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EIXO TEMÁTICO: 1. QUALIDADE DA DEMOCRACIA E LIBERDADE. IDENTIFICAÇÃO DO TRABALHO: ARTIGO. EM CENA “PERSÉPOLIS”: A REVOLUÇÃO, O VÉU E A FRATERNIDADE Geralda Magella de Faria Rossetto 1 Tailine Fatima Hijaz 2 Resumo: Adotando por marco histórico a tríade da Revolução Francesa, pode-se dizer que a fraternidade passou a ser compreendida como categoria política, é dizer, passou a ser “interpretada e praticada politicamente” pela primeira vez quando da sua fundamental aproximação e interação com a liberdade e igualdade, formando a tríade de princípios interdependentes que serviram de inspiração para um mundo novo que se vislumbrava. Inobstante, para Baggio (2008), esse novum que questiona o modo como o cristianismo até então interpretara a fraternidade é um novum que é anunciado e logo em seguida decai, pelo desaparecimento, quase que imediato, da fraternidade da cena pública. A principal consequência desse esquecimento pode ser observada em inúmeros eventos que ocorreram na história ocidental e oriental. Certamente o principal deles diz respeito à convivência antagônica pois desprovida da fraternidade, nos dizeres de Baggio (2008) - que se instalou entre liberdade e igualdade. Esse conflito que constantemente ocorre entre os dois princípios “famosos” da tríade francesa é retratado de uma forma sui generis no filme de animação “Persépolis” (França, 2007), que também foi objeto do livro de mesmo nome, o qual deu base ao referido filme, cujo título é uma referência à histórica cidade de Persépolis e foi baseado no drama/romance gráfico, autobiográfico homônimo de Marjane Satrapi (1969), tendo sido dirigido por ela, ao lado de Vincent Paronnaud. Sua trama começa pouco antes da Revolução Iraniana/Islâmica (1979), quando Marjane atinge a adolescência, e encerra quando ela é uma expatriada aos 22 anos. Com efeito, o referido filme tem como mote drama, romance, história - épica, moderna, contemporânea, e, também pessoal 1 Mestre em Direito Público pela Unisinos. Procuradora Federal na Procuradoria Seccional Federal da Advocacia Geral da União. E-mail: [email protected]. 2 Estudante de Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense. E-mail: [email protected].

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EIXO TEMÁTICO: 1. QUALIDADE DA DEMOCRACIA E LIBERDADE.

IDENTIFICAÇÃO DO TRABALHO: ARTIGO.

EM CENA “PERSÉPOLIS”: A REVOLUÇÃO, O VÉU E A FRATERNIDADE

Geralda Magella de Faria Rossetto1

Tailine Fatima Hijaz2

Resumo: Adotando por marco histórico a tríade da Revolução Francesa, pode-se

dizer que a fraternidade passou a ser compreendida como categoria política, é dizer,

passou a ser “interpretada e praticada politicamente” pela primeira vez quando da

sua fundamental aproximação e interação com a liberdade e igualdade, formando a

tríade de princípios interdependentes que serviram de inspiração para um mundo

novo que se vislumbrava. Inobstante, para Baggio (2008), esse novum que

questiona o modo como o cristianismo até então interpretara a fraternidade é um

novum que é anunciado e logo em seguida decai, pelo desaparecimento, quase que

imediato, da fraternidade da cena pública. A principal consequência desse

esquecimento pode ser observada em inúmeros eventos que ocorreram na história

ocidental e oriental. Certamente o principal deles diz respeito à convivência

antagônica – pois desprovida da fraternidade, nos dizeres de Baggio (2008) - que se

instalou entre liberdade e igualdade. Esse conflito que constantemente ocorre entre

os dois princípios “famosos” da tríade francesa é retratado de uma forma sui generis

no filme de animação “Persépolis” (França, 2007), que também foi objeto do livro de

mesmo nome, o qual deu base ao referido filme, cujo título é uma referência à

histórica cidade de Persépolis e foi baseado no drama/romance gráfico,

autobiográfico homônimo de Marjane Satrapi (1969), tendo sido dirigido por ela, ao

lado de Vincent Paronnaud. Sua trama começa pouco antes da Revolução

Iraniana/Islâmica (1979), quando Marjane atinge a adolescência, e encerra quando

ela é uma expatriada aos 22 anos. Com efeito, o referido filme tem como mote

drama, romance, história - épica, moderna, contemporânea, e, também pessoal 1 Mestre em Direito Público pela Unisinos. Procuradora Federal na Procuradoria Seccional Federal da Advocacia Geral da União. E-mail: [email protected]. 2 Estudante de Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense. E-mail: [email protected].

(familiar) cuja narrativa permeia sons (música), memória (autobiografia), cheiros e

cores (jasmins e tulipas), sonhos (vida em sociedade), cultura e religião, e,

sobretudo, a influência da revolução na vida das pessoas com o “esquecimento” da

fraternidade. Da análise do livro e do filme, pode-se vislumbrar o Irã de Satrapi em

três cenas, que se relacionam com o título deste artigo: a criança (Revolução), a

adolescente (véu) e a adulta (fraternidade). Partindo dessas premissas iniciais, o

artigo tem por objetivo avaliar se a fraternidade é representativa de um novum

mediador na convivência antagônica entre liberdade e igualdade, instalada pela

Revolução, a partir de “Persépolis”. Para atingir o objetivo firmado, dividiu-se o

trabalho em três partes fundamentais: (a) primeiro pretende-se estudar a

fraternidade em seus principais aspectos, pontuando a sua compreensão enquanto

categoria política; (b) sequencialmente, passa-se a examinar “Persépolis”, extraindo

os aspectos tidos por mais pertinentes para a temática. Por fim, (c) intenta-se

estabelecer um paralelo entre as duas fontes de estudo, analisando o papel da

fraternidade enquanto mediadora na tensão entre liberdade e igualdade que se

instaura com a Revolução, ainda que seja estéril toda batalha doutrinal que pretenda

triunfar uma ou outra. Além disso, esta pesquisa se caracteriza como qualitativa,

com emprego do método hipotético-dedutivo. Utiliza por método de procedimento o

histórico, descritivo e argumentativo, sendo, ainda, bibliográfica e documental, com

emprego de livros, revistas especializadas, teses e dissertações pertinentes. À título

de consideração final, e pontuando a relevância de se estudar essa temática, tem-se

que os três princípios (liberdade, igualdade e fraternidade) não se excluem entre si e

cada qual coloca em destaque um aspecto da política: a relação, a organização

social, incluindo suas instituições e a própria dinâmica que daí decorre. Ocorre que

desses três aspectos, o contato com a experiência política tem revelado que a

liberdade e a igualdade fazem-se necessárias, mas o fundamental – necessária e

suficiente - é sempre a fraternidade.

Palavras-chave: Persépolis; Revolução; Fraternidade.

INTRODUÇÃO

O presente tem como escopo examinar a história em quadrinhos “Persépolis” a

partir do conjunto da obra de Marjane Satrapi, no caso o livro, originalmente escrito

em 2004 – dez anos depois de seu êxodo do Irã - e o filme (2007) 3, ambos com o

mesmo título e de igual carga de conteúdo, diálogo, narrativa e contexto histórico,

com breves supressões no filme, que se vê enriquecido com os recursos e efeitos

dispensados, submetendo-se a lição da revolução, extraída da obra objeto deste,

segundo a dimensão da fraternidade, a partir da lição da não fraternidade.

