Educação Do Campo Pocesso de Ocupação Social e Escolar

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Educação do Campo: processo de ocupação social e escolar Fernando José Martins 1 Resumo Denominar a Educação do campo como um processo é uma maneira de destacar a recente introdução da categoria educacional e, também, sua própria dinâmica de consolidação, que se faz em movimento e por movimentos. A temática aqui exposta abrangerá três dimensões fundamentais: o próprio conceito de Educação do Campo, sua gênese e sua abrangência, a relação existente entre essa categoria e outras categorias sociais, no caso, o campo e seus sujeitos e considerações acerca da materialização da Educação do Campo como ocupação. Indicar como recente a Educação do campo, é de saída, delimitar as diferenças entre esta e a educação rural, o processo de escolarização existente na zona rural brasileira. Pode-se caracterizar educação do campo como um movimento, constituído pelos sujeitos sociais que integram as realidades camponesas, e que, almeja vincular o processo de vida no campo com os pressupostos educacionais, aliando assim escola e vida, os pressupostos da cotidianidade rural e os processos educativos formais. A diferenciação dessa proposta reside na sua construção, que é idealizada, operacionalizada pelos sujeitos do campo. A proposta da Educação do Campo, não é meramente pedagógica, ao buscar relacionar escola e vida, também se almeja a veiculação de uma determinada concepção de campo, na qual esse seja um lugar de vida. Essa compreensão de distingue da concepção de campo hegemônico, na qual o campo é apenas um espaço de produção, na qual não os meios para socialização, cultura, educação para os moradores da zona rural, não estão inseridos. Assim, compreender o processo de Educação do Campo, e não no campo, é também constituir esse com um espaço de existência, com todos os elementos disponíveis em outros espaços, como as cidades. Ao evidenciar tais características e perspectivas, cumpre assinalar que a Educação do Campo não encontra-se somente em torno de aspirações. As práticas construídas coletivamente, já ganham espaços consideráveis na realidade escolar brasileira. Como sua essência conflita com interesses socialmente estabelecidos para a educação, os avanços da educação do campo configuram-se como ocupações no embate político e ideológico. Propor uma escola do e no campo, opondo-se ao processo de racionalização das escolas rurais, e reverter esse quadro com a expansão da referida rede, só se vez com a ocupação dos espaços pelos sujeitos neles inseridos. Outros indícios da referida ocupação podem ser evidenciados pelos elementos curriculares, preencher, ou melhor, ocupar disciplinas, atividades escolares com conteúdos relacionados à realidade camponesa é ume exemplo dessa prática. Pode-se citar ainda o caráter metodológico, como a organização curricular por temas geradores, calendários específicos, e a pedagogia da alternância, são instrumentos que apontam para a ocupação consistente dos sujeitos sociais na escola que a eles pertence. A relação entre essas três dimensões, que em síntese é a conquista dos espaços sociais pelos sujeitos que os constitui, permeada por um projeto societal contra-hegemônico é um dos elementos que caracteriza a Educação do Campo e denota seu diferencial em relação às práticas educativas hegemônicas. 1 Docente do Colegiado de Pedagogia da Unioeste – Universidade Estadual do Oeste do Paraná – campus de Foz do Iguaçu. Doutorando em Educação pela UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista do CNPq. [email protected]

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Educação Do Campo Pocesso de Ocupação Social e Escolar

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  • Educao do Campo: processo de ocupao social e escolar

