Elster John Processo Constituinte

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Forças e Mecanismos no Processo de Elaboração da Constituição * Jon Elster ** Introdução O tema central deste ensaio diz respeito ao modo como são elaboradas as novas constituições e os seus mecanismos. Surpreendentemente, não há nenhum autor que aborde o tema acerca da criação da constituição em uma perspectiva positiva e explanatória. Existe, certamente, um volume de estudos, sobre os quais versarei, que abordam de forma episódica o processo de criação da constituição. Além disso, há uma grande, comparativa e teórica literatura sobre o processo legislativo ordinário, bem como um substancial corpo de textos sobre direito constitucio- nal comparado. Muito, também, tem sido escrito acerca das consequências do arranjo constitucional – sistema presidencialista versus sistema parlamentaris- ta, unicameralismo versus bicameralismo, dentre outros. No entanto, tanto quanto eu saiba, não há um único livro ou até mesmo artigo que considere o processo de elaboração da constituição em sua integralidade, como um objeto distinto de análise positiva. 1 Embora o presente ensaio seja de certa forma insuficiente, ele segue algumas etapas no sentido de sanar tal deficiência. 9 * Artigo traduzido diretamente do inglês por Eliana Valadares Santos, cujo título original é “Forces and Mechanisms in the Constitution-Making Process”. ** Jon Elster é Professor de Ciências Sociais, da Faculdade de Ciência Política da Universidade de Colúmbia, Estados Unidos. 1 Dentre os escritores que têm considerado a elaboração de constituições em uma perspectiva com- parativa, SUKSI, Markku. Making A Constitution: The Outline Of An Argument. [S.l.:s.n.], 1985, é principalmente jurídico e normativo. Uma maior explicação acerca desse assunto é encontrada no capítulo 8 de BONIME-BLANC, Andréa. Spain’s Transition To Democracy: The Politics Of Constitution-Making [S.l.:s.n.], 135-61, 1987, mas a sua discussão é um pouco genérica. A limita- ção pela transição do autoritarismo para a democracia não encobriu os episódios de elaboração da constituição na Convenção Federal da Filadélfia. Os artigos no Constitution Makers On Constitution Making, [S.l.:] Robert A. Goldwin & Art Kaufman eds., 1988, descrevem episódios individuais de elaboração de constituições, sem perspectivas comparativas e teóricas, salvo pelo fato dos seus autores terem abordado o mesmo grupo de temas. FAFARD, Patrick A. e REID, Darrel R. Constituent Assemblies: A Comparative Survey. [S.l.:s.n.] 1991, enquanto útil é, prin- cipalmente, descritivo (e, até certo ponto, prescritivo).

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Forças e Mecanismos no Processo de Elaboração da Constituição*

Jon Elster**

Introdução

O tema central deste ensaio diz respeito ao modo como são elaboradas asnovas constituições e os seus mecanismos. Surpreendentemente, não hánenhum autor que aborde o tema acerca da criação da constituição em umaperspectiva positiva e explanatória.

Existe, certamente, um volume de estudos, sobre os quais versarei, queabordam de forma episódica o processo de criação da constituição. Além disso,há uma grande, comparativa e teórica literatura sobre o processo legislativoordinário, bem como um substancial corpo de textos sobre direito constitucio-nal comparado. Muito, também, tem sido escrito acerca das consequências doarranjo constitucional – sistema presidencialista versus sistema parlamentaris-ta, unicameralismo versus bicameralismo, dentre outros. No entanto, tantoquanto eu saiba, não há um único livro ou até mesmo artigo que considere oprocesso de elaboração da constituição em sua integralidade, como um objetodistinto de análise positiva.1 Embora o presente ensaio seja de certa formainsuficiente, ele segue algumas etapas no sentido de sanar tal deficiência.

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* Artigo traduzido diretamente do inglês por Eliana Valadares Santos, cujo título original é “Forcesand Mechanisms in the Constitution-Making Process”.

** Jon Elster é Professor de Ciências Sociais, da Faculdade de Ciência Política da Universidade deColúmbia, Estados Unidos.

1 Dentre os escritores que têm considerado a elaboração de constituições em uma perspectiva com-parativa, SUKSI, Markku. Making A Constitution: The Outline Of An Argument. [S.l.:s.n.], 1985,é principalmente jurídico e normativo. Uma maior explicação acerca desse assunto é encontradano capítulo 8 de BONIME-BLANC, Andréa. Spain’s Transition To Democracy: The Politics OfConstitution-Making [S.l.:s.n.], 135-61, 1987, mas a sua discussão é um pouco genérica. A limita-ção pela transição do autoritarismo para a democracia não encobriu os episódios de elaboração daconstituição na Convenção Federal da Filadélfia. Os artigos no Constitution Makers OnConstitution Making, [S.l.:] Robert A. Goldwin & Art Kaufman eds., 1988, descrevem episódiosindividuais de elaboração de constituições, sem perspectivas comparativas e teóricas, salvo pelofato dos seus autores terem abordado o mesmo grupo de temas. FAFARD, Patrick A. e REID,Darrel R. Constituent Assemblies: A Comparative Survey. [S.l.:s.n.] 1991, enquanto útil é, prin-cipalmente, descritivo (e, até certo ponto, prescritivo).

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Outra notável lacuna na literatura é a ausência de discussões normativasacerca do processo de criação da constituição. Entretanto, ao final do presenteensaio, eu brevemente abordo a questão sobre o melhor arranjo para o proces-so de elaboração da constituição, uma questão que é, ao mesmo tempo, separa-da e indiretamente relacionada à questão do projeto da constituição ótima.

Criar uma constituição envolve fazer escolhas dentro de certas restri-ções. Na maioria dos casos que me interessam, tais escolhas são coletivas, sãotrabalho de uma assembleia legislativa, não um trabalho do legislador singu-lar, como Solon. Assim, devemos considerar ambos os objetivos individuaisdos elaboradores da constituição e os mecanismos pelos quais eles são agrega-dos às escolhas coletivas. Estas são as noções-chave neste ensaio: restrições,motivações individuais e sistemas de agregação. Considerarei também as supo-sições cognitivas dos elaboradores da constituição, em especial as suas crençassobre quais arranjos institucionais trarão quais resultados. Essas crenças criama ponte entre os objetivos gerais, de um lado, e as preferências por provisõesconstitucionais específicas, de outro.

As Constituições podem ser escritas ou não-escritas. Alguns países quepossuem uma constituição escrita também operam com “convenções constitu-cionais”2 não-escritas. Nos Estados Unidos, por exemplo, a independência doBanco Central (Federal Reserve Board) não é explicitada na constituição, talcomo ocorre em alguns países. Na realidade, contudo, tal instituição goza deconsiderável autonomia devido a uma convenção constitucional segundo aqual qualquer tentativa de interferência do executivo ou legislativo em suasatividades acarretaria graves sanções políticas. Outros países, como aInglaterra, possuem apenas convenções constitucionais. Neste ensaio concen-tro-me apenas na elaboração das constituições escritas.

O surgimento das convenções não-escritas está sujeito a mecanismoscausais que ainda são pouco compreendidos e são, em qualquer caso, muitodiferentes das deliberações coletivas, objeto do presente ensaio.3 De agora emdiante, portanto, o termo “constituição” referir-se-á sempre a um documentoescrito.

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2 MARSHALL, Geoffrey. Constitutional Conventions. [S.l.:s.n.], 9, 1984.3 Para algumas explicações acerca do surgimento das convenções, ver COLEMAN, James S.

Foundations Of Social Theory. [S.l.:s.n.], 1990; ELSTER, Jon. The Cement Of Society. [S.l.:s.n.],1989; HARDIN, Russel. Collective Action. [S.l.:s.n.], 1982; SCHOTTER, Andrew. The EconomicTheory Of Social Institutions. [S.l.:s.n.], 1981; SUGDEN, Robert. The Economics Of Rights, Co-Operation And Welfare. [S.l.:s.n.], 1986; TAYLOR, Michael. Anarchy And Cooperation.[S.l.:s.n.], 1976; ULLMANN-MARGALIT, Edna. The Emergence Of Norms. [S.l.:s.n.], 1977.

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Se quisermos distinguir a constituição de qualquer outro texto jurídico,três critérios nos são oferecidos. I) Muitos países têm um conjunto de leis queé coletivamente conhecida como constituição. II) Algumas leis podem serconsideradas constitucionais porque regulam matérias que são, em determina-do sentido, mais fundamentais que outras e III) a constituição pode ser dife-renciada da legislação ordinária por demandar procedimentos mais rigorosospara sua alteração. Essas características, entretanto, nem sempre produzem osmesmos resultados.

A Nova Zelândia tem uma constituição que segue o primeiro e o segundocritérios, mas não observa o terceiro. Naquele país, “são necessários somente osesforços ordinários para suplementar, modificar ou revogar a Constituição”.4

Inversamente, Israel tem uma constituição de acordo com o segundo e oterceiro critérios, mas não de acordo com o primeiro. Após 1948, não havianenhum acordo sobre a necessidade de uma constituição. Enquanto alguns“defenderam o efeito estabilizador de uma constituição, que é particularmen-te necessário em uma população dinâmica e volátil”,5 outros “destacaram osperigos de uma constituição rígida e as possíveis calamidades que se seguemde uma suprema corte reacionária com poderes de exercer o judicialreview,N.R. em uma sociedade particularmente dinâmica”.6 Embora a últimavisão tenha prevalecido, desde 1950 o Knesset tem adotado um número de leisbásicas que satisfazem o segundo e o terceiro critérios. Essas leis regulam osassuntos básicos tais como o próprio Knesset, as terras de Israel, o presidente,o governo, a economia pública, o exército, Jerusalém, capital de Israel e o judi-ciário. A maioria dessas leis contém uma previsão de que elas não podem ser

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4 EULE, Julian N. “Temporal Limits on the Legislative Mandate: Entrenchment and Retroactivity”.AM. B. FOUND. RES. J. 379, 394 n. 61, 1987. Eule segue dizendo, entretanto, que “mesmo emum sistema assim… restrições morais e políticas à alteração legislativa da teoria constitucionalis-ta permanecem”. Id. Em outras palavras, a satisfação do primeiro critério pode gerar uma satisfa-ção automática do terceiro.

5 GUTMANN, Emmanuel. Israel: Democracy Without a Constitution, in Constitutions InDemocratic Politics 290, 292, [S.l.:], Vernon Bogdanov ed., 1988.

N.R. O termo judicial review refere-se ao poder qualificado da Suprema Corte dos Estados Unidos dedeclarar nulas as normas consideradas inconstitucionais; corresponde a uma criação jurispruden-cial da Suprema Corte, não prevista na constituição estadunidense. Diferentemente da tradiçãoinglesa do princípio da supremacia do parlamento, no judicial review vigora o princípio da supre-macia do judiciário, segundo o qual juízes e tribunais devem aplicar diretamente disposição cons-titucional quando o ato normativo em questão for com ela conflitante.Trata-se, assim, da forma pela qual o controle de constitucionalidade é realizado nos EstadosUnidos, com as peculiaridades próprias a essa forma de controle judicial de constitucionalidadeno âmbito da tradição da Common Law praticada naquele país. Considerada a singularidade detal instituto, no presente texto optou-se por manter o termo judicial review em inglês.

6 GUTMANN, op. cit., p. 295.

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modificadas durante o estado de emergência, satisfazendo, assim, também oterceiro critério. Somando-se a isso, para que seja alterada a lei do Knesset énecessário um quorum de maioria absoluta.

Alguns países têm um corpo de “leis orgânicas” que, apesar de não inte-grarem o documento conhecido como “Constituição”, requerem uma super-maioria para sua alteração. Na França é exigida maioria absoluta; na Hungria,exigem-se dois terços.