Adotando por marco histórico a tríade da Revolução Francesa (1789) pode-se

dizer que a fraternidade passou a ser compreendida como categoria política, é dizer,

passou a ser “interpretada e praticada politicamente” quando da sua fundamental

aproximação e interação com a liberdade e igualdade, que dedicou os

revolucionários franceses de 1789, formando a tríade de princípios interdependentes

que serviram de inspiração para um mundo novo que se vislumbrava.

Inobstante, para Baggio (2008), esse novum que questiona o modo como o

cristianismo até então interpretara a fraternidade é um novum que é anunciado e

logo em seguida decai, pelo desaparecimento, quase que imediato, da fraternidade

da cena pública.

A principal consequência desse esquecimento pode ser observada em

inúmeros eventos que ocorreram na história ocidental e oriental. Certamente o

principal deles diz respeito à convivência antagônica – pois desprovida da

fraternidade, nos dizeres de Baggio (2008) - que se instalou entre liberdade e

igualdade.

Esse conflito que constantemente ocorre entre os dois princípios “famosos” da

tríade francesa é retratado de uma forma sui generis no conjunto da obra objeto

deste, no caso o livro – escrito em 2004 – e o filme de animação “Persépolis”

(França, 2007), ambos com o mesmo nome, cujo título é uma referência à histórica

cidade de Persépolis4 e foi baseado no drama/romance gráfico, autobiográfico

homônimo de Marjane Satrapi (1969), sendo que o livro deu base ao filme, que foi

dirigido por ela, ao lado de Vincent Paronnaud e teve a voz dublada por Catherine

Deneuve.

3 Esclareça-se que decorrente de questões metodológicas, a edição pesquisada do livro, conforme consta das referências deste, data de 2008, razão pela qual, por vezes, a referência consta o ano da edição objeto da pesquisa, mas o livro original foi escrito em 2004, na França, onde Marjane estabeleceu-se como autora e ilustradora e que somente na França vendeu mais de 400 mil exemplares. O filme por sua vez, um longa-metragem de animação, estreou no festival de Cannes em 2007, razão de sua referência no referido ano. 4 Conforme consta da mensagem da edição completa, que reúne os quatro volumes: “Em Persépolis, o pop encontra o épico, o oriente toca o ocidente, o humor se infiltra no drama – e o Irã parece muito mais próximo do que poderíamos suspeitar”, comentários, última capa.

Sua trama começa pouco antes da Revolução Iraniana/Islâmica (1979), quando

Marjane atinge a adolescência, e encerra quando ela é uma expatriada aos 25 anos.

Com efeito, o referido filme tem como mote drama, romance, história - épica,

moderna, contemporânea, e, também pessoal (familiar) cuja narrativa permeia sons

(música), memória (autobiografia), cheiros e cores (jasmins e tulipas), sonhos (vida

em sociedade), cultura e religião, e, sobretudo, a influência da revolução na vida das

pessoas com o “esquecimento” da fraternidade e o enaltecimento da não

fraternidade.

Da análise do conjunto da obra – filme e livro, pode-se vislumbrar o Irã de

Satrapi em três cenas, que se relacionam com o título deste artigo: a criança

(Revolução), a adolescente (véu) e a adulta (fraternidade).

Partindo dessas premissas iniciais, o artigo tem por objetivo avaliar se a

fraternidade é representativa de um novum mediador na convivência antagônica

entre liberdade e igualdade, instalada pela Revolução que tomou conta do Irã a

partir de 1979, conforme narrado em “Persépolis”.

Para atingir o objetivo firmado, dividiu-se o trabalho em três partes

fundamentais. Primeiro pretende-se estudar a fraternidade em seus principais

aspectos, pontuando a sua compreensão enquanto categoria política.

Sequencialmente passa-se a examinar “Persépolis” 5 - o filme, que estreou em

2007, em Cannes, e o livro, escrito em 2004, extraindo os aspectos tidos por mais

pertinentes para a temática.

Por fim, intenta-se estabelecer um paralelo entre as duas fontes de estudo,

analisando o papel da fraternidade – entreaberta a partir da lição da não

fraternidade- enquanto mediadora na tensão entre liberdade e igualdade que se

instaura com a Revolução, ainda que seja estéril toda batalha doutrinal que pretenda

triunfar quaisquer dentre elas.

Além disso, esta pesquisa se caracteriza como qualitativa, com emprego do

método hipotético-dedutivo. Utiliza por método de procedimento o histórico,

descritivo e argumentativo, sendo, ainda, bibliográfica e documental, com emprego

de livros, com ênfase para Persépolis, o livro, bem como revistas especializadas,

5 O livro (2004) – que somente na França vendeu mais de 400 mil exemplares – além de arrebatar o primeiro lugar, tendo alcançado o prêmio de melhor história em quadrinhos na Feira de Frankfurt de 2004, teve seus direitos vendidos para mais de vinte países. Em 2007 foi transformado em longa-metragem de animação, tendo estreado no festival de Cannes.

teses e dissertações pertinentes e, no caso, principalmente o filme Persépolis que

dá nome ao presente estudo.

1 A FRATERNIDADE ENQUANTO CATEGORIA POLÍTICA: A HISTÓRIA DO

CONCEITO, SEU APARECIMENTO E ECLIPSE

A literatura especializada indica que 1789 foi um ano marcante para a

fraternidade compreendida enquanto categoria política (BAGGIO, 2008, p. 7), pois

foi a partir daí, ano em que o povo de Paris se insurgiu contra o poder estabelecido e

instaurou a famosa Revolução Francesa, que a fraternidade foi alçada ao lado da

Liberdade e Igualdade, formando a tríade de ideais necessários à sustentação de

uma sociedade democrática (SILVA, 2009, p. 76).

Oliveira e Veronese registram que foram os acontecimentos políticos e sociais

que tiveram como palco a França, ocorridos entre 5 de maio de 1789 e 9 de

novembro de 1799, os quais culminaram com a Revolução Francesa que o lema da

Liberdade, Igualdade e Fraternidade enquanto princípios universais, passarão a

influenciar a criação de ideais no mundo atual. (2011, p. 35).

Com efeito, é nesse momento que a fraternidade passa a ser compreendida

como categoria política, é dizer, passa a ser “interpretada e praticada politicamente”

(BAGGIO, 2008, p. 7) pela primeira vez. Isso decorre fundamentalmente da sua

aproximação e interação para com a Liberdade e Igualdade, formando a tríade de

princípios interdependentes que serviram de inspiração para um mundo novo que se

vislumbrava.

Nesse rumo de raciocínio, Tosi questiona: “Então, por que a fraternidade foi

“esquecida” e, ainda hoje, não encontra o merecido reconhecimento como categoria

política tão significativa quanto a liberdade e a igualdade?”. Na busca de uma

resposta para tal inquietação, o autor assevera que “não se trata de colocar a

fraternidade contra a liberdade e a igualdade, mas com elas, articulando

dialeticamente os três conceitos e retomando a antiga tradição do humanismo

cristão”.

Em sede de conclusão, Tosi (2008) observa que a fraternidade poderá

desempenhar um papel político se for capaz de interpretar e transformar o mundo

real em que vivemos, mostrando assim um valor heurístico e uma eficácia prática.

Registre-se, ainda, uma consideração de Giuseppe Tosi (2008) que vem

muito a calhar ao desenvolvimento dos temas aqui estudados:

ao enfatizar a liberdade e a igualdade em detrimento da fraternidade, a Modernidade acentuou os aspectos individualistas e egoístas dos Direitos Humanos, esquecendo o caráter social, fraterno e solidário desses mesmos Direitos, que não são simplesmente do indivíduo e dos grupos ou classes, mas também do “outro”, do mais pobre, do mais desfavorecido.

