Elegia Para Uma Re(Li)Giao - Chico de OLIVEIRA

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Neste estudo de um caso curioso e sin­tomát ico , Francisco de Oliveira trata de ver c o m o a peculariedade duma polít ica regional, a implantação da S U D E N E - a tentativa mais estruturada de coordenar o desenvolvimento do Nordeste - se resolve no movimento de reprodução do capital no Brasil . O particular se esgarça assim num feixe de determinações abstratas , as quais se cruzam para gerá-lo. D a í o desen­canto daqueles que buscarão neste ensaio a narração duma estória, pois vão encon­trar tão-somente uma história armada pelo capital . M a s se a singularidade se es-fumaça para frisar o movimento do uni­versal, nem por isso o caso S U D E N E per­de seu relevo: o empreendimento de ho­mens, tecidos por intenções, violência e paixão, exemplifica o drama da interven­ção do Estado capitalista. O projeto mais imaginoso e refletido se converte numa arma que o capital , sediado no Centro -Sul, dispara com o fito de absorver, no seu movimento de reposição, uma fímbria econômica e social, que se desdobrava em outro r i tmo. Fracassa o empenho das classes populares, encarnadas na figura do G o v e r n o Àrrais , mas esse fracasso, que as contém em limites convenientes, é o instrumento pelo qual a velha oligarquia é solapada. Aqui nasce a dimensão trágica deste caso ; o projeto de homens é tritura­do pelas maxilares do destino.

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Série ESTUDOS SOBRE O N O R D E S T E Vol. 1

Direção de:

Francisco de Oliveira ( C E B R A P ) Roberto Maia Martins (UFPe ) Moacir Palmeira (Museu Nacional)

Ficha catalográfica

(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do S I N D I C A T O N A C I O N A L DOS E D I T O R E S DE L IVROS , RJ)

Oliveira, Francisco de. 047e Elegia para uma re(li)gião: S U D E N E , Nordeste. Pla­

nejamento e conflito de classes. 3ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.

132 p. (Estudos sobre o Nordeste, v. 1)

1. Brasil - Região Nordeste - Condições econômicas 2. Brasil - Região Nordeste - Condições sociais 3. Bra­sil. Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste 4. Conflito social I Título II Série

C D D - 309.1812 330.9812 301.637009812

C D U - 308(812/814) 338(812/814)

77-0255 301.162.2(812/814)

E D I T O R A P A Z E T E R R A Conselho Editorial Antônio Cândido Celso Furtado Fernando Gasparian Fernando Henrique Cardoso

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FRANCISCO DE OLIVEIRA .

ELEGIA PARA UMA RE(LI)GIÀO

SUDENE, NORDESTE. PLANEJAMENTO E CONFLITOS DE CLASSES

4ª E D I Ç Ã O

Paz e Terra

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Copyright © 1977 by Francisco de Oliveira

Capa: Elifas Andreato Diagramação: Mario Roberto Corrêa

Direitos adquiridos pela E D I T O R A P A Z E T E R R A S/A

Rua São José, 90 - 18º andar Centro - Rio de Janeiro, RJ T e L 221-3996

Rua Carijós, 128 Lapa - São Paulo, SP TeL 864-0755

1985

Printed in Bruzil Impresso no Busil

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À sua memória, Orieta, querida.

Aos trabalhadores, operários e camponeses do Nordeste.

A Miguel Arraes de Alencar, Francisco Julião e Mário Magalhães da Silveira.

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" Foges, que és somente sombra, perfume, ressonância, imagem."

(Elegia nº 2, Mauro Mota, in Elegias)

Não é saudade, eu mesmo quero crer. É o homem velho que se vem rever Na paisagem do tempo de menino."

(Fragmento de um soneto de Eugênio Coimbra Jr.)

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Sumário

Prefácio 13 I - Introdução 21 1. Breves considerações e marco teórico 22 2. Conceito de região econômica e política 27 3. Conceito da região "Nordeste" no Brasil 32

II - Oligarquia agrária e intervenção do Estado no Nordeste . 45 1. As bases econômico-sociais

da oligarquia agrária não açucareira do Nordeste 45 2. A intervenção do Estado:

O Departamento Nacional de Obras contra as Secas 50 3. A manutenção do status quo:

o Estado capturado ou o Estado oligárquico 52

III - Burguesia Agroindustrial e Intervenção do Estado no Nordeste 59

1. As bases econômico-sociais da burguesia agroindustrial do Nordeste 59

2. A intervenção do Estado: o Instituto do Açúcar e do Álcool 67

IV - Expansão capitalista no Brasil e desenvolvimento regional desigual 73

1. A mudança pós-30: desenvolvimento industrial do Centro-Sul e a re-divisão regional do trabalho à escala nacional 73

2. O aumento das disparidades regionais como sinal e momento da integração nacional 75

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V - Desenvolvimento regional desigual e conflitos de classe ... 81 1. Breve advertência 81 2. Sociedade, economia e Estado no Brasil do Centro-Sul 82 3. Sociedade, economia e Estado no Brasil do Nordeste 89

VI - As condições de criação da S U D E N E 99 1. Breve introdução 99 2. A transição para o capitalismo

monopolista no Centro-Sul 100 3. Decadência da burguesia industrial nordestina,

destruição da pax agrariae e crescimento das forças populares: a ameaça à hegemonia burguesa à escala nacional 106

4. O Novo Estado no Nordeste: a SUDENE 115 5. A SUDENE: Planejamento da expansão

hegemônica do capitalismo monopolista 124

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PREFÁCIO

Este trabalho foi escrito sob o signo da paixão: paixão de Orieta, do Nordeste, paixão dos operários, trabalhadores e camponeses do Nordeste. Paixão no mais amplo e estrito sentido. Paixão no sentido de Gramsci: o de colocar-se em uma posição e, mediante essa coloca­ção e por causa dela, tentar entender uma tragédia. O processo social que se procura entender não é um objeto de investigação: é uma cau­sa, uma paixão. Esse posicionamento causará arrepios e um dar de ombros por parte de muitos: é uma obra engajada, que não é, portan­to, residência da ciência. Haveria uma multidão de argumentos teóri­cos para replicar, mas prefiro não seguir esse caminho. N ã o indaguei, pois, do surgimento da paixão: apaixonei-me apenas; e entrei na cor­rente, deixei o barco correr.

Paixão de Orieta, que surgiu, cresceu, amadureceu e deu frutos no Nordeste, e que se transformou em dor e perda fora do Nordeste, quando ela se foi. Paixão do Nordeste. Que veio com a vida, cresceu despreocupadamente pelas ruas da Boa Vista, metamorfoseou-se nos bancos escolares, no trabalho, na experiência política, na S U D E N E , e virou reflexão fora do Nordeste. Paixão dos operários, trabalhadores e camponeses do Nordeste: engatinhou no contato com as donas de ca­sa, deteve-se no assovio do carroceiro que passava, cheirou os cheiros mistos de suor e açúcar nos embarcadouros dos antigos Cais do Apo io e Santa Rita, começou a mudar nas lutas estudantis, engajou-se nas lu­tas políticas, e cresceu em tragédia quando soube que não era apenas a saudade da infância, a música do carroceiro, o cheiro forte dos estiva­dores, mas o vago idealismo estudantil, a superfície dos embates elei­torais. Quando soube que era tudo isso e muito mais: a miséria, a opressão, o aviltamento, séculos de latifúndio, milhões de mortes e vi-

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das severinas. Quando soube que era impotência para mudar o rumo das coisas: S U D E N E ; planejamento que amadureceu no exílio, fora do Nordeste, mas que não chora; cresce e se revitaliza em esperança, quando entende que todo o Brasil é um imenso Nordeste; e recusando a impostura, não se fantasia: sabe que seu próprio campo é específico e limitado; não substitui os atores reais, mas soma-se a eles, na imensa e generosa aventura da construção do futuro, do socialismo.

Futuro que se está inscrito na história é inscrição feita pelos ho­mens, a cada passo, a cada momento, com paixão. Um futuro não te-leológico, mas apaixonadamente histórico, forjado, conquistado.

Pertencente aos quadros da S U D E N E desde sua fundação até o ano de 1964, estive em posição privilegiada vendo, participando, dis-sentindo, perdendo dentro do processo. Este trabalho, ainda que apro­veite de minha própria experiência, não é um relato dela. Não tenho nenhum sentimento de culpa por ter participado daquele processo. Não constitui o trabalho, pois, um substitutivo do divã: não se trata de uma crônica de caracteres, do caráter dos homens. Prima facie, a expe­riência da S U D E N E parece excessivamente marcada pela força ou fra­queza de alguns dos seus personagens principais: o vigor intelectual de um Celso Furtado, o vigor político de um Cid Sampaio, o messianis­mo de um Francisco Julião, o maneirismo pessedista de um Miguel Arraes, a falta de caráter de um João Goulart, o desvario brasílico de um Juscelino Kubitschek. É preciso, porém, entender tais personagens como personas no sentido de Marx: representam forças sociais; seus no­mes privados são nomes próprios das classes e grupos sociais que re­presentavam, e dos processos contraditórios a que o embate e o con­fronto dessas classes davam lugar. Este trabalho tenta entender esses processos. Assim, é atuando sob tais circunstâncias, emolduradas pelo embate entre as forças do velho e do novo Nordeste, do velho e do novo Brasil, que o caráter desses homens adquire relevo, ganha subs­tância, e não se transformam eles numa crônica de caracteres, mas re­cuperam-se como se fossem máscaras da antiga tragédia grega: seus no­mes são o latifúndio, o campesinato, o proletariado urbano, a burgue­sia regional impotente e perdulária, a nova burguesia internacional as­sociada; o velho e o novo Estado brasileiro e seus processos de dissolu-

ção, redefinição, passagem ao primeiro plano da cena política, aniqui-lamento; e, por fim, no que é apenas uma tendência, a de soma algébri-ca de todas as contradições para constituir isso que é hoje o capitalismo monopolista no Brasil, o Estado ditatorial que não é apenas o braço armado da burguesia mas que é, ele mesmo, um novo agente explora­dor, a vasta classe trabalhadora nacional que engloba agora também o proletariado rural, um país sem fronteiras regionais, a não ser as da memória.

O trabalho que se pretende não é um processo de homens contra homens. Quando estes se expressam no discurso e na ação, ao buscar­mos as citações para precisar aquele discurso e aquela ação, não o fa-

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zemos para encontrar os "desvios" , as "traições", os equívocos. A his­tória não é um pátio ferroviário, nem uma conspiração, nem um espe­lho fixo. O trabalho pretende ser um processo do social, enquanto síntese de todas as determinações; é por isso mesmo contraditório, alinhando forças diferentes aqui para realinhá-las diferentemente acolá. Não re­presenta, porém, um encontro de acasos: se nada estava escrito "desde siempre y para siempre", é entre os limites do "desde siempre" - o lati­fúndio, os barões do açúcar - e do hoje - o capitalismo monopolista e suas formas nacionais e internacionais - que se abre o espaço do futu­ro, onde precisamente os homens exercitam sua escolha, dentro das circunstâncias que lhe são legadas. Tragédia grega e não drama inti-mista: heróis pugnam ferozmente, sem arrumações nem conchavos. Ao sucumbirem uns e vitoriarem-se outros, mudam os heróis, o con­texto e a tragédia: não é Prometeu acorrentado porque desafiou Zeus, mas Zeus conjurando todas as divindades, porque aquele que foi sub­jugado cresce na subjugação. É a reforma agrária contida pela liquida­ção das Ligas Camponesas, agora transformando-se em oposição en­tre o capital e o trabalho, este crescendo na mesma medida em que aquela foi contida; são os sindicatos de trabalhadores, destruídos para dar lugar à mais impiedosa acumulação de capital, mas todo o país transformando-se numa imensa força operária, na mesma medida em que cresce a acumulação de capital. É o velho Nordeste dos "coro­néis" e da burguesia açucareira, convocando as forças da burguesia in-ternacional-associada e do imperialismo para liquidar as classes popu­lares que lhes roubavam a hegemonia política, mas desaparecendo agora, como classes sociais com poder econômico e político, submer­gidas pela força avassaladora do grande capital monopolista.

N ã o se encontrará neste trabalho uma teoria do planejamento, e não por desambição; ao contrário, a pretensão é sempre maior que a capacidade, assim como ao se tentar dar um passo mais largo que o permissível pelo arco da perna. A impossibilidade de uma teoria do planejamento reside essencialmente em que este - o planejamento - é uma forma: aqui, parece encontrar-se uma contradição radical, pois precisamente os esforços de teorização fazem-se, na maior parte dos casos, sobre as formas que os processos sociais assumem; e a contradi­ção é real, pois as teorizações sobre o planejamento trabalham uma forma sem tentar realizar ou entender sua concreção: advém disto que quase tudo que se escreveu sobre planejamento termina por desembo­car em "mode los " , que se pretendem de generalizada aplicabilidade. A postura teórica e metodológica deste trabalho recusa os "mode los " , por entender - no que suscitará divergências - que essa forma de con­flito social, que é o planejamento, não constitui apenas uma capa nova que recobre um corpo antigo, ou uma retórica. Essa mudança essen­cial de forma do conflito que é o planejamento revela uma das facetas mais características do capitalismo monopolista, a sua dilacerante ten­dência anárquica de grandes proporções, suas novas formas de relação com o operariado, o campesinato e, por que não adiantar desde logo,

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sua oposição com a Nação. É uma forma típica da "rationale" do ca­pitalismo monopolista, e ao mesmo tempo do Estado anti-Nação, que tenta reconstruir pelo planejamento a "comunidade ilusória", pela qual diz representar a Nação. Há entretanto um longo caminho teóri­co e metodológico a percorrer, até que se possa construir uma teoria do planejamento, que requer como passo essencial uma nova teoriza-ção sobre o caráter do Estado.

Essa teoria há de ser especificamente determinada: já passou o tempo em que se confundia planejamento em qualquer latitude, em qualquer sistema social, como se planejamento - ainda que no estrito sentido técnico do termo - fosse a mesma coisa em economias capita­listas e socialistas: o planejamento não é a mesma coisa em qualquer espaço social do capitalismo monopolista. Planejamento é, sem sombra de dúvida, uma forma técnica da divisão do trabalho; mas não é apenas isto, nem principalmente isto. Enquanto forma técnica da di­visão do trabalho, num sistema capitalista, é uma forma técnica da di­visão do trabalho improdutivo que comanda o trabalho produtivo; já num sistema socialista, é ele uma forma indissociável do novo caráter da propriedade dos meios de produção. Enquanto forma técnica no sis­tema capitalista contínua e explícita, até onde as condições sociais o permitem, a manutenção e até a radicalização - o caso da S U D E N E é eloqüente a respeito - da expropriação e separação entre trabalhado­res e meios de produção. No sistema socialista, porém, encarna uma relação dialética entre gestão e propriedade coletiva dos meios de pro­dução; por isso mesmo, até os próprios agentes sociais mais ligados a essa forma técnica da divisão social do trabalho - os planejadores -não podem ser indistintamente nomeados como burocratas ou tecno-cratas num e noutro sistema; tal procedimento, encontrado até mesmo em textos insuspeitos, confunde mais do que esclarece: concede aos conceitos de burocracia, e ao mais moderno de tecnocracia, uma ex-traterritorialidade social que é rigorosamente incorreta.

Denominar burocrata, por exemplo, o procedimento de um técni­co num sistema capitalista, que no aparelho do Estado fixa preços, e igualmente denominar burocrata o procedimento de um técnico num sistema socialista, que não apenas ao nível do aparelho de Estado mas no conjunto das forças produtivas também fixa preços, é chamar pelo mesmo nome duas relações sociais radicalmente distintas: no primeiro caso o chão social da fixação dos preços pelo lápis ou computador do burocrata, é, em primeiro lugar, a separação entre produtores e meios de produção, em segundo, o processo de extração da mais-valia, a margem que ela oferece à elevação ou rebaixamento dos preços, e nes­ta medida é alterar a sua distribuição entre as várias formas do capital; no segundo caso, o chão social do planejador de uma economia socia­lista é, em primeiro lugar, a unidade entre produtores e meios de pro­dução e, em segundo, a unidade de trabalho socialmente necessário despendida no processo de produção, e a sua necessidade de preserva-

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ção que não pode ser dilapidada. As margens de manobra são, neste caso, muito mais estreitas que num sistema capitalista. Isto é denomi­nado freqüentemente de rigidez burocrática, o que revelaria a incapaci­dade de uma economia socialista ser flexível. Essa confusão, quando não há má-fé, revela total incapacidade para conhecer a especificidade da relação social que funda um e outro sistema.

Elegia para uma Re(li)gião é, sim, um canto de amor: principal­mente, do novo amor. Canta o amor que se foi, pela ausência da pes­soa amada. Canta o amor pelos milhões de nordestinos que perece­ram, vítimas de um sistema de opressão e opróbrio, e jogaram suas vi­das não na inutilidade de desafiar Zeus, mas na audácia do desafio; ao agir assim, legaram ao futuro aquelas circunstâncias de que falava Marx no O 18 Brumário; nada, nenhum desdobramento do Nordeste futuro e do Brasil, poderá passar por cima desse legado. N ã o se pode, contudo, fazer aqui mistificação: nenhuma ciência social poderá recu­perar suas vidas; apenas o futuro da libertação, reconstruindo e dando sentido à História, instaurando a nova História, poderá recuperar o seu sentido. Esta Elegia não canta o amor do Nordeste passado, que foi o domínio dos latifundiários e dos "barões" do açúcar, Nordeste esse que se projeta agora num folclore que é, sob muitos aspectos, a glorificação de um passado de servidão. Esta Elegia canta o amor do futuro. N ã o esquece porém que, ao cantar, esse futuro realiza-se pelo aprofundamento da exploração, nesse futuro imediato. Um dos meus críticos, o professor Albert Hirschman, aconselhou-me a adotar a mesma posição com que Marx saudou a implantação da ferrovia na Índia: no Nordeste, o grande capital internacional-associado estaria, a seu ver, desempenhando o mesmo papel daquelas ferrovias, destruin­do para sempre a servidão, a ignorância e as relações sociais que as fundavam. Respondi a Marx com o próprio Marx: " Tudo o que a bur­guesia inglesa pode ser forçada a fazer não irá emancipar nem melho­rar materialmente as condições sociais da massa do povo, o que de­pende não apenas do desenvolvimento das forças produtivas, mas da sua apropriação pelo povo. O que ela não deixará de fazer, entretanto, é criar as premissas materiais para ambos. Alguma vez fez a burguesia mais do que isso?" (Marx, " T h e Future Results of the British of the British Rule in Índia", in Marx and Engels, On Colonialism). Conside­rar, ainda mais, que o grande capital internacional-associado possa desempenhar algum papel civilizatório no Nordeste, na segunda meta­de do Século X X , não é apenas uma ilusão ou uma escapatória: trata-se de uma colocação rigorosamente infeliz, pois se no Século X I X , o novo, o socialismo, mesmo nas mãos de Marx não passava de uma pré-visão, na década de 70 do Século XX o socialismo é mais que uma previsão: é uma possibilidade concreta.

E meu canto não pode reconhecer nenhum papel civilizatório para o grande capital no Nordeste; ali, como em todas as outras partes do Brasil, é ele a opressão, o obscurantismo, a negação do futuro. Esta

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Elegia é, pois, o canto de amor da região do futuro e esta região é si­multaneamente todo o Brasil e a nova forma de sociedade, isto é, a Nação socialista.

Muitos dos antigos companheiros das jornadas iniciais da SUDE­NE permanecem no Nordeste, e seguem trabalhando na agência de planejamento regional. Este ensaio pode parecer-lhes algo que, che­gando mais de quinze anos depois, esteja a dizer-lhes que tudo foi inú­til, que a S U D E N E foi uma farsa. Menos pela minha direta participa­ção naquelas jornadas - pois não me considero, hoje, como tendo sido farsante então - e mais pela minha posição teórica, devo explicar-lhes que a S U D E N E não foi uma farsa: precisamente porque foi um emba­te de raras proporções na história nacional, travado pelo tipo de forças sociais que o travaram, a S U D E N E foi um empreendimento de uma audácia inédita na história nacional. Ela anunciava um dos dois novos: se os vencedores tivessem sido as forças populares, o Nordeste e o Bra­sil de hoje seriam muito diferentes; tendo sido vencedoras as forças do capitalismo monopolista, chamadas a socorrer combalidos latifundiá­rios e barões do açúcar, essa vitória também mudou o curso da histó­ria. A S U D E N E , na sua ambigüidade, anunciava as duas possibilida­des. N ã o cabe aos que nela continuam trabalhando qualquer senti­mento de culpa, de traição. A velha lição volta a dizer, entretanto, que a história quando se repete é farsa e não tragédia. Neste sentido, não pode pensar que a S U D E N E de hoje é a de ontem e a de sempre. A de hoje encarna apenas a vontade social do capitalismo monopolista e do Estado no Brasil; não encarna mais as aspirações populares. Há aqui, por isso, uma elegia que deveria ser um requiem para essa religião do planejamento neutro. Algum trecho do ensaio pode parecer ofensivo aos companheiros que permanecem funcionários da agência de plane­jamento; sei que, no fundo das coisas, a S U D E N E para a qual deseja­riam trabalhar é a de ontem, e não a de hoje. Perdoem-me, assim de antemão: é a força do amor que dá o tom ao ensaio. Pensei mesmo, em algum momento, em dedicar-lhes este trabalho: creio porém que, em compasso com a maioria dos que labutaram e continuam labutando na S U D E N E , sabemos que este trabalho somente poderia ser dedica-Uo. aos operários, trabalhadores e camponeses do Nordeste.

Encontrei no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento -. C E B R A P -, instituição à qual pertenço desde 1970, o clima propício à metamorfose de minha reflexão sobre o Nordeste; aqui, entre os com­panheiros dessa aventura intelectual, foi possível recuperar a dimen­

s ã o da criação da S U D E N E , a salvo tanto da crônica de um partici­pante, quanto de um infantilismo saudosista. Aqui, encontrei o am­biente propício ao trabalho de "preservar o encanto" da experiência, sem voltar a "cair na puerilidade". Os agradecimentos, ainda que lon­gos demais, serão feitos: a Fernando Henrique Cardoso, pelo estímulo intelectual que chegou até a assumir a co-autoria do trabalho, para fins externos, sem perguntar pelo seu conteúdo, o que revela um senti­mento e uma confiança que extrapola as fronteiras simplesmente inte-18

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lectuais; a José Arthur Gianotti, sempre disposto a tolerar os equívo­cos metodológicos, quando percebe que algo brilha em meio ao lixo; a Octávio Ianni, valorizador de qualquer esforço intelectual que esteja disposto a assumir um lado da História; a Vinícius Caldeira Brant, pela fértil discussão e ferrenha disposição em não deixar passar "gatos por lebre"; a Paul Singer, pela sempre afável e generosa disposição em discutir e ajudar mesmo aqueles que, como eu, contrastam pelo es­tilo e pouco verniz com seu cavalheirismo; a Geraldo Muller, " ché " sempre inclinado a encontrar em meus trabalhos as virtudes que so­mente sua amizade é capaz de exagerar; a Carlos Estevam Martins, testemunha da história, que não permite o uso dos desvãos da memó­ria; a todos os demais companheiros do CEBRAP , que transformam nossas discussões no " M e s ã o " numa extraordinária oportunidade de crítica intelectual vigorosa e sem ademanes acadêmicos. Devo fazer também uma referência ao professor Albert Hirschman que, em se­minário realizado em Bogotá em julho de 1976, valorizou a perspectiva por mim adotada, cobrando-me a mesma posição que Marx assumiu quanto à implantação das ferrovias inglesas na índia; peço-lhe descul­pas por não ser Marx... a Maria do Carmo Bayma de Carvalho, tra­balhadora infatigável, sempre disposta a fazer a revisão dos nossos textos, com seu jeito peculiar de sugerir mudanças que "deveriam estar na nossa intenção quando escrevemos", o que nem sempre é verdade. E aos demais companheiros, trabalhadores anônimos do C E B R A P , cujo convívio nos devolve ao chão humano onde se forja a esperança. Sou o responsável direto pelo que aqui está escrito, o que é evidente; ao contrário do convencional, porém, estou certo de que aquilo que es­crevi deve muito aos meus companheiros do CEBRAP .

Este trabalho, agora em forma de livro, é dedicado em primeiro lugar à memória de Orieta, minha companheira. Uma mulher simples, que deu a nossos filhos e a mim uma extraordinária dimensão para a aventura de nossas vidas. Saída do mesmo grupo social ao qual per­tenço, filha do Nordeste, amor do Nordeste, aceitou sem passividade e com coragem os percalços de uma vida sem paradeiro, quase cigana nesses últimos doze anos. Persiste em mim, querida, a mágoa irrepará­vel agora e para sempre de tê-la perdido. Este livro é dedicado, em se-gundo lugar, aos trabalhadores, operários e camponeses do Nordeste: os Joãos, os Josés, os Severinos, os Bastiões, as Marias, todas as Ma-rias que entendem a inversão da dedicatória e que, em um momento é­pico, chamaram-se politicamente Miguel Arraes de Alencar e Francis-_ co Julião. Junto a estes o nome do meu mestre Mário Magalhães da Silveira, que sem impostura lançou-se à aventura do Nordeste, ele também nordestino e nordesterrado, e a quem devo, do pouco que sei, o método de "desvendar as aparências". Nomes do passado? Não ; no­mes do futuro.

S. Paulo, janeiro de 1977, no primeiro aniversário da morte de Orieta.

Francisco de Oliveira

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I - INTRODUÇÃO

" U m homem não pode voltar a ser criança sem cair na pue-rilidade. Mas não acha prazer na inocência da criança e, tendo alcançado um nível superior, não deve aspirar ele próprio a reproduzir sua verdade? Em todas as épocas, o seu próprio caráter não revive na verdade natural da natu­reza infantil? Por que então a infância histórica da humani­dade, precisamente naquilo em que atingiu seu mais belo florescimento, por que esta etapa para sempre perdida não há de exercer um eterno encanto? Há crianças mal educa­das e crianças precoces. Muitos dos povos da Antigüidade pertencem a esta categoria. Crianças normais foram os gre­gos. O encanto que a sua arte exerce sobre nós não está em contradição com o caráter primitivo da sociedade em que ela se desenvolveu. Pelo contrário, está indissoluvelmente ligado ao fato de que as condições sociais insuficientemente maduras em que esta arte nasceu, e somente sob as quais poderia nascer, não poderão retornar jamais." - Karl Marx, Introdução à Crítica da Economia Política.

"José Arcadío Buendía, que era el hombre más emprentje-: dor que se veria jamás en la aldea, había dispuesto de tal modo la posición de Ias casas, que desde todas podia llegar-se al rio y abastecerse de agua com igual esfuerzo, y trazó Ias calles con tan buen sentido que ninguna casa recibía más sol que otra a la hora dei calor. En poços anos, Ma-condo fue una aldea más ordenada y laboriosa que cual-quiera de las conocidas hasta entonces por sus 300 habitan­tes. Era en verdad una aldea feliz, donde nadie era mayor

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de treinta anos y donde nadie habia muerto." pp. 15 y 16. "Sin embargo, antes de llegar al verso final ya habia com-prendido que no saldría jamás de ese cuarto, pues estaba previsto que la ciudad de los espejos (o los espejismos) seria arrasada por el viento y desterrada de la memória de los hombres en el instante en que Aureliano Babilônia acabara de descifrar los pergaminos y que todo lo escrito en ellos era irrepetible desde siempre y para siempre, porque Ias es­tirpes condenadas a cien anos de soledad no tenian una se­gunda oportunidad sobre la tierra." p. 351. Gabriel Garcia Marquéz, Cien Anos de Soledad.

1. Breves considerações metodológicas e marco teórico

As citações que iniciam esta introdução não são feitas como um exercício pedante, " snob" , que quase nunca tem a ver com o trabalho e. a pesquisa a que se propõe. Muito ao contrário, as citações, de um clássico da Economia Política e de um moderno clássico novelista lati­no-americano, demarcam bem o objeto de trabalho da pesquisa, que se propõe a examinar as relações do Estado brasileiro com a sociedade brasileira e nordestina, através da janela propiciada pelo estudo da emergência do planejamento regional, particularmente pelo exame das causas próximas e remotas da criação da Superintendência do Desen­volvimento do Nordeste, mais conhecida pela sigla S U D E N E .

É inegável o fascínio que a experiência da S U D E N E exerceu e continua a exercer no Brasil, e mais remotamente na América Latina. Esta experiência pareceu a cientistas sociais, técnicos e políticos, um caminho extremamente inovador, em todos os sentidos. A experiência da S U D E N E teve e tem, como é moda dizer-se, "leituras" diversas, para as categorias citadas, divergentes e até antagônicas; este é apenas um, dentre outros aspectos, que denota a riqueza da experiência. En­tretanto, quase nenhuma literatura tentou aprofundar a questão da criação da S U D E N E no contexto econômico, político e social do Bra-sil de fins da década dos cinqüenta e começo dos sessenta; felizmente, começam a ser mais numerosas essas tentativas, abordando o tema de ângulos tais como a crise política regional e nacional, a interferência dos Estados Unidos e os possíveis erros e acertos do diagnóstico sobre o Nordeste e conseqüente avaliação do desempenho da S U D E N E ( 1 ) .

Este trabalho inscreve-se nessa recente linha de preocupações, abandonando a literatura apologética que se produziu abundantemen-

te no Brasil na última década, a partir da própria S U D E N E , do Banco do Nordeste do Brasil e de outras instituições oficiais; apologia escrita que entra em flagrante contradição com o estado de espírito da maio­ria daqueles que labutam nos organismos de planejamento, e especifi­camente no organismo de planejamento criado para o Nordeste, cuja

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frustração é um segredo de Polichinelo. As citações iniciais demarcam o terreno desta pesquisa e anunciam seus objedvos: pretende-se ofere­cer uma versão e uma interpretação da história econômica, social e política do Nordeste e do Brasil dos dias da criação da S U D E N E -com o indispensável retrospecto e a também indispensável prospec-ção, esta muito mais no terreno das hipóteses - que nos salve de "cair na puerilidade" de um lado e evite as interpretações eminentemente técnicas e instrumentais do tipo de "trazar las calles con tan buen sen­tido..." Isto é, pretende-se tratar a questão de forma a preservar seu "encanto" histórico e advertir que a tentativa de reeditar esse "encan­to " , sob outras condições e noutro momento histórico, corre o risco de "cair na puerilidade". Quando for possível "decifrar los pergaminos" da S U D E N E e de sua experiência - e este trabalho pretende oferecer uma contribuição neste sentido - ficará claro que " todo lo escrito en ellos era irrepetible desde siempre y para siempre..."

Este trabalho centra suas possibilidades de compreensão e des-vendamento da emergência de um padrão "planejado", por oposição ao espontâneo, de condução e orientação das atividades econômicas, no método dialético. O padrão "planejado" não é, desse ponto de vis­ta, senão uma forma transformada do conflito social, e sua adoção pelo Estado em seu relacionamento com a sociedade é, antes de tudo, um indicador do grau de tensão daquele conflito, envolvendo as diver­sas forças e os diversos agentes econômicos, sociais e políticos. O pla­nejamento não é encarado, portanto, apenas como uma técnica de alo­cação de recursos, em qualquer nível, nem como uma panacéia; esca­pa, pois, a este trabalho a discussão muitas vezes bizantina sobre a "neutralidade" do planejamento e seu oposto, sobre seu caráter "revo­lucionário". As revoluções sociais, quaisquer que sejam, constituem uma classe de acontecimento e de ruptura que não pode ser compreen­dida nos estreitos limites de uma teorização sobre o planejamento. Este trabalho pretende, no entanto, abordar a emergência do referido padrão "planejado" em toda a sua complexidade: não se isolará os fa­tores e agentes econômicos daqueles políticos e sociais; a riqueza de processo não pode ser sequer conhecida se os diversos fatores e agen­tes forem considerados como variáveis que se vão agregando para re-sultarem num certo vetor ou vetores de atuação. Resumindo, poder-se-ia dizer que a ambição deste trabalho é a de vir a ser uma "econo­mia política" do planejamento regional para o Nordeste do Brasil.

Convém, entretanto, adiantar ainda algumas questões relativas ao planejamento, recusada já inicialmenfe a discussão bizantina sobre seu caráter "neutro" ou "revolucionário". Marco de um sistema capi­talista de produção, a possibilidade do planejamento é dada pelo cará-ter mesmo das relações de produção e portanto sociais que fundam esse sistema: o cálculo econômico, antes mesmo de ser reconhecido pela teoria econômica, é o fundamento das decisões dos agentes eco-nômicos do capitalismo, a burguesia, no caso. Tal possibilidade de cál-

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culo econômico é dada em primeiro lugar pelo conteúdo de valor das mercadorias, pela reiteração das trocas e do movimento de circulari-dade do capital, e afinal pelo estabelecimento de um equivalente geral. Marx, nos capítulos iniciais de O Capital, explicita esse movimento que parte da mercadoria até o estabelecimento do equivalente geral (2). O que o método da teoria econômica fez foi incorporar correta­mente esse movimento, a partir da contribuição dos clássicos, desde Quesnay. Assinale-se, de passagem, a insistência nessa circularidade do movimento real, que é encontrada no "Tableau Économique", pas­sando pelos esquemas da reprodução simples e ampliada de Marx, até as matrizes de insumo-produto de Leontref. Essa correta assimilação do movimento real ao método é a responsável pelo fato de que a Eco­nomia Política tenha sido a primeira das ciências sociais a quantificar os fenômenos, possibilitando o enorme avanço instrumental e analíti­co que experimentou ( 3 ) .

O que o planejamento não pode realizar é a superação da contra­dição básica do sistema de produção capitalista, que se instala no co­ração da própria mercadoria: a antítese dialética entre valor e mais-valia, entre trabalho morto e trabalho vivo, trabalho pago e trabalho não-pago; mas desde que o planejamento no sistema capitalista limite-se a recolocar no início do ciclo produtivo os elementos finais que es­tão no produto, isto é, limite-se a repor os pressupostos da produção capitalista, sua possibilidade torna-se perfeitamente plausível: em síntese, o planejamento num sistema capitalista não é mais que a for­ma de racionalização da reprodução ampliada do capital. Pode ope­rar, exatamente neste sentido, na mudança da forma da mais-valia que deve ser reposta para a continuidade do ciclo; para dar um exemplo, que cabe como uma luva no caso do planejamento regional para o Nordeste do Brasil, desde que o Estado foi capaz de transformar uma parte da mais-valia, os impostos, e fazê-los retornar sob o controle da burguesia como capital ( 4 ) , tornou-se capaz de operar uma mudança de forma do excedente que retornou ao processo produtivo. Isto, e so­mente isto, é o que o planejamento pode fazer num sistema capitalista. Mesmo assim, convém advertir, a própria composição do produto so­cial impõe severas limitações ao planejamento, não apenas pelo lado da produção como pelo lado da apropriaçio: se as proporções de alte­ração da forma da mais-valia que deve ser reposta no início do ciclo produtivo não corresponderem à base real dada pelo nível de desen­volvimento das forças produtivas, o capital se esterilizará: se não hou­ver força-de-trabalho para ser comprada, se não houver capital sob a forma de trabalho-morto cristalizado em máquinas, instrumentos e processos para serem postos em produção, os limites de transforma­ção da forma da mais-valia logo aparecerão. São eles os limites do ca­pital enquanto relação social; no caso sob exame, do planejamento re­gional para o Nordeste do Brasil, esses limites eram bastante elásticos, sobretudo quando se considera que a região Centro-Sul podia fornecer,

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como forneceu, os elementos do capital, enquanto o próprio Nordeste podia fornecer, como forneceu, os elementos da força-de-trabalho. Esse aspecto será, entretanto, mais detidamente examinado no lugar apropriado desta investigação.

O marco teórico desta investigação recusa, pelas considerações já expostas, a compreensão da emergência do planejamento regional no Nordeste do Brasil sob o enfoque dos "desequilíbrios regionais", para examiná-los sob a ótica da divisão regional do trabalho no Brasil, vale dizer sob a ótica do processo de acumulação de capital e de homoge­neização do espaço econômico do sistema capitalista no Brasil. O en­foque tradicional, inclusive aceito pelos diagnósticos que fundamenta­ram a criação da S U D E N E ( 5 ) e que continuam a informar as políti­cas de desenvolvimento regional no Brasil e alhures, é não-somente um enfoque que parte de uma base estática, tomando como dados uma certa situação da divisão regional do trabalho para então desdobrar-se na medição de "desvios", como é sobretudo uma abordagem que se centra sobre os resultados dos desenvolvimentos diferenciais inter-regionais, e não sobre o processo de constituição desses diferenciais. A sua base teórica, ainda quando permeada pela tradição estruturalista do pensamento econômico latino-americano, é de inegável extração neo-clássica: constitui a ótica da alocação ótima de fatores, dos dese­quilíbrios na função de produção regional, de que os diagnósticos do desemprego e da inadequação da economia da zona semi-árida do Nordeste são os exemplos mais conspícuos. Ironicamente, a prática da política de desenvolvimento regional do Nordeste do Brasil, que cen­trou suas potencialidades na expansão para o Nordeste das empresas oligopolistas do Centro-Sul ( 6 ) , é radicalmente diferente da abordagem dos "desequilíbrios regionais", embora a retórica continue a mesma: outro não é o caráter do sistema de incentivos fiscais conhecido como 34/18. Ê surpreendente, pois, que a retórica dos planos, programas e políticas de desenvolvimento regional siga seu curso, completamente divorciada da prática real da pplítica implementada. Poder-se-ia dizer com Paul Baran, em conferência pronunciada na própria S U D E N E em 1963 e que lamentavelmente se perdeu, que "não é o planejamento que planeja o capitalismo, mas é o capitalismo que planeja o planeja­mento"...

Uma abordagem centrada no exame da divisão regional do traba­lho e nas suas mutações, sob o controle hegemônico da produção capi­talista no Brasil, pode ao contrário propiciar o entendimento da natu­reza do conflito que levou à criação da SUDENE , pelo exame do de-senvolvimento desigual inter-regional, da desigualdade de caráter e de ritmos dos conflitos sociais nas diversas regiões que polarizavam e ex­pressavam as contradições da expansão capitalista no Brasil, pelo exa­me dos diferenciais da acumulação global em todo o país, e finalmente pela investigação do que é uma região num contexto nacional hegemo-

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nicamente controlado pelos setores mais avançados da produção capi­talista. Ela indica, no final, uma redefinição do próprio conceito de re­gião num sistema de base produtiva capitalista e talvez até uma com­pleta desaparição dessas "regiões". Afinal de contas, qual é a diferen­ça essencial, num país capitalista plenamente desenvolvido como os Estados Unidos da América do Norte, entre a Califórnia e New York, entre Michigan e a Nova Inglaterra? À parte certas diferenças que cha­maremos aqui de "culturais" - e que a própria evolução capitalista, sob a forma das comunicações, da televisão, da indústria "cultural" em suma, se encarrega de dissolver - na essência do movimento de re­produção do capital, na estruturação das classes sociais, não há mais "regiões" no país norte-americano; há zonas de localização diferencia­da de atividades econômicas.

O exame de um caso como o da S U D E N E , pode fornecer no limi­te, importantes elementos para uma teoria do planejamento regional em países como o Brasil, cuja estrutura de produção é reproduzida sob as leis imanentes do movimento do capital, hierarquicamente subordi­nada ao capital internacional. Uma tal teorização, que escapa aos ob­jetivos deste trabalho, deve centrar-se muito mais no exame das Ten­dências de homogeneização monopolística do espaço econômico, no exame do caráter diferenciado que pode persistir na reprodução do sis­tema global, no exame das contradições que esse caráter diferenciado pode colocar; neste sentido, as regiões seriam definidas pelo caráter di­verso das leis de sua própria reprodução e pelo caráter de suas relações com as demais( 7).

Finalmente, a metodologia deste trabalho recusa qualquer teleo-logia, qualquer "f inalismo" na análise da emergência do processo de planejamento regional. Mais que declarações metodológicas de princí­pio, o desdobramento da investigação tratará de ater-se ao desenrolar dos fatos, ao ritmo e momento de atuação/interação de cada agente econômico e político. Apesar das intenções, não era absolutamente cer-to que a S U D E N E , por exemplo, chegasse a ser a forma da transferên­cia da hegemonia da burguesia do Centro-Sul para o Nordeste; esse re­sultado somente se deu - adiantando-nos um pouco na matéria - ten­do em vista o caráter desigual da luta de classes e do conflito social no Nordeste em relação ao que se passava no Centro-Sul. A própria SU­DENE, em suas formulações iniciais, pensava muito mais num fortale­cimento e expansão da burguesia regional que se somaria às demais frações burguesas nacional e internacional no processo da expansão capitalista em todo o país. Por outro lado, o projeto inicial da SUDE-NE, apesar de sua flamante retórica, provavelmente esgotar-se-ia num esforço de coordenação - de duvidosa eficácia, segundo a experiência dessa categoria de planejamento - se não lhe tivesse atribuído a tare­fa de ser a "correia transportadora" da hegemonia burguesa do Centro-Sul para o Nordeste, pela via dos incentivos fiscais do sistema 34/18. Nenhum desses resultados estava previsto; uma vez mais, alerte-se

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aqui para que não se confunda a leitura do trabalho, que necessaria­mente tenta ordenar o andamento do processo do conflito social, com uma tentativa funcionalista de arranjos factuais que componham um determinado esquema. A opção metodológica desta investigação não se reduz à montagem de um jogo de quebra-cabeças, em que há um de­senho que, antecipando-se predetermina o lugar de cada uma das pe­ças.

2. Conceito de região econômica e política

Não se desconhece as dificuldades para precisar o conceito de re­gião; a região pode ser pensada praticamente sob qualquer ângulo das diferenciações econômicas, sociais, políticas, culturais, antropológi­cas, geográficas, históricas. A mais enraizada das tradições conceituais de região é, sem nenhuma dúvida, a geográfica no sentido amplo, que surge de uma síntese inclusive da formação sócio-econômica-histórica baseada num certo espaço característico.