    Fernando Jos Martins1

    Resumo

    Denominar a Educao do campo como um processo uma maneira de destacar a recente introduo da categoria educacional e, tambm, sua prpria dinmica de consolidao, que se faz em movimento e por movimentos. A temtica aqui exposta abranger trs dimenses fundamentais: o prprio conceito de Educao do Campo, sua gnese e sua abrangncia, a relao existente entre essa categoria e outras categorias sociais, no caso, o campo e seus sujeitos e consideraes acerca da materializao da Educao do Campo como ocupao. Indicar como recente a Educao do campo, de sada, delimitar as diferenas entre esta e a educao rural, o processo de escolarizao existente na zona rural brasileira. Pode-se caracterizar educao do campo como um movimento, constitudo pelos sujeitos sociais que integram as realidades camponesas, e que, almeja vincular o processo de vida no campo com os pressupostos educacionais, aliando assim escola e vida, os pressupostos da cotidianidade rural e os processos educativos formais. A diferenciao dessa proposta reside na sua construo, que idealizada, operacionalizada pelos sujeitos do campo. A proposta da Educao do Campo, no meramente pedaggica, ao buscar relacionar escola e vida, tambm se almeja a veiculao de uma determinada concepo de campo, na qual esse seja um lugar de vida. Essa compreenso de distingue da concepo de campo hegemnico, na qual o campo apenas um espao de produo, na qual no os meios para socializao, cultura, educao para os moradores da zona rural, no esto inseridos. Assim, compreender o processo de Educao do Campo, e no no campo, tambm constituir esse com um espao de existncia, com todos os elementos disponveis em outros espaos, como as cidades. Ao evidenciar tais caractersticas e perspectivas, cumpre assinalar que a Educao do Campo no encontra-se somente em torno de aspiraes. As prticas construdas coletivamente, j ganham espaos considerveis na realidade escolar brasileira. Como sua essncia conflita com interesses socialmente estabelecidos para a educao, os avanos da educao do campo configuram-se como ocupaes no embate poltico e ideolgico. Propor uma escola do e no campo, opondo-se ao processo de racionalizao das escolas rurais, e reverter esse quadro com a expanso da referida rede, s se vez com a ocupao dos espaos pelos sujeitos neles inseridos. Outros indcios da referida ocupao podem ser evidenciados pelos elementos curriculares, preencher, ou melhor, ocupar disciplinas, atividades escolares com contedos relacionados realidade camponesa ume exemplo dessa prtica. Pode-se citar ainda o carter metodolgico, como a organizao curricular por temas geradores, calendrios especficos, e a pedagogia da alternncia, so instrumentos que apontam para a ocupao consistente dos sujeitos sociais na escola que a eles pertence. A relao entre essas trs dimenses, que em sntese a conquista dos espaos sociais pelos sujeitos que os constitui, permeada por um projeto societal contra-hegemnico um dos elementos que caracteriza a Educao do Campo e denota seu diferencial em relao s prticas educativas hegemnicas.

    1 Docente do Colegiado de Pedagogia da Unioeste Universidade Estadual do Oeste do Paran campus de

    Foz do Iguau. Doutorando em Educao pela UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista do CNPq. [email protected]

  • Palavras-chave: Educao do Campo Ocupao.

    O presente texto tem como objetivo central demonstrar um fenmeno social e educacional a educao do campo que vem se construindo e consolidando, principalmente nas ltimas duas dcadas no Brasil. Na presente demonstrao, trs caractersticas especficas tambm sero evidenciadas: o prprio conceito de Educao do Campo, sua gnese e sua abrangncia; a relao existente entre essa categoria e outras categorias sociais, no caso, o campo e seus sujeitos e consideraes acerca da materializao da Educao do Campo como ocupao.

    A constituio da Educao do Campo no cenrio educacional do Pas, como categoria construda socialmente e pelos sujeitos sociais que a compem, leva ao problema: como se apresenta a educao do campo no cenrio educacional hoje? Assim, quais so as principais caractersticas, como se apresentam os desdobramentos da questo central (principalmente a prtica social efetiva da educao do campo), ocupando espaos importantes no cenrio educativo do pas, so objetos a serem aqui expostos e investigados. Para maior facilidade didtica, o texto composto por trs subdivises equivalentes as trs caractersticas evidenciadas no debate.