A principal consequência do esquecimento da fraternidade pode ser

observada nitidamente em inúmeros eventos que ocorreram na história ocidental.

Certamente o principal deles diz respeito à convivência antagônica – pois desprovida

da fraternidade, nos dizeres de Baggio - que se instalou entre liberdade e igualdade.

De fato, em inúmeras situações, tornaram-se os dois princípios “sínteses extremas

de duas visões de mundo, de dois sistemas econômicos e políticos que disputarão o

poder nos dois séculos seguintes” (BAGGIO, 2008, p. 8).

Mas, sem dúvida, no final do Século XX, e objetivando dar contexto a reflexão

que segue ora empreendida a respeito da fraternidade, tem na cena dos mais

pobres, dos famintos, e, proporcionalmente ao grau de desenvolvimento das

relações econômicas, o seu oposto, a “não fraternidade”, mas a compreensão de

seu inverso segue de ímpar importância a sua própria compreensão de figura

cosmopolita, de uma figura que dialoga com o mundo e com a sua própria realidade.

A experiência com a fraternidade tem contribuído com processos políticos

práticos, onde os critérios fraternais, mais do que os não fraternais, escoram em

práticas e a fornecer respostas aos problemas decorrentes, ou seja, a fraternidade, a

partir da lição da não fraternidade tem conferido um legado que, segundo

Barraneche, não é somente uma ideia, um conceito ou uma teoria. É também uma

prática e, ainda um recurso, um instrumento, uma ferramenta, abonada por estudos

teóricos, que segue confirmada pela prática, pela formulação de propostas políticas

e pela solução de problemas. (2010, p. 15).

Com isso, tem-se na fraternidade uma legítima garantia de sobrevivência e

qualidade de uma sociedade política que funciona essencialmente mediante as

diversidades6. Afinal, como já fora dito, os direitos humanos, de modo geral, só

6 Baggio ressalta que a fraternidade não mais pode ser compreendida e interpretada como uma ligação sectária no âmbito de sociedades secretas, como se costumava aduzir a certo tempo, e tampouco como uma fraternidade de classe, meramente formal. Na verdade, essas acepções negam a fraternidade e deturpam o seu significado, contribuindo, por decorrência, para o seu enfraquecimento enquanto categoria política (BAGGIO, 2008, p. 20).

encontram fundamento na relação dinâmica entre os princípios da trilogia francesa

(BAGGIO, 2008, p. 16). Em outras palavras, na feliz metáfora de Baggio: “os

princípios da trilogia francesa poderiam ser comparados às pernas de uma mesa:

são necessárias todas as três para que ela se sustente” (2008, p. 18).

2 PERSÉPOLIS: PRINCIPAIS ASPECTOS DA INCRÍVEL HISTÓRIA DE

MARJANE SATRAPI

2.1 Marjane Satrapi: breves notas de um perfil

A contracapa de Persépolis (2008) revela que Marjane Ebihamis, conhecida

pelo nome artístico Marjane Satrapi, nasceu em 22 de novembro de 1969, em Rasht,

no Irã, e cresceu em Teerã, em uma família que se envolveu com os movimentos

comunista e socialista no país antes da Revolução Iraniana.

Durante a infância, no Teerã, frequentou o Liceu Francês e presenciou a

crescente repressão das liberdades civis e as consequências da política iraniana na

vida dos habitantes do país, incluindo a queda do Xá, o regime inicial de Ruhollah

Khomeini e os primeiros anos da Guerra Irã-Iraque.

Em 1983, quando contava com quatorze anos, Satrapi foi mandada para

Viena, Áustria, por seus pais, para fugir do regime iraniano. Lá, estudou no Liceu

Francês de Viena, tendo morado na casa de amigos, em pensões e repúblicas

estudantis, durante o ensino médio, até ficar desabrigada e morar nas ruas, onde

doente, no rigoroso inverno europeu, após um ataque quase mortal de pneumonia,

foi parar em um hospital. Sobrevive milagrosamente.

No final da adolescência, em decorrência das graves condições de vida,

Marjane retorna ao Irã.

Aos 21 anos, Marjane casou com Reza, tendo se divorciado três anos depois.

Na sequência, estudou Comunicação Visual e posteriormente obteve o

mestrado em Comunicação Visual de Belas artes em Teerã, Universidade Islâmica

Azad.

Em seguida, mudou-se para Estrasburgo, França, vivendo atualmente em

Paris, onde trabalha como ilustradora e autora de livros infantis.

Em síntese, Marjane ficou conhecida por ser a primeira iraniana a escrever

uma banda desenhada. Ademais, a versão em desenho animado de sua série de

quadrinhos Persépolis foi indicada ao Oscar.

Com efeito, ano seguinte a sua aparição, o filme venceu o Oscar de melhor

animação, além de várias outras premiações, como, por exemplo, o Prêmio do Júri

no Festival de Cannes de 2007, tematizando os desdobramentos da Revolução

Iraniana sob a ótica da menina Marji (Marjane Satrapi) que, participante da classe

elitizada da sociedade do Irã, tem sua imaginação povoada por seus primeiros

contatos com o calor ideológico dos militantes contra a monarquia do xá Reza

Pahlevi e que nos anos pós-revolução também se opuseram às normas inflexíveis

de comportamento e de nacionalismo extremista do novo governo (APOLINÁRIO,

2011).

De acordo com Débora de Freitas Apolinário (2011), tendo como pano de

fundo os novos caminhos propostos pela Revolução Islâmica, Satrapi e Paronnaud

demonstram as complexidades políticas e culturais do atual Irã, como demonstra a

presente análise nas linhas a seguir.

Aliás, antes de dar sequência às considerações deste trabalho, e firme na sua

proposta, tendo como premissa o canal através do qual a não fraternidade revela-se

no contexto da revolução islâmica, e se converte em força, exemplo vivo de

fraternidade retirado da lição do povo Iraniano, representativo do núcleo familiar de

Satrapi, e que passa a operar de modo distinto até que a não fraternidade, que se

obtém da revolução, converte-se em fraternidade, desmentido a definição da

revolução como o lugar do lobo e da ovelha, ou do tirano contra seus súditos, e

redesenhando-a “contra o cenário dessas experiências” de que nos alerta Arendt

(2009, p. 51).

2.2 Persépolis: o contexto, a expressão e a obra - breves contributos

–– Adorava batatas fritas com ketchup e filmes do Bruce Lee, usava tênis Adidas e tinha duas obsessões: depilar as pernas e me tornar a última profetiza. (SATRAPI, 2008)

A título de iniciar a história narrada por Marjane Satrapi (1969), que nasceu no

Irã, na cidade de Rasht (SATRAPI, 2008, orelha), é importante prestar um breve

contexto a Persépolis. Parte-se de três perspectivas: um, o Irã que vai sediar a

revolução; dois, o significado de Persépolis; três, o conjunto da obra, no caso o livro

e o filme, e por deterem ambos a mesma narrativa, sendo que o filme foi produzido

com um mínimo de recortes, abrangendo praticamente a totalidade dos quadrinhos

escritos por Satrapi, que deu origem ao livro, em 2004 e ao filme, em 2007. A

tradução chegou ao Brasil em 2008 e, logo após a longa metragem de animação

ganhou a bilheteria brasileira.

Portanto, esclareça-se que o artigo refere a um e outro, de forma aleatória,

sinalizando que o filme apresenta a visualização e o recurso do “ver” em preto-e-

branco - quando há a narrativa passada - e em cores, quando se trata de sua própria

história, no caso no momento presente.