Esta investigação não recusa, inicialmente, quaisquer das pers-pectivas assinaladas, mas conforme o esboço teórico e metodológico apontou, privilegia-se aqui um conceito de região que se fundamente na especificidade da reprodução do capital, nas formas que o processo de acumulação assume, na estrutura de classes peculiar a essas formas e, portanto, também nas formas da luta de classes e do conflito social em escala mais geral( 8). Desse ponto de vista, podem e existem "re­giões" em determinado espaço nacional, tanto mais determinadas quanto sejam difererfeiados os processos assinalados, e, no limite, con­forme já se sugeriu anteriormente, num sistema econômico de base ca­pitalista, existe uma tendência para a completa homogeneização da re­produção do capital e de suas formas, sob a égide do processo de con­centração e centralização do capital, que acabaria por fazer desapare-cer as "regiões", no sentido proposto por esta investigação. Tal t en­dência quase nunca chega a materializar-se de forma completa e aca-bada, pelo próprio fato de que o processo de reprodução do capital é por definição desigual e combinado, mas em alguns espaços eco­nômicos do mundo capitalista, de que talvez a economia norte-a­mericana seja o exemplo mais completo, é inegável o grau de homoge-neização propiciado pela concentração e centralização do capital, de forma a quase borrar por inteiro as diferenças entre os vários segmen­tos do território nacional norte-americano. É óbvio que essa exacerba­ção da homogeneização ocorreu no caso norte-americano precisamen­te por ser o país líder da economia capitalista mundial: a face interna do imperialismo é essa incoercível tendência à homogeneização do es-paço econômico, enquanto sua face externa na maioria das vezes não apenas aproveita das diferenças regionais reais, como as cria para seu próprio proveito.

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Tratando-se de espaços econômicos que nasceram ou foram in-sertados na divisão internacional do trabalho do capitalismo mercantil como reservas e produtores de acumulação primitiva e que, posterior­mente, continuaram subjugados à divisão internacional do trabalho do capitalismo imperialista, a existência de "regiões", no sentido aqui considerado, é de uma evidência histórica irrefutável. Tais regiões as­sim se constituíram ligadas ao comércio internacional de mercadorias, sendo essa sua lei de reprodução ao nível mais geral, mas, ao mesmo tempo et pour cause, mantendo ou criando formas de reprodução do valor bastante diferenciadas; o caso mais extremado é o das "regiões" - "enclaves", cujo grau de articulação entre si era ou foi débil, que per­mitiu às potências imperialistas a criação da multidão de pequenos países hoje independentes. Assim, pois, parece ser que a proposição de " reg ião " que aqui se faz lhes é especialmente adequada, por dar conta do modo próprio específico de sua reprodução no concerto da divisão internacional do trabalho.

Essa dupla face do imperialismo, e principalmente de suas rela­ções com as "regiões", não tem o significado que a teorização sobre o Terceiro Mundo confere às relações centro-periferia. É certo que na etapa do capitalismo mercantil a criação das colônias deu lugar ao posterior surgimento das nações; mas a diferença significativa entre as formas de expansão internacional do capital no período colonial e no período imperialista é, precisamente, o fato de que no período impe­rialista, sob as determinações da própria reprodução do capital, essas classes dominantes locais que emergiram em contradição com o capi­tal internacional têm interesses coincidentes, agora, com a forma de reprodução do capital internacional; mais: essas classes sociais domi­nantes locais são absolutamente necessárias para a "nacionalização" do capital, sem o que o capital internacional não existiria senão como abstração. Assim, a teorização terceiro-mundista mais corrente não dá conta dessa dimensão da "heterogeneidade" externa do imperialismo; a oposição entre nações mais desenvolvidas e menos desenvolvidas, no contexto do sistema capitalista em escala internacional, que é o núcleo da teorização terceiro-mundista, deveria, para ser correta, demonstrar qire persistem conflitos de interesses entre o imperialismo e as classes sociais dominantes locais, conflitos cuja raiz deve ser buscada nas for­mas de reprodução do capital. No atual estado da divisão internacio­nal do trabalho do capitalismo, a possibilidade desses conflitos resul-tarem antagônicos é cada vez mais reduzida. A recuperação possível da noção de conflito entre nações no sistema capitalista somente pode ser viável quando se incorporam os interesses populares como se opon­do à coalizão imperialismo-classes dominantes locais, e, portanto, pas-sa fa reconhecer que a Nação na periferia do mundo capitalista so­mente pode ser construída pelas classes populares, e seu vir-a-ser é o socialismo.

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Uma "reg ião" seria, em suma, o espaço onde se imbricam dialeti-camente uma forma especial de reprodução do capital, e por conse­qüência uma forma especial da luta de classes, onde o econômico e o político se fusionam e assumem uma forma especial de aparecer no produto social e nos pressupostos da reposição. Tal especificidade é passível de determinação rigorosa, no contexto metodológico e teórico esposado por esta investigação. É possível reconhecer a existência de espaços econômico-político-sociais onde, por exemplo, o capital co­mercial comanda as leis de reprodução sem no entanto penetrar pro­priamente na produção; tal região se diferenciaria de uma outra onde o capital penetrou no próprio sistema produtivo, onde seria o capital industrial - em sentido lato, pois a agricultura capitalista também é uma indústria - o responsável pela reprodução do sistema; assim, su­cessivamente, as diversas formas de reprodução do capital conforma-riam "regiões" distintas. Claro está que não se pensa em uma tipologia de "reg iões" caracterizada por sua vez por uma tipologia do capital; além de ser estranha ao contexto metodológico deste trabalho uma conceituação tipológica, é evidente que as diversas formas de reprodu­ção do capital nunca se apresentam nem em "estado puro" nem isola­das, mas sem nenhuma dúvida existem estágios em que há uma sobre-determinação principal da forma de reprodução, que subordina as de­mais.

As relações de produção guardam estreita aderência às formas de reprodução do capital, e determinam por sua vez o caráter da luta de classes e, em sentido lato, do conflito social, mas é preciso que se esteja advertido para não se transpor mecanicamente para o nível da política a aderência assinalada; precisamente no descompasso entre nível das forças produtivas ou formas de reprodução do capital e relações de produção é que reside uma das contradições básicas do sistema capita­lista de produção, e exatamente essa perspectiva é que abre as possibi­lidades mais ricas para o estudo concreto dessa combinação desigual. A especificidade de cada " reg ião " completa-se, pois, num quadro de referências que inclua outras "regiões", com níveis distintos de repro­dução do capital e relações de produção; pelo menos quando se está em presença de uma "economia nacional", que globalmente se repro­duz sob os esquemas da reprodução ampliada do capital, é que o enfo­que aqui adotado, de diferenças na divisão regional do trabalho, pode encontrar terreno propício para o entendimento das relações inter-regionais e abandonar a abordagem dos "desequilíbrios regionais" por uma formulação que centre suas atenções nas contradições postas e repostas exatamente pelas formas diferenciadas de reprodução do capital e das relações de produção. O planejamento emerge aqui como uma " f o rma" da intervenção do Estado sobre as contradições entre a reprodução do capital em escala nacional e regional, e que tomam a aparência de conflitos inter-regionais; o planejamento não é, portanto, a presença de um Estado mediador mas, ao contrário, a presença de

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um Estado capturado ou não pelas formas mais adiantadas da repro­dução do capital para forçar a passagem no rumo de uma homogenei­zação, ou conforme é comumente descrito pela literatura sobre plane­jamento regional, no rumo da "integração nacional". Nem ainda o planejamento é uma forma "neutra" dessa presença; ao contrário, ele é no mais das vezes uma forma transformada da própria luta de clas­ses, tanto ao nível das contradições na reprodução global do capital quanto ao nível das contradições entre as formas diferenciadas, " re­gionais", daquela reprodução e as mesmas formas das relações de pro­dução.

Voltando a um ponto assinalado de passagem na nota de rodapé nº 8, convém insistir que o conceito de " reg ião" aqui esboçado não nos remete de volta à questão do modo de produção, isto é, a " r eg i ão " não seria um outro modo de produção, nem uma formação social sin­gular. O que preside o processo de constituição das " reg iões" é o modo de produção capitalista, e dentro dele, as "regiões" são apenas espaços sócio-econômicos onde uma das formas do capital se sobre­põe às demais, homogeneizando a " reg ião " exatamente pela sua pre­dominância e pela conseqüente constituição de classes sociais cuja hie­rarquia e poder são determinados pelo lugar e forma em que são perso-nas do capital e de sua contradição básica. E enfatiza-se, uma vez mais, que uma "reg ião" assim tende a desaparecer - embora alguns exemplos históricos atuais dêem conta de sua longa resistência aos processos de câmbio mais abrangentes - na mesma medida em que as várias formas do capital se fusionam, primeiro pela predominância do capital industrial, depois pela fusão entre capital bancário e industrial, dando lugar ao capital financeiro e posteriormente, na etapa monopo­

l i s t a do capital, pela especial fusão entre Estado-capital. Não reconhe­cer, entretanto, que existem marcadas diferenças entre as várias for­mas de produção do valor dentro do capitalismo é não reconhecer, em primeiro lugar, e a nível mais abstrato, a lei do desenvolvimento desi­gual e combinado, (9) e mais concretamente, o processo de constituição do próprio capital enquanto relação social.

No caso sob exame, que será tratado mais acuradamente no capí­tulo seguinte, a forma predominante de capital que elevou o Nordeste algodoeiro-pecuário à hegemonia regional é uma forma que, em últi­ma instância, encontrava-se fora da região Nordeste: encontrava-se na Inglaterra e em outros países centrais. A forma de produção de valor que esse capitalismo mercantil fecundou no Nordeste algodoeiro-pecuário não era, porém, uma forma capitalista, embora sua lei mais geral de reprodução estivesse voltada para o mercado, e comandada pelas exigências que o capitalismo mercantil fazia para constituir esse mercado mundial de matérias-primas. É absolutamente necessário, re­conhecer a última instância que dá e marca o caráter do processo mais global e mais abrangente, mas não reconhecer que a forma pela qual aquele capitalismo mercantil se "nacionalizava" ou se "regionalizava"

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num determinado espaço extra-metropolitano não era capitalista, é não passar pelas determinações concretas que fazem do capital não apenas uma relação social, mas um movimento de reprodução.

Tampouco o conceito que se tenta explicitar pode recair na dis­cussão sobre a existência ou não de "feudalismo" no Brasil; pois o feu-dalismo não pode ser caracterizado por sua subordinação às leis de mo­vimento do capital. Claro está que, nos casos onde o capitalismo surgiu das entranhas do feudalismo, várias formas deste último permanece­ram e conviveram com a nova forma de produção social, até que esta o dissolvesse completamente. No caso brasileiro, porém, um dos trave-jamentos básicos da estrutura de relações do feudalismo, a posse e propriedade dos meios de produção pelos produtores diretos, não existiu desde o princípio: ao contrário, a escravidão era a forma pecu­liar pela qual se separou produtores e meios de produção como pressu­posto da própria fundação da colônia nos quadros do capitalismo mer­cantil. Nem pode reviver, por via do conceito de " reg ião" , a questão do dualismo da economia nacional, colocada agora de uma forma em que as várias "regiões" representassem os pólos opostos da dualidade. A contradição teórica do dualismo não reside na simples justaposição de duas ou mais economias que se regem por princípios e pressupostos diferentes; sua inconsistência teórica reside mais em não saber distin­guir precisamente as várias formas que a produção do valor toma, su­bordinadas a uma dinâmica mais geral. Uma vez mais, a experiência histórica mostra que essas formas podem se antagonizar na hegemonia pelo controle completo do modo de produção, e em alguns casos, ocorrer um processo de frustração em direção às formas mais caracte-risticamente capitalistas do modo de produção. Jamais existirão, po­rém, casos de coexistência como se fossem duas linhas paralelas, cujo encontro se dá apenas no infinito. Quando tratarmos mais concreta-mente do caso do Nordeste, tornar-se-á mais explícito o quanto o con­ceito de " r eg ião " aqui esboçado afasta-se do terreno conceitual do dual-estruturalismo de inspiração cepalina.

Talvez a elaboração mais cuidadosa do conceito de " r eg ião " que se queria introduzir seja a da dimensão política. Isto é, de como o con­trole de certas classes dominantes "fecha" a região. Essa dimensão política não é uma instância separada da econômica; pelo contrário," é ou será da imbricação das duas instâncias que poderá surgir mais com­pleto o conceito que aqui se propõe, pelo menos na tradição teórica do marxismo. O "fechamento" de uma região pelas suas classes dominan­tes requer, exige e somente se dá, portanto, enquanto estas classes do­minantes conseguem reproduzir a relação social de dominação, ou, mais claramente as relações de produção. E nessa reprodução, obsta-culizam e bloqueiam a penetração de formas diferenciadas de geração, do valor e de novas relações de produção. A "abertura" da região e a conseqüente " integração" nacional, no longo caminho até a dissolu­ção completa das regiões, ocorre quando a relação social não pode

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mais ser reproduzida, e por essa impossibilidade, percola a perda de hegemonia das classes dominantes locais e sua substituição por outras, de caráter nacional e internacional.

3. Conceito da região "Nordeste" no Brasil

Vale ressaltar, de início, que o conceito econômico e político de " reg ião " exposto anteriormente é de natureza dinâmica por definição, fundamentado que está no movimento de reprodução do capital e das relações de produção. Essa dinamicidade choca-se, até certo ponto, com o conceito geográfico de região, que se baseia em características físicas; mas, sem dúvida, não apenas o conceito de região de geografia humana ultrapassa os limites estreitos da geografia física, como tam­bém os recentes avanços no sentido de conferir um caráter dinâmico à ciência geográfica em geral, contribuem para aproximar a abordagem da moderna geografia da esposada por este trabalho. Quando se passa ao nível do concreto, no entanto, o choque mais profundo ainda não reside no que foi exposto anteriormente, mas centra-se no conflito en­tre a abordagem que aqui se propõe e os limites territoriais-político-administrativos das regiões. No caso sob exame, do Nordeste do Bra­sil, dificilmente se conseguirá evitar o ter que enquadrar a " reg ião" econômica e política nos limites das divisões territoriais-político-administrativas dos Estados que compõem o Nordeste brasileiro. En­tretanto, vale a pena também argumentar a favor desse enquadramen­to, não apenas pelo caráter inacabado e tentativo da proposta de "re­g ião " que aqui se contém, mas sobretudo porque os limites territo-riais-administrativos dos Estados que compõem o Nordeste brasileiro estão carregados da própria história da formação econômico-política nacional e de suas diferenciações; tão-somente em períodos mais re­centes é que o processo de "integração nacional" impele no sentido de um progressivo distanciamento entre as determinações formais da re­produção do capital e aqueles limites político-administrativos.

A própria consciência ou reconhecimento da " r eg i ão " Nordeste tem sofrido mutações importantes no curso da história econômica e social nacional. É possível constatar, sem recuar muito no tempo, que o Nordeste como "reg ião" , tanto no sentido aqui proposto quanto no sentido mais corrente na literatura, na opinião pública e nas políticas e programas governamentais, somente é reconhecível a partir de meados do Século X I X , e sobretudo neste século. Há, pois, na história regional e nacional, vários "nordestes". Reconhecia-se, no período da Colônia, "reg iões" dentro do que hoje é o Nordeste, com amplitudes muito mais restritas: sobretudo no que corresponde hoje aos Estados de Per­nambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, a " r eg i ão " era re­conhecível como o locus da produção açucareira, enquanto os espaços dos Estados que hoje corrrespondem ao Ceará e Piauí eram relativa-

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mente indiferenciados, desenvolvendo atividades econômicas de pouca expressão na economia colonial e quase nunca assimilados ao que se poderia chamar de "Nordes te " ( 1 0 ) . O Maranhão era um caso à parte, pois ligou-se ao capitalismo mercantil através de formas diversas da­quelas que regulavam a produção da riqueza dos espaços mais ao les­te. Os Estados da Bahia e Sergipe, ou melhor falando, os espaços que hoje correspondem a esses Estados, não eram considerados como "Nordeste" ; embora ali, sobretudo na Bahia, predominasse também a atividade de produção do açúcar determinada, como nos Estados mais ao norte, pelas suas relações com o capitalismo mercantil europeu. A classe social proprietária era, de certa forma, muito autônoma em re­lação aos seus parentes sociais dos Estados mais ao norte; em outras palavras, nos espaços de produção açucareira de Pernambuco, Paraí­ba, Alagoas e Rio Grande do Norte, a classe proprietária fundada na produção do açúcar era praticamente a mesma, sobretudo porque sua reprodução enquanto classe social dependia de sua hegemonia sobre a totalidade dos espaços que hoje correspondem àqueles Estados, o que se comprova historicamente pela própria crônica das grandes famílias senhoriais. Essa cissiparidade das famílias do "baronato " do açúcar era a sua forma de assegurar-se o controle sobre a terra. Os adágios populares diziam que "quem não era Cavalcanti era cavalgado" em Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte , adágio que poderia ser entendido aos Maranhão, Albuquerque e uns poucos nomes familiares mais. O próprio ditado popular era uma forma pela qual as classes dominadas se reconheciam nas dominantes. N ã o se encontra essa ligação com os grandes ramos familiares da Bahia - nenhum habi­tante das classes dominadas da Bahia reconheceria um Cavalcanti como um dominador -, o que significa dizer que a reprodução do capi­tal, ou mais precisamente a produção do valor que era apropriada pelo capitalismo mercantil, no espaço do que hoje é a Bahia, fechava-se sobre si mesma, isto é, completava sua circularidade na relação Bahia-Metrópoles coloniais; em outras palavras, nesses termos, a Bahia era outra "reg ião" .

É possível, pelo exposto, reconhecer " reg ião " nos termos teóricos e metodológicos aqui propostos? Em outras palavras, onde residiam as diferenças na circularidade do processo produtivo, na estrutura de classes e no conflito social? Algumas constantes podem ser anotadas, o que viria em desfavor da perspectiva deste trabalho: a relação colonial, que fundou os "arquipélagos" da história econômica nacional( 1 1 ) na base escravocrata da produção, são constantes não apenas dentro do Nordeste mas válidas para o resto da Colônia. Algumas diferenças marcantes são suficientes, entretanto, para sustentar a proposição: em primeiro lugar, se bem que a relação espoliadora Metrópole-Colônia pudesse ser geral, não o eram os níveis de desenvolvimento das forças produtivas em cada uma das "regiões" que compunham o que hoje é o Nordeste, nem o das outras "regiões" em formação no resto da Colô-

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nia( l 2 ) . Em segundo lugar, tanto a relação Metrópole-Colônia quanto o nível de desenvolvimento das forças produtivas começaram a engen­drar novas formas de capital no interior de cada uma das "regiões" : é fato notório da história nacional a hegemonia comercial do Recife sobre os espaços em torno, estendendo-se para os territórios da Paraí­ba, Alagoas e Rio Grande do Norte e, mais remotamente, até o Ceará e Piauí. Essa hegemonia significava uma forma de capitalismo mercan­til no interior da própria " reg ião" . Não é sem razão que as revoluções "nordestinas" foram apenas aquelas que tiveram por sede exatamente os espaços da hegemonia açucareira, e onde aparecem pela primeira vez contradições entre as diversas formas de produção e apropriação do valor: a revolução dos "mascates", que opunha exatamente os co­merciantes contra os "barões" do açúcar, pode ser considerada uma revolução pré-burguesa; a Confederação do Equador, que se estendia desde Pernambuco, passando pela Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte e atingindo até o Ceará, opunha os interesses internos da produ­ção do valor às formas de apropriação desse valor, intermediados ago­ra pelos interesses da Inglaterra, como potência capitalista hegemôni­ca. Esse movimento separatista encontrava suas bases sociais reais na diferença de interesses e na diferença entre as várias formas do capital, na esfera da produção e da circulação. Não foi um recurso meramente ideológico, nem um mero transplante de idéias francesas e norte-americanas, a proclamação de uma República no espaço disputado pela produção do valor da economia açucareira e pelas formas emer­gentes do capital comercial interno, umas em contradição, outras em aliança com a reprodução do capital em escala mundial, comandado pela potência imperialista emergente, mas já contestado pelo surgi­mento da concorrência inter-imperialista.

As primeiras décadas deste século, e quase todo o século X IX , vão configurar outro Nordeste, ou outros "Nordestes" ( 1 3 ) . Essas no­vas configurações estão marcadas sobretudo pela emergência, consoli­dação e hegemonia de outras formas de produção e conflito de interes­ses em outros espaços; em suma, pela constituição de outra " reg ião " no contexto da nação que se independentizava. Essa outra " reg ião " é a do café, constituída preliminarmente pela mesma determinação ex-jerna, isto é, pelas suas relações com as potências imperialistas, e fun­dada também preliminarmente pelo mesmo modo escravista de produ­ção, mas que se diferenciava na mesma medida em que a circularidade do processo de produção e apropriação do valor se esgotava na rela­ção externa-interna e nos requisitos que essa relação recolocava como pressupostos do processo de produção; isto é, na subordinação aos in­teresses do capital financeiro inglês sobretudo, mas francês também, e no caráter distinto da competição inter-impérios: a disputa pelos mer­cados que começava a intensificar-se sobretudo entre o capital inglês e norte-americano. Internamente, a constituição da " r eg i ão " do café desdobrava-se na mesma medida em que avançava desde o Vale do

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Paraíba até o Oeste paulista, homogeneizando-se internamente e dife-renciando-se da outra " reg ião " - o Nordeste açucareiro - na mesma medida em que esta era excluída dos novos circuitos de produção e apropriação do valor gerado pela mercadoria café. Essa hegemonia constantemente reiterava os pressupostos da produção, que por sua vez apareciam tanto no produto quanto na forma da repartição do ex­cedente: o financiamento inglês, como pressuposto, e os juros do capi­tal inglês como parte da repartição do excedente. O Nordeste "açuca­reiro" era deslocado pela competição inter-imperialista, que centrava sua disputa agora na apropriação e controle da produção do açúcar no Caribe. Em outras palavras, a forma de produção do valor da econo­mia açucareira daquele "Nordes te " não encontrava formas de realiza­ção pela via do comércio internacional( 1 4).

Enquanto o Nordeste "açucareiro" semiburguês tinha sua ex­pansão cortada pela simbiose dialética da constituição de outra "re­gião" com o capital internacional, um outro Nordeste emergia gradual­mente, submetido e reiterado pelas mesmas leis de determinação de sua relação com o capital internacional: o Nordeste "algodoeiro-pecuário". Sem penetrar na esfera da produção, o capital internacio­nal apropriou-se da esfera da circulação, da comercialização, e por esse fato, a política econômica do Segundo Império e da República Velha, que centrava suas atenções na manutenção de uma taxa de câmbio que era simultaneamente condição da reprodução e forma da apropriação internacional de parte do produto social, compatibilizava os interesses da reprodução do capital na " reg ião" do café e na "re­g i ão " - no novo Nordeste - do algodão-pecuária. Não é sem razão que tanto o controle político da Nação começou a escapar das mãos da burguesia açucareira do " v e l ho " Nordeste, quanto o controle polí­tico interno do " v e lho " e do " n o v o " Nordeste começou a passar às mãos da classe latifundiária que comandava o processo produtivo al-godoeiro-pecuário, reiterado pela sua subordinação aos interesses do capital comercial e financeiro inglês e norte-americano. A imagem do Nordeste, que as crônicas dos viajantes de fins do Século X V I I I e princípios do Século X I X descreveram em termos da opulência dos "barões " do açúcar, e que depois iria inspirar a nostálgica pseudo-sociologia de Gilberto Freyre, começou a ser substituída pela imagem do Nordeste dos latifundiários do sertão, dos "coronéis" ; imagem rús­tica, pobre, contrastando com as dos salões e saraus do Nordeste "a-çucareiro". Nesse rastro é que surge o Nordeste das secas. A funda­mentação do Estado unitário que prevaleceu por todo o Segundo Im­pério e continuou, República Velha adentro, sob a forma da coligação "café-com-leite" residia sobretudo na homogeneidade dos processos de reprodução do capital, na sua subordinação aos interesses do capi­tal comercial e financeiro inglês e norte-americano: "coronéis" do al­godão, pecuária e "barões" do café e Estado oligárquico são os agen-tes.e a forma da estrutura do poder( 1 5 ) .

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Esse "Nordeste " algodoeiro-pecuário, oligárquico, cujas leis de reprodução/subordinação serão tratadas em outra parte desta investi­gação, submeteu o " ve lho " Nordeste açucareiro, em trânsito para for­mas burguesas de produção e apropriação do valor, e permaneceu in­tocado até praticamente a década dos cinqüenta deste século. Os im­pulsos de industrialização, que tomaram forma na conversão dos "en­genhos" de açúcar em usinas, fenômeno que arranca do último quartel do século X I X e se esgota nas primeiras décadas deste, e de outro lado na implantação da indústria têxtil, foram abortados pelas mesmas ra­zões e causas que contribuíram para refrear a própria industrialização da " reg ião " do café: pela reiteração/subordinação aos interesses do capital comercial e financeiro inglês e norte-americano. Essa submis­são do "Nordeste " açucareiro ao "Nordeste " algodoeiro-pecuário chegou inclusive a fazer retroagir o próprio movimento da reprodução do capital e das relações de produção no "Nordeste " açucareiro, fa­zendo-o adotar, como condição de sobrevivência, ainda que marginal, leis de reprodução que eram próprias do "Nordeste " algodoeiro-pecuário. Premida pelas tenazes, de um lado da reiteração dos pressu­postos da produção agro-exportadora da " reg ião" do café, que se con­substanciava na política econômica de valorização/sustentação dos preços do café, e de outro pela emergência do "Nordeste " algodoeiro-pecuário, a economia açucareira recriou internamente mecanismos de uma acumulação primitiva, que tomaram a forma do " cambão " e de outros processos de relação de produção pré-capitalistas. Esse impasse gerou de um lado a descapitalização da própria economia açucareira, o abortamento da completa constituição de uma força-de-trabalho assalariada, o abortamento da dissolução do semicampesinato que se havia formado em suas franjas - o caso das zonas do Agreste dos Esta­dos mais orientais - e por fim a própria reconversão da estrutura fun­diária em latifúndios.

O andamento das leis de reprodução do capital e das relações de produção tomava rumos diversos na " reg ião " do café. Rompido o me­canismo de reposição da economia agroexportadora, em parte pela própria inviabilidade de sua sustentação devido à porção do excedente do produto social, que era apropriado pelo capital financeiro inglês e norte-americano sob a forma de juros da dívida externa, o que impos­sibilitava a acumulação; e em parte devido à quebra da economia in­ternacional capitalista na crise dos anos trinta, emerge a industrializa­ção. Não se descreverá aqui esse processo( 1 6); importa observar a mu­dança operada nas formas de reprodução do capital, que acarretou da mesma maneira mudanças nas leis de repartição do produto social, au­mentando a fração do excedente que se acumulava internamente, e as mudanças nas relações de produção, com a explosiva emergência do proletariado urbano. Surge a diferenciação das formas do capital: tan­to se expande e consolida o capital industrial, quanto emerge o capital financeiro, e a intervenção do Estado na economia assume outro cará-

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ter, prejudicando a forma de reprodução da economia agroexportado-ra. A estrutura do poder sofre importantes mutações; depois de um breve período de transição, quando as necessidades da acumulação tornaram imperiosa a convivência do capital industrial com a oligar­quia do café, tem início um período em que a hegemonia do capital in­dustrial e seu controle sobre o aparelho produtivo, as relações de pro­dução e o próprio Estado são claramente reconhecíveis. A " r eg ião " do café passa a ser a " reg ião " da indústria: São Paulo é o seu centro, o Rio de Janeiro seu subcentro, Minas Gerais e o Paraná seus limites e a expansão da fronteira dessa " reg ião " começa a capturar os espaços vazios do Centro-Oeste.

A conversão da " reg ião " do café em " reg ião " da indústria come­ça a redefinir a própria divisão regional do trabalho em todo o conjun­to nacional( 1 7). Seu papel nessa divisão regional do trabalho no que respeita à " reg ião" Nordeste passa a ser de um lado, sistematicamente, a reserva do exército industrial de reserva: as migrações Nordeste-São Paulo chegam a constituir um formidável contingente que vai suprir os postos de trabalho criados pela industrialização, e contribuir para manter baixos os níveis de salário real de toda a massa trabalhado-ra( 1 8 ) ; por outro lado, os diferenciais da taxa de lucros começa a drenar o capital que ainda se formava no Nordeste; e ainda sob outro aspec­to, a mudança da política econômica que se centrava agora na viabili­zação da reprodução do capital industrial, favorecendo sistematica­mente uma taxa de câmbio subestimada, ao mesmo tempo que elevava nacionalmente as taxas alfandegárias para proteção da indústria de transformação, deu lugar a um mecanismo de triangulação das trocas de mercadorias Nordeste-Exterior-Centro-Sul-Nordeste que deprimia a taxa de realização do valor das mercadorias produzidas no Nordes­te, inviabilizando ainda mais a reprodução do capital na região nor-destina( 1 9).

As contradições da reprodução do capital e das relações de pro­dução em cada uma ou, pelo menos, nas duas principais "reg iões" do país, sinal de uma redefinição da divisão regional do trabalho no con­junto do território nacional, começam a aparecer como conflito entre as duas "regiões", uma em crescimento, outra em estagnação. É nesse contexto, e tendo por objetivo explícito a atenuação ou pelo menos a contenção da intensificação das disparidades regionais, a correção dos "desequilíbrios regionais", que nasce o planejamento regional para o Nordeste. A S U D E N E , sua forma institucional, é uma espécie de Re­volução de 30 defasada de pelo menos duas décadas; seu surgimento, segundo um diagnóstico muitas vezes equivocado - matéria para dis­cussão em outra parte deste trabalho - incorpora elementos do falso conflito inter-regional; para ganhar força e dar maior dimensão ao conflito, a própria definição da " reg ião" Nordeste, em seu sentido político-administrativo, é ampliada: o Nordeste da S U D E N E estende-se agora do Maranhão à Bahia, incorporando inclusive uma pequena

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faixa do território mineiro, cujas características climáticas asseme­lham-se às do sertão nordestino. Como quase sempre acontece, o Nor­deste da S U D E N E assume os contornos da ideologia da classe domi­nante da " reg ião" da indústria: desde que os movimentos migratórios do Nordeste para São Paulo ganharam força e intensidade, os migran­tes de todos os Estados do Nordeste e mesmo os dos Estados do Nor­te são apelidados em conjunto de "bahianos".

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Notas

(1) É ainda reduzida a bibliografia a respeito. Entre os textos mais importantes, convém anotar: PAGE, Joseph A. - The Revolution that never was, Northeast Brazil 1955-1964. New York, Grasman Publishers, 1972 e ROETT, Riordan - The Politics of Foreign Aid in lhe Brazilian Northeast. Nashiville, Vanderbilt University Press, 1972, que realizam exaustiva análise da política norte-americana em relação ao Nordeste e à SUDENE; COHN, Amélia - Crise Regional e Planejamento; Edit. Perspectiva, S. Paulo, 1976, 1972, que se dedicou ao exame das condições políticas de criação da SUDENE; KOCK-WESER, Caio K.-La SUDENE doce años de planificación para el desarrollo en el Nordeste brasileiro, Santiago de Chile, Instituto Latinoamericano de Investigaciones Sociales - ILDIS, 1973, que, fazendo um apanhado geral da situação, pôs ênfase na ava­liação do desempenho da SUDENE; FURTADO, Celso - Social Reconstruction in So-cieties Dominated by Traditional Groups, documento apresentado à Social Planning Conference, Porto Rico, 1966, que enfatizou o aspecto do conflito entre o planejamento da SUDENE e as forças sociais conservadoras do Nordeste; CASTRO, Antônio Barros de - "O Desenvolvimento recente do Nordeste", in 7 Ensaios sobre a Economia Brasilei­ra. Rio de Janeiro, Forense Editora, 1972, que procedeu a uma análise critica das propo­sições da SUDENE à luz dos resultados do desempenho mais recente das economias nordestina e brasileira; OLIVEIRA, Francisco de e REICHSTUL, Henri-Philippe -Mudanças na divisão inter-regional do trabalho no Brasil, in Estudos CEBRAP 4. São Paulo, Editora Brasileira de Ciências, 1973, que procederam a uma análise dos efeitos da aplicação do mecanismo do 34/18 sobre a estrutura industrial e as tendências do mo­vimento de centralização do capital; IANNI, Octávio - "As origens políticas da SUDE­NE", in Revista Mexicana de Sociologia. México, (4) Octobre-Diciembre, 1971, que es­tudou a emergência da SUDENE no contexto da expansão do capitalismo no Brasil; MOREIRA, Raimundo - El proceso industrial en el Nordeste brasileno y el proceso de accumulacion de capital a escala nacional en la década del 60. Buenos Aires, Instituto Torcuato Di Telia, Centro de Estúdios Urbanos y Regionales, 1975, que estudou a re­cente industrialização do Nordeste sob os auspícios do 34/18 e sua relação com a acu­mulação de capital na economia brasileira. Também importantes, ainda que mais anti­gos, sem a perspectiva dos desdobramentos posteriores, são os estudos de HIRSCH-MAN Albert O., Journeys Toward Progress. New York, The Twentieth Century Fund, 1963 e Desenvolvimento Industrial no Nordeste Brasileiro e o mecanismo de crédito fis­cal do artigo 34/18. in Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro, 21 (4) Dez. 1967, e ROBOCK, Stephan H. - Brazil's developing Northeast, a study of Regional Planning and foreign aid. Washington, Brookings Institution, 1963.

(2) MARX, Karl - El Capital, capítulos I, II, III e IV; Traducción de Wenceslao Roces. México, Fondo de Cultura Econômico, 1973.

(3) Sobre a discussão do método na Economia Política em Marx, veja-se além de El Capital, e da famosa Introdução, os Elementos Fundamentales para la Critica de la Eco­nomia Política (borrador) 1957-1958; traducción de Pedro Searor. 4 ed. Siglo XXI, Ar­gentina Editores - de LOWE, Adolf - A ciência da economia política; Trad. de Fausto Guimarães, Zahar Editores. Rio de Janeiro, 1969, SCHUMPETER, Joseph A.-Histi-ria da Análise econômica; Trad. de Alfredo Moutinho dos Reis, José Luís Silveira Mi­randa e Renato Rocha. Rio de Janeiro, Editora Fundo de Cultura, 1964.

(4) Esse processo é descrito em OLIVEIRA, Francisco de e REICHSTUL, Henri-" Philippe, op. cit., em HIRSCHMAN, Albert O., "Desenvolvimento Industrial no Nor­deste...", op. cit. e MOREIRA, Raimundo, op. cit.

(5) Ver Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste, GTDN, Rfo de Janeiro, Conselho de Desenvolvimento: Depto. de Imprensa Nacional, 1959, o docu-. mento básico que fundamentou a criação da própria SUDENE. Inclusive abordagens criticas do diagnóstico da SUDENE, como o de CASTRO, Antônio Barros, op. cit., continuam prisioneiras do enfoque dos "desequilíbrios regionais".

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(6) Ver OLIVEIRA, Francisco de e REICHSTUL, Henri-Philippe, op. cit., e MO­REIRA. Raimundo, op. cit.

(7) As teorizações mais correntes sobre planejamento regional derivam, quase to­das, de matrizes teóricas de inegável extração neo-clássica e marginalista; são aplicações espaciais de teorias do equilíbrio geral. Assim são as teorizações sobre localização das atividades econômicas, sobre modelos de gravitação, sobre rendimentos decrescentes, sobre modelos de base territorial, que encontram expressões mais acabadas nas obras de Hoover, Walter Isard, August Lõsch. Perroux e seus seguidores, discrepam um pouco dessa tendência geral, introduzindo com o conceito de polarização, um modelo de espa­ço econômico como um "campo de forças" que acreditam mais próximo da realidade da competição oligopolística; ainda assim a teorização de Perroux é do tipo de "equilíbrio geral". Myrdal dissentiu radicalmente do "equilíbrio geral", através do conceito da "es­piral cumulativa", de que o próprio diagnóstico do GTDN sobre o Nordeste recebeu notável influência. Uma bibliografia seleta incluirá: HOOVER, Edgar M. - The Loca-lion of Economic Activity. McGraw-Hill, 1948: ISARD, Walter - Methods of Regional Analysis. MIT Press, 1961; LOSCH, August - The Economics of Location. Yale Uni-versity Press, 1954; PERROUX, François - L'Economie du XXeme Siécle - 2. ed. Paris, Presses Universitaires de France, 1964; MYRDAL, Gunnar - Teoria Econômica e Re­giões Subdesenvolvidas; tradução de Ewaldo Correia Lima. Rio de Janeiro, ISEB, 1960. RICHARDSON, Harry W. - Elementos de Economia Regional; tradução de Christiano Monteiro Oilicica. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1973, fornece uma exposição sintéti­ca das principais teorizações neo-clássicas, marginalistas e keynesianas sobre economia e planejamento regional.

(8) - A bibliografia sobre o conceito de região é basicamente a mesma citada na nota anterior, no que respeita á economia. A teorização marxista sobre o tema não é muito rica, tanto no terreno da política quanto no da economia, e tem se centrado sobretudo no caráter diferenciado da divisão do trabalho entre cidade e campo. Pare­ce-me que o autor marxista que mais pensou a respeito do tema regional foi precisamen­te Gramsci, particularmente em A Questão Meridional e Il Risorgimento. Para Gramsci apenas o entendimento das relações entre os industriais do Norte e os proprietários de terras do Sul seria capaz de revelar a "estrutura do bloco de poder da burguesia" (Mac-ciocchi): "O Mezzogiorno pode ser definido como uma grande desagregação social: os camponeses, que representam a grande maioria de sua população, não têm entre si ne­nhuma coesão... A sociedade meridional é um grande bloco agrário constituído por três camadas sociais: pequena e média burguesia, os grandes latifundiários e os grandes inte­lectuais. Os camponeses meridionais estão em estado de revolta latente, mas enquanto massa são incapazes de exprimir suas aspirações e suas necessidades de forma corrente. É a base camponesa que impulsiona a atividade política e ideológica da camada média dos intelectuais. Os latifundiários, no domínio político, e os grandes intelectuais, no plano ideológico, centralizam e dominam enfim todo esse conjunto. E, como é fácil compreen­der, é no plano ideológico que a centralização se mostra mais eficaz e mais precisa." In A Questão Meridional, citado por Maria-Antonieta Macciocchi, A Favor de Gramsci. tradução de Angelina Peralva, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1976. Fica claro que a noção da região do Mezzogiorno, para Gramsci, não sugere que se está em presença de outro modo de produção que não o capitalista, mas a formação de sua economia, suas relações com a economia industrial do Norte italiano e a peculiar composição de classes a que as relações externas-internas dão lugar, conformam uma "região" fechada. E que o conjunto dessas relações Norte-Sul contraditoriamente é parte imprescindível da gêne­se do capitalismo na Itália e de suas debilidades.

(9) - Ver, sobre o caráter desigual e combinado das leis de desenvolvimento do ca­pitalismo, V.I. Lenin, El Desarrollo del Capitalismo en Rusia. in Obras Completas, Tomo III, Editorial Cartago, Buenos Aires, 1957 e León Trotsky, História da Revolução Russa. Editora Saga, Rio de Janeiro,

(10) Está ainda para ser escrita uma boa história econômica e social do Nordeste, chamado aqui de "algodoeiro-pecuário", que corresponde, em suas grandes linhas, à 40

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zona semi-árida ou aos sertões do Nordeste como um todo. Entretanto, Djacir Menezes em seu O Outro Nordeste, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1937, já se ha­via dado conta da profunda disparidade entre as duas "regiões" enquadradas dentro do Grande Nordeste. E atribui corretamente ao caráter extensivo, quase extrativista, da pe­cuária dos sertões do Ceará e do Piauí, penetrando igualmente pelos sertões secos do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Bahia, o caráter frouxo e relati­vamente pouco diferenciado da sociedade desses sertões, onde não houve escravismo, por exemplo. Assinala, também, embora sem explorar o tema, que a produção pecuária desses sertões vai servir para abastecer os grandes centros da produção açucareira do "outro Nordeste", o que sentava as bases para uma subordinação dos sertões ao capi­

talismo mercantil que se esboçava no Nordeste açucareiro, e, em última instância, aos movimentos de reprodução da própria atividade açucareira. É ou será exatamente nesse Nordeste de pecuária extensiva, quase extrativa, que vai se implantar a exploração do algodão de fibra longa, que dará lugar ao futuro Nordeste algodoeiro-pecuário de que aqui falamos.

(11) A noção de arquipélago é introduzida apenas para evocar um tipo de entendi­mento que presidiu às interpretações da formação da economia brasileira. A expansão do capitalismo irá borrar aqueles "arquipélagos" na medida em que a realização do va­lor passar a ser, predominantemente, de caráter interno. Mas não convém jogar fora ex-abrupto parte do que a noção de arquipélago revela: em primeiro lugar a subordinação variada de cada região da Colônia, e em seguida do país independente aos vários centros do capitalismo mercantil e em seguida do capitalismo imperialista. Essa subordinação variada reflexiona-se dialeticamente com as forças produtivas de caráter local, para criar a "região", no conceito aqui adotado. É fato notório, por exemplo, que o Mara­nhão, uma "região", teve o desenvolvimento de suas forças produtivas subordinado em primeiro lugar ao capitalismo mercantil francês, e essa invasão foi respondida pela me­trópole portuguesa com a criação da Companhia do Grão-Pará, uma forma de subme­ter as forças produtivas do Maranhão às necessidades de reprodução do capital da bur­

guesia lisboeta. Essa relação externa-interna é que dá o caráter de "região" que depois o Maranhão assumiria. Da mesma forma, a Holanda vai imprimir no Nordeste oriental, açucareiro, do Rio Grande do Norte a Alagoas, o monopólio da Companhia das Índias Ocidentais, e vai "fechar", por essa forma, a "região" às outras formas e propriedade do capital. A relação externa-interna não é nunca a mesma, embora formalmente assim possa parecer. Enquanto no caso do Maranhão, por exemplo, o monopólio se exerceu apenas na esfera da circulação das mercadorias, inclusive o escravo, no Nordeste orien­tal açucareiro a relação externa-interna do capital holandês com as forças produtivas lo­cais penetrou até a produção, assistindo-se a um extraordinário período de aumento da produtividade da indústria açucareira ali localizada. No caso do Ceará, por exemplo, a Guerra de Secessão americana abriu as portas para o algodão do Ceará, e as ligações que a partir dai se estabeleceram com os centros manufatureiros da Inglaterra, através de Liverpool, introduz o Ceará, pela primeira vez, no movimento de mercadorias em es­cala mundial, desfazendo os tênues laços de sua subordinação ao capital mercantil de Pernambuco, e estabelecendo, assim, uma relação externa-interna que redefinirá o cará­ter da economia cearense, suas ligações com o resto do país, e conformando, agora, uma "região" fechada onde o especial caráter de suas relações externas-internas vai dar lugar à formação da oligarquia.

