrangente, é necessário dar atenção aos pro-cessos de comunicação entre os seus membros, pois é por esses pro-cessos que os indivíduos se desenvolvem, ao produzirem, revisitarem e compartilharem os significados da cultura.

Cada espaço escolar – de acordo com sua organização, seu pro-jeto político-pedagógico e seu público-alvo – oferece um contexto socioinstitucional como pano de fundo para o desenvolvimento dos processos de significação. A escola, interligada ao diálogo social, é atravessada pelas múltiplas vozes que a envolvem, por um conjunto de semelhanças e de contradições, por pontos de encontro e diver-gências, construídos em diferentes contextos e períodos históricos. Ela reflete os aspectos políticos, econômicos e ideológicos, uma vez que está dentro do conjunto das forças produtivas da sociedade.

A comunicação e os processos de significação tornam-se, assim, centrais para a compreensão do desenvolvimento humano e a ela-boração do PPP, compreendendo que sua construção a partir do esforço coletivo de todos os segmentos que participam do proces-so educativo é fundamental para o desenvolvimento dos elementos constitutivos da gestão democrática.

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Direitos humanos e o projeto político-pedagógico

Neste texto, partimos de uma concepção de desenvolvimento hu-mano que entende que é ao longo das interações das pessoas umas com as outras e com os objetos materiais que o ser humano se desenvol-ve (Vygotsky, 2000). Isso significa dizer que a cada dia, conforme nos relacionamos com as pessoas com as quais interagimos e utilizamos determinados objetos, da natureza ou manufaturados, que compõem o mundo, estamos nos desenvolvendo. Segundo essa concepção, cada sujeito participa ativamente de seu processo de desenvolvimento e de socialização, em contínua interação com os indivíduos e o contexto em que está inserido, por meio de processos de construção de significados.

Mas o que estamos entendendo por “construção de significados”? Em cada interação de nossa vida, partilhamos, construímos e recons-truímos significados. Todas as pessoas, todos os objetos e os elemen-tos do mundo ganham significado à medida que os relacionamos uns com os outros. Esses significados podem mudar ou permanecer os mesmos por muito tempo. Às vezes, um determinado objeto pode ter um significado diferente para cada pessoa. Por exemplo, uma bola, para uma criança pode significar diversão e prazer, um brinque-do; para um jogador de futebol profissional, trata-se de seu instru-mento de trabalho, acarretando alegrias e preocupações.

E o que isso tem a ver com o desenvolvimento humano? À medida que nos desenvolvemos, vamos aprendendo, transformando e retrans-formando esses significados. Voltando ao exemplo da bola, vamos pensar no significado que um bebê pode dar a ela até aprender a cha-má-la de “bola”. A cada interação que tem com a bola, vai aprenden-do suas formas, texturas e as possibilidades de brincadeiras. Depois aprende a escrever a palavra bola e a construir textos a partir desses significados aprendidos anteriormente. Em seguida, ele próprio pode tornar-se jogador de futebol profissional que constrói uma história marcante no mundo a partir dessa bola, que agora já ganhou novos significados. E foi nessa interação com esse objeto – e com tantos ou-tros e com tantas pessoas – que esse bebê se desenvolveu.

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A partir desse exemplo, é possível perceber como os seres humanos se desenvolvem à medida que agem ativamente sobre os significados com que se deparam nesses processos de comunicação, assimilando--os, negando-os e/ou reelaborando-os.

Dessa forma, as palavras, por apresentarem um significado, não são puras, estáticas. Elas são construídas historicamente pelas rela-ções sociais, por cada pessoa e por cada coletivo. Suscitam um sig-nificado compartilhado socialmente, mas é o indivíduo quem lhe atribui sentido. Além disso, os valores sociais, que são contraditó-rios em uma sociedade de classes, se revelam nas palavras. Assim, a língua que falamos é dinâmica, modificada pelos sujeitos que a uti-lizam, contextualizada em seu tempo e espaço, marcada pelos con-flitos dos grupos sociais que a utilizam e, portanto, em constante transformação.

Quando um sujeito fala, organiza-se, desenvolve-se, além de atuar de maneira ativa no processo de significação das palavras, dialetica-mente, também é cingido por essas mesmas palavras que enuncia. As pessoas constroem a sua história a partir das palavras ao mesmo tempo em que constroem as palavras e seus significados. O proces-so de comunicação e significação é fundamental para o desenvolvi-mento humano. A escola deve buscar explorar a comunicação entre todos os atores do contexto escolar, ficando atenta aos seus espaços de comunicação.

Como tem sido a comunicação em sua escola? Existem espaços de diálogo, como reuniões? Quem participa dessas reuniões? Todos têm direito à fala? Existe um jornalzinho de notícias sobre o que acontece na comunidade escolar?

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Direitos humanos e o projeto político-pedagógico

Comunicação na escola: conflitos como propulsores do desenvolvimento

Vimos que a comunicação não se dá de forma linear, uma vez que as pessoas trazem toda a sua história e o contexto de sua vivência para esse processo. Na escola não é diferente: os sujeitos (professoras, professores, estudantes, funcionários, funcionárias, familiares), com suas opiniões, idiossincrasias e histórias de vida, entram nesse espaço trazendo consigo uma série de expectativas e projetos quanto à edu-cação que ali se realiza. Essas pessoas podem, portanto, ter objetivos e desejos diferentes em relação ao que esperam que ocorra na escola. Cada pessoa interpreta, à sua maneira, as várias mensagens que cir-culam por esse espaço e age em relação a elas de acordo com os seus interesses e anseios.

Assim, vão surgindo os “ruídos” na comunicação, ou seja, os desen-tendimentos, os conflitos. Apesar de esses ruídos, frequentemente, terem um efeito desagregador nas comunidades, carregam consigo a possibilidade de mudança, pois desafiam as pessoas a questionarem suas posições e significações. Quando as pessoas discordam sobre uma determinada decisão a ser tomada, são levadas a refletir sobre as suas próprias decisões e se deparam, ainda, com a possibilidade de ouvir as ideias do outro. Nem sempre estão abertas a esse processo, mas ele acontece. Dessa forma, cada desacordo ou conflito represen-ta uma possibilidade de desenvolvimento em potencial. Vozes diver-gentes ganham expressividade no processo de significação e podem promover, portanto, a emergência criativa do novo. É papel de todos na escola trabalhar na mediação desses conflitos de maneira a com-preender como se deram os ruídos e buscar repensá-los junto com o grupo, trazendo à tona o seu potencial criativo e transformador.

Sendo assim, o diálogo aberto ao encontro das diferenças traz a oportunidade de difundir discursos minoritários; rever concepções arraigadas e estagnantes; relembrar a função e os objetivos específi-cos da escola; questionar relações de subjugação; enfim, levar os su-

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jeitos a uma constante reflexão sobre os seus objetivos e as suas ações no espaço da escola.

As contradições devem sempre ser evidenciadas e refletidas na co-letividade. Os conflitos devem ser valorizados como promotores do desenvolvimento, ao invés de escamoteados, escondidos, silenciados. O objetivo não é evitar esses conflitos, mas aproveitá-los no que tra-zem de riqueza e contribuição para o desenvolvimento de todos os sujeitos envolvidos.

É claro que valorizar os conflitos também evidencia a escola como campo de contradições. Muitas vezes, essas relações acolhedoras se transformam em grandes atritos. O debate democrático é sempre perpassado por falas passionais, e é visível como as relações interpes-soais afetam a tomada de decisão. Por isso, a construção democrática precisa ser feita no cotidiano sempre através da promoção de refle-xões a respeito dos conflitos que surgem.

Esse ideal de democracia como negociação, porém, não é constante-mente observado. O movimento dinâmico do desenvolvimento huma-no marca profundamente os debates. Há períodos em que alcançamos um consenso, mediante o diálogo e a negociação, com a construção de um espaço em que todos são respeitados em suas singularidades e suas contribuições são ouvidas a fim de se aproveitar a riqueza da cons-trução coletiva das decisões. Entretanto, as contradições presentes em uma sociedade excludente e individualista fazem parte desse contexto da mesma forma. Portanto, há também reuniões que podem ser mar-cadas por desavenças e o processo de construção coletiva de decisões acaba sendo transformado em luta de interesses pessoais.

O objetivo não é evitar esses conflitos, mas aproveitá-los no que possam trazer de riqueza para o desenvolvimento de todos os sujeitos envolvidos. Nos vários espaços de discussão, a intenção deve ser sem-pre propiciar um diálogo que propicie o direito de opinião a todos os participantes e que não se limite à construção da imposição de voto da maioria, mas sim o respeito ao direito de todos.

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Como você recebe os conflitos na sua escola? E na sala de aula? Como é a participação dos alunos em sala? Como eles se posicionam frente ao conteúdo que devem aprender?

Certa vez, acompanhamos um conflito desse tipo em uma escola de educação infantil. Um menino – vamos chamá-lo de João – levou para a escola uma boneca para poder brincar na hora do recreio e foi bastante caçoado pelos colegas. João chorou muito e foi recon-fortar-se com sua professora, Marina. Ao ver aquela cena, um dos professores disse:

— Melhor proibir os meninos de trazer bonecas para escola, senão vira uma confusão.

Mas Marina não ficou satisfeita com essa tentativa de silenciar aquele conflito e decidiu valorizá-lo: aproveitou para refletir, junto com as crianças, sobre se meninos podem ou não brincar de bonecas. E, juntos, perceberam a importância de meninos brincarem com bo-necas, aprendendo a cuidar das pessoas e desenvolvendo novos signi-ficados de masculinidade e paternidade. Essa foi, portanto, uma exce-lente oportunidade de repensar estereótipos que limitam as pessoas e, por vezes, legitimam violações de direitos. Foi ou não foi uma aula de direitos humanos e de relações mais democráticas?

Exemplos como esse demonstram que, para construir uma escola mais democrática e justa, é preciso trazer à tona todo o repertório de preconceitos e estereótipos que podem vir a marcar os processos de significação e as mensagens correntes nesse espaço. Nos vários espaços de discussão, a intenção deve ser sempre a de propiciar um diálogo que assegure o direito de voz a todos os participantes e que não haja apenas a construção da imposição de voto da maioria, e sim o respeito ao direito de todos. Democracia não precisa ser apenas exercida pelo voto e pela aplicação do desejo da maioria. Ela deve ser, antes, garantia de direitos.

O diálogo que visa promover a negociação dos interesses dos vá-rios atores deve ser buscado, a fim de promover um espaço demo-

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crático e, assim, realmente educativo. A negociação permite a troca de conhecimentos e significados construídos nas interações entre os indivíduos que deve se refletir nas relações dentro da sala de aula.

A construção coletiva do PPP no cotidiano da escola: educação democrática e de qualidade

Ao longo deste texto, reafirmamos a necessidade da construção coletiva do PPP no cotidiano da escola por todas as pessoas que dela participam, para a efetivação de uma educação democrática e de qua-lidade. Enfatizamos o conceito de democracia como a participação de todos os sujeitos implicados e a garantia de voz pela constituição de espaços de diálogo. Afirmamos que o essencial não é o voto, ou seja, a sondagem do desejo da maioria e posterior imposição desse desejo à minoria, mas sim a negociação pela escuta, pelo acolhimento e pelo reconhecimento do outro e de suas diferenças, a construção de práticas e de decisões.

Ressaltamos ainda que a socialização, enquanto construção de sig-nificados socialmente difundidos, e a comunicação, como principal ferramenta humana de interação com o mundo, tornam-se funda-mentais para a compreensão e a constituição de relações democrá-ticas. Assim, cada sujeito é valorizado em sua singularidade e em sua história. Vai-se criando uma comunidade que se conhece, no âmbito da qual são estabelecidas as relações e também os conflitos nos deba-tes travados em diferentes instâncias de participação. É pelo diálogo, pela negociação cotidiana, que as decisões vão sendo tomadas e assim acontece a gestão escolar com a participação de todos os sujeitos, in-clusive na sala de aula.

Falar em construção coletiva do PPP no cotidiano da escola sig-nifica que, mais do que um documento, ele representa todas as rela-ções, trocas e atividades realizadas na escola. O PPP é constantemen-te construído e implementado a cada interação educador-educando, a cada conversa de corredor entre colegas de trabalho e a cada pano

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Direitos humanos e o projeto político-pedagógico

que é passado no chão da escola por um funcionário da limpeza. To-dos esses são momentos educativos em que as pessoas que compõem a escola estão concretizando como parte importante de seu projeto.

A escola deve fazer com que todos – e principalmente os alunos – sejam vistos como pessoas que têm suas opiniões e contribuições para o cotidiano escolar. Essa é uma prática baseada na concepção de coerência que se tem – e que é aqui defendida – da necessidade de coerência entre os processos político e pedagógico. Uma escola não pode se considerar participativa nem democrática se essas caracte-rísticas não forem vistas como objetivos em todos os âmbitos e por todos os atores do contexto escolar.

Democracia na escola é acolher os conhecimentos e as experiên-cias dos estudantes como parte central da prática pedagógica, assim como os conhecimentos técnico-científicos organizados pelo profes-sor, com auxílio de seus colegas de equipe pedagógica, no planeja-mento da aula. Democracia na escola é estabelecer relações trabalhis-tas de respeito e comprometimento, relações horizontais, pelas quais todos exercem seus direitos e deveres com responsabilidade e liber-dade. Democracia na escola é valorizar o trabalho de cada servidor da escola, seja ele docente, gestor ou da equipe de apoio, e compreender que todos estão cumprindo uma função educativa ao mesmo tempo em que aprendem uns com os outros. Democracia na escola é cui-dar da infraestrutura e dos materiais utilizados, reafirmando o com-promisso com um mundo mais sustentável e acessível para todas as pessoas. Todas essas assertivas são exemplos de realização diária da construção coletiva do PPP da escola, do reconhecimento de que to-dos os sujeitos estão em desenvolvimento e de que uma educação de qualidade só se realiza pela valorização de todo esse processo como fundamental para a constituição de um espaço verdadeiramente edu-cativo (Chagas & Pedroza, 2013).