Alguns aspectos da vida política, que pensamos ser fundamentais, nãosão regulados pela constituição ou por todas as constituições nem as leis queos regulam estão sujeitas a procedimentos de revisão mais severos. O maisimportante exemplo disso é dado pelas leis que regulam as eleições para o par-lamento. Algumas constituições especificam o sistema eleitoral em detalhes;outras (Polônia, República Tcheca) somente em linhas gerais e algumas(França, Hungria) nada mencionam. Na Hungria, mas não na França, as leiseleitorais são “orgânicas” no senso indicado acima. A posição do banco centralé, de forma similar, omitida na maioria das constituições ou mencionada ape-nas em termos gerais. Uma exceção é a constituição tcheca, que explicitamen-te proíbe o governo de interferir na atuação do banco. Ainda mais notável é aausência, em todas as constituições (por mim conhecidas), de provisões cons-titucionais que garantam a independência dos meios de comunicação estatais.

O principal enfoque deste ensaio é a adoção de documentos denomina-dos “constituição”. Na prática, este documento também satisfará o segundocritério. Todas as constituições regulam os assuntos fundamentais, emboranão regulamentem somente estes assuntos, nem a totalidade destes assuntos.Com exceção da Nova Zelândia, tal documento também satisfará o terceirocritério. Em virtude da fundamental importância das leis eleitorais na regula-mentação da vida política, frequentemente as abordarei juntamente com asprovisões constitucionais. Esta prática parece especialmente justificada noscasos nos quais a inclusão ou não-inclusão das leis eleitorais na constituição foium problema debatido no processo de elaboração da constituição, como, porexemplo, da elaboração da Constituição da 5ª República Francesa.7 Da mesmaforma, incluirei na exposição a quase constitucional Mesa Redonda deNegociações que aconteceu em vários países do leste europeu em 1989 e 1990.A polonesa, em particular, explicitamente tomou a forma de negociação cons-titucional.8

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7 PEYREFITTE, Alain. C’était De Gaulle 452 [S.l.:s.n.], 1994.8 Para um aprofundamento sobre esses eventos, ver ELSTER, Jon. “Constitution-making in Easter

Europe: Rebuilding the Boat in the Open Sea”. 71 PUB. ADMIN. 169 [S.l.:], 1993.

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I. Ondas de Constitucionalização

Começarei por descrever meu universo. Por razões que apresentarei maisadiante, os processos de elaboração das constituições costumam ocorrer emondas. Desde o século XVIII até o presente, podem ser identificadas pelomenos sete dessas ondas.

Os modernos processos de elaboração da constituição começaram noséculo XVIII. Entre 1780 e 1791, constituições foram escritas para os váriosEstados americanos, pelos Estados Unidos, Polônia e França.9

A onda seguinte ocorreu após as revoluções de 1948 na Europa.10

Considerando todos os pequenos Estados italianos e alemães, as revoluçõesocorreram em mais de cinquenta países. Muitos deles também adotaramnovas constituições, que em grande parte foram substituídas, em um curtoperíodo, pelas constituições impostas pelas forças contra-revolucionáriasvitoriosas.

Uma terceira onda surgiu após a Primeira Guerra Mundial. Os recémcriados ou recriados Estados da Polônia e Tchecoslováquia redigiram suas

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9 Desses, considerarei apenas a Convenção Federal de 1787 e a Assembleia Constituinte Francesade 1789-1791. No que tange à última, fui beneficiado especialmente por EGRET, Jean. LaRévolution Des Notables. [S.l.:s.n.], 1950, e EGRET, Jean. Necker, Minestre De Louis XVI.[S.l.:s.n.], 1975. Transcrições dos debates são encontradas nos Archives Parlamentaires De 1787à 1860 Première Série [S.l.:s.n.], (1789 à 1799) (1875-1888) [doravante ArchivesParlamentaires], e podem ser suplementadas pelo 1 Orateurs De La Révolution Française: LesConstituants. [S.l.:], François Furet & Ran Halévvi eds., 1989. Para os debates norte-america-nos e seu contexto, consultei principalmente JILSON, Calvin C. Constitution Making: Conflictand Consensus in the Federal Convention of 1787. [S.l.:s.n.], 1988; MATSON, Cathy D. eONUF, Peter S. A Union Of Interests: Political And Economic Thought In RevolutionaryAmerica. [S.l.:s.n.], 1990; WOOD, E Gordon S. The Creation Of The American Republic 1776-1787. [S.l.:s.n.], 1969. As principais fontes documentais, incluindo as notas de James Madisonda Convenção, podem ser encontradas nos quatro volumes de The Records of the FederalConvention of 1787. [S.l.:] Max Farrand ed., 1966.

10 Um estudo comparativo dos movimentos de 1948 está em ROBERTSON, Priscilla. Revolutions of1848. [S.l.:s.n.], 1952. Estudos úteis sobre a elaboração da constituição francesa de 1848 estão emBASTID, Paul. Doctrines et Institutions Politiques de la Seconde République. [S.l.:s.n.], 1945, eCOHEN, Jacques. La Préparation de la Constitution de 1848. [S.l.:s.n.], 1935. As atas do ComitêConstitucional estão publicadas em CRAVERI, Piero. Genesi di uma Constituzione Libertá eSocialismo nel Dibattito Constituzionale del 1848 in Francia. [S.l.:s.n.], 107-210, 223-302, 1985.Um membro do comitê escreveu uma análise perspicaz desse trabalho. Ver DE TOCQUEVILLE,Alexis. Recollections: the French Revolution of 1848. [S.l.:] J. P. Mayer & A.P. Kerr eds. e GeorgeLawrence trans., 1987 (1893). A constitucionalização alemã de 1848 é o assunto de EYCK, Frank.The Frankfurt Parliament 1848-1849. [S.l.:s.n.], 1968. Ver também 2 HUBER, Ernst R. DeutscheVerfassungsgeschichte. [S.l.:s.n.], 1960.

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constituições.11 O estado alemão derrotado adotou a Constituição deWeimar.12

Em seguida, a quarta onda ocorreu após a Segunda Guerra Mundial. Ospaíses derrotados Japão, Alemanha e Itália adotaram novas constituições sob atutela mais ou menos rígida dos Aliados.13

A quinta onda estava correlacionada com a dissolução dos impérios colo-niais inglês e francês. Tal acontecimento se iniciou na Índia e no Paquistãonos anos 40, mas o processo somente ganhou força nos anos 60. Em muitoscasos, as novas constituições foram modeladas de forma muito semelhante àsdos antigos poderes coloniais. Para citar apenas alguns exemplos, a constitui-ção da Costa do Marfim foi embasada na da Quinta República Francesa,enquanto a de Gana e Nigéria seguiram o modelo britânico de Westminster.

Uma próxima onda está relacionada com a queda das ditaduras naEuropa meridional no meio dos anos 1970. Entre 1974 e 1978, Portugal,Grécia e Espanha adotaram novas constituições democráticas.14

Finalmente, um número de antigos países comunistas na Europa do lestee central adotaram novas constituições depois da queda do comunismo em1989. Apesar de eu não dispor do número exato, deve haver umas duas dúziasde novas constituições na região.15

Possuo muito pouco conhecimento a respeito das novas constituiçõesnos países ex-coloniais para considerá-las no presente ensaio. Mas me basea-rei em episódios constituintes de todas as outras ondas e também em alguns

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11 Ver HEADLAM-MORLEY, Agnes. The New Democratic Constitutions Of Europe. [S.l.:s.n.], 46-48, 1929.

12 Ibid. p. 44. Ver também 5 HUBER, Ernst R. Deutsche Verfassungsgeschichte. [S.l.:s.n.], 1178,1978 (Crônica dos eventos que levaram à adoção da Constituição de Weimar).

13 Bons estudos acerca da elaboração da Lei Fundamental da Alemanha Ocidental de 1949 (somen-te uma das constituições pós-45 será examinada aqui) inclui GOLAY, J. Ford. The Founding OfThe Federal Republic Of Germany. [S.l.:s.n.], 1958 e MERKL, Peter H. The Origin Of The WestGerman Republic. [S.l.:s.n.], 1963. Transcrições dos debates relevantes são encontradas emParlamentarischer Rat: Verhandlungen Des Hauptausschusses. [S.l.:s.n.], 1948-49.

14 Para uma discussão sobre o processo de elaboração da constituição da Espanha, o único desta ondaque considero abaixo, ver BONIME-BLANC, supra note 1; JOSEP M. COLOMER, GAMETHEORY AND THE TRANSITION TO DEMOCRACY: THE SPANISH MODEL (1995);Francisco Rubio Llorente, The Writing of the Constitution of Spain, in CONSTITUTIONMAKERS ON CONSTITUTION MAKING, nota 1 supra, p. 239.

15 Ver de forma genérica E. Eur. Const. Rev. (tratando sobre o processo de constitucionalização naEuropa do Leste e Central); RFE/RL Research Institute, Radio Free Europe/Radio Liberty, Inc.,REPORT ON EASTERN EUROPE [S.l.:s.n.], 1989-1991; RFE/RL Research Institute, Radio FreeEurope/Radio Liberty, Inc., RFE/RL RESEARCH REPORT 1991 – presente. Refiro-me às publi-cações da Rádio Livre Europeia como “RFE” seguidas pela data da publicação. Uma exposiçãomais sintética é oferecida em ELSTER, nota 8 supra.

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episódios isolados que não fizeram parte de nenhuma onda.16 A maioria dosmeus exemplos será retirada das assembleias americana e francesa dos anos de1780 e das do leste europeu dos anos 1990.

Meu universo será limitado, assim, à Europa e América do Norte.Ignorarei não apenas as recentes constituições da Ásia e África, mas tambéma rica história do processo de elaboração das constituições na América Latina.Eu simplesmente sei muito pouco acerca da história, cultura e língua dessaspartes do mundo para me considerar apto a interpretar suas experiências deelaboração de constituições com alguma segurança.

Antes de abordar as restrições, motivações e mecanismos de agregação,gostaria de apontar um grande fato que pode nos ajudar a compreender por-que as constituições ocorrem em ondas. O fato é que as novas constituiçõesquase sempre são escritas em meio a crises ou circunstâncias excepcionais dealgum tipo.17 Há algumas exceções. A Constituição sueca de 1974, por exem-plo, foi elaborada sob circunstâncias absolutamente normais.18 A novaConstituição canadense de 1982 pode, também, ser considerada como umcontra-exemplo, embora o contexto aqui seja um pouco mais tenso.Geralmente, entretanto, a ligação entre crise e criação de uma constituição ébem robusta.

Identifiquei um número de circunstâncias que induzem a criação de cons-tituições. Primeiro, há uma crise social e econômica, como na elaboração daConstituição americana de 1787 ou da Constituição francesa de 1791.19 Gostaria

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16 Isso inclui a elaboração da Constituição francesa de 1958 e da Constituição canadense de 1982.Para a primeira, ver DENQUIN, Jean-Marie 1958: La Genèse de la Ve République. [S.l.:s.n.],1988; Id. L’écriture de la Constitution de 1958. [S.l.:], Didier Mars et al. Eds., 1992.Documentação e transcrição dos debates relevantes são encontrados nos 1-3 DOCUMENTSPOUR SERVIR À L’HISTOIRE DE L’ÉLABORATION DE LA CONSTITUTION DU 4 OCTOBRE1958. [S.l.:] Comité National Chargé de la Publication des Trevaux Préparatoires des Institutionde la Ve République ed., 1987-1991. Para o último, ver RUSSELL, Peter H. ConstitutionalOdyssey: Can Canadians Become a Sovereign People? [S.l.:s.n.], 2d ed. 1993. O contexto docu-mentado é obtido em Canada’s Constitution Art 1982 & Amendments: A Documentary History.[S.l.:] Anne F. Bayefsky ed., 1989.