(12) A melhor obra sobre a formação da economia e sociedade colonial no Brasil cuntinua sendo a de PRADO Jr., Caio - História Econômica do Brasil. 4 ed. São Paulo, Editora Brasiliense, 1956. A Formação Econômica do Brasil, de FURTADO, Celso, 8. ed. São Paulo, Editora Nacional, 1968 é sem dúvida, no conjunto, mais integrada, po­dendo fornecer e sugerir pistas para o entendimento da seqüência das várias etapas de crescimento.

(13) Uma boa descrição do Nordeste é dada por ANDRADE, Manoel Correia de em A Terra e o Homem no Nordeste - São Paulo, Edil. Brasiliense, 1964. Parece-nos, en-tretanto, que Correia de Andrade partiu do Nordeste físico para o econômico-político, que não é o andamento privilegiado por nossa opção metodológica. Nas ciências sociais

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e especialmente na Economia Política, não há uma boa história econômica-social do Nordeste; a conhecida e reputada obra de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala: For­mação da família brasileira sob o regime patriarcal. 9. ed. Rio de Janeiro, Editora José Olympio. 1958, é não apenas uma reificação mitológica da "harmonia" entre senhores e escravos, como a sua própria conceituação do "Nordeste" açucareiro como uma "socie­dade patriarcal" deixa escapar o caráter pré-burguès desse "Nordeste", essencial a nos­so ver para o correto entendimento da formação sócio-econômica. A literatura "regio­nalista" nordestina, nas linhas de José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida é, a nosso entender, muito mais rica e conseguiu cap­turar o espelho multifacetado dos vários "Nordestes". Ver, ainda, Djacir Menezes, op. cit.

(14) As relações externas-internas da economia do algodão e as da economia açuca­reira. a primeira inserida na circulação internacional de mercadorias e, portanto, sua re­produção sendo compatível com a política do café, e a segunda voltando-se sobretudo para uma realização interna do valor e sendo excluída, naquela etapa da circulação in­ternacional de mercadorias, e tendo sua reprodução incompatibilizada com a política do café, pode ser vista ainda no triênio 1937-1939, quando a emergência dos interesses do capital industrial no Centro-Sul, na "região" do café, obrigava-o a uma política de sus­tentação da exportação do café, única forma de carrear para a economia nacional os bens de capital que poderiam materializar, de forma ampliada, sua reprodução. Os qua-

,dros seguintes indicam as tendências em curso: ALGODÃO EM PLUMA

Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas.

Valor da Produção, Valor da Exportação para o exterior, Valor da Exportação

por cabotagem para outra". Unidades da Federação e suas relações

(contos de réis) VP(a) V.Exp. Ext.(b) V.Exp. Resto País (c) (n)/(a) (c)/(a

1937 418.891 277.426 147.623 %

66,2 %

35,2 1938 379.942 213.549 114.528 56,2 30,1 1939 383.308 150.195 127.507 39,2 33,3

N o t a s : Expo r t ação para o Exterior, a l godão em p luma e para o Resto do País, a l g odão em r a m a . Pa ra o r es to do Pais , apenas expo r ta ram os Estados do C e a r á , R i o G r a n d e do N o r t e e Para íba . As diferenças entre o total do V a l o r da P r o d u ç ã o e as demais variáveis, o ra não chegando o conjunto da expor tação a perfazer 100% do V a ­lor da P r o d u ç ã o , ora sob repassando-o levemente expl icam-se pela intermediação nas várias etapas e t a m b é m , p o r p r o b l e m a s de estocagem de uma para out ra safra. No ú l t imo ano , deverá ter hav ido , apesar de t u d o , for­tes retrações nas exportações .

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AÇÚCAR

Estados do Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas.

Valor da Produção, Valor da Exportação para o Exterior. Valor da Exportação

por cabotagem para outras Unidades da Federação e suas relações.

VP (a)

(contos de réis) V.Exp. Ext. V.Export. Resto País (b)/(a)

(b) (c) % (c)/(a)

%

1937 1938 1939

195.025 205.901 266.627

177.999 222.154 316.234

91,3 107,9 118,6

Nota s : N ã o houve exportação para o Exterior , nos anos citados As exportações por cabotagem para o resto do Pais. foram real izadas apenas pelos Estados de P e r n a m b u c o e A l a goa s , que certamente captaram partes de prodo,.;* çôes de Estados contíguos. As diferenças de va lo r entre as diversas variáveis p o d e m ser debitadas à interme­d i a ç ã o comercial , mais atenuadas já em virtude de já existir à época o IA A. e o Tato de a expor tação para o reato do Pais ser superior, em dois anos , ao total do valor da p rodução pode ser t ambém deb i tada ás questões de estocagem entre as safras. N ã o h o u v e expo r t ação para o Exterior de nenhum out ro Es tado produtor d e ' açúcar .

F o n t e p a r a Iodas a s informações desta nota de rodapé : A n u á r i o Estatístico do Brasil . A n o V-1939-1940. I B G E , S t i o \ de Janeiro .

(15) Pode-se dar uma idéia da importância de economia do algodão vis-a-vis à eco­nomia açucareira do Nordeste, mediante os seguintes números, que se referem ao triênio 1937-1939, época em que o país já se havia lançado} decididamente, à industrialização. Compreende os Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte. Paraíba, Pernambuco e Alagoas, que correspondem mais precisamente aos dois "Nordestes" que estamos tra­tando, tinha-se naquela data:

(em contos de réis) 1937 1938 1939

Algodão em Pluma 418.891 379.942 383.308 Produção de açúcar 195.025 205.901 266.627 Algodão/açúcar 2,14 1,84 1,44

Fonte. Anuário Estatístico do Brasil-Ano V- 1939-1940 - IBGE, Rio.

O peso da economia do algodão na formação das economias estaduais e, de certa forma,-portanto, na estrutura do poder, é muito mais uniformemente distribuído no conjunto dos referidos Estados, inclusive Pernambuco; neste concentra-se o peso da economia açucareira. Enquanto que para o algodão, no triênio sob exame, o valor da produção re-partia-se entre os extremos de 23.680 contos de reis para o Piauí e 342.150 para a Paraí­ba: o Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco acusavam valores de produção em torno de 250.000 contos de reis, situando-se Alagoas abaixo desse nível com um valor de produção trienal da ordem de 100.000 contos de réis. A economia da produção açucarei­ra já era muito mais concentrada: os extremos eram de novo o Piauí, com uma produção trienal da ordem de 5.000 contos de réis, para uma de Pernambuco que atingia 400.000 contos de réis, oitenta vezes mais. O Estado mais próximo de Pernambuco era Alagoas, com uma produção trienal de cerca de 150.000 contos de réis, enquanto Ceará, Rio

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Grande do Norte e Paraíba compareciam com produções em torno de 25.000, 37.000 e 12.000 contos de réis, respectivamente. Fonte: Annuário Estatístico do Brasil. Ano V-1939-1940. IBGE, Rio.

(16) Existe hoje vastíssima bibliografia a respeito, e mesmo assim submetida a forte revisão crítica.

(17) Um esboço dessa redivisão regional do trabalho encontra-se em OLIVEIRA, Francisco de e REICHSTUL, Henri-Philippe, op. cit.

(18) Sobre as migrações internas, ver BALAN, Jorge - Migrações e Desenvolvi­mento Capitalista no Brasil: ensaio de interpretação histórico-comparativa in Estudos CEBRAP 5. São Paulo, Edit. Bras. de Ciências, 1973; GRAHAM, Douglas H. and HO­LANDA FILHO, Sérgio Buarque - Migration, Regional and Urban Growth and Deve-lopment in Brazil. São Paulo, Instituto de Pesquisas Econômicas, 1971. Mimeo; LOPES, Juarez R. Brandão - Desenvolvimento e Migrações: uma abordagem histórico-estrutural, in Estudos CEBRAP 6. São Paulo, Edit. Brasil de Ciências, 1973.

(19) Esse aspecto foi levantado e sistematizado pela primeira vez no Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste. GTDN, Rio de Janeiro, Depto. de Imprensa Nacional, 1959, documento básico de criação da SUDENE, cuja autoria é legitimamen­te creditada a Celso Furtado.

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II - OLIGARQUIA AGRÁRIA E

INTERVENÇÃO DO ESTADO NO NORDESTE

1. As bases econômico-sociais da oligarquia

agrária não-açucareira do Nordeste

São evidentemente complexas as causas da formação da econo­mia não-açucareira do Nordeste. Alguns autores, como Celso Furta­do, atribuem-na principalmente à penetração sertões adentro da pe­cuária, em caráter extensivo, movida pelas relações que se estabelece­ram entre o fornecimento de animais de trabalho tanto para as ativi­dades da zona açucareira quanto para a região de mineração que se esta­beleceu sobretudo no interior de Minas Gerais; em outro sentido, o for­necimento de carne às populações litorâneas do chamado Nordeste Oriental, e também à referida zona de mineração pode ter constituido aliciante para a fundação da economia pecuária típica dos sertões. Esta última causa deve, no entanto, ser minimizada, se for considera­do que o consumo de carne no Nordeste açucareiro, principalmente para alimentação da população trabalhadora escrava, dava-se sob a forma do charque, uma carne-seca e salgada que até hoje faz parte da dieta alimentar de grande parte da população do Nordeste; verdade é que a produção dessa forma de carne teve início no Ceará, transferin­do-se depois para o Rio Grande do Sul, que, juntamente com a Argen­tina, vieram a ser os principais fornecedores de charque ao Nordeste. É incontestável, porém, o fato de que essa economia pecuária nunca teve maior expressão na economia colonial, nem para o próprio Nor ­deste, nem para o resto da Colônia. Encontra essa debilidade sua afir­mação no fato de que essa economia pecuária nunca esteve fundamen­tada nos padrões de reprodução da economia escravocrata; pode-se adiantar, como hipótese, que a formação dessa economia - se é que essa expressão pode ser usada com rigor para designar as atividades pecuárias do sertão nordestino - era uma forma de desdobramento, marginal, da atividade econômica principal, sendo seus agentes do

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tipo dos que Maria Sylvia de Carvalho Franco descreveu e interpretou admiravelmente como uma forma de inserção de "homens livres na ordem escravocrata"( 2 0 ). É evidente que neste sentido tal economia ex­tensiva não podia dar lugar senão a uma estrutura social pobre, pouco diferenciada, cuja posição na estrutura do poder regional não chegava sequer a ser notada. Esse caráter frouxo da atividade econômica e da estrutura social podia ser constatado pelo tato de que, em muitas par­tes do sertão nordestino, a terra não foi sequer apropriada, senão nos estreitos limites das fazendas, sendo o resto um espaço livre, onde o gado de quem quer que fosse podia pastar à vontade. Uma formação desse tipo é encontradiça em muitos outros lugares e países, caracteris-ticamente de atividades econômicas extrativas; a pecuária nordestina, nestes termos, podia ser considerada uma atividade extrativa; sua mais remota ligação é com o capital mercantil interno da " reg ião " do açú­car. Advirta-se, desde logo, que não se está em presença de proprieda­de comunal, embora alguma semelhança formal possa sugerir esse tipo de formação: os rebanhos eram de propriedade privada, e a terra não era propriedade de ninguém, em vastas porções do sertão nordestino.

A fazenda e, mais tarde, o engenho de açúcar, dedicavam todas as suas forças à produção de cana e à fabricação do açúcar; a força-de-trabalho escrava era exclusivamente dedicada a essas atividades, e marginalmente ao serviço pessoal dos "barões" do açúcar; deve-se anotar, de passagem, que o possível caráter autárquico das unidades produtoras de açúcar é, até certo ponto, um resultado das crises cíclicas da produção, derivadas das flutuações internacionais e, no limite, a própria " reg ião " do açúcar recria formas de acumulação primitiva, mesclando a atividade de produção do açúcar e as chamadas "culturas de subsistência" como resultado de sua subordinação aos esquemas de reprodução do capital vigentes na " reg ião " do café e que, simultanea­mente, pelas mesmas causas, fizeram passar a primeiro plano a "re­g i ão " algodoeira-pecuária no interior do próprio Nordeste. A mono­cultura exclusivista da cana-de-açúcar já havia começado, antes dessa decadência/subordinação, a dar lugar à formação, em suas franjas, de uma economia semicamponesa, voltada para o abastecimento de gê­neros afimentícios da própria " reg ião " açucareira. A lei de reprodução dessa economia semicamponesa era determinada basicamente pelas suas relações com a " reg ião " açucareira, e seu mecanismo de reprodu-

.ção baseava-se na produção de sua própria subsistência que era, na es­sência, parte dos fundos de acumulação da própria economia da "re­g i ão " açucareira.

O "Nordes te " agrário não-açucareiro começará a ser redefinido completamente pela entrada em cena de outro ator: o algodão. Como seqüela da Revolução Industrial, e principalmente, do avanço da in­dústria têxtil na economia inglesa, a demanda mundial de algodão co­meça a crescer exponencialmente. O Nordeste semi-árido é ecologica-mente propício à produção do algodão de fibra longa, conhecido ali

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como algodão-mocó ou seridó, sendo esta última denominação o pró­prio nome de batismo de uma vasta zona que se estende desde o Rio Grande do Norte até a zona central do Estado da Paraíba; dado o nível de desenvolvimento da tecnologia têxtil, sobretudo da fiação, o algodão de fibra longa pôde ser melhor aproveitado industrialmente, devido às suas características físicas. Várias regiões do globo passam a ser "regiões" algodoeiras: o Egito, o Peru, a Índia - de milenar tradi­ção têxtil, destruída pelo capitalismo inglês - o Sul dos Estados Uni­dos e o Nordeste do Brasil. Inclusive na brecha propiciada pela eclo­são da Guerra de Secessão norte-americana, a cultura do algodão no Nordeste experimentará sensível avanço, sobretudo nos Estados do Maranhão e do Ceará, no primeiro desenvolvendo-se um tipo de algo­dão muito semelhante ao que era produzido pelo Sul dos Estados Uni­dos.

O Nordeste agrário não-açucareiro converte-se num vasto algo-doal, desde o Maranhão à Bahia. Não é a "plantation", porém, a es­trutura de produção dessa nova mercadoria; esse vasto algodoal é na verdade constituído pela segmentação sem fim de pequenas e isoladas culturas. A rapina internacional encontra terreno propício à constitui­ção de uma estrutura de produção em que o capitalismo internacional domina a esfera financeira de circulação, deixando a produção entre­gue aos cuidados de fazendeiros, sitiantes, meeiros, posseiros. Emerge aqui a estrutura fundiária típica do latifúndio: o fundo de acumulação é dado pelas "culturas de subsistência" do morador, do meeiro, do posseiro, que viabilizam, por esse mecanismo, um baixo custo de re­produção da força-de-trabalho e, portanto, um baixo valor que é apropriado à escala de circulação internacional de mercadorias, sob a égide das potências imperialistas. Deve-se fazer aqui a inversão entre o discorrer do discurso e o andamento da constituição da relação real: não é a estrutura típica do latifúndio-minifúndio o que determina o baixo valor do algodão, pois apenas o reproduz. O baixo valor é deter­minado, em última instância, pelas modificações que estão ocorrendo na composição orgânica do capital nas indústrias têxteis da Inglater­ra e dos Estados Unidos: no primeiro dos países, a quebra do abasteci­mento do algodão norte-americano obriga-o a recorrer a outras fontes de suprimento, mantendo baixo o preço do algodão, a fim de não pre­cipitar uma queda da taxa de lucro, que em presença de fortes inova­ções tecnológicas na parte fixa do capital constante produziria, se so­mada a esta última acréscimos de preços da parte circulante do capital constante - as matérias-primas - induziria a crises; em segundo lugar, as próprias inovações tecnológicas na parte fixa do capital constante, sobretudo na fiação, obrigam à busca de um tipo de algodão que, por suas qualidades físicas, possa acompanhar o aumento do ritmo de in­tensificação do trabalho. A Guerra de Secessão nos Estados Unidos, com seu conhecido resultado histórico que é o fim da escravatura, vai redefinir as relações entre o Norte industrialista e o Sul escravocrata;

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nessa redefinição, a desorganização da economia do Old South é parti­cularmente aguda no setor da produção de algodão, o que abre espaço para novos produtores mundiais, até que na retomada da expansão ca­pitalista no próprio Sul o protecionismo da burguesia industrial do Norte redefine as relações da economia norte-americana com o resto do mundo, dando início à expansão imperialista norte-americana; contraditoriamente, embora a produção de algodão no Sul venha a se reconstituir, expandindo-se enormemente, a produção de algodão em outras partes do mundo não vai concorrer com a produção do Old South, mas vai constituir-se em um segmento a mais da expansão ex­terna da economia norte-americana.

Fazem sua aparição grandes trustes internacionais que controlam a circulação internacional dessa mercadoria: o " a b c " do Nordeste agrário algodoeiro-pecuário começa pelas siglas S A N B R A e C L A Y - ' T O N , e essa é a alfabetização do trabalhador rural desse "Nordeste " . O fazendeiro apropria parte desse valor, tanto sob a forma de sobre-produto, resultado da partilha do algodão entre ele e o meeiro, quanto sob a forma de sobre-trabalho, no "cambão" , uma forma muito simi-lar à clássica corvéia da economia camponesa européia; sob as duas formas oculta-se uma terceira, a renda da terra que raramente é explí­cita. O proprietário quase nunca exige um pagamento do meeiro pela utilização da terra. O fazendeiro, em sua ideologia, ''dá'' a terra de graça para seus moradores. Aparece agora o algodão, nos vastos espa­ços do sertão nordestino, onde a pecuária extensiva reinara soberana durante séculos, vai se combinar com a própria pecuária e com as "culturas de subsistência" na estrutura peculiar, típica, do latifúndio-minifúndio.

O capital internacional, sob a égide das "três irmãs", S A N B R A , C L A Y T O N e M A C H I N E C O T T O N , realiza, internacionalmente, sob seu controle, o valor dessa mercadoria. E cria, aproveitando a es­trutura de reprodução do latifúndio-minifúndio, um intermediário co­mercial que vai desempenhar a tarefa de recoletar, das milhares de pe­quenas plantações de algodão, os resultados da colheita: os fazendei­ros, principalmente os grandes, convertem-se nesse intermediário co­mercial, que faz as vezes também de intermediário-financeiro, por conta própria ou com recursos das "três irmãs", para financiar as en-tre-safras, ou o período morto que medeia entre uma e outra colheita. Ele se desempenha com os mecanismos das "três irmãs" nessa opera­ção: compra na " fo lha" , isto é, fixa de antemão o preço que irá pagar ao meeiro pelo algodão que ele colherá, independentemente das varia­ções para cima que esse preço possa experimentar no mercado interna­cional; mas não independentemente das variações para baixo: se as "três irmãs" fixarem um preço mais baixo, ele descontará do meeiro a diferença entre o valor ou o preço ajustado na " f o lha " e o preço que será efetivamente pago por ocasião da colheita. Aduzirá a esse meca­nismo, também um de invenção própria: financiará, em espécie, as

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poucas mercadorias que o próprio meeiro não produz: o parco sal, o querosene que alumiará a miséria, a roupa e o calçado dominical. Des­contará na colheita, cobrando preços exorbitantes, esse fornecimento em espécie: no fim, restará ao meeiro tão-somente sua própria força-de-trabalho e a de sua família, com a qual recomeçará o círculo infer­nal de sua submissão.

Que mecanismos ou lei de movimento assegurará a reprodução dessa estrutura, desse "Nordes te " algodoeiro-pecuário? Os mesmos que asseguram a reprodução e expansão da " r eg i ão " do café: sua sub­missão aos caprichos - às vezes, no vocabulário popular, uma palavra de amor? - do capital internacional comercial e financeiro, inglês e norte-americano. Ao capital internacional comercial e financeiro pou­co interessa a produtividade, o incremento da produtividade do traba­lho; sua rapina ocorre no mecanismo da circulação, não no da produ­ção; do lado interno, dos interesses dos agentes produtivos da "re­g ião " do café, sua preocupação centra-se no estabelecimento de uma taxa de câmbio que lhe assegure apropriar-se de parte do excedente so­cial. E a política econômica do Segundo Império e da República Velha centra-se exclusivamente nessa preocupação ( 2 1 )- Através dessa estra­nha convergência de contrários, o mesmo mecanismo e a mesma polí­tica viabilizam a expansão da " reg ião " do café e da " r eg ião " algodoei-ra-pecuária; se ao nível das estruturas internas de produção de cada uma das "regiões" no entanto, existem e começam a aprofundar-se importantes diferenciações, a subordinação de ambas à circulação in­ternacional de mercadorias, as homogeiniza.

Funda-se o Brasil oligárquico sob a determinação férrea dessa su­bordinação, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. E, politicamente, toma formas distintas: no Segundo Império será um Estado unitário, e na República Velha será uma federação oligárquica, com a "política dos governadores", sob a égide da coligação "café-com-leite" substituindo o chamado Poder Moderador. Tal reiteração da sustentação do café e do controle da escala internacional das mercadorias café e algodão abortará a emergência do modo de produção de mercadorias no país, no sentido de fazer avançar a divisão social do trabalho no rumo da indústria ( 2 2 ) . São seus agentes internos, na " r eg ião " do café, os "ba­rões" paulistas, e na " reg ião " do algodão-pecuária, os "coronéis" . A té mesmo no apelido que receberam, tanto por sua própria iniciativa quanto pela sabedoria popular, anotava-se a diferenciação na produ­ção e apropriação do valor, na hierarquia da estrutura do poder. Ba­rões sem nobreza e coronéis sem exércitos? Decididamente, não: "ba­rões" com a nobreza que a rapina sempre conferiu e "coronéis" com exércitos de cangaceiros e jagunços que realizavam a apropriação das terras e reafirmavam, pela força, contra os camponeses recalcitrantes, o preço na " fo lha", as obrigações do "cambão" , o pacto da "me ia " e da "terça", o " f o r o " da terra. A luta de classes, nesse contexto, assume formas também clássicas: serão os "rebeldes primitivos", da admirável

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interpretação de Hobsbawn ( 2 3 ) , que tentarão opor-se a esse círculo de ferro, com a debilidade própria desses movimentos, estruturalmen­te determinada pelo caráter ambíguo de sua posição dentro do contex­to latifúndio-minifúndio: eles ainda não estão completamente expro-priados dos meios e instrumentos de produção; o que se lhes expropria é o produto, não sua força-de-trabalho. O romanceiro popular desse "Nordes te " redefinido cantará as vitórias de Lampião apenas no In­ferno, já que no Céu da terra é-lhes destinado amargar o pó da derrota do "cambão" , do preço da " fo lha" . Nasce dessa ambigüidade o pró­prio movimento pendular da violência no "Nordes te " algodoeiro-pecuário: cangaceiros e jagunços ora estão contra, ora a favor dos " co ­ronéis", ora punem, ora defendem meeiros e pequenos sitiantes. Essa ambigüidade estrutural da luta de classes no Nordeste algodoeiro-pecuário marcará no futuro o próprio movimento de explosão da pax agrariae nordestina: as Ligas Camponesas reivindicarão inicialmente o direito à terra, a extinção do "cambão" ; será a dialética própria da es­trutura intima do latifúndio-minifúndio, que não pode resolver uma das pontas do dilema sem afetar a outra, que levará o movimento cam­ponês do Nordeste expressado pelas Ligas Camponesas para além das suas iniciais reivindicações ( 2 4 ) .

2. A intervenção do Estado:

O Departamento Nacional de Obras contra as Secas Começa a constituir-se já quase um consenso entre estudiosos do

Nordeste brasileiro considerar-se a intervenção do Estado no combate às secas, como a primeira manifestação do planejamento da atividade governamental para resolver os problemas da economia regional. O próprio diagnóstico Uma Política de Desenvolvimento Econômico para o Nordeste, que fundamentou a estratégia da SUDENE, aceita explici­tamente essa interpretação, colocando sua divergência apenas no que respeita propriamente à estratégia de "combate às secas"; entre outros estudiosos, principalmente "brazilianists" norte-americanos, foi talvez Albert Hirschman quem primeiro veiculou essa interpretação, em seu Journeys Toward Progress.

É verdade que o Departamento Nacional de Obras Contra as Se­cas, mais conhecido pela sigla D N O C S , que nasceu sob a denomina­ção de Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas - IFOCS - na pri­meira década deste século, representou, em alguma medida, um esfor­ço racionalizador; é notável, mesmo nos seus primórdios, o esforço desprendido no estudo da ecologia regional, recrutando até especialis­tas estrangeiros que, ao lado de alguns nacionais, formaram uma exce­lente equipe de engenheiros, agrônomos, botânicos, pedologistas, geó­logos, hidrólogos; sob a batuta de Miguel Arrojado Lisboa, no nível mais alto, e a condução científica de José Augusto Trindade, cuja tra-50

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dição foi continuada por José Guimarães Duque, avançou-se muito no conhecimento físico do Nordeste semi-árido, de suas potencialida­des e limites de solo, água, botânica, de sua flora nativa e das possibili­dades de adaptação de outras espécies. Não se avançou nada, porém, em termos do entendimento e desvendamento de sua estrutura sócio-econômica; interessa notar, de passagem, que o melhor pessoal cientí­fico da antiga IFOCS e depois do D N O C S quase sempre esteve em oposição à política de obras executadas pelo Departamento; mesmo ti­midamente, e em termos conservadores, pode-se anotar na obra mais conhecida de Guimarães Duque, Solo e Água no Polígono das Secas, um clássico da ecologia do Nordeste semi-árido, uma denúncia das condições sócio-econômicas, da exploração dos camponeses, peque­nos sitiantes e meeiros pelos grandes fazendeiros do algodão-pccuária. Anos mais tarde, ao calor dos debates parlamentares em torno do pro­jeto de criação da S U D E N E , o senador Argemiro Figueiredo, da Pa­raíba, típico representante da oligarquia agrária algodoeira-pecuária, afirmava que o projeto da S U D E N E e as idéias de Celso Furtado eram uma tentativa de implantação das idéias "socializantes" de Gui­marães Duque ( 2 5 ) .

Seria apressado demais, porém, e cientificamente leviano afirmar que a IFOCS, e posteriormente o D N O C S , representam algo parecido com planejamento, ainda que no âmbito restrito do gasto governa­mental. Note-se, de passagem, que mesmo o problema das secas não era concebido como um problema exclusivamente do Nordeste semi-árido: o D N O C S era um departamento nacional, concebido para atuar no combate a esse fenômeno climático onde quer que ele se apresen­tasse no território do país. O fato de nunca ter realizado nenhuma obra fora do Nordeste, é um resultado de sua captura pela oligarquia regional, e não uma intenção ou objetivo inicial. À pressa e leviandade em considerar o DNOCS como a primeira manifestação do planeja­mento em escala regional não leva em conta alguns aspectos funda­mentais para a emergência de um padrão "planejado" da reprodução econômica e social. Convém, em primeiro lugar, não desconsiderar o fato de que sequer havia, na época de criação da IFOCS e do DNOCS, uma teoria de planejamento ou, num sentido mais amplo, teorizações sobre planejamento num sistema capitalista. Claro está que nem a ex­periência socialista da URSS, além de recente e de inspirar repugnân­cia certamente não apenas ao Ocidente mas às classes proprietárias ru­rais do Brasil e do Nordeste, não poderia servir de modelo, nem mes­mo os êxitos do planejamento socialista estavam à vista. Era a época das teorizações antiplanejamento de Von Mises e Hayek, que "de­monstravam" não ser possível a alocação de recursos econômicos à margem e contra as " l e is " do mercado, sem o barômetro "infalível" de um sistema de preços. Seria, parafraseando Lênin, uma "teoria sem re­volução" ( 2 6 ) .

Um segundo aspecto reveste-se de importância ainda maior que o anteriormente assinalado. Trata-se do próprio caráter do planejamen-

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to num sistema econômico de base capitalista. O planejamento num sistema capitalista é sobretudo, conforme sugerido na introdução des­te trabalho, uma forma de reposição transformada dos pressupostos da produção; isto é, uma forma transformada da mais-valia que se repõe no processo produtivo: a ação do Estado, para ser planejada, deve ocorrer essencialmente na passagem entre os resultados do produto e a reposição do ciclo produtivo. Ora, ainda que se aceite que os gastos do D N O C S eram investimentos do Estado, não significavam eles em abso­luto transformação das formas do ciclo produtivo; não tiveram, sob ne­nhuma circunstância, o condão de transformar as condições da produ­ção social do Nordeste algodoeiro-pecuário. Significaram simples­mente um reforço das condições da própria estrutura produtiva, tanto na esfera da produção quanto na esfera da circulação e da apropria­ção.

Essa impotência de os gastos federais, através do D N O C S , leva­rem a um padrão "planejado", por oposição ao "espontâneo", da re­produção da estrutura econômica e social do Nordeste algodoeiro-pecuário, não é uma questão meramente teórica, abstrata; não é uma dedução que decorre da observação dos não-efeitos dos investimentos do D N O C S sobre o ciclo produtivo do Nordeste algodoeiro-pecuário. É um aspecto ou uma conclusão que se impõe ao se considerar, con­forme as indicações teórico-metodológicas desta investigação, o anda­mento e o estado da luta de classes no interior da estrutura do " N o r ­deste" algodoeiro-pecuário. A ação "planejada" do Estado, no senti­do aqui proposto, ocorre somente quando a luta de classes chega a um ponto de ruptura, em que não apenas a estrutura existente não tem mais condições de continuar a reproduzir-se, como se vê seriamente ameaçada pela emergência política dos agentes que lhes são contrários. Não é a estagnação que força ao planejamento, nem apenas a situação de miséria das massas camponesas e trabalhadoras do "Nordes te " al­godoeiro-pecuário. Essa estagnação era, na maioria dos casos, apenas a aparência das transformações que se operavam na hierarquia do po­der entre as classes dominantes: no Nordeste como um todo, essa es­tagnação refletia sobretudo a submissão da burguesia industrial aos interesses da oligarquia agrária algodoeira-pecuária e portanto a dinâ­mica dessa oligarquia, sua expansão. Quanto à miséria, essa era e é se­cular; o que existiu de novo em tal miséria, transformando o conflito de classes - matéria que se tratará de explicitar em outra parte deste trabalho - é sua politização: é a sua insolubilidade nos mesmos termos de reprodução da estrutura produtiva do "Nordeste " algodoeiro-pecuário.

3. A manutenção do status quo: o Estado capturado ou o Estado oligárquico

A dialética da oposição "Nordeste " algodoeiro-pecuário versus "Nordeste " açucareiro, a reiteração da economia agroexportadora da

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" reg ião " do café e sua coincidência, do ponto de vista de realização externa do valor, com as formas de reprodução do "Nordes te " algo­doeiro-pecuário; a própria divisão regional do trabalho no território nacional, que se redefinia conforme o andamento da expansão da "re­g ião " do café; a estrutura de classes e de poder que emergiu numa e noutra "reg ião" : "barões" do café e "coronéis" do algodão-pecuária; o estado da luta de classes no Nordeste algodoeiro-pecuário, que se caracterizava por "rebeldias primitivas" cuja base era a própria ambi­güidade da inserção das várias classes, dominantes e dominadas, na es­trutura produtiva; tudo isso levou a que a intervenção do Estado sob a forma da ação e dos gastos do D N O C S mantivesse, mais do que trans­formasse, as condições de reprodução da estrutura econômica e social: conduziu, em suma, a uma forma de Estado oligárquico, onde se fu-sionavam e tornavam-se indistintas as esferas próprias do Estado e da sociedade civil. O Estado foi capturado por esse "Nordes te " algodoei­ro-pecuário, e mais do que isso, num mecanismo de reforço, o Estado era esse "Nordes te " algodoeiro-pecuário.

Uma descrição, ainda que sumária - existem sobre o assunto al­gumas dezenas de obras, documentos e relatórios inclusive do próprio D N O C S - pode servir aos propósitos de concretizar essa captura, essa imbricação Estado + "Nordes te " algodoeiro-pecuário. Criados para combater os efeitos das secas, a I F O C S, primeiro, e o D N O C S, de­pois circunscreveram-se ao chamado Polígono das Secas, uma demarca­ção no interior do próprio Nordeste geográfico mais amplo, que apresen­tava as condições climático-ecológicas propícias ao fenômeno da falta e ir­regularidades das chuvas. Essa própria demarcação era em si mesma eco­nômica e política, pois foi concebida precisamente na época em que se ex­pandia o "Nordeste" algodoeiro-pecuário, em detrimento do "Nordeste" açucareiro. E também por essa razão que se tornou o D N O C S um para-digma da ação do Estado.

A IFOCS e depois o D N O C S orientaram sua ação para a cons­trução de barragens, que represassem água para os períodos de se­ca; para a perfuração de poços, ali onde não havia rios para represar; para a construção de barragens que visassem a propiciar uma agricultu­ra irrigada; para a construção de estradas de rodagem no interior da zona semi-árida; e finalmente para a elaboração de estudos ecológicos num sentido amplo, geológicos, botânicos, pedológicos, hidrológicos, que lhes fornecessem o necessário acervo de conhecimento para a ado­ção das técnicas mais adequadas para a expansão agropecuária no trópico semi-árido. Vale dizer que os estudos técnico-científicos co­nheceram um breve período de florescimento, sob o comando de José Augusto Trindade, e posteriormente passaram a ser uma espécie de "filho enjeitado" do D N O C S , ainda assim graças à perseverança de homens como José Guimarães Duque. A construção de barragens para irrigar bacias para a gricultura não conheceu, comprovadamente, grandes êxitos. Além de alguns erros iniciais, plenamente justificáveis dado o grau de desconhecimento da ecologia regional, que termina-

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ram por resultar em barragens que não tinham bacias irrigáveis -como os arqui-conhecidos casos do açude Curemas, na Paraíba, e do açude do Cedro, no Ceará -, após mais de cinqüenta anos de atuação da IFOCS e do DNOCS, a extensão da agricultura de irrigação no Nordeste não ultrapassava modestos 5.000 hectares.

Já no que se refere aos outros programas, os êxitos foram mesmo notáveis, em alguns casos; como exemplo, pode-se citar a construção de uma rede de estradas não-pavimentadas, mas de boa qualidade, na zona do Polígono das Secas, sobretudo em alguns Estados, de uma forma que, antes dos grandes programas rodoviários nacionais da dé­cada dos cinqüenta, o Nordeste semi-árido contava com uma rede de estradas superior em quantidade e qualidade à do resto do país, em proporção à sua área. Essa rede de estradas servia sobretudo à circula­ção da mercadoria algodão: aqui pode-se dizer que qualquer outra mercadoria poderia transitar pelas estradas, o que não demonstraria qualquer viés na atuação do DNOCS; entretanto, só havia essa merca­doria. As outras, de produção agrícola, eram pequenas quantidades das "culturas de subsistência" que, vendidas nas feiras próximas, nem necessitavam de transporte rodoviário nem agüentariam o sobre-custo imposto por esse tipo de transporte, dado o fraco poder aquisitivo das populações pobres das cidades da zona semi-árida.

O D N O C S dedicou-se, sobretudo, à construção de barragens para represamento de água, para utilização em períodos de seca, e a cons­trui-las nas propriedades de grandes e médios fazendeiros: não eram barragens públicas, na maioria dos casos. Serviam, sobretudo, para sustentação do gado desses fazendeiros, e apenas marginalmente para a implantação de pequenas "culturas de subsistência" de várzeas, as­sim chamadas as ribeiras das barragens. O investimento do D N O C S reforçava, num caso como noutro, a estrutura arcaica: expandia a pe­cuária dos grandes e médios fazendeiros, e contribuía para reforçar a existência do "fundo de acumulação" próprio dessa estrutura, repre­sentado pelas "culturas de subsistência" dos moradores, meeiros, par­ceiros e pequenos sitiantes. O caso da perfuração de poços é semelhan­te: mediante acordos com os grandes proprietários, o D N O C S perfu­rou para encontrar água, que se destinava sobretudo à sustentação dos rebanhos. Não há, que a literatura registre, casos de poços públicos perfurados pelo D N O C S em todo o sertão nordestino, a não ser em al­gumas cidades, para fins de abastecimento d'água potável.

A descrição anterior caracterizava a ação do D N O C S em épocas normais; é fora de dúvidas que nessa ação não se constata nenhum "planejamento", nenhuma mudança de forma dos pressupostos da produção. A ação do D N O C S revestiu, nas secas ou nas "emergências", como são denominadas as épocas em que a intensidade da irregulari­dade se agrava, formas típicas de uma acumulação primitiva. Recruta­va-se a mão-de-obra desocupada pela estiagem, apenas depois que os magros recursos de pequenos sitiantes, meeiros, parceiros, haviam-se

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esgotado em duas ou três semeaduras, à espera das chuvas, e emprega­va-se na construção das barragens e das estradas; o pagamento dessa mão-de-obra dava-se, na maioria das vezes, sob a forma de espécie, isto é, fornecendo-se os alimentos - farinha, feijão e a indefectível car-ne-seca, esta nem sempre presente -; os resultados desse trabalho con­cretizavam-se nas barragens feitas nas propriedades dos grandes fazen­deiros e nas estradas, às vezes estradas privadas no interior dos grandes latifúndios. Utilizava-se também essa mão-de-obra na construção das grandes barragens, mas alguns estudiosos críticos dos próprios qua­dros do D N O C S chegaram a calcular que, se essa mão-de-obra, em to­das as secas de que há memória no Nordeste desde a criação da IFOCS, tivesse sido utilizada na construção das barragens públicas, a grande maioria delas estaria construída há muito tempo. Tal acumula­ção primitiva utilizava os recursos do Estado para a implantação de benfeitorias nas grandes propriedades, e sua forma de financiamento chegou a constituir-se em outro pilar da força e do poder político dos "coronéis" , da oligarquia algodoeira-pecuária. Chegando quase sem­pre atrasados os recursos fiscais que a União devia fornecer para as "emergências", o D N O C S utilizava o crédito junto aos grandes fazen­deiros e comerciantes do Nordeste semi-árido, quase sempre as duas formas do capital reunidas numa só pessoa, personae dessa forma de reprodução, para adiantamentos. O dinheiro passava imediatamente, com a chegada dos recursos, às mãos desses fornecedores. Não é preci­so nenhuma imaginação, antes é ela desnecessária porque mais fraca que a realidade, para advinhar que os preços dos mantimentos forneci­dos ao D N O C S para essas frentes de trabalho eram na verdade uma outra forma dos "preços na folha": mais altos que os preços que se po­deria conseguir mediante uma estrutura de compras diretas do D N O C S nas outras zonas produtoras do país. Uma estrutura de enri­quecimento que a literatura de oposição à oligarquia algodoeira-pecuária chamava de "il ícita". As "emergências" criaram outra forma de enriquecimento e de reforço da oligarquia: não apenas os eleitores reais dos "coronéis" tinham prioridade para engajamento nas frentes de trabalho, como os eleitores-trabalhadores-fantasmas pululavam. Obras-fantasmas e trabalhadores, "cassacos" - fantasmas, povoavam as frentes de trabalho das secas.

Não é ocasional que o controle político do D N O C S tenha perma­necido durante décadas nas mãos dos políticos particularmente os oli-gárquicos, do Estado do Ceará, talvez entre todos os Estados do Nor-deste o mais encarniçadamente oligárquico. N ã o havia no Ceará "Nordeste" açucareiro, nem qualquer outra atividade produtiva que não fosse determinada pela estrutura típica do latifúndio-minifúndio. O Ceará era, antes da entrada do Nordeste na divisão intemacional do trabalho pela via da produção do algodão, um vasto e subpovoado curral de gado, com algumas micro-zonas como a do Cariri, onde me­drou também a atividade açucareira (com razão era o Cariri do Ceará

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muito mais ligado às estruturas de reprodução vigentes no "Nordeste açucareiro de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas). Era, em suma, um espaço de atividades extrativas - já se esclareceu que a pecuária, nessas condições, não passava de uma atividade extra-tiva - que reforçou-se inclusive no começo do século pela descoberta da utilização da cera de carnaúba, nativa em vastas porções do estado cearense e também no Piauí, sobretudo em sua metade nor­te. O algodão reunir-se-á com a pecuária e á carnaúba para transfor­mar o Ceará num vasto algodoal segmentado em milhares de peque­nas plantações, e a imbricação latifúndio-minifúndio, comerciante-fazendeiro, fazendeiro-exportador, não ocorreu em nenhum outro lu­gar do Nordeste com maior profundidade que ali. As primeiras gran-des obras da IFOCS e do D N O C S foram no Ceará, e daí por diante o controle desse organismo estatal, sua captura pela oligarquia algo­doeira-pecuária, aprofundou-se e tornou-se completamente indistinta a linha divisória entre D N O C S e a mesma oligarquia. Falar do D N O C S no Ceará, era o mesmo que falar da oligarquia e vice-versa.

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Notas

(20) Ver FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho - Homens Livres na Ordem Escravo­crata. São Paulo, Instituto de Estudos Brasileiro, 1969. A autora descreve o processo de inserção de agregados, pequenos sitiantes, pequenos comerciantes, na divisão do traba­lho da economia cafeicultora do Vale do Paraíba em meados do século XIX.

(21) Sobre a política econômica da República Velha, ver VILLELA, Annibal V. e SUZIGAN, Wilson - Política do Governo e crescimento da economia brasileira. 1889-1945. Rio de Janeiro, IPEA/INPES, 1973, (Série Monográfica, 10).

(22) Esse mecanismo de reiteração da economia agro-exportadora é tratado teori­camente em OLIVEIRA, Francisco de - A emergência do modo de produção de merca­dorias: uma interpretação teórica da economia da República Velha no Brasil, in Boris Fausto, organizador. História Geral da Civilização Brasileira, III: O Brasil Republicano. I: Estrutura de Poder e Economia. São Paulo, DIFEL/DIFUSÀO EDITORIAL S A 1975.

(23) HOBSBAWN, Eric - Rebeldes Primitivos: estudos sobre as formas arcaicas de movimentos sociais nos séculos XIX e XX; Tradução de Nice Rissone. Rio de Janeiro, Zahar, 1970.

(24) JULIÀO, Francisco - Que são as Ligas Camponesas?. Rio de Janeiro, Edit. Ci­vilização Brasileira, 1962. Ver também a interessante tese de EID, Arthur Shaker Fauzi - Pelo Espaço do Cangaceiro, Jurubeba, Dissertação de Mestrado. São Paulo, Depto. de Ciências Sociais da FFLCH da USP, 1975.'