A educação para a cidadania não pode estar só no projeto, ou nos livros, nem pode ser feita de objetivos impostos aos alunos (Gadotti,

Regina Lúcia Sucupira Pedroza & Julia Chamusca Chagas

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1997). Não é pela imposição que conseguiremos fazer valer as leis. Muitas ações em sala de aula são impostas sem questionamentos, e isso ocorre porque naturalizamos que os adultos, os mais velhos, é que decidem. Na maioria das vezes, isso se manifesta em autorita-rismo que acaba por ensinar a submissão do aluno ao professor, do professor às autoridades, ou seja, ao mais forte. A escola deve ser o lugar da construção do respeito recíproco em busca da introdução dos princípios dos direitos e das regras construídas nas interações entre os indivíduos envolvidos.

Os professores e as professoras precisam ser valorizados e estar sempre em formação. É necessário um comprometimento, junto aos demais sujeitos da escola, de criação dos espaços de reunião na escola por meio do diálogo. Essa formação continuada envolve, portanto, colocar-se disponível para aprender a partir dessa organização de-mocrática, respeitando o direito de participação de todos, indepen-dentemente de suas funções ou qualificações. Entretanto, isso não significa que todos participem de maneira igual. É necessário sem-pre pensar as peculiaridades de cada pessoa e a sua função enquanto segmento da comunidade. Dessa forma, a direção deve assumir um papel de liderança, buscando, assim como o professor em sala de aula com os seus alunos, uma organização do ambiente que promova o de-senvolvimento de todos para uma melhoria da qualidade do ensino. O ideal de democracia participativa precisa ser sempre reafirmado, ressignificado e reinventado nas relações entre os indivíduos.

Para a construção do PPP, não existe um manual com regras pre-determinadas de convivência entre todos os segmentos da escola. Ele será construído no cotidiano da sala de aula, pelo grupo, a partir dos conflitos de interesses, sempre em processo de avaliação que permita a mudança.

A construção de regras que fazem sentido para os cidadãos é fun-damental para a democracia. Em nossa sociedade, somos acostu-mados a delegar o nosso poder decisório a um representante e não

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Direitos humanos e o projeto político-pedagógico

participar de sua organização. Muitas vezes, recebemos as regras na forma de leis que nos são impostas. Os sujeitos, no contexto escolar, devem desde cedo participar de um processo chamado por Vera Ma-ria Candau (2008) de empoderamento. A partir da prática e vivência de uma experiência de democracia participativa, esses sujeitos podem perceber o seu poder de decisão em outros âmbitos da sociedade e desencadear uma efetiva transformação social. Essa é realmente uma educação para a cidadania, que forma indivíduos capazes de realizar uma leitura crítica das organizações sociais, aptos para agir de forma a exigir os seus direitos e a respeitar os direitos de seus pares, compro-metidos com os seus deveres, reconhecendo e respeitando o outro em sua singularidade, com vistas a promover a construção de uma coletividade mais justa para todos (Silveira et alii, 2007).

A discussão de uma educação em e para os direitos humanos deve destacar a necessidade da mobilização da sociedade para a implemen-tação, de fato, de gestões democráticas nas escolas públicas brasilei-ras. É preciso superar o modelo neoliberal de gestão “democrática” que tem por objetivo diminuir a responsabilidade do Estado, buscan-do reduzir seus investimentos e/ou reparti-los com a iniciativa priva-da, o que limita a real autonomia das escolas por meio da ampliação da regulação, do controle e da avaliação (Fonseca, 2003).

Podemos finalizar resumindo alguns dos objetivos deste texto no incentivo à elaboração do PPP como um todo, quais sejam: discutir a importância da elaboração do PPP com os professores para que, com os demais educadores da escola e com a comunidade escolar, se possa efetivamente organizar o espaço escolar democrático e de qualidade; incentivar a análise da realidade da escola, a fim de estabelecer sua identidade; fomentar a elaboração de metas para escola, bem como sua função e finalidade; auxiliar na elaboração do PPP, considerando a identidade da escola e os meios necessários ao alcance das metas propostas; mostrar a importância de planejar com a escola a implan-tação do PPP; acompanhar periodicamente a inserção do PPP na

Regina Lúcia Sucupira Pedroza & Julia Chamusca Chagas

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prática cotidiana da escola e sua constante reformulação nas relações entre as pessoas; rever com a escola a adequação do PPP às novas rea-lidades que venham a surgir ao longo do tempo; construir um PPP levando em consideração a educação para os direitos humanos.

O nosso desejo é que este texto, junto com os outros desta cole-ção, possa contribuir de alguma forma para a construção do PPP, a partir da formação de novas relações entre os professores e os demais sujeitos que formam todos os segmentos da escola, visando sempre à construção de uma escola mais democrática e voltada para a educa-ção dos direitos humanos.

Referências

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———— . Ministério da Educação. Comitê Nacional de Educação em Di-reitos Humanos. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Plano Nacio-nal de Educação em Direitos Humanos. Brasília: MEC, 2006.

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Direitos humanos e o projeto político-pedagógico

Fonseca, M. Projeto Político Pedagógico e o Plano de Desenvolvimento da Escola: duas concepções antagônicas de gestão escolar. Cadernos Cedes, v. 23, p. 302-318, 2003.

Freire, P. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho d’Água, 2000.

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Silveira, R. M. G.; Dias, A. A.; Ferreira, L. F. G.; Feitosa, M. L. P. A. M.; Zenaide, M. N. T. Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007.

Veiga, I. P. A. Inovações e projeto político-pedagógico: uma relação regu-latória ou emancipatória? Cadernos Cedes, v. 23, n. 61, p. 267-281, 2003.

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Vygotsky, L. S. Obras escogidas, vol. 3. Madrid: Visor, 2000 [1931].

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Direitos humanos e a produção de materiais didáticos

Direitos humanose a produção de materiais didáticos

Larissa Medeiros Marinho dos Santos &Gabriela Sousa de Melo Mieto

Situando o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)

N esta primeira unidade discutiremos o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), sua contextualização histó-rica, as questões legais e suas implicações práticas para a

conscientização quanto à diversidade humana.A legislação brasileira garante a educação básica para todos os ci-

dadãos dos quatro aos dezessete anos (Brasil, 1988, art. 208, § 1) e dispõe que é papel do governo federal zelar por essa educação. Foi para assegurar essa garantia que foi criado, como política pública, o Programa Nacional do Livro Didático (PNL). Segundo as suas dire-trizes, esse programa se refere à garantia de livros didáticos para os alunos matriculados nos anos iniciais do ensino básico.

O programa – que atualmente é executado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) –, é responsável pela se-leção, contratação e distribuição dos livros didáticos para os alunos das escolas públicas. Uma das principais etapas do programa, objeto principal deste texto, é a escolha do livro por parte do professor. O

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Larissa Medeiros Marinho dos Santos & Gabriela Sousa de Melo Mieto

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PNLD é o programa a partir do qual são selecionados trienalmente os livros que serão enviados para as escolas da rede pública de ensino, seja para a escola básica, para a educação de jovens e adultos, para a educação do campo, ou mesmo em relação a material complementar.

Para uma melhor compreensão, perguntamos se você, como pro-fessor, já teve a oportunidade de acessar as páginas relacionadas ao Programa Nacional do Livro Didático?1

Nesses sites, você tem acesso às orientações sobre o programa, à Resolução 2009 PNLA, aos guias de orientação, às orientações para a escolha do livro e ao termo de concessão. Além desses documentos, vocês também têm acesso à história do programa, a estatísticas e a descrição de sua forma de funcionamento.

Cabe destacar a afirmação de Franco (1992) a lembrar-nos que a preocupação do governo com os livros didáticos teve início com a legislação do livro didático, de 1938. O autor observa que, nesse pe-ríodo, o livro já era considerado instrumento político e ideológico e o Estado entrava como regulador e censor do uso desse instrumento.

Em termos históricos, o PNLD é considerado “o mais antigo dos programas voltados à distribuição de obras didáticas aos estudantes da rede pública de ensino brasileira e iniciou-se, com outra denomi-nação, em 1929” (Brasil, 2015). De acordo com esses dados, são 86 anos de história e distribuição de livros para as classes de alfabetiza-ção da educação infantil e para o ensino fundamental público.

Duas informações merecem destaque em relação a este pequeno histórico do programa. A primeira é que em 2001 o PNLD “amplia, de forma gradativa, o atendimento aos alunos com deficiência visual que estão nas salas de aula do ensino regular das escolas públicas,

1 Ver:<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view= article&id=12637%3Aguias-do-programa-nacional-do-livro-didatico&ca-tid=195%3Aseb-educacao-basica&Itemid=1152>. <http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico>.

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Direitos humanos e a produção de materiais didáticos

com livros didáticos em braile” (Brasil, 2015). A segunda é que, em 2004, a partir da Resolução n.o 40, de 24 de agosto de 2004, foi ins-tituído o atendimento

[...] aos alunos portadores de necessidades especiais das escolas de educação especial públicas, comunitárias e filantrópicas, defi-nidas no censo escolar, com livros didáticos de língua portugue-sa, matemática, ciências, história, geografia e dicionários (Brasil, 2004, art. 1).

Essas iniciativas refletem uma preocupação com a inclusão esco-lar de crianças com necessidades especiais, fenômeno iniciado no Brasil na década de 1990 (Miranda, 2003). A distribuição de livros em braile, ocorrida em 2001, ao se observar o histórico da educação especial no Brasil, pode ser considerada como um avanço neste senti-do. Segundo Eliane Henriques e Ricardo Cavalleiro, o Ministério da Educação (MEC) tem caminhado no sentido da inclusão e do respei-to aos princípios de direitos humanos.

O MEC, na década de 1990, incorporou, ainda que de maneira incipiente, a temática étnico-racial nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), mais especificamente no tema transversal Pluralidade Cultural. Os PCNs representaram à época uma ten-tativa de evidenciar as diferenças culturais e raciais, com a pers-pectiva de integrá-las ao currículo, dialogando com as antigas reivindicações dos movimentos negros (Henriques & Cavalleiro, 2005: 213).

O PNLD e o Programa do Livro para o Ensino Médio (PNLEM) funcionam de acordo com a descrição apresentada no Quadro 1.

Para evidenciarmos a questão da diversidade no planejamento go-vernamental, observemos o item 13, denominado “ampliação”, que tem como principal objetivo “contribuir para a melhoria da qualida-de do ensino, a construção da cidadania e o desenvolvimento intelec-tual e cultural dos estudantes”. Neste item, vemos uma preocupação com o atendimento a crianças com necessidades especiais, parte da diversidade presente nas escolas. O atendimento a essas crianças é di-

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Quadro 1 Descrição do funcionamento do PNLD e do PNLEM

Atividade Descrição

1. Inscrição das editorasLançamento de edital que estabelece as regras para a inscrição do livro didático e determina o prazo para a apresentação das obras pelas empresas detentoras de direitos autorais.

2. Triagem/avaliação

É realizada uma triagem pelo Instituto de Pesquisas Tecno-lógicas do Estado de São Paulo (IPT) que verifica se as obras se enquadram nas exigências técnicas do edital. Os livros se-lecionados são encaminhados à Secretaria de Educação Bá-sica (SEB/MEC) que escolhe os especialistas para analisar pedagogicamente as obras, conforme critérios divulgados no edital. Estes elaboram as resenhas dos livros aprovados para o guia de livros didáticos.

3. Guia do livroO FNDE publica o guia do livro didático em seu site na internet e o envia impresso às escolas cadastradas no censo escolar.

4. EscolhaProcesso democrático de escolha, com base no guia do livro didático. Diretores e professores analisam e escolhem as obras que serão utilizadas.

5. Pedido

O professor possui duas alternativas para escolher os livros didáticos: 1. pela internet, a partir de senha previamente en-viada pelo FNDE às escolas; 2. pelo formulário impresso en-viado às escolas pelo FNDE junto ao guia do livro didático, remetido pelos correios.

6. Aquisição

Após a compilação dos dados dos formulários impressos e dos pedidos feitos pela internet, o FNDE inicia o processo de ne-gociação com as editoras, tendo em vista que as escolhas dos livros são efetivadas pelos professores.

7. Produção

Concluída a negociação, o FNDE firma o contrato e informa os quantitativos e as localidades de entrega para as editoras, que dão início à produção dos livros, com supervisão dos téc-nicos do FNDE.

8. Qualidade física

O FNDE tem parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnoló-gicas (IPT) que é responsável pela coleta de amostras e pelas análises das características físicas dos livros, de acordo com especificações da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), normas ISO e manuais de procedimentos de ensaio pré-elaborados.

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Direitos humanos e a produção de materiais didáticos

Atividade Descrição

9. Período de utilização

Cada aluno tem direito a um exemplar das disciplinas de lín-gua portuguesa, matemática, ciências, história e geografia, que serão estudadas durante o ano letivo. O livro deve ser reu-tilizado, por três anos consecutivos, beneficiando mais de um estudante nos anos subsequentes, exceção feita à cartilha de alfabetização e aos livros de primeira série.

10. Alternância

Para a manutenção da uniformidade da alocação de recursos do FNDE com o programa – evitando grandes oscilações a cada ano – e em face do prazo de três anos de utilização dos livros, as compras integrais para alunos de segunda à quarta e de quinta à oitava série ocorrem em exercícios alternados. Nos intervalos das compras integrais, são feitas reposições, por extravios ou perdas, e complementações, por acréscimo de matrículas. Já os livros da primeira série são adquiridos anualmente.

11. DistribuiçãoA distribuição dos livros é feita diretamente pelas editoras às escolas. Essa etapa do PNLD conta com o acompanhamento de técnicos do FNDE e das secretarias estaduais de educação.

12. RecebimentoOs livros chegam às escolas entre outubro e o início do ano letivo. Nas zonas rurais, as obras são entregues na sede das prefeituras ou das secretarias municipais de educação.

13. Ampliação

O FNDE ampliou sua área de atuação e passou a distribuir, além dos livros didáticos para o ensino fundamental, também para o ensino médio, dicionários de língua portuguesa e obras em braile.

Fonte: Quadro elaborado com trechos referentes ao funcionamento do PNLD descrito no Portal do MEC. Texto parcialmente reduzido pelas autoras (http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&i-d=12391&Itemid=668)

rigido àquelas que estão nas salas de aula do ensino regular das esco-las públicas e a implantação está ocorrendo de forma gradativa desde 2001, tendo iniciado com os livros em braile.