2.2.1 O contexto

O Irã que sedia a revolução de 1979 decorre da tomada do poder, em 1925,

pelo oficial Rezah Khan, que expulsou o último soberano Qadjar e foi quem deu o

nome oficial de Irã ao País, acelerando sua proposta de ocidentalização para grande

ira dos religiosos que então começaram a articular em nome do poder islâmico

(SATRAPI, 2008, introdução).

A história começa em 1979, no Irã e termina em setembro de 1994 no

Aeroporto de Merabahd, também no Irã, quando Marjana Satrapi, despede-se de

sua família para retornar definitivamente para a Europa, no caso ela retorna para a

Áustria. Trata-se de um recorte autobiográfico que começa aos 10 anos de idade,

em 1979, e termina aos 25 anos, tendo como pano de fundo a Revolução Islâmica

estabelecida no Irã, com suas dores, suas guerras diárias e acirradas contra a sua

própria população e as articulações que foram empreendidas pelo domínio do

homem para com seus semelhantes. Isso, no sentido de “tratar a violência como um

fenômeno em si mesmo”, um fenômeno que tem no próprio poder a sua razão de

existir, qual seja, “a violência é tão-somente a mais flagrante manifestação do

poder”. (ARENDT, 2009, p. 51).

É no cenário de tais experiências que Satrapi apresenta Persépolis (2004) e,

no olhar do presente artigo, é a partir da lógica da violência instalada pela Revolução

Iraniana, de perspectiva religiosa, que o estudo propõe analisar a dinâmica da

fraternidade tendo como pano de fundo a questão da violência. Não é tarefa fácil,

conforme revela Arendt, citando Sorel, no sentido de que “os problemas da violência

permanecem muito obscuros” (2009, p. 51), mas também não é tarefa impossível.

2.2.2 A expressão e seu significado

Presta-se um breve esclarecimento quanto a expressão Persépolis. “Per”

significa ver; “se” pronome reflexivo que se volta para si mesmo; e “polis” quer dizer

cidade, ou ainda, “Perse” remete a Pérsia, enquanto que “polis”, conforme já citado,

refere-se a cidade.

As considerações em comento, antes referida, certamente dão conta de que a

autora ocupou-se de criar uma expressão própria ou provavelmente de prestar

homenagem a Persépolis, uma cidade da Pérsia que se volta para sua própria

história, para sua própria revolução, contada a partir da Revolução de 1979, com o

uso de cores, sons, imagens, flores e perfume indicativas da tese eleita. Com isso, a

antítese se firma no cenário da revolução que se inicializa com a derrubada do Xá

Mohammad Rezah, e que lança, no Irã, o regime Xiita, através de uma revolução

popular que se firma na ditadura islâmica.

Portanto, com o sentido de dar conta do objeto estudado, o presente estudo

distribuiu o cenário dos quadrinhos em três partes: a tese eleita pela autora –

memórias de sua vida e a sua própria história atual, contadas a partir da e na

revolução; a antítese – a própria revolução; e a síntese: as memórias de Marjane

Satrapi contadas no livro e no filme Persépolis.

O livro foi figurado através de álbum em quadrinhos (certamente o primeiro

álbum iraniano nessa modalidade) e foi idealizado para que Marjane pudesse contar

sua história e o drama dos seus familiares e de seu país, para suas amigas e

amigos europeus e american(o)as.

O filme usa o recurso do limite, propondo um diálogo com o passado – em

preto e branco – e com a própria realidade. Também há a mensagem das flores, das

tulipas e dos jasmins. Há, ainda, uma mensagem sutil, que é ativada por situações

relatadas através do recurso da memória: o perfume que é indicado por Satrapi, com

referência ao papel de sua avó e a ternura de sua influência e qualidade do feminino

dedicado a sua vida e a sua família.

Persépolis se mostra e nos mostra como a revolução vivida por ela mesma e

pelos seus familiares, inclusive sua avó, figura ícone de sua família, percebida

através de vários elementos, inclusive através das flores e do perfume que elas

disseminam, podem dar conta da pluralidade humana e do contexto em que se vê

envolvidas, enoveladas em acontecimentos criados pelo próprio homem para impor

o desejo do poder na esfera público-política. Para tanto, faz uso do recurso da

religião, até que um dia “numa tirania, o tirano deixa de temer seus súditos ou os

súditos deixam de ter medo de si mesmos e de seu opressor, então cada uma

dessas formas de governo chega ao fim” (ARENDT, 2008, p. 113).

A seguir, passamos a apresentar: “Em Cena Persépolis!”.

2.2.3 O conjunto da obra de Marjane Satrapi: o filme, o livro, enfim, “Persépolis

e mais Persépolis!”

O filme de animação “Persépolis” (França, 2007) teve como base o livro de

mesmo nome, cujo título é uma referência à histórica cidade de Persépolis, e foi

baseado no drama/romance gráfico, autobiográfico homônimo de Marjane Satrapi

(1969), tendo sido dirigido por ela, ao lado de Vincent Paronnaud.

No começo, Satrapi empreende uma introdução, contando didaticamente os

principais antecedentes históricos do seu povo, para, depois, começar a sua própria

história, herdeira dos antepassados. Ela começa pelo ano 642, quando os árabes

invadiram a Pérsia, conquistaram o país em uma só batalha e derrubaram a dinastia

dos sassânidas. Com a derrota, os persas adotaram o islã, “mas um islã de

vencidos, um islã subterrâneo, esotérico e revolucionário: o xiismo” (SATRAPI,

2008).

Depois dessa primeira invasão árabe, a Pérsia deixou de existir como nação

independente por mais de oito séculos, tendo sido dominada por muitos povos,

como os ghaznávidas, os selifúcidas, os khwarazimitas e, por fim, os mongóis e

timúridas, já no início do século XIV. (SATRAPI, 2008, introdução).

No momento seguinte, a Pérsia renasce, e se vê em meio à cobiça da Rússia

e Inglaterra, tornando-se um “Estado-tampão” entre as duas potências ao longo do

século XIX, uma vez que os russos anexaram o Cáucaso e a Ásia Central, e os

ingleses se apoderaram do Afeganistão e do Tibete. (SATRAPI, 2008, introdução).

A partir daí, Satrapi (2008, introdução) indica dois acontecimentos que vão

dar base à revolução que começara a ser delineada, são eles: A Segunda Guerra

Mundial, quando o norte do País será ocupado pelos soviéticos e o sul, pelos

ingleses e pelos americanos e, também, quando, em 1953 a CIA organiza seu

primeiro golpe de estado através da negativa de exportação, e o fez contra

Mossadeq, que negava a divisão dos lucros do petróleo. Com a derrubada de

Mossadech, sucede o trono Mohammad Rezah que ficou no Poder até 1979, quando

a história começa.

Assim, a trama de Persépolis começa pouco antes da Revolução

Iraniana/Islâmica (1979), quando Marjane Satrapi (1969) começa a atingir a

adolescência, aos dez anos de idade, e encerra com a Autora retornando para a

Áustria, em 1994. Com efeito, o referido filme tem como mote drama, romance,

história - épica, moderna, contemporânea, e, também pessoal (familiar) cuja

narrativa permeia sons (música), memória (autobiografia), cheiros e cores (jasmins e

tulipas), sonhos (vida em sociedade), cultura e religião, e, sobretudo, a influência da

revolução na vida das pessoas com o “esquecimento” da fraternidade.