(25) Ver os Anais do Senado Nacional, do ano de 1959. De José Guimarães Duque, Solo e Água no Polígono das Secas, Fortaleza, Minerva, 1953.

(26) MISES, L. Von - Economic Calculations in the Socialist Commonwealth, in Collectivist Economic Planning, London, Routledge, 1935. HAYEK, Friedrich A. - The Road to Serfdom. Chicago, Chicago University Press, 1944. É interessante notar a evolu­ção do pensamento econômico ocidental a respeito da "infalibilidade" do sistema de preços e de seu papel na locação dos recursos: a teoria dos "shadow prices" veio exata­mente tentar demonstrar que apenas a intervenção no sistema de preços poderia melho­rar a referida alocação. Hoje, apenas um grupo reduzido de economistas, à frente o sus-peitíssimo senhor Milton Friedman, defende essa "infalibilidade", cuja prática requer sempre o uso da força armada; não fosse o deslavado cinismo desses senhores, o que faz suspeitar que não acreditam no que dizem, fácil seria demonstrar-lhes sua própria con­tradição: infalibilidade versus uso da força; somente assim existe esse sistema de preços "livres".

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III - BURGUESIA AGRO-INDUSTRIAL E INTERVENÇÃO DO ESTADO NO NORDESTE

1. As bases econômico-sociais da burguesia

agroindustrial do Nordeste

A base econômica da burguesia do Nordeste foi indiscutivelmente a constituição da atividade de produção da cana e do açúcar; este é um truísmo sobre o qual não pode haver nenhuma divergência de fundo. A economia do açúcar fundava-se na Colônia e durante o Primeiro e o Segundo Impérios, no trabalho escravo, compulsório, como de resto em toda a extensão territorial do futuro país, e assim mesmo nos de­mais espaços não-metropolitanos que o capitalismo mercantil criou como um dos pilares de sua acumulação primitiva. A diferença que ocorre entre a Colônia e o Império é nas relações externas, sobretudo: isto é, a intermediação da Coroa portuguesa, seus direitos de monopó­lio ou do "exclusivo comercial", como chamou Fernando Novaes ( 2 7 ) , desaparecem e as relações externas do agora país independente passam a dar-se diretamente com a emergente potência capitalista, a imperial Inglaterra. N ã o se deve minimizar essa passagem, apesar de a base es­cravocrata ter permanecido constante: nessa passagem, dá-se uma re­definição da repartição do produto social, retendo-se agora, interna­mente, uma parcela maior do excedente econômico, cuja reiteração produzirá exatamente a burguesia como classe social. Novas formas da repartição do produto social começam também a projetar sua sombra nessa redefinição criando o que viria a ser depois conceituado como o capitalismo imperialista: uma sobredeterminação financeira da circu­lação internacional de mercadorias, sob a égide do capital financeiro inglês e depois norte-americano.

Não se está afirmando, é claro, que a produção do açúcar no Nordeste fosse burguesa desde a Colônia (28). O que se está querendo afirmar é que um tipo de produção como a do açúcar, pela complexi­dade de sua base técnica, que exigia a passagem necessária para formas

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de trabalho cooperativo, e manufatureiro em seguida, e pela sua compe­tição com o açúcar de beterraba na própria Europa, continha em si mesmo o germe da produção de mercadorias, o germe do capitalismo; germe que foi levado pelo próprio capitalismo mercantil e pela sua evolução em direção a formas superiores da divisão social do trabalho nesse sistema sócio-econômico de produção de valor: essa exigência do trabalho cooperativo estava projetando o outro da produção capitalis­ta - o proletariado -, com o que se fundava plenamente o capital como relação social. Historicamente, tanto a forma como penetrou o capita­lismo mercantil nas colônias quanto, no caso especial do Brasil, a for­ma especial que o Estado português imprimiu a essa penetração, pre­pararam de antemão certas condições que, no caso clássico do capita­lismo europeu, somente ocorreram mediante a destruição da econo­mia feudal. Referimo-nos aqui, sobretudo, à concentração de terras e de propriedades que a forma mercantil do Estado português implan­tou na sua colônia: essa concentração de terras e de propriedade, ar-qui-conhecida dos estudiosos da história brasileira, transformou-se em riqueza concentrada quando a própria passagem do capitalismo mer­cantil para industrial, em escala internacional, forçou a redefinição do papel das colônias e, já agora, dos países independentes na divisão in­ternacional do trabalho movida agora pela produção de mercadorias. O que se está querendo afirmar é que a forma da divisão social do tra­balho, concretizada em certa forma de divisão técnica, presente na produção do açúcar, não poderia nunca sustentar-se num extrativismo nem num primitivismo de reprodução do tipo da economia campone­sa. A produção do açúcar exigia investimentos, inversão e reinversão de capital, aumento de produtividade, enfim uma forma de reposição dos pressupostos da produção, que continha em si mesma a circulari­dade própria de reprodução do capital ( 2 9 ) . Vale ressaltar que neste caso a forma adotada, de trabalho compulsório, resultou tanto de me­canismos de acumulação primitiva do capitalismo mercantil - o tráfi­co e o comércio de escravos, a par da destruição das antigas economias comunais ou tribais - quanto ao fato de, nos novos espaços não-metropolitanos do tipo do que se criou no Brasil, inexistirem socieda­des que pudessem ser interpenetradas pelo capitalismo mercantil para, numa simbiose já assinalada por Marx e Engels, insertarem-se na divi­são internacional do trabalho. Essa simbiose deu-se, por exemplo, no caso dos espaços como o do antigo Peru e o do México, onde o capita­lismo mercantil penetrou e fundou-se sobre as formas de cooperação já existentes no chamado "modo de produção asiático"

Inexiste aqui qualquer proposição teleológica; tenta-se identificar se a forma de produção do açúcar no "Nordeste " açucareiro - parece uma redundância - era determinada pelo caráter dos seus pressupos­tos e pelo seu movimento de reposição, e se esses pressupostos e repo­sição eram capital. O fato de ter chegado a ser ou não uma produção de tipo exclusivamente burguesa é toda a tarefa desta investigação,

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através exatamente da observação da reposição dessa circularidade, de seus momentos de ruptura, de seus impasses. É da dialética desse mo­vimento que deve surgir a resposta.

A economia açucareira continha em si mesma, conforme já se as­sinalou, elementos de reposição que se fundavam numa forma de gera­ção de valor de caráter capitalista. A ^contradição entre capitalismo e escravidão já foi analisada pelo próprio Marx, e não pode ser entendi­da em termos restritos à produção do valor do espaço do "Nordeste " açucareiro; é a circulação global do capital que resolve essa contradi­ção, No que se refere a essa contradição em outras "regiões" do Brasil, o brilhante Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, de Fernan­do Henrique Cardoso ( 3 1 ) , dá conta dessa especificidade. A escravidão, aqui, era uma forma específica do capitalismo, pois separava, desde o início produtores e meios de produção. É apenas mais tarde que a opo­sição entre escravidão e desenvolvimento das forças produtivas vai co­locar-se como antagônica para os processos da reprodução ampliada. Importa reter, pois, que o "Nordeste " açucareiro que transitava em di­reção a formas de reprodução nitidamente burguesas, fazia-o sob o imperativo das mesmas leis. Deve-se adicionar, conforme já se ressal­tou na Introdução, que essa forma de produção criou, internamente, no próprio "Nordeste " açucareiro, outra forma de capital, centrado na circulação de mercadorias: o capital comercial dos comerciantes do porto do Recife, cuja hegemonia se estendeu por todo o "Nordes te " açucareiro, chegando até os confins do Ceará e Piauí. Anotou-se já, também, a forma embrionária de contradições de intereses de cada forma de capital, de que a história do "Nordes te " açucareiro é rica em exemplos: Revolução dos Mascates, Revolução de 1817, Confedera­ção do Equador, Revolução Praieira. A expansão da " reg ião " do café começou a relegar a segundo plano o "Nordes te " açucareiro durante todo o Segundo Império, não por nenhuma conspiração aristocrática, mas sobretudo porque o próprio "Nordeste " açucareiro havia sido deslocado pelo capital internacional de sua antiga posição, centrando-se agora os novos produtores sobretudo nas Antilnas e no Caribe ( 3 2 ) .

As mesmas razões que nos finais do Século X I X levavam inclusi­ve a economia da " reg ião " do café a libertar-se dos limites impostos pelo trabalho escravo, numa dialética que firmava um dos pólos exata­mente nas mudanças da composição orgânica do capital nos países im-perialistas, começaram a reativar a economia do "Nordes te " açucarei­ro. È a época da primeira conversão dos "engenhos" em usinas, e da fundação da indústria têxtil, fecundada também pela expansão do al­godão na brecha fornecida pela Guerra de Secessão norte-americana. O setor têxtil "substituía" - para usar a expressão moderna - as im­portações de tecidos e panos para as próprias populações escravas, além de abastecer o débil mercado urbano formado pelas classes não-proprietárias; a burguesia continuava a importar sedas da China - da China mesmo, ou tecidas na Inglaterra? -, o linho irlandês - que fun-

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dou uma longa tradição de uso desse tecido no Nordeste - e as casimi-ras - no clima quente do Nordeste? - inglesas. As relações entre o setor açucareiro e o têxtil são por demais conhecidas; não apenas uma inter­dependência técnica e de demanda - tecidos para a população traba­lhadora e sacos de aniagem para o ensacamento do açúcar - alimenta­va essas relações. A origem do capital confundia-se na maior parte dos casos nos mesmos troncos familiares, e neste caso eram uma só perso-na do capital: sua forma de reprodução era a mesma e portanto inexis-tiam contradições a esse nível. Essa forma de reprodução unificou as personas do capital: uma poderosa coalizão de interesses entre os dois ramos industriais amalgamou de tal forma essa coligação, que prova­velmente não teve paralelo na história da formação da classe burguesa no Brasil.

A burguesia agroindustrial desse "Nordeste " açucareiro e têxtil conheceu, pois, um período de expansão, cujos limites podem ser fixa­dos no final dos anos setenta do século X I X e primeira década do sé­culo X X . Essa expansão beneficiou-se, em alguma medida, da substi­tuição do trabalho escravo pelo trabalho assalariado, da mesma forma que a expansão da economia da "reg ião" do café. Se agora as bases da produção passavam a ser, porém, de corte nitidamente capitalista, qual a razão que explica a decadência que se seguiu a esse período de expansão? Teoricamente as duas "regiões" tinham, agora, a mesma forma de reprodução e, portanto, sua expansão deveria ser condiciona­da tão-somente pelos aumentos de produtividade do trabalho que lo­grassem. Um importante fator dá conta da dissimilitude das curvas de crescimento de ambas as economias burguesas: é o caráter da realiza­ção da mais-valia. Enquanto o valor da " reg ião " do café realizava-se externamente, daí a sua dependência do capital comercial e financeiro inglês e norte-americano começar a imprimir sua marca às formas de repartição do excedente social do seu produto, o valor da " reg ião " do açúcar-têxtil realizava-se internamente. A forma de reiteração da eco­nomia da " reg ião" do café, pelo caráter de sua realização externa, pas­sou a ser sobredeterminada pelo capital financeiro inglês e norte-americano, do que decorreu que o eixo da política econômica passou a ser a manutenção de uma taxa de câmbio que, simultaneamente, reali­zasse externamente o valor do produto da " reg ião " do café, pagasse as dívidas externas contraídas para sustentação e valorização daquele produto e tornasse rentável para o produtor interno as atividades de produção. O sistema financeiro da economia brasileira atrofiou-se, como segunda decorrência, sendo quase todo externo - as dívidas ex­ternas na verdade constituíam o suporte financeiro da economia cafei-cultora - e tornou inviável o financiamento interno da realização do valor de mercadorias de consumo interno. Foi exatamente a mesma convergência de mecanismos de reiteração que freou a divisão social do trabalho na própria " reg ião" do café, abortando sua industraliza-

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cão, que somente ganhava impulso quando, por razões de crise interna­cional, a reiteração externa era cortada ou atenuada ( 3 3 ) .

É por essa mesma época, finais do século X I X e princípios do sé­culo X X , que o algodão vai constituir o novo "Nordeste " algodoeiro-pecuário, cuja estrutura e mecanismos de reprodução já foram descri­tos anteriormente. A expansão do algodão e desse novo "Nordeste " vai encontrar sustentação nos mesmos mecanismos que reiteravam a produção cafeeira, inclusive porque também era uma mercadoria de realização externa, razão pela qual o capital comercial e financeiro in­glês e norte-americano também se apossou da esfera de circulação. A emergência desse novo "Nordeste" algodoeiro-pecuário vai impor suas próprias leis de reprodução à economia industrial emergente do "Nordeste" açucareiro-têxtil. Premida pelas duas tenezes, da expan­são da "reg ião" do café e da emergência e expansão do "Nordeste " al­godoeiro-pecuário, a economia burguesa do "Nordeste " açucareiro-têxtil recriou formas de reprodução quase anticapitalistas, com o que se condenou à estagnação. Tomando-se como ponto de vista a sua in­terdependência com o próprio "Nordeste" algodoeiro-pecuário, seu abastecimento da fibra vai depender, primeiramente, das condições de produção e de realização do valor do produto algodão; a indústria têx­til nordestina acomoda-se ao padrão de fornecimento ditado pelos grandes trustes internacionais, de tal forma que, surgindo nas frontei­ras da " reg ião" que produzia algodão de boa qualidade, vai se especia­lizar, contraditoriamente, na produção de tecidos grossos: aqui é não apenas a pobreza de seu mercado, das classes de renda baixa, mas sua subordinação aos padrões impostos pelos grandes trustes internacio­nais, S A N B R A , C L A Y T O N e M A C H I N E C O T T O N , que determina essa especialização. Um caso que inclusive passou ao romanceiro po­pular é a saga do industrial Delmiro Gouveia: tentando concorrer com a M A C H I N E C O T T O N , que controlava boa parte da comercializa­ção do algodão de fibra longa para abastecer suas fábricas de fio e li­nhas de algodão na Inglaterra, aquele pioneiro montou o primeiro aproveitamento hidrelétrico das quedas de Faulo Afonso, comprou todo o equipamento industrial necessário e iniciou uma longa luta que terminou com seu assassinato e a compra posterior pela própria M A ­C H I N E C O T T O N dos equipamentos que ele havia instalado na Fábrica da Pedra, em Alagoas, jogando a maquinaria dentro da própria cachoeira; suprema ironia: a cachoeira foi berço e túmulo da tentativa de ruptura dos padrões de subordinação ao capitalismo imperialista. ( 3 4)

As conseqüências para a reprodução do capital açucareiro-têxtil do Nordeste foram mais danosas e mais profundas no nível das rela­ções de produção. Nenhuma economia industrial - no sentido dado por Marx a esse conceito - pode expandir-se senão sob a condição de que se venha a constituir um equivalente geral, que se transforma em dinheiro e capital-dinheiro, nos circuitos da produção e da circulação.

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Essa mercadoria específica não é um bem, no sentido neo-clássico do termo. É a constituição da mercadoria específica como força-de-trabalho que confere ao capitalismo sua elasticidade, que será tratada teoricamente por Marx no Terceiro volume de O Capital, sob a forma da teoria dos preços de produção. A solidariedade entre valor e preço, com os desvios que estes podem apresentar em relação àqueles, so­mente se mantém porque o que flutua é na aparência os preços, mas na realidade as relações e proporções entre trabalho pago e trabalho-não-pago; é a taxa de mais-valia, em suma. Essa flutuação apenas pode ocorrer porque a força-de-trabalho converteu-se ela própria em uma mercadoria. Essa breve digressão serve para apontar o fato de que, emergindo a economia do "Nordeste" algodoeiro-pecuário, que se centrava nas formas de reprodução já descritas, produziu em pri­meiro lugar uma mão-de-obra que, pelas flutuações internacionais da economia algodoeira-pecuária, converteu-se parcialmente em força-de-trabalho disponível nas entressafras para alugar-se na produção da cana; a constituição desse semiproletariado levou para o coração da economia capitalista do açúcar-têxtil uma forma de mão-de-obra que não era força-dff-trabalho, que não era totalmente mercadoria, já-que cuidava de sua própria subsistência. Tendo agora como produtor um contendor não-antagônico, o capital industrial do "Nordeste" açuca-reiro-têxtil caiu na armadilha preparada pela " reg ião " que lhe era concorrente na hegemonia das forças produtivas e das relações de pro­

dução; e recriou, no seu interior, formas de trabalho semi-compulsórias, o "cambão" , mercados "cat ivos" de trabalho nas usi­nas ( 3 5 ) , formas de apropriação e expansão do trabalho não-pago ca­racterizadas pelo "barracão", em que o trabalhador passou a ser pago em espécie. Recriou, portanto, formas de defesa anticíclicas não-capitalistas: não ocorria o desemprego, nas crises da economia açuca-reira: ocorria apenas a volta de parte da população trabalhadora às "economias de subsistência", a formas quase-naturais. Essas formas de defesa foram-lhe extremamente eficazes para não desaparecer, mas cobraram seus direitos na medida em que a impediam de expandir-se.

Existe aqui um aspecto que deve ser estendido. Essa necessidade decorre da crítica dos meus colegas, José Arthur Gianotti e Vinicius Caldeira Brant, que me apontaram o "equívoco lúcido" introduzido com a questão do equivalente geral. É evidente que a força-de-trabalho não pode ser o equivalente geral, sobretudo no capitalismo, embora em algumas economias coloniais onde o trabalho escravo foi introduzido, tenha este funcionado, em alguns casos e momentos, como moeda. A força-de-trabalho no capitalismo não pode ser o equi­valente geral, porque não é a força-de-trabalho que compra todas as mercadorias: ela está presente nas demais mercadorias, mas quem compra as últimas é o produto do trabalho da força-de-trabalho, a mais-valia. Não só o dinheiro, porém, é o equivalente geral no capita­lismo: neste, o dinheiro é equivalente geral apenas quando se transfor-

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ma em capital-dinheiro, isto é, um dinheiro pressuposto metamorfo-seado, valorizado, pela mais-valia. Mesmo quando, para os trabalha­dores, o dinheiro funciona apenas como meio de compra das mercado­rias para sua reprodução e, portanto, para os trabalhadores este di­nheiro não é capital-dinheiro, a negação consiste em que como meio de compra para os trabalhadores ele é simultaneamente capital-dinheiro para os capitalistas, que produzem as mercadorias que serão compra­das pelos trabalhadores.

O aspecto a que se procura dar ênfase, com essa discussão, é o de que a hegemonia do Centro-Sul sobre a burguesia industrial do Nor­deste começa a ocorrer exatamente pela troca de mercadorias, pela in­vasão de mercadorias produzidas no Centro-Sul, onde a produtivida­de do trabalho estava em crescimento. O "fechar-se" de uma fronteira nacional, que é a marca peculiar dos anos pós-30, a reposição do capi­tal constante - que é o que faz avançar a produtividade do trabalho, em primeiro lugar e/ou simultaneamente com o barateamento das mercadorias de consumo das classes trabalhadoras - será determinada pelos setores - ou, no caso, "regiões", onde a produtividade do traba­lho é mais alta. Essa produtividade percola por toda a estrutura da produção apenas e quando a própria força-de-trabalho, como merca­doria na sua plenitude, consome outras mercadorias. É esse segredo dialético do rebaixamento do custo de reprodução da força-de-trabalho, sem que se altere a chamada distribuição funcional da renda capital e trabalho. É neste sentido que é permissível dizer que, entre "regiões", uma produtividade do trabalho mais alta numa delas con­verte-se numa espécie de novo equivalente geral, o qual, por suas deter­minações quantitativas, antecipa no capital-dinheiro pressuposto os resultados no produto, ou seja, a taxa de mais-valia e a taxa de lucros.

Essas diferenças fazem parte do que aqui se está chamando "especi-ficidades" regionais, ou "regiões": enquanto ocorre no Centro-Sul esse desdobramento e aprofundamento da força-de-trabalho como mercadoria, no Nordeste açucareiro-têxtil essa nova circularidade vê-se embotada pelo fato de que a forma do capital ali predominante acha-se empatada pelas formas não-capitalistas de reprodução da pró­pria força-de-trabalho. A ruptura da " reg ião " açucareira-têxtil, po­rém, no sentido de sua invasão pelas mercadorias do Centro-Sul e, portanto, da imposição da nova forma de circularidade do capital que se projeta e introjeta na própria mercadoria força-de-trabalho, não se dá automaticamente; isto é, a troca de mercadorias, mesmo quando, uma delas contém composição orgânica do capital superior, é insufi­ciente: as classes sociais hegemônicas no espaço de uma " reg ião" - e essa hegemonia faz parte ela mesma do conceito de " reg ião" - dis­põem de defesas para além da inferioridade da produtividade da sua força-de-trabalho. A ruptura requer, para se completar, a imbricação dialética de nova hegemonia de um capital extremamente superior, e simultaneamente a erosão insuportável das condições em que a "re-

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g ião" mais atrasada reproduz sua força-de-trabalho; requer, em suma, a quebra da hegemonia política das classes dominantes locais. Este é o ponto que se estudará em seção posterior deste trabalho, quando se tratar das condições de criação da SUDENE .

Não foram afetadas apenas as relações de produção no roteiro dessa involução, utilizada aqui a expressão no sentido de não-expansão; a economia burguesa do "Nordeste" açucareiro-têxtil, as­sim como a do "Su l " não-cafeicultor, não conseguiu transformar seu produto, sua mercadoria, no equivalente geral de toda a economia e, portanto, não encontrava meios de financiar a expansão do capital. Em que sentido pode ser entendido esse abortamento? Havia dinheiro na economia brasileira, sem nenhuma dúvida; mas sua forma de equi­valente geral ocorria nas relações internas-externas; em outras pala­vras, o equivalente geral da economia brasileira era a libra, e não o mil-réis. Os excedentes, na circulação do dinheiro e na possibilidade de sua transformação em capital-dinheiro, eram portanto aplicados em ouro, em libras esterlinas, em letras de câmbio que financiavam a im-portação-exportação, e não em alguma forma que facilitasse a circula-ção de mercadorias de realização interna e portanto o fluxo de capitais para a inversão na produção dessas mercadorias.

A ambigüidade que se instalou no coração da economia burguesa do "Nordeste" açucareiro e têxtil, tanto no nível das relações de pro­dução quanto no nível de desenvolvimento das forças produtivas, transferiu-se por inteiro para as classes dominadas, o operariado das usinas e o semiproletariado (simultaneamente um semicamponês) da produção da cana. Essa ambigüidade fundou uma cisão no conjunto dos trabalhadores: enquanto o operariado da produção do açúcar lu­tava por salários, o semiproletariado da produção da cana lutava por terras. A burguesia tirava dessa cisão as "castanhas do fogo com mão alheia": a imbricação salários-culturas de subsistência contribuía, na verdade, para manter baixos os salários reais, mas seu resultado a lon­go prazo será danoso para a acumulação, pois esta passou a não re­pousar sobre os aumentos da produtividade do trabalho. A luta de classes opunha dois pares de agentes no coração da mesma "região" , e refletiu-se de um lado na impossibilidade de organizações dos traba­lhadores em sindicatos e, de outro, na impotência da burguesia; esta, no desdobramento dessa dialética, foi gradualmente subordinando-se tanto à própria oligarquia agrária algodoeira-pecuária, quanto às no­vas determinações da reprodução de sua riqueza. Essa burguesia tor-nou-se no limite, para usar um termo paradoxal, oligárquica também: o que era condição de sobrevivência para o "Nordeste" algodoeiro-pecuário tornou-se também sua condição de sobrevivência. Torna­ram-se indistintos os limites entre uma e outra "reg ião" . A condição quase natural desse desdobramento foi também sua passagem para uma posição subalterna, não-hegemônica, com a conseqüente perda do poder político. A última imagem que o país como um todo tinha da

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burguesia açucareira-têxtil do Nordeste, antes da emergência da SU­DENE, era a de uma classe social perdulária, que esbanjava nos car­navais do Recife o financiamento recebido dias antes no Banco do Brasil, já sem nenhuma missão histórica a cumprir. Ironicamente, esse esbanjamento era sinal contraditório de decadência e não de vitalida­de. Pilar da constituição de uma classe social burguesa nacional, sua decadência começa a aparecer, aos olhos da burguesia em expansão na " reg ião" industrial de São Paulo, como um risco para a sobrevivência de todo o Brasil capitalista.

2. A intervenção do Estado:

O Instituto do Açúcar e do Álcool

Nos primórdios da década de 30 deste século, na seqüela da Re­volução, o Estado intervirá na economia açucareira do país como um todo, criando o Instituto do Açúcar e do Álcool, cuja missão primor­dial era na verdade estabelecer uma divisão regional do trabalho da atividade açucareira em todo o país, emergindo já com muita força a produção de açúcar nos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Essa intervenção caracterizava-se por estabelecer um mecanismo de quotas de produção para cada uma das "regiões" açucareiras do país, garantir preços mínimos, relações entre fornecedores de cana e as usi­nas, e financiamento da produção. A direção mais alta do I A A , sigla mediante a qual passou a figurar no dicionário institucional-administrativo do Estado e da economia, esteve entregue desde seus primórdios, e até há bem pouco tempo, a membros da burguesia açu­careira do Nordeste, sobretudo pernambucanos. A ironia da História consiste aqui precisamente no fato de que foi sob a direção nominal de membros da burguesia açucareira do Nordeste que o eixo da produção do açúcar passou do Nordeste para a " reg ião" industrial comandada por São Paulo.

Foi, sem dúvida, uma intervenção para a mudança que, ao lado de fatores específicos da reprodução do capital na " reg ião" de São Paulo, contribuiu para torná-la hegemônica na produção do açúcar à escala nacional. Ainda aqui, uma vez mais, essa intervenção não pode ser caracterizada como "planejamento", no que se refere à reprodução do capital na " reg ião" açucareira do Nordeste, se bem que no sentido da mudança já assinalada revista-se de características "planejadas". Não pode também ser caracterizada, exatamente pelos mesmos motivos por que a intervenção sob o D N O C S não foi para a economia algo­doeira-pecuária; em outras palavras, a intervenção do I A A na econo­mia do "Nordes te " açucareiro não mudou a forma da reprodução do capital, contribuindo antes para reforçar certas características "primi­tivas" que tal economia tinha recriado em seu interior. No embate de suas próprias contradições com a acumulação do capital na " reg ião"

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do café e com a emergência do "Nordeste " algodoeiro-pecuário. Uma breve descrição dos mecanismos utilizados pelo I A A pode forne­cer os elementos de concreção dessa política, que terminou por reiterar os elementos "primitivos" do "Nordeste" açucareiro.

O mecanismo básico do I A A - que, diga-se de passagem, tinha também como um dos seus objetivos básicos defender a atividade açu-careira no Nordeste - era a fixação de quotas de produção para as di­versas "regiões" produtoras, até o debate de que, dentro de cada "re­gião", cada unidade produtora, cada usina, taníbém tinha sua quota pré-determinada. Como a etapa iniciou-se nos anos trinta, logo após um breve período de transição em que a luta pelo poder ainda não estava completamente definida entre os "barões" do café e a nova burguesia industrial, a acumulação de capital na " reg ião" industrial de São Pau­lo caminhou celeremente. Foi garantida por novos mecanismos de proteção do Estado Nacional, e parte dos capitais empregados na ati­vidade cafeicultora desviou-se rapidamente para a produção de açú­car; isto também pode ser interpretado, como parte de um estratagema político que visava de certa maneira desacelerar a produção do café, debilitar a posição dos "barões" na estrutura do poder; enfim, criar contradições entre as várias formas do capital no coração da própria " reg ião" que se industrializava. Pouco importa que a origem dos capi­tais fosse a mesma: o importante aqui, como em outros casos, é que sua reprodução se diferenciasse, diferenciando em conseqüência os in­teresses, e fundando classes sociais díspares, ainda que dos mesmos troncos familiais.

Nestas condições, e tendo por pano de fundo uma diferenciação progressiva nas relações de produção no interior de cada uma das "re-giões", o mecanismo de proteção do IAA contribuiu, na verdade, para acelerar a capitalização da economia açucareira da " reg ião" de São Paulo, e manter as mesmas condições de reprodução da economia açu­careira do "Nordeste" . Em outras palavras, enquanto a débâcle do ca­fé rapidamente "descolonizou" as relações de produção, isto é, liqui­dou com relações de trabalho típicas do colonato, na "região" do "Nordeste" açucareiro, os mecanismos do I A A serviram para reforçar as características arcaicas que ela havia recriado como mecanismo de defesa. O I A A passou a estabelecer preços mínimos - vale a pena re­cordar que sua alta direção estava entregue a elementos da própria burguesia agroindustrial do Nordeste - que na verdade defendiam o produtor marginal, isto é, o produtor que produzisse a custos mais al­tos. Tais condições de monopólio ou oligopólio, isto é, de preços fixa-dos em todo o território nacional, não permitindo às "regiões" con­correrem umas com as outras na base do preço, os preços mínimos para o Nordeste transformaram-se em preços máximos para a produ­ção do açúcar na " reg ião" industrial de São Paulo. É fácil perceber que essa oligopolização da demanda ou um oligopsônico aumentou os diferenciais de acumulação em favor da " reg ião" onde os aumentos da

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produvitidade do trabalho eram maiores. A questão residia, uma vez mais, no caráter "arcaico" que a economia do "Nordeste " açucareiro tinha incorporado, principalmente no seu setor de produção de cana, onde a existência de um semiproletariado havia sido condição de de­fesa anticíclica de caráter anticapitalista. Estudos realizados por di­versos especialistas do próprio I A A demonstraram até à saciedade que os diferenciais de produtividade do trabalho na ativi-vidade industrial propriamente dita, de produção do açúcar, não eram muito grandes entre as duas "regiões", o Nordeste e São Paulo, podendo o Nordeste até levar vantagem devido aos salários reais mais baixos. Onde os diferenciais de produtividade do trabalho já eram grandes e começaram a agravar-se, era exatamente no setor produtor agrícola da cana. Conforme já se assinalou, portanto, o que se havia revelado como um eficaz mecanismo para a defesa, para a não-desaparição da economia açucareira do Nordeste, revelava-se ineficaz como mecanismo para a expansão. O arcaísmo cobrou seus direi­tos ( 3 6 ) .

Progressivamente, cada unidade produtora que não conseguisse atingir suas quotas de produção devolvia ao I A A a faculdade de atri­bui-la a outra; o mecanismo de concentração e centralização do capi­tal em plena atuação na " reg ião" industrial de São Paulo absorveu gradualmente as quotas que o Nordeste não conseguia preencher, e o próprio debilitamento da acumulação de capital no "Nordeste " açu­careiro impediu o mesmo movimento de concentração e centralização do capital. As famosas "economias externas" incrementadas na "re­g ião" industrial de São Paulo, sob a forma de menores custos de trans­porte entre centros produtores e centros consumidores, às quais tem-se atribuído relevante papel na mudança do centro de gravidade da pro­dução do açúcar à escala nacional, não foram senão mecanismos de reforços secundário: sob condições de oligopsônio, essas "externalida-des" se reforçavam; sem elas, teriam sido de eficácia pouco significati­va, já que as economias de transporte não poderiam, por definição, Te-fletir-se nos preços ao consumidor. O próprio financiamento que o IAA passou a dar ao parque açucareiro não representou, por fim, ne­nhuma mudança significativa para o " N o r d e s t e " açucareiro, servia apenas para financiar o mesmo mecanismo de reprodução do setor agrícola da atividade como um todo, nos mesmos termos. Em outras palavras, enquanto para a " reg ião " industrial de São Paulo, o financiamento do I A A poderia financiar tanto o capital variável quan-to o constante, no "Nordeste" açucareiro financiava êle a reposição arcaica das relações de produção e, portanto, dialeticamente tornava nula a possibilidade de financiar ou, em outras palavras, "moderni­zar" o capital constante das usinas. A própria manutenção de um agente como o fornecedor de cana e os tradicionais "senhores de enge­nho" que não haviam conseguido dar o salto em direção à condição de "usineiros", reforçava nos esquemas do I A A o arcaísmo das relações

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de produção no Nordeste açucareiro, embotando-lhe a expansão das forças produtivas justamente no setor agrícola da agroindústria, que apresentava as maiores desvantagens em relação a São Paulo. O forne­cedor de cana ou o "senhor de engenho" é uma espécie de lúmpen-burguês; transformou-se na verdade num "renter", cuja geração de ri­queza residia muito mais na renda da terra que no capital. A imbrica-ção "senhor de engenho" + força-de-trabalho semicamponesa ou, em outras palavras, semiproletária, selou definitivamente as possibilida­des de melhoria da produtividade do trabalho num importante seg­mento da produção agrícola da agroindústria.

É significativo que a Revolução de 30 vá encontrar no poder de um Estado como Pernambuco, centro de gravidade desse "Nordeste" açucareiro, representantes daquela lúmpen-burguesia açucareira, como o senhor Estácio Coimbra; e depois, após o breve período da in­tervenção de Carlos de Lima Cavalcanti, ele próprio um decadente "barão" do açúcar, chegarão apenas ao ápice do poder, naquele como em outros Estados do " N o r t e " açucareiro e do "Nordeste " algodoei­ro-pecuário, representantes da oligarquia algodoeira-pecuária, até os anos sessenta. Sem se fazer uma redução simplista entre o movimento da reprodução do capital e a representatividade política, não deixa de ser surpreendente o paradoxo. Paradoxo este que pode ser interpretado como um primeiro sintoma da "integração nacional", sob a égide da burguesia da " reg ião " industrial de São Paulo, cujas possibilidades de hegemonia se realizariam mais facilmente eliminando da estrutura do poder um possível concorrente burguês. As relações, portanto, entre Estado e sociedade civil no Nordeste tomam uma feição extremamente contraditória: oligarquia algodoeira-pecuária e Estado se interpene-travam no "mode lo " DNOCS , enquanto o Estado, controlado agora pela burguesia industrial de São Paulo, praticava uma política de re­forço ao debilitamento das bases autóctones da burguesia regional do Nordeste, requisito para a expansão capitalista em escala nacional. Olhando-se esse movimento pelos olhos míopes dos interesses "regio­nais", não se podia deduzir, aparentemente, para que lado caminhava o Estado no Nordeste; apenas com as lentes de aumento do movimen­to de acumulação, concentração e centralização do capital à escala na­cional é que se consegue apanhar todo o seu significado.

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Notas

(27)NOVAES, Fernando - Estrutura e Dinâmica do Antigo Sistema Colonial in Ca­derno CEBRAP 17. S. Paulo, Edit. Brasileira de Ciências, 1974.

(28)0 debate e controvérsia sobre o caráter feudal ou não-feudal da economia colo­nial no Brasil, e sua projeção até o presente, está excelentemente apresentado em PAL­MEIRA, Moacir - Latifundium et Capitalisme. Lecture critique d'un dêbat. Paris, thése de 3e. cycle presentée a la Faculté des Lettres et Sciences Humaines de l'Université de Paris, 1971, mimeo.

(29)Ver sobre esse aspecto reflexionante do capital, GIANOTTI, José Arthur - O ardil do trabalho, in Estudos CEBRAP 4. São Paulo, Edit. Brasileira de Ciências Ltda., 1973, e o próprio Marx, El Capital, op. cit.

(30) MARX, Karl - Formas que proceden a la producción capitalista; introdução de Eric J. Hobsbawn. Cordoba, Ed. Pasado y Presente, 1972. ENGELS, F. — Carta de En-gels a Kautsky, de 16 de fevereiro de 1884, in Karl Marx y F. Engels - Sobre el sistema colonial del capitalismo, citado por BARTRA. Roger - El Modo de Producción Asiático. México, Ed. Era, 1969.

(31)CARDOSO, Fernando Henrique - Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridio­nal. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1962.

(32) FURTADO, Celso - Formação Econômica do Brasil, op. cit. (33) OLIVEIRA, Francisco de - A emergência do modo de produção de mercado­

rias... op. cit. Ver também GNACCARINI, José C. - "A economia do açúcar. Processo de trabalho e processo de acumulação", in Boris Fausto, organizador, op. cit., onde tan­to a breve expansão quanto os sinais de decadência da indústria do açúcar no Nordeste são estudados.

(34) Ver sobre Delmiro Gouveia, de Mauro Mota, "A "Estrêla" de Pedra: Delmi-ro Gouveia, civilizador de terras, águas e gentes.", in Boletim nº 9, do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, Recife, 1961.

(35)Ainda em nossos dias, essas práticas são utilizadas. Sobre as formas dos merca­dos de trabalho "cativos" nas usinas do Nordeste, ver a interessante tese de José Sérgio Leite Lopes - O Vapor do diabo: o trabalho dos operários do açúcar. Editora Paz e Terra, Rio, 1976, uma abordagem antropológica da relação operário-patrão e da situação do operariado na zona açucareira do Nordeste.

(36) Ver COUTINHO, Nelson - A Agro-Indústria Canavieira do Nordeste, in Anais do Seminário para o Desenvolvimento do Nordeste. Vol. I. Rio de Janeiro, Edição Desenvolvimento & Conjuntura, Confederação Nacional da Indústria, 1959.

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IV - EXPANSÃO CAPITALISTA NO BRASIL E DESENVOLVIMENTO REGIONAL DESIGUAL

1. A mudança pós-30: desenvolvimento industrial do Centro-Sul e a redivisão regional do trabalho à escala nacional

É já um consenso entre os estudiosos da história brasileira, que a Revolução de 1930 foi a "revolução burguesa"; que ela tenha partido e se viabilizado pela ruptura do pacto oligárquico, exatamente tendo como centros deflagradores e seus agentes principais as oligarquias da "região" Extremo-Sul - Rio Grande do Sul -, de Minas Gerais, uma periferia da " reg ião " do café, e de oligarquias de Estados como a Pa­raíba e Pernambuco( 3 7 ), indica apenas que os interesses econômicos dessas "regiões" e sua expansão viam-se sistematicamente coartados pela política econômica do café, cujo valor se realizava externamente, em contraposição à produção de valor das outras "regiões", cuja reali­zação era de caráter interno. O caso de Minas Gerais é um pouco me­nos claro, mas é possível reconhecer que a preeminência do capital fi­nanceiro inglês e norte-americano barrava o passo ao avanço do capi­tal bancário mineiro, que se havia constituído exatamente na confluên­cia da produção de subsistência do interior de Minas Gerais e do abastecimento de grandes cidades, como o Rio de Janeiro. O capital bancário mineiro se havia formado apropriando, na esfera da circula­ção, o excedente do produto social da economia agrícola e pecuária de Minas em sua passagem para o abastecimento de outras regiões do Brasil, notadamente o Rio de Janeiro, e começava a desviar-se para fi-nanciar o próprio café. É, em si mesmo, um caso interessantíssimo de análise e investigação, que escapa aos propósitos deste trabalho, mas cujas pistas teóricas encontram-se em vários escritos de Marx e Engels, particularmente nos estudos referentes à formação do capital financei­ro francês e sua ligação com a economia camponesa francesa( 3 8).

Os estudos do desenvolvimento industrial da " reg ião" que passou a denominar-se, na literatura especializada, como Centro-Sul, e que ti-

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nha São Paulo como centro de gravidade, são abundantes e dispensam exaustiva repetição. Importa reter suas características principais. A primeira é o fato de que, o impulso da continuada expansão do café, debilitado nos termos de sua relação com o capital comercial e finan­ceiro inglês e norte-americano - o café conheceria outra inusitada ex­pansão na década dos cinqüenta, mas já agora em termos completa­mente distintos - crise essa que foi uma crise de acumulação e não de demanda, como a maioria dos estudiosos a interpretam, emerge o modo de produção de mercadorias em todo o seu vigor, na direção da diferenciação da divisão social do trabalho marcada pela indústria. Agora, para uma produção de valor que se realizava internamente, criam-se os mecanismos financeiros que permitem essa realização e sua expansão. Na verdade, em termos teóricos, a produção de merca­dorias de realização interna impunha seu equivalente geral a todo o conjunto da economia. A inflação, que é crônica desde então, é apenas um entre outros sintomas dessa imposição do equivalente geral( 3 9 ) .

Quanto às relações de produção, por outro lado, a legislação tra­balhista trata de tornar a força-de-trabalho uma mercadoria comple­tamente desenvolvida e específica, com preços uniformizados, guar­dando diferenças regionais, dissolvendo o dualismo que tendia a for­mar-se entre os distintos mercados de trabalho; persistiam diferenças regionais, diferenças entre cidade e campo, mas isso está muito longe do dualismo; a referência básica passou a ser o custo de reprodução da força-de-trabalho, e as gradações no mercado urbano da força-de-trabalho partiam do mínimo de subsistência necessário à reprodução. Essa regulamentação das relações capital-trabalho conferiu, por si mesma, enorme potência à acumulação, que se materializou na indús­tria, nos equipamentos, na criação da infra-estrutura necessária( 4 0). Potenciada por essa regulamentação e materializada nas próprias fábricas, para a expansão das quais a emergência da II Guerra Mun­dial serviu como substituto das barreiras alfandegárias, a acumulação de capital na indústria do Centro-Sul "disparou". Já nos anos imedia­tamente após a Revolução de 1930, o produto industrial real cresceu a taxas de 11% ao ano( 4 1 ) . A conjugação desses fatores, salários reais mantidos baixos e produtividade do trabalho em crescendo, deu lugar a taxas de acumulação reais muito superiores àquelas calculadas pela contabilidade nacional.

O desenvolvimento industrial da " r eg ião " de São Paulo começou a definir, do ponto de vista regional, a divisão regional do trabalho na economia brasileira, ou mais rigorosamente, começou a forjar uma divisão regional do trabalho nacional, em substituição ao "arquipélago" de economias regionais até então existentes, determinadas sobretudo pelas suas relações com o exterior. Derrocaram-se as barreiras alfan­degárias existentes entre os Estados, na rota das transformações opera­das pela Revolução de 1930, pois existiam na forma de um imposto es­tadual sobre as importações provenientes de quaisquer outros Esta-

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dos; instituiu-se o Imposto de Consumo sobre todas as mercadorias produzidas no país, e aboliu-se a capacidade que detinha cada Estado de legislar sobre comércio exterior. Estava-se, em verdade, em presen­ça da implantação de um projeto de estado nacional unificado, em sua forma política, que recobria a realidade de uma expansão capitalista que tendia a ser hegemônica( 4 2); voltada agora para uma produção de valor cuja realização era sobretudo de caráter interno, podia a mesma impor ao conjunto do território nacional o seu equivalente geral: essa imposição do equivalente geral criava o espaço econômico capitalista nacional unificado.