17 Ver RUSSELL, nota 16 supra, p. 106 (“Nenhum estado democrático liberal realizou uma mudan-ça constitucional ampla fora do contexto de algumas situações cataclísmicas como revolução,guerra mundial, retirada do império, guerra civil ou ameaça de dissolução iminente”).

18 Ver geralmente RUIN, Olof. Sweden: The New Constitution (1974) and the Tradition ofConsensual Politics, in Constitutions in Democratic Politics, nota 5 supra, p. 309 (descreve o pro-cesso de reforma constitucional sueca, que incluiu duas comissões parlamentares e se estendeupor quase duas décadas antes que a nova Constituição fosse adotada em 1974).

19 No que diz respeito à França, em 1789, a afirmação de uma crise é uma obviedade. As finançasdo reino estavam em completa desordem por causa dos gastos militares excessivos. A últimacolheita havia sido um desastre e o inverno fora cruel. Além disso, essas pressões agudas surgiramem um contexto anomalias. As hierarquias estavam se desintegrando. Todas as classes abrigavam

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de enfatizar que a elaboração da primeira constituição francesa não foi um efei-to da Revolução Francesa, mas antes a sua causa: a crise econômica desencadeouo processo de constitucionalização, que ao final transformou-se em uma revolu-ção política. Segundo, há uma revolução, como na elaboração da Carta de 1830na França ou das constituições francesa e alemã de 1848. Terceiro, o regime estáem colapso, como na criação das novas constituições do sul da Europa no meiodos anos 1970 e no leste europeu no início dos anos 1990. Quarto, há temoresacerca do colapso do regime, como na elaboração da Constituição francesa de1958, que foi imposta por De Gaulle sob a sombra de uma revolta militar. A ela-boração da Constituição polonesa de 1791 também ilustra este caso. Quinto, háderrota na guerra, como na Alemanha depois da Primeira e Segunda GuerrasMundiais, ou na Itália e Japão após a segunda. Sexto, há a reconstrução após aguerra, como na França em 1946. Sétimo, há a criação de um novo Estado, comona Polônia e na Tchecoslováquia após a Primeira Guerra Mundial. Oitavo e últi-mo, há a libertação do domínio colonial, como nos Estados Unidos após 1776 eem muitos países do terceiro mundo após 1945.

Estamos agora em posição de compreender o fenômeno das ondas de cria-ção de constituições. Primeiramente podemos eliminar algumas dessas ondascomo espúrias ou acidentais. A proximidade temporal da Constituição Americanade 1787 e das Constituições Francesa e Polonesa de 1791 é somente coincidência.O mesmo se dá, creio eu, em relação à maioria dos colapsos simultâneos das dita-duras do sul da Europa. As outras ondas, entretanto, não são espúrias.

Em alguns casos, os episódios de criação de constituições vieram em gru-pos porque foram desencadeados pelo mesmo evento. Aqui o grupamento éexplicado pelo princípio “causas similares, efeitos similares”. Este argumentose aplica a todas as ondas de constitucionalismo dos EUA depois de 1776, noterceiro mundo após a descolonização e em numerosos países europeus após aPrimeira ou Segunda Guerra Mundial.

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ressentimentos intensos, umas contra as outras ou contra a administração real. A desaprovaçãodos intelectuais era desenfreada. Embora o principal objetivo em convocar os Estados Gerais fosseaumentar a receita, eles foram inevitavelmente transformados em um ataque generalizado aosprivilégios. No que diz respeito à América em 1787, a afirmação de uma crise geral é mais con-troversa. Entretanto, embora a economia fosse próspera, havia uma opinião difundida de que opaís estava sendo mal governado. As legislaturas estaduais, de acordo com esta percepção, atua-vam com base em motivos míopes e partidários, e o Congresso estava demasiado fraco para con-ter ou coordenar a atuação dos mesmos. Além disso, muitos acreditavam que este mau compor-tamento político teria terríveis consequências econômicas, tais como a impressão de papel-moeda, o cancelamento dos débitos e o confisco de propriedade. Para fins expositivos, a existên-cia dessas opiniões é mais importante do que sua exatidão.

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Em outros casos, os eventos causadores ocorreram como uma cadeia dereações. Mas com isso não quero dizer que a criação da constituição em umpaís desencadeou a criação da constituição em outro, mas que o evento queprovocou o processo de elaboração da constituição em um país desencadeoueventos semelhantes, que causaram a elaboração em outros.

Os casos de reação em cadeia podem ainda ser subdivididos em duascategorias. Primeiro, um evento provocador pode servir como um modelocognitivo para outro. Este foi o mecanismo pelo qual a explosão daRevolução Francesa de 1848 provocou muitos eventos similares naAlemanha. Com base nesse mecanismo podemos também declarar, pensoeu, que a quebra da federação tchecoslovaca em 1992 foi provocada pelaquebra anterior das federações iugoslava e soviéticas.20 O que ocorre, emtais casos, é que o curso de eventos que antes eram tidos como impensá-veis, ou como mera possibilidade abstrata, de repente se tornam umaopção viva e real.

Segundo, o que acontece em um país pode influenciar o que aconteceem outros lugares pelo mecanismo de progressão de crenças. Um exemploé fornecido pela clássica teoria do dominó que governou a política externaestadunidense por muitos anos. A ideia foi que se os norte-americanosinvadissem o Vietnam, isto seria um sinal enviado para outros governos daregião – e para movimentos de insurreição – sobre a disposição dos EstadosUnidos em intervir. A mesma ideia norteia a recente política russa naTchetchênia. E de maneira mais relevante para os presentes propósitos, asrodadas de negociações no leste europeu, entre 1989 e 1990, ilustram amesma ideia. A ausência de intervenção soviética na Polônia permitiu queos húngaros evoluíssem suas crenças sobre a probabilidade da intervençãosoviética em seu país. Para os tchecoslovacos, a não-intervenção soviéticana Alemanha oriental foi que os fez entender que não haveria uma repeti-ção de 1968. Além disso, a instituição polonesa das Mesas Redondas deNegociação entre o regime e a oposição forneceu um modelo cognitivo paratodas as transições posteriores.

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20 Alguns estudiosos que discutem a dissolução da Tchecoslováquia defendem que a abolição dos regi-mes comunistas centralizadores, combinada com uma antiga hostilidade ética e nacional contribuí-ram para a cisão. Para este argumento das “causas similares, efeitos similares” ver STEIN, Eric.Musings at the grave of a Federation. in Institutional Dynamics Of European Integration: 2 EssaysIn Honor Of Henry G. Shermers 641, 647, [S.l.:] Deirdre Curtin & Ton Heukels eds., 1994. Eu dis-corro contrariamente a esta interpretação em ELSTER, Jon. Transition, Constitution-making andSeparation in Czechoslovakia. 36 [S.l.:], Archives Europëennes de Sociologie 105, 1995.

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II. Restrições

Até o momento tentei identificar as condições sob as quais um país entraem um processo de criação de constituição. Volto-me agora para o principaltópico, que é entender a dinâmica interna de tal processo. Meu foco será a ela-boração da constituição nas assembleias constituintes, embora eu também façareferência às constituições que foram, de uma forma ou de outra, impostas porum único agente político.

Consideraremos primeiro as restrições. Embora a maioria das assem-bleias constituintes dos tempos modernos tenham se reunido em contextosrelativamente livres de restrições, há algumas importantes exceções, notavel-mente a assembleia que criou a Constituição americana, a Constituição fran-cesa de 1791 e a Lei Fundamental alemã de 1949. Nesta parte serão analisadostrês episódios.

Inicialmente gostaria de distinguir entre restrições superiores e restri-ções inferiores. Restrições superiores são impostas à assembleia antes que elacomece a deliberar. Restrições inferiores são criadas pela necessidade de rati-ficação do documento produzido pela assembleia. Como podemos perceber,esta divisão é de certa forma enganosa, mas ela servirá como uma importantereferência inicial.

As assembleias constituintes raramente são autocriadas, pois geralmentetêm um criador externo. Em verdade, elas normalmente possuem dois criado-res. De um lado há uma instituição ou indivíduo que toma a decisão de con-vocar uma assembleia constituinte. Nos Estados Unidos em 1787, esta decisãofoi tomada pelo Congresso Continental. Na França, em 1789, tal foi feito pelorei. Na Alemanha, em 1949, isso foi feito pelos países ocupantes ocidentais.Por outro lado, há o mecanismo institucional que seleciona mandatários paraa assembleia constituinte. Nos Estados Unidos e na Alemanha, os mandatáriosforam selecionados pelos parlamentos estaduais.21 Na Alemanha, a seleção dosrepresentantes estava sujeita a uma restrição imposta pelos Poderes Aliados, ade que o seu número deveria ser proporcional à população dos Estados. NaFrança, em 1789, os representantes foram selecionados pelos três estados e orei havia decidido que o Terceiro Estado deveria ter o mesmo número derepresentantes que os outros dois conjuntamente.22

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21 Nos EUA, uma exceção foi a Carolina do Sul, na qual o parlamento autorizou o governador a esco-lher os representantes.

22 Para a complexa origem dessa decisão de momento, ver Egret, Necker, Minestre De Louis XVI,nota 9 supra, pp. 233-48.

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Esses atores superiores ou agências frequentemente procurarão imporrestrições aos procedimentos da assembleia ou ao conteúdo da constituição. OCongresso Continental instruiu a Convenção Federal para propor mudançasno Estatuto da Confederação e não propor uma Constituição totalmente nova.Os representantes de Delaware vieram para a Convenção com instruções doparlamento estadual para que instassem na igualdade de poder de voto paratodos os Estados na nova constituição; em verdade, eles haviam pedido paraserem instruídos em tal sentido. Na França, muitos representantes vieram cominstruções da sua base para votar por um veto absoluto para o rei na novaconstituição e para insistir na votação por estado e não por cabeça. NaAlemanha, os poderes ocupantes instaram que a nova constituição tinha queconferir mais poderes aos Estados porque eles temiam que um governo fede-ral forte pudesse dar origem a um novo regime autoritário.

As restrições inferiores surgem do processo de ratificação. Se os consti-tuintes sabem que o documento que eles produzirão terá que ser ratificado poroutra instituição, o conhecimento das preferências daquela instituição atuarácomo uma restrição sobre aquilo que podem propor. Nos Estados Unidos, ofato de que a Constituição tinha que ser ratificada pelos Estados significou queos constituintes não eram livres para ignorar os seus interesses. Na França, orei reivindicou um poder de veto sobre a Constituição – um veto que ele esta-va certo que exerceria, a menos que ele recebesse um veto na Constituição. NaAlemanha, os Poderes Aliados também reservaram para si o direito de apro-var a constituição antes que ela fosse passada para a aprovação por referendopopular.

Podemos perceber agora porque a divisão entre controles superiores,auto-impostos ou inferiores é um tanto quanto arbitrária. Tipicamente, oscontroles inferiores são na verdade impostos pela autoridade superior. Outradificuldade ainda mais importante é que a ideia de controles externos é enga-nosa nesse contexto. Os constituintes nem sempre respeitam as instruções dosseus criadores superiores, incluindo instruções sobre ratificação inferior. Euma restrição que pode ser ignorada não é uma restrição. Na ConvençãoFederal, os constituintes ignoraram as instruções do Congresso Continentalem três pontos cruciais: quando decidiram escrever uma Constituição inteira-mente nova, para procurar ratificação por convenções estaduais em vez deparlamentos estaduais e para requerer ratificação por nove estados no lugar deuma unanimidade. Na França, a assembleia constituinte decidiu ignorar asinstruções de suas bases com respeito a ambos os procedimentos de votação eo veto do rei. Finalmente, na Alemanha, a assembleia constituinte instou, comsucesso, em que houvesse ratificação pelos parlamentos estaduais em vez de

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ratificação por referendo popular. Os constituintes alemães também consegui-ram resistir a algumas, mas não a todas as instruções descentralizadoras passa-das pelos Aliados.