Contudo, se considerarmos a forma como os livros são seleciona-dos a partir da triagem (item 2), do acesso dos professores ao guia do livro didático (item 3) e, finalmente, da escolha (item 4), percebemos que, apesar de a proposta responsabilizar os professores pela escolha do livro, sobra pouco espaço para uma análise mais aprofundada de seu conteúdo escrito e das imagens presentes nos textos. Para uma melhor análise do tema, devemos levar em conta a descrição do MEC do perfil dos avaliadores que participam do processo de triagem:

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q ser professor ligado ao ensino e à pesquisa, na área do conheci-mento de sua atuação;qter conhecimento comprovado da realidade do ensino funda-mental e da rede pública de ensino;q ter experiência em pesquisa e elaboração de trabalho científico;q ter formação acadêmica na área do conhecimento em que pre-tende atuar como avaliador, preferencialmente em nível de mes-trado ou doutorado;q ter experiência comprovada em atividades de avaliação de ma-terial didático;q demonstrar capacidade para produzir textos adequados, claros e coerentes;q possuir conhecimento e experiência em relação a metodologias de ensino-aprendizagem do componente curricular das obras em avaliação;q ter experiência bem-sucedida em trabalhos que exijam entrosa-mento de equipe;q ser assíduo e cumpridor dos prazos estabelecidos no cronogra-ma;q não ter prestado serviços às editoras ou empresas ligadas ao se-tor de materiais didáticos e pedagógicos nos dois últimos anos (Brasil, MEC, 2010).

Esses professores escrevem resenhas que serão a base para a seleção dos livros nas escolas. Essas resenhas são compostas por:

q descrições da coleção ou do livro, com base em pressupostos teó-ricos e metodológicos, tais como o tratamento didático dado ao conteúdo;

q avaliação de qualidade dos livros ou coleções baseada nos princí-pios e critérios da área específica;

q informações sobre os critérios que incluíram determinada cole-ção ou livro no guia didático; e, finalmente;

q informações relacionadas à aplicabilidade ou organização da co-leção ou do livro no trabalho em sala de aula.

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Direitos humanos e a produção de materiais didáticos

Os livros avaliados pela equipe de especialistas convidados pelo PNLD recebem uma classificação de acordo com os itens abaixo:

q recomendados com distinção;

q recomendados;

q recomendados com ressalvas;

q não recomendados/excluídos.

Segundo as orientações fornecidas pelo MEC, avaliar o livro sig-nifica perguntar se:

q a seleção de conteúdos está em conformidade;

q o tratamento desse conteúdo é adequado para o aluno e para o currículo;

q a sequência do conteúdo está de acordo com a progressão de aprendizagem proposta pela escola;

qos exercícios e as atividades apresentados ajudam o aluno a en-tender o texto;

qa linguagem é clara e precisa; e

q o livro do professor é adequado para orientar o uso do material.

Além disso, ao longo da história foram incluídos, entre os critérios de avaliação dos livros didáticos distribuídos por meio do PNLD, alguns específicos a questões raciais e preconceitos de origem, raça e cor. Por exemplo, nos PNLD de 1997 e 1998, há orientação que esta-belece: “os livros não podem expressar preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Brasil, 2000). Mais recentemente, nos PNLD de 1999 e 2000 essa formula-ção foi alterada e passou-se a utilizar os termos de origem, cor e etnia.

Com essas mudanças nas orientações para a seleção dos livros di-dáticos, podemos afirmar que os critérios para a avaliação das repre-sentações raciais elaborados pelo PNLD variaram nos últimos anos tornando-se cada vez mais condizentes com a Constituição (Brasil,

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1988). Nossa Lei Maior versa sobre a igualdade de direitos e não discriminação, a partir dos princípios fundamentais, incluindo o da isonomia (art. 1o), que garante o direito à cidadania e à dignidade da pessoa humana (§§ II e III).

Assim, pode-se afirmar que a proposta presente no PNLD visa contribuir para a construção da cidadania e da ética necessárias ao convívio social. Isso indica que o livro didático não deve veicular pre-conceitos de origem, cor, condição socioeconômica, etnia, gênero, dentre outros. Mas, como nos lembra José Ricardo Fernandes ao falar da história e da diversidade cultural brasileira,

[...] apesar desse fato incontestável de que somos, em virtude de nossa formação histórico-social, uma nação multirracial e plu-riétnica, de notável diversidade cultural, a escola brasileira ainda não aprendeu a conviver com essa realidade e, por conseguinte, não sabe trabalhar com as crianças e os jovens dos estratos so-ciais mais pobres, constituídos, na sua grande maioria, de negros e mestiços (Fernandes, 2005: 379).

Mas a escola precisa aprender a conviver com todos em suas igual-dades e desigualdades. Segundo Fúlvia Rosemberg, Chirley Bazilli e Paulo Vinícius Baptista da Silva (2003), há a necessidade de inclu-são de critérios para a seleção dos livros, tais como a questão do pre-conceito étnico-racial, que deve sempre estar presente na avaliação dos livros didáticos. Os autores consideram que esse fato problema-tiza o mito da democracia racial e deixa autores e equipe de seleção atentos a esses fatores e ao impacto que poderão causar no momento da seleção.

Outro critério a ser considerado na análise é o de gênero e respei-to à diversidade sexual. Em uma cultura democrática, que valorize a diversidade e a dignidade da pessoa humana, a convivência com a diversidade sexual é essencial. Contudo, Roger R. Rios e Wederson R. dos Santos (2008) citam que nos livros didáticos existe uma pre-dominância do silêncio sobre essa questão e sobre a naturalização da

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Direitos humanos e a produção de materiais didáticos

heterossexualidade. O que é confirmado por Rosana M. de Oliveira e Débora Diniz (2014), que investigaram materiais distribuídos em programas do MEC e representam epistemologicamente uma he-teronorma. As autoras lembram que os livros didáticos atuam – ou deveriam atuar – “na produção de um horizonte de vida e inclusão” (Oliveira & Diniz, 2014: 252), mas, na lógica apresentada, contri-buem para a heterogenia e a exclusão.

Roger R. Rios e Wederson R. dos Santos (2008) procuram anali-sar em seu artigo como a questão da diversidade sexual é considerada no PNLD. Os autores indicam duas tendências, uma composta pelas demandas em defesa da diversidade sexual e uma análise das políticas públicas, em geral, e outra a expressar o que de fato ocorre no Pro-grama Nacional do Livro. Em sua análise, os autores indicam que o silêncio encontrado nos livros didáticos é um reflexo do silêncio adotado na legislação do PNLD.

Os autores apontam um dado interessante em relação aos editais abertos para as editoras para a submissão de livros para o PNLD.

Segundo critérios definidos nos editais destinados às editoras para a confecção dos livros para o PNLD, os conteúdos devem contemplar os seguintes princípios éticos e de cidadania, além daqueles sinalizados na Constituição e em toda a legislação que dá suporte ao programa: promover positivamente a imagem da mulher; abordar a temática de gênero, visando à construção de uma sociedade não sexista, justa e igualitária; contribuir para uma ética plural e democrática, com representação da diversida-de de gênero; e não apresentar estereótipos ou atitudes precon-ceituosas de qualquer espécie (Rios & Santos, 2008: 335-336).

A orientação é bastante genérica e tem o efeito de minimizar a diversidade de preconceitos contra as mulheres, as questões de etnia, a deficiência e as minorias. Contudo, apesar dessas orientações, per-manece o silêncio que predomina em relação à diversidade sexual. Os autores afirmam que esse fator pode ter repercussão nas políticas públicas em favor da diversidade sexual.

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Apesar da legislação e das iniciativas direcionadas, a aceitação da diversidade humana, o fenômeno da inclusão, da construção e do res-peito à cidadania e à dignidade humana, como discutimos anterior-mente, evidenciam variações que vão da impressão de livros com sím-bolos inadequados ao preconceito expresso. Por exemplo, os livros em braile e a distribuição de livros para pessoas com necessidades especiais significam acesso, entretanto o que podemos dizer sobre o conteúdo? O conteúdo também está de acordo com os princípios da inclusão e da diminuição dos preconceitos?

A seleção de uma imagem/fotografia para um livro didático tem implicações significativas. A forma como o texto é escrito, a lingua-gem utilizada, as referências a fatos e a pessoas podem estar carre-gadas de preconceitos ou de diversidade. Nesse sentido, é essencial que a seleção dos livros seja realizada com cuidado, pois convivemos com milhares de livros didáticos publicados em nosso país nas mais diversas unidades curriculares. Mesmo havendo uma pré-seleção do Ministério da Educação, realizada por professores especialistas nas respectivas áreas, a responsabilidade da escolha do livro didático é compartilhada com o corpo docente das escolas.

O PNLD tem por princípio a participação ativa e democrática dos professores das escolas da rede pública no processo de seleção do livro didático. Nesse sentido é importante que o docente consiga trabalhar em equipe e possua não apenas os saberes necessários à dis-ciplina, mas esteja ciente dos critérios necessários para a seleção de um bom material didático.

O material deve ser analisado criticamente quanto ao conteúdo e à forma, mas também deve ser considerada a ideologia apresentada no livro, fator que inclui uma análise profunda a partir da questão dos direitos humanos, do respeito à cidadania e à diversidade. Como instrumento ideológico, os livros didáticos envolvem uma série de mensagens explícitas e implícitas em seu conteúdo. Por exemplo, um texto, uma imagem representando pessoas, grupos específicos,

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Direitos humanos e a produção de materiais didáticos

tratando da questão da empregabilidade ou do índice de escolari-dade podem, mesmo que o autor não tenha consciência desse fato, representar uma mensagem subliminar de preconceito ou violência.

São sete os direitos humanos considerados universais:

1. o direito à vida,

2. o direito de não ser submetido à escravidão,

3. o direito à segurança,

4. o direito de ter uma existência livre de fome,

5. o direito de proteção em relação às arbitrariedades,

6. o direito à liberdade de expressão; e, é claro,

7. o direito a igualdade.

Esses direitos têm como objetivo a proteção do ser humano para a garantia do seu desenvolvimento enquanto pessoa e à sua proteção, fatores que devem ser discutidos na escolha do material a ser utiliza-do na educação.

Para a análise e a aplicação desses direitos, é essencial que possamos nos reconhecer como seres humanos. É necessário compreendermos o que significa o respeito à pessoa humana e, para tanto, é importante que possamos refletir sobre o eu, o outro e as nossas relações – tema que vamos aprofundar na próxima unidade.

Sinopse dos aspectos abordados

Nesta unidade, apresentamos o PNLD de acordo com suas dire-trizes, a forma e os critérios de seleção dos livros didáticos utilizados na rede pública de ensino. Relatamos as principais características do programa e discutimos como tem sido abordada a questão dos direi-tos humanos nesta política pública.

Além dos critérios objetivos e das características práticas do PNLD, abordamos a importância de considerarmos os princípios básicos de direitos humanos na seleção do material. Apontamos o quanto é importante a participação ativa dos educadores no mo-

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mento da escolha dos livros para a garantia da igualdade e da iso-nomia, entendendo o princípio da isonomia como reconhecimento jurídico e constitucional (art. 5) de que todos “são iguais perante a lei”, mas considerando a igualdade de tratamento com as mesmas oportunidades para todos, mesmo para aqueles com condições di-ferenciadas. Tratamento com condições adaptadas para todos, in-cluindo os livros didáticos.

A dimensão e as imagens do outro e do eu nos materiais didáticos

Nesta unidade, para melhor compreendermos toda a discussão dos direitos humanos e sua relação com a produção de materiais didáti-cos, buscaremos entender a dimensão do outro e do eu nas relações interpessoais.

Para iniciar:

Reflita por uns minutos sobre a imagem que você tem de si:Quem você é? Qual a sua aparência? Do que você gosta?Reflita, agora, sobre as pessoas ao seu redor:Quem são essas pessoas? Como você as descreveria fisicamente? Do que gostam?

Experimente escrever sobre as suas características e sobre as pes-soas com as quais convive. Isso poderá permitir que você identifique as diferenças e as semelhanças existentes entre vocês. Essas percep-ções são essenciais para o nosso estudo, assim fique atento a essas descobertas ao longo deste módulo, pois estaremos tratando o tempo todo das imagens do outro e do eu e das implicações dessa visão em nossa prática pedagógica.

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A construção do eu e do outro

As questões relacionadas à construção do eu e do outro ocupam lugar de destaque nos estudos da psicologia, particularmente na área da psicologia do desenvolvimento humano.

Para iniciar essa discussão, buscaremos compreender o processo de desenvolvimento e de diferenciação do eu e do outro. Para tanto, iremos nos basear nos estudos desenvolvidos por Henri Wallon e por Lev Vygotsky, que demonstraram como a diferenciação entre o eu e o outro é necessária ao nosso desenvolvimento, e como outro é essen-cial nesse processo.

Henri Wallon (1879-1962), psicólogo francês que nasceu e viveu em Paris, descreveu as etapas do desenvolvimento desde a vida intrau-terina, buscando compreender o processo como um todo, do passado ao presente e futuro. O principal conceito discutido por Wallon é o de emoção que pode ser compreendida como manifestação afetiva. As emoções, segundo o autor, são sempre acompanhadas de altera-ções orgânicas, que vivenciamos desde a mais tenra infância.

Em realidade, essas emoções podem ser consideradas a chave para o nosso desenvolvimento e para a nossa sobrevivência nas fases ini-ciais. Para o autor, a emoção no princípio de nossa vida é desperta-da por nossas sensações físicas, e sua manifestação permite ao ou-tro compreender que precisamos de algo. Choramos quando temos fome, quando estamos desconfortáveis ou com dor e, bebês, somos atendidos pelo outro nessas necessidades. Segundo o autor, com a aquisição da linguagem, diversificam-se os motivos e recursos para expressão do afeto. A afetividade vai adquirindo relativa indepen-dência dos fatores corporais.

De acordo com a teoria walloniana, o outro é essencial para a cons-trução do eu. Quando o impacto de nossa emoção no outro é o que nos permite sobreviver, mesmo que inicialmente não consigamos diferenciar o eu do outro, construímos pelo processo de oposição.

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Reconhecemo-nos no outro ou dele nos diferenciamos. A criança inicialmente vive a crise de oposição e o outro se torna instrumento de reconhecimento de si mesma.