A imbricação Estado-burguesia industrial da " reg ião" Sul, agora não mais uma dentre outras "regiões", mas o centro capitalista nacio­nal "par excellence", é mais que evidente nessa etapa; não se trata de nenhuma conclusão "a posteriori". Tal evidência surgiu não apenas na criação dos mecanismos político-institucionais, que davam as con­dições para viabilizar a imposição do equivalente geral da economia industrial ao conjunto do país, mas na ação suplementar que, como Estado em sentido restrito imprimia a seus gastos: estradas de roda­gem que tornavam fisicamente possível a circulação nacional das mer­cadorias produzidas no Centro-Sul é, ou foi, ao lado da quebra das "barreiras alfandegárias" entre os Estados, um outro fator que refor­çou o poder de competição das mercadorias produzidas no Centro-Sul, vis-a-vis àquelas produzidas nas outras "regiões". Não é o mo­mento agora de tratar a especificidade dessa imbricação ao nível da es­trutura social e política que se geria no Centro-Sul; esse ponto será abordado mais adiante, mas é evidente que essa imbricação impunha outro caráter às relações de produção, à estrutura de classes, à estrutu­ra do poder e, sobretudo, à teia de relações entre classes dominantes e classes dominadas, à burguesia industrial de um lado e ao proletariado urbano de outro, para somente citar os dois principais atores e agen­tes.

2. O aumento das disparidades regionais como sinal e

momento da integração nacional

A expansão do sistema capitalista de produção ocorre mediante ciclos sucessivos, determinados pela mudança na composição orgânica do capital. Tais ciclos, ou o ciclo capitalista, de forma genérica, são a forma que tomam as mudanças na composição orgânica do capital; elas correspondem, por sua vez, ao movimento de concentração e cen-tralização do capital.

No momento, pois, em que a expansão do sistema capitalista no Brasil tem seu locus na " reg ião" Sul comandada por São Paulo, o ciclo toma espacialmente a forma de destruição das economias regionais, ou

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das "regiões". Esse movimento dialético destrói para concentrar, e cap­ta o excedente das outras "regiões" para centralizar o capital. O resul­tado é que, em sua etapa inicial, a quebra das barreiras inter-regionais, a expansão do sistema de transportes facilitando a circulação nacional das mercadorias, produzidas agora no centro de gravidade da expan­são do sistema, são em si mesmas tantas outras formas do movimento de concentração; e a exportação de capitais das "reg iões" em estagna­ção são a forma do movimento de centralização. Aparentemente, pois, sucede de início uma destruição das economias "regionais", mas essa destruição não é senão uma das formas da expansão do sistema em es­cala nacional.

Nota-se em tais condições de agravamento do chamado aumento das disparidades regionais de crescimento( 4 3); em verdade, rigorosa­mente, não se está em presença de nenhuma estagnação das "econo­mias regionais"; o que existe e impõe sua lei é a nova forma de cresci­mento do capital. A estagnação, quando existe, é ela própria uma fase do ciclo. Quanto às relações entre a " reg ião " Centro-Sul comandada por São Paulo e o "Nordeste " , tanto açucareiro-têxtil quanto algo­doeiro-pecuário, esse movimento começa exatamente pela destruição dos capitais no "Nordeste" : são fábricas que não conseguem competir em preço e qualidade, são atividades antes protegidas pelas barreiras, são as próprias formas anteriores de reprodução do capital, nos " N o r ­destes", que são postas em xeque; suas circularidades específicas de re­produção são ultrapassadas e dissolvidas pela nova forma de reprodu­ção do capital da " reg ião " em expansão, tendo em vista o caráter cu­mulativo que os aumentos da produtividade do trabalho imprimem ao processo de geração de valor; nisto reside a metamorfose da imposição do equivalente geral a todo o conjunto da economia, isto é, na troca de valores iguais ganha o que tem em si maior produtividade do trabalho. Claro está que esse movimento não é puramente econômico, no senti­do em que os economistas o empregam; sem o correspondente movi­mento na estrutura do poder, sem a captura do Estado pela nova coli­gação de forças que reproduzem o capital de forma agora diferente, a lei do valor não se impõe sozinha( 4 4).

As disparidades são, concretamente, o sinal do movimento dife­rencial de acumulação nas relações entre os "Nordestes" e o Centro-Sul, e assiste-se à destruição ou fechamento de fábricas, à invasão de produtos agrícolas do Centro-Sul, a ritmos de acumulação diferenciais que implicavam, no final, no predomínio das mercadorias do Centro-Sul sobre as dos "Nordestes" , em todos os setores. "Nordeste " açu­careiro perde posição de forma alarmante, o próprio setor têxtil entra em decadência, o próprio "Nordes te " algodoeiro-pecuário começa a perder terreno para o algodão herbáceo produzido no Centro-Sul. A diferença desse processo, quando comparado aos efeitos que a expan­são capitalista do Centro-Sul exerceu sobre outras "regiões", é ilustra­tiva: o efeito inicial destruidor sobre os "Nordestes" somente ocorre

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porque nestes existiam "economias regionais", com circularidades es­pecíficas do processo de reprodução. Não se nota o mesmo efeito em relação a uma região como o Centro-Oeste: aqui, a redivisão regional do trabalho comandada pela expansão capitalista do Centro-Sul to­mou claramente as formas de "cr iação" e não de "destruição": é a ex­pansão pecuária em direção a Minas e Goiás, a do café e da pecuária em direção a Mato Grosso; é a expansão do café sobre o Paraná. Já no que se refere ao Extremo-Sul, por exemplo, tendo o Es­tado do Rio Grande do Sul como locus de uma certa circularidade es­pecífica da produção de valor, os efeitos da "integração nacional" são muito semelhantes ao que se passou em relação ao Nordeste, defasado talvez de uma década: a recente grita contra a "desgauchização" da economia sulina não é outra coisa senão um sinal da homogeneização do espaço econômico nacional, a dissolução da circularidade específi­ca do modo de crescer da economia gaúcha.

Convém insistir na questão da integração: em passagem anterior, às páginas 64-65, explicitamos a utilização que está sendo feita do con­ceito de equivalente geral; o suficiente, cremos, para que não se arme uma confusão ou uma interpretação imprópria da utilização; é, na ver­dade, como se o novo custo de reprodução da força-de-trabalho no Centro Sul funcionasse como um equivalente geral que determina, agora, os limites e as possibilidades de expansão das outras "regiões" . Entendida assim, a integração de que estamos falando é um momento do processo de "nacionalização" do capital; isto é, enquanto as econo­mias regionais ligaram-se ao Exterior, o capital internacional se reali­zava "regionalizando-se"; quando uma das "regiões" assume o co­mando do processo de expansão do capitalismo, voltado agora sobre­tudo à realização interna do valor, há necessariamente que realizar um processo de "nacionalização" do capital. Este processo de "nacionali­zação" do capital estava parcialmente cumprido, seja porque a auto­nomia política dos Estados federados havia sido gradualmente reduzi­da, característica política mais marcante do pós-30, seja porque, do lado da força-de-trabalho, os movimentos migratórios que se intensifi­cam no pós-guerra haviam transformado uma "população para as re­giões" em uma "população para a nação". Restava, para completar a "nacionalização" do capital, submeter o próprio capital das outras "regiões" às leis de reprodução e às suas formas, que passavam a ser predominantes na "reg ião" que assumiu o controle do processo de in­dustrialização. Tal "nacionalização" operou-se por vários modos: ora succionando os excedentes de capital que não podiam "reproduzir-se"* nas suas "regiões" originais, o que é fato notório na história nacional, ora impondo as mercadorias de produção da " reg ião" que se indus-trializava sobre as que se produziam nas demais "regiões" e, para completar, penetrando como capital nas outras "regiões": isto é, pene­trando como pressuposto: o simples succionamento dos excedentes de capital e o simples movimento de balança comercial entre as "regiões"

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eram insuficientes para completar o processo de "nacionalização". É tão necessário penetrar como capital propriamente dito, quanto obri­gar os capitais das "regiões" a serem capturadas a procurar seguir os passos da " reg ião " que busca ser hegemônica, nos pressupostos e no produto: isto é, nas formas do capital-dinheiro e nas taxas de mais-valia e de lucro. Frente a impossibilidades que podem expressar-se de vários modos haverá, no limite, destruição dos capitais das "reg iões" que estão sendo invadidas pelo processo de "nacionalização".

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Notas

(37) Ver FAUSTO, Boris - A revolução de 1930: Historiografia e história. S. Paulo, Brasiliense, 1970.

(38) Karl Marx, The Civil War in France, in Karl Marx, The First International A After. Political Writings Volume III. Edited and introduced by David Fernbach. The Marx Library. Vintage Books. A Division of Random House, New York, 1974 e The Class Slruggles in France, 1848 to 1850, in Karl Marx, Surveysfrom Exile, Political Wri­tings Volume 2, Penguin/Allrn Lane, 1973.

(39) Ver OLIVEIRA, Francisco de - "A emergência do modo...", op. cit. (40) Ver OLIVEIRA, Francisco de - A economia brasileira: Crítica à razão dualista

- in Estudos CEBRAP 2. São Paulo, Editora Brasileira de Ciências, 1972. (41) Ver VILLELA, Annibal V. e SUZIOAN, Wilson, op. cit.

(42) A história de um país sem história é, na maior parte das vezes, uma mistifica­ção que pode servir a vários fins: assim é apresentada e interpretada, mesmo em níveis acadêmicos, a história brasileira. Suas classes sociais não existem e se existem não têm consciência de seus interesses; qualquer um dos que veiculam esse tipo de interpretação, aceitam e lêem, no entanto, a história da Revolução Francesa como o parto do capitalis­mo, realizado pela burguesia com o concurso de outras classes sociais; aceitam e lêem a história da Revolução de 1917, como o parto do socialismo, realizado pelo proletariado russo também com o concurso de outras classes sociais. Somente o Brasil, ou mais gene-ralizadamente, os chamados "subdesenvolvidos" são países, nestas versões, dirigidos pela "Mão da Providência". Assim é que, a maior parte das modificações operadas no pós-30 em direção simultânea da industrialização e da integração do mercado nacional, é interpretada como obra do acaso.

(43) É esse o núcleo da argumentação do documento Uma política de desenvolvimen­to econômico para o Nordeste, op. cit., com seus conseqüentes desdobramentos ideológi­cos. Alguns dos críticos da SUDENE e de Furtado, em especial, negaram o diagnóstico contido naquele documento, argumentando que Furtado havia tomado como base um período de baixa das atividades econômicas do Nordeste, com uma seca - a de 1953 -pelo meio; entretanto, tais críticos continuavam presos, sob outras bases estatísticas, do mesmo modelo de interpretação de Furtado. É inequívoco que as desigualdades aumen­tavam. Genival de Almeida Santos, trabalhando sobre as Contas Nacionais do período 1947/54, havia chegado às mesmas conclusões, de crescente distanciamento. Ver, do au­tor citado. Renda Social do Nordeste, in Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro 10(2), junho de 1956. O Nordeste de Genival de Almeida Santos, à época chefe do Gru­po de Contas Nacionais do IBRE, excluía Sergipe e Bahia. Ignácio Rangel apontou cer­teiramente para o aumento das disparidades como sinal de "integração", mas sua pró­pria visão tinha muito de "mão da Providência", e na tradição do ISEB, representava a ideologia da burguesia nacional, não se dando conta de que a referida "integração" era nacional mas seus agentes desbordavam a camisa-de-força da burguesia nacional. Ver, do autor, Financiamento dos empreendimentos regionais, in Anais do Seminário para o Desenvolvimento do Nordeste, vol. II, op. cit.

(44) Ver, sobre a formação dos Estados Nacionais, Maurice Dobb, A evolução do capitalismo, trad. de Affonso Blacheyre, 2ª ed. Rio, Zahar, 1971 e Vladimir Ilitch Lenin, Sobre el derecho de Ias Naciones a la autodeterminación e El Estado y la Revolucion, in Obras Escogidas, Tomo I e II, Ed. Progresso, Moscú, 1970, e a obra clássica de Frederico Engels, The Origin of lhe Family, Private Property, and lhe State, in Karl Marx and Fre-derick Engels. Selected Works in Three Volumes, Vol. III, Progress Publishers, Moscou, 1969.

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V - DESENVOLVIMENTO REGIONAL DESIGUAL E CONFLITOS DE CLASSE

1. Breve advertência

Será feita, aqui, uma tentativa para compreender como o desen­volvimento regional desigual da economia capitalista brasileira ou, o que é o mesmo, como a divisão regional do trabalho nacional dá lugar a conflitos de classe; em termos mais precisos, a luta de classes de cará­ter desigual funda-se na própria aceitação do método dialético. Tal de­sigualdade do conflito de classes não é apenas uma questão de grau, isto é, não implica em se dizer que, se na " reg ião" industrial que tenta impor sua hegemonia - seu equivalente geral, sua forma de reprodu­ção - ao conjunto da economia nacional, o conflito de classes passa a basear-se na nova especificidade das classes sociais que aparecem ago­ra como agentes políticos distintos; ou, mais concretamente, se na "re­g ião" industrial começa a aparecer de um lado uma burguesia indus­trial e de outro um proletariado urbano, nas outras "regiões" , e espe­cialmente no Nordeste, o conflito de classes tomará a mesma forma; sua própria subordinação criará as mesmas classes, e estas aparecerão como agentes e atores políticos, como na " reg ião" industrial; esse me-canicismo levaria à suposição de que as diferenças que surgem serão apenas de grau, isto é, existirá nas outras "regiões" uma burguesia mais fraca e um proletariado mais débil, menos organizado, menos combativo.

Um mecanismo desse tipo que, reconheça-se, foi de certa forma muito incentivado por uma classe de marxismo vulgar, está longe de cor­responder e de utilizar o método dialético em toda a sua riqueza; mais radicalmente, está longe de ser dialético. Infelizmente esse mecanismo penetrou a fundo, também, na interpretação da história política e so­cial do Brasil pós-30. A história política e social do Brasil foi exagera-

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damente "homogeneizada", uniformizada, do ponto de vista teórico, da chamada "interpretação" do Brasil, para além do que a própria tendência de homogeneização da reprodução do capital em escala nacional conduzia. O Brasil que se reconhece nessas interpretações é o Brasil "populista", de Norte a Sul, de Leste a Oeste; o Brasil da práti­ca política era o Brasil da burguesia "progressista", com uma missão histórica a cumprir: a de formar uma Nação, e um proletariado que deveria pactuar com ela taticamente para, no roteiro desse pacto, to­mar-lhe o poder na seqüência posterior. O Brasil que surgia do lado das teorizações conservadoras, reacionárias, de direita, ainda mais pobres maniqueístas, era reconhecido como um Brasil que substituiu a "estabilidade" do Segundo Império e da Primeira República pelo caos: burguesia que não sabia governar e proletariado que não sabia obedecer. Ironicamente, ambos os estilos de "interpretação" nascem das mesmas matrizes: a da concepção linear da História; e tornaram-se estas, por sua vez, meta-ideológicas: sem nenhuma capacidade para perceber o movimento real, o caráter das transformações, e portanto, formular programas políticos coerentes com seus próprios novos inte­resses de classe.

2. Sociedade, economia e Estado no Brasil do Centro-Sul

A expansão capitalista no Brasil no pós-30 e sobretudo na década de 50, que tem seu locus na " reg ião" industrial de São Paulo, cria pelo próprio movimento diferenciado da reprodução do capital uma estru­tura social que começa a diferenciar-se crescentemente e, simultanea­mente, pela lógica desse próprio movimento, começa a polarizar-se, assumindo essa polarização novas formas. O duplo movimento, de di­ferenciação e polarização, dá lugar à emergência de uma estrutura de poder que, no percurso da diferenciação-polarização toma ou reveste aparências de indiferenciação, fenômeno que algumas vertentes da so-ciologia e da ciência política indentificaram como o de uma anomia. Tal fenômeno ou aparência tinha como fundamentos, para os que sus­tentaram essa tese, de um lado uma classe dominante que não se dife­renciada em seus interesses, uma burguesia que havia nascido do café, uma industrialização que não entrava em conflito com a oligarquia agrária, um Estado que era dirigido por representantes dessas oligar­quias agrárias mas que impulsionava a industrialização; e de outro um proletariado de recente extração rural, cuja consciência de classe era embotada, seja pelo seu próprio movimento de migração campo-cidade, seja pela sua "inadaptação" ao meio urbano-industrial e, por­tanto, pela manutenção em meio urbano-industrial e, portanto, pela manutenção em meio urbano de uma "cultura" rural. A síntese dessa anomia era o populismo, encarado e interpretado como um simples expediente manipulatório; vale a pena ressaltar que não se reconhecia,

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como bem o assinalou Octávio Ianni, que o populismo não era, não eqüivalia à estagnação da luta de classes, da diferenciação-polarização de interesses, e com toda a probabilidade era muito mais a forma dessa diferenciação-polarização( 4 5).

O que é evidente, e dispensa tabelas estatísticas que reproduzam o óbvio, é que havia surgido, se consolidando pela expansão, uma bur­guesia industrial cujos interesses de reprodução do seu capital, de for­ma geral, não podiam mais ser confundidos com a forma de reprodu­ção do capital controlado pelas oligarquias, e que, por isso mesmo, havia capturado o Estado, levando-o a implementar sistematicamente políticas econômicas cujos objetivos eram o reforço da acumulação in­dustrial e cujos resultados, em grau surpreendente, corresponderam à-queles objetivos. Uma política cambial que sistematicamente subesti­mava a taxa de câmbio para facilitar as importações e que em certas ocasiões chegou a proibir certas importações, uma política alfandegá­ria que elevou a níveis nunca dantes alcançados as barreiras alfandegá­rias para proteção da indústria "nascente", uma política de confisco cambial que capturava parte do excedente produzido pelas exporta­ções justamente para financiar o câmbio favorecido para as importa­ções industriais, uma política de crédito consubstanciada em institui­ções como o Banco do Brasil e o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, para só citar essas três variantes de uma única política econômica global, não podem ser entendidas como produto do acaso, da "mão da Providência" de corte smithiniano; de "atirar no que viu e matar o que não viu"; de "Deus escreve certo por linhas tortas"( 4 6 ) . O fato de o fulcro dessas políticas ter como ponto fundamental de re­ferência os crônicos problemas de balanço de pagamentos, é apenas a prova de que se tratava exatamente de impor o equivalente geral da in-dústria a salvo das perturbações que a concorrência imperialista pudesse acarretar à forma de reprodução interna, mas não a salvo pelo contrá­rio, requerendo-o, do concurso do capital internacional para reforçar a forma de reprodução interna. É insustentável, pois, uma proposição do tipo da que faz Carlos Lessa, em seu Quinze Anos de Política Econô­mica, que a expansão industrial tenha sido um resultado fortuito das políticas de balanço de pagamentos e de combate à inflação( 4 7).

A questão da convivência com as oligarquias agrárias e, ate certo ponto, da preservação da forma pela qual essa oligarquia reproduzia sua riqueza, é tão-somente uma questão de subordinação; subordina-ção que não exclui contradições entre os interesses da burguesia indus­trial e os das oligarquias agrárias, entre o latifúndio e a indústria, entre cidade e campo. A política econômica ditada pelos interesses da repro­dução do capital industrial reduziu as formas de reprodução da econo­mia agroexportadora até o limite necessário para que estas não conti­nuassem a impor sua própria forma de reprodução ao conjunto da economia nacional, mas foi suficientemente elástica para permitir a sobrevivência dessa forma de reprodução, até mesmo porque as divisas

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necessárias para a importação dos bens para a indústria continuavam a ser, sobretudo, advindas da realização externa do produto da econo­mia agroexportadora. Seria ingênuo, porém, não perceber que nessa convivência o capitalismo industrial começara a redefinir o próprio caráter da reprodução da economia agroexportadora, transforman­do-a gradualmente em capitalista "tout court". É fácil perceber que, no contexto da polêmica travada nos anos cinqüenta, em torno do chamado "confisco cambial", o pano de fundo era dado por essa im­posição do capitalismo industrial, que forçava a economia agro­exportadora a redefinir sua forma de reprodução: de um lado, a ele­vação da renda da terra no próprio Estado de São Paulo, tornando im­produtivas as culturas de café cujos detentores persistiam nas práticas do "colonato" , expandiu a fronteira do café para o Paraná e Mato Grosso, onde a participação da renda da terra no produto social era mais baixa; de outro lado o "confisco cambial", quando levado além de um certo limite, realmente significava ruína para os cafeicultores, já que pela destruição do "co lonato" era simplesmente impossível supor­tar uma redução da lucratividade que, forçosamente, afetaria a repro­dução do valor sob as mesmas condições. O ultimato do capital indus­trial à economia àgroexportadora podia ser sintetizado em: "ou te re­produzes como eu, ou te extinguirás". A resposta freqüentemente to­mou duas formas: uma, a forma da expansão da fronteira onde era possível, até certo ponto, continuar a reproduzir a economia agro­exportadora nas condições anteriores; a história do café no Paraná e em Mato Grosso dá conta dessa forma; a outra, uma forma de concen­tração peculiar aos estágios iniciais da indústria em sentido lato: uma concentração em forma de capital variável, isto é, uma transformação nas relações de produção. O fenômeno, hoje tão visível, dos "bóias-frias" e da criação do proletariado rural em São Paulo nasceu há mais de duas décadas, exatamente pela dialética das relações capital indus­trial versus economia àgroexportadora do "co lonato" e da oligar­quia.

É importante esclarecer aqui os mecanismos mediante os quais a renda da terra interfere nos processos de destruição do "co lonato" , de sua recriação na fronteira agrícola em expansão, e de redefinição das relações cidade-campo ou burguesia industrial versus oligarquia do café. O "confisco cambial" foi a forma inicial de redefinição das rela­ções cidade-campo na " reg ião" do café, que se convertia em " r eg i ão " da indústria. Forçava, pois, a uma redução da lucratividade da ativi­dade cafeicultora ao nível do produtor, já que o forte oligopólio na co­mercialização e a influência do capital financeiro transferiam para o produtor o confisco que o Governo operava, ao nível do Instituto Bra­sileiro do Café e das operações de exportação. Frente a essa redução, o produtor de café tinha algumas opções: a primeira, teoricamente mais óbvia, era elevar a composição orgânica do capital e, mediante aumen­tos da produtividade do trabalho, manter ou recuperar um nível de

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taxa de lucro que compensasse o "conf isco". Tal elevação da composi­ção orgânica do capital encontra consideráveis óbices na cultura do café: o primeiro é que dificilmente pode-se elevar muito a composição técnica da parte fixa do capital constante, pois a cultura do café não é facilmente mecanizável, e os outros elementos da parte fixa do capital constante não podem crescer muito se não cresce na mesma proporção a produção; expandir os terreiros de secagem do café, por exemplo, so­mente é possível expandindo-se a própria produção; não houve aí mui­to aumento da produtividade do trabalho, senão numa fase muito recente, mediante processos mais intensivos de secagem e beneficia-mento, que não estavam então disponíveis. A segunda opção era ele­var a composição técnica da parte circulante do capital constante co­mo, por exemplo, os adubos e defensivos agrícolas. Assim, as condi­ções de suprimento externo desses elementos circulantes do capital constante, a operação resultaria provavelmente num desequilíbrio da composição de valor, tendendo a reduzir ainda mais a taxa de lucro. A terceira opção era começar o processo de concentração pelo próprio capital variável, isto é, ao nível das relações de produção; e foi uma das opções concretizadas que deu origem, muito mais cedo do que se pensa, aos trabalhadores volantes no Estado de São Paulo, os hoje co­nhecidos como "bóias-frias". Tal processo de concentração, que co­meça pelo próprio capital variável, tem fôlego curto se não se puder operar, mais dia menos dia, concentração pelo lado do capital cons­tante, pois neste caso os salários reais tendem a crescer, ameaçando outra vez a taxa de lucro. O processo de proletarização no campo, ape­nas apoiado na atividade cafeicultora, caminhou por isso tão lenta­mente, tendo sido mais veloz nas atividades de exploração agrícola da cana-de-açúcar mesmo em São Paulo, e só tendo ganho expressividade mais recentemente, quando culturas como a da soja e do trigo, permi­tindo enormes mudanças na composição orgânica do capital, criaram definitivamente o proletariado rural no Centro-Sul.

Essas restrições "a mudança na composição orgânica do capital na agricultura, e sobretudo na do café, elevaram a primeiro plano a questão da participação da renda da terra no produto, induzindo às modificações que se seguiram, umas na direção da expansão da fron­teira agrícola, outras na direção da mudança nas relações de produ­ção. Predatória por excelência, a cultura do café tende a diminuir sua produtividade, seja pela velhice dos cafeeiros, seja pela perda da fertili­dade natural da terra; essa característica predatória só pode ser compen-. sada por mudanças na composição orgânica do capital, que se de­monstrou de difícil realização àquela época. A cultura do café, e pre­sença de condições de fortes concentrações fundiárias, não experimen­tou, como outras, grandes dificuldades para trasladar-se em direção a outros espaços. Aqui, a renda da terra em presença do "confisco cam­bial" ganha relevância; este último tendia a reduzir a lucratividade da atividade produtora de café e, neste caso, a renda da terra tende a ele-

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var-se, em termos absolutos, do ponto de vista da formação do produ­to; mesmo tendendo a elevar-se, ou principalmente por isso, bloqueia o processo de acumulação, porque sua forma no produto dificilmente pode ser acumulada em termos capitalistas: pode sê-lo em termos mais gerais de riqueza. Tal elevação da renda absoluta dá lugar à introdu­ção da renda diferencial, que vai operar a translaçãc da cultura do café para outros espaços, onde a fertilidade natural é mais alta; onde a ren­da da terra, mesmo sendo mais alta em termos absolutos, que nas zo-nas decadentes, é mais baixa relativamente, isto é, em termos de sua participação no produto. A renda diferencial relativa que se estabelece entre as zonas decadentes e as zonas novas beneficia estas últimas, com o que estas conseguem romper as restrições à lucratividade que o "confisco cambial" impunha. Freqüentemente, também para onde transladou-se a cultura do café, também implicou essa translação em mudanças nas relações de produção, introduzindo o proletariado ru­ral, com o que a produtividade econômica do café voltou a crescer. Não é paradoxal, portanto, que nas antigas zonas do café tenha per­manecido o "co lonato" , e estas zonas decadentes tenham se transfor­mado, na maior parte dos casos, em zonas de pecuária extensiva, com alta concentração fundiária e uma recriação do binômio latifúndio-minifúndio dedicado agora à pecuária leiteira, como é o caso do Vale do Paraíba. Pecuária que, com sua peculiar estrutura de produção-apropriação fundada no latifúndio-minifúndio, reduz novamente a participação da renda da terra no produto.

O proletariado urbano cresce, por outro lado, na medida mesma da expansão industrial e mais além, isto é, além dos limites que são fornecidos pelos indicadores da força-de-trabalho em funções; cresce, também, simultaneamente, o exército industrial de reserva, agora nas próprias cidades. A redefinição das formas de reprodução do capital e o desenvolvimento das forças produtivas vai produzir um novo prole­tariado, diferente do anterior em quantidade e em qualidade; em quantidade, pela própria incorporação aos postos de trabalho criados pela expansão industrial e pela função que no ciclo exerce o exército industrial de reserva; em qualidade, pelo fato, em primeiro lugar, de que persistindo taxas diferenciais de lucro inter-setoriais, na diferen­ciação atinge e marca o proletariado; mas em períodos anteriores tam­bém funcionava a lei de taxas de lucro diferenciais. A inovação agora é que esses diferenciais são comandados pelos ramos ali onde a concen­tração do capital é mais intensa, e portanto a composição orgânica do capital desses ramos é que comanda a própria diferenciação inter-setorial de lucros; em segundo lugar, e num movimento simultâneo, essa diferenciação é acompanhada por um movimento de uniformiza­ção: isto é, tanto pela ação da expansão das forças produtivas, quanto pela implantação da legislação trabalhista, o proletariado é redefinido pela sua base. O duplo movimento cria ou recria em novos termos a contradição capital versus trabalho: em primeiro lugar, cria locus es-

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pecíficos da luta de classes, e em segundo lugar cria um locus unificado da mesma luta. Tanto a ascensão do proletariado urbano ao primeiro plano da cena política quanto as suas diferenças internas são resulta-dos desse duplo movimento e explicam ao mesmo tempo, em boa me­dida, sua nova força e suas específicas debilidades ou divisões internas.

A descrição e compreensão da nova sociedade no Centro-Sul do Brasil, ou no que estamos chamando de " reg ião" industrial de São Paulo, não pode ser completa nem esclarecedora se não for considera­da presença do Estado, sob novas roupagens e desempenhandc-se de­forma diferente na reprodução do capital. O Estado é já um Estado capturado pela burguesia industrial, mas não se resume nisto: é a pró­pria contradição da reprodução do capital. Entrando na esfera produ­tiva o Estado realiza em outros termos uma espécie de "acumulação primitiva" cujos frutos, sem lugar a dúvidas, vão parar nas mãos da burguesia industrial; sua crescente intervenção ocorre nas crises, para viabilizar mais e contornar as crises do ciclo capitalista; mas sua nova forma de intervenção é agora positiva e não apenas negativa, isto é, in­tervém sob formas diretamente ligadas ao capital em funções e não apenas intervém como se não o fizesse, colocando-o, em certas oca­siões, em confrontação direta com a burguesia industrial. O próprio caráter de sua intervenção é resultado muitas vezes da debilidade de acumulação direta da burguesia industrial; não pode, pois, ser ela deti­da arbitrariamente, sob pena de colocar em risco de desmoronamento o novo rumo da acumulação industrial e da acumulação em escala glo­bal.

O Estado é, por outro lado, um ente ambíguo quase por defini­ção, no que se refere ao proletariado urbano emergente. Principalmen-te para assegurar as leis de reprodução que agora devem beneficiar sobretudo as formas de mais-valia industrial, o Estado colocou sob sua guarda o próprio movimento operário; não se trata, neste caso, como certas interpretações do populismo sugerem, de cooptação do opera­riado pelo Estado. Observando-se bem as coisas, a legislação traba-lhista, seu estilo corporativista, a presença aparentemente mediadora . do Estado no conflito capital-trabalho não é uma cooptação: é uma guarda, uma vigilância, uma prisão do movimento operário pelo Esta­do: daí certas concessões, que foram vistas freqüentemente como "vantagens" para o operariado; e ainda é exagero chamá-las de "con­cessões". Foram, na verdade, formas pelas quais o Estado realizava a "acumulação primitiva": por exemplo, as "vantagens" do proletaria­do ligado às empresas do Estado, ou as "vantagens" de certas porções do operariado localizado nas atividades do transporte (ferroviários, portuários, e t c ) , não afetavam na verdade a acumulação que o Estado transferia para a burguesia industrial. As empresas do Estado nessa fa­se são sobretudo agentes da divisão técnica do trabalho; em outras pa­lavras: mediante a captura de impostos o Estado, pelas suas empresas, realizava apenas a transformação material. O custo de produção dessa transformação não estava diretamente determinado pela massa de sa-

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lários pagos: sua determinação vinha de fora, da massa de impostos captados. É por essa razão que o Estado pode "beneficiar" mais os trabalhadores ligados às suas atividades, sem com isso afetar a "acu­mulação primitiva" que realizava e que transferia à burguesia indus­trial. Foi apenas nos últimos anos da década de cinqüenta e primeiros da década seguinte, quando o volume de impostos captados já não dava lugar à simultânea existência dos "benefícios" aos trabalhadores e à transferência da "acumulação primitiva" para a burguesia, que essa contradição específica da ação e intervenção do Estado apareceu e tomou o primeiro lugar da cena: foi apenas então que os "deficits" do Estado tornaram-se insuportáveis.

A ambigüidade do Estado em relação ao proletariado, movida basicamente pelas suas novas funções na reprodução global do capital e não pelas "benesses" distribuídas cobrava, entretanto, certos direi­tos. O Estado não tinha necessariamente que ser repressor contra seus trabalhadores, pois não havia contradição entre a massa de salários que fazia parte da transformação que ele operava e o volume dos bens e serviços que ele transferia para a burguesia industrial; e à medida que a própria reprodução do capital simultaneamente operava a diferen­ciação e a unificação do proletariado, as frações desse proletariado, li­gadas às atividades do Estado, uniram-se às demais frações do proleta­riado, com o que o nível de consciência global dos interesses do proleta­riado elevou-se. Unificando-se o movimento operário, a especificidade das suas frações que trabalhavam para o Estado ganhava uma força desproporcional à sua própria expressão numérica no conjunto da classe operária: aqueles podiam fazer parar todo o sistema, parando o Estado.

Sociedade, economia e Estado no Brasil do Centro-Sul não po-dem ser compreendidos senão no cruzamento dessas articulações assi­naladas. O pacto populista era a forma da hegemonia burguesa, uma hegemonia que se afirmara sem liquidar com o seu antigo contendor, a oligarquia agrária cafeicultora; uma hegemonia que se afirmara diri­gindo poderosamente a ação e a intervenção do Estado como sustentá-culo e mola de sua expansão; uma hegemonia que se afirmara utilizan­do o Estado para vigiar o proletariado urbano sem necessariamente ser repressor ostensivo; não é paradoxal, portanto, que a luta de clas­ses específica da sociedade do Centro-Sul tivesse o Estado como centro da contradição: nessas condições, ela não podia nunca tomar a forma clássica da luta de classes que opunha burguesia de um lado contra proletariado do outro, tendo o Estado apenas como mediador. O Es­tado não era um mediador nas condições concretas da expansão capi­talista no Centro-Sul do Brasil mas, ao contrário, o núcleo da contra­dição; e portanto sobre ele, sobre sua forma, sobre sua direção, diri­giam-se as contendas das duas principais classes sociais e, por força destas, das demais que eram periféricas, latifundiários e massa urbana não-operária. N ã o é, pois, nem um "desv io " da burguesia industrial,

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nem um "desv io" da classe operária, que muitas leituras e interpreta­ções sugerem, que estes e aqueles dirigissem suas petições e reivindica­ções ao Estado: crédito e proteção, de um lado, e pedidos de aumento de salários de outro eram as duas faces da contradição que o Estado representava, na forma pela qual o capitalismo se expandiu no Centro-Sul do Brasil. Entender de outra forma pode ser muito bonito e estar muito rente às interpretações clássicas, mas não comporta o real: o real é a acumulação de capital, que no capitalismo é somente uma e igual em toda parte: a extração de mais-valia mas cujas formas, his­tórica e concretamente determinadas podem variar enormemente. As diversas formas da luta de classes não podem ser vistas como "des­v ios" dos padrões clássicos. Assim sendo, não haveria nunca mais, des­de a primeira revolução, a possibilidade e a probabilidade de outras revoluções. O "planejamento" desse Estado do Brasil do Centro-Sul assume, necessariamente, formas setorializadas: trata-se de intervir de forma não-espontânea não sobre o conjunto da reprodução do capital, mas sobre debilidades localizadas dessa reprodução. Tal "planejamen­to " não é, por isso, uma crise irredutível entre classes antagônicas, mas uma forma especial de diferenciação da taxa de lucros. Esse "planeja­mento" e o Estado que o opera abrem, ao mesmo tempo, um espaço enorme para a superação parcial dos conflitos de classes básicos. Será somente quando as necessidades de reprodução do capital em escala global, inclusive e principalmente pela forte penetração do capital inter­nacional no capitalismo brasileiro, tornarem insuficiente a forma de intervenção do Estado, ou o que é o mesmo, esse "planejamento pri­mitivo", que se baseava sobretudo na transformação da forma " im­posto", que o conflito de classes entre os atores e agentes sociais fun­damentais emergirá toda a sua força e ultrapassará os próprios e es­treitos limites do Estado, matéria de que se tratará no capítulo seguin­te.

3. Sociedade, economia e Estado

no Brasil do Nordeste *

Ressalve-se aqui, uma vez mais como mera advertência, que não se encampa nem se trabalha sobre uma dualidade ou multiplicidade de "Brasis", ao estilo Jacques Lambert ou mesmo ao modo cepalino. Es­ses "Brasis" não são mais que a força diferenciada da expansão do ca­pitalismo.

A imbricação e as relações "sociedade, economia e Estado" ocor­rem, portanto, no Brasil do Nordeste, de forma diferente das que pre­valeciam no Centro-Sul. Essa diferença é ao mesmo tempo o resultado da herança histórica e da redivisão regional do trabalho que a expansão capitalista no Centro-Sul comanda. A burguesia industrial do " N o r ­deste" açucareiro-têxtil havia se submetido, como herança, às leis de

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reprodução da economia da " reg ião " do café, que teve seu "partner" nordestino na economia do algodão-pecuária; na etapa da industriali­zação, em que a divisão regional do trabalho no Brasil vai se redefinir conforme os andamentos da acumulação industrial na " r eg ião " de São Paulo, aqui também chamada Centro-Sul, a burguesia industrial desse Nordeste encontrava-se de braços atados para participar e co­mandar, no que deveria ser seu espaço, a expansão capitalista. Tal pro­cesso já foi descrito com anterioridade neste trabalho, pelo que não re­produziremos passo a passo as condições em que já havia ocorrido. Vale ressaltar apenas que, exatamente quando a expansão capitalista passa a ocorrer sob a forma de realização interna do valor, isto é, de industrialização voltada para o mercado interno, a burguesia indus­trial do Nordeste cai na armadilha do I A A , que se lhe viabilizava man­ter-se, coartava-lhe a expansão, exatamente porque a mantinha sob as mesmas condições de coexistência com formas de acumulação não-capitalista.

A integração do mercado nacional, ou a criação do mercado na­cional unificado, resultado da imposição em escala nacional do equi­valente geral da economia da " reg ião " de São Paulo, vai encontrar aquela burguesia extremamente debilitada, incapaz de redefinir seu próprio esquema de reprodução, incapaz de impor, sob seu comando, e no seu espaço de reprodução, a seu favor, o equivalente geral da eco­nomia industrial( 4 8). A penetração das mercadorias produzidas no Centro-Sul, além de ver-se favorecida pelas medidas de cunho políti-co-institucional e pela melhoria dos transportes, será tanto mais facili­tada por essa incapacidade da burguesia industrial nordestina adaptar seus esquemas de geração de valor às novas determinações que tinham seus locus na região Centro-Sul. A conseqüência política de todos esse processo é a total perda do poder político da burguesia industrial açu-careira-têxtil sobre sua própria " reg ião" : aqui, a imbricação da econo­mia e da política apresenta-se em notável ponto de fusão. Essa perda de poder político impedia-lhe de utilizar o próprio Estado, capturado pela burguesia industrial do Centro-Sul e, no Nordeste, pela oligar­

q u i a algodoeiro-pecuária, para redirecionar seus esquemas de repro-dução. A dupla incapacidade revela-se mortal para sua existência, enquanto classe que tinha um espaço próprio de reprodução; suas re-lações com a própria classe operária, que lhe era subordinada no es­quema da geração do valor, serão gravemente afetadas.

A classe operária do "Nordes te " açucareiro-têxtil, em seus seg­mentos urbanos e rurais, havia se formado ao longo de toda uma tra­dição de confrontação aberta com a burguesia açucareira-têxtil. Tal confrontação tinha suas raízes no próprio fato de que, atada a esque­mas de reprodução que haviam inclusive recriado relações de produ­ção não-capitalistas, a burguesia industrial do Nordeste tinha sido in­capaz de gerir novas formas de geração de valor, e portanto, um novo tipo de relações com a classe subordinada. Não poderia haver, dentro

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desse contexto, nenhum ganho de produtividade que, mesmo margi­nalmente, pudesse afetar as condições de vida da classe trabalhadora desse "Nordeste" açucareiro-têxtil. Não havendo mudanças quantita­tivas e qualitativas substanciais na composição orgânica do capital, de um lado, não se gerou um novo proletariado; de outro, mantendo-se atada à armadilha da recriação de mecanismos de acumulação primiti­va, os operários enfrentavam-se também com a burguesia como se fos­sem camponeses. Essa dupla determinação da situação da classe prole­tária do Nordeste açucareiro-têxtil a levava a enfrentar a burguesia in­dustrial em dois terrenos: no terreno das relações de produção capita­listas, em que a reivindicação dos ganhos de produtividade incorpora­das aos salários reais não podia ser atendida, e no da reivindicação de terras ou da eliminação das formas de trabalho semicompulsório, das formas do "cambão" , das formas de sobre-trabalho, que punha em xeque a própria existência da burguesia industrial.

Não é estranho, portanto, que no "Nordeste" açucareiro-têxtil não se tenha formado, salvo no breve período do Governo Cid Sam­paio, em Pernambuco, nenhuma coligação política do tipo "populista" tal como aconteceu na " r e g i ã o " de São Paulo. Apesar dos que têm interpretado o Brasil dos anos cinqüenta pela caracterização homogênea do "populismo", no Nordeste açucareiro-têxtil, a oposição proletariado-burguesia sempre foi muito clara: Em todo o decorrer dos anos da chamada experiência democrática no Brasil, que vai desde a queda de Vargas em 1945 até 1964, a burguesia industrial do Nordes­te jamais conseguiu formular essa aliança, com exceção do breve período já citado, em 1958, quando se elege governador de Pernambu­co o usineiro e industrial Cid Sampaio. Todos os candidatos da bur­guesia a governador nesse Estado, cuja preeminência no processo polí­tico se explica exatamente pelo fato de que ali havia se formado uma burguesia industrial são, pelo contrário, fragorosamente derrotados. Pode-se dizer, não sem audácia, que a coligação política típica era de um tipo antipopulista, um antipacto populista; e embora certas seme­lhanças formais possam ser encontradas, derivadas do fato de que o poder esteve sempre com a oligarquia agrária, o que para o Brasil como um todo também pode ser reconhecido na preeminência do Par­tido Social Democrático, uma tal interpretação formalista arrisca-se a não entender nada tanto do processo de reprodução da economia do Nordeste quanto do seu processo político. A aliança da burguesia in­dustrial com a base agrária oligárquica, representada pelo PSD, era no Centro-Sul a forma de dissolução da economia àgroexportadora; no Nordeste, a preeminência do PSD era a forma de manutenção da eco­nomia algodoeira-pecuária. A integração nacional, agora comandada pelas leis de reprodução do capital industr al do Centro-Sul, expressa-va-se no Nordeste pelo agravamento das tensões burguesia-proletariado.