A relação entre a assembleia e seus criadores pode ser resumida em duasafirmações opostas: “Que aquele que estabelece o rei atente para o rei” versus“que o rei atente para quem o estabelece”. Nos três casos aqui discutidos, o rei– a assembleia – facilmente prevaleceu sobre quem o estabelece – as autorida-des superiores. Em Filadélfia e Paris, este resultado era esperado. Quase quepor definição o velho regime é parte integrante do problema que a assembleiaconstituinte é convocada para resolver. Não haveria necessidade de ter umaassembleia se o regime não tivesse falido. Mas se ele está falido por que deve-ria a assembleia respeitar suas instruções?

O caso germânico é mais complicado. O mais importante fator era que onovo clima político criado pelo Golpe de Praga, de fevereiro de 1948, possibi-litou aos constituintes alemães ignorarem muitas das instruções dos poderesde ocupação. Eles arguiram com sucesso que a ratificação por referendo pode-ria dar uma perigosa oportunidade para a propaganda comunista. Além disso,os constituintes alegaram, e foram ouvidos, que uma Alemanha excessiva-mente descentralizada poderia ser uma presa fácil para o comunismo. Elesforam habilidosos em tirar proveito da divisão interna entre os PoderesAliados e explorar o fato que os ingleses queriam se isentar rapidamente doscustos da ocupação.23

III. Desejos e Crenças

Passo, agora, a considerar desejos e crenças – as motivações e suposiçõesmotivadoras – dos constituintes. De um lado, os constituintes podem serinfluenciados por um número maior ou menor de respeitáveis motivações.Por outro, eles regularmente fazem certas suposições sobre as motivações dosfuturos eleitores, políticos, juízes, banqueiros centrais e outros atores cujosatos devem ser regulados pela constituição.

Não há razão para esperar que essas suposições espelhem as motivaçõesdos constituintes. Os constituintes norte-americanos certamente viram a simesmos como que movidos por motivos mais nobres que os daqueles para osquais legislavam.24 Na Convenção Federal, um constituinte desapaixonado edesinteressado como James Madison consistentemente argumentou que a

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23 GOLAY, nota 13 supra, pp. 1, 8, 17, 100, 110.24 LOVEJOY, Arthur O. Reflections On Human Nature. [S.l.:s.n.], 51-52, 1961.

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Constituição tinha que ser escrita sob a hipótese de Hume, de que “cadahomem deve ser visto como um desonesto”.25 Embora ele tenha usado argu-mentos de escolha pública,26 o próprio comportamento de Madison não podeser explicado pela teoria da escolha pública.

Ao discutir estas motivações e suposições, traçarei uma distinção entreinteresse, paixão e razão.27 De uma maneira geral, o interesse se divide eminteresse pessoal, interesse do grupo e interesse institucional. A paixão se divi-de em súbita ou impulsiva e perene ou permanente. Razão, finalmente, écaracterizada por uma preocupação imparcial pelo bem público ou por direi-tos individuais. Considerarei doravante estas motivações em maior detalhe.

A. Interesse

1. Interesse Pessoal. O interesse pessoal dos constituintes em cláusulasconstitucionais específicas é um fator relativamente marginal, embora eletenha certa importância em alguns casos. Enquanto poucos, hoje, poderiamdefender a tese de Beard de que os constituintes na Convenção Federal forammotivados principalmente pelos seus próprios interesses econômicos,28 umaanálise estatística dos padrões de votação sugere que esses interesses têm certo

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25 HUME, David. Essays: Moral, Political And Literary. [S.l.:] 42 Eugene F. Miller ed., 1987 (1777).Para a influência de Hume sobre os constituintes americanos, ver WHITE, Morton G.Philosophy, the Federalist, and the Constitution. [S.l.:s.n.] 13-22, 1987.

26 Para alguns exemplos, ver 2 The Records of the Federal Convention of 1787, nota 9 supra, pp.109, 114, 123.

27 É muito comum opô-las a outras por pares. David Hume, quando aborda a relação entre paixão erazão, argumenta que a última era e tinha somente que ser escrava da primeira. HUME, David.A Treatise Of Human Nature. 415 [S.l.:] L.A. Selby-Bigfe ed., 2d ed. 1978 (1739-1740). Falandogenericamente, ele quis dizer que não poderia haver deliberação racional sobre os fins, somentesobre os meios. Albert Hirschman considerou a mudança de atitudes com relação às paixões einteresses no século XVIII argumentando que o domínio do interesse sobre a paixão numa socie-dade comercial constituía um “argumento político para o capitalismo antes de ele triunfar”.HIRSCHMAN, Albert O. The Passions and the Interests. iii [S.l.:s.n.] 1977. Em muitas discussõesnos debates da Convenção Federal, acredita-se que a razão e o interesse exaurem os motivos dosconstituintes. Veja JILLSON, nota 9, pp. 193-94 (citando Madison, Alexander Hamilton, e deTocqueville para o mesmo efeito); veja também RAKOVE, Jack N. “The Great Compromise:Ideas, Interests, and the Politics of Constitution Making”. 44 [S.l.:] WM. & MARY Q. 424, 1987.Abaixo, eu cito uma passagem de La Bruyère na qual todas as três motivações norte-americanassão consideradas em conjunto. Para uma discussão desse trio de motivos veja WHITE, supra nota25, pp. 102-12. Para uma discussão em uma diferente regulamentação constitucional veja WHI-TAKER, Reg. Reason, Passion and Interest: Pierre Trudeau´s Eternal Liberal Triangle. in ASovereign Idea, [S.l.:s.n.] 132, 1992.

28 Ver BEARD, Charles A. An Economic Interpretation Of The Constitution Of The United States.[S.l.:s.n.] 1986.

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poder explanatório.29 Na criação das recentes constituições romena e búlgara,muitas provisões aparentemente devem sua origem ao desejo dos antigoscomunistas de escaparem de processo criminal.30

O exemplo mais gritante que conheço é encontrado na elaboração daConstituição Tcheca de 1992. A decisão do Parlamento tcheco de criar umparlamento bicameral na nova constituição foi amplamente vista como umincentivo oferecido aos deputados na Assembleia Federal para aprovar uma leiconstitucional abolindo a federação, em troca de um lugar no novo Senado.31

É hoje fato histórico que mais tarde os deputados tchecos renegaram sua pro-messa com o objetivo de manter seus rivais fora da evidência e destaque polí-ticos. Três anos depois da adoção da constituição, as eleições para o Senadonão ocorreram nem foram programadas. Como outro exemplo de autointeres-se na construção da constituição, pode-se citar a incomum e forte imunidadeque os constituintes tchecos garantiram para si mesmos, exigindo o consenti-mento do parlamento antes da instauração de processo criminal dos deputa-dos em qualquer matéria. Em essência, eles usaram a Constituição para selivrar das penalidades de tráfico.32

2. Interesse do Grupo. O interesse do grupo é um fator muito maisimportante no processo da construção da constituição. Na ConvençãoFederal, os interesses dos Estados foram determinantes para o resultado.Estes interesses foram refletidos tanto em provisões substantivas quanto deprocedimento na Constituição. Substancialmente, a Constituição corporifi-ca um compromisso entre os interesses dos Estados escravocratas e os dosEstados comerciantes.33 Quanto ao procedimento, os pequenos Estados

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29 McGUIRE, Robert A. “Constitution Making: A Rational Choice Model of the Federal Conventionof 1787”. [S.l.:] 32 AM. J. Pol. SCI. 483, 484, 1988.

30 No caso romeno, esta afirmação é conjetural e baseada apenas em evidências indiretas. Para o casobúlgaro, ver ENGELBREKT, Kjell. “Constitution Adopted, Elections Set”. [S.l.:] RFE Aug. 16, pp.1, 2, 1991.

31 Veja PEHE, Jiri. “The Waning Popularity of the Czech Parliament” RFE Nov. 12, p. 9, 1993; vertambém CEPL, Vojtech e FRANKLIN, David. “Senate, Anyone?” [S.l.:] E. EUR. CONST. REV.,Spring 1993, pp. 58, 60 (arguindo que embora a decisão de criar um parlamento bicameral tenhasido baseada em interesses próprios, ela teve o efeito de assegurar um parlamento unicameralindissolúvel que forneceu estabilidade governamental).

32 SOKOL, Jan. Discussions in Prague, in Constitutionalism In East Central Europe: Discussions InWarsaw, Budapest, Prague, Bratislava 92, 93, Irena Grudzinska-Gross ed., 1994.

33 Ver William H. Riker, The Art Of Political Manipulation 89-102 (1986); ver também FINKEL-MAN, Paul. Slavery and the Constitutional Convention: Making a Covenant with Death. inBeyond Confederation: Origins Of The Constitution And American National Identity 188, [S.l.:]Richard Beeman et al eds., 1987.

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insistiram na igualdade de poder de voto para todos os Estados no Senado eforam bem sucedidos.34

Na assembleia francesa em 1789, os interesses dos Estados foram umimportante fator nos debates iniciais acerca de procedimentos. A nobreza e oclero queriam que a assembleia votasse por Estado, o que possibilitaria a elessuplantarem o Terceiro Estado. O Terceiro Estado insistiu em votar por cabe-ça, o que possibilitaria a eles, com a ajuda de alguns renegados, suplantar osoutros dois Estados. O assunto foi resolvido a favor do Terceiro Estado.

Nas assembleias constituintes modernas, os interesses dos partidos polí-ticos são frequentemente decisivos ao se formularem leis eleitorais e váriaspartes da máquina do governo. Tipicamente, grandes partidos preferem maio-ria votando em um único representante por distrito, enquanto partidos meno-res insistem em eleições proporcionais. A criação de muitas constituições pós-comunistas no leste europeu ilustra esta ideia. No período imediatamente após1989, por exemplo, os pequenos partidos comunistas ou ex-comunistas naPolônia e Tchecoslováquia insistiram em eleições proporcionais. Grandes par-tidos com chance razoável de formar o governo podem também insistir novoto construtivo de não confiança, que fortalece a posição do governo ante oparlamento. A elaboração da constituição espanhola de 1978 ilustra esteponto.35 Os partidos com um forte candidato presidencial tendem a insistirem uma forte presidência, enquanto outros partidos tentam reduzir o poderdesse cargo. A criação da Constituição polonesa de 1921 ilustra esta conexão.36

Em estados organizados em federação como a Alemanha, Canadá ou aantiga Tchecoslováquia, os interesses dos Estados são invariavelmente um fator-chave. Tal como se deu na Convenção Federal, os Estados menores pleiteiamigual representação no governo federal e os Estados maiores pleiteiam propor-cionalidade. Na Tchecoslováquia, por exemplo, a Eslováquia, com um terço dapopulação, conseguiu assegurar que metade dos juízes da corte constitucionalfossem eslovacos e que a presidência do banco central fosse ocupada alternada-mente por um tcheco e por um eslovaco, devendo ser renovado todo ano.