Lev Vygotsky, nascido em Orsha, na Bielorrússia e falecido aos 37 anos em Moscou, estudou medicina e história e realizou estudos so-bre arte, literatura e sobre o desenvolvimento humano. Ele nos traz uma contribuição interessante no contexto dos direitos humanos. Isso se deve ao fato de sua teoria ser desenvolvida com uma base só-cio-histórica e cultural que inclui a presença do outro social no pro-cesso de desenvolvimento.

O autor considera, assim como Wallon (1942), que o processo de desenvolvimento da criança se dá na relação com outros seres, seus pais, familiares, pares e professores. No caso de Vygotsky, podemos observar que o desenvolvimento do eu ocorre, não por oposição, mas pela aquisição de símbolos e signos culturalmente construídos, cujo aprendizado é mediado pelo outro.

Vygotsky (1996) descreveu o papel do ambiente social no desen-volvimento infantil por meio do conceito zona de desenvolvimento proximal (ZPD). Para o autor (1998), existe um nível de desenvolvi-mento real e um nível de desenvolvimento potencial. O desenvolvi-mento real provém do ciclo de desenvolvimento já completo, ou seja, aquele que a criança consegue realizar sozinha. O desenvolvimento potencial indica que o processo está em andamento, é o que a criança consegue operar com ajuda. A ZPD é a distância entre esses dois ní-veis de desenvolvimento, criada na interação entre a criança e o agen-te social mediador da aprendizagem. À medida que a criança começa a desenvolver suas habilidades e o desenvolvimento se torna real, a ZPD se amplia de modo a regular e a incluir tarefas mais difíceis.

Nesse sentido, o outro é fundamental para o desenvolvimento do eu, sendo importante para compreender o desenvolvimento infan-til a partir da relação entre a criança e o seu ambiente. O ambiente da criança muda, a criança também muda e, a cada idade, significa e

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ressignifica o ambiente de maneira diversa. Vygotsky (1996) destaca a visão dinâmica do processo de desenvolvimento e de construção dos significados, desde a maneira como a criança significa sua relação com o ambiente social, até a maneira como constrói significados em inter-relação com os outros e com a cultura.

Todos esses fatores são importantes para a discussão dos direitos humanos, pois primeiro devemos reconhecer que, como seres huma-nos, precisamos do outro para nos desenvolver e que esse desenvolvi-mento se dá no nosso ambiente sócio-histórico e cultural.

É com o outro que aprendemos os significados, os símbolos e os signos da nossa cultura. Além disso, é a partir do outro que nos di-ferenciamos e que construímos o nosso eu. Tal como afirma Erick Erikson (1972), na infância, é pela presença e pela oposição ao outro que desenvolvemos nossa autonomia e, na adolescência, é por oposi-ção ao outro que formamos nossa identidade e nos definimos como pessoa. Essas definições são consideradas tarefas centrais para que nos tornemos adultos.

O processo de construção do eu e do outro se desenvolve ao longo de nosso ciclo de vida. Nossa história se constrói a partir da história de nosso grupo social e da cultura nele vivenciada. Enfim, como já foi afirmado, construímos com e a partir do outro, e sua presença permite que desenvolvamos os signos, os símbolos e os significados de nossa cultura.

O eu e o outro: a construção de significados preconceituosos nos materiais didáticos

Em nosso desenvolvimento, em nossa cultura, em nossa história, encontramos as bases para a produção e a reprodução de preconcei-tos e, consequentemente, para sua expressão em produtos culturais tais como os livros didáticos. O processo de construção de signifi-cados ocorre pela negociação e pelo embate das crenças que vamos compartilhando ao longo de nossa vida e que têm raízes históricas

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importantes: vivenciamos, ao longo da história da humanidade, di-versas formas de preconceitos de etnia, gênero, religião, dentre ou-tros. Preconceitos construídos ao longo da história humana e que se definem a partir de questões sociais, individuais e de mecanismos de disputa de poder.

O preconceito está presente na relação do eu com o outro a partir de sentimentos e definições subjetivas, muitas vezes apreendidas de dogmas estabelecidos em nossa história e nossa cultura, na constru-ção de nossos signos e de nossos símbolos. Muitas vezes não temos como explicar o porquê de um preconceito, de uma rejeição em rela-ção ao outro, apenas consideramos que “é assim, porque é”, contudo, a observação histórica, a postura crítica e a consciência de nosso pró-prio eu facilitam a compreensão dos direitos humanos e favorecem uma postura de respeito à dignidade humana.

O embate entre as ideias dominantes – hegemônicas – com as novas concepções de mundo encontra lugar no sujeito individual e no cole-tivo, no percurso histórico das sociedades que substituem o velho pelo novo, frequentemente combinando elementos de ambos (Gramsci, 1966), em uma constante e dialética negociação. Na análise de Gruppi (1978), renomado estudioso da obra de Gramsci, o processo de for-mação crítica resulta de um processo social, a partir de uma formação político-pedagógica que considere o saber do senso comum, para que esse tipo de conhecimento possa transformar-se no que ele denomina de bom senso: a visão crítica do mundo (Mieto, 2010: 5).

Essa relação consciente e crítica nos permite identificar as sutilezas do preconceito e facilitam a análise do material utilizado nos proces-sos educativos.

Neste sentido, vamos parar um momento para um exercício de re-flexão?

1. Ao analisarmos um livro de história do Brasil, no início da coloni-zação, é preconceituosa uma afirmação que indique que os jesuítas consideravam a conversão dos índios como uma de suas missões?

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Direitos humanos e a produção de materiais didáticos

2. Podemos, nesse contexto, considerar preconceituoso o uso no livro da imagem de um escravo acorrentado?

3. Será que essas imagens ou descrições são, nesse livro, expressões preconceituosas por parte do autor ou podem ser, simplesmente, uma descrição fiel de nossa história.

Para considerarmos a expressão de um preconceito em um livro di-dático, esse conteúdo deve ser contextualizado de acordo com a uti-lização realizada pelo autor. Pois, apresentar a imagem de um escravo em um material didático, considerando um determinado período da história da humanidade, é expressão de um fato real, manifestação de um preconceito de desconsideração do outro, julgado diferente e desrespeitado em sua dignidade. O reconhecimento deste fato em um livro de história devidamente organizado e com um conteúdo reflexivo é uma necessidade, pois contribui para a conscientização e consequentemente para a expressão de comportamentos mais huma-nos. O silêncio e a desconsideração desse fato histórico seriam preju-diciais para o desenvolvimento de nossa humanidade.

Por outro lado, devemos considerar as observações de José Ricardo Fernandes:

Os livros didáticos, sobretudo os de história, ainda estão permea-dos por uma concepção positivista da historiografia brasileira, que primou pelo relato dos grandes fatos e feitos dos chamados “heróis nacionais”, geralmente brancos, escamoteando, assim, a participação de outros segmentos sociais no processo histórico do país. Na maioria deles, despreza-se a participação das mino-rias étnicas, especialmente índios e negros. Quando aparecem nos didáticos, seja através de textos ou de ilustrações, índios e negros são tratados de forma pejorativa, preconceituosa ou este-reotipada (Fernandes, 2005: 380).

Estes são dois dos cuidados que devemos ter: por um lado, não negar nossa história e assumir que fatos ocorreram com as minorias étnicas, com as minorias religiosas, com os deficientes, entre outros; por outro, apresentar, além de todos os nossos heróis, também os ho-

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mens comuns que tiveram papel na construção de nosso país, inde-pendentemente de diferenças sociais e culturais.

Podemos nos perguntar, por exemplo, por que, ao estudarmos no ensino fundamental o conceito de família, não somos apresentados às diferentes formas de constituição familiar reconhecidas no mun-do atual? Por que o tratamento exclusivo às famílias tradicionais? E aquelas compostas de pais/mães separados e seus filhos? E as consti-tuídas por mães lésbicas, pais homossexuais? Ou ainda, aquelas for-madas por netos e avós? Podemos afirmar: o silêncio é extremamente prejudicial.

Currículos e manuais didáticos que silenciam e chegam até a omitir a condição de sujeitos históricos às populações negras e ameríndias têm contribuído para elevar os índices de evasão e repetência de crianças provenientes dos estratos sociais mais po-bres (Fernandes, 2005: 80).

O material didático utilizado nas escolas pode ser o caminho para o início da discussão, o caminho para a voz das diversas realidades brasileiras. Mas, como nos lembra Fernandes (2005), o material deve descrever essas diversas realidades de forma clara, não simplesmen-te tomando essas minorias de forma folclórica e/ou pitoresca, como podemos observar em diversos materiais.

Para lidar com esse tema, resta-nos reconhecer que, devido aos entraves psíquicos, culturais e históricos, estudar, pesquisar e “com-bater” o preconceito é tarefa árdua, mas urgente. Árdua, porque en-volve componentes diversificados que estão relacionados às nossas experiências de desenvolvimento, incluindo a apreensão de nossa cultura. Quando tratamos do preconceito devemos considerar como os seres humanos apropriam-se da realidade e agem frente a ela. Mas, como afirma Mônica Mastrantonio Martins (1998), trata-se de tare-fa urgente, pois o preconceito é uma construção deturpada da reali-dade, presente nas ações e emoções do cotidiano (observem que essa sua afirmação é de 1998).

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Sinopse dos aspectos abordados

Nesta Seção 2 apresentamos uma discussão sobre a construção do eu e do outro, demonstrando como esta questão tem implicações em nossa prática pedagógica. Para tanto, baseamos nossos estudos na psicologia, particularmente no material de teóricos como Henri Wallon e Lev Vygotsky que, a partir da perspectiva histórico-cultu-ral, destacam o papel do outro na construção do eu e no nosso pro-cesso de desenvolvimento.

Para compreender a relação do eu e do outro, no que diz respeito à produção e à escolha de materiais didáticos, abordamos que estes recursos podem servir de fonte de produção e reprodução de precon-ceitos construídos ao longo da história da humanidade. Para tanto, apresentamos uma definição de preconceito e demonstramos que durante muito tempo foram e, em alguns casos, ainda têm sido re-produzidos em nossos livros, em nossos filmes, em nossas imagens.

Por fim, sugerimos que o material didático, escrito de forma clara e a partir de uma aproximação maior da realidade do povo brasileiro, e utilizado pelo professor de forma crítica, pode ser fonte de com-preensão de nossa cultura e de nossa diversidade.

Princípios éticos, construção da cidadania, promoção e valorização dos direitos humanos nos livros didáticos

Nesta unidade, abordaremos o conceito de ética, os princípios éti-cos e de construção da cidadania, bem como discutiremos a promo-ção dos direitos humanos nos livros e materiais didáticos.

O termo ética é derivado do grego ethos que significa modo de ser, caráter. Segundo Marconi Pequeno no texto “Ética, educação e cidada-nia”, os primeiros gregos afirmavam que a ética é a morada do homem.

[...] o ethos representava o lugar que abrigava os indivíduos-cida-dãos, aqueles responsáveis pelo destino da polis (cidade). Nessa morada, os homens sentiam-se em segurança (Pequeno, 2008: 36).

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Isso significa, para Marconi Pequeno, que a vida ética é a vida a partir das leis e dos costumes sociais. Viver dentro dessas bases é tornar a sociedade “melhor e encontrar nela proteção e abrigo se-guro” (Pequeno, 2008: 36). A ética, nesse sentido, é definida pelas leis determinadas por esses costumes, pelas virtudes e pelos hábitos culturalmente reconhecidos, que geravam um conjunto de normas e regras para a convivência social. O sujeito virtuoso cultivava a ação ética e contribuía, dessa forma, para o bem-estar social.

O termo ética, nos textos atuais, é, na maioria das vezes, relacio-nado ao conceito de moral que, segundo Marconi Pequeno, tem sua origem no latim mos (mores). Segundo o autor, na origem, os dois termos tinham o mesmo significado, determinando como deve ser a ação do sujeito para com o outro no espaço social; atualmente, con-tudo, estabelecemos uma diferença identificando a ética com uma filosofia que trata da moral geral, algo que seria comum às sociedades humanas, e a moral é atribuída a questões particulares, sendo um dos objetos de estudo da ética. A ética seria a versão teórica e a moral a prática.

De volta ao texto de Marconi Pequeno, ethos era uma prerrogativa dos “indivíduos-cidadãos, aqueles responsáveis pelo destino da polis (cidade)”. Mas o que é um cidadão? O que significa cidadania?

É comum se afirmar que ser cidadão significa possuir direito ao voto, à liberdade de expressão, à saúde, à educação, ao trabalho, à locomoção, à alimentação, à habitação, à justiça, à paz, a um meio ambiente saudável, à felicidade, dentre outros. A cidadania é a condição social que confere a uma pessoa o usufruto de direi-tos que lhe permitem participar da vida política e social da co-munidade no interior da qual está inserida. A esse indivíduo que pode vivenciar tais direitos, chamamos de cidadão. Ser cidadão, nessa perspectiva, é respeitar e participar das decisões coletivas a fim de melhorar sua vida e a da sua comunidade. O desrespeito a tais direitos por parte do Estado, de instituições ou pessoas, gera exclusão, marginalização e violência. A violência surge quando o homem é tratado como uma coisa, como algo supérfluo ou

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sem importância. Ela, a violência, pode ser determinada ou in-fluenciada por fatores como a desigualdade social, a exclusão e o desencantamento do sujeito diante do mundo, ainda que estes fenômenos não sejam suficientes para explicar todos os aspectos e dimensões do problema da violência (Pequeno, 2008: 38).

A reflexão de Marconi Pequeno oferece-nos a oportunidade de re-lacionarmos os fatos discutidos até o momento:

1. Os direitos humanos são os direitos fundamentais do ser huma-no. Implicam no respeito à dignidade humana.

2. A ética é a morada do homem, o lugar seguro, que estabelece leis e regras para e pelo cidadão.

3. A ética é a área da filosofia que estuda a moral humana.

4. A moral são as regras da ação de um homem para com o outro.

5. A cidadania é a condição que nos permite vivenciar nossos direi-tos políticos, sociais, humanos.

6. Nossos direitos, nossa moral, nossa cidadania são construções histórico-sociais e estão relacionadas com os processos de cons-trução do eu e do outro.