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A pax agrariae nordestina, simultaneamente condição e resultado da hegemonia da economia algodoeira-pecuária e da oligarquia dos "coronéis", já começa a ser erodida no Nordeste nos anos cinqüenta, pelas mesmas razões ditadas pelas leis de reprodução do capital indus­trial do Centro-Sul: de um lado, na mesma medida em que a burguesia industrial do Nordeste entra em decadência e recorre cada vez mais a formas de reprodução não-capitalistas, parte do proletariado, que era também e simultaneamente semicamponês, reivindica terras e a desa-parição das formas de trabalho semicompulsórios; esse fenômeno vem na esteira da penetração das mercadorias produzidas no Centro-Sul industrial pelo Nordeste adentro. Esse proletário semicamponês somente encontra saída para defender-se do rebaixamento constante do seu nível de vida, na tentativa de aumento de suas "culturas de subsistência". O semicampesinato que, por outro lado, se havia for­mado nas franjas da zona açucareira, principalmente localizado nas zonas que são chamadas de Agreste, em Pernambuco, Brejo, na Paraí­ba, voltando para a produção do algodão em pequena escala, para a venda dos seus excedentes de "culturas de subsistência" nos merca-dos das pequenas cidades e mesmo no Recife, João Pessoa, Maceió, Natal, Fortaleza e Salvador, e disponível nos "p icos " da safra da cana-de-açúcar como semiproletários, havia entrado em processo de redefinição cujo resultado será a destruição da pax agrariae. A redefi­nição, que apontava para a completa dissolução dessas formas de re­produção, era motivada também pela expansão do capitalismo do Centro-Sul. Essa forma apresentou-se na elevação da renda da terra e na elevação do trabalho semicompulsório, do sobre-trabalho. A pe­netração das mercadorias produzidas no Centro-Sul, não apenas in­dustriais mas agrícolas - o arroz e o feijão do Rio Grande do Sul, o próprio algodão de São Paulo, aves e ovos também de São Paulo, por exemplo - significava, pelo custo mais baixo dessas mercadorias, um constante retrocesso do preço das mercadorias produzidas por esse semicampesinato. A baixa de preço, um mecanismo clássico da com-petição, obrigava a que esse semicampesinato produzisse mais para manter-se no mesmo patamar de condições de vida; na impossibilida­de de produzir mais, tendo em vista o bloqueio da estrutura fundiária, o resultado que aparecia ou era uma elevação do " f o r o " ou, na verda­de, da renda da terra cobrada pelos latifundiários; ou uma expansão por cissiparidade dos pequenos tratos de terra, mecanismo esse muito bem retratado e interpretado por Francisco Sá Jr. em seu já clássico "O desenvolvimento da agricultura nordestina e a função das ativida­des de subsistência" ( 4 9 ) . Os dois mecanismos convergiam para um mesmo resultado, que se apresentava sob duas formas: a dissolução desse semicampesinato, quer pela expulsão das terras - a elevação da renda da terra abria para os proprietários uma possibilidade de espe­cialização nas antigas culturas de subsistência, isto é, uma forma de concentração em capital variável - quer pelo aumento do sobre-

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trabalho, reforçando os mecanismos do trabalho semicompulsório, o "cambão" . É nesse contexto, e exatamente nessas zonas, que a pax agrariae nordestina entra em colapso, e esse semicampesinato aparece como ator político por excelência, sob a égide das Ligas Camponesas de Francisco Julião.

É necessário verificar-se a posição do Estado para o entendimen­to das reações e dos conflitos de classe nesses "Nordestes", amalgama-dos agora pela redefinição da divisão regional do trabalho à escala na­cional, comandada pela forma de expansão capitalista industrial do Centro-Sul. Já se fez referência à intervenção do Estado sob a égide do D N O C S , que terminou sendo capturado pela oligarquia agrária algo­doeira-pecuária, transformando-se ao mesmo tempo em resultado e pressuposto da hegemonia oligárquica. O caso da intervenção do Esta­do na economia açucareira também já foi suficientemente relatado, tendo-se obtido como resultado que aquela intervenção, pelas carac­terísticas de que se revestia e pelo estado da economia burguesa no Nordeste, transformou-se em um mecanismo a mais que viabilizava a expansão capitalista no Centro-Sul e a imobilizava no Nordeste; essa intervenção do Estado, sob a égide do I A A , era já em si mesma um mecanismo que fazia parte da redefinição da divisão regional do tra­balho em escala nacional. A intervenção do Estado não assumiu, pois, formas diretas nos dois casos; a presença do Estadto no Nordeste como produtor era portanto praticamente inexistente: a não ser a encampa­ção das ferrovias deficitárias, compradas dos ingleses, e a partir de 1953, com a construção da Hidrelétrica do São Francisco, cujas reper­cussões sobre as relações de classe no conjunto do Nordeste teriam que ser evidentemente pouco significativas, dado o raio de abrangên­cia dessas duas atividades, essa não-presença do Estado como produ­tor direto deveria quase compulsoriamente influir de outras maneiras, dessemelhantemente ao que se passava no Centro-Sul.

A não-presença deu lugar, portanto, a não-ambigüidade nas rela­ções "sociedade, economia e Estado" no Nordeste, do ponto de vista da inserção do Estado. As presenças anteriores, oligárquicas e proteto-ras da economia do açúcar, situavam-se no interior mesmo das classes sociais que, de certa forma, haviam capturado o Estado ou, como no caso do açúcar, protegendo-se sob ele, condenavam-se à inanição. Essa presença não se situava porém no meio, na passagem entre as re­lações daquelas classes sociais com as classes sociais que lhes eram su­bordinadas, o semicampesinato e o proletariado. A não-presença do Estado como produtor direto não criou, portanto, um segmento de qualquer classe social dominada, fosse semicamponesa ou operária que estivesse amarrada na sua função - do Estado - como agente da divisão técnica do trabalho. E não criou também, por outro lado, a ambigüidade entre o Estado e as classes sociais dominantes, fosse a oli­garquia agrária algodoeira-pecuária ou a burguesia industrial açuca-reira-têxtil. Estas não viam o Estado como presença contraditória:

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viam-no como se mirassem no espelho, no caso da oligarquia agrá­ria algodoeira-pecuária, e como um sustentáculo para sua não-desaparição, no caso da economia industrial açucareira. Aqui vale a pena fazer um parêntese para o caso do Estado da Bahia, onde preci­samente a presença do Estado como produtor direto através da PE-T R O B R Á S havia criado condições semelhantes, relacionamento se­melhante com a sociedade, quase da mesma natureza que no Centro-Sul; mas o volume dessa ação do Estado não chegou nunca a poder moldar ou modificar a natureza das relações entre ele e ao resto da socie­dade para o conjunto do Nordeste, precisamente porque essa interven­ção não correspondia a desenvolvimentos semelhantes das forças pro­dutivas sob o comando da burguesia local; essa intervenção assumiu o caráter de um "enclave".

As relações de classe, e portanto o caráter do conflito entre elas, no Nordeste, não poderia jamais assumir as mesmas feições, nestes termos, que no Centro-Sul ou na " r eg ião " industrial de São Paulo. O Estado, não sendo o centro da contradição, criou precisamente, ao contrário do que se passava no Centro-Sul, um amplo cspaço para a confrontação direta, em que o seu papel era o de simples mediador, ao nível regional; nas fases mais agudas do conflito de classes, estas não fazem por isso mesmo, petição ao Estado: ou apelam ao seu conteúdo jurídico, de mediador, forma inicial das petições do semi­campesinato que apelavam para a Justiça, tendo o Código Civil como instrumento dessa apelação; ou vão diretamente ao recurso da força, como no caso dos latifundiários que, em resposta à atuação das Ligas Camponesas, armam-se e tentam derrotar o antagonista no ter­reno da luta direta, pela eliminação de suas lideranças, pela expulsão forçada dos trabalhadores das terras que consideravam "usurpa­das( 5 0 ) .

O Estado que fica no Nordeste é um Estado imobilista, do ponto de vista das relações entre as classes "regionais", ainda que do ponto de vista da acumulação à escala nacional operasse francamente, reite­rando õs termos de reprodução da economia industrial. Tal imobilis­mo serve também a esse processo em escala nacional, como bomba de sucção; através dos mecanismos da taxa cambial, por exemplo, o Esta­do descapitaliza a economia do Nordeste em favor do centro da acu­mulação. Mesmo em 1953, quando se cria o Banco do Nordeste do Brasil,.apontado agora por muitos como precursor da S U D E N E , a in­tervenção do Estado fica muito aquém de sua própria atuação num caso-como o do BNDE: não apenas o Banco do Nordeste do Brasil vi­verá amarrado aos recursos orçamentários, sendo portanto ainda uma forma rudimentar de transferência de imposto, como é importante res­

saltar que nessa transferência, o BNB, sigla mediante a qual ficou sen­ão conhecido, operava por exemplo nas mesmas taxas bancárias que o BSnco do Brasil, com o que sua capacidade de redefinir o esquema de reprodução do capital no Nordeste minimizava-se enormemente.

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Além disso, o BNB pode ser considerado ainda como a última institui-ção estatal capturada pela oligarquia agrária algodoeira-pecuária do Nordeste; sua própria faixa de atuação ficou restrita ao chamado Polí­gono das Secas, excluindo de seu raio de ação as cidades da faixa lito­rânea do Nordeste, sedes da fraca indústria regional; pela própria na­tureza dos seus recursos, todos eles de curto prazo, o BNB ficou con­denado a financiar as mesmas atividades agropecuárias, com a impor­tante exclusão da própria atividade produtora de açúcar. Apenas com a criação da S U D E N E é que o BNB passa a fazer parte da intervenção "planejada", no sentido de que o conceito é entendido por este traba­lho. É relevante notar-se que será quase uma década após sua criação que o BNB fará suas primeiras aparições no financiamento industrial de longo prazo, tendo antes disso se limitado a financiar apenas capi­tal de giro para indústrias dentro do Polígono das Secas. Não é sem propósito, também, que a direção superior do Banco do Nordeste do Brasil, desde sua criação, após a breve presidência de Rômulo de Al-meida, ficará entregue a representantes típicos da oligarquia agrária algodoeira-pecuária do Nordeste, particularmente a políticos conser­vadores do PSD do Estado do Ceará, para quem os investimentos in­dustriais se lhes afiguravam como uma "aventura", dada a pouca "tradição" dos industriais da região, e outros pretextos mais que escu­davam-se fortemente nos próprios regulamentos do Banco e em legu-leios próprios das regras de jogo da oligarquia agrária. A própria questão da sede do BNB ilustra sua captura pela oligarquia agrária al­godoeira-pecuária: sua sede será Fortaleza, uma das duas capitais de Estados do Nordeste que ficam no Polígono das Secas, e exatamente uma das menos industrializadas. A outra opção era Recife, na época da discussão do projeto do BNB no Congresso Nacional, que termi­nou sendo deslocado pela força dos congressistas representantes da oligarquia agrária algodoeira-pecuária e pelo seu oposto, isto é, pela fraqueza e debilidade dos representantes da burguesia industrial. A es­colha da sede do BNB ilustra para além de quaisquer discussões bizan­tinas, e ademais cretinas, de "bairrismo" local, o caráter inicial da ação do Banco, sem exagerar-lhe as dimensões. (51)

O caráter da cena política, das relações de classe, dos conflitos de classe no Nordeste, não podem ser entendidos, em resumo, sob a mes­ma rubrica do "populismo", que foi a forma de imposição da hege­monia da burguesia industrial no Centro-Sul. Faltavam no Nordeste os conteúdos específicos do "populismo": uma hegemonia burguesa que se impôs sem romper abertamente com a oligarquia agrária, um proletariado urbano que emerge em novas condições de expansão das forças produtivas, um Estado produtor que tornava-se gradual e cres­centemente o próprio núcleo da contradição, pela ambigüidade de suas relações com as classes dominantes e dominadas. N ã o por ironia da História, que como uma Deusa estivesse a sorrir das contradições entre os homens, mas pelo férreo desdobramento das condições mate-

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riais da expansão capitalista no Brasil será ali, na " reg ião " atrasada, que os conflitos de classe tomam a feição mais próxima da que se tem chamado de "clássica"; mas esse "classicismo" é antes de tudo um ar­caísmo, pois no capitalismo monopolista a presença do Estado muda as formas do conflito social básico; a tarefa da investigação não é, por­tanto, a de rotular de "clássicos" ou de não-clássicos os conflitos de classe, de identificar "desvios" ou posições corretas, mas de descobrir determinantes da conduta dos homens e das classes sociais que for­mam e a que pertencem.

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Notas

(45) Ver IANNI, Octávio - O colapso do populismo. 2ª ed. Rio de Janeiro, Edit. Ci­vilização Brasileira, 1971 e A Formação do Estado Populista na América Latina. Rio de Janeiro, Edit. Civilização Brasileira, 1975.

(46) Outra vez uma interpretação da história econômica, social e política oiasileira do tipo de "história sem história", infelizmente, para seus adeptos, contra os fatos.

(47) LESSA, Carlos - Quince Anos de Política Econômica en Brasil, in Boletin Eco­nômico de America Latina. Santiago de Chile, 9 (2) 1964.

(48) Não é paradoxal mas complexamente contraditório, que o Nordeste exportasse capitais para o Centro-Sul. É que o capital é uma relação, que não podendo reiterar-se no Nordeste, podia fazê-lo no Centro-Sul.

(49) SÁ JR., Francisco - O desenvolvimento da agricultura nordestina e a função das atividades de subsistência. Estudos CEBRAP 3, Edit. Brasileira de Ciências S Pau­lo. 1973

(50) Ver JULlAO, Francisco - Que são as Ligas Camponesas, op. cit. (51) Ver Banco do Nordeste do Brasil - Origens I. Fortaleza, BNB, 1958. A inter­

pretação de que o BNB é o prelúdio da SUDENE e, mais, que esta nasceu de recomen­dações do próprio Banco, é defendida por Raul Barbosa, em A Política Federal para o Nordeste, in Indústria & Produtividade. Rio de Janeiro, 1 (2), julho de 1968. Tal interpre­tação é apenas uma pobre tentativa de ficar com as glórias de duvidosa glória, e feitas por Raul Barbosa num contexto em que Celso Furtado não podia responder. A pergun­ta que, lamentavelmente já não se pode fazer ao velho político cearense, é a de porque o BNB não implementou sua própria recomendação, aliás, sugerida não por ele, mas por Stefan Robock, quando assessor do Banco. Ver, deste último, Um projeto de planeja­mento global para o Nordeste. Fortaleza, BNB, 1956.

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VI - AS CONDIÇÕES DE CRIAÇÃO DA SUDENE

1. Breve introdução

O extenso discurso anterior aos propósitos de identificar a nova natureza das relações "regionais" no Brasil, sob a égide da expansão capitalista que se opera a partir do Centro-Sul; poderia ser entendido como "causas remotas" da criação da SUDENE. Um posicionamento desse tipo poderia, entretanto, levar a leituras do tipo "evolucionista", de que a criação da S U D E N E estava inscrita desde o momento em que se fundaram as diversas "regiões" econômico-políticas no território nacional. Nada mais longe da pretensão metodológica deste trabalho: se é verdade que a criação da S U D E N E não pode ser entendida sem a tentativa de retrospecto que se fez, verdade mais elementar é que esse mesmo retrospecto busca apenas definir as situações concretas do sis­tema sócio-econômico de geração de valor da economia brasileira; ne­nhum determinismo cego pode ajudar na pré-visão do que ocorreria depois: a criação da S U D E N E não estava inscrita "desde siempre y para siempre". Faz-se necessário, por isso, avançar na investigação das transformações mais recentes que, trabalhadas sobre uma herança histórica, determinaram em algum momento uma intervenção estatal "planejada"; nem mesmo a própria natureza do sistema capitalista em expansão é suficiente para fornecer uma previsão; sob determinadas condições históricas, mesmo a forma de expansão das relações capita­listas de produção pode não chegar a homogeneizar, de forma acaba­da, "regiões" que existem e persistem no território ou espaço onde já impera o sistema capitalista em sua plenitude: bastaria citar o próprio Sul dos Estados Unidos, o Mezzogiorno da Itália e a Irlanda, no Rei­no Unido, para darmos conta de que certas especificidades " reg io :

nais" no contexto de espaços econômico-capitalistas altamente dinâ­micos não foram dissolvidas, algumas senão muito recentemente,

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como é o caso do Sul dos Estados Unidos. O propósito desta seção não é, pois, o de terminar por desfiar o novelo de lã, a partir do pri­meiro capítulo, e atingir o clímax de uma novela barata em que o final já está inscrito no primeiro capítulo; muito ao contrário, é o de conti­nuar a investigação para tentar responder à questão crucial: por que foi adotada uma forma "não-espontânea" de intervenção estatal, por que se implantou a forma "planejada", por que se criou a SUDENE?

2. A transição para o capitalismo

monopolista no Centro-Sul

A expansão capitalista nacional, tendo agora a indústria como centro motor da divisão social do trabalho, conheceu desde os anos trinta um largo período de crescimento, quase sem interrupções, até o final dos anos sessenta. Esse período caracterizou-se, precisamente, por repousar numa crescente realização interna do valor gerado interna­mente; isso explica que o chamado grau de abertura externa da econo­mia brasileira, medido pelos coeficientes das exportações e importa­ções sobre o Produto Interno Bruto, tenha se reduzido até chegar a al­cançar, já por volta dos fins da década de sessenta, um nível bastante baixo. Essa crescente realização interna do valor não teria sido possí­vel sem um simultâneo crescimento do grau de financiamento interno da economia. Geração do valor e sua apropriação interna combina­ram-se para produzir a expansão assinalada, para o que a intervenção do Estado sob todas as formas, e não menos na esfera financeira, cons­tituiu-se num fator capital; no início dos anos cinqüenta e sobretudo na sua segunda metade, sob o Governo Juscelino Kubuschek, produ-z-iu-se uma diferenciação setorial no interior da própria expansão in­dustrial, que requereu o concurso do capital estrangeiro. Tal concurso viu-se facilitado, apesar da oposição das políticas nacionais dos países capitalistas mais importantes - remember Foster Dulles - pela expan­são do capitalismo em escala internacional: crescimento dos países do Mercado Comum Europeu e do Japão, principalmente.

O salto de qualidade operado na diferenciação setorial industrial induziu, seja pela própria escala da diferenciação, seja pelo concurso ao capital estrangeiro, à incorporação na economia brasileira de esti­los de competição oligopolista, estilos que podem ser encontrados na estruturação das grandes organizações, nos esquemas de reprodução protegidos, de mercado "cat ivo " , como no caso das indústrias auto­mobilísticas, de construção naval, e no caso das empresas estatais, aos monopólios do Estado em setores produtivos. A competição oligopo­lista é, em si mesma, uma exacerbação do movimento de concentração de capitais: é a concentração da concentração, ou mais simplesmente, a centralização do capital, no dizer de Marx: como seus componentes intrínsecos, viajam juntos tanto a plenitude do modo de produção de

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mercadorias, ou seja, a transformação do sistema em puro produtor de mais-valia, como um novo papel do capital financeiro. Essas duas contradições vão se chocar contra certas características da economia nacional no período imediatamente anterior, e colocar em xeque todo o estilo da expansão, suas formas, a imbricação com o Estado e as re­lações de classe.

A centralização realiza-se, em primeiro lugar, sempre às expensas do capital já existente; claro está, apenas para advertir os que costu­mam querer enxergar "revisionismos" e quejandos, que ela é em si uma exacerbação da produção de mais-valia, mas apenas ocorre se essa mais-valia já estiver sendo extraída por outros capitais. Realizan-do-se às expensas dos capitais já existentes, necessariamente desloca agentes e proprietários, e redefine de par com a estrutura produtiva a própria estrutura do poder; sua primeira contradição surge e se passa na esfera das próprias classes dominantes.

A segunda contradição surge na esfera das relações com a classe dominada, com o proletariado urbano principalmente. O movimento da centralização, ainda quando não explore diretamente fá-lo indireta­mente, por instaurar pela taxa de direfenciação setorial dos lucros uma competição muitas vezes mortal entre os próprios capitais, uma exa­cerbação da exploração, uma elevação sem par da taxa de exploração. Não se necessita de "poupanças", como pensam marginalistas, neo-clássicos e keynesianos: criam-se essas "poupanças". Alguns estudos recentes (52) expõem a elevação da taxa de exploração do trabalho no Brasil, que se acentua sistematicamente desde os anos cinqüenta. Uma elevação da lucratividade é condição essencial para que, setorialmente, ramos industriais e dentro deles, grupos específicos, assumam o con­trole do processo de centralização. Essa segunda contradição eleva o ponto de fusão do conflito de classes antagônicas, superado em outras etapas e em período mais recente por uma série de fatores - entre os quais o papel do Estado não pode ser minimizado - e transforma o ca­ráter do conflito.

O movimento de centralização, nascendo de dentro das próprias determinações do sistema capitalista, vai por fim realizar ou tentar, em plenitude, a transformação completa do modo de produção de mercadorias em puro modo de produção de mais-valia. Opera o mila­gre de Midas: tudo o que toca transforma-se em ouro, todo e qualquer recanto das atividades econômicas transforma-se em produtor de mais-valia, redefinindo inclusive o caráter produtivo e improdutivo do trabalho. A redefinição termina por desembocar no próprio caráter do Estado e de suas relações com as classes sociais, dominantes e domina­das. Uma parte do jogo político do populismo, que centrava-se na ma­nutenção da ambigüidade das relações "Estado e classes sociais", se esgota: em outras palavras, certas produções de mercadorias, mas sobretudo de serviços, já não poderão revestir-se do simples papel de divisão técnica do trabalho: elas deverão revestir-se agora, emanando

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de sua condição técnica, de divisão social do trabalho, isto é, de relações de geração e apropriação do valor, de relações de produção. Um fato, por exemplo, que deu lugar inclusive a certas caracterizações "clien-telísticas" do populismo, como a expansão do emprego no Estado; a produção não-capitalista ou, mais rigorosamente, não-lucrativa, de serviços como saúde, educação; o "distributivismo" de certas interpre­tações, passam a não poder reproduzir-se: na mesma medida em que o capital penetra em todas as esferas e setores, a utilização dos exceden­tes em mãos do Estado passa a não ser viável em termos anti-lucrativos, Ainda que, por exemplo, para dotar-se de água certos con­juntos de população, se adote soluções técnicas tão diversas como a construção de chafarizes ou de grandes reservatórios e redes de distri­buição, que pareçam indicar opções, a primeira não reproduz o capi­tal, enquanto a segunda o realiza por completo, mesmo que as tarifas não se elevem - geralmente se elevam - pelo simples fato de que a pro­dução de mercadorias que a segunda envolve é superior à da primeira.

Essa centralização necessita porém ser financiada, e a extração da mais-valia e a própria elevação da taxa de exploração não podem fazê-la; elas podem apenas assegurá-la, isto é, fazer com que o movimento de centralização não se transforme nem em papel ou títulos mortos, mas em títulos de propriedade sobre o trabalho que assegura sua pró­pria reprodução. Faz-se necessário utilizar para o financiamento da centralização todo o potencial inscrito no próprio nível de desenvolvi­mento das forças produtivas, isto é, toda a riqueza nacional. Parte des­se potencial está nas mãos do Estado, que o capta como imposto; e a utilização do imposto como crédito é a forma pela qual aquela parte da riqueza nacional captada pelo Estado financia o movimento da centralização. Assiste-se no Brasil, concretamente, à própria transfor­mação do Estado: este criará ou utilizará o imposto como crédito para financiar o movimento de centralização dos capitais, recusará sua uti­lização como gasto improdutivo, e lançar-se-á em esfera produtiva, transformando o caráter de sua intervenção de simples agente técnico da divisão do trabalho para o de um agente da divisão social do traba­lho. O Estado se transformará também em produtor de mais-valia, daí a transformação operada nas próprias empresas do Estado, que pas­sam de deficitárias a superavitárias: esta transformação não é de natu­reza contábil, como se pode pensar: ela é radical. Deficitárias, as em­presas do Estado apenas utilizavam o imposto arrecadado para trans­formá-lo em bens e serviços; o caráter técnico da P E T R O B R Á S não se alterou, nessa passagem de empresa que vivia amarrada aos impostos do Estado para uma empresa que gera parte substancial dos seus pró­prios fundos de expansão: a P E T R O B R Á S , nessa transformação, não consegue extrair um centímetro cúbico a mais de gasolina do petróleo, pois isso é determinado pelo nível tecnológico dos seus equipamentos. O que ela vai transformar agora é uma operação de simples transfor­mação da matéria numa operação de geração e apropriação de valor,

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isto é, ela vai passar a produzir mercadorias. O movimento de centrali­zação do capital leva, pois, a uma direção que, à época dos grandes debates, pré e pós-64, centralizava-se numa definição apriorística e juris-dicista do Estado: leva a uma expansão da intervenção do Estado no próprio terreno produtivo, apesar da ideologia contrária mas que é, na verdade, determinada pelo próprio caráter expansionista e centraliza­dor do capitalismo monopolista. O Estado, localizado nos "nós gór-dios" da estrutura de relações interindustriais da economia, é, pelas suas empresas, o mais capaz de expandir-se mais rapidamente, o que nesta fase quer dizer centralizar.

A "débâcle" do populismo não é outra coisa senão a dissolução da ambigüidade do Estado, determinada pelo movimento de centrali­zação do capital. A dissolução naturalmente revela sua face oculta às classes subordinadas, principalmente ao operariado urbano: o Estado é agora produtor de mais-valia, e segue-se a isto que o seu caráter opressor e repressor não pode mais ser mascarado. O Estado não diri­ge mais a parte do excedente que capta na manutenção de serviços im produtivos; na raiz da transformação porque passou a maioria da pro­dução de bens e serviços do mesmo, está agora o caráter próprio de. produtor de mais-valia, e nesse sentido não pode ele apresentar-se mais como oferecendo indiscriminadamente esses bens e serviços por debaixo do seu custo. Essa transformação desfaz a ambigüidade do Estado em relação às classes dominadas, principalmente o operariado urbano. Não adianta mais dirigir petições ao Estado como administra­dor do bem comum, da justiça igual para todos; as petições transfor­maram-se em reivindicações, e no limite, em uma contestação do pró­prio Estado, agora não como ente do bem comum, mas como produ­tor de mais-valia, explorador, opressor e repressor.

Opera-se também uma dissolução da ambigüidade do Estado do ponto de vista das classes dominantes: burguesias industrial e financei­ra, e, secundariamente, os remanescentes das oligarquias agrárias. Não é agora apenas um transformador da matéria que será repassada às burguesias para apropriação sob as formas do lucro privado; é agora um elemento da própria centralização do capital e, como tal, peça es­sencial para a expansão do sistema. As ideologias antiestatizantes es-grimem com o fantasma do Estado liberal, mas a reprodução do capi­tal na verdade tem nesse novo caráter do Estado um elemento essen­cial, talvez o mais dinâmico dentre todos. A imbricação Estado-burguesia chega ao seu ponto máximo de fusão; o movimento de cen­tralização do capital, como Juno, tem duas faces: o capital privado e o capital público, mas na verdade ele é um só: é capital. A contradição que agora aparece entre esse Estado produtor e as formas privadas da riqueza nacional é uma contradição do capital, mas não uma forma mortalmente antagônica de oposição de interesses. Claro está que na corrida pela centralização, o Estado, guardando não apenas em rela­ção às classes dominadas, mas guardando também em relação às pró-

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prias classes dominantes o seu poder de coerção, é um competidor temível, como capitalista. A herança histórica do processo de consti­tuição das burguesias industrial e financeira, que concedeu ao Estado a primazia no processo de centralização, cobra agora fortemente seus próprios direitos.

Essa transformação do Estado é de crucial importância, e seu des­dobramento requer uma "démarche" que desborda os limites deste trabalho. Trata-se, na verdade, da pergunta: o que é o Estado no capi­talismo monopolista? As respostas a essa questão têm sido, a nosso ver, insuficientes em quaisquer das direções. A corrente mais forte, na teorização marxista, é a que vê o Estado como mero suporte para não deixar que se concretize a tendência da taxa decrescente de lucro. A compreensão do que é o Estado no capitalismo monopolista deveria, a nosso ver, dirigir-se para a pesquisa das funções que o Tesouro Públi­co, em sentido mais amplo, desempenha como capital financeiro geral. Isto significaria, neste sentido, avançar teoricamente no desdobramen­to que realizou Rudolf Hilferding, em seu El Capital Financeiro, tradu­ção de V. Romano Garcia, Madrid, Editorial Tecnos, 1963. Hilferding deu um passo adiante quando demonstrou o surgimento do capital fi­nanceiro como uma forma de fusão do capital industrial com o bancá­rio. A questão agora é tentar ver como o Tesouro Público funciona como pressuposto geral de toda a produção capitalista, confundindo, nesse processo, as fronteiras entre o público e o privado e, particular­mente para os fins da discussão sobre estatização, redefinindo comple­tamente tanto o processo real da capitalização, quanto o discurso.

A verdadeira revolução copernicana sobre o Estado no capitalis­mo monopolista foi anunciada, na verdade, por John Maynard Key-nes, em seu clássico Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, tra­dução para o português publicada pela Editora Fundo de Cultura, Rio; os economistas, tanto os que se filiaram a Keynes quanto seus oposicionistas - e nestes inclui-se a grande maioria dos marxistas -têm encarado, uns a Teoria Geral apenas como uma poderosa revitali­zação da teoria da demanda e do ciclo, enquanto seus críticos marxis­tas o vêem, em geral, como um brilhante mas mero apologista do capi­talismo, interessado sobretudo em sua manutenção. É claro que esses aspectos são relevantes na Teoria Geral; nem se pode imaginar que Lord Keynes estivesse interessado na destruição do capitalismo. O que geralmente passou despercebido, porém, é que a teoria do "déficit spending" keynesiana é um anúncio de que, no capitajismo. monopolis-ta, o Estado tem que ser, necessariamente, parte ativa da reprodução do capital, abandonando a postura dos seus antecessores neoclássicos e marginalistas, de um Estado do "laissez faire". A teoria do "déficit spending" é a explicitação de que o Tesouro Público tem que ser colo­cado como pressuposto geral de toda a atividade econômica, sem o que a economia capitalista ver-se-ia a braços com crises cíclicas da maior

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gravidade, exatamente porque o forte processo de centralização do ca­pital ampliaria, ao invés de reduzir, a anarquia do sistema, desta vez em proporções catastróficas. O Tesouro Público assume, assim, como pressuposto geral do capital que se valoriza, funções de capital financei­ro geral que busca, também, a valorização, embora não a realize dire­tamente em alguns casos.

A transformação crucial que se quer assinalar no caso sob exame, das relações do Estado com o capitalismo monopolista, refere-se não apenas ao seu papel de produtor direto; esse papel é extremamente im­portante, sem dúvila: ao contrário da teoria que postula a intervenção do Estado apenas para contra-reptar a tendência decrescente da taxa de lucro, o que ocorre no Brasil é exatamente o contrário: alguns dos ramos e setores industriais onde o Estado é praticamente monopolista são dos mais dinâmicos, em termos de taxas de crescimento, de taxas de lucro e da importância crucial que têm na formação dos coeficien­tes técnicos da reprodução dos outros setores e ramos industriais. Há, claramente, nesse papel produtor direto do Estado, valorização do va­lor, pois não se conceberia que uma simples função de sustentação do valor crescesse mais que as próprias atividades onde, segundo o ponto de vista aceito, gera-se o valor. Mais importante que esse papel de pro­dutor direto, porém, a conversão do Tesouro Público em pressuposto da atividade econômica, a que ocorre sob o rótulo de empresa estatal e a que surge como empresa privada. O Tesouro Público no capitalismo monopolista é algo completamente diferente do Tesouro Público no capitalismo concorrencial, para não falar do Tesouro Público no siste­ma feudal. O Tesouro Público no capitalismo monopolista é um ex-ante que fixa de antemão o comportamento da economia como um to­do; é ainda um vir-a-ser: os recursos, sob a forma de impostos ou sob outras quaisquer formas, ainda não estão na caixa do Tesouro, mas o simples anúncio de sua previsão já condiciona, em grande medida, o comportamento da economia como um todo. O Tesouro Público no capitalismo concorrencial é um ex-post, daí sua utilidade no surgimen­to das crises ser pouco significativa, pois elas já haviam ocorrido ou es­tavam ocorrendo; o restabelecimento da curva ascensional do ciclo acontecia sempre mediante um processo de destruição/concentração, até que se chegasse ao estabelecimento de uma nova taxa média de lu­cros, que funcionaria daí por diante como parâmetro para direcionar o fluxo de capitais, sua alocação neste ou naquele setor. N ã o se quer di­zer, com isto, que o papel do Tesouro Público como um capital finan­ceiro geral retire o caráter cíclico do sistema capitalista, e mais, seu ca­ráter anárquico; mas esse papel muda, certamente, as formas do ciclo e o processo pelo qual se estabelece a taxa de lucros para o sistema como um todo. A profunda imbricação do Estado com as grandes corpora-ções, que é a característica mais saliente do capitalismo monopolista e simultaneamente do Estado moderno, coloca em primeiro plano a ne-cessidade do estabelecimento ou da fixação da taxa de lucros para o

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capital monopolista, e nisto reside a característica política mais salien­te do Estado; continua a existir, por certo, na faixa das médias e pe­quenas empresas, uma espécie de capitalismo concorrencial entre elas. mas no geral, mesmo a taxa de lucros dessas faixas de empresas é dada a partir do conluio Estado e grandes corporações oligopolistas. O ca­ráter anárquico do capitalismo permanece, mas et pour cause, amplia-se extraordinariamente: daí qualquer crise na economia capitalista de hoje ser também e simultaneamente uma crise do Estado.

Essa função de capital financeiro geral que cumpre o Tesouro Público antecipou-se de certa forma no Brasil, talvez mesmo em com­paração com o resto do mundo capitalista; e antecipou-se precisamen­te em decorrência da condição caudatária no contexto do capitalismo internacional, e sobretudo do papel do capital estrangeiro na econo­mia nacional. A questão do financiamento do processo de centralização do capital foi o fator crucial dessa antecipação, pois a centralização não podia repousar apenas na produção de valor que se reinveste nas próprias empresas; e por outro lado o Estado, na forma em que preva­leceu até os anos sessenta, embora produzisse serviços e bens que be­neficiavam e potenciavam a acumulação privada, passou a ser um ele­mento obstaculizador: colocado nos ramos mais dinâmicos e mais cru­ciais das relações interindustriais, não valorizando o valor, consumia uma parte do excedente, quando o requerimento dos processos de con­centração e centralização do capital exigia a todo custo uma massa maior de excedente reinvestível.

3. Decadência da burguesia industrial nordestina, destruição

da pax agrariae e crescimento das forças populares:

a ameaça à hegemonia burguesa em escala nacional

O processo que titula esta seção foi suficientemente descrito an­teriormente, dispensando, pois, sua repetição. Importa reter seus ele­mentos políticos, que exprimem-se ao nível da representação das for­ças sociais e econômicas. O resultado mais evidente foi o da gradual e firme ascensão das forças que chama-se aqui, conjuntamente, de "po ­pulares", designação esta que se lhes dá não apenas por oposição às forças das classes sociais proprietárias, mas sobretudo devido ao seu caráter de amálgama de forças socialmente subordinadas, mas hetero­gêneas tanto entre si quanto em relação às próprias classes sociais do-ipinantes. Tais "forças populares" são constituídas pelos semi-camponeses, pequenos sitiantes, meeiros, arrendatários, cuja expres­são política mais evidente passou a ser as Ligas Camponesas, mas que também estavam representados em sindicatos, de diversa filiação e orientação, inclusive da Igreja Católica: o fato político notável entre­tanto é seu aparecimento na cena política por fora, à margem e em opo­sição aos "coronéis", senhores de engenho e usineiros. Essa massa

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agrária aparecia pela primeira vez, na história social e política do Nor­deste, como agente político autônomo, de perfil definido, que não po­deria mais ser confundido com os "eleitores de cabresto", com o "vo to de curral". Não se está reduzindo aqui a política a mero episódio elei­toral mesmo porque, ainda quando tenha claramente emergido como agente político autônomo, a representatividade das classes sociais agrárias dominadas nas câmaras e parlamentos continuará sendo inex­pressiva.

O outro agente político fundamental na constituição dessas " for­ças populares" é inegavelmente o proletariado, tanto urbano quanto rural, que não emergiu como agente político autônomo no momento em que se centra este trabalho, isto é, década dos cinqüenta. Tem exis­tência antiga, sua oposição à burguesia é já tradição na história políti­ca do Nordeste, principalmente em Pernambuco, e seu perfil já era tanto mais nítido quanto sua integração enquanto força-de-trabalho nos esquemas de reprodução do capital fosse antiga; nos limites da re­criação pela burguesia industrial açucareira de processos de acumula­ção não-capitalistas, parte dessa força-de-trabalho passou também a ter uma dimensão quase-camponesa, mas isto não foi suficiente para fazer desaparecer seu perfil proletário. O que é novo no quadro dos anos cinqüenta é que o proletariado urbano e rural vai modificando sua relação de força com as outras classes sociais dominantes, e tam­bém dominadas; quanto às segundas, sua junção com o conjunto de classes sociais agrárias dominadas, vai dar no movimento popular a inusi­tada força que conheceu nos anos cinqüenta e princípios dos anos ses­senta. Quanto às classes sociais dominantes, o proletariado urbano e rural vai modificando sua relação política; durante o período que vai de 1945 a 1964, essas relações conheceram, sumariamente, as seguintes modificações:

a) entre 1945 e 1950 o proletariado emerge com feição própria, inclusive através de um partido operário, o Partido Comunis­ta, situando-se na correlação de forças políticas autonomamente no contexto regional, e ligando-se nacionalmente ao proletaria­do do resto do país, principalmente no Centro-Sul;

b) no período que vai de 1950 a 1958, o proletariado submerge numa coligação de forças comandada pela oligarquia agrária algodoeira-pecuária, em oposição à burguesia industrial nor­destina, apesar de que a nível nacional a coligação populista fosse hegemônica; as causas por assim dizer estruturais dessa assimetria foram suficientemente analisadas em capítulo ante­rior, já referido;

c) no período que vai de 1958 a 1961, o proletariado muda de "partner" político; juntar-se-á à burguesia industrial nordesti­na, esta sob o comando de Cid Sampaio em Pernambuco, mas numa coligação em que a subordinação do proletariado era

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mais formal que real: aí, realmente, é já uma forma de potência igual à da burguesia industrial;

d) no período de 1961 a 1964, o proletariado comanda pela pri­meira vez a coligação de forças; seu "partner", por estranho que pareça, será a oligarquia agrária algodoeira-pecuária, esta claramente subordinada. As raízes estruturais dessa mudança foram descritas e analisadas no capítulo anterior.

Convém esclarecer que essas correlações de forças não são intei­ramente homogêneas para o conjunto do Nordeste; seu epicentro é, sem nenhuma dúvida, o Estado de Pernambuco, mas se o conceito de " r eg i ão " econômica e política esboçado neste trabalho tiver alguma validade, as mudanças que ocorrem em Pernambuco direcionarão em certo sentido as mudanças que ocorrem em outros Estados. As mu­danças assinaladas nos demais Estados não têm a mesma clareza que as de Pernambuco, nem o mesmo perfil; em alguns Estados, como o Ceará, por exemplo, o mais oligárquico de todos os Estados do Nor­deste, esse direcionamento pode ser percebido através da gradual aliança entre forças políticas de caráter nacional e as forças locais; por exemplo, o eixo da política cearense começa a deslocar-se do PSD para o PTB; esse deslocamento é, na verdade, uma aliança da burgue­sia nacional com as oligarquias do Ceará, num movimento de dissolu­ção destas últimas. Importam aqui menos as siglas partidárias e mais o sentido do movimento; num outro período, a U D N se apossará do go­verno cearense, mas o sentido dessa mudança permanece o mesmo: trata-se de uma captura do poder local pela projeção da burguesia na­cional do Centro-Sul; em um Estado como o Rio Grande do Norte, a correlação de forças e suas mudanças indicam o mesmo movimento: a cisão que se opera na U D N , entre as alas Dinarte Mariz e Aluisio Al­ves, é uma cisão produzida pela penetração da burguesia do Centro-Sul: a ala Dinarte Mariz continuará sendo a mais lídima expressão da oligarquia agrária algodoeira-pecuária, enquanto o "popul ismo" de Aluisio Alves é um resultado da penetração do Estado nacional bur­guês. As relações de força também mudam de forma em um Estado como a Bahia, e as coligações refletem tanto andamentos da luta de classes a nível local, quanto seu relacionamento com a crescente hege­monia burguesa no Centro-Sul. O revezamento no ápice da estrutura do poder do Estado baiano entre PSD e U D N , no período analisado e na fase imediatamente anterior a 1964, de ascensão do PTB, revelam a dissolução da hegemonia da oligarquia agrária e a assunção de interes­ses de classe mais ligados à reprodução do capital do Centro-Sul, neste caso representado pela forte presença do Estado como produtor dire­to. ( 5 3)

O que importa reter do conjunto analisado é que, salvo em brevís­simos períodos, uma correlação de forças políticas do tipo "populista" jamais teve vigência completa no Nordeste, inclusive interpretações

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como a do Governo Miguel Arraes em Pernambuco, ao representar esse "populismo", equivocam-se redondamente ao dar um rótulo for­mal a um movimento ou a um conflito de classes que tem bases estru­turais completamente diferentes. Os conteúdos estruturais do populis­mo, tal como se deu no Centro-Sul, jamais estiveram presentes no Nordeste, e portanto os conflitos de classes não poderiam guardar ne­nhuma semelhança, a não ser pela utilização abusiva das siglas políti­cas por parte dos intérpretes. O Governo Miguel Arraes em Pernam­buco não era uma coligação que incluísse a burguesia industrial regio­nal, e mesmo a participação nela de um industrial do porte de um José Ermírio de Moraes é insuficiente para lhe mudar a feição. Tal partici­pação de um representante de um dos grandes grupos industriais oli-gopolistas do Centro-Sul pode ser na verdade interpretada como uma tentativa de contenção da força emergente do conjunto "proletariado urbano e rural mais classes sociais agrárias dominadas". O Governo Miguel Arraes em Pernambuco estava, em verdade, em oposição não apenas à burguesia industrial regional, mas principalmente em oposi­ção à burguesia industrial que se tornava nacionalmente hegemônica a partir do Centro-Sul.