De uma análise inicial do filme/livro, pode-se vislumbrar o Irã de Satrapi,

envolto com em seus “2.500 anos de tirania e submissão”, através de seus próprios

imperadores, depois com a invasão árabe, pelo oeste, em seguida a invasão

mongol, pelo leste e, por fim, o imperialismo dito moderno (SATRAPI, 2008, cap. A

Bicicleta). Em razão do presente estudo, o mesmo será distribuído em três cenas,

que se relacionam com o título deste artigo: a criança (Revolução), a adolescente

(véu) e a adulta (fraternidade).

No livro/filme, então, Marjane conta a história de sua vida, desde que os

ayatollahs tomaram o poder no Irã, em 1980. Contando a sua história, Marji – como

é chamada em família – acaba por abrir o livro da dura história de um país

submetido ao fundamentalismo religioso (BRASIL, 2012).

Em outras palavras:

Nós a acompanhamos dos dez anos de idade aos vinte e cinco, desde o momento que ela é obrigada a usar o véu na escola, passando pelo período que foi morar fora do país para fugir do regime até seu retorno ao Irã. O que a guerra muda nas pessoas? Persépolis é um livro sobre a vida, preconceitos, sonhos dizimados, esperança e como é tentar se erguer no meio de ruínas (LITERALMENTE FALANDO, 2012).

É possível acompanhar o modo como o véu islâmico se tornou uma obrigação

e um pesadelo para uma jovem educada numa escola laica no período anterior à

Revolução. Além disso, nota-se que como fumar por ser um ato de rebelião política

ou como os vigilantes da escola de Belas Artes queriam impedir as alunas de

olharem para o modelo que tinham como tarefa desenhar (BRASIL, 2012). Nesse

passo, percebe-se que as cenas da animação Persépolis denunciam temas dignos

de censura pelas autoridades que ainda controlam a qualidade dos roteiros do

cinema iraniano, como, por exemplo, o uso de drogas, liberdade sexual, música

ocidental, festas, divórcio, bebida alcóolica, com o “agravante” de essas

experimentações serem relatadas por uma mulher muçulmana (APOLINÁRIO,

2011).

Os seguintes excertos da animação corroboram tal acepção:

–– Stevie Wonder. –– Julio Iglesias. –– Pink Floyd. [...] –– Baton, verniz para unhas, cartas. –– Iron Maiden. –– Quanto custa? –– O que é isto? Michael Jackson? –– Um símbolo da decadência ocidental! –– Teve relações sexuais? –– Sim. –– É bom? –– Depende. –– Era sempre eu que ia comprar a droga!

É dizer:

Então, o que isso afeta as pessoas? Fiquei impressionada com a sinceridade de Marjane Satrapi em não disfarçar o que aconteceu com ela, atenuar. A cultura islâmica (mas aqui me refiro especificamente ao islamismo radical, extremismo mesmo) pode ser muito cruel com a mulher em certos aspectos e a coragem de Marjane em contar sua vida sem pudores é quase um tapa na cara dos xiitas. Porque ela fez muita coisa que vai contra ao que o extremismo prega (LITERALMENTE FALANDO, 2012).

Com efeito, a Revolução Islâmica é retratada sem máscaras e sem a

pretensão de justificar o injustificável, ou de explicar o inexplicável. Sem mais, é

descrita como realmente foi. Os desenhos tornam o relato ainda mais fiel à

realidade.

Consoante estudo de Apolinário (2011), “a dinastia do xá era motivo de

grande insatisfação popular tanto pelas denúncias de corrupção no governo quanto

pela manutenção de um nefasto sistema de repressão à oposição, o que corrobora a

Revolução Islâmica de 1979 com a queda do xá e a posterior tomada de poder do

aiatolá Ruhollah Khomeini”.

A autora continua:

Após a revolução, começa a retórica antiocidental promovida pela instauração do novo sistema de governo teocrático do Irã sob a liderança do chefe supremo Khomeini que controla as Forças Armadas, o Judiciário e o Conselho dos Guardiães. Com isso, resta ao presidente da República Islâmica do Irã o trato de questões administrativas, programas de gastos e investimentos do Estado (APOLINÁRIO, 2011).

Em resumo:

Persépolis é uma história tão densa, forte e marcante que é difícil pontuar tudo nela que mexe com você. Em um lugar onde usar o véu da maneira incorreta é um ato de rebeldia, Marjane Satrapi é uma heroína da vida real. Muito mais guerreira que todas as protagonistas de ficção reunidas, porque ela enfrentou de cabeça erguida uma situação extrema na vida real. E eu acho que na vida nós temos heróis e heroínas muito mais fortes que na ficção, talvez por isso eu goste de ler autobiografias e me lembrar que, diariamente, muitas pessoas enfrentam histórias que jamais passariam pelas nossas cabeças. (LITERALMENTE FALANDO, 2012).

Em uma breve síntese, anota-se o livro em três momentos, tomados a partir

da influência do conflito estabelecido pela revolução iraniana, posto ser a revolução

o fio condutor do enlace da vida da autora retratada em uma narrativa singular, de

que forma é enredada por ela e em que condições se vê envolvida a ponto de

abandonar os seus, sua cultura, seu país, a própria política estabelecida para estar e

viver livre em outro país que inicialmente não a acolhe, e ainda terá a tarefa de

ocidentalizá-la a ponto de ver-se envolvida em situações para as quais haverá de

retornar para o seu próprio país.

Indica os três momentos figurativos da história em quadrinhos, conforme

d´antes referido: Antes da revolução, tem-se a criança educada em um país com

qualidade educacional: “bom comportamento, boas palavras e boas ações”

(SATRAPI, 2008, cap. O Véu), e que sonha em “ser ao mesmo tempo a justiça, o

amor e a ira de Deus” (idem, ibidem).

Com a revolução, tem-se a criança-adolescente, que se vê obrigada a usar o

véu, sem entender as razões de sua obrigatoriedade: “A gente não gostava muito de

usar o véu, principalmente porque não entendia o motivo” (SATRAPI, 2008, cap. O

véu) e ingressa em tal condição, passando a receber a educação necessária ao seu

crescimento: “para me despertar meus pais me deram uns livros”; “eu sabia tudo

sobre as crianças palestinas” “sobre Fidel Castro” “sobre os pequenos vietnamitas

mortos pelos americanos” “sobre os revolucionários de meu país”, sendo que o seu

livro preferido era “O materialismo dialético” cujos personagens principais eram Marx

e Descartes (SATRAPI, 2008, cap. O Véu). De que forma “as coisas estavam

piorando”, com o cinema queimado e os 400 mortos, a entrega do petróleo por

Rezah, que se tornou Rei e, pouco a pouco, a compreensão do que estava

acontecendo: “a razão da minha vergonha e da revolução é a mesma: a diferença

entre as classes sociais” (SATRAPI, 2008, cap. A Carta).

Da mesma forma, prosseguindo com a revolução, tem-se a adolescente que

se vê obrigada a deixar o seu país, e que em outro país se vê envolvida em várias

relações conflituosas: “aquele ou aquela que fornecer cannabis aos alunos pode

receber uma punição severa” e ameaçada “você é inteligente, conto com você para

não ser obrigado a alertá-la pela segunda vez” (SATRAPI, 2008, cap. O Croissant) e

depois de quatro anos passados em Viena, Satrapi retorna: “peguei minhas

coisas...” e “pus meu véu na cabeça de novo...” e chega ao Irã “bem vinda à sua

casa!” a realidade do Irã e “as vítimas da guerra? “entre 500 mil e 1 milhão”.

(SATRAPI, cap. A volta).