Os princípios éticos reconhecidos no mundo versam sobre a li-berdade, a igualdade, a fraternidade (cuja base é a Revolução Fran-cesa) entre os seres humanos, o direito à segurança pessoal, e sobre os direitos básicos: o direito à vida, à saúde, à educação de todos os seres humanos. São esses princípios que estabelecem nossos direitos enquanto seres humanos e é com base nesses princípios que as orga-nizações mundiais, tais como a Organização das Nações Unidas2 e a Organização Mundial da Saúde3, procuram definir suas políticas e

2 Ver: Organização das Nações Unidas no Brasil: <http://www.onu-brasil.org.br/>.

3 Ver: Organização Mundial da Saúde: <World Health Organization - http://www.who.int/en/>.

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orientações mundiais. Um exemplo disso é a Declaração dos Direitos Humanos (1948).

Essas orientações, políticas, esses direitos, princípios éticos são vá-lidos para toda a sociedade. Como afirmados na unidade 1, o direi-to à igualdade e à cidadania são garantias estabelecidas no art. 1o da Constituição Brasileira (Brasil, 1988), em seus princípios e garantias fundamentais.

Direitos e garantias fundamentais

Esses direitos são fundamentais por serem a fundação, a base para a nossa legislação. Considera-se que nada pode ser acrescentado ou retirado se ferir, de alguma forma, a um desses direitos básicos.

Devemos nos lembrar que, na Antiguidade, os escravos não eram considerados cidadãos. Algumas vezes, escravos não eram ao menos considerados humanos (Coimbra, 2001). Muitas vezes, a distinção entre escravo e senhor era definida apenas pela origem, que não im-plicava, necessariamente, em uma discriminação relacionada à raça ou à cor da pele (como encontramos na história mais recente, in-cluindo a de nosso país), mas ao “direito” do conquistador sobre o conquistado, como encontramos nas culturas gregas ou romanas, ou mesmo entre os Tupis brasileiros (Guarinello, 2006).

Mas, graças a um processo histórico, que implicou em muitas lutas e questionamentos, atualmente todos são reconhecidos como iguais perante a lei (Brasil, 1988). Na legislação brasileira, somos todos se-res humanos e detentores dos direitos fundamentais. Reconhecida-mente iguais perante a lei, independentemente de nossas diferenças, que devem ser respeitadas.

O respeito ao outro é o dever básico. Direitos são sempre acom-panhados de deveres, assim, para o exercício dos direitos como cida-dãos, é nosso dever respeitar e zelar pelos direitos dos demais. Esse princípio deve ser compreendido por todos, pois influencia direta-mente no comportamento que temos perante o outro.

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Como a construção do eu e do outro está relacionada à nossa his-tória e às nossas relações culturais, é essencial reconhecer que o meio social interfere no desenvolvimento e que a escola é um dos ambien-tes propícios para a formação cidadã.

Na escola, estamos em contato com os livros didáticos, reconhe-cidamente meios de divulgação cultural e espaços propícios para a valorização e promoção dos direitos humanos, independente da unidade curricular a que se referem. Contudo, para que um livro atenda a essa necessidade social, os autores precisam observar os princípios básicos:

qRespeito pela pessoa – o livro didático pode incentivar a autono-mia e a capacidade humana, sem qualquer tipo de discriminação.

qDireito ao acesso – presente na política nacional do livro didáti-co, o direito ao acesso deve ser respeitado, tanto na distribuição dos livros para toda a rede pública de ensino, quanto na publica-ção de exemplares em braile, por exemplo.

qPromoção da diversidade – o livro didático deve reconhecer em seus textos e em suas imagens a diversidade presente em nossa cultura. Por que um livro não pode tratar dos diferentes tipos de família? Por que, ao falar de relacionamentos, não podem ser abordadas as diversas manifestações presentes no mundo atual? As imagens de crianças presentes nos livros abrangem a diversidade de raças e etnias? Os autores devem ter a preocupa-ção de selecionar imagens e escrever seus textos reconhecendo a diversidade existente no país. Isso vale também para os proble-mas propostos nos livros de outras matérias, como matemática, fazendo valer a interdisciplinaridade e a transversalidade dos saberes.

qPromoção de uma consciência crítica – para a garantia dos direi-tos humanos, é essencial que os livros didáticos retratem os fatos histórico-sociais a partir da promoção de uma conscientização

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crítica. Como afirmamos anteriormente, em uma aula de histó-ria, por exemplo, não podemos negar o período em que a escra-vidão sustentou a economia de nosso país, mas mesmo em um livro de história podemos discutir criticamente e questionar as consequências socioculturais advindas dessas relações. Como autores, temos a obrigação de buscar diversos posicionamentos teóricos e, como professores, precisamos incentivar a consciên-cia crítica desses fatores, caso contrário, continuaremos apenas propagando a ideologia da dominação.

Em nossas aulas, selecionamos materiais didáticos, para além dos livros, a serem utilizados por nossos alunos, pois somos diretamente responsáveis pela promoção dos direitos humanos. Precisamos assu-mir um posicionamento caracterizado pela diferença dos níveis de autorreflexão sobre nossa experiência docente, responsabilizando--nos por ela (Castro & Rosa, 2007). Devemos ter cuidado, ao es-colhermos um filme para apresentar e discutir em sala de aula. Res-ponder a questões como: Que filme vou sugerir? Como conduzir a discussão? Vou deixá-los assistindo sozinhos ou vou acompanhar a exibição? Devo levar alguma figura para os alunos colorirem? Que figura estou apresentando? Ou então, devo deixá-los desenhar livre-mente sobre o tema abordado na aula? Que tema de pesquisa estarei indicando aos meus alunos? As revistas que levo para a sala de aula para serem utilizadas em atividades de recorte e colagem merecem ser previamente selecionadas? Essas são algumas das situações cor-riqueiras vivenciadas por um professor e que precisam de reflexão, tanto individual como coletivamente na escola, nos momentos dedi-cados à coordenação pedagógica.

De forma geral, podemos utilizar filmes do circuito comercial que explorem as diferenças para discutirmos, além da disciplina relacio-nada ao filme, temas como preconceito e discriminação.

Para discutir, em uma aula de história, a Segunda Guerra Mun-dial, você pode utilizar, por exemplo, “O menino do pijama listrado”

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(2008, direção: Mark Herman), filme baseado no livro de John Boyle que retrata a amizade entre um garoto alemão e um menino judeu. É interessante para a discussão de eventos ocorridos na guerra, das questões relacionadas aos campos de concentração, das consequên-cias do preconceito divulgado pela doutrina nazista, mas também é interessante para uma discussão sobre a humanidade, a inocência ca-racterística da infância e o desenvolvimento dos preconceitos.

Ou, o livro pode ser uma indicação de leitura para as aulas de lite-ratura e o professor de história pode trabalhar junto com o de língua portuguesa. O preconceito, a discriminação e suas consequências podem ser abordados nessas aulas.

Para uma discussão sobre a diversidade sexual, na aula de biologia, pode ser utilizado o filme, “Questão de sensibilidade” (1997, direção: Ross Marks). Este filme faz uma sátira ao preconceito e brinca com a tese de que a homossexualidade tem base genética. É uma oportu-nidade para a discussão sobre a homossexualidade, a diversidade e as relações entre as pessoas. Pode ser assistido para impulsionar uma pesquisa ou um debate sobre o tema.

Sobre a escravidão, “Spartacus” (1960, direção: Stanley Kubrick). Spartacus é a história de um homem que nasceu escrava no Império Romano e luta por sua liberdade. Além de ser adequado para a aula de história e possibilitar a visualização da escravidão na Antiguidade, pode ser utilizado para discutir como esse conceito foi construído ao longo do tempo e as diferenças sociais.

Sobre o preconceito social e o preconceito que nos leva a acre-ditar que nossas crianças são incapazes de aprender, “Escritores da liberdade” (2007, direção: Richard LaGravenese), história de Erin, uma professora que busca fazer a diferença, ouvindo os seus alunos, e procura ensinar a superarem as dificuldades sociais e culturais. O filme pode ser utilizado para questionar nosso papel de professores e pode ser apresentado aos alunos para a promoção de uma discussão sobre as diferenças sociais.

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Algumas revistas de circulação nacional, voltadas ao público do-cente do ensino fundamental, como Nova Escola (Editora Vitor Ci-vita) e Carta Fundamental (Editora Confiança), vendidas em bancas de revista por todo o país, têm procurado abordar temas considera-dos tabus nas escolas e que permeiam os materiais didáticos sobre os quais discutimos neste capítulo. Longe de conseguirem esgotar os assuntos, podem servir como interessantes pontos de partida para a discussão com os pares, além de indicarem referências bibliográficas que merecem aprofundamento.

Essas são sugestões de materiais que podemos utilizar para pro-mover discussões e pesquisas sobre diversos temas relacionados à promoção dos direitos humanos. Lembramos que o uso de filmes é apenas uma das possibilidades, mas a escolha de outros materiais também deve fazer parte de nossa reflexão. Como exemplo, podemos pensar na seleção de uma figura ou imagem de colorir a ser oferecida para as crianças. Observe a seguir:

http://www.miniweb.com.br/ http://www.miniweb.com.br/

Reflita: Essas imagens para colorir representam a diversidade? As duas imagens fazem essa representação? Qual dessas imagens esco-lheríamos para trabalhar? Não seria uma boa opção deixar que as

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crianças desenhassem livremente a partir do tema para depois po-dermos discutir, considerando as concepções construídas por elas a partir da realidade de onde vêm e, ainda, incentivando o potencial criador destes estudantes?

O primeiro ponto diz respeito ao objetivo de nossa aula e como uma imagem poderá despertar ou representar as questões que iremos discutir; o segundo é como conduzir a discussão de forma ética, res-peitando a diversidade.

Assim, neste momento, cabe reforçar a necessidade do cuidado no momento da seleção do livro didático, pois nós, professores, somos parceiros nesse momento da escolha. É importante que busquemos conhecer os livros, não apenas pelas resenhas, mas, se possível, pelo seu manuseio.

Sabemos, como indicam Henriques e Cavalleiro (2005), que os preconceitos estão arraigados não apenas na escola, mas em toda nossa sociedade. Contudo, podemos buscar formas de combatê-los dentro do processo educativo, afinal a escola é um espaço em que convivemos com a diversidade e um espaço propício para a formação sociocultural. Isso reflete na necessidade de um projeto educativo que, de acordo com os autores:

Todo projeto de educação em que não se considere a identidade étnico-racial e de gênero dos envolvidos não constitui um pro-jeto de educação de qualidade. Instituir e/ou manter qualidade na educação guarda, como condição sine qua non, elementos so-ciais fundamentais para o desenvolvimento do indivíduo, a cons-trução da cidadania e da democracia (Henriques & Cavalleiro, 2005: 223).

Assim, independentemente da escolha dos livros e materiais rea-lizados para as escolas, por meio do PNLD, temos a obrigação de buscar materiais complementares, que enriqueçam nossas aulas e as vivências culturais dos estudantes, capazes de expor os diferentes pontos de vista sobre os temas estudados e de explorar os conheci-

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mentos das crianças e dos adolescentes sobre a realidade social. A partir dessas iniciativas, podemos nos surpreender com o que é co-nhecido e vivenciado por nossos alunos.

Sinopse dos aspectos abordados

Na Seção 3, abordamos o conceito de ética, a escolha do material didático e suas implicações no processo de construção da cidadania. Identificamos que ética é um termo atualmente relacionado ao con-ceito de moral, caracterizando-se a ética como conceito teórico e a moral enquanto prática, e ambos implicam a vivência cidadã e os di-reitos fundamentais do ser humano.

Os diversos princípios éticos reconhecidos como direitos funda-mentais dos seres humanos encontram-se, atualmente, garantidos enquanto orientações e políticas dos Estados de direito, sendo nosso dever, enquanto educadores, garantir essa discussão em sala de aula, utilizando como ferramentas os livros e outros materiais didáticos por nós selecionados. Contudo, destacamos a importância do cuidado na seleção desses instrumentos, assim como a postura crítica na discus-são dos seus conteúdos. Consideramos que, independentemente do material oferecido, temos o papel de garantir, enquanto educadores, uma discussão pautada na ética, na cidadania e nos direitos humanos.

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Direitos humanos e cotidiano escolar

Direitos humanose cotidiano escolar

Silvia Lúcia Soares

Introdução

P arece, muitas vezes, haver a crença generalizada de o termo pedagógico referir-se unicamente a escola. Partem mesmo do pressuposto de que a ação pedagógica se resume à ação docen-

te. Tal compreensão, portanto, afigura-se um equívoco premente do ato de aprender e ensinar. Será que o ensino e a aprendizagem ocor-rem única e exclusivamente no espaço pedagógico da escola? Há de se considerar, certamente, que é a aprendizagem o objetivo maior da escola e da prática pedagógica que nela se desenvolve. Nesse sentido, para uma ação educativa eficaz, é fundamental a compreensão ampla, contextualizada do que se entende por aprender e, consequentemen-te, por ensinar.

Ao tratarmos de conceitos e compreensões, é importante consi-derar que esses termos não são imutáveis, pelo contrário, no movi-mento do cotidiano, os conceitos e as compreensões ganham novos contornos, visto que se constituem na historicidade e na relatividade que perpassa os tempos e os contextos. Devemos considerar que, em cada tempo e contexto, o caráter processual inerente à dinâmica da história relativiza conceitos, papéis e funções sociais, acrescentando

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Silvia Lúcia Soares

a ela outras atribuições, como a que vem ocorrendo em relação ao ensino e à aprendizagem.

Nessa perspectiva, Maria do Céu Roldão (2007) nos alerta que, na sociedade atual, o ensinar não pode ser mais entendido como ape-nas informar ou transmitir e o aprender apenas como o ato de saber reproduzir, decorar, armazenar informações. Aliás, os conceitos de ensino e aprendizagem fundamentados em uma lógica transmissiva, cujo pressuposto é que, no processo educativo, há os que ensinam e os que aprendem, um tempo determinado para essa aprendizagem e um local específico onde ela deve ocorrer, gerou, histórica e cul-turalmente, a compreensão da escola como ambiente privilegiado de reprodução de ideologias, onde apenas alguns têm os méritos de dominar os saberes.

Em verdade, no que respeita à representação do conceito de en-sinar, sua leitura é ainda hoje atravessada por uma tensão profun-da (Roldão, 2005), entre o “professar um saber” e o “fazer outros se apropriarem de um saber”, ou melhor, “fazer aprender alguma coisa a alguém” (Roldão, 2007: 94). No limite e simplificando, tem-se asso-ciado à primeira leitura a postura mais tradicional do professor trans-missivo, referenciada predominantemente a saberes disciplinares; e à segunda, uma leitura mais pedagógica e alargada a um campo vasto de saberes, incluindo os disciplinares, a qual denomina-se pedagogia histórico-cultural.