É esse caráter de oposição à burguesia industrial que se tornava nacionalmente hegemônica que vai conferir à coligação de forças po­pulares que emerge no Nordeste, sob a liderança de Miguel Arraes e Francisco Julião, sua marca específica enquanto o movimento político para além do populismo. A perda de poder da burguesia industrial nordestina, a dissolução da pax agrarie nordestina, começa a ser per­cebida pela grande burguesia nacional como uma ameaça mais que potencial à sua hegemonia. N ã o se quer aqui supervalorizar esse fenô­meno: ele atinge na verdade seu clímax no mesmo momento em que o pacto populista no Centro-Sul começa a entrar em declínio, a esgotar-se, pela dissolução da ambigüidade das relações entre o Estado, a pró­pria burguesia industrial e financeira nacional-internacional, e o prole­tariado urbano e rural; nem a ênfase que se dá aqui a esse aspecto deci­sivo leva água ao moinho das forças da reação, que se desencadearam e terminaram por desembocar no movimento militar de março de 1964. O reconhecimento da essência do conflito de classes não é uma apologia à vitória da reação, a confirmação de sua " r a zão " histórica, . do seu "direito de classe": analogamente à Comuna de Paris, pode-se diagnosticar a incapacidade de as forças populares, no Nordeste e no conjunto do país, terem soçobrado ao movimento militar de 1964, pela força do próprio movimento de expansão do capitalismo monopolista no Brasil, que conseguiu captar uma peça essencial do aparato do Es­tado que são as Forças Armadas, mas esse "assalto aos céus" não deve ser lamentado; ele é não apenas um marco decisivo da história brasilei­ra, mas além disso um enorme salto qualitativo na luta de classes no Brasil, e seus desdobramentos estão longe de ser percebidos em sua in­teireza. Encerra todo um período de mistificação e revela, agora, os

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rostos próprios dos agentes econômicos, sociais e políticos da socieda­de brasileira.

Em que sentido a coligação de forças populares que emerge no Nordeste torna-se antagônica à hegemonia da burguesia internacio-nal-associada do Centro-Sul? Trata-se apenas de uma força de expres­são, reificada agora pela perspectiva que se tem dos desdobramentos posteriores a 1964? É evidente que esta, como qualquer outra investi­gação "a posteriori" recupera, necessariamente, a perspectiva do pas­sado frente aos desdobramentos do presente; mas não se trata de uma reificaçâo, senão de uma reconstituição. O antagonismo entre a coli­gação de forças populares do Nordeste e a burguesia industrial do Centro-Sul, está caminhando para a total hegemonia nacional, vai centrar-se em primeiro lugar no próprio papel do Estado. A ascensão das forças populares no Nordeste, que não chega a capturar o Estado mas apenas governos nominais, impedia no entanto a dissolução da ambigüidade do Estado no sentido já indicado, e apontava para outra dissolução, noutro sentido, direcionado este pela pressão das forças populares e pelas suas reivindicações. Esse impedimento, ainda que parcial, era suficiente para constituir-se em antagonismo. Um episódio ilustra esse antagonismo: ainda na prefeitura do Recife, a coligação de forças populares sob a liderança de Miguel Arraes teve pela frente, en­tre outros, o problema de como abastecer de água potável vastas por­ções da população mais pobre do Recife, que vive nos mocambos dos morros e alagados recifenses. Achava-se à frente do Governo Estadual o industrial Cid Sampaio, que através do seu Departamento de Sanea­mento propõe outra solução para o mesmo problema: a patrocinada pela Prefeitura do Recife preconizava soluções economicamente acessíveis à população pobre, na forma de chafarizes públicos; aquela patrocinada pelo Governo Estadual propunha uma solução conven­cional, na forma de estações de tratamento, redes de distribuição a do­micílio; entre as duas existe não apenas um abismo de perfeição técni­ca, discutível enquanto válidas ambas: existia um abismo de orienta­ção social, e de direcionamento dos gastos do Estado. A primeira reque­ria ou sustentava-se num gasto que se traduziria em baixo volume de produção de mercadorias, e sua utilização pela população não induzia à exploração pelo Estado, enquanto a segunda requeria e induzia a um volume muito mais alto de produção de mercadorias para a realização do serviço de abstecimento d'água, e sua utilização requeria sua explo­ração pelo Estado. A segunda é tipicamente uma solução que se en­quadraria no movimento de expansão do capital que no estágio mono­polista do capitalismo requer não apenas a expansão dos gastos do Es­tado - e não sua contração, como pensam os economistas "'equilibra-dores" - sob formas crescentes de mercadorias, e mais, que tem preci­samente na conversão em capital do excedente que o Estado capta sob a forma de imposto, uma das alavancas da acumulação monopolística. Este caso, na sua singeleza, revela uma das facetas da contradição en-

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tre a emergência das forças populares no Nordeste e a expansão hege­mônica da burguesia industrial do Centro-Sul. Diga-se de passagem que a solução adotada na época foi a patrocinada pela Prefeitura da capital pernambucana, cujo árbitro foi a própria S U D E N E , preocu­pada na ocasião em elevar ao máximo a racionalidade de suas aplica­ções. Exatamente porque a solução adotada foi uma solução política no sentido mais amplo do conceito, isto é, no sentido de o que fazer com o Estado, o Governo Cid Sampaio passou a denunciar a existência na S U D E N E de uma conspiração contra ele.

O antagonismo entre os dois tipos de força política revela-se por inteiro, em um outro sentido tão importante quanto o anterior. Cres­cendo a ação política das massas camponesas ou semicamponesas, crescendo a presença política das massas trabalhadoras urbanas, suas reivindicações vão chocar-se contra a essência do processo de cresci­mento oligopolistico a partir do Centro-Sul, no núcleo da própria es­trutura do processo de concentração e centralização do capital. A pe­netração das mercadorias produzidas no Centro-Sul, e posteriormente a própria penetração de grupos econômicos do Centro-Sul, que prece­de à própria S U D E N E , destruía as bases da economia "regional" , tanto agrícola quanto industrial. Essa destruição propiciava uma acu­mulação diferencial extraordinária ou uma super-acumulação, em ou­tras palavras, cuja base residia seja no mercado nordestino capturado, seja na implantação de empresas com capitais do Centro-Sul que, re­pousando numa composição técnica de capital superior, passavam a realizar uma composição orgânica de capital mais favorável, devido exatamente ao diferencial de custos de reprodução de força-de-trabalho nordestina. Ora, as reivindicações das forças populares no Nordeste, tanto rurais quanto urbanas, centravam-se agora exatamen­te na aplicação rigorosa das leis de propriedade, por um lado, e das leis de regulamentação trabalhista por outro, entre estas a estrita obediên­cia ao pagamento do salário-mínimo. Se no Centro-Sul, na origem da expansão industrial dos anos trinta, a aplicação dessas regulamenta­ções funcionou de certo modo como alavanca do processo de acumu­lação, no movimento de expansão oligopolística elas funcionam nou­tra direção, roubando à burguesia industrial do Centro-Sul uma opor­tunidade de acumulação diferencial; não é estranho a esse processo que, mesmo após 1964, e mesmo após o pleno êxito do mecanismo de transferência da hegemonia burguesa do Centro-Sul para o Nordeste, na forma dos incentivos fiscais da S U D E N E , tenham persistido as di­ferenciações nos níveis do salário-mínimo, por exemplo. Aqueles que, na linha da Joan Robinson, pensam que o conceito de " va l o r " não é mais que um palavrão dentro da ciência econômica, e que o mecanis­mo da acumulação no capitalismo monopolista está completamente desligado do custo de reprodução da força de trabalho, deveriam refle­tir um pouco mais ante evidências "empíricas" desse teor, que deve­riam satisfazer às suas exigências de "demonstrações empíricas".

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O conflito de classes entre as forças populares do Nordeste e as combalidas forças dominantes locais, burguesia industrial e oligarquia latifundiária, num processo que estava desembocando claramente na perda de hegemonia daquelas classes dominantes, expressa-se bem sob outros aspectos, e nesse sentido é antagônico, também, com a expan­são do capitalismo monopolista a partir do Centro-Sul. O conceito de hegemonia é aqui utilizado inspirado em Gramsci, sem dúvida. As for­ças populares do Nordeste evidentemente ainda não tinham conquis­tado as alavancas do poder econômico, mas caminhavam no sentido do controle político, e mais, o que é muito importante: estavam im­pondo sua hegemonia cultural, se assim quisermos chamar, ou sua he­gemonia ideológica, ao nível das instituições da superestrutura. É no Nordeste que surgiram os chamados "movimentos de educação de ba­se", primeiro baseados na ação da Igreja Católica, cuja raiz consistia no abandono dos conceitos tradicionais de educação formal e na ten­tativa de rejeitar a escola como uma instituição que reproduz as estru­turas formais de dominação: é no Nordeste que uma instituição como a Igreja Católica começa a tomar posição aberta pela forma agrária, quando no Centro-Sul a voz isolada de um Cardeal Carmelo Mota submergia em meio à maré comandada pelos Dons Sigauds da vida; os sucessivos encontros dos Bispos no Nordeste, o primeiro em Campina Grande em 1956 e o segundo em Natal em 1959, no acender das luzes da própria S U D E N E , questionam o direito a uma propriedade social-mente inútil. Pode-se dizer que isso não era mais que um eco distante da Rerum Novarum, mas mesmo sendo assim foi a maior parte da hie­rarquia católica da região que assumiu as novas posições. É no Nor ­deste que vai emergir o chamado processo de educação, orientado teo­ricamente por Paulo Freire, cuja raiz residia na conscientização, isto é, inverter o processo tradicional do aprendizado que começa pelo co­nhecimento para terminar - se acaso chegar lá - à consciência das si­tuações sociais; é no Nordeste que o Movimento de Cultura Popular do Governo Miguel Arraes, desde a Prefeitura do Recife, não apenas põe em prática o método Paulo Freire, mas começa a valorizar os elementos da cultura popular para, a partir deles, desmitificar os pro­cessos de dominação e exploração; é no Nordeste, mais precisamente sob o Governo municipal de Djalma Maranhão que se produz o magnífico movimento educacional cuja sigla era "de pé no chão tam­bém se aprende a ler", que não se reduz a uma questão de economia de investimentos, mas propunha uma educação para o poder. É no Nor­deste, finalmente, para não tornar mais longa a relação, que o movi­mento das Ligas Camponesas utiliza o Código Civil para combater a propriedade, o sobre-trabalho, o "cambão" . Todos esses aspectos re­velam que o avanço no nível da superestrutura obrigaria, levado às suas últimas conseqüências, a um novo caráter na condução dos negó­cios do Estado: a questão, para resumir uma última análise, era o que fazer com o Estado. Essa corrosão da hegemonia ideológica das classes

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dominantes locais vai aparecer como contraditória com o movimento de expansão do capitalismo monopolista no Centro-Sul; neste, apesar de existir também em curso uma certa erosão ideológica, as classes do­minantes mantinham e até redefiniam o papel das instituições superes-truturais: por exemplo, no que respeita à educação, a redefinição que se propõe, muitas vezes rotulada como "democratização", era sem dú­vida o abandono da concepção elitista da educação e sua substituição para uma pedagogia para o desenvolvimento, isto é, voltada para dar maior eficácia aos quadros dirigentes, nos níveis intermediários, da condução dos negócios econômicos.

Colocado nessas condições, o conflito de classes que aparece sob as roupagens dw conflitos regionais ou dos "desequilíbrios regionais" chegará a uma exacerbação cujo resultado mais imediato é a interven­ção "planejada" do Estado no Nordeste, ou a S U D E N E . A burguesia industrial do Centro-Sul, caminhando rapidamente para a hegemonia, não tem escolha: é preciso submeter as classes populares do Nordeste ao seu tacão, mas numa situação em que suas próprias bases, seu "po ­pulismo", começam a entrar em declínio, ela não atacará diretamente as classes populares do Nordeste, num movimento que visava evitar a confluência das forças populares em escala nacional: submeterá pri­meiramente sua irmã gêmea no Nordeste, a própria burguesia indus­trial regional. A S U D E N E é esse ataque pelos flancos, sugerido inclu­sive numa citação do conhecido estrategista inglês Liddell Hart, que abre um dos livros de Celso Furtado, elaborado ao calor da luta no Nordeste: Dialética do Desenvolvimento ( 5 4 ) , mais tarde refundido pelo autor na obra Teoria e Prática do Desenvolvimento Econômico: "avoid the frontal attack". A S U D E N E será um mecanismo de destruição acelerada da própria economia "regional" nordestina, no contexto do movimento de integração nacional mais amplo; certamente tal integra­ção processar-se-ia em termos menos acelerados, podendo mesmo, no limite, o Nordeste permanecer ainda por largos anos como uma "Ir­landa" no Brasil. Precisamente por ser um mecanismo de aceleração da integração é que a intervenção do Estado é "planejada", pois trata-se de deslocar os esquemas de reprodução próprios da economia do Nordeste por outros que têm sua matriz noutro contexto de acumula­ção: o "planejamento" é, pois, essa forma de transformação dos pres­supostos da produção, essa passagem da mais-valia captada pelo Es­tado como imposto, e sua conversão em capital entregue à grande bur­guesia do Centro-Sul.

É interessante notar como esse antagonismo se expressa na luta ideológica que se trava pela própria criação da SUDENE. Tal antagonis­mo expressa-se de forma disfarçada em todos os textos que preparam a criação da SUDENE: nos debates parlamentares, nos próprios pla­nos, programas e projetos do novo órgão, sob o argumento da "segu­rança nacional". Certamente nenhum texto é mais exemplificativo a respeito que a própria conferência de Celso Furtado no Instituto Su-

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perior de Estudos Brasileiros - ISEB -, mais tarde como A Operação Nordeste - note-se, de passagem, o próprio uso de uma ter­minologia militar, presente inclusive em outros programas do período Kubitschek, como sua política externa batizada de "Operação Pan-americana" -, e no próprio e clássico documento Uma Política de De­senvolvimento Econômico para o Nordeste ( 5 5 ) . Enfatiza-se explicita­mente, nesses documentos, o risco que correria a "unidade nacional" se o agravamento dos "desequilíbrios" entre o Nordeste e o Centro-Sul persistisse na direção e na intensidade indicadas pelas estatísticas disponíveis. E em A Operação Nordeste, apontou Furtado para o fato de que esse risco para a "unidade nacional" decorria principalmente do antagonismo que se criaria entre a classe trabalhadora do Centro-Sul e os imigrantes nordestinos, que pela sua elevada oferta, contri­buíam para manter baixos os salários reais do operariado e de outros segmentos de trabalhadores do Centro-Sul ( 5 6 ) . Ora, o que de fato es­tava apontando era o risco de que o antagonismo entre a classe traba­lhadora do Centro-Sul e a burguesia do Centro-Sul entrasse em pro­cesso de agravo, pela competição que o próprio mecanismo de acumu­lação instaura no conjunto do proletariado como um todo, servindo-se da abundante oferta de mão-de-obra que, no caso, nem era exclusi­vamente nordestina: os contingentes mineiros sempre tiveram uma participação na migração para São Paulo de magnitude igual ou supe­rior aos contigentes nordestinos. Curiosa mas não contraditoriamente, as próprias proposições de política de desenvolvimento para o Nor­deste apontavam como uma das condições de viabilidade da economia nordestina, vale dizer da expansão da economia capitalista no Brasil, para a existência de oferta abundante de força-de-trabalho cujos dife­renciais de salários em relação aos do Centro-Sul deveriam funcionar como um dos poderosos indutores da localização de indústrias na re­gião.

Documentos posteriores, produzidos pela própria S U D E N E , rea­firmam o caráter antagônico da luta de classes que se travava no Nor­deste e o risco que representavam para a "unidade e a segurança na­cional", fórmula eufemística que no fundo queria dizer "risco para a expansão do capitalismo no Brasil". Nos "Projetos apresentados ao Governo da República Federal Alemã", in S U D E N E - B O L E T I M E C O N Ô M I C O , vol. 1, n° 1, 1962, faz-se referência explícita à quebra da pax agrariae nordestina: "A crescente pressão demográfica que se constata no Nordeste tem suscitado problemas sociais e políticos de suma gravidade - grifos nossos - que podem ser sintetizados nos se­guintes fatos:

a) - clima geral de insatisfação; b) - criação de ressentimentos em relação às áreas mais desenvol­

vidas do pais; c) - aparecimento de associações camponesas com vistas a resol­

ver o problema imediato de acesso à terra;" (grifos nossos). 114

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As Ligas Camponesas, que são essas associações citadas no texto da SUDENE , precedem à criação da mesma, e fazem parte do cli­ma político propício à sua emergência; sustentam, portanto, sua utili­zação nesta investigação, ao arrepio de uma narrativa cronológica. O que é indiscutível é que se estava apontando para o fato de que os cam­poneses e semicamponeses do Nordeste apareciam agora como atores e agentes políticos per si, desvinculados do coronelismo e do voto de "cabresto". Tal surgimento na cena política de um novo ator, com as qualidades da nova forma de sua aparição, constitui ameaça ao sistema capitalista como um todo no Brasil. Outro documento produzido pela própria SUDENE , que alinhava os argumentos que sustentavam sua autonomia como autarquia no contexto do sistema administrativo da União Federal diz, agora, não apenas como argumento ideológico ao calor das lutas pré-criação, mas com a autoridade adquirida pelo pró­prio organismo de planejamento regional, que ".. . estava assim, cons­tatado que esta desigualdade econômica, num pais da extensão territo­rial do Brasil, poderá acarretar a formação de grupos regionais anta­gônicos, comprometendo a própria Unidade Nacional" (em maiúscu­las e grifado no original) ( 5 7 ) . Deve-se acrescentar, para que não se pense que o artigo refletia apenas a opinião de seus autores, que o refe­rido artigo é a própria cópia do texto preparado para que a Procura­doria Geral da República, aprovando-o, como de fato o aprovou, con­solidasse e confirmasse o caráter de autarquia da S U D E N E , que o tex­to da lei de sua criação não havia deixado claro. De que "unidade na­cional" se falava, senão da "Unidade Nacional" da burguesia? Talvez até por ironia, essa "unidade nacional" é escrita em letras maiúsculas: a nação de que se trata no caso não é outra senão a nação burguesa, es­paço de expansão da forma capitalista de produção; e essa "unidade" é a unidade produzida agora pela expansão capitalista do Centro-Sul. A miséria nordestina tanto não era nova quanto se estava, na verdade, em presença de um movimento que tendia a dissolver a própria identi­dade da economia regional do Nordeste, ao contrário do que aponta­va o documento citado e os demais que enfatizam esse risco.

4. O Novo Estado no Nordeste: a SUDENE

A S U D E N E foi criada em 1959, pela lei nº 3.692, de 15 de de­zembro do mesmo ano, do Congresso Nacional, emanada de projeto do Executivo da União que, no curso dos debates e transações parla­mentares, recebeu diversas emendas. O processo propriamente parla­mentar de criação da S U D E N E reflete, admiravelmente, o posiciona­mento das diversas classes sociais, no Nordeste e fora dele, em relação à nova atuação do Estado na região. Tal processo foi descrito por Amélia Cohn, em seu brilhante estudo Crise Regional e Planejamento; as atas das sessões do Congresso Nacional, tanto ao nível da Câmara de Deputados quanto ao do Senado, relativas ao ano de 1959, relatam

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igualmente esse processo. Constitui para muitos observadores um mis­tério que os representantes parlamentares do Nordeste tenham-se constituído, na verdade, na mais formidável oposição à criação do novo organismo e que, pelo contrário, o apoio lhes tenha sido dado principalmente pelos parlamentares do Centro-Sul, aliados a poucos e expressivos congressistas mais ligados à burguesia industrial nordesti­na. O mistério permanece apenas para quem não analisou devidamen­te o conflito de classes do Nordeste, o processo de expansão do capita­lismo no Centro-Sul e o decorrente posicionamento das classes sociais e de grupos para os quais a criação do novo organismo poderia repre­sentar a morte ou a vida.

O Executivo da União, entretanto, antes da criação pelo Congres­so Nacional, havia criado através de decreto a pré-SUDENE, na for­ma de um Conselho de Desenvolvimento do Nordeste - C O D E N O -, a quem coube a própria tarefa de elaborar o anteprojeto de lei. Era esse Conselho constituído por um Secretário-Executivo, de nomeação da Presidência da República, Governadores dos nove Estados do Nor­deste, e representantes de Ministérios federais; o Conselho Deliberati­vo da S U D E N E reproduzirá essa estruturação. Houve quem visse nes­sa estruturação a marca de um "novo federalismo"; entretanto, essa estruturação é sobretudo a marca da concentração de poder em mãos do Executivo Federal e, portanto, a morte da Federação.

A S U D E N E traz inscrita, desde a sua origem, a marca da inter­venção "planejada" no seu programa, que se reflete mesmo nos textos das leis de sua criação e de seus planos-diretores, isto é, de uma tentati­va de superação do conflito de classes intra-regional e de uma expan­são, pelo poder de coerção do Estado, do capitalismo do Centro-Sul. Isto não é uma dedução que se permite apenas por um exame "a poste-riori": o que não estava garantido era o sucesso do empreendimento, mas seus objetivos não poderiam ser mais claros. O novo organismo detinha, entre suas funções, a capacidade de criar empresas mistas, combinando capitais da União, dos Estados e até do setor privado. Tal capacidade é inteiramente inédita no quadro polít ico-administrativo do país; e o objetivo era precisamente o de tornar o Es­tado também produtor no Nordeste, dissolvendo sua antiga ambigüi­dade, que era a marca estrutural do populismo. Praticamente em qual­quer ramo das atividades econômicas poderia a S U D E N E implantar essas empresas estatais, como de fato as implantou, desde empresas destinadas ao abastecimento d'água nas cidades até uma unidade de produção industrial tão inequívoca quanto a US IBA - Usinas Siderúr­gicas da Bahia. O Estado nunca tinha sido produtor no Nordeste, salvo em poucos casos; esse novo Estado no Nordeste já se apresentava sem a marca de sua ambigüidade no Centro-Sul.

A S U D E N E passou a deter, entre seus poderes, a capacidade de dar "câmbio de custo" para a importação de equipamentos industriais 116

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e agrícolas, sendo obrigatoriamente ouvida pela S U M O C - precedes-sora do Banco Central - nos casos em que essa concessão conflitasse com problemas de balanço de pagamentos; podia recomendar isenção alfandegária para a importação de equipamentos, tendo assento no próprio Conselho de Política Aduaneira; automaticamente, por impo­sição da própria lei nº 3.692, isentava-se totalmente do imposto de ren­da as novas empresas que se instalassem para aproveitamento das maté­rias-primas regionais e parcialmente as empresas que já transformas­sem as referidas matérias-primas. Uma imensa bateria de favores, que podem ser vistos na legislação própria, além dos já citados, compunha na verdade um elenco de mecanismos cujo objetivo era o de transfor­mar parte da mais-valia captada pelo Estado, sob as formas de impos­tos e de taxas, em capital. Tratava-se, na verdade, em termos mais teó­ricos, de converter toda a riqueza nacional, especialmente a parte que era captada pelo Estado, em pressupostos da nova produção: um me­canismo típico do capitalismo monopolista e de seu correlato, o Esta­do monopolista. Abstratamente, esses mecanismos não desfavoreciam necessariamente a burguesia industrial regional; mas concretamente, em presença de composições orgânicas de capital diferenciadas, e por­tanto de taxas de lucro e de massas de valores diferenciados, a grande burguesia internacional-associada do Centro-Sul era quem, inevitavel­mente, poderia retirar essas "castanhas do fogo " . A debilidade da bur­guesia industrial regional tornava-a inapta para reciclar seus esquemas de reprodução, e as isenções tornaram-se na verdade um mero expe-diente de adiar-lhe a falência completa, salvo poucos casos de grupos burgueses regionais que realmente já eram parte da grande burguesia nacional e internacional-associada, justamente por terem expandido sua reprodução para além da economia regional nordestina: para citar somente alguns, o grupo Baptista da Silva, através de suas atividades industriais e bancárias, o grupo Bezerra de Mello, através de suas in­dústrias no Centro-Sul e de sua presença na hotelaria nacional, o gru­po Lundgren através da cadeia nacional das Casas Pernambucanas, o grupo Mariani Bittencourt, através do Banco da Bahia, o grupo Cal-mon de Sá, através do Banco Econômico da Bahia, o grupo Brennand, na indústria de azulejos e cerâmica, o grupo João Santos, na indústria do cimento.

A estratégia de concepção da S U D E N E seria em si mesma uma brilhante aplicação do "avoid the frontal attack"; poderia ser apresen-tada como um "casus belli" aplicado à política. Essa formalização tem, porém, raízes no próprio conflito de classe regional e nacional, no papel do Estado e nas suas relações com a sociedade, assim como a es-tratégia militar não é um puro movimento sem real: se não existirem soldados, equipamentos, condições diferenciais em força e qualidade, qualquer estratégia não passa de um mero jogo de "war " , muito popu­lar hoje em dia, quando as condições concretas da competição inter-imperialista e da competição entre capitalismo e socialismo já relega-

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ram exatamente para as fábricas de brinquedo as concepções de estra­tégia de uma época ultrapassada. As proposições da S U D E N E evi­tam, por um lado, o ataque frontal às condições de reprodução da eco­nomia agrária nordestina, deslocando o eixo do problema para uma suposta inviabilidade da economia da zona semi-árida; o que se estava flanqueando com isso era, na verdade, o conflito agrário; colocam o problema da economia açucareira nordestina como uma questão de inadequação entre recursos naturais de boa qualidade e uma divisão técnica inadequada do trabalho, saltando outra vez sobre o caráter de conflito que estava no âmago da reprodução da economia açucareira; abordam o problema das migrações de nordestinos para o Centro-Sul, seja do lado da inadequação da economia da zona semi-árida, seja do lado de um falso conflito entre migrantes nordestinos e classe traba­lhadora do Centro-Sul, evitando falar do agravamento do conflito de classes no próprio centro da acumulação capitalista; enfatizam o "in-chamento" das cidades litorâneas e o subemprego, evitando ter que refletir sobre a natureza desses movimentos da força-de-trabalho, cuja pedra de toque é a redivisão regional do trabalho em escala nacional, comandada pela industrialização do Centro-Sul.

Qual a direção do "ataque frontal" da SUDENE? A captura do Estado no Nordeste pela oligarquia agrária algodoeira-pecuária, sob a forma de intervenção do DNOCS : parafraseando Lênin, dirige o "ata­que frontal" contra o "e lo mais fraco da cadeia", exatamente aquele que permitia a confluência de todas as forças sociais, classes populares, burguesia industrial regional, burguesia internacional-associada do Centro-Sul e classes populares do próprio Centro-Sul. Todas essas for­ças sociais estavam interessadas em "descapturar" o Estado no Nor ­deste, mas por razões completamente diferentes. As proposições da S U D E N E para "descapturar" esse Estado levam, porém, necessaria­mente à sua captura pela burguesia internacional-associada do Cen­tro-Sul, através das formas que propõe para a reinversão do excedente captado pelo Estado em capital.

É evidente que a história da S U D E N E não pode ser entendida li­nearmente; se seus objetivos eram, desde o princípio, aqueles já assina­lados, sua implementação não pode seguir uma trajetória retilínea. N ã o pode fazê-lo exatamente porque a força das classes populares em emergência no Nordeste cobrará, em algum momento, os direitos que tem nessa confluência de forças para "descapturar" o Estado; e essa confluência é uma coligação de desiguais, com interesses desiguais: en­tre o ano de sua criação e até a aprovação do seu primeiro Plano Dire­tor, que somente surgirá em 1961, decorridos dois anos de sua criação, a S U D E N E conhecerá desdobramentos cuja lógica dependerá do ali­nhamento e realinhamento do conjunto das forças sociais que a apoia­vam, e no limite, do realinhamento mesmo entre forças que se opu­nham. É o caso, por exemplo, do realinhamento entre as forças da burguesia industrial nordestina e da burguesia internacional-associada

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do Centro-Sul com a própria oligarquia agrária algodoeira-pecuária do Nordeste, no momento em que o questionamento da viabilidade da economia da zona semi-árida começou a passar necessariamente pelo questionamento da estrutura fundiária e do direito de propriedade. É o caso, também, da própria dissociação de forças entre a burguesia in­dustrial nordestina e a burguesia internacional-associada do Centro-Sul, no momento em que a primeira começa a perceber que os favores administrados pela S U D E N E vão parar, inevitavelmente, às mãos da segunda. É o caso, por exemplo, da crescente gravitação da própria S U D E N E em relação às forças populares do Nordeste, no momento, em que começa a gerir-se a oposição da própria burguesia industrial do Nordeste ao organismo regional de planejamento, e este começa a depender mais das forças populares do Nordeste para destruir seu opositor principal, o " v e lho " Estado cristalizado no DNOCS , para implementar a passagem da economia do Nordeste à economia nacio­nal integrada. Momento esse que tem seu ponto de fusão, por exem­plo, no movimento popular, que talvez pela primeira vez na história nacional vai reivindicar em praça pública, em comicio, a aprovação do Primeiro Plano Diretor.

A captura do Estado no Nordeste pelo capitalismo monopolista em expansão a partir do Centro-Sul não se completa necessariamente com a simples declaração de funções e objetivos da S U D E N E , nem se­quer com a prática da administração de favores, em sua forma origi­nal. Ela é tanto irresoluta enquanto o conflito de classes não se define, quanto o próprio papel do organismo de planejamento é mutável devi­do ao próprio movimento das classes sociais. Tal captura vai ganhar contornos mais definidos a partir de dois aspectos. O primeiro deles é a inserção, no texto da lei do Primeiro Plano Diretor, do mecanismo de dedução do imposto de renda para as empresas que aplicaram essa dedução em investimentos industriais no Nordeste. Deve-se frisar que essa inserção, que vem a ser o artigo 34 da lei nº 3.959, é de autoria de um parlamentar do Nordeste ligado à burguesia industrial açucareira, o então deputado Gileno De Carli, ele mesmo antigo presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool; De Carli introduziu um dos elemen­tos que faltavam para o financiamento da expansão monopolista: a quase completa transformação do excedente captado pelo Estado em capital. Evidentemente, essa regra é de ouro para o capitalismo mono­polista em expansão no Centro-Sul, pois, por definição, deduz mais quem tem mais imposto a pagar. A SUDENE, através da regulamen­tação da lei, e em outro artigo da lei do Segundo Plano Diretor, tentou transformar essa dedução num fundo de acumulação global, que seria destinado aos projetos industriais por ela aprovados; mas essa regula­mentação nunca chegou a ser implementada, e a orientação transfor­mada em lei, pela aprovação do Segundo Plano Diretor, nunca chegou também a ser implementada, porque era uma opção: o dedutor do Im­posto de Renda poderia colocar seu imposto diretamente em algum

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projeto industrial ou destiná-lo ao fundo global de acumulação, co­nhecido como Fundo de Desenvolvimento do Nordeste - F I D E N E

-é fácil deduzir que a primeira opção sempre foi preferida pelos de-dutores, sendo que o próprio F IDENE , em legislação posterior, seria extinto. Estava criado o mais poderoso mecanismo para a transferên­cia da hegemonia burguesa do Centro-Sul para o Nordeste.

A S U D E N E levou longe demais sua própria ideologia e seus ar­gumentos ideológicos, travestidos em linguagem técnica "neutra" e a-política, na exacerbação do fantasma da "região-problema", a "área mais pobre do Hemisfério Ocidental" "a ameaça à unidade nacional", a área de onde emergiriam os conflitos que poderiam pôr em risco essa "unidade" - no fundo uma "unidade da nação burguesa".

A presidência Kennedy estava inaugurando, nos Estados Unidos da América do Norte, um novo estilo de relacionamento internacio­nal, adaptado às novas condições da competição inter-imperialista e da competição capitalismo versus socialismo. A " N e w Frontier" para a América Latina chamar-se-á "Aliança para o Progresso". Os olhos dos serviços de inteligência norte-americanos, da até então intocável Central Intelligency Agency, de há muito estavam voltados para o Nordeste. Um documentário elaborado pela cadeia de televisão norte-americana A B C , sob o título " The Troubled Land" , enfocava direta­mente a emergência política das classes agrárias dominadas, sob a égi­de das Ligas Camponesas, já no ano de 1959; sutilmente, o referido documentário parecia tomar o partido dos camponeses e dos trabalha­dores rurais do Nordeste, enfatizando os aspectos da violência dos "coronéis" e senhores de engenho, em "close-ups" onde aparecia um velho e conhecido político pernambucano, misto de latifundiário e in­dustrial, brandindo ameaçadoramente um brilhante Smith & Wesson em direção a um alvo que não aparecia, mas que era evidentemente os camponeses. Filmando trabalhos de "mut irão" comandados pelas Ligas Camponesas, com Francisco Julião em pessoa à frente o que o documentário pretendia na verdade era, mais pelo segundo caso que pelo primeiro, mostrar que os camponeses e trabalhadores rurais do Nordeste estavam em vias de tomar as terras.

Logo nos primeiros meses da presidência Kennedy, uma legião de "olheiros", que incluía o então obscuro Mr. Henry Kissinger, esteve no Nordeste observando suas condições. Após algumas reuniões com a embaixada americana no Brasil, a Casa Branca convida Celso Furta­do, em julho de 1961, para ir a Washington, a fim de debater direta­mente com o Presidente John Kennedy o problema do Nordeste e a possível ajuda que o Governo dos Estados Unidos, sob a égide da Aliança para o Progresso, poderia proporcionar ao processo de trans­formações por que passava o Nordeste, consubstanciado nos progra­mas da SUDENE ; em poucos momentos da história brasileira, e sobretudo das relações brasileiro-norte-americanas, a interferência e a

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ingerência da potência imperialista do Norte nos assuntos internos do Brasil foi tão grande e tão descarada. O amor-próprio de alguns im­portantes personagens, a própria mística de que se cercou o período Kennedy, que continua a ser alimentada, e o caráter especial das rela­ções que o regime político brasileiro atual mantém com os Estados Unidos impediram, até agora, uma completa denúncia e avaliação dessa ingerência. Recentes trabalhos, como os de Roett, em seu The Politics of Foreign Aid e o de Joseph A. Page, em The Revolution That Never Was, mostram, pelo menos parcialmente, a profundidade dessa interferência. Assim mesmo, parece que os referidos autores ainda continuam presos à retórica da Aliança para o Progresso, pois atri­buem o insucesso das relações entre a S U D E N E sob o comando de Celso Furtado e a U S A I D , a "disfunções" de ótica de política econô­mica, de que resultavam critérios distintos de prioridades para os pro­gramas, e até as dificuldades de comunicação lingüística: os nordesti­nos não falavam inglês...

Resultado desses entendimentos, chegou ao Nordeste, nos fins de 1961, uma missão da Aliança para o Progresso, sob a chefia do antigo embaixador Merwin Bohan, que já havia trabalhado no Brasil ante-riormente, na Comissão Mista Brasil-Estados Unidos. Os trabalhos da Missão concretizaram-se num relatório intitulado Northeast Team Sur-vey Report, que em princípios de 1962 circulou em duas versões, uma em inglês e outra em português. A redação original do relatório Bohan, como ficou conhecido o documento, que é a citada neste tra­balho, fazia recomendações tão claras no sentido de conter o movi­mento das Ligas Camponesas, de uma forma tão descarada, que o Go ­verno Brasileiro não tinha condições de aceitá-la ( 5 8 ) ; a segunda reda­ção, com as correções e supressões solicitadas pelo Governo Brasilei­ro, é a que é reconhecida como o programa da Aliança para o Progres­so. As menções expressas às Ligas Camponesas, e à coligação de for­ças populares do Nordeste, nesta segunda redação são eliminadas, mas o conteúdo dos programas continua o mesmo. A primeira parte do programa recomendado pela Missão Bohan consistia num progra-ma-impacto, de caráter estritamente assistencialista, cujo objetivo ex­presso era o de esvaziar politicamente o movimento das Ligas Campo­nesas, solapar a liderança das forças populares emergentes no Nordes-te, em base aos resultados que o programa-impacto poderia propor­cionar. Essa visão míope dos policy-makers norte-americanos, cer­tamente ficaria míope mesmo, se não fosse completada pela segunda parte do programa, chamado de " longo prazo" , cuja aparência era o de cooperar com verdadeiros programas e projetos de desenvolvimen­to econômico. A segunda parte das recomendações do Relatório Boham consistia, na verdade, num programa de esvaziamento demo-gráfico do Nordeste, para fazer baixar as pressões agrárias e urbanas, que se configuravam agora sob novas roupagens políticas, num pro­grama de obras públicas cujo cariz assistencialista e imediatista não

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podia ser escondido, e simultaneamente, ou para usar a expressão in­glesa, que os americanos certamente entenderão melhor - para evitar "dificuldades de comunicação lingüística" - last but not least, num conjunto de projetos que na verdade servia aos propósitos de montar uma estrutura capaz de ser posta imediatamente em ação para o caso de que uma ação militar de envergadura se lhes afigurasse - aos norte-americanos - como a única saída para evitar a caída do Nordeste nas mãos das forças populares ( 5 9 ) . Os norte-americanos não confiavam nem na S U D E N E , nem no próprio Governo Brasileiro, e mais que is­so, trataram de boicotar deliberadamente os esforços da S U D E N E ; no que se refere a programas que realmente pudessem promover algo pa­recido com desenvolvimento econômico, as recomendações do Relató­rio Bohan quando não eram cautelosas, como a de não mexer na es­trutura da zona canavieira, eram negativas: não ampliar a capacidade geradora da CHESF em Paulo Afonso ( 6 0 ) . Tais cautelas e negativida-des são explicáveis: tanto não interessava aos norte-americanos hosti­lizar a burguesia industrial nordestina, quanto não lhes interessava fortalecer uma empresa estatal, cujo controle político estava agora em mãos de uma coligação de forças em escala nacional que considera­vam adversa.

A ação da U S A I D no Nordeste visava concretamente minar a própria autoridade da S U D E N E , oferecendo ajuda diretamente aos governos estaduais julgados capazes de se contraporem politicamente às forças políticas populares rotuladas de "radicais": o primeiro acor­do é firmado com o Governo de Cid Sampaio em Pernambuco, quan­do ainda o próprio Acordo do Nordeste não estava em vigência; o se­gundo acordo é firmado com o Governo Aluisio Alves, no Rio Gran­de do Norte, imposto à S U D E N E goela abaixo com o beneplácito do próprio Presidente Goulart, cuja tática política centrava-se numa mío­pe manobra de desgaste das forças políticas à sua esquerda, no caso as forças sob a liderança de Miguel Arraes. O Consulado norte-americano em Recife chegou às proporções de uma verdadeira embai­xada, com mais de onze vice-cônsules e uma legião de funcionários que incluía os indefectíveis agentes da C IA , disfarçados em Corpos de Paz, pessoal técnico e pessoal diplomático. Além dos programas que faziam parte do chamdo Acordo do Nordeste, o Governo norte-americano deslanchava com uma série de iniciativas, através de pro­gramas como o da C L U S A , na verdade um organismo da C IA - ver li­vro de Joseph A. Page, citado - cujo objetivo era o de infiltrar agentes nos próprios sindicatos rurais controlados pela Igreja Católica no Nor­deste.

O objetivo de solapar a autoridade da S U D E N E era estratégico para a U S A I D e Aliança para o Progresso, na mesma medida em que o próprio papel da S U D E N E ainda era indefinido, na mesma medida em que a própria intervenção do Estado sob a égide do organismo de planejamento regional passava a depender mais e mais do apoio das

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forças políticas populares do Nordeste. A ação perturbadora da U S A I D eliminou, na visão ingênua de Page e Riordan Roett, a possi­bilidade de uma "revolução sem violência", e contribuiu para manter o status quo, reforçando o poder da oligarquia agrária nordestina, nes­te caso incluindo a própria burguesia do açúcar: em verdade, a ação perturbadora da U S A I D não ajudou a manter o status quo, mas a transformá-lo no sentido da implantação da completa hegemonia bur­guesa em escala nacional, hegemonia essa já completamente permeada pela presença de capital internacional, vale dizer também norte-americano ou sobretudo norte-americano. Aliás, em diversas passa­gens, o próprio Relatório Bohan enfatiza essa necessidade: o problema do Nordeste somente se resolveria mediante sua completa integração à economia nacional ( 6 1 ) . A operação tresanda a maquiavelismo: a SU­D E N E aparecia publicamente de braços dados com o imperialismo, ainda que em relação tensa - quem tem medo de Virgínia Woolf , no caso? Assim, o apoio que o organismo de planejamento recebia das forças populares debilitou-se, com o que o possível direcionamento da intervenção do novo Estado no Nordeste, no sentido de dissolver sua ambigüidade em favor das reivindicações populares, perdia sua base; a total captura da S U D E N E pela burguesia internacional-associada do Centro-Sul passou a depender apenas da resolução do conflito de clas­se em escala nacional. A oposição das forças populares do Nordeste à S U D E N E , nas vascas da agonia do regime político populista, era já ir­remediável: esta havia capitulado frente à conjunção de forças do im­perialismo e da burguesia internacional-associada do Centro-Sul, ca­pitulação que se expressa bem no anteprojeto do Segundo Plano Dire­tor, onde a própria SUDENE havia retirado a restrição de utilização pelas empresas de capital estrangeiro do mecanismo da dedução fiscal, antes somente permitida a empresas de capital cem por cento nacional.

O Governo Miguel Arraes em Pernambuco denuncia os acordos da U S A I D no setor de educação, justamente um dos primeiros proje-tos-impacto, firmado ainda sob o Governo Cid Sampaio. O núcleo da argumentação do então governador de Pernambuco era o de que um Estado da União não tinha poderes para firmar convênios diretamente com uma potência estrangeira, com o que se procurava reforçar a já débil posição da S U D E N E ; esta omite-se da questão seguindo, nesse particular, a mesma tática míope do Presidente Goulart, que consistia em isolar as forças populares à sua esquerda. A S U D E N E ajuda a U S A I D nos seus intentos de desmontar a força política das associa­ções camponesas: num dos episódios mais demagógicos de que se tem notícia, o irmão do presidente John Kennedy, o atual Senador Edward Kennedy, foi ao Recife para doar aos camponeses do Engenho Gali-léia, o símbolo das Ligas, em nome de seu irmão e como prova do inte­resse dos norte-americanos pelo sofrimento dos camponeses do Nor­deste, um gerador de energia que mal saiu de sua embalagem. Curiosa­mente, quando o jovem Edward Kennedy perguntou a um dos líderes

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de Galiléia que presente lhes seria mais grato, o camponês respondeu, em síntese admiravelmente dialética: "retirar a polícia do Engenho Galiléia". A S U D E N E patrocina o projeto Tiriri, que consistia no ar­rendamento de engenho do mesmo nome, na zona sul de Pernambuco, para fundar um projeto de exploração cooperativa, que deveria servir como efeito-demonstração contra as ligas e os sindicatos rurais, e si­multaneamente salvar a estrutura de controle da propriedade na Zona da Mata pernambucana; a S U D E N E insiste no projeto de colonização do Alto Turi, no Maranhão, apesar da límpida evidência de sua invia­bilidade, como forma de esvaziar a pressão sobre a terra exercida pelos camponeses e outros trabalhadores rurais do Nordeste, agentes políti­cos agora autônomos.