Adulta, entra para a Faculdade de Artes, casa, e divorciada retorna para a

França, “sem ter podido construir nada no meu país, me preparei para deixá-lo de

novo”. Entre junho e setembro de 1994, Marji, caminha pelas montanhas do Teerã

memorizando cada cantinho, realiza uma viagem com a sua avó pelo Mar Cáspio,

enche seus pulmões de ar que só existe ali, despede-se do túmulo de seu avô, do

tio Anuch, passa momentos fantásticos com seus pais e em 09 de setembro daquele

mesmo ano, despede-se de seu pai e de sua mãe “você é uma mulher livre, o Irã de

hoje não é mais para você” e de sua avó no Aeroporto de Mehrabad: “Não havia

mais guerra, eu já não era uma criança, minha mãe não passou mal e minha avó

felizmente estava lá...” (SATRAPI, 2008).

Estavam prontas as ocorrências que levaram Marjane Satrapi a abandonar

definitivamente sua terra natal. Foram vinte e cinco anos de vinculação ao seu país

e proximidade direta com sua família. O Irã sempre morou em Marji, mas a

revolução que se estabeleceu ensinou Marji a morar e a viver com e na Europa.

Feito esse apanhado acerca do filme/livro ora em estudo, no próximo capítulo

pretende-se demonstrar, com base em Persépolis, que os três princípios erigidos

inicialmente na Revolução Francesa - liberdade, igualdade e fraternidade - não se

excluem entre si e cada qual coloca em destaque um aspecto da política: a relação,

a organização social, incluindo suas instituições e a própria dinâmica que daí

decorre, sobretudo, de que forma a revolução dos tiranos (não fraternidade) convoca

a revolução dos mártires, incluindo a própria autora (fraternidade), a compartilhar a

lição dos princípios contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),

no caso, a liberdade, a igualdade e, especialmente, a fraternidade.

3 PERSÉPOLIS: A REVOLUÇÃO, O VÉU E A FRATERNIDADE

–– Eu, Marjane, futura profetiza, decidi que: –– Primeiro, todos devem ter bom comportamento. –– Segundo, todos devem dizer boas palavras. –– Terceiro, todos devem fazer uma boa ação. –– Quarto, os pobres devem poder comer um frango frito todos os dias. –– Quinto, nenhuma mulher idosa sofrerá novamente. –– Marji, se vai ser assim, eu serei a sua primeira discípula. –– Sério? Ótimo! –– Como tem certeza de que elas não sofrerão mais? –– Será proibido. (SATRAPI, 2008)

3.1 PERSÉPOLIS E A REVOLUÇÃO IRANIANA

No presente capítulo, empreende-se a tarefa de realizar um paralelo entre as

duas fontes de estudo, no caso, analisando o papel da fraternidade enquanto

mediadora na tensão entre liberdade e igualdade que se instaura com a Revolução,

ainda que seja estéril toda batalha doutrinal que pretenda triunfar uma ou outra e, de

outro lado, de que forma a não fraternidade, adotada com o sentido de situações

contrárias ao bem fazer, ao “bem da cidade e ao bem comum” (BOBBIO, 2002, p.

13) ou mesmo levando-se em conta a “não-violência”, ativa e passiva, da doutrina e

da prática de Gandhi7, por exemplo, tal qual fora objeto das considerações de

Giuliano Pontara e de Norberto Bobbio (BOBBIO, 2010, p. 12). Suas considerações

são destacadas enquanto processos enaltecedores das relações de paz, ou que

justificam a valoração de resolutividade dos problemas fundamentais da atualidade.

Conforme escreve Pontara apud Bobbio (2010, p. 10-11):

A não-violência está dentro da política e isto de modo bem eficaz, tanto quanto dentro da política e de modo eficaz estava Gandhi. Mas está dentro da política de um modo totalmente especial, e é nisto que repousa a grande novidade e atualidade da mensagem gandhiana. Na medida em que é sereno, também o não violento não estabelece relações de conflito com os demais, com o objetivo de competir, de lutar, de destruir, de vencer: ele não é um vingativo, não guarda rancor, não tem aversão a ninguém, não odeia ninguém; e não é ávido pelo poder. É certo que ele jamais abre fogo; mas

7 Ahinsa – não violência.

não teme dar início a um conflito, ou melhor, não teme que conflitos latentes se evidenciem, nem teme a luta.

A despeito de tais considerações, anota-se, um aspecto que poderá contribuir

com os pontos que requer reforçar no objetivo deste e, assim, pontuar as questões

decorrentes da “ideia”, do “conceito”, da “teoria”, e também da “práxis”, da

“experiência” e do “recurso” (BARRANECHE, 2010, p. 15), de que lança mão a

fraternidade, no sentido de “dar respostas”, conforme infere Barraneche (idem, p.

15), e de que são ilustrativas, em sentido oposto, a lição da não fraternidade, e o faz

a partir da figura da violência e da não violência, conforme registra Pontara apud

Bobbio:

Porém, como refuta a violência... refuta também aquela lógica do poder segundo a qual sempre deve haver um vencedor e um perdedor; e maneja os conflitos de modo a fazer com que a solução não seja uma solução com soma zero, mas uma solução em que todas as partes ganhem e possa ser por isso aceita por todos. [...] usa métodos de luta que tendem a humanizar o opositor, em vez de desumanizá-lo... A não-violência é, portanto, o canal através do qual a serenidade se converte em força, uma força distinta e que opera de modo distinto da violência. (2002, p. 11)

Quanto ao contexto que se pretende destacar, é imperioso lembrar que, no

curso da revolução francesa, conforme conclui Baggio, a fraternidade desempenhou

claramente dois papéis sucessivos: o de unir, no caso de dar a nova nação um

motivo para se constituir e, igualmente o de dividir, eis que restava cada vez mais

claro duas diferentes interpretações. (2008, p. 33). Referida constatação também

permaneceu na Revolução do Irã e remanesce até o presente momento, sendo que,

tanto lá, quanto cá, a fraternidade tem motivos suficientes para atuar na narrativa do

processo histórico.

Portanto, este estudo, tal qual o indicativo de Baggio ora referido, propõe

examinar a fraternidade, a partir da lição da não fraternidade, de união e de divisão.

Não que sejam figuras opostas, mas no contexto das revoluções, assim o foram e

segue correspondendo ao papel da dualidade, apresentando-as na condição de

figuras aptas a compreensão das razões pelas quais são tecidas a confraternização

dos temas para dar-lhes lições de convivência recíproca, qual seja, de que forma a

não fraternidade contribui para a fraternidade e vice e versa.

No presente, tem-se que a ilustração de Marjane Satrapi, através da

revolução iraniana cuida de tal desvelo e, nesta condição, passa-se a apreciar a

fraternidade, primeiro na sua própria base, no caso a partir da Revolução Francesa

e, após, no esforço interpretativo deste, com a Revolução Iraniana, responsáveis,

ambas, pela fraternidade e a não fraternidade, e juntas, enquanto categorias

pertencentes as revoluções, podem sinalizar o aporte necessário ao objeto

estudado.

É bem verdade que,

“(N)nos últimos dois séculos, duas visões do progresso foram propostas: a primeira sublinhou a dimensão evolutiva e a segunda valorizou as rupturas e a revolução”. Ambas repousavam sobre a mesma crença – o futuro era considerado o objetivo final da história. (JARDIM, 2007, p.41)

De outro lado, nas duas últimas décadas, conforme revela Baggio, o tema da

fraternidade – consciente, desejada e explicitada - está ligado a vários modos,

desempenhando um papel político destacado. São exemplos: experiências de

fraternidade caracterizam algumas transições políticas de regimes autoritários para a

democracia; ainda, também em casos de transições políticas onde a opção foi pela

pacificação social, onde o núcleo se dá não pela punição ou o castigo; como

elemento reconstruidor das relações sociais em situações de emergência e de

calamidades; nos processos de mediação e superação dos conflitos; o

aprofundamento e a difusão da própria fraternidade que passa a atuar enquanto

princípio que tem influência pública e, por último, a fraternidade na qualidade de

princípio com participação religiosa. (2009, p. 17).