Nessa perspectiva, o conhecimento é um constructo social que se efetiva na interação sujeito-objeto a partir de ações socialmente me-diadas e verifica-se por meio da interação entre o homem e a natureza intermediada pelo diálogo com a cultura acumulada historicamente. Nesse caso, a organização do trabalho pedagógico no desenvolvi-mento da temática dos direitos humanos e da diversidade cultural, o ensinar não são definíveis pela simples passagem do saber, não por razões ideológicas ou apenas por opções pedagógicas, mas por razões sócio-históricas (Roldão, 2007).

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Direitos humanos e cotidiano escolar

Educação em e para os direitos humanos

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) é temático e multidimensional; objetiva a formação do sujeito de di-reitos e articula-se nas seguintes dimensões:

a. apreensão de conhecimentos historicamente construídos sobre direitos humanos e sua relação com os contextos internacional, nacional e local;

b. afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos direitos humanos em todos os espaços da sociedade;

c. formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer presente em níveis cognitivo, social, ético e político;

d. desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos contextualizados;

e. fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção, da proteção e da defe-sa dos direitos humanos, bem como da reparação das violações (PNE, 2008: 25).

Em 2012, tivemos uma ação relevante no campo das políticas em direitos humanos com a institucionalização das diretrizes gerais para a educação em direitos humanos, conquista possível através da Reso-lução CNE/CP n.o 1, de 30 de maio de 2012, estabelecendo as Dire-trizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. Destaca-se no documento a transversalidade no ensino concebida como:

Art. 7o - a inserção dos conhecimentos concernentes à educação em direitos humanos na organização dos currículos da educação básica e da educação superior poderá ocorrer das seguintes for-mas:I - pela transversalidade, por meio de temas relacionados aos di-reitos humanos e tratados interdisciplinarmente;

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Silvia Lúcia Soares

II - como um conteúdo específico de uma das disciplinas já exis-tentes no currículo escolar;III - de maneira mista, ou seja, combinando transversalidade e disciplinaridade.Parágrafo único. Outras formas de inserção da educação em di-reitos humanos poderão ainda ser admitidas na organização cur-ricular das instituições educativas desde que observadas as espe-cificidades dos níveis e modalidades da educação nacional.

Com a homologação das diretrizes, determina-se que o ensino su-perior e as escolas da rede de educação básica e da educação superior deverão assumir a responsabilidade coletiva em tornar a educação em direitos humanos como parte constitutiva da política educacional e poderão trabalhar com a educação em direitos humanos, seja pela modalidade formal ou não. Ao abordarmos a educação em direitos humanos estamos tratando da formação de uma cultura de respeito à dignidade humana que se efetiva por meio da vivência de valores – os valores de liberdade, justiça, igualdade, solidariedade, cooperação, tolerância e paz.

Ao nos referirmos à cultura, não estamos aludindo à visão tradi-cional ancorada na preservação de costumes, crenças, valores e tradi-ções, mas sim na formação de outra cultura do respeito aos direitos humanos e à dignidade humana com vistas à transformação. Para Maria Victoria Benevides (2007), o eixo principal desse campo de conhecimento é o direito à vida, sem o qual todos os demais direitos perderiam o sentido. A autora afirma ainda que os direitos humanos são fundamentais e indispensáveis para a dignidade humana que não se assenta apenas na racionalidade, mas também na emoção e nos corações e mentes, visto ser o homem um sujeito de razão e de senti-mentos. Os direitos humanos estão relacionados à essência humana e são naturais e universais, pois valem para todos. São também his-tóricos por serem constituídos no movimento dinâmico da humani-dade. Nesse sentido, ao falarmos de educação em direitos humanos estamos nos referindo à educação para a cidadania na perspectiva do

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Direitos humanos e cotidiano escolar

cidadão participativo e solidário, consciente de seus direitos e deve-res e, sobretudo, comprometido com a democracia. Nesse sentido, a educação deve considerar algumas premissas, tais como:

a. o aprendizado deve estar relacionado à vivência do valor da igualdade em dignidade e direitos para todos;

b. o aprendizado deve propiciar o desenvolvimento de sentimentos e de atitudes de cooperação e tolerância;

c. o aprendizado deve levar ao desenvolvimento da capacidade de se perceber as consequências sociais e individuais de cada esco-lha;

d. a educação deve estar comprometida com o processo de mudan-ça de práticas e condições que violam ou negam os direitos hu-manos (Benevides, 2007).

Mas, como organizar pedagogicamente uma proposta de educação para e em direitos humanos?

Entendendo o significado de trabalho pedagógico

O trabalho pedagógico, em seu sentido amplo, refere-se às possibi-lidades de articulação entre a micro e a macroestrutura sociopolítica com o cotidiano docente e, em sentido restrito, à materialidade do processo de ensino e de aprendizagem no espaço da sala de aula. Ou seja, a organização e a gestão desse trabalho abrangem não apenas as atividades que englobam professores e alunos em sala de aula, mas a totalidade do trabalho global da escola no contexto sociopolítico na qual está inserida.

Assim, para além da sala de aula, entendemos que a organização do trabalho pedagógico está relacionada aos princípios, às concepções e às posturas pedagógicas; ao projeto político-pedagógico da institui-ção, ao plano de curso da disciplina, à organização da aula, ao pro-cesso de gestão, às relações estabelecidas entre os diversos sujeitos no

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espaço pedagógico. Isso se deve ao fato de, como declara Lúcia Maria Gonçalves de Resende (2008), o trabalho pedagógico ser determina-do segundo os critérios e as concepções daqueles que os concebem ou o vivenciam. Sendo assim, ele não prescinde dos sujeitos da ação. É, pois, determinado sob as condições concretas do espaço pedagógico do qual emerge e é construído.

Nessa mesma perspectiva, para Mara Regina Lemes Sordi (2005) o trabalho pedagógico é constituído mediante ideias e ações que permeiam o projeto político-pedagógico, consolidando-se na tríade composta pelas seguintes categorias basilares: o trabalho como con-dição de produção do conhecimento; a educação como práxis trans-formadora do sujeito; o conhecimento histórico como instrumen-to necessário para a superação da realidade. Desse modo, embora o trabalho pedagógico se materialize no espaço da sala de aula, suas raízes epistemológicas ultrapassam esse limite espacial. O ensino e as aprendizagens sobre os direitos humanos e a diversidade cultural estão incluídos na totalidade social mais ampla e justifica-se por ser constituída de diversas esferas do real e nas contradições entre a pro-dução ou transformação das relações sociais.

No entendimento de Luís Carlos de Freitas (1995), a organização do trabalho pedagógico pode ser compreendida em dois níveis:

(a) como trabalho pedagógico que, no presente momento his-tórico, costuma desenvolver-se predominantemente em sala de aula; e (b) como organização global do trabalho pedagógico da escola, enquanto projeto político-pedagógico da escola (Freitas, 1995: 94).

A finalidade da organização do trabalho pedagógico compreende a produção do conhecimento por meio do trabalho com valor social, ou seja, a uma atividade concreta, socialmente útil.

Temos ciência que, no cotidiano das escolas e dos sistemas educa-cionais, o trabalho pedagógico acontece em meio a inúmeras rela-ções que se estabelecem entre professores, estudantes, direção, admi-

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Direitos humanos e cotidiano escolar

nistração, estrutura física da escola, comunidade, entre outros. Essas relações são envoltas em múltiplas dimensões. Foi, portanto, a partir dessas compreensões que Margarida Maria Montejano da Silva con-cebeu o trabalho pedagógico como aquele

[...] desenvolvido na escola, no interior da sala de aula, nas ideias e ações que permeiam o projeto político-pedagógico, no currícu-lo, no planejamento dos sujeitos (professor-aluno) para o ensino e aprendizagem, no olhar da escola para a disciplina e para os alunos, nos aspectos administrativos e pedagógicos presentes nas ações dos professores e funcionários da escola, na mobilização da família, no coletivo da escola e em todo o seu entorno (Monte-jano, 2006: 226).

Sabemos que, além de envolver diversos elementos, a organização do trabalho pedagógico reúne também diferentes atores educativos (pais, alunos, professores), o que a torna afetada por uma diversidade de concepções, interesses e valores. Além desses, existem os fatores ex-ternos e da relação direta que mantém com o trabalho produtivo ca-pitalista. Todas essas constatações geram interpretações diferenciadas tanto epistemológica como metodologicamente, quando se trata da forma de organização e gestão do trabalho nos espaços pedagógicos.

No entanto, se todo trabalho docente é trabalho pedagógico, nem todo trabalho pedagógico é docente. Na verdade, convenhamos, os termos pedagógico e docente são inter-relacionados, porém distin-tos. Reduzir a ação pedagógica à docência é reduzir e estreitar o con-ceito de pedagogia, que é mais amplo do que a docência, visto que a educação abrange outras instâncias além da sala de aula e da escola. O ato educativo é amplo, abrangente, podendo ocorrer nas mais di-versas organizações sociais, ao se considerar que o ato de ensinar e aprender é inerente ao ser humano.

Diante ao exposto, reafirmamos que uma visão ampliada da orga-nização do trabalho pedagógico deve considerar não apenas as ati-vidades desenvolvidas pelo professor e pelos alunos na sala de aula e na escola, mas também todas as possibilidades de articulação entre

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os elementos que constituem essa área de conhecimento, dentre os quais destacamos: o currículo, a relação professor e aluno, o plane-jamento, a avaliação, a organização dos tempos e espaços, a gestão, entre outros. Além do mais, qualquer análise não reducionista da organização e gestão do trabalho pedagógico deve levar à pondera-ção, além de seus elementos constitutivos, de vários fatores em sua explicitação, de modo a identificar as características comuns a essa categoria, com o intuito de um entendimento mais amplo dos co-nhecimentos e das práticas pedagógicas que se colocam e da forma como se colocam nos espaços educativos.

As categorias de organização do trabalho pedagógico: a interlocução necessária

A organização e gestão do trabalho pedagógico resulta da união dos aspectos específicos dos elementos acima elencados, sendo a arti-culação aquela que assegura as bases epistemológicas, a natureza e as especificidades do trabalho pedagógico. Tal fato exige a compreen-são mais apurada desses elementos, visto que os significados se trans-figuram na estrutura subjacente aos princípios e pressupostos que dão sustentação aos fenômenos sociais e educativos. Como assevera

Bakhtin (1997), eles são tecidos a partir de cer-tos fios ideológi-cos e servem de trama a todas as relações sociais e pedagógicas em seus mais diver-sos domínios.

Projeto político-pedagógico

Currículo

Planejamento

Avaliação

Gestão

Organização do tempo e do espaço

Relação professor-aluno

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Direitos humanos e cotidiano escolar

Na teia de interlocuções que dá sentido à organização e gestão do trabalho pedagógico, cada um dos elementos que a constituem guar-dam em si características próprias e desempenham as funções que lhes são específicas.

No caso do currículo, partimos do pressuposto de que esse é cons-tituído de mecanismos que compõem o caminho que nos torna o que somos. Não poderemos falar de currículo sem passar pelo campo da cultura, da representação, do poder, embora, em nossas discussões cotidianas, quando pensamos em currículo, pensamos apenas em co-nhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento está totalmen-te envolvido naquilo em que nos tornamos: nossa identidade, nossa subjetividade, nossa história.

Currículo

O currículo, cerne da educação escolar, é um fenômeno histórico. É o resultado de forças sociais, políticas e pedagógicas que expressa a organização dos saberes vinculados à construção de sujeitos sociais. É um processo dinâmico, mutante, sujeito a inúmeras influências, por-tanto aberto e flexível. O currículo veicula uma concepção de pessoa, sociedade, conhecimento, cultura, poder e destinação das classes so-ciais às quais os indivíduos pertencem, portanto, refere-se sempre a uma proposta político-pedagógica que explica intenções e ilustra que os atores envolvidos no processo não são apenas seres cognitivos, mas também afetivos, sociais e políticos.

O currículo na educação para e em direitos humanos não se res-tringe apenas a aplicação de alguns conteúdos específicos referentes ao tema, mas é definido como eixo da educação escolar, uma vez que se trata de evento histórico e, sobretudo, resultado das forças sociais, políticas e pedagógicas que expressam a organização dos saberes vin-culados à construção de sujeitos sociais. Nesse sentido, o currículo é concebido como processo dinâmico, mutante, sujeito a inúmeras influências, portanto aberto e flexível. Patricio Donoso (1994) aler-

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ta-nos que, desde a educação infantil, os direitos humanos e a di-versidade cultural devem integrar globalmente o currículo e o fazer pedagógico da escola, fundamentando-se na Declaração Universal dos Direitos da Criança. Nessa fase de desenvolvimento e aprendi-zagem, o trabalho pedagógico deve estar centrado na internalização de valores tais como o respeito, a tolerância, o trabalho solidário, a autonomia, a livre expressão de ideias, entre outros.

A partir dos anos iniciais do ensino fundamental, o ensino sobre os direitos humanos e a diversidade cultural deverá perpassar todas as disciplinas e focar os problemas que emergem dos próprios con-teúdos e se manifestam no enfrentamento interpretativo da realidade social. O autor reforça a transversalidade como estratégia metodo-lógica de ensino e aprendizagem e afirma que nenhuma disciplina deve ser exclusivamente incumbida pelo trabalho com a temática, a análise dos direitos humanos e a diversidade cultural.

Nesse caso, o currículo é entendido como socialmente determina-do nas contradições do processo de luta entre a reprodução e a resis-tência, portanto, resultante da práxis. Sacristán (1998) afirma que compreender o currículo como práxis é reconhecer que muitos tipos de ação intervêm em sua configuração, que não pode ser interpreta-do e descontextualizado das interações sociais e culturais concretas que geram forças diversas que incidem na ação e na organização do trabalho pedagógico.