5. A SUDENE: Planejamento da expansão

hegemônica do capitalismo monopolista

A crise de 1964 funde todos os elementos do conflito de classes, tanto a nível regional quanto nacional; na verdade, é apenas pelo agra­vamento das tensões no coração da própria região que comandava o processo de expansão capitalista e pela forma que tomou, de uma in­tervenção aberta das Forças Armadas, que o conflito de classes no Nordeste também se resolve - advertindo-se, desde logo, que o termo "resolução" é empregado aqui em seu sentido dialético -; e por conse­qüência, que o direcionamento do processo de planejamento regional assume sua forma definitiva. Embora seja verdade, conforme este tra­balho intentou demonstrar, que as causas da emergência de um pro­cesso não-espontâneo de intervenção do Estado estivessem fundadas nas contradições da própria economia nordestina, nas suas contradi­ções com a expansão capitalista do Centro-Sul e nos conflitos de classe desiguais a que ambos processos davam lugar, nada de antemão estava irremediavelmente determinado; é por isso que se intentou perseguir, a grandes pinceladas como permite o nível de ensaio deste trabalho, as diversas situações, as mudanças na correlação de forças, o alinhamen­to e realinhamento das forças sociais, para não se traçar um quadro fa-talístico, determinado desde o princípio. Pode-se aventar, por pura es­peculação, a hipótese de que, se o conflito de classes no Centro-Sul não tivesse chegado ao ponto em que chegou, a forma de resolução particular do conflito de classes no Nordeste poderia ter seguido linea-mentos distintos dos que aqui foram caracterizados; não se pretende avançar nesse terreno de especulações, inclusive porque a verdade é que uma das causas para que o conflito de classes no Centro-Sul assu­misse as formas que assumiu, e sua resolução tomasse a forma que to­mou, encontra-se precisamente no antagonismo criado pela emergên­cia das forças populares no Nordeste. Enfim, quer-se chamar a aten­ção é para o fato de que a S U D E N E pós-64 é muito mais o resultado

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da forma de resolução do conflito de classes em escala nacional do que regional.

A S U D E N E anuncia, por ironia da História, através especialmen­te do mecanismo de incentivos fiscais conhecidos como 34/18, uma das formas de financiamento da expansão monopolista no Brasil pós-64. Não é por acaso, mas por uma exigência das leis de reprodução do capitalismo monopolista, que a " invenção" do 34/18 é copiada para propiciar a expansão monopolista em outras " reg iões" e setores da atividade econômica em escala nacional: os incentivos foram primeira­mente estendidos à Amazônia, logo em seguida à pesca, ao refloresta-mento, ao turismo. Foram estendidos, sob outras formas, ao financia­mento das exportações, ao financiamento da "obsolescência progra­mada", enfim a um conjunto de atividades, que expressam na verdade a transformação do conjunto da riqueza nacional em pressupostos da reprodução do capital; e a aceleração da imbricação Estado-burguesia internacional-associada é anunciada também, até certo ponto, pela SUDENE. A S U D E N E é, neste sentido, um aviso prévio do Estado autoritário, da exacerbação da fusão Estado-burguesia, da dissolução da ambigüidade Estado-burguesia, a tal ponto que um se confunde com o outro, e os limites de Estado e sociedade civil parecem borrar-se completamente.

Os resultados do programa de industrialização, sob a égide do 34/18, são fartamente conhecidos no campo da transferência da hege­monia da burguesia internacional-associada do Centro-Sul para o Nordeste. Os principais grupos econômicos do Centro-Sul transferi­ram-se para o Nordeste, implantando fábricas e unidades produtivas que, em alguns casos, mesmo quando operem a capacidade ociosa, mesmo quando representem duplicação de produções que, numa visão marginalista, poderiam ser mais econômicas no Centro-Sul, assegu­ram a homogeneização monopolista do espaço econômico nacional. Ainda quando os resultados do programa de industrialização deixem a desejar em termos de criação de empregos, ou que se afastem do pa­drão "labour intensive" que preconizava a S U D E N E nos seus primór­dios, é inegável que a economia do Nordeste integrou-se completa­mente à economia nacional. Perde, pois, qualquer sentido continuar a falar de "economias regionais" no Brasil, e o fato de que a própria S U D E N E continue a tocar uma música antiga, vem apenas em desa­bono do organismo de planejamento regional, que, por sinal, deixou de ter qualquer sentido de "planejamento".

Far-se-á correta avaliação dessa transferência de hegemonia da burguesia internacional-associada e da conseqüente captura do Esta­do, através da transcrição de trechos do estudo de Francisco de Olivei­ra e Henri-Phillippe Reichstul, já citado:

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"A expansão em direção ao Nordeste, via mecanismo do 34/18, satisfaz to­dos esses requisitos. Em primeiro lugar, por definição, sendo as pessoas jurídi­cas dedutores e aplicadores, conduz, inevitavelmente, as pessoas jurídicas mo-nopolisticas ao ápice da pirâmide de dedutores e aplicadores. Essas pessoas jurídicas podem aplicar diretamente, em projetos próprios, ou indiretamente em projetos de terceiros. Num caso como noutro, o resultado mais importante é a formação ou a expansão de conglomerados. Alguns dados ajudam a me­lhor compreender o processo da expansão. Tomando-se a condição de aplica­dores em projetos próprios - já que a aplicação em projetos de terceiros não pode ser conhecida com os dados que se dispôs - tem-se que das 100 maiores empresas nacionais (ver Revista Visão, "Quem é Quem na Economia Brasilei­ra", 16/30 agosto de 1971), incluindo-se empresas estatais, de capital prepon­derantemente estrangeiro, de capital preponderantemente nacional e toda a classe de mistas, 24 delas têm projetos próprios(a), implantados ou em implan­tação no Nordeste. Isto satisfaz à primeira condição de que o mecanismo este­ja sendo usado como regra geral para expansão da empresa de tipo monopolís-tico. Essas 24 empresas ou grupos estão presentes em 07 dos principais proje-. tos industriais da área da SUDENE, selecionados a partir de um corte ao nível dos 10 milhões de cruzeiros de incentivos fiscais aplicados ou a serem aplica­dos; detêm, em todos os projetos selecionados, posição majoritária Ou pelo menos igual à do outro ou outros maiores acionistas. Interessante é observar-se a origem do capital das empresas ou grupos que estão na situação acima. Das 24 empresas com projetos próprios, 4 são estatais, 6 são de propriedade privada predominantemente nacional (não sabemos o grau de associação que possa existir), e 14 são de propriedade estrangeira (totalmente, com participa­ção, se existir, de capital nacional apenas simbólica).

Uma outra forma de verificar a hipótese anterior consiste em saber se as empresas mais importantes em seus respectivos ramos industriais estão presentes à expansão que se dá no Nordeste. Em caso afirmativo, ter-se-ia que o proces­so é não somente de homogeinização monopolística global, mas setorial, isto é, tendem a ser principais no Nordeste as empresas ou grupos de empresas que já são principais no Brasil. Neste caso, dado que o que se procura não é, essen­cialmente, conquistar mercados, deve-se pensar que a estratégia desse tipo de empresas, ao expandir-se para o Nordeste, é a de preservar mercado consoli­dando suas posições no ramo industrial em que já é importante. No limite, essa estratégia levaria até a implantação de unidades no Nordeste que não tivessem lucratividade imediata. Uma análise que considere as 10 principais empresas por ramo industrial no Brasil (novamente os dados são da revista Visão) ofere­ce os seguintes resultados:

(a) Esse número pode estar subestimado, em virtude de não ter sido possível, face à preca­riedade das fontes que utilizamos, identificar a propriedade de todos os projetos ou pelo menos o grupo líder. Os dados a respeito dos projetos foram tirados de uma lista consolidada do Banco do Nordeste do Brasil, complementada com uma lista publicada pela revista Veja. n. 185, "Guia de Incentivos Fiscais". Genericamente, do ponto de vista do mecanismo do 34/18, está se assi­milando o restante do Brasil à região Sudeste; isto porque não se dispôs de dados mais recentes sobre a participação percentual das pessoas jnrídicas de cada região no montante de depósitos do 34/18. Sem embargo, em 1965, por exemplo, as pessoas jurídicas dos estados componentes da região Sudeste constituíam 82,6% do volume total de depósitos, V. Hirschmann, op. cit.. tab.

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Ramo industrial* Entre as 10 principais, quantas têm projeto próprio no Nordeste

Mineração Minerais metálicos Minerais não-metálicos

Transformação Metalúrgica Cal e cimento Cerâmica, artefatos de cimento, gesso e amianto

Transformação Metalúrgica Siderurgia Não-ferrosos Produtos metalúrgicos diversos

Mecânica Máquinas, motores, equipamentos in­dustriais

Aparelhos elétricos. Comunicação Material elétrico Aparelhos domésticos, lâmpadas

Material de Transporte Veículos automotores Autopeças e carroçarias Tratores, máquinas de terraplenagem

Borracha Pneus

Química Química e Petroquímica

Plásticos e Derivados Produtos Farmacêuticos Perfumaria, Higiene Dom. Têxtil

Fiação e tecelagem Art. de vestuário e acessórios

Produtos A limentícios Laticínios Produtos alimentícios diversos Bebidas

Indústrias Diversas Conglomerados

1 (a 6ª maior empresa) 1 (a 1ª maior empresa)

1 (a 1ª maior empresa)

2 (as 1ª e 2ª maiores empresas)

1 (a 1ª maior empresa) 2 (a 2ª e a 5ª maiores empresas) 1 (a 4ª maior empresa)

2 (a 1ª e a 5ª maiores empresas)

2 (a 1ª e a 4ª maiores empresas) 2 (a 1ª e a 5ª maiores empresas)

1 (a 2ª maior empresa) 1 (a 10ª maior empresa) 1 (a 6ª maior empresa)

1 (a 3ª maior empresa)

5 (a 1ª, a 2ª, a 3ª, a 4ª e a 9ª. maiores empresas)

1 (a 1ª maior empresa) 1 (a 1ª maior empresa) 1 (a 3ª maior empresa)

1 (a 1ª maior empresa) 3 (a 1ª, a 7ª e a 8ª maiores empresas)

1 (a 9ª maior empresa) 2 (a 1ª e a 3ª maiores empresas) 2 (a 1ª e a 2ª maiores empresas)

4 (a 1ª, a 2ª, a 3ª e a 4ª maiores)

A classificação é da revista Visão e não corresponde rigorosamente à classificação ado­tada pelo IBGE.

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Portanto, dos 16 subsetores que resumem a estrutura industrial do país, 11 estão se reproduzindo na estrutura industrial do Nordeste; além disso, são as empresas mais importantes dos subsetores e dos ramos, que estão, direta­mente, implantando unidades de produção no Nordeste, e é lógico pensar que não o estão fazendo para concorrerem com suas matrizes na região Sudeste ou em outras regiões do Brasil. É lógico também que a não-presença de todas as principais responde à manutenção do grau de competividade que existe no ca­pitalismo monopolista (este não significa a ausência total de competição, mas como é sabido, o estreitamento da faixa de competição, e a redução da compe­tição dos grandes grupos); portanto, algumas empresas estão não somente ten­tando manter suas posições no mercado brasileiro como um todo, mas adian-tando-se a possíveis expansões de demanda, para o que a implantação de uni­dades no Nordeste pode ser estratégica no sentido de ganhar uma porção maior ainda no mercado nacional.

O resultado da ação desses mecanismos, e da estratégia implícita ou explí­cita da manutenção e elevação nos espaços periféricos da taxa de lucro do sis­tema, toma a forma concreta, no Nordeste, de uma estrutura industrial que nada tem a ver com a formação e a distribuição da renda a curto prazo da própria região. Isto é, a estrutura industrial não é função de um mercado regional, mas função do mercado nacional mais amplo. Vale a pena comparar a estrutura industrial do Nordeste, até uma década atrás, e a estrutura indus­trial em ser, derivada do 34/18. A primeira é evidentemente função do merca­do regional em primeiro lugar e das fracas participações da indústria do Nor­deste nos totais nacionais do setor, enquanto a segunda reflete inegavelmente o processo da redivisão interregional do trabalho entre os setores industriais do país como um todo, que se analisou nesta secção:

Estrutura do Valor Inversões por classe de Adicionado na indústria segundo pro-

Sub-setores Indústria em jetos aprovados até 1962 (%) 1969

a) Bens de Capital e Intermediários 29,2 67,1 Minerais não-metálicos 6,3 11,2 Metalúrgica 2,7 18,7 Mecânica 0,2 1,7 Mat. Elét. e Mat. de Comunicações 0,1 3,5 Mat. de Transporte 0,4 2,6 Madeira 1,0 1,6 Papel e Papelão 0,9 3,6 Borracha 0,9 0,7 Couros, peles e similares 1,2 1,6 Química e Farmacêutica 15,5 21,9

b) Bens de Consumo 70,4 32,7 Mobiliário 1,5 0,3 Têxtil 26,7 16,1

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Vestuário, calçados e art. de tecidos Produtos alimentícios Bebidas Fumo Editorial e Gráfica Diversos

1,7 30,4 3,9 4,3 1,9 0,4

2,9 4,2 3,6 0,1 0,4 0,2

Nota: Existe ainda um resíduo de cerca de 5% não distribuído na estrutura das novas inversões, por problemas de classificação. Fontes: Para a estrutura industrial de 1962, Hirschmann, op. cit. tendo como fonte original, SU -DENE e BNB/ETE NE. Para a estrutura das inversões, SUDENE DEZ ANOS, op. cit.. pág. 164.

As duas estruturas não são rigorosamente comparáveis, pois uma se refe­re ao Valor Adicionado e a outra é simplesmente uma estrutura das novas in­versões patrocinadas pelo 34/18; a forma como esta segunda se concretizará em termos de valor adicionado, dependerá de outras variáveis tais como remu­neração do fator trabalho, taxa de lucro etc. Ainda assim, algumas considera­ções podem ser extraídas do confronto entre as grandezas que se contrapõem. Em primeiro lugar, salta aos olhos a inversão total da ordem de importância; na estrutura industrial do Nordeste, que é função do seu mercado, são as in­dústrias de bens de consumo que têm a predominância, aliás bem de acordo com os baixos níveis de renda regionais; na estrutura das inversões patrocina­das pelo 34/18, são as indústrias produtoras de bens intermediários e de capi­tal que têm a absoluta predominância. Aliás, o fato de que as inversões do 34/18 se dirigem preferentemente para as áreas das indústrias consideradas "dinâmicas", confirma indiretamente a característica da redivisão do trabalho operada entre o setor industrial do Sudeste e o do Nordeste, no sentido da ho-mogeinização monopolística do espaço econômico nacional, com a conse­qüente estratégia de preservação e consolidação de posições no mercado nacio­nal. Esse é também o sentido da mudança geral na estrutura industrial do país, que no caso do Nordeste, sob a égide do 34/18, e tomando como referência a estrutura das novas inversões, avança ainda mais no processo de mudança da estrutura global da economia brasileira.

Apesar de ser um tanto "descolada" do curto prazo da formação e distri­buição da renda regional, a nova estrutura em formação não o é inteiramente da constelação de recursos de que dispõe a região. Se bem verificarmos, as maiores concentrações de inversão se dão nos subsetores de Minerais não-metalúrgicos, Metalúrgica, Química e Farmacêutica, e entre as "tradicionais" no Têxtil. 6 particularmente reconhecido que o Nordeste dispõe de uma exce­lente dotação de recursos naturais para essas classes de indústria, propiciada pela existência de abundantes reservas de calcáreo,.amianto e gás natural (pa, ra processos modernos de siderurgia), petróleo e gás natural para a petroquí­mica, sal e fibras têxteis. Assim, desde que viabilizado pela redução do custo do capital, isto é, pela elevação da taxa de lucro real, a exploração desses re­cursos naturais tornou-se um excelente campo de aplicações, penetrando o es­paço econômico da região pelas estruturas oligomonopolísticas que coman­dam a indústria nacional. Assim, ao lado do efeito de elevação das taxas lucro pela penetração num espaço "periférico" ao eixo já estruturado monopolisti-camente, a produtividade dos empreendimentos crescerá também em razão da

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À margem desse aspecto, que se refere diretamente ao controle dos ramos industriais no Brasil como um todo, ocorre um outro, muito interessante, e que não guarda relação diretamente com a redivisão do trabalho entre setores industriais, mas está ligado ao processo geral de oligo-monopolização da eco­nomia brasileira. O mecanismo do 34/18, por definição conforme já se ressal­tou, beneficia as pessoas jurídicas na razão direta do seu tamanho (incluindo-se aqui volume de vendas, capital, lucro); ora, existe um sem número das prin­cipais empresas ou grupos de empresas no Brasil que não aparecem direta­mente patrocinando projetos próprios na área da SUDENE. Uma relação publicada em seis volumes pelo Banco do Nordeste do Brasil arrolava cerca de 75.000 pessoas jurídicas que se haviam beneficiado, no exercício de 1970, dos incentivos fiscais, em todo o Brasil, optando pela área da SUDENE (Banco do Nordeste do Brasil S/A, Departamento de Crédito Geral, Depósitos para Investimentos no Nordeste, Fortaleza, s/d). Entre estas estavam, obviamente, todas as demais principais pessoas jurídicas, isto é, empresas, que existem no território nacional ( b ) . Que fazem com seus incentivos fiscais, estas outras em­presas? Aplicam em projetos de terceiros, numa política não somente de diver­sificação do risco, mas, principalmente de diversificação do seu campo de ati­vidades, isto é, estão se transformando em conglomerados. O mercado de capi­tais cativo dos incentivos fiscais transforma-se, assim, na parteira dos conglo­merados no Brasil, radicalizando, talvez precocemente, uma tendência do ca­pitalismo em escala mundial. As conseqüências não apenas econômicas mas políticas desse processo são óbvias: uma imensa concentração de renda e de poder é gestada como subproduto desse processo, que se soma à tendência ge­ral de qualquer economia capitalista. É obvio que essas empresas ou grupos de empresas não aplicam em qualquer projeto: ao lado de análises econômicas ri­gorosas, que levam em conta a rentabilidade do novo empreendimento, os cri­térios principais da decisão de aplicar neste ou naquele projeto revelam a es­tratégia peculiar de cada tipo de empresa: empresas bancárias e financeiras procuram aplicar em projetos de clientes conhecidos, ao mesmo tempo que, sub-repticiamente, vão assumindo o controle de um sem número de novas em­presas; grandes empresas industriais procuram aplicar em projetos que de­mandem os bens (incluindo-se equipamentos) que elas produzem; outras apli­cam em projetos que vão suministrar matérias-primas ou bens intermediários que são inputs dos seus próprios processos produtivos; algumas outras aplicam em projetos de terceiros, dentro do ramo em que já são líderes ao lado de outros grandes concorrentes, como uma forma de procurar evitar que um grande concorrente venha a assumir, no futuro, o controle do novo em­preendimento; outras simplesmente aplicam em projetos considerados bons do ponto de vista econômico, entrando com uma forte participação, não-

(b). Entre as pessoas e empresas que operam na captação de recursos do 34/18, hoje uma faixa especializada do mercado de capitais, conhece-se apenas um caso - por isso mesmo insóli­to - de uma grande empresa de capital estrangeiro que não se utiliza dos incentivos fiscais, em qualquer área onde eles estão disponíveis, recolhendo integralmente seu imposto de renda. A ex­plicação usualmente encontrada é a de que no país-sede desta empresa não se reconhece a dedu­ção fiscal no Brasil como não-lucro, o que faz com que a empresa caia numa faixa de incidência tributária mais alta, que não lhe é interessante.

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qualidade dos insumos utilizados. Este é outro aspecto interessante da redivi-são inter-regional do trabalho entre os setores industriais do Nordeste e do Su­deste.

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majoritária. A teia de relações que se tece é no sentido, de um lado, de aumen­tar o grau de concentração da propriedade do capital e, de outro, de solidari­zar cada vez mais o destino do próprio capital. Nem se contradiga esta argu­mentação com uma variante surrada da democratização do capital e da pro­priedade, desde que todas as pessoas jurídicas podem deduzir e aplicar; uma seleção de 526 projetos da área da SUDENE mostra que 3 empreendimentos, com utilização de incentivos fiscais acima de CrS 100 milhões, absorvia 12% do total de incentivos; somando-se os seguintes 4 projetos até Cr$ 50 milhões de utilização de incentivos fiscais, a porcentagem acumulada do total de incen­tivos chegava a 21%; os 60 seguintes projetos, até o nível de Cr$ 10 milhões de absorção de incentivos acumulava cerca de 60% do total de incentivos. Os 459 projetos abaixo de Cr$ 10 milhões de absorção de inventivos apropriavam apenas os restantes 40% do total de incentivos (Ver quadro que se segue.).

L I S T A DE PROJETOS DA S U D E N E

Foram levantados 526 projetos totalizando CT% 3.290.468.966 tendo a seguinte

concentração por extrato:

Participação nos projetos Participação no total acima de 10 M de projetos

% Das % Dos % Empresas % Incentivos Empresas Incentivos Acum. Acum.

1º Extrato. Projetos com 34/18 acima de 100 Milhões

3 empresas: Cr$ 405.043.120 4,5 20,7 0,6 0,6 12,3 12,3

2º Extrato: Projetos com 34/18 entre 99 999 999 e 50 Milhões

4 empresas: Cr$ 289.964.806 0,6 14.8 0,8 1,4 8.8 21,1

3º Extrato: Projetos com 34/18 entre 49 999 999 e 20 Milhões

25 empresas: Cr$ 796.839.137 37,3 40,8 4,8 6,2 24,2 45,2»

4º Extrato: Projetos com 34/18 entre 19 999 999 e 10 Milhões

35 empresas: Cr$ 462.717.023 52,2

100,0 23,7

100,0 6,7 12,9 14,1 59,4

5º Extrato: Projetos com 34/18 abaixo de 10 Milhões

459 empresas: Cr$ 1.335.904.880 87,1 100,0 40,6 100,0

Fonte: Dados da revista Veja "Guia de Incentivos Fiscais", nº 185, consolidada com uma lista

do Banco do Nordeste do Brasil referente a projetos que em 1971 ainda não haviam ter­

minado a captação de recursos.

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Coisa diversa é pensar que os problemas do povo do Nordeste, dos seus camponeses, dos seus trabalhadores, foram resolvidos. A "resolução" do con­flito de classe regional e mesmo nacional deu-se exatamente pelo desmantela­mento das forças políticas dessas classes sociais, pela sua repressão. Assim, a resolução, desta vez sem aspas, das questões ligadas ao levantamento do nível de vida das classes trabalhadoras do Nordeste une-se, inapelavelmente, ao destino de toda a classe trabalhadora no Brasil. É por isso que advertimos em algum momento deste trabalho que o "assalto aos céus" representado pelo de­safio que as classes trabalhadoras do Nordeste e do Brasil impuseram à bur­guesia não deve ser lamentado: ele é um marco decisivo, inclusive e talvez principalmente pelo fato de que, inexistindo agora especifícidades regionais, a forma como o Estado monopolista resolveu o conflito de classes numa situa­ção particular da História brasileira tem desdobramentos que não podem ser minimizados. A insistência da burocracia da SUDENE, impregnada talvez de nostalgia e certamente calçada nas melhores intenções em continuar a colo­car os problemas do Nordeste como "regionais", é agora, historicamente, rea­cionária: apenas serve para azeitar os eixos dos mecanismos do capital mono-populista."

Quanto à burguesia industrial nordestina, esta pagou um preço que jamais sonhou; e sua existência é "irrepetible desde siempre y para siempre", para retomarmos os termos admiráveis de Gabriel Garcia Márquez: no movimento de concentração e centralização do capital no Brasil, e na forma particular que lhe imprimiu o "planejamento" da SUDENE, não há lugar para ela.( 6 2 ) Os poucos e contados grupos econômicos regionais que sobreviveram fizeram-no porque consegui­ram elevar-se ao mesmo nível dos grandes grupos monopolistas da economia nacional e, em certos termos, já o eram ou estavam cami­nhando para sê-lo à época da criação da S U D E N E ; os favores fiscais administrados por esta serviram-lhe igualmente como mecanismos de concentração e centralização do capital. O resto da burguesia indus­trial nordestina foi irremediavelmente jogado ao lixo da História. Dies irae, dies irae.

A oligarquia agrária algodoeira-pecuária do Nordeste, que por tanto tempo acaparou o Estado, e que momentaneamente pensou ter vencido em 1964, sobreviveu apenas para poder escrever, se souber - e na maior parte dos casos, não o saberá - o seu próprio epitáfio. Sobre­vive apenas porque na verdade quase toda a agricultura brasileira ain­da é um largo campo de acumulação primitiva; mas os movimentos de concentração do capital também acabarão por atingi-la: que o digam as recentes expansões do capitalismo no campo no Centro-Sul, espe­cialmente em São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná. De te fábula narratur. Alguns dos seus membros sobrevivem como espectros, fan­tasmas que falam; alguns, porque na verdade transformaram-se em funcionários do Estado: essa sobrevivência, essa transformação, é o si­nal de sua futura e completa dissolução. Já não são lideres de sua clas­se: são funcionários do partido governamental, e rigorosamente, fan­tasmas de um fantasma.

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A expansão do capitalismo monopolista no Brasil aponta, no li­mite para a dissolução das "regiões", enquanto espaços de produção e apropriação do valor especiais e diferenciados; por certo persistirão diferenciais setoriais, mas ninguém pode na verdade dizer que a repro­dução do capital da Rhodia no Nordeste - para dar um exemplo - é diferente da reprodução do capital da Rhodia em São Paulo. Tal mo­vimento de dissolução/centralização constitui a base da centralização do poder no Brasil, ao nível do Executivo Federal, mais rigorosamen­te, já que o Parlamento não é mais o locus da representação dos inte­resses da burguesia internacional-associada e dos monopólios do Esta­do; restar-lhe-á, apenas, se for digno desse papel, ser um dos fóruns da vontade popular, da verdadeira Nação, que o Estado não mais repre­senta.

Constitui essa oposição entre o Estado e a Nação o " impasse" mais sério da história contemporânea nacional: o peso excessivo dos interesses estrangeiros, a harmonia-competição entre a burguesia in­ternacional-associada e os monopólios do Estado, a luta mortal no processo de concentração e centralização do capital tornaram o país ingovernável, mesmo para os interesses das classes dominantes; é, sem dúvida, um dos fulcros da permanente crise do Estado brasileiro, e sua quase permanente tendência aos golpes de Estado, golpes dentro dos golpes. Outro "impasse", mais sério e mais profundo, é a relação de força desnudada, desmascarada, que esse poder mantém com as clas­ses subordinadas, com o operariado dos campos e das cidades, com os camponeses, estudantes e intelectuais. Tal " impasse" revela a profun­da incompatibilidade a que chegou o regime político no Brasil e, para além do catastrófico, tende a transformar-se num "impasse" para o capitalismo; sua resolução tem um futuro e um nome: socialismo.

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Notas

(52) Ver, principalmente, SINGER, Paul - O Milagre Brasileiro: causas e conseqüências in Cadernos CEBRAP 6. São Paulo, Edit. Brasileira de Ciências, 1927.

(53) Existem, para a maioria dos Estados do Nordeste, análises de resultados eleito­rais no período 1945-1964; na maior parte dos casos, entretanto, a tais análises escapa o conteúdo do conflito de classes.

Ver: CASTRO, F.F. - A campanha eleitoral de 1958 no Piauí, in Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte (8) abril 1960, SOARES.GIaucio A. Dillon - El sistema electoral y Representación de los Grupos Sociales en Brasil, 1945-1962, in Revis­ta Latinoamericana de Ciência Política. Santiago de Chile, FLACSO, 2(1), abril de 1971; MONTENEGRO, A.F. - Tentativa de interpretação das eleições de 1958 no Ceará, in Revista Brasileira de Estudos Políticos, op. cit.; SAMPAIO, Nelson de Souza - Eleições baianas, in Revista Brasileira de Estudos Políticos, op. cit.; VEIGA, Gláucio et al -Geografia eleitoral de Pernambuco, in Revista Brasileira de Estudos Políticos, op. cit.; COHN, Amélia, em seu Crise Regional e Planejamento, op. cit., realiza um dos poucos intentos para entender a criação da SUDENE como expressão de crise política. Ao nível das legendas partidárias, as correlações de forças vitoriosas nos Estados do Nordeste, nas eleições para governadores em 1958 e 1962, foram as seguintes:

1958 1962 Maranhão PSD PSD

(Gov. eleito: (Gov. eleito: Mattos Leão) Newton Bello)

Piauí PTB PTB (Gov. eleito: (Gov. eleito: Chagas Rodrigues) Petrônio Portela)

Ceará PTB UDN (Gov. eleito: (Gov. eleito: Parsifal Barroso) Virgílio Távora)

R. Grande do Norte UDN (1955) UDN (1960) (Gov. eleito: (Gov. eleito: Dinarte Mariz) Aluizio Alves)

Paraíba UDN + PSD PSD + PTB (Gov. eleito: Ribeiro (Gov. eleito: Coutinho, mas o Pedro Gondim) mandato foi quase todo

Pedro Gondim)

exercido por Pedro Gondim, vice-gover-nador)

Pernambuco UDN + PTB + PC PS + PTB + PSD + PC (Gov. eleito: (Gov. eleito:

AÍagoas Cid Sampaio) Miguel Arraes)

AÍagoas PSP UDN (Gov. eleito: (Gov. eleito:

Sergipe Muniz Falcão) Luis Cavalcanti)

Sergipe UDN UDN dissidente + PTB + PSD (Gov. eleito: (Gov. eleito:

Bahia Leandro Maciel) Seixas Dória)

Bahia UDN + PTB PTB + U D N (Gov. eleito: (Gov. eleito: Juracy Magalhães) Lomanto Júnior)

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(54) FURTADO, Celso - Dialética do Desenvolvimento. Rio de Janeiro, Editora Fundo de Cultura, 1964, e Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico. 3. ed. São Paulo, Editora Nacional, 1969.

(55) "... A experiência histórica indica que as desigualdades regionais de níveis de vida, quando assumem as características de sistemas econômicos isolados, tendem a ins­titucionalizar-se: os grupos sociais das economias de mais elevado padrão de vida ten­dem a articular-se na defesa dos níveis de salário e da própria estrutura do mercado cria­da por esses níveis salariais. A persistirem as tendências atuais, há o risco real de que se diferenciem cada vez mais os dois sistemas econômicos já existentes no território nacio­nal, e de que surjam áreas de antagonismo nas relações entre as mesmas". Uma política de desenvolvimento ... op. cit., p.8.

(56)"... A desigualdade econômica, quando alcança certo ponto, se institucionaliza (...) Quando uma economia subdesenvolvida cresce - como é o caso em todo o Brasil, mesmo na região de São Paulo - os salários não tendem a crescer com a produtividade. Disso todos sabemos. Cresce a economia e os salários podem não crescer com a produti­vidade, pelo simples fato de que há sempre uma oferta de mão-de-obra pressionando por todos os lados e impedindo a organização da classe trabalhadora. (...) Quando se vencer essa etapa em São Paulo, uma das áreas mais desenvolvidas do Brasil, os salários tenderão espontaneamente a pressionar para cima, à proporção que aumenta a produti­vidade. E então, a classe trabalhadora se organizará eficientemente, como em todos os países industrializados do mundo. Terá força quando se tornar um fator relativamente escasso. (...) Em tais circunstâncias, a classe trabalhadora, seja qual for o regime, se or­ganiza eficientemente e assume posição política poderosa. E, a partir desse momento, não mais permite que seus salários sejam condicionados por uma afluência desorganizada de mão-de-obra. (...) Se tal fenômeno vier a ocorrer no Brasil, pais de grande extensão geo­gráfica, a formação de grupos regionais antagônicos poderá ameaçar a maior conquista de nosso passado: a unidade nacional." FURTADO, Celso - A Operação Nordeste. Rio de Janeiro, ISEB, 1959. pgs.14/15/16.

(57) OLIVEIRA, Fernando Henrique Menezes de; ROCHA, Zenaldo Barbosa; MACIEL, Márcio Ribeiro e GOMES, José de Melo - A Natureza Jurídica da SUDE­NE in SUDENE-Boletim, Econômico 1 (1) 1962.

(58) "Nas regiões nordestinas de cana-de-açúcar, como pode o trabalhador rural sa­ber que há uma possibilidade de mudança e progresso sem o recurso à violência? (...) Quando o cortador de cana-de-açúcar em Pernambuco ou o colheteiro (sic) de abacaxi na Paraíba tem um problema, uma questão premente, volta-se agora para as ligas cam­ponesas para pedir auxilio. Afora a sua doutrina revolucionária, o atrativo básico das li­gas é o seu serviço de conselhos de simpatia (sic) e sua assistência quase-juridica ao tra­balhador rural. Na realidade, as Ligas pouco fazem pelo camponês nos tribunais (atri­buindo tais fracassos como prova de necessidade de uma drástica revisão da ordem so­cial) mas o trabalhador, tal como uma mascote judiada, fica tão impressionado com a simpatia demonstrada que se transforma num adepto leal e incondicional das Ligas.". Relatório da Missão ao Nordeste do Brasil, versão original, em português, datilografada, Anexo I, Programa a Curto Prazo. B. Relativo à Zona do Açúcar e Comunidades Ru­rais. 1. Centros de Trabalho Aliança para o Progresso.

"... Tal fato tem deixado o campo de representação das reivindicações dos traba­lhadores rurais entregue a esforços organizacionais sem controle e, portanto, extra-legais. As ligas camponesas, de inspiração comunista, tomaram vantagem deste vácuo criado pela lei e têm angariado apoio devido a sua boa vontade em ouvir as reclamações individuais do camponês, assessoriá-lo (sic) quanto a relações interindustriais (sic, no original), e aliviar outras necessidades sociais.

Por esta razão propomos no nosso programa a curto prazo o estabelecimento de centros na zona açucareira e, possivelmente, em algumas áreas urbanas onde as ligas camponesas têm sido mais ativas. (...)

Além dessa medida a curto prazo, também nos problemas mais básicos, que é o de assistir os elementos anticomunistas entre os trabalhadores rurais e industriais na for-

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macão de organizações trabalhistas mais duradouras como único meio de combate a Castro e outras influências comunistas, assaz volátil segmento da sociedade (sic). Um dos esforços mais promissores neste sentido foi feito pela Igreja Católica. No Rio Gran­de do Norte, sob a liderança do Bispo de Natal, Dom Eugênio Salles, e o seu Serviço de

Assistência Rural (SAR), cinco sindicatos, abrangendo 28 municípios, já foram criados.. Relatório da Missão ao Nordeste do Brasil, op. cit.. Anexo II. Programa a Longo Prazo. E. Trabalho e Potencial Humano.

(59) "O programa a curto prazo é destinado a impacto mediato e no menor prazo possível, sobre todas as camadas da população nordestina. Conforme acentuado acima, o tempo é de suprema importância; o programa a curto prazo não é primariamente des­tinado a solucionar o problema econômico básico da região." Relatório da Missão.... op. cit. B. O Programa Qüinqüenal de Desenvolvimento. Problemas do Desenvolvimen­to e o Potencial da Região.

"Acontecimentos recentes têm salientado o perigo inerente que esta situação apre­senta para o progresso econômico e social da área, e, além dos seus confins, para o Bra­sil e o Hemisfério." Ibidem.

"O "Survey Team" tem um ponto de vista conservador, ao estimar os ganhos a se­rem obtidos pela maior industrialização, no que se refere à reabilitação (sic) da região nordestina." Ibidem, 2. Melhora na infra-estrutura econômica: Transporte Rodoviário e Energia, um dos principais componentes do Programa Qüinqüenal, consiste no melho­ramento dos transportes rodoviários, com um duplo objetivo: (1) o de facilitar a emigra­ção do excedente de população e (2) o transporte de gêneros agrícolas das áreas de pro­dução aos principais mercados urbanos..." Ibidem, ibidem.

"...constituindo a base para um programa a longo prazo destinado a transferir um número substancial de habitantes para fora da região. (...) Como um meio adicional de estabilizar o mercado de trabalho rural e urbano, a formação de legítimas organizações trabalhistas deverá ser estimulada..." Ibidem, (b) Trabalho, Mão-de-Obra e Migração.

"Impressionados pela urgente, persistente e grande necessidade de reduzir a popu­lação no Nordeste, os autores deste relatório propõem um número de providências des­tinadas a facilitar a colonização permanente de emigrantes nordestinos agrícolas e in­dustriais no Sul." Ibidem, 6. Colonização Agrícola em Goiás e Mato Grosso.

"Em face do problema de combinar um projeto de desenvolvimento econômico e social com uma operação militar..." Relatório da Missão, op. cit., Anexo I. Programa a curto prazo. D. Assistência aos novos entrantes (sic) na Força de Trabalho. 2. Projetos de acampamentos CCC.

"Seria ideal que 1.500.000 famílias, acrescidas de 100.000 anualmente, devam even­tualmente encontrar oportunidades em outras regiões. (...) As famílias que preferirem permanecer nas atividades agrícolas terão que migrar de suas atuais comunidades." Ibi­dem, idem, I. Melhoramento do Aproveitamento de Recursos Materiais. Condições de vida rural e a oferta de alimentos para o Nordeste. 6. Fixação das populações rurais.

(60) "Em virtude destas considerações o "Survey Team" recomenda que não se em­preenda nenhuma ação sobre a proposta de ampliar a capacidade geradora, pelos próxi­mos cinco anos, até que os necessários estudos estejam concluídos." Relatório da Mis­são, op. cit. Anexo II. Programa a Longo Prazo. C. Energia elétrica.

(61) "Conforme foi declarado anteriormente, a solução para o problema do Nordes­te tem de ser encontrada na integração mais estreita dessa região com o resto do país que se acha em rápida expansão." Relatório da Missão, op. cit. B. O Programa Qüinqüenal de Desenvolvimento. A tese adotada pelo relatório do "Survey Team" é a de que o problema do Nordeste não pode ser resolvido dentro de suas próprias fronteiras, mas apenas pela integração com o resto da economia brasileira. Ibidem, Programa a Longo Prazo. B. Plano Qüinqüenal - Desenvolvimento Rodoviário.

(62) - Harry Makler, em pesquisa realizada em 1970, estudando o que ele chamou a "elite industrial do Recife", constata a decadência e a perda de importância da burgue-

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sia regional seja na propriedade, ou na gerencia dos meios de produção. Distinguindo entre "nativos", isto é, membros da elite originários da própria região, "migrantes", isto e, membros que se haviam transladado de outros estados do Brasil para fundar e/ou di­rigir novas empresas no Grande Recife, e "estrangeiros" originários de outros países. É interessante anotar que, apesar da predominância global dos "nativos" na amostra total trabalhada por Makler - 59% -, os "migrantes já perfaziam 19% e os "estrangeiros" 18%. Quando te examina as porcentagens, segundo o setor industrial, percebe-se já uma absoluta predominância dos membros "migrantes" e "estrangeiros", no setores "têxtil e vestuário", "indústria pesada", "metalúrgica", "máquinas e equipamentos elétricos", "papel", "mineração" e "outros", e um relativo equilíbrio nos setores "alimentos, açú­car e bebidas", "plásticos", "produtos químicos". Percebe-se do ponto de vista da data de fundação das empresas, que a forte entrada de "migrantes" e "estrangeiros" deu-se de 1960 para cá, exatamente coincindindo com a entrada em operação da SUDENE, que foi criada em 1959; de fato, 50% dos "migrantes" e 61% dos "estrangeiros" tinham ido para o Recife fundar e/ou gerenciar empresas de 1960 em diante. O grupo que ele chamou de elite "nativa" estava do ponto de vista do tamanho das empresas, regular­mente distribuído entre empresas de 50-99 empregados, 100-199 empregados, 200-499 empregados, 500-999 empregados e 1.000 e mais, enquanto os "migrantes" estavam concentrados no extrato que ele chamou de grandes, que enquadra as empresas com 500-999 empregados. Os "estrangeiros" estavam concentrados no extrato de grandes, e, sur-preendemente, mais concentrados ainda no extrato de regalares, isto é, entre 100 a 199 empregados. Isto te explica, segundo Makler, porque em tal extrato ettão as mais mo­dernas fábricas têxteis, de fios e vestuário, que empregando tecnologia "capital-intensive", empregam poucas pessoas. Estes resultados, ainda que a metodologia de Makler, seu conceito de elite, e uma certa imprecisão entre "migrantes" e "estrangeiros" deixem a desejar, sugerem até certo ponto a perda de importância da burguesia regional no comando das forças produtivas, e consequentemente seu quase nenhum peso político atual. Ver Harry Makler, Labor Problems of Native. Migram, and Foreign-born members of the Recife Industrial Elite. Reprint Series nº 73, Institute for the Quantitative Analysis of Social and Economic Policy, University of Toronto, Canada, 1975

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Francisco de Oliveira não assiste, com olhar impertubável, essa subversão da proposta primeira, não segue, tal qual um analista, este exemplo de como um proces­so de racionalização se escraviza diante do movimento de um Estado que, no final das contas , nada mais faz do que raciona­lizar a irrazão capitalista. Participa do episódio duma forma ativa - chega a ser superintendente-substituto d a S U D E N E - e mais tarde passa a refletir, amorosa e apaixonadamente , sobre sua própria e a experiência coletiva. Na escrita tudo se identifica e se distingue: o subjetivo, seu amor por Orieta, transpassa para o lado de sua matriz social; o objet ivo, o desem­penho dos atores históricos, se projeta no discurso do investigador situado, agarra-do às suas próprias raízes, posto que per­deu sua inserção nordestina. O vôo retar-dado do pássaro de Minerva em teses ou­sadas e controvertidas, prefere arriscar uma interpretação apenas entrevista nos fatos coletados, do que pecar pela omis­são esvaziada de futuro. Por isso este livro fascinante é, de preferência, o disparo dum intelectual cangaceiro, que nos desa­fia a pensar melhor, tanto a reformular nossas próprias idéias quanto a reexami­nar as teses propostas pelo autor. Haverá perspectiva mais nobre para um ensaio?

José Arthur Giannolti

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