    Metodologicamente, cumpre assinalar que o exposto aqui um fragmento da pesquisa de doutorado do autor que tem como foco central a ocupao da escola. Trata-se de uma pesquisa participante, realizada em escolas do campo, situada no interior de um assentamento de reforma agrria. A metodologia utilizada permite a vinculao orgnica, permanente com a base emprica da pesquisa. Os recursos mais utilizados so a observao, a prtica educativa coletiva. Essa ressalva sobre a metodologia no necessria somente por se tratar de uma exigncia de estruturao do texto, mas porque os apontamentos da presente exposio, primeira vista, podem parecer somente efetuados a partir de um debate terico. Contudo, justamente o contrrio: a partir das relaes educativas produzidas coletivamente que so expressos os conceitos aqui apresentados.

    Educao do campo: construo, conceito e trajetria

    Muitos estudos realizados, como os de Leite (1999) e Calazans (1993), evidenciam que a educao rural no Brasil - at a dcada de 1990, quando a categoria educao do campo inicia sua construo - est atrelada a um modelo de poltica

  • econmica comprometido com as elites e ligada s oligarquias rurais. Em suma, desde a insero da discusso acerca da problemtica da educao do campo na legislao e na prtica educacional de nosso pas, as iniciativas que intuem remeter-se questo so, direta ou indiretamente, protagonizadas por representantes das minorias da questo agrria. Os verdadeiros interessados na questo (camponeses em todas as categorias de sem-terras a pequenos produtores) ficaram margem do debate. O que se pretende aqui situar a necessidade do debate brasileiro na atualidade, posto sobre outras bases, que democraticamente priorizem-se as maiorias dos componentes da vida camponesa, visando unidade do sistema escolar, respeitando as diversidades do mesmo. Em uma palavra, cumprir o movimento dialtico da unidade na diversidade.

    Os posicionamentos a favor da especificidade da educao do campo encontram uma crtica constante, pautada na seguinte premissa: Ao estabelecer a especificidade da educao do campo, incorre-se no erro de dicotomizar o sistema de ensino, fazer uma oposio frontal entre rural e urbano, campo e cidade, matuto e cidado.

    Em nome de uma pretensa unidade, o que se observa o descaso em relao populao camponesa; o estabelecimento de uma poltica de extenso2 dos saberes cultos da vida urbana para o campo. Enfim, a escola do campo tratada como um apndice da escola urbana, precariamente estabelecida sobre bases estranhas sua sntese social, que responsvel por sua condio de existncia.

    No entanto, perceptvel que a dicotomia est estabelecida em uma esfera mais ampla do convvio social, classificada por Marx como classes sociais. Em sntese, tal dicotomia encontra-se socialmente instituda na ciso entre os detentores dos meios de produo aqui compreendidos tambm enquanto propriedade privada da terra e os que necessitam vender sua fora de trabalho. Entender a educao rural como elemento ratificador da ordem mantenedora dessa relao de submisso do trabalho ao capital , de forma direta ou indireta, antagnico idia de educao enquanto emancipao humana.

    Por ser um problema de classes, a oposio entre rural e urbano uma questo social, que produz a excluso do homem do campo. O conjunto das aes executadas, com base na racionalizao econmica neoliberal, gera, em toda a sua extenso, srias conseqncias sociais materializadas nos altos ndices de excluso social.

    2 Extenso no sentido dado por Paulo Freire, de estender os saberes corretos, cientficos aos

    camponeses. Cf. FREIRE, Paulo. Extenso ou Comunicao? 11. ed. So Paulo: Paz e Terra, 2001.

  • Correntemente, no meio educacional, utiliza-se o termo excluso para definir a prtica discriminatria em relao aos portadores de necessidades educativas especiais deficientes fsicos, mentais, cegos, surdos e mudos. O que se pretende aqui ampliar o sentido da excluso em educao para categorias culturais e econmicas, como os privados financeiramente do acesso escola, os povos indgenas, alunos que levam para a escola um linguagem estigmatizada socialmente e, especificamente, os habitantes da zona rural, que por privao de direitos sociais cada vez mais aguda, tm o seu direito educao negado.

