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INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V.6 , Edição número 24, de Outubro de 2016 a Abril de 2017 - p 1 ENGENHARIA DIDÁTICA: UM PROJETO DE LEITURA COM FOCO NA FRUIÇÃO LITERÁRIA E NA VIVÊNCIA EMOCIONAL DO LEITOR