Conexões desse tipo são lugar-comum na vida política e o pão com man-teiga dos cientistas políticos. Entretanto, são complicadas por um outro fatorbásico da vida política: mesmo quando grupos agem para promover seus inte-resses, eles tendem a argumentar publicamente em tons de valores impar-

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34 RAKOVE, nota 27 supra, p. 424.35 BONIME-BLANC, nota 1, p. 77.36 Ver ELSTER, Jon. “Bargaining Over the Presidency” [S.l.:] E. EUR. CONST. REV., Fall

1993/Winter 1994, p. 95,95.

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ciais.37 Quando grandes partidos argumentam pela votação por maioria, elesnão se referem aos interesses dos grandes partidos, mas ao interesse do país emter um governo estável. Contrariamente, quando pequenos partidos defendemeleições proporcionais não se referem aos interesses dos pequenos partidos,mas aos valores da democracia e da ampla representação. Os partidos comforte candidato presidencial regularmente defendem a necessidade de o paísde ter um forte executivo. Outros partidos defendem, de maneira oposta, osperigos de um executivo forte. Ambos, pequenos e grandes Estados recorremao valor imparcial da igualdade: igual influência dos Estados no primeiro casoe igual influência dos eleitores no segundo.38

Neste ponto é necessária uma ressalva. Embora seja verdade que argu-mentos em benefício próprio tendem a ser revestidos de uma aparência deinteresse público, o argumento contrário – que todo argumento imparcial ésempre interesse próprio disfarçado – é inválido. Em alguns casos, a conclusãoé comprovadamente falsa. Exemplificarei adiante. Geralmente, a alegaçãoreducionista é internamente incoerente. Se ninguém nunca foi movido pelointeresse público, então ninguém poderia ter nada a ganhar quando a elerecorrer. Alegações em essência autocentradas, que externamente focalizam ointeresse público, são parasitas em relação às genuínas alegações.39

3. Interesse Institucional. O interesse institucional ocorre no processo deconstrução da constituição quando uma instituição que participa do processoformula um importante papel para si própria dentro da constituição.40

Podemos observar a ocorrência deste fator em muitos casos, como na elabora-ção da Constituição Polonesa de 1921 ou a Constituição Francesa de 1946. Em

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37 Para uma discussão sobre o porquê de um ambiente público induzir uma aparência de interessespúblicos sobre os acordos privados, ver MACEY, Jonathan R. “Promoting Public-RegardingLegislation Through Statutory Interpretation: An Interest-Group Model”. 86 [S.l.:] COLUM. L.VER. 223, 1986.

38 Assim, na Convenção, Jonh Dickinson argumentou que qualquer esquema que não possibilitassea representação no Senado para alguns Estados seria injusto. 1 The Records of the FederalConvention of 1787, nota 9 supra, p. 159. Madison argumentou que qualquer desvio da represen-tação proporcional seria injusto. Ibid., p. 151.

39 Cf. ELSTER, nota 3 supra, p. 125 (discussão da relação análoga entre normas sociais e de interes-se próprio).

40 Se alguém acredita, como eu, em individualismo metodológico, falar sobre interesse de grupo einteresse institucional sempre envolve motivações individuais. Se membros de uma comissão par-lamentar, por exemplo, não seguirem a linha do partido, eles podem não ser re-nomeados ou ree-leitos, ou sofrer sanções financeiras. Em outros casos, os legisladores parecem se identificar com ainstituição à qual eles pertencem. Independentemente da reeleição, eles tendem a sentir orgulhoda sua instituição em virtude de uma necessidade de uma consonância cognitiva (“Esta deve seruma instituição importante, uma vez que eu sou um membro dela”) ou por meio da socialização.

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ambos os casos, o parlamento que redigiu a constituição esforçou-se ao máxi-mo para reduzir o papel do executivo e para ampliar o papel do parlamento.Suponho, ainda, que o interesse institucional tenha sido o mais importantefator na criação das constituições pós-1980 no leste europeu. Esboçarei aseguir, resumidamente, quatro implicações dessa hipótese e analisarei suaplausibilidade.

A primeira implicação é que as assembleias constituintes que tambémservem como parlamentos ordinários darão importância preponderantementepara o legislativo em detrimento do executivo – presidente e ministério – e dojudiciário. No leste europeu, esta implicação é relativamente bem confirmada.Todas as assembleias constituintes eram também parlamentos ordinários. Àexceção da Polônia, os presidentes não são fortes. Tal exceção, entretanto, nãoconta como evidência contra a hipótese, pois a presidência naquele país foi umproduto da Mesa Redonda de Negociações, mais do que a criação de umaassembleia democrática. Exceto para a Hungria, que adotou o voto construti-vo de não confiança, nenhum outro país adotou provisões que fortaleceriam aposição do executivo ante o parlamento.41 Isso conta contra a hipótese, entre-tanto, que as cortes constitucionais são bastante fortes exceto na Polônia eRomênia, onde as decisões dessas cortes podem ser revertidas pelo parlamen-to com a maioria de dois terços (Romênia) ou maioria simples (Polônia).42

Uma segunda implicação é que uma assembleia constituinte unicamerale uma bicameral tenderão a criar, respectivamente, constituições unicameraise bicamerais – uma previsão que é amplamente confirmada. Assembleias bica-merais na Polônia e Romênia criaram constituições bicamerais; assembleiasunicamerais na Hungria, Eslováquia e Bulgária criaram constituições unica-merais. A única exceção a esse padrão é a República Tcheca, na qual, comoindicado previamente, uma assembleia unicameral criou uma constituiçãobicameral como um incentivo para os deputados tchecos, que teriam lugar nacâmara alta, votarem pela dissolução da federação.

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41 Na Constituição Romena, entretanto, existe uma norma (art. 113) que permite ao executivo se res-ponsabilizar por uma lei, de forma que ela é automaticamente aprovada, a menos que o parlamentovote a moção de não confiança. Ela é muito similar ao art. 49 (3) da Constituição Francesa de 1958.Ainda que a sua utilização devesse ser somente excepcional, ver Comité Consultif Constitutionnel(Aug. 12, 1958), in 2 Documents Pour Servir à L´Histoire de L´Èlaboration de la Constitution du 4Octobre 1958, nota 16 supra, pp. 367, 505-06, Art. 43(3) tem sido um eficiente instrumento nas mãosdos sucessivos governos. A norma romena não teve uma importância similar.

42 Embora a lei de regulação estatutária da Corte Polonesa estabeleça a necessidade de uma maioriade dois terços, este estatuto pode ser modificado por maioria simples.

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Uma terceira implicação é que na mesma medida em que o presidenteesteja envolvido no processo de construção da constituição, ele tenderá a pro-mover uma forte presidência. Aqui, a distinção entre interesses pessoais e ins-titucionais pode ser tênue. Ainda me parece que Walesa e Havel, em seusesforços para fortalecer a presidência, não atuaram simplesmente com vistas aaumentar seu próprio poder. Antes, creio que do seu ponto de vista estratégi-co as vantagens de uma presidência forte, capaz de prevenir o caos e assegurareficiência no difícil período de transição, soaram-lhes óbvias e inquestionáveis.

A implicação final é que os parlamentos que estão no processo de criaçãoda constituição darão a si mesmos amplos poderes para emendar a constitui-ção. Em particular, seu interesse institucional poderia não recomendar que asalterações na constituição sejam submetidas a referendo ou sejam adotadas pordois parlamentos sucessivos. Com exceção da Romênia, em que a aprovaçãopor referendo é obrigatória, esta implicação é confirmada. A importância daexceção romena é atenuada pelo fato de os deputados poderem alterar a cons-tituição pelo procedimento “saída pelos fundos” de reversão das decisões dacorte constitucional.

Portanto, a hipótese de que os constituintes são motivados por interessesinstitucionais é amplamente confirmada no leste europeu. Enquanto o interessedo grupo tem um forte poder explicativo com relação às leis eleitorais, o interes-se institucional é uma fonte determinante da máquina do governo. Entretanto, ointeresse institucional não explica a criação de fortes cortes constitucionais, ins-tituições que não eram, em nenhum momento, representadas no processo dacriação da constituição e que, a despeito disso, foram muito bem regulamentadas.Sob outro aspecto, a hipótese não se saiu tão bem na Hungria como em outrospaíses. Por adotar o voto construtivo de não confiança e criar uma forte corteconstitucional, os constituintes húngaros abdicaram de alguns dos poderes maisimportantes. É possível, contudo, que não fosse sua intenção, ou que eles nãopreviram que a corte poderia se tornar tão forte quanto se tornou.43

B. Paixão

Será abordado agora o papel das paixões – súbitas ou permanentes – nacriação da constituição. Primeiro elaborarei uma digressão sobre os motivos

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43 A Corte Constitucional húngara foi considerada a mais forte no mundo. Ver KLINGSBERG,Ethan. “Judicial review and Hungary´s Transition from Communism to Democracy: TheConstitutional Court, the Continuity of Law, and the Redefinition of Proporty Rights”. [S.l.:],B.Y.U. L. REV. 41, 1992.

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dos constituintes para considerarem os motivos dos agentes regulamentados,se é que posso usar esta expressão para designar os agentes cuja atuação deveser regulada pela constituição. Por uma visão tradicional, a função-chave daconstituição é prevenir que os agentes regulamentados ajam com base emimpulsos súbitos e irrefletidos: “As constituições são correntes com a qual oshomens se amarram nos seus momentos sãos, evitando que eles venham amorrer em seus momentos de desvario suicida”.44 Esta função limitadora éadquirida parcialmente com a construção de mecanismos de atrasos na máqui-na do governo, tais como o bicameralismo e o veto suspensivo e parcialmentepor procedimentos de emendas que demandam maior tempo.

Semelhantemente, tem sido debatido que a constituição deveria protegerminorias religiosas e étnicas das opressões das maiorias que são sujeitas a perma-nentes paixões e preconceitos. Como Cass Sunstein escreve: “as provisões cons-titucionais deveriam ser designadas para trabalhar exatamente contra aquelesaspectos da cultura e da tradição do país que são aptos a produzir mais danos porintermédio do processo político ordinário do país”.45 Uma carta de direitos é oinstrumento mais apropriado para assegurar tal proteção. Outro mecanismo éreservar algumas cadeiras no parlamento para grupos minoritários.

Seria realmente uma boa coisa se as constituições pudessem atender essasduas funções. Todavia, elas o farão somente se as condições dos constituintesforem suficientemente diferentes daquelas dos sujeitos cujos direitos são regu-lamentados. Mas consideremos a analogia de que as constituições são corren-tes impostas por Pedro quando ele está sóbrio a fim de proteger o Pedro quan-do ele estiver bêbado.46 Se as constituições são tipicamente escritas em tem-pos de crise, não é obvio que os constituintes estejam particularmente sóbrios.

Os constituintes franceses de 1791, por exemplo, não eram famosos porsua sobriedade e o documento que eles produziram, o qual evitou o tanto obicameralismo quanto o judicial review, contém poucos instrumentos paralimitar decisões tomadas pela paixão.

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44 FINN, John E. Constitutions In Crisis. 5 [S.l.:s.n.] 1991 (citando John Potter Stockton nos deba-tes sobre a lei referente à Ku Klux Klan, de 1871). Sobre o tema geral de auto-restrição, ver ELS-TER, Jon. Ulysses and the Sirens. [S.l.:s.n.] ch. II, 1979 e HOLMES, Stephen. Precommitment andthe Paradox of Democracy. in Constitutionalism and Democracy 195, [S.l.:] Jon Elster & RuneSlagstad eds., 1988. Sobre o tema de auto-restrição constitucional, ver ELSTER, Jon Elster.Intertemporal Choice and Political Thought. in Choice over Time 35, 35-45, [S.l.:] GeorgeLoewenstein & Jon Elster Eds., 1992. Para uma discussão sobre paradoxos putativos envolvidosna auto-restrição, ver SUBER, Peter. The Paradox of Self-Amendment 1-16 [S.l.:s.n.] 1990.