    E na realidade camponesa atual no Brasil, que conta com 31.835.143 de pessoas no campo, ou seja, 19% do total da populao3, o atendimento escolar junto populao rural escasso, quando no inexistente. Esses dados, longe de pretender uma anlise mais profunda das polticas educacionais para as escolas do campo, figuram como elementos que destacam o alto ndice de excluso e de privao dos direitos aos quais so submetidos os educandos e as educandas que se encontram na zona rural.

    Nesse sentido, ao observar a estrutura educacional brasileira nos dias atuais, seus altos ndices de analfabetismo, evaso escolar, as diferenas sociais regionais, enfim, o panorama educacional contemporneo, constata-se que a excluso um fenmeno crescente. Especificamente em relao ao campo, os dados so avassaladores.

    Propor uma educao inclusiva , antes de qualquer coisa, compreender as especificidades desses excludos, que, mesmo nessas condies, fornecem elementos culturalmente ricos, de suma relevncia para a prtica pedaggica. Em uma palavra: incluir as minorias privadas de direitos pressupe a compreenso de suas especificidades como componentes de uma totalidade na qual eles estejam inseridos.

    Remeter-se s especificidades das minorias excludas e das camadas populacionais situadas margem do processo educacional no somente destacar suas carncias, mas tambm salientar seus elementos culturais singulares, que se constituem, alm de ponto de partida para uma ao pedaggica, uma riqueza cultural. O tratamento especfico da educao rural, teria, pois, dois fundamentos: a condio carente do homem do campo ou sua pobreza econmica e, em contraste, sua riqueza cultural. (ARROYO, 1982, p. 3) Pois frente carncia de estruturas, possibilidades e aes estatais no meio rural, possvel se identificar um rico alicerce de atividades culturais, tradies, costumes e envolvimento social local nas atividades localizadas no campo.

    Para postular a educao do campo necessria uma caracterizao, na

    3 Fonte: Censo Demogrfico 2000 IBGE.

  • qual fique expressa a natureza da identidade especfica constituinte da educao do campo. A expresso Por uma educao do Campo fruto de uma srie de discusses, nas quais so envolvidos os protagonistas de fato dessa modalidade: educadores e educandos do campo.

    Em linhas gerais, pode-se afirmar que essa expresso traz em si uma postura que assume a especificidade da educao do campo, pois rompe com a idia de que a escola, no campo, deve se constituir como uma extenso ou um apndice das escolas urbanas. Tambm se pode destacar que no somente uma expresso. Educao do Campo vem se consolidando como uma categoria, ou, como apontam os documentos educacionais, uma modalidade educativa no interior do sistema. mais apropriado falar em categoria, pois o contedo, o significado e o movimento que a envolver produz novas prticas e compreenses sobre um determinado fenmeno educativo no Brasil.

    O campo mais que uma concentrao espacial geogrfica; o cenrio de uma srie de lutas e movimentos sociais; ponto de partida para uma srie de reflexes sociais; um espao culturalmente prprio, detentor de tradies, msticas e costumes singulares; ainda um espao com dimenses temporais independentes do calendrio convencional civil. Enfim, o homem e a mulher do campo so sujeitos historicamente construdos a partir de determinadas snteses sociais, que so especficas, de dimenses diferentes das urbanas.

    Assumir essa premissa pressupe corroborar com a afirmao da insuficincia da extenso da escola urbana para o campo. Um dos resultados visveis no Brasil da reivindicao acerca da especificidade da educao do campo est expresso na insero de tal elemento na legislao educacional brasileira, mais especificamente nas Diretrizes Operacionais para Educao Bsica das Escolas do Campo. No seu artigo 2 Pargrafo nico, aponta os elementos que definem a identidade da educao e da escola do campo que, por sua vez, anota tambm sua especificidade.