Arendt (2009, p. 84), anota uma interessante conclusão sobre a Revolução

Francesa, que é ilustrativa da revolução iraniana, ora apontada, a título de comentar

o que há entre ambas as revoluções que destaca a não fraternidade e, de igual

sorte, a partir de seu legado, imprime-se a importância da fraternidade. Assim refere

que “não é a injustiça que vem em primeiro lugar, mas a hipocrisia” e conclui que

esta exerceu importante papel na “guerra de Robespierre”, inferindo que, tal

remanesce na atualidade:

Tirar a máscara da hipocrisia em face do inimigo, desmascará-lo e desmascarar as maquinações e manipulações diabólicas que lhe permitem dominar sem se valer de meios violentos, quer dizer, provocar a ação mesmo sob o risco da aniquilação, de sorte que a verdade possa aparecer – esses ainda estão entre os mais fortes motivos da violência de hoje nos campi e nas ruas. (ARENDT, 2009, p. 84-85),

Assim, a ilustração proposta tem o condão de abrir a discussão e de perceber

de que forma a não fraternidade infere na lição da própria fraternidade, o printing de

sua marca, conclusão esta que pode parecer adversa ao desatento, porém é de

particular importância, posto que, é contra o cenário de situações como esta que a

fraternidade busca repousar. Não com o propósito de desmerecê-las, mas com o

sentido de propor de uma vez por todas que as coisas sejam solvidas pela dimensão

de sua proposta de diálogo, de comunhão e da tolerância a ser experienciada entre

os homens.

A fraternidade enquanto categoria política - convém repisar pela pertinência

de realçar as características que lhes é particular - coloca-se ao lado da liberdade e

da igualdade, mas contém uma carga tal de compreensão dos princípios que a

antecederam de tal forma que a fraternidade traduz a afirmação dos demais

princípios e também de uma nova base somente sua que lhe confere característica

própria – trata-se da condição de unidade. Baggio (2008, p. 54) refere a uma

promessa de unidade sustentada pelo senso de fraternidade. Sem ela, a igualdade

degenera em igualitarismo e a liberdade vira arbítrio do mais forte. As ações de não

fraternidade tomam conta das ações, dos movimentos, do espaço político.

De outro lado, essa fraternidade reveladora, recôndita nas ações do bem, e

que se faz presente no momento da ação humana, e que perpetua no tempo, mas

não se faz material, de onde decorre que ela não é apreensível. Entretanto, quando

submetida a partir da lógica das ações da não fraternidade, como decorre acontecer

nas revoluções, no caso na Revolução do Irã, a partir de 1979, não há dúvida de que

ela transparece, revelando-se através do verdadeiro, do bom e do belo. Arendt, por

outro viés, ao referir-se ao momento da ação humana, anota um trecho ilustrativo do

que ora pretende comunicar-se: “[...] em última instância, assumir o controle da

ação, é a exigência de uma unidade que por princípio se revela como impossível,

salvo sob a tirania”. (2008, p. 43)

A fraternidade requer ser vivida, objetivando extrair a sua compreensão em

prol da condição humana e do estabelecimento de relações sustentadas no

paradigma – que desponta capaz de suscitar novas ideias e novos modelos

políticos, baseados em uma visão mais integral do homem, que não sejam impostos

mas hão de corresponder as exigências dos povos (BAGGIO, 2008, p. 54-55).

3.2 PERSÉPOLIS, O VÉU E A FRATERNIDADE CONTRA A FRATERNIDADE:

“ROMPO O CONTRATO DESLIGO-ME DE TI!”8

Em passagem recontada por Saramago (1991), este nos convida ao diálogo

que fora estabelecido entre Cristo e Deus, e entre Cristo e o Diabo, figurativo dos

opostos. O diálogo ali travado é representativo da ilustração da própria fraternidade

contra a fraternidade. Com o sentido de analisá-la objetivando interpretar a

compreensão da dinâmica da fraternidade colocada através de sua díade, anota o

diálogo estabelecido na ordem d´antes indicada:

Foste escolhido, não podes escolher, Rompo o contrato, desligo-me de ti, quero viver como um homem qualquer, Palavras inúteis, meu filho, ainda percebeste que estás em meu poder e que todos esses documentos selados que chamamos acordo, pacto, trato, contrato, aliança, figurando eu neles como parte, podiam levar uma só cláusula, com menos gasto de tinta e de papel, uma que prescrevesse sem floreados Tudo quanto a lei de Deus queira é obrigatório. (SARAMAGO, 1991, p. 371)

Em outro trecho,

Não me aceitas, não me perdoas, Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, se tu acabas, eu acabo, para que seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro, É a tua última palavra, A primeira e a última, a primeira porque foi a primeira vez que a disse, a última porque não a repetirei. (SARAMAGO, 1991, p. 392-393)

O diálogo travado de forma narrativa, nos moldes em que interpretado por

Saramago, deixa entrever-se a relação de oposição hostil, de que um lado dando

importância ao outro, e ambos dão causa entre si. Pode-se também considerar a

importância da situação gerada, para que a narrativa fosse oportunizada. Sem um o

outro perderia em destaque. O contrário, também é verdadeiro. De igual sorte, a

mesma situação também ocorre com a fraternidade e seu contrário, a não

fraternidade, entendidas como tese e antítese. A exposição de uma, oculta a outra,

e é a partir da demonstração dos dois opostos que esses passam a ser

estabelecidas no cenário dos acontecimentos.

8 Conforme Saramago (1991).

Entre o véu do Irã que obriga as mulheres ao uso e os acontecimentos que

pautaram a ordem das revoluções, ou a própria pauta da Revolução Islâmica,

ocorrida no Irã de Satrapi (2008), tem-se um longo caminho a ser desvelado a

procura da conotação da fraternidade enquanto “algo para ser vivido” ou “(A)a

fraternidade é uma condição humana, ao mesmo tempo dada – e por isso, constitui

um ponto de partida – mas também a ser conquistada, com o compromisso e

colaboração de todos” (BAGGIO, 2008, p. 54).

A partir do clássico aforismo de Heráclito o qual refere que “a natureza ama

ocultar-se” (HADOTT, 2006 p. 21) é certo que a demonstração de cada coisa ao seu

tempo, faz-se através de seu processo de nascimento, de realização e de

desaparecimento. Se de um lado “a natureza pode nos apresentar uma face hostil,

contra a qual é preciso defender-se, e como um conjunto de recursos necessários à

vida, que é preciso explorar” (HADOTT, 2006, p. 120), de outro, “a natureza é ao

mesmo tempo um espetáculo que nos fascina, mesmo quando nos aterroriza, e um

processo que nos engloba.” (idem, ibidem).

Assim a compreensão dos opostos, quando apresentada no contexto de

situações adversas, requer um mínimo de consideração sob a lógica de que podem

se suceder, conforme revela Baggio no sentido de que, na atualidade, a fraternidade

detém uma tal condição que a elege a qualidade de ser “capaz de dar fundamento à

idéia de uma comunidade universal, de uma unidade de diferentes, na qual os povos

vivam em paz entre si, sem o jugo de um tirano, mas no respeito das próprias

identidades” (BAGGIO, 2008, p. 53). Mas, nem por isto, a fraternidade e a não

fraternidade, quando dispostas no palco dos mesmos acontecimentos não são

menos e fundamentalmente opostas.