45 SUNSTEIN, Cass R. “Constitucionalism, Prosperity, Democracy: Transition in Eastern Europe.”in [S.l.:] 2 CONST. POL. ECON. 371, 385, 1991.

46 HOLMES, nota 44 supra, p. 196.

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De forma semelhante, os constituintes serão sujeitos às mesmas paixõespermanentes e preconceitos que os sujeitos dos direitos regulamentados.Como observou Adam Przeworski e Fernando Limongi, “aqueles que advo-gam concessões... não consideram o processo político pelo qual tais concessõessão estabelecidas”.47 Na Bulgária, por exemplo, pode se revelar útil que a cons-tituição proteja os direitos dos muçulmanos, a minoria de idioma turco, con-tra a opressão da etnia búlgara. O fato é, entretanto, que esta etnia explorou oseu controle do processo da criação da constituição em 1990-1991 e adotoualgumas das normas menos liberais possível nas novas constituições do lesteeuropeu.48

Há uma paixão em particular que tem, surpreendentemente, exercidouma influência considerável na construção da constituição. É a vaidade ouamor-próprio, amour-propre, que muitos moralistas desde La Rochefoucauldtêm considerado como a emoção humana mais poderosa. Não é surpresa, por-tanto, que a encontremos tanto nos constituintes como nas suposições que elesfazem acerca dos destinatários da constituição.

Consideremos, primeiramente, a vaidade ou mais propriamente o receiodos efeitos da vaidade nos constituintes. Na Convenção Federal, os represen-tantes decidiram no princípio adotar a regra do sigilo, porque se conheciambem o suficiente e sabiam que, caso adotassem uma posição pública, a vaidadeos impediria de alterá-la no futuro. Como Madison disse depois, “se os mem-bros tivessem se comprometido publicamente no início, mais tarde eles supo-riam que a necessidade de consistência exigiria que mantivessem sua posição.No entanto, em uma discussão secreta nenhum homem se sentiria obrigado amanter suas opiniões se não estivesse mais satisfeito acerca de sua conveniên-cia e verdade e estaria, assim, aberto para a força da argumentação”.49 Devodestacar, entretanto, que o sigilo pode também tender a afastar os procedimen-tos da discussão, em direção ao perigo da barganha baseada na ameaça.

Consideremos, na sequência, a vaidade nos destinatários da constituição.Na primeira Assembleia Francesa, muitos oradores declararam que não sedeveria colocar um agente em uma situação na qual sua vaidade poderia levá-

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47 PRZEWORSKI, Adam e LIMONGI, Fernando. “Political Regimes and Economic Growth.” J.ECON. PERSP., Summer, pp. 51, 66, 1993.

48 Paixões permanentes podem ser superadas, todavia, se a constituição é escrita sob a supervisãoestrangeira ou por uma pequena e esclarecida minoria dentro do país. No primeiro projeto darecente Constituição Romena, as prescrições não-liberais foram eliminadas depois de forte pres-são do Conselho da Europa. E é pelo menos discutível que a paixão permanente para nivelar aigualdade entre os norte-americanos tivesse sido derrotada pela Constituição elitista de 1787.

49 3 The Records of the Federal Convention of 1787, nota 9 supra, p. 479.

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lo a agir contra o interesse público. O promotor de justiça também não deve-ria agir como juiz porque se as funções forem combinadas, o amour-propre domagistrado poderia influenciá-lo no sentido de decidir pela culpa do acusa-do.50 Um veto meramente suspensivo para o rei não teria o pretendido efeitode fazer a assembleia reconsiderar sua decisão porque seu amour-propre pode-ria impedi-la de voltar atrás.51

C. Razão

Outro moralista francês, La Bruyère, escreveu que “nada é mais fácil paraa paixão do que sobrepujar a razão: seu grande trunfo é sobrepor-se ao inte-resse”.52 Às vezes, entretanto, a razão pode sobrepujar a paixão e também ointeresse. De fato, vimos apenas um exemplo. Quando os constituintes naConvenção Federal decidiram continuar os trabalhos a portas fechadas, istoaconteceu porque sua razão os disse que se assim não fosse eles poderiamsucumbir à paixão. Eles não dominaram a paixão, mas a evitaram.

De forma análoga, quando os representantes franceses de 1789 adotarama proposta de Robespierre de uma lei que os tornaria inelegíveis para o primei-ro parlamento ordinário, isto ocorreu porque eles queriam se proteger do inte-resse institucional. De maneira geral, as exceções que destaquei anteriormen-te sobre a tendência de os parlamentos constituintes do leste europeu favore-cerem o parlamento na constituição também pode ser vista como expressão deimparcialidade, de motivações desinteressadas.

Deixe-me dar um outro exemplo de semelhante comportamento de con-tra-interesse. Imediatamente depois da queda do comunismo naTchecoslováquia, Václav Havel e seus colaboradores do Fórum Civil encarre-garam-se de escrever a lei eleitoral das eleições para a assembleia constituin-te. Havel favoreceu fortemente o sistema majoritário porque isso permitiriaaos eleitores escolherem indivíduos em vez de partidos. O sistema majoritárioteria permitido também que o Fórum Civil vencesse com folga as eleições,como o Solidariedade fez na Polônia em junho de 1989. Mas para Havel e seugrupo, este último fato contou contra o sistema majoritário e não a favor dele.Eles deliberadamente se retraíram nesse sentido e adotaram um modo propor-cional de eleição porque desejavam uma ampla representação de todas as ten-

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50 Ver 8 Archives Parlamentaires, nota 9, p. 443.51 Ver 9 Archives Parlamentaires, nota 9, p. 111.52 LA BRUYÈRE. Caracteres. in 1 Collection Des Meilleurs Auteurs 3, 75, [S.l.:] Librarie de la

Bibliothèque Nationale, 1899 (traduzido pelo autor).

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dências políticas, incluindo os comunistas, no primeiro parlamento. Como umdos colaboradores próximos de Havel contou-me, “esta decisão será vistacomo a glória ou a fraqueza da revolução de novembro: nós fomos vencedo-res que aceitamos certo grau de autolimitação”.

Da Convenção Federal posso citar outra discussão que contrapõe o inte-resse à razão. Elbridge Gerry tinha proposto “limitar o número de novosEstados a serem admitidos na União, de tal maneira que seu número nuncapoderia superar o dos Estados Atlânticos”.53 Em sua réplica, Roger Shermanbaseou-se no interesse pessoal para sobrepujar o interesse do grupo. “Nós esta-mos legislando”, ele disse, “para nossa posteridade, para nossos filhos e nossosnetos que poderão ser tanto cidadãos dos novos Estados do Oeste quanto dosEstados Velhos”.54

Nenhum desses argumentos deveria ser confundido com chamadasgenuínas à imparcialidade, tal como o argumento de Mason para conceder anovos Estados igual posição: “Fortes objeções tem sido apresentadas”, ele disse,“sobre o perigo para os interesses do Atlântico advindo dos novos Estados dooeste”. Ele prosseguiu afirmando, entretanto, que os representantes não deve-riam “sacrificar o que é tido por certo, a não ser que tal ação seja benéfica paraos Estados que ainda não existem. Se os Estados do oeste devem ser admitidosna União na medida em que surgem, eles têm que ser tratados como iguais”,insistiu ele, “e não devem ser submetidos a nenhuma discriminação degradan-te”.55 Este argumento não se baseia nos interesses de longo prazo das linhas defamília, mas em uma concepção de justiça intrínseca.

IV. Agregação, Transformação e Representação errônea dePreferências

Dadas suas motivações e suposições cognitivas, os constituintes formamsuas preferências considerando os vários arranjos institucionais propostos.

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53 2 The Records of the Federal Convention of 1787, nota 9, p. 3.54 Ibid. Um argumento similar foi oferecido por George Mason em um diferente contexto:

Nós devemos atentar para os direitos de todas as classes do povo. Ele tinha frequentemente se sur-preendido com a indiferença das classes superiores da sociedade a esta imposição de humanidadee política, considerando que, independente de quão abastada, ou elevada fosse a sua situação, nodecorrer de poucos anos, não possivelmente, mas certamente sua prosperidade seria distribuídaentre as classes inferiores da sociedade. Todo motivo egoísta, consequentemente, cada estruturafamiliar deve recomendar um sistema de política que trate tão cuidadosamente dos direitos e feli-cidade dos pobres quanto das mais altas ordens de cidadãos.1 The Records of the Federal Convention of 1787, nota 9, p. 49.

55 1 The Records of the Federal Convention of 1787, nota 9, pp. 578, 579.

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Nesta parte discuto como essas preferências são ajuntadas, como se destinas-sem a produzir uma decisão coletiva.

Não se trata de uma simples questão de agregar determinadas preferên-cias através de um dado procedimento. Por um lado, o próprio procedimentotem que ser escolhido pelos representantes. Na França em 1789, como men-cionei, os representantes tinham que escolher entre votar por estado ou votarpor cabeça. Na Filadélfia, eles tinham que escolher entre idêntico poder devoto para todos os Estados da Convenção e dar mais votos para os Estados maispopulosos.56 No primeiro caso, eles adotaram o princípio “um homem, umvoto”; no segundo, “um grupo, um voto”.

Na maior parte das outras assembleias, normalmente tem-se como certoque as decisões serão tomadas por maioria simples dos representantes. Masalgumas assembleias decidiram desde o começo adotar um procedimento quese aproximasse do consenso. Este foi o caso, por exemplo, na criação da LeiFundamental alemã de 1949 e na Constituição espanhola de 1978. Para evitarconfrontação e obter consenso, os constituintes espanhóis antecipadamentefizeram um número importante de decisões sobre procedimento. Eles estabe-leceram sigilo para os procedimentos do comitê e decidiram que os partidosnão poderiam apresentar projetos de uma constituição integral, mas somenteprojetos de provisões individuais.57

Por outro lado, não podemos assumir que representantes simplesmenteexpressem determinadas preferências ou sigam instruções de suas bases. Comomencionei acima, os representantes para a Convenção Federal impuseramsigilo nos debates para tornar mais fácil para eles a possibilidade de mudaremsuas posições durante o debate. Na primeira Assembleia Francesa, mandatosimperativos foram rejeitados pela mesma razão. Na mais conhecida declaraçãosobre esta visão, o Abade Sieyès argumentou que a “voeu national”, o desejonacional, não poderia ser determinado pela consulta aos cahiers de reclama-ções e pedidos que os representantes haviam levado consigo para Versailles.Mandatos limitados, similarmente, não poderiam ser vistos como expressõesde vontade nacional. Em uma democracia (um termo que era usado pejorati-

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56 De fato, a última proposta foi cogitada somente brevemente. Apesar de os pensilvanianos quere-rem recusar igualdade de voto aos pequenos Estados, sua proposta nunca foi colocada em mesa.Ver 1 The Records of the Federal Convention of 1787, nota 9, p. 10 n.4. Quando um comitê foiformado para forjar um compromisso na casa alta, James Wilson “opô-se ao Comitê porque eledecidiria de acordo com a mesma regra de votação que havia sido impugnada por um lado”, massem sucesso. Ibid., p. 515.

57 PÉREZ-LLIORCA, José Pedro. Commentary, in Constitution Makers on Constitution Making,nota 1 supra, pp. 266, 271-72 (comentado Rubio Llorente, nota 14 supra).