A diversidade cultural, de acordo com Anete Abramowicz (2006:12), significa variedade, diferença e multiplicidade. A diferen-ça é a qualidade do que é díspar, o que distingue uma coisa de outra, a falta de igualdade ou de semelhança. A cultura sempre está atrela-da à diversidade, pois a identidade de cada sujeito é constituída por meio do entrelaçamento de toda a influência do meio e do outro e se torna o que é. Cultura é aqui entendida na perspectiva marxiana de constructo humano que envolve a relação do ser humano com a natureza na produção de sua existência. O homem, por meio de sua

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Direitos humanos e cotidiano escolar

ação, interfere na natureza modificando-a e, ao mesmo tempo, mo-dificando-se a si mesmo.

A relação professor-aluno

Soma-se ao exposto outro elemento determinante da organiza-ção do trabalho pedagógico: a relação professor-aluno. O currículo se realiza na interação dos diversos atores que compõem uma rede pedagógica, por meio da tessitura de uma teia constituída de uma pluralidade de linguagens e de referenciais de leitura de mundo. Na verdade, o currículo constitui-se em espaço de construção e recons-trução do sujeito, dos conhecimentos já produzidos e dos que estão produzindo. Nesse contexto, o professor deve ser o mediador entre os conhecimentos produzidos social e historicamente e os elemen-tos que compõem a prática social e pedagógica. Essa mediação en-tre o currículo, o professor e o aluno deve ser compreendida não como ação transmissiva, mas, sobretudo, como mediação interativa, recíproca e reconstrutiva desses saberes. Essa interação constrói-se na continuidade da vida da escola e dos alunos e, ao mesmo tempo em que é constituída, é constituinte das relações, pelo fato de os diversos atores desse processo educativo estarem inseridos na ação escolar e, simultaneamente, na prática social, tendo na escola não a primeira, nem a mais importante das práticas que vivenciam, mas apenas uma delas.

Tempo e espaço

Outro fator a ser considerado na organização do trabalho peda-gógico refere-se ao tempo. Ao partir da premissa de que a criação humana está ligada ao tempo, ao ritmo das “mudanças acontecidas em nós, nos espaços em que existimos e nas pessoas com quem existi-mos” (Fontana, 2003: 199), entendemos ser – por meio dessa catego-ria abstrata que buscamos organizar – o perpassar do conhecimento pelo espaço escolar. Um dos principais aspectos, quando se trata do

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currículo na ação, é certamente a organização do tempo e do espaço escolares no tocante às condições de ensino-aprendizagem.

Para Zaballa (1998), na perspectiva racional, o tempo está repre-sentado na organização específica do tempo-espaço da escola, tendo como referências os conteúdos a serem desenvolvidos em um deter-minado período. Em relação à organização dos tempos e espaços escolares, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional trouxe maior flexibilização do tempo e algumas inovações tanto conceituais quanto metodológicas, como se pode observar no seu art. 23, Caput e II, ao determinar que a educação básica poderá organizar-se em séries anuais, semestrais, ciclos, períodos alternados de estudos e em grupos não seriados.

Um dos principais aspectos a se considerar, ao se tratar do currí-culo na ação, é a organização do tempo e do espaço escolares no que diz respeito às condições de ensino-aprendizagem. Polos indissociá-veis de um mesmo processo, o ensino e a aprendizagem precisam ser considerados em suas necessidades essenciais, que ultrapassam as pa-redes da sala de aula e os muros da escola. O tempo de ensino inclui o preparo, a execução e a avaliação das atividades, ou seja, exige o planejamento das ações a serem desenvolvidas. O tempo de apren-dizagem exige que se considerem os diferentes ritmos e experiências, carecendo de diferentes oportunidades para a devida mediação entre o que o aluno consegue realizar sozinho e aquilo que exige a inter-venção pedagógica.

Planejamento

Ao relacionarmos a organização dos tempos e dos espaços escola-res com o planejamento educacional, entendemos que a base dessa relação está relacionada ao quantitativo de tempo disponível para o desenvolvimento do conteúdo escolar em um determinado período do curso, da série ou da disciplina. Quando se trata da distribuição do tempo tendo por base o curso em sua totalidade, estamos tratan-

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do do plano curricular, ou seja, do “processo de tomada de decisões sobre a dinâmica da ação escolar. É previsão sistemática e ordenada de toda a vida escolar do aluno” (Vasconcellos, 1995: 56). Esse plano é de caráter amplo, visto que se constitui em instrumento que orien-ta a ação educativa na escola, pois a preocupação é com a proposta geral das experiências de aprendizagem que a escola deve oferecer ao aluno, por meio dos diversos componentes curriculares. Portanto, a escola deve ter como referência os parâmetros curriculares nacionais e adequá-los à sua realidade.

Quando tratamos da distribuição do tempo dentro de um deter-minado ano ou uma série, estamos mais voltados para o plano de curso ou plano de disciplina, como aquele voltado para a distribui-ção do conteúdo/conhecimento/atividade a ser trabalhado em um determinado período de tempo. Em sua elaboração, devem ser con-siderados o planejamento educacional, o planejamento institucional e o curricular, a realidade sociocultural, a idade e o desenvolvimento dos alunos, as condições necessárias para a efetivação do processo ensino-aprendizagem, além dos componentes abaixo relacionados (Soares, 2008).

O plano de aula pode ser considerado como o detalhamento do plano de curso ou disciplina. É onde as ideias se transformam em ações. É o fazer pedagógico em sala de aula. De acordo com José Car-los Libâneo (1999), ao preparar a aula, o professor deve considerar os seguintes aspectos:

q tempo de duração da aula;

q objetivos específicos e aplicação do conhecimento apreendido;

q natureza e especificidade do conteúdo a ser trabalhado;

q sequência lógica;

q desenvolvimento metodológico – preparação e introdução do assunto, desenvolvimento e estudo ativo, sistematização e apli-cação;

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Silvia Lúcia Soares

q aplicação/avaliação – realizada no início para saber o que o alu-no sabe a respeito do conteúdo, durante e no final da aula; deve conjugar formas variadas de verificação e ter como referência o objetivo específico da aula.

Projeto político-pedagógico

O projeto político-pedagógico constitui outro elemento mediador da gestão e organização do trabalho pedagógico. Ilma Veiga (2008) assevera que o projeto político-pedagógico se constitui na própria organização do trabalho pedagógico da escola. Para a autora, o pro-jeto político-pedagógico traz a possibilidade de rompimento com as relações competitivas, corporativas e autoritárias, suspendendo a ro-tina do mando impessoal e racionalizado da burocracia que permeia as relações no interior da escola, diminuindo os efeitos fragmentá-rios da divisão do trabalho que reforça as diferenças e hierarquiza os poderes de decisão. O projeto político-pedagógico busca organizar não só o trabalho desenvolvido em sala de aula, mas o da escola em sua globalidade de forma coletiva.

O coletivo pressupõe a identificação entre objetivos pessoais e objetivos comuns ao grupo, mediados pela prática social (Pistrak, 2002) e traduzidos em seu projeto histórico. No tocante à organiza-ção e à gestão do trabalho pedagógico, importa pensar coletivamente a forma como se efetivarão as relações no espaço educativo entre o conhecimento, os sujeitos educativos e o mundo concreto, social-mente produzido. Para a Ilma Veiga (1998), o projeto político-peda-gógico tem a ver com a organização do trabalho pedagógico em dois níveis: a organização da escola como um todo e a organização da sala de aula, incluindo sua relação com o contexto social imediato, pro-curando preservar a visão de totalidade. De modo geral, percebemos que o projeto político-pedagógico é um documento que facilita e or-ganiza as atividades da escola, sendo mediador de decisões coletivas que encaminham ações para o futuro com base na realidade atual. É

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Direitos humanos e cotidiano escolar

um planejamento a curto, médio e longo prazo que interfere direta-mente na prática diária. Sua concretização efetiva-se no processo de reflexão, exigindo um comprometimento de todos os envolvidos no processo educativo.

Portanto, todo projeto coletivo constitui-se em dois polos que se complementam e dão a ele significado: o político e o pedagógico. O projeto de uma escola é político por ser um ato humano, um ato co-letivo que se constitui pela relação com o outro e com o meio. Parte sempre de certa intenção, para depois transformar-se em ações, atos, em busca do devir. Isto é, o ato de projetar origina-se a partir de uma necessidade de mudança, porém sua elaboração baseia-se em prin-cípios e valores e na concepção que temos e buscamos de homem, cultura e sociedade. Como afirma Ilma Veiga,

todo projeto pedagógico da escola é, também, um projeto políti-co, por estar intimamente articulado ao compromisso sociopolí-tico com os interesses reais e coletivos da população majoritária (Veiga, 2008).

É pedagógico, por efetivar-se nas ações educacionais, no planeja-mento educacional e de ensino, na concepção de currículo, na orga-nização do trabalho pedagógico e no processo de gestão do espaço escolar e, também, por ser manifestação de intencionalidades e de-finição das ações educativas necessárias para as escolas desempenha-rem sua função social e cumprirem seus propósitos.

Gestão

Entendemos que o conceito de gestão pressupõe, em si, a ideia de participação, isto é, do trabalho de pessoas analisando situações, de-cidindo sobre encaminhamentos e agindo sobre estas, em conjunto. A elaboração do projeto político-pedagógico não se constitui, pois, em instrumento escrito, mas em peça que reflete e sistematiza as concepções, os conhecimentos, os objetivos, a metodologia, os pro-cedimentos de avaliação. Não é um instrumento pronto e acabado,

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mas construído permanentemente no cotidiano escolar, a partir da concepção dos atores ativos, vistos como protagonistas que desempe-nham papel central na revitalização da organização e gestão da ação educativa. Nessa perspectiva a gestão exige uma intervenção ativa de todas as partes envolvidas, exige um aprofundamento contínuo, um ensaio constante, a capacidade permanente de afrontar novos pro-blemas, de enfrentar os desafios e de aceitar o novo. Com o processo de descentralização, a escola torna-se um lugar de formação, onde o poder de decisão deve estar mais próximo dos centros de interven-ção, responsabilizando diretamente todos os sujeitos envolvidos no ato educativo.

Maria Rosa Afonso (2007) reforça a importância da participação ativa como estratégia fundamental para a construção de aprendiza-gens, da autonomia, da responsabilidade, do respeito, da tolerância, da solidariedade, do consenso e da ação consciente e empenhada. A autora destaca a relevância do trabalho interdisciplinar e transversal que envolve todos os professores e todas as disciplinas.

Métodos/estratégias de ensino

Metodologias são estratégias selecionadas para alcançar o objeti-vo. Representam o que fazer para articular concepções, objetivos e conteúdo, professor e aluno a fim de gerar desenvolvimento e apren-dizagem. Para se definirem as metodologias de ensino e aprendiza-gem, portanto, faz-se necessário pensarmos acerca de nossas concep-ções de homem, mundo, educação, desenvolvimento, aprendizagem, objetivos, conhecimentos etc. Importante, também, pensarmos em nossos valores e nossas crenças, nossa história, bem como na figura de nosso aprendiz, como alguém que precisa estar em constante in-teração. Por reconhecermos a importância da escolha de opções me-todológicas e de quaisquer outros componentes do processo peda-gógico, deixamos para você alguns exemplos de método/estratégias de ensino com base na contribuição de Léa das Graças Anastasiou

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Direitos humanos e cotidiano escolar

e Leonir Alves (2004), referências que poderão ser significativas na organização de sua atividade no trabalho pedagógico com os direitos humanos e a diversidade cultural.

Estudo de texto

Descrição Estudo crítico de um texto e/ou busca de informações e explorações de ideias dos autores estudados.

Operação de pensamento

Identificação/obtenção de dados/interpretação/crítica/análise/reelabo-ração/resumo.

Dinâmica de atividade

q Contexto e texto – data, tipo de texto, autor e dados sobre ele.q Análise textual – preparação do texto: visão de conjunto, busca de es-clarecimento, verificação de vocabulário, fatos autores citados, esquema-tização.q Análise interpretativa/exploração de texto – levantamento e discussão de problemas relacionados com a mensagem do autor.q Problematização – interpretação da mensagem do autor: corrente filo-sófica e influências, pressupostos, associação de ideia, crítica.q Síntese – reelaboração da mensagem, com base na contribuição pessoal.

AvaliaçãoProdução, escrita ou oral, com comentários do aluno, tendo em vistas as habilidades de compreensão, síntese, julgamento, inferências, interpreta-ção dos conteúdos fundamentais e as condições a que chegou.

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Silvia Lúcia Soares

Mapa conceitual

Descrição É o ato de estudar sob a orientação e diretividade do professor, visando sanar dificuldades específicas.

Operação de pensamento

Identificação/obtenção e organização de dados; busca de suposições; aplicação de fatos e princípios a uma nova situação.

Dinâmica de atividade

Prevê atividades individuais ou grupais, podendo ser socializadas:q leitura individual a partir de um roteiro elaborado pelo professor;q resolução de questões e situações-problemas, a partir do material estu-dado;q no caso de grupo de atendimento, debate sobre o tema estudado, per-mitindo socialização dos conhecimentos, a discussão de solução, a refle-xão e o posicionamento dos alunos diante da realidade vivida.

Avaliação Será realizada pelo acompanhamento da execução da atividade realizada.

Estudo dirigido

DescriçãoConstrução de um diagrama que indique a relação de conceitos em uma perspectiva bidimensional, procurando mostrar as relações hierárquicas entre os conceitos pertinentes à estrutura do conteúdo.

Operação de pensamento Interpretação/classificação/crítica/organização de dados/resumo.

Dinâmica de atividade

O professor poderá selecionar textos, dados, objetos, informações sobre uma temática e propor as seguintes atividades:q identificar conceitos chaves do objeto ou texto estudado;q selecionar os conceitos por ordem de importância;q incluir conceitos e ideias mais específicas;q estabelecer relações entre conceitos por meio de linhas e identificá-las com uma ou mais palavras que expliquem essa relação;q buscar estabelecer relações horizontais e cruzadas, traçá-las;q perceber que há diferentes formas de traçar o mapa conceitual;q compartilhar o mapa conceitual coletivamente, comparando-o e com-plementando-o;q justificar a localização de certos conceitos, verbalizando seu entendi-mento.

Avaliação

Acompanhar a construção do mapa conceitual a partir da definição cole-tiva dos critérios de avaliação:q conceitos claros;q relação justificada;q riqueza de ideias; criatividade na organização;q representatividade do conteúdo trabalhado.

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Direitos humanos e cotidiano escolar

Fórum

Descrição Espaço “tipo” reunião onde todos os integrantes têm a oportunidade de participar do debate sobre determinado tema ou problema.