    A identidade da escola do campo definida pela sua vinculao s questes inerentes sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes prprios dos estudantes, na memria coletiva que sinaliza futuros, na rede de cincia e tecnologia disponvel na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as solues exigidas por essas questes qualidade social da vida coletiva no pas. (BRASIL, 2001)

    Nesse sentido, so excludentes atitudes como afirmar que a educao do

  • campo e urbana devem ser tratadas uniformemente. Ou ainda, estabelecer a tica da racionalizao econmica para o atendimento das crianas do campo, arrancando-as de suas realidades, com um processo desgastante4 de transporte rural e as depositando em escolas estranhas sua realidade. A excluso mais brutal aquela que priva totalmente os moradores do campo de seu direito educao.

    Esse movimento de excluso social que caracteriza a problemtica da educao do campo, observada do ponto de vista dialtico, carrega consigo um ndice de positividade, pois uma vez frente a uma realidade excludente, o tecido social fornecer elementos capazes de atuar visando reverso desse quadro. Essa afirmao delineia a forma de interveno que se pretende alcanar frente a esse quadro: inserir a escola no debate de que so insuficientes as condies dadas no sistema de organizao social atual, para viabilizar qualquer possibilidade de emancipao humana ou social.

    Ao valorizar a identidade cultural do homem/mulher do campo, ao estabelecer que a educao condizente com as necessidades desse povo vai alm da apreenso de novas tcnicas agropecurias, ao buscar condies reais para que os povos do campo tenham acesso educao (vista como desenvolvimento das potencialidades humanas) est se proclamando um projeto societal pautado em valores que privilegiam o ser em detrimento do ter, que estabelecem prioridades ao ser humano e no ao capital; est se propondo uma sociedade que procure na solidariedade e no na competio alicerce para as relaes sociais.

    Com esse objetivo maior, a sociedade organizada5 em torno da questo da educao do campo implementa aes e reflexes sobre a questo e, nesse movimento de busca e de construo coletiva, materializa as condies para efetivao do direito escola para a populao do campo. Resumidamente, e de forma restrita educao formal, os integrantes da Conferncia Nacional Por Uma Educao do Campo postulam as seguintes conquistas: ampliao da Educao de Jovens e Adultos; implementao de programas de formao para os educadores do campo; garantia da Educao Infantil e da Educao Fundamental nas comunidades do campo; formao tcnica voltada s demandas

    4 H casos narrados por moradores rurais, em que as crianas saem de suas casas s cinco e

    trinta da manh, para seguir por estradas precrias mais de 50 km em um nibus com lotao superior a cem passageiros, retornando a seus lares ao anoitecer. 5 H um movimento constitudo por educadores e educandos e entidades voltadas para a

    Educao do Campo, que conta com o acmulo de discusses sobre a temtica. Os vrios materiais publicados por este movimento esto relacionados nas referncias. As reivindicaes citadas a seguir referem-se Declarao 2002, aprovada no Seminrio Nacional Por Uma Educao do Campo, realizado em Braslia de 26 a 29 de novembro de 2002.

  • de capacitao dos trabalhadores do campo; implementao de polticas pblicas de valorizao profissional dos educadores do campo; implantao de bibliotecas, brinquedotecas, salas de leitura, salas de informtica com acesso Internet nas escolas do campo; criao de secretaria ou coordenao da Educao do Campo no Ministrio da Educao; criao de poltica de financiamento para a educao do campo, em todos os nveis.

    A prpria existncia da articulao uma prtica que merece uma ateno. Trata-se de um movimento que congrega foras sociais relacionadas s questes camponesas, de distintas orientaes polticas e que, numa identidade coletiva, postula um atendimento educativo condizente com as necessidades sociais dos sujeitos que compem o campo demandatrio. E ainda, cabe salientar que o projeto educativo almejado se contrape ao projeto de campo e de agricultura vigente no pas, tornando a tarefa do referido movimento mais penosa, portanto, mais significativa.

    A Educao do campo, o campo e a comunidade.

    Um dos principais elementos que consolidam e do solidez prtica da educao do campo o envolvimento com a comunidade. As polticas para a chamada educao rural sempre tiveram como objetivo uma vinculao a um projeto de ruralidade do pas. Dessa maneira, os contedos da educao rural esto a servio de um projeto de agricultura e de campo, em que a mecanizao e a insero do controle qumico das culturas so prioridades em detrimento das condies de vida do homem no campo.