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vamente naquele momento), disse ele, as pessoas formam suas opiniões emcasa e depois as levam para a cabine de votação. Se nenhuma maioria emerge,eles voltam para casa para reconsiderar suas visões, novamente isolados unsdos outros. Este procedimento para formar uma vontade comum, ele alegou,é absurdo porque carece de deliberação e discussão: “Não se trata de umaquestão de eleição democrática, mas de propor, escutar, acordar, mudar deopinião, com o objetivo de, em conjunto, formar uma vontade comum”.58

De uma maneira geral, as preferências podem passar por dois diferentestipos de mudanças antes de adicionarem ao processo de agregação.Primeiramente, como havia mencionado, há uma transformação de preferên-cias através da discussão. As pessoas podem mudar suas preferências derivadasquando obtêm novas informações sobre as relações de meio-fim. Talvez, commenor frequência, elas podem mudar suas preferências fundamentais comoresultado de um argumento normativo. Em segundo lugar, há a possibilidadede representação errônea de preferências. Por inúmeras razões, os represen-tantes podem, em seus discursos e votos, expressar preferências outras que asnão realmente esposadas por eles.

A extensão de ambos os tipos de mudança dependerá de os constituintesdebaterem publicamente ou a portas fechadas. Já indiquei alhures que o sigi-lo dos debates poderá ter duas consequências. Por um lado, ele tenderá atransferir o centro de gravidade de discussão imparcial para barganhas basea-das em interesses. Em um âmbito privado, há menos necessidade de apresen-tar uma proposta como voltada para promover o bem público. Por outro, osigilo tende a incrementar a qualidade de qualquer discussão que ocorra, por-que ele permite aos constituintes mudarem de ideia quando persuadidos pelaverdade de um ponto de vista de um oponente. De maneira contrária, enquan-to o debate público afasta qualquer aparência de barganha, ele também enco-raja a teimosia, propostas extravagantes e posições grandiloquentes de ummodo incompatível com a discussão genuína. Mais que fomentar a transfor-mação de preferências, o cenário público encoraja sua errônea representação.

A Convenção Federal e a primeira Assembleia Francesa são casos polaresa esse respeito. Nas notas de Madison sobre a Convenção, encontramos algunsexemplos excepcionalmente refinados de discussão racional e algumas barga-nhas extremamente difíceis. Nos arquivos da Assembleia Francesa não encon-tramos nem um, nem outro. Os oradores argumentam, sem exceções, em ter-mos do interesse público. Sabemos, entretanto, por meio de outra evidênciaque, devido ao medo de sanções geradas pela publicidade, vários constituintes

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58 8 Archives Parlementaires, nota 9 supra, p. 595 (traduzido pelo autor).

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falaram e votaram contra suas convicções.59 Os representantes radicais insis-tiram em votar por chamada, um procedimento que possibilitava aos mem-bros ou espectadores identificar aqueles que se opunham às medidas radicaise fazer circular listas com seus nomes em Paris. A derrota do bicameralismo ede um veto absoluto para o rei, particularmente, deveram-se grandemente aomedo gerado por essa publicidade.60

Uma fonte muito diferente de errônea representação está diretamenteligada ao processo de agregação. Quando os constituintes votam sobre asvárias questões à sua frente, a negociação de votos ocorre com frequência. Umrepresentante pode votar contra suas preferências verdadeiras em uma ques-tão de somenos importância para ele, mas muito importante para outro repre-sentante, em troca de uma concessão semelhante por parte do outro.

Na primeira Assembleia Francesa, uma famosa troca de favores aconte-ceu nos últimos dias de agosto de 1789, quando a Assembleia ia iniciar osdebates sobre as instituições básicas do Estado.61 Em três encontros entreMounier, de um lado, e o triunvirato de Barnave, Duport e Alexandre Lameth,de outro, os três apresentaram a seguinte proposta: eles ofereceriam aMounier tanto um veto absoluto para o rei quanto o bicameralismo, se ele emtroca I) aceitasse que o rei desistisse do seu direito de dissolver a assembléia;II) se aceitasse que a câmara alta tivesse um veto suspensivo somente e III) seaceitasse a existência de convenções periódicas para a revisão daConstituição.62 Mounier recusou imediatamente.63 De acordo com seu posi-cionamento, ele considerou que não seria correto fazer concessões em maté-ria de princípio.64 Ele pode também ter tido dúvidas sobre a habilidade dostrês para cumprirem sua promessa. De acordo com os historiadores posterio-res, ele recusou porque estava tão confiante de que a assembleia estava do seulado que acreditou que nenhuma concessão fosse necessária.65 Como já men-cionei, ele estava errado.

Note que uma troca de favores desse tipo é difícil se a assembleia consti-tuinte estiver profundamente polarizada em torno de um tópico. A dissoluçãoda Tchecoslováquia pode ser compreendida nessa perspectiva. Aqui o processo

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59 EGRET, La Révolution Des Notables, nota 9, p. 120.60 Ibid., p. 154.61 Ibid., p. 139. 62 Ibid., pp. 139-40.63 Ibid., p. 140.64 MOUNIER, Jean-Joseph. Exposé de ma Conduite dans l’Assemblée Nationale. in Orateurs De La

Revolution Française: Les Consituants, nota 9 supra, pp. 908, 933.65 A. MATHIEZ. “Etude Critique sur les Journées des 5 & 6 Octobre 1789”, 67 [S.l.:] REVUE HIS-

TORIQUE 241, 267, 1898.

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da elaboração da constituição estava polarizado ao redor do problema da fede-ração. Nenhum outro tópico era importante o suficiente para possibilitar umanegociação de votos. Acima de tudo, é defensável que a separação fosse a únicasolução conciliadora, por ser a segunda melhor opção para ambos os lados.

A elaboração da Constituição espanhola de 1978 envolveu negociação devotos em larga escala, sendo as questões principais I) o papel da igreja; II) aautonomia das províncias e III) a política sócioeconômica. Em decorrência dapresença de vários tópicos que poderiam ser negociados, foi possível alcançarum elevado grau de consenso.66 Esforços anteriores para a elaboração da cons-tituição na Espanha haviam sido mais polarizados. A Constituição da Espanhade 1931, por exemplo, foi adotada por uma pequena maioria que impôs prin-cípios dogmáticos, esquerdistas e seculares aos seus oponentes.

A agregação por votação é inerentemente vulnerável a ciclos. WilliamRiker demonstrou a existência de um ciclo, durante a Convenção Federal,referente à Presidência, com as seguintes opções cíclicas: eleição peloCongresso com a participação de ambas as Casas, eleição do Presidente poreleitores escolhidos pelos Estados na proporção de suas populações e a eleiçãopor uma sessão conjunta da Câmara e do Senado. De acordo com Riker, a reve-lação deste ciclo impediu que a segunda alternativa fosse adotada e preparouo caminho para o consenso final, com base no qual os Estados menores esco-lheram com um número mais que proporcional de eleitores.67

Finalmente, considerarei a importância da barganha baseada em ameaçacomo mecanismo de agregação. A troca de votos pode também ser considera-da sob esta perspectiva, sendo a ameaça a retenção do voto de alguém em umassunto de vital importância para o oponente. Mas o que tenho em mente aquié a barganha baseada em fatores que não são criados pelo sistema político, masque existem independentemente da própria assembleia. Estes incluem pode-res estrangeiros, polícia, forças militares, terrorismo, comandos sobre multi-dões e perspectivas eleitorais. Como as constituições tendem a ser elaboradasnas crises, estes fatores extrapolíticos frequentemente exercem uma influên-cia proeminente. O tempo e a capacidade de obstar são também importantesfatores que conferem credibilidade às ameaças em alguns casos.

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66 COLOMER, nota 14, pp. 78-104.67 RIKER, William H. “The Heresthetics of Constitution-Making: The Presidency in 1787, with

Comments on Determinism and Rational Choice”. [S.l.:] 78 AM. POL. SCI. REV. 1, 12-13, 1984;ver também RIKER, nota 33 supra, pp. 34-51. COLOMER, nota 14, pp. 91-101, contém exemplossimilares da transição espanhola.

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Muitos processos de criação da constituição têm sido suspensos emdecorrência de forças extrapolíticas. Ilustrarei com exemplos das duas assem-bleias do século XVIII e depois mencionarei brevemente alguns casos maisrecentes.

Na Convenção Federal encontramos várias referências a forças extrapo-líticas, notadamente nos debates sobre a representação dos pequenos Estadosno Senado. Em 30 de junho, Gunning Bedford, Jr. declarou que “os Estadosgrandes não ousarão dissolver a confederação. Se eles o fizerem, os Estadosmenores encontrarão algum aliado estrangeiro com mais honra e boa fé queos conduzirá pela mão e lhes fará justiça. Ele não tencionou, com isso, intimi-dar ou alarmar. Isso era uma consequência natural que deveria ser evitadapelo aumento dos poderes federais, não pela aniquilação do sistema federal”.68

Em 5 de julho, o governador Morris contra-atacou:

Suponhamos que os grandes Estados concordarão e que os menores recu-sarão e vamos traçar as consequências. Os oponentes do sistema nospequenos Estados, sem dúvida, farão uma baderna por algum tempo, masos laços do interesse, de parentesco e de hábitos comuns que os conectacom os outros Estados serão fortes demais para serem quebrados facil-mente. Em Nova Jersey, particularmente, ele estava certo de que muitospoderiam seguir os sentimentos de Pensilvânia e Nova York. Este paístem que ser unido. Se a persuasão não o unir, a espada o unirá. Ele insis-tiu para que esta consideração possa ser devidamente levada em conta.As cenas de horror, relacionadas à comoção civil não podem ser descri-tas e as suas consequências serão piores que o período de sua continua-ção. A parte mais forte fará, então, traidores dos fracos e as forcas termi-narão o trabalho da espada. Até onde os poderes estrangeiros se pronti-ficariam a tomar parte nas confusões ele não soube dizer. As ameaças deque tais poderes seriam convidados foram aparentemente rejeitadas.69

Depois, ambos os lados se retrataram, reformulando suas ameaças comoavisos.70 Este é um estratagema amplamente observado. Na Mesa Redonda de

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68 1 The Records of the Federal Convention of 1787, nota 9, p. 492.69 Ibid., p. 530.70 A terminologia nesse ponto não é estabelecida. Kent Greenawalt se refere a “ameaças avisadas”

como se uma verbalização pudesse ser ambas, uma ameaça e um aviso. GREENAWALT, Kent.Speech, Crime and the Uses of Language [S.l.:s.n.] 251, 1989. Outros autores têm usado a distin-ção entre aviso e ameaça para diferenciar os casos nos quais o agente tem um incentivo para exe-cutar a ação anunciada daqueles em que não tem. Ver SCHELLING, Thomas C. The Strategy ofConflict. [S.l.:s.n.] 123 n. 5, 1960, ver também NOZICK, Robert. Coercion, in Philosophy,

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Negociações polonesa de 1989, por exemplo, os negociadores do governo eramcuidadosos para não bradar as ameaças de intervenção soviética. Em vez disso,eles avisarem os negociadores do Solidariedade que se a liberalização fosselonge demais, os soviéticos provavelmente interviriam, o que era contrário aosdesejos de ambos os lados.