Operação depensamento

Busca de suposições/hipótese/obtenção de organização dados/interpre-tação/resumo.

Dinâmica de atividade

q o professor deve explicar os objetivos do fórum;q delimitar o tempo total (40 minutos) ou parcial de cada participante;q definir as funções dos participantes;q coordenador;q grupo síntese;q público participante;q ao final, um membro do grupo de síntese relata o resumo elaborado.

Avaliação

A avaliação, estabelecida previamente, levará em conta:q a participação dos alunos debatedores e/ou como participante;q a habilidade de atenção e concentração;q a síntese das ideias apresentadas;q a apresentação de argumentos consistentes;q a produção de síntese.

Estudo de caso

Descrição Análise minuciosa e objetiva de uma situação real que necessita ser inves-tigada e é desafiadora para os alunos.

Operação de pensamento

Análise/interpretação/crítica. Levantamento de dados. Busca de suposi-ções/decisão.

Dinâmica de atividade

q o professor expõe o caso a ser estudado e apresenta o roteiro de orienta-ção do trabalho e o instrumento de avaliação a ser utilizado;q o grupo analisa o caso, expondo pontos de vista e os aspectos sob os quais o problema pose ser enfocado;q o grupo debate a solução, discernindo as melhores conclusões.

Avaliação

Será realizada por meio de ficha com critérios a serem considerados, tais como:q aplicação do conhecimento – argumentação;q coerência da prescrição;q riqueza dos argumentos.

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Silvia Lúcia Soares

Lista de discussão por meios informatizados

Descrição Debater à distância um tema.

Operação de pensamento

Comparação/organização/busca de suposições/construção de hipótese/obtenção e organização de dados.

Dinâmica de atividade

Debate realizado em fórum, com a intervenção do professor. Não é um momento de perguntas ou respostas entre o aluno e o professor, mas entre todos os componentes do grupo.

Avaliação Acompanhamento das participações, qualidades das inclusões, da elabo-ração apresentada.

Solução de problemas

DescriçãoPensamento reflexivo a partir de dados expressos em problemas; demanda de aplicação de princípios, de leis que podem ou não ser expressas em fórmulas matemáticas.

Operação de pensamento

Identificação/obtenção e organização de dados/planejamento/imagina-ção/elaboração de hipótese/interpretação/decisão.

Dinâmica de atividade

q apresentar ao aluno um determinado problema, mobilizando-o para a busca de solução;q orientar o aluno no levantamento de hipótese e na análise de dados;q executar as operações e comparar as soluções obtidas;q a partir da síntese, verificar a existência de leis e de princípios que pos-sam se tornar norteadores de situações similares.

AvaliaçãoObservação das habilidades dos alunos na apresentação das ideias quanto à sua concisão, logicidade, aplicabilidade e pertinência, bem como seu de-sempenho na descoberta de soluções apropriadas ao problema apresentado.

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Direitos humanos e cotidiano escolar

Avaliação

Não devemos nos esquecer de que a própria organização da es-cola representa interesses hegemônicos por meio das disciplinas ou dos conteúdos nela abordados, como também pela forma de conduta adotada na relação professor-estudantes e nos critérios de avaliação utilizados (Freitas, 1995). Em relação aos processos avaliativos, não podemos omitir que eles não são neutros ou imparciais, visto que refletem, em seus objetivos e intencionalidades, a concepção de edu-cação vigente às condições do trabalho. A avaliação não está isenta de intencionalidades, pois todo sistema avaliativo sustenta-se em de-terminado projeto social. “Avaliar é sempre tomar posição a partir de um ponto de vista” (Fischer, 2010: 43). Assim como a avaliação, o olhar tampouco é neutro.

Outro fator a ser referendado é que, de acordo com Luiz Carlos Freitas (1995), a forma de avaliação que vivenciamos está intima-mente atrelada à lógica do sistema capitalista pelos objetivos edu-

Phillips 66

Descrição É uma atividade grupal quando se realiza a discussão de um tema/problema.

Operação de pensamento

Análise/interpretação/crítica/levantamento de hipótese/busca de supo-sições/obtenção de organização de dados.

Dinâmica de atividade

q dividir os alunos em grupo de seis membros, que durante seis minutos podem discutir um assunto, tema, problema na busca de solução ou sínte-se provisória (a síntese pode ser exposta, durante seis minutos);q os grupos podem ter como suporte um texto ou simplesmente aporte teórico;q todos os grupos devem explicitar o resultado por seu representante.

Avaliação

A avaliação deve ser realizada em relação aos objetivos pretendidos, des-tacando-se:q o envolvimento dos membros dos grupos;q a participação conforme os papéis estabelecidos;q a pertinência das questões e/ou síntese elaborada;q o processo de autoavaliação dos participantes.

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Silvia Lúcia Soares

cacionais, configurando-se na “guardiã” de tais objetivos. Segundo o autor, os objetivos estão implícitos, ocultos, diluídos, enquanto a avaliação é um processo sistemático, até mesmo quando tratada de maneira informal. Dessa forma, no cotidiano escolar, os objetivos es-tão expressos nas práticas de avaliação, manifestando-se nas relações de poder que modulam a categoria conteúdo/método. Em outras palavras, os objetivos da escola (sua função social) determinam o par conteúdo/forma da escola. O autor alerta-nos que, somente com a alteração dos objetivos poderemos construir uma nova concepção de escola e, como consequência, uma nova concepção da prática de avaliação.

Na análise de Maria Teresa Esteban (1999), a avaliação é uma ati-vidade escolar e social tecida na tensão dos conflitos sociais. Por assim ser, a avaliação é utilizada em diferentes esferas sociais como instrumento de seleção e controle e como orientadora do processo de classificação. Sob o discurso da qualidade, a exclusão via avaliação passa a ser naturalizada como movimento natural para o alcance da qualidade pretendida. A autora afirma que os processos de avaliação atuam como mecanismo de exclusão por conjugarem dois movimen-tos articulados na dinâmica social:

a. o primeiro materializa-se por meio da seleção dos conhecimen-tos a serem avaliados e normalmente característicos aos segmen-tos que apresentam maior proeminência na hierarquia social;

b. o segundo está articulado à globalização, que intensifica a com-petição e reduz o papel do indivíduo, imputando-lhe toda a res-ponsabilidade do sucesso escolar sem analisar, portanto, o con-texto no qual está inserido, assim como as condições às quais está submetido.

Nessa perspectiva, temos observado uma intensa avaliação sem, contudo, considerar as práticas sociais. Essa avaliação fundamenta--se na seleção e não no compromisso com a aprendizagem. Prevalece

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Direitos humanos e cotidiano escolar

a dimensão classificatória em detrimento da dimensão formativa da avaliação, o que pode ser evidenciado nas inúmeras contradições re-veladas nos seguintes pares dialéticos: poder versus diálogo, ordem versus participação, aprovação versus reprovação, discurso progressis-ta versus avaliação tradicional, individualismo metodológico versus proposta coletiva.

Contrário a isso, defendemos que, no trabalho com direitos huma-nos e diversidade cultural, a avaliação mais condizente e formativa desempenha o papel de mediação e se apoia em princípios inversos ao individualismo, à competitividade, à classificação, à memorização e ao simples cumprimento de normas burocráticas. A função forma-tiva da avaliação refere-se ao ato reflexivo sobre o processo das apren-dizagens. Partimos da premissa de que o conhecimento se constrói não por acumulação, mas por reconstrução e reestruturação em um movimento dialético e histórico. Domingos Fernandes (2009) afir-ma que a avaliação só faz sentido se dotada de significados pelos su-jeitos que dela participam e, a partir daí, reformule ou redimensione a organização do trabalho pedagógico e as práticas avaliativas da es-cola e da sala de aula.

Considerações finais

Para além de uma área específica, a organização e a gestão do tra-balho pedagógico envolve saberes, conhecimento e mesmo a vida. Entendemos, pois, ser por meio dessa área que se solidifica o caráter político e pedagógico e reside a possibilidade da efetivação da inten-cionalidade da escola: a formação do cidadão participativo, respon-sável, compromissado, crítico e criativo, intimamente articulado ao compromisso sociopolítico da formação do cidadão para um tipo de sociedade.

Ancorados em Maria Vitoria Benevides (2007), advogamos que ao tratarmos da educação para os direitos humanos e a diversidade

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Silvia Lúcia Soares

cultural estamos nos referindo à educação para a cidadania na pers-pectiva do cidadão participativo e solidário, consciente de seus direi-tos e deveres e comprometidos com a democracia. Nesse sentido, a educação deve considerar algumas premissas, tais como:

a. o aprendizado deve estar vinculado à vivência do valor da igualda-de em dignidade e direitos para todos;

b. o aprendizado deve propiciar o desenvolvimento de sentimentos e atitudes de cooperação e tolerância;

c. o aprendizado deve levar ao desenvolvimento da capacidade de se perceber as consequências sociais e individuais de cada escolha;

d. a educação deve estar comprometida com o processo de mudança de práticas e condições que violam ou negam os direitos humanos.

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Autoras e autores

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Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

Ália Maria Barrios González – É professora do Curso de Psicologia do Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb). Graduada em psicologia pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Havana (UH), com diploma revalidado pelo Instituto de Psi-cologia da Universidade de Brasília (UnB). Mestre e doutora em Processos de Desenvolvimento Humano e Educação pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB).

Cléria Botêlho da Costa – É professora no Programa de Pós-Gra-duação em História (PPGHIS) e no Programa de Pós-Gradua-ção em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH) da Univer-sidade de Brasília (UnB). É doutora em história pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo (PPGHIS/USP), mestre em sociologia pelo Programa de Pós--Graduação em Sociologia (PPSOL) e graduada em ciência so-ciais, ambos pela UnB. Desenvolve pesquisas sobre os seguintes temas: memória, oralidade e literatura, história e direitos hu-manos, com ênfase nas identidades culturais e nas experiências dos sujeitos.

Clerismar Aparecido Longo – Graduado em história (bachare-lado e licenciatura) pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2005) e mestre em história pela Universidade de Bra-sília (2014). Tem experiência na área de história, com ênfase em história do Brasil, atuando principalmente nos seguintes te-mas: direitos humanos e educação em direitos humanos, justiça de transição, ditadura civil-militar, redemocratização do Brasil e história das mulheres e das relações de gênero.

Autoras e autores

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Eder Alonso Castro – É professor do Curso de Pedagogia e diretor da Escola de Formação de Professores das Faculdades Projeção de Brasília. Graduado em filosofia, educação artística e peda-gogia com mestrado e doutorado em Fundamentos da Educa-ção pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Francisco Lopes de Sousa – Graduação em serviço social pela Uni-versidade de Brasília (1999), em economia pela Associação Unificada de Ensino do Distrito Federal (1992) e mestre em política social pela Universidade de Brasília (2002). Tem expe-riência de pesquisa em política social e combate à exploração sexual de crianças e adolescentes.

Gabriela Sousa de Melo Mieto – É graduada em psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, dou-tora em Processos do Desenvolvimento Humano e Saúde pela Universidade de Brasília. É professora adjunta no Departa-mento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento (PED) do Instituto de Psicologia da UnB. Tem experiência na área de psicologia, com ênfase em psicologia do desenvolvimento hu-mano, atuando principalmente nos seguintes temas: psicologia escolar, psicologia do desenvolvimento, psicodiagnóstico, for-mação de professores, educação inclusiva, ensino especial e psi-cologia hospitalar. Atualmente dedica-se, sobretudo, ao desen-volvimento das crianças na primeira infância (0-6 anos) e aos processos de inclusão de pessoas com deficiência intelectual em contextos escolares e de trabalho.

Julia Chamusca Chagas – Possui graduação em psicologia e mes-trado em processos de desenvolvimento humano e saúde pela Universidade de Brasília. Tem experiência na área de psicolo-gia, com ênfase em psicologia escolar, atuando principalmen-te nos seguintes temas: educação infantil, gestão democrática, educação em direitos humanos e desenvolvimento atípico.

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Educação, direitos humanos e organização do trabalho pedagógico

Atualmente, é psicóloga escolar do Programa de Apoio a Pes-soas com Necessidades Especiais (PPNE) da Universidade de Brasília.

Larissa Medeiros Marinho dos Santos – Doutora em psicologia pela Universidade de Brasília, mestre em psicologia social e do trabalho, graduada e licenciada em psicologia pela mesma uni-versidade. Atualmente é professora adjunta do Departamento de Psicologia e colaboradora no mestrado da Universidade Fe-deral de São João del Rei. Atuas na áreas de desenvolvimento humano, psicologia ambiental e educação.

Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino – É professora do Depar-tamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, do Ins-tituto de Psicologia da Universidade de Brasília, integra o Pro-grama de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde (IP/UnB) e o Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (Ceam/UnB). Graduada em psicologia, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de Ribeirão Preto (USP), mestre em lógica e filo-sofia da ciência, doutora em filosofia pela Universidade Esta-dual de Campinas (Unicamp). Fez pós-doutorado em filosofia pela Universidade de Paris 8 e Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão em processos de desenvolvimento humano, filosofia da psicologia, psicologia, educação e processos de subjetivação, psicologia política e direitos humanos.

Regina Sucupira Pedroza – Possui graduação, mestrado e doutora-do em psicologia pela Universidade de Brasília e pós-doutorado em Sciences de l’Éducation pela Universidade de Paris 5, René Descartes. Atualmente, é professora adjunta da Universidade de Brasília no Instituto de Psicologia. Tem experiência na área de psicologia, com ênfase em desenvolvimento e psicologia es-

Autoras e autores

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colar, atuando principalmente nos seguintes temas: educação, formação de professor, formação de educadores para educação em direitos humanos, formação da personalidade, o brincar no desenvolvimento humano, psicanálise e psicologia do Esporte.

Sílvia Lúcia Soares – Possui graduação em pedagogia pela Univer-sidade Católica de Brasília, mestrado e doutorado em educação pela Universidade de Brasília, onde pesquisou sobre a avaliação para as aprendizagens, institucional e em larga escala em cursos de formação de professores: limites e possibilidades de interlo-cução. É professora conveniada da Secretaria de Educação do Distrito Federal/Universidade de Brasília. Possui experiência na área de educação, com ênfase em formação de professores, organização do trabalho pedagógico e avaliação educacional.

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