    Assim, pode-se afirmar que a educao rural um dos elementos condutores de uma compreenso econmico-social de campo, um paradigma que orientou polticas e prticas educativas efetuadas nas zonas rurais, promovendo a excluso educacional j aludida anteriormente. Em relao a esse paradigma hegemnico de campo, cabe ressaltar:

    Na relao homem-terra, esse paradigma se fortalece pelo princpio da excluso de tudo que no o comporta. No paradigma do rural tradicional, h, pois, seleo e rejeio de idias integradas nas teorias que fundamentam esse modelo. No contexto discutido, as idias so perceptveis por produo em larga escala, uso desmesurado de agrotxicos, rejeio de conhecimentos e saberes da tradio de trabalhadores, dentre outros. Desse modo, o paradigma do rural

  • tradicional elege, seleciona o que lhe interessa como modelo econmico e cultural. (FERNANDES, MOLINA, 2005: 57)

    Na contraposio desse projeto de campo, os sujeitos que constituem, que almejam esse mesmo campo como lugar de vida, procuram desenhar uma prtica educativa condizendo com os espaos culturais nos quais produzem sua existncia. A prtica educativa nomeada de educao do campo oriunda da construo coletiva dos sujeitos sociais camponeses, que antes de debrussarem-se sobre uma proposta educativa, se manifestam por um projeto contra-hegemonico de campo, fato indispensvel para a manuteno de qualquer outro projeto a ser realizado no campo, uma vez que a possibilidade de promover a vida no campo fundamental antes de qualquer outra atividade.

    essa articulao com um projeto de lugar e de sociedade que confere educao do campo a essncia de sua singularidade. A distino com a educao rural, o apreo pela apresentao gramatical da expresso educao DO campo, contrapem-se educao NO campo, por entender que mais que uma prtica educativa realizada na zona urbana, uma prtica educativa que se constri a partir do local. Frisar que a educao DO campo acentuar a reconstruo social desse espao pelos seus sujeitos, fato que antecede a prtica educativa formal.

    Esta viso do campo como um espao que tem suas particularidades e que ao mesmo tempo um campo de possibilidades de relao dos seres humanos com a produo das condies de existncia social confere Educao do Campo o papel de fomentar reflexes que acumulem fora e espao no sentido de contribuir na desconstruo do imaginrio coletivo sobre a viso hierrquica que h entre campo e cidade; sobre a viso tradicional do jeca tatu, do campo como lugar do atraso. A Educao do Campo, indissocia-se da reflexo sobre um novo modelo de desenvolvimento e o papel para o campo nele. (FERNANDES, MOLINA, 2005: 68)

    Para efetivao dessa prtica da educao do campo, est sendo inserida uma prtica que muito se aproxima de uma ferramenta criada por um movimento social que constitui o movimento mais amplo de educao do campo: o MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A insero da perspectiva de campo, na contracorrente da hegemonia vigente, s se consolida com a ocupao dos espaos possveis, sejam no

  • debate terico e acadmico, seja nos espaos rurais com a ocupao da terra propriamente dita, ou ainda, na prtica educativa, fato constituinte das caractersticas do debate sobre a educao do campo no Brasil. Dessa maneira, ser dedicado um espao especifico, a seguir, para essa ocupao no presente texto.