Na França, em 1789, o campo de força foi definido pelas tropas reais nasadjacências de Versailles e pelas multidões em Paris. Quando, nos primeirosdias de julho, o rei reforçou a presença das tropas perto de Versailles, a amea-ça implícita à assembleia foi percebida por todos. As respostas de Mirabeau aodesafio do rei foram, entretanto, sujeitas à ambiguidade do mecanismo daameaça-aviso. Em seu primeiro discurso sobre o tema, ele falou em termosbastante gerais: “Como poderiam as pessoas não ficarem zangadas quando suaúltima esperança [isto é, a assembleia] está em perigo?”71 Em seu segundo dis-curso ele se tornou mais específico: as tropas “podem esquecer-se de que sãosoldados por contrato e lembrar que são homens por natureza”.72 Além disso,a assembleia não pode nem confiar em si mesma para atuar responsavelmen-te: “Movimentos passionais são contagiosos: nós somos somente homens;nosso medo de parecer fracos pode nos levar muito além na direção oposta”.73

Em sua breve intervenção no mesmo debate, Sieyès mencionou que emtodas as assembleias deliberativas, notadamente nos Estados da Bretanha, aAssembleia recusava-se a deliberar se as tropas estivessem localizadas em umadistância inferior a 40 quilômetros de onde ela estivesse reunida.74 Quando aassembleia pediu a remoção das tropas, entretanto, o rei em sua respostadeclarou que elas foram trazidas para controlar Paris, não para aterrorizar aassembleia.75 Se a assembleia se opusesse à presença das tropas nas adjacênciasde Paris, ele estaria perfeitamente satisfeito em deslocar a assembleia para

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Science and Method 440, 453-58 [S.l.:] Sidney Morgenbesser et al. eds., 1969 (distinguindo avi-sos de ameaças com fundamento em que o primeiro simplesmente descreve o que se seguirá comouma consequência de uma ação particular, enquanto o último contém um elemento de coerção.Assim, dizer a um assaltante que eu vou chamar a polícia a menos que ele vá embora serve paraavisá-lo enquanto dizer a uma garota que cometerei suicídio se ela não aceitar se casar comigo,funciona como ameaça. No presente ensaio a distinção é usada para contrastar os resultados queestão dentro do controle do agente e aqueles que não estão. Ver também nota 72 infra.

71 8 Archives Parlementaires, nota 9, p. 209 (traduzido pelo autor).72 Ibid. p. 213. Este é um exemplo de aviso de auto-cumprimento que é, em um sentido, interme-

diário entre os avisos ordinários e as ameaças. Ao afirmar publicamente para o rei que suas tro-pas não eram confiáveis, Mirabeau pode de fato ter garantido a verdade desta declaração. Paraoutro exemplo dessa ideia, ver O’BRIEN, Conor C. The Great Melody: A Thematic Biography andCommented Anthology of Edmund Burke 125 [S.l.:s.n.] 1992.

73 8 Archives Parlementaires, nota 9, p. 213 (traduzido pelo autor).74 Ibid., p. 208.75 Ibid., p. 219.

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Noyon ou Soisson, e se mudar ele próprio para Compiègne de modo a facili-tar a comunicação entre eles. Entretanto, a assembleia não poderia aceitaruma proposta que poderia privá-los do potencial de ameaça de Paris. Foi entãodecidido enviar uma delegação ao rei, requerendo a ele que convocasse as tro-pas “cuja presença aumenta ainda mais o desespero do povo.76 Se o rei concor-dasse, a assembleia enviaria uma delegação a Paris “para contar as boas novase contribuir para o retorno da ordem”.77 Desnecessário dizer o que eles fari-am se o rei não os atendesse. No dia seguinte a Bastilha caiu e o rei concordouem mandar as tropas embora.

As mesmas forças – as tropas e as multidões – estavam atuando em Parisem 1848. Em Paris, em 1958, a perspectiva da rebelião militar era um fatorprimordial que possibilitou a De Gaulle impor a sua constituição. EmFrankfurt, em 1848, o processo da criação da constituição foi pontuado peloassassinato de um proeminente membro da ala direita da assembleia. EmWeimar, em 1919, os trabalhadores revolucionários e o vitorioso inimigoforam ambos instrumentais na formação da constituição. Em Bonn, em 1949,os constituintes alemães habilmente usaram o medo do comunismo em suabarganha com as forças ocupantes ocidentais. Na Espanha, em 1978, a criaçãoda constituição ocorreu em uma atmosfera fortemente influenciada pelaarmada franquista e terroristas bascos. No leste europeu, a quase constitucio-nal Mesa Redonda de Negociações foi suspensa entre ameaças ou avisos deintervenção soviética, de um lado, e a possibilidade de manifestações emmassa dos trabalhadores, de outro.

Podemos apoiar-nos em uma teoria dos jogos e em uma teoria da barga-nha para modelar essas influências explicitamente,78 desde que permaneça-mos conscientes das limitações de tal abordagem. Em situações como as acimamencionadas, as pessoas nem sempre agem racionalmente. Medo, raiva eentusiasmo frequentemente tomam conta delas. Nem elas podem facilmenteavaliar a probabilidade das várias contingências. Em tais situações, a criaçãoda constituição tem mais da opacidade da batalha que da previsibilidade dos

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76 Ibid., p. 229.77 Ibid. 78 Os exemplos da teoria dos jogos e da teoria da barganha aplicados aos processos de transição,

genericamente, e à criação da constituição, mais especificamente, incluem COLOMER, nota 14supra; PRZEWORSKI, Adam. Democracy and the Market. [S.l.:s.n.] 1991; RIKER, nota 33 supra;ELSTER, Jon. “Argumenteer et Négocier dans Deux Assemblées Constituants” 44 [S.l.:] REVUEFRANÇAISE DE SCIENCE POLITIQUE 187, 1994; HECKATHORN, Douglas D. e MASER,Steven M. “Bargaining and Constitutional Contracts”. [S.l.:] 31 AM. J. POL. SCI. 142, 1987;RIKER, nota 67 supra; ZIELINSKI, Jakub. The Polish Transition to Democracy: A Game-theore-tic Approac. [S.l.:] 36 Archives Européennes de Sociologie 135, 1995.

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procedimentos parlamentaristas. A teoria formal nos ajuda a compreendermais precisamente alguns dos fatores que podemos identificar, mas ela dificil-mente permite uma completa explanação.

Conclusão

Gostaria de concluir ressaltando dois paradoxos básicos da elaboração daconstituição e depois comentar algumas implicações normativas da análise. Oprimeiro paradoxo surge do fato de que a tarefa de elaboração da constituiçãogeralmente emerge em condições que são adversas à boa elaboração da cons-tituição. Por ser escrita para um futuro indefinido, as constituições deveriamser adotadas em condições idealmente calmas e livres de problemas. Tambéma importância intrínseca da criação de uma constituição requer que os proce-dimentos sejam baseados na argumentação racional, imparcial. Em parlamen-tos ordinários, a troca de voto e negociações podem assegurar que todos osgrupos realizem alguns de seus maiores objetivos. Os constituintes, entretan-to, legislam principalmente para gerações futuras que não têm representaçãonas assembleias constituintes. É parte de sua função olhar além de seus hori-zontes e de seus próprios interesses. Ao mesmo tempo, a necessidade de umanova constituição usualmente surge em circunstâncias turbulentas que ten-dem a fomentar a paixão no lugar da razão. Ainda, as circunstâncias externasà elaboração da constituição convidam procedimentos respaldados nas barga-nhas baseadas em ameaças. Marx disse que “a espécie humana sempre estabe-lece para si somente as tarefas que ela pode solucionar”.79

Na criação da constituição, diferentemente, parece-nos que a tarefa éestabelecida somente sob condições que trabalham contra uma boa solução.

O segundo paradoxo origina-se no fato de que a vontade pública de rea-lizar grandes alterações constitucionais provavelmente não estará presente amenos que uma crise seja iminente. Suponha-se, por exemplo, que uma alte-ração constitucional seja prevista, mesmo que não exista nenhuma circunstân-cia externa dramática. Neste caso, nenhuma solução poderá ser encontrada.Como Peter Russell escreve, “um país precisa ter um senso de que suas costasestão seguras, para que seus líderes e seu povo possam acomodar suas diferen-ças”.80 No Canadá, depois de 1982, e na Polônia, após 1992, podemos observarcomo a elaboração da constituição não avançou porque não havia nenhuma

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79 MARX, Karl. Preface to A Critique of Political Economy, in Karl Marx: A Reader 187, 187 [S.l.:]Jonh Elster ed., 1986.

80 RUSSELL, nota 16 supra, p. 106.

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necessidade urgente para remodelar as instituições básicas. É um axioma dateoria da barganha que “se não importa quando as pessoas concordam, entãonão importará se elas de qualquer forma concordam ou não”.81 Se as pessoasdispuserem de todo o tempo necessário para achar uma boa solução, talveznenhuma solução seja encontrada.

Concluo com alguns comentários acerca das implicações normativas quepodem ser deduzidas dos argumentos expostos acima. O mais importante, é,talvez, que para reduzir o alcance do interesse institucional, as constituiçõesdevam ser escritas por assembleias convocadas especialmente e não por cor-pos que também servem como parlamentos ordinários. Nem tampouco deve-riam os parlamentos receber um lugar central no processo de ratificação. Emambos aspectos, a Convenção Federal pode servir como um modelo. Outraimplicação é que o processo deve conter elementos sigilosos (comitê de dis-cussão) e de publicidade (plenário de assembleia para discussões). Com totalsegredo, interesses partidários e trocas de votos ganham destaque, enquanto atotal publicidade encoraja a grandiloquência e extravagantes propostas retóri-cas. Na Convenção Federal havia muito pouca publicidade; na Assembleiafrancesa de 1789 havia publicidade demais. A elaboração da Constituiçãoespanhola de 1978 pode ter-se aproximado do equilíbrio ideal.82

De forma experimental, eu ainda sugiro as seguintes recomendações:

(1) As eleições para as assembleias constituintes devem seguir o siste-ma proporcional em detrimento do majoritário. Quaisquer quesejam as vantagens do sistema majoritário na criação de parlamen-tos ordinários, uma assembleia constituinte deve ser amplamenterepresentativa.83

(2) A assembleia constituinte deve ser unicameral e não bicameral.Quaisquer que sejam os argumentos para se adotar o bicameralismoem parlamentos ordinárias não se aplicam à assembleia constituin-te.

(3) Para reduzir o alcance das ameaças e tentativas de influenciar asdeliberações através de manifestações populares, a assembleia nãodeve se reunir na capital do país ou em uma grande cidade; tampou-co deve ser permitida a permanência das forças armadas nas adja-cências da assembleia.

Coleção ANPR de Direito e DemocraciaDireção: Antonio Carlos Alpino Bigonha & Luiz Moreira

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81 CROSS, John G. “A Theory of the Bargaining Process” [S.l.:] 55 AM. ECON. REV. 67, 72, 1965.82 BONIME-BLANC, nota 1 supra, p. 36.83 OSIATYNSKI, Wiktor. “Poland´s Constitutional Ordeal”. [S.l.:] E. EUR. CONST. REV. 29, 30, 1994.

Page 32: Elster John Processo Constituinte

(4) O papel dos especialistas deveria ser reduzido ao mínimo porque assoluções tendem a ser mais estáveis se ditadas pela política emdetrimento das considerações técnicas. Juristas tenderão a resistir àsformulações atécnicas e propositalmente ambíguas eventualmentenecessárias para se obter consenso.

(5) A assembleia deveria trabalhar com um limite de tempo, de formaque nenhum grupo possa usar táticas de postergação para conseguirseus objetivos.

(6) Se as demoras forem possíveis, a constituição não deveria ter vigên-cia imediata após a sua adoção, para reduzir o impacto do curtotempo e dos motivos partidários. Mas como novas constituiçõesusualmente são convocadas em tempo de crise, as demoras para suaentrada em vigor raramente serão possíveis.

Novamente encontramos o paradoxo segundo o qual a necessidade dacriação da constituição tende a emergir sob condições que sistematicamenteatuam contra o raciocínio imparcial e claro para o qual a tarefa é convocada.

Jon Elster. Forças e Mecanismos no Processo de Elaboração da Constituição

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