A partir de um diálogo crítico, tem-se que essas duas concepções atravessam

o pensamento político da atualidade, e apesar de individualmente considerados seus

respectivos conceitos, mas, ao mesmo tempo, usufruem de uma tal irmandade que

supõem a posição de irmãos e de irmãs, “mas também supõe a vontade de lhes

proporcionar uma resposta política eqüitativa do ponto de vista de cada um”

(MUNOZ-DARDÉ, 2003, p. 671)

Portanto, a compreensão da fraternidade - e de seu oposto - através da

revolução iraniana, neste trecho da pesquisa, faz-se sob a ótica do uso do véu,

discutido enquanto simbólico das várias contradições com que fora indicado como

instrumento de exposição da mulher e certamente, como recurso de afastá-la das

relações políticas e de poder ocorrentes no espaço público.

Assim, tem-se que a Revolução Islâmica impôs o seu uso, sem saber os seus

habitantes das razões de sua exigência, conforme revela Persépolis (2008) nas

seguintes passagens: “A gente não gostava muito de usar o véu, principalmente

porque não entendia o motivo” (2008, cap. O véu); “Pus meu véu na cabeça de

novo” “...e quanto às minhas liberdades individuais e sociais, paciência...” (2008,

cap. O véu); “Não quer tirar essa merda desse capuz? Me dá claustrofobia” (2008,

cap. O fim).

Persépolis brota da revolução e é a partir de tal legado que os fios de sua

trama entrelaçam-se com a cena do dia-a-dia e o novo modo imposto que prescreve

às mulheres o uso do véu no espaço público, que é vigiado pelos oficiais da

revolução como mote característico da Revolução Islâmica.

Como toda revolução ela tem seu mártir. Na verdade, dois tipos de mártires –

os que servem ao regime, praticantes da não fraternidade e aqueles que pertencem

ao povo, que procuram defenderem-se a si mesmos e aos seus, valendo-se das

ações de fraternidade. Sim, há igualmente duas revoluções: a revolução que

convoca todo o povo iraniano e diz respeito ao Xá e seus seguidores, e a segunda

revolução, que permeia a família de Marjane Satrapi. Dois mundos, dois universos,

dois modos de viver a revolução. Uns, os tiranos, estabelecendo as suas bases e

impondo o legado da não fraternidade. Os outros, os súditos, os que se defendem

da Revolução, e fazem de sua vida um modo próprio de convivência.

Esse segundo modo, também se apresenta na própria vida de Marjane, que

também é representada através de duas personagens – a Marji que viveu em Teerã

e a Satrapi que vai para a Europa. Em ambos os mundos, em todas as

relacionalidades estabelecidas, os exemplos da fraternidade e da não fraternidade

são recorrentes. Quando a situação fica insuportável, abandona-se o véu, na

perspectiva de que além da vestimenta, há um mundo novo, onde a paz e a

convivência serão possíveis pela perspectiva da fraternidade.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história em quadrinhos intitulada Persépolis começou em 1979, quando a

Revolução Islâmica instalou-se no Irã e termina em setembro de 1994 no Aeroporto

de Merabahd, também no Irã, quando Marjane Satrapi, despediu-se de sua família

para retornar definitivamente para a Áustria. Na verdade a história começou bem

antes e pode ser a história de muitas outras revoluções que engendraram a história

política humana – a história do horror. Independentemente de quando e onde

aconteceram foi sempre a compreensão do mundo presente o algo que ela

despertou.

Persépolis conquistou o público leitor e de cinema, quer pela mensagem da

revolução, da política mesquinha imposta, quer porque traz a dinâmica da velha

arma da revolução de criar o amigo e o inimigo, de estabelecer-se criando uma

figura ícone – no caso foi instalada a obrigatoriedade do uso do véu e da mesma

forma de abrir-se para a ternura do diálogo e da convivência.

De uma análise inicial do filme/livro, pode-se vislumbrar o Irã de Satrapi, em

seus “2.500 anos de tirania e submissão”, através de seus próprios imperadores,

depois com a invasão árabe, pelo oeste, em seguida a invasão mongol, pelo leste e,

por fim, o imperialismo dito moderno (SATRAPI, 2008, cap. A Bicicleta), seguindo

até a revolução, onde a história começou, e, em razão do presente trabalho, o

estudo foi distribuído em três cenas, que se relacionam com o título deste artigo: a

criança (Revolução), a adolescente (véu) e a adulta (fraternidade).

A obra objeto desta pesquisa tratou-se de um recorte autobiográfico que

começa aos 10 anos de idade, em 1979, e termina aos 25 anos, tendo como pano

de fundo a Revolução Islâmica estabelecida no Irã, com suas dores, suas guerras

diárias e acirradas contra a sua própria população e as articulações que foram

empreendidas pelo domínio do homem para com seus semelhantes, no sentido de

“tratar a violência como um fenômeno em si mesmo”, um fenômeno que tem no

próprio poder a sua razão de existir, qual seja, “a violência é tão-somente a mais

flagrante manifestação do poder”. (ARENDT, 2009, p. 51).

É contra o cenário de tais experiências que Satrapi apresentou Persépolis e,

no olhar do presente artigo, é a partir da lógica da violência instalada pela Revolução

Iraniana, de fundo religioso, que o estudo propôs analisar a dinâmica da fraternidade

tendo como fundo a questão da violência e, portanto, da não fraternidade. Não foi

tarefa fácil, dada a complexidade das questões com que a revolução islâmica,

sediada no Irã imprimiu ao mundo e a sua gente, eis que, conforme revela Arendt,

citando Sorel, “os problemas da violência permanecem muito obscuros” (2009, p.

51).

Assim, foram tecidas as ocorrências que levaram Marjane Satrapi a

abandonar definitivamente sua terra natal. Foram vinte e cinco anos de vinculação

ao seu país e proximidade direta com sua família e bastaram apenas três anos no

meio dos europeus, para acelerar sua proposta de ocidentalização e contribuir de

forma definitiva para ir morar naquele continente, inicialmente na Áustria, até que

finalmente estabeleceu-se na França, como autora e ilustradora e é em tal condição,

que sua história foi contada para o mundo.

O Irã sempre morou em Satrapi, mas a revolução que se estabeleceu deu a

Marji o passaporte de morada na Europa, mas foram os anos em que bebeu da

fonte do perfume dos jasmins, das caminhadas nas montanhas de Teerã, do ar que

somente existe nas costas do Mar Cáspio, da educação transmitida por seus pais,

somada a companhia ímpar de sua avó, e, sobretudo, decorrente da lição da

revolução depositada em Marjane, que lhes conferiu a condição de revelar que o

IRÃ é seu país, apesar de portador de muitas contradições.

Foi convivendo com esta bendita terra de Teerã, com as marcas do dia-a-dia

europeu, e abençoada com a educação transmitida por uma família ímpar, que

tendo recebido a lição do povo iraniano, passou a revelar ao mundo o sofrimento e

os horrores da revolução – da não fraternidade, e, desta lição duríssima e

monstruosa, que Marjane Satrapi retira os momentos simples e fantásticos da sua

história em quadrinhos, partilhando ao mundo o legado da fraternidade.

“Não há lugar como o lar”9. Viva Persépolis!

5 REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A promessa da política. Organização e introdução de Jerome Kohn. (Tradução Pedro Jorgensen Júnior). Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.

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