    Ocupao e Educao do Campo

    Ao abordar a temtica, perceptvel que essa no seja uma concepo hegemnica. A educao do campo est se forjando e ganhando espaos no debate educacional, legal e cientfico. Essa construo coletiva tem a insero, por vezes efetuada pelos movimentos sociais, mas, de maneira geral, pelos sujeitos do campo. Dessa forma, a educao do campo ocupa espao de debate educacional em nvel nacional. Isso um processo de ocupao da escola. Tal processo se materializa em diversas instncias: no plano legal, com o estabelecimento das Diretrizes Operacionais para Educao Bsica nas Escolas do Campo e, principalmente, com seu contedo; no plano poltico, com a conteno do processo de extino das escolas rurais, sua re-insero no debate educacional e na estrutura estatal; e, principalmente, no plano identitrio, com a promoo do debate sobre a cultura camponesa, seus valores e a manuteno da vida no campo. Esse um pequeno exemplo, mas cumpre a funo de evidenciar que o conceito a ser trabalhado aqui, embora tenha vnculo imediato s prticas educativas do MST, tem uma funo e alcance mais amplo, pois articula as instncias j citadas e debatidas, como concepo de Estado, modo de produo, pblico/privado, democracia e, sobretudo, de sociedade.

    Contudo, mesmo com o avano acima destacado, a viabilizao da educao do campo (em sua plenitude e na escola pblica como um todo) necessita de uma ocupao poltica bem maior e em todos os aspectos, iniciando na prpria existncia de unidades escolares. Por mais que seja propagado em termos numricos a quase universalizao da educao bsica para a totalidade da populao, essa universalizao no se completou. Ainda h no pas crianas em idade escolar sem acesso educao formal e a estatstica cresce quando aumenta a idade dos educandos. Isso pode ser averiguado com a tabela abaixo, que alm de apontar a mdia de escolarizao evidencia o distanciamento entro os ndices rurais e urbanos. (INEP, 2007:15)

  • Tabela 3 Nmero mdio de anos de estudos da populao de 15 anos ou mais Brasil e Grandes Regies 2001/2004

    Acompanhando a ausncia de escolaridade, o fato apontado acima (de quanto maior o nvel de escolarizao, maior ainda a privao por parte da populao do campo escola) uma realidade numrica, quando os dados de taxa de freqncia escolar so analisados. As tabelas abaixo, mostram esse declnio crescente e evidenciam ainda mais o distanciamento entre campo e cidade. (INEP, 2007:17-8).

    Ocupar a escola politicamente se faz com a reivindicao direta pela educao pblica como direito de todos. Ou seja, que a escola exista. Principalmente no campo, onde sensvel sua ausncia.

    Historicamente, a educao do campo precarizada (LEITE, 1999). no campo que se concentra o maior nmero de ndices educativos negativos, A estrutura escolar nessas reas muito tmida e ficou ainda mais precarizada com a alternativa

  • neoliberal amplamente utilizada (principalmente na dcada de 1990) de nuclearizao das escolas rurais, cujos alunos, de diversas localidades eram transportados para escolas localizadas nas sedes dos municpios. Essa ao encolheu ainda mais a rede escolar rural. A sntese estatstica oferecida pelo prprio Estado evidencia esse fato. (INEP, 2007)

    Dessa maneira, politicamente, a ampliao da rede de escolas no campo um avano extremamente necessrio. E a ocupao com qualidade um fenmeno, infelizmente raro, pois as escolas da zona rural assumem uma tendncia de contarem com uma infra-estrutura mnima, precariedade estendida a vrios aspectos, inclusive nas condies de trabalho docente. Assim, no presente estudo (considerando a realidade material do sujeito de estudo) um aspecto que integra o relato da ocupao se relaciona com o aspecto poltico, e o avano nas condies materiais (sejam de infra-estrutura, ou de condies de trabalho ou ainda a formao de seus professores). Especificamente em relao infra-estrutura, o quadro comparativo (INEP, 2007:29) aponta alguns elementos que denotam o carter as diferenas entre as escolas urbanas e rurais.

    O simples fato de o movimento da Educao do Campo estar sensibilizando e revertendo as carncias educacionais da condio escolar na zona rural j seria suficiente para demonstrar a ocupao desse espao que vem se consolidando no pas. Contudo, cabe ressaltar provisoriamente que a ocupao um processo que no se esgota na materialidade escolar, na escola propriamente dita. .A ocupao se faz pedagogicamente, na estrutura, contedos e prticas pedaggicas, na prpria organizao do trabalho pedaggico da escola do campo e, sobretudo, na estrutura social, na

  • compreenso de campo imperante no pas e nas relaes sociais que nele se estabelecem. Assim, no somente amparada e constituda por um movimento social: a educao do campo, tambm movimento e s se efetiva quando em movimento.

    Consideraes Finais

    Falar em consideraes finais no bem apropriado para a metodologia utilizada tanto no trabalho, quanto nos objetos sociais do trabalho aqui apresentado. Contudo, prope-se aqui a emitir apreciaes sobre a relevncia das experincias demonstradas e, ainda, o que diz respeito a sua contribuio para um projeto educacional contra-hegemnico.

    Das experincias aqui narradas, duas constataes as fundamentais: primeiro, seja no MST ou mais amplamente, na educao do campo, o trabalho coletivo fundamental. No seria possvel a realizao de tais prticas pautada na individualidade e a segunda que o processo educativo, embora muitas vezes a prpria escola se esquea disso, um processo social. Dessa maneira, fundamental a articulao entre escola e vida, escola e realidade, escola e prtica social. De tais constataes, a sua pormenorizao constituir as consideraes que concluem o texto.

    O trabalho coletivo, que se vincula ao sentimento de pertena ao empreendimento educativo, um dos fatores constituintes do xito das atividades educativas da educao do campo e tambm, pode-se dizer, de sua atividade singular enquanto movimento social. Alm de determinado organizacionalmente, o trabalho coletivo sustenta materialmente atividades como a Pedagogia da Terra6, por exemplo, em que a organizao dos tempos escolares feita, basicamente, pelos envolvidos na atividade, ou ainda, na existncia da maioria da escola do movimento, que, frente necessidade da existncia da escola, pais e mes, organizao do movimento, lideres e os estudantes, se organizam em vrias atividades para garantir o direito educao. Tarefas como a construo material da escola, o tensionamento aos poderes pblicos, a organizao dos estudantes, s se consolidam com a participao de todos. A coletividade se expressa no movimento mais amplo de educao do campo.

    6 Curso de formao de professores, realizado em vrias universidades brasileiras, e oferecido para

    educadores(as) do campo, viabilizado pelo Ministrio do Desenvolvimento Agrrio.

  • O casamento da escola com a vida que torna possvel a efetivao de diversas prticas educativas aqui relatadas. A ampliao da rede escolar rural um exemplo emblemtico da afirmao. Se o olhar da educao do campo permanecesse fixo na escola, a rede no seria ampliada e sim diminuda, pois o projeto hegemnico de ruralidade brasileira no contempla a manuteno da vida na terra, mas sim a concentrao demogrfica no permetro urbano. Somente um projeto de campo, pautado na valorizao da cultura camponesa, na reproduo da existncia da vida no campo se articula com a ampliao das redes escolares em tais localidades. Essa articulao evidencia, de acordo com exemplos citados anteriormente, a viabilidade da existncia de aes contra-hegemnicas, que apontam, para os mais cticos, a possibilidade concreta da construo de uma educao emancipatria.

    Para finalizar, o maior xito das experincias descritas reside na articulao de suas prticas educativas com um projeto societal mais amplo do que se faz presente na realidade mundial, socialista ou emancipador. O projeto presente na Educao do Campo, se contrape ao projeto de educao e de escola do capital e faz isso, antes, no tipo de sociedade que produz essa escola e essa educao. Ou seja, a proposta educativa no encontrada na escola, mas na sociedade. O processo chamado educao no reside na instituio, nas agncias educativas, mas no ser humano e na produo de sua existncia.

    Referncias:

    ARROYO, Miguel. Gonzalez. Escola Cidadania e Participao no Campo. Em Aberto. Braslia: n 9, Set., 1992.

    BRASIL. MEC/CNE. Diretrizes Operacionais para Educao Bsica nas Escolas do Campo. Parecer CNE/CEB n 36/2001, aprovado em 4 de dezembro de 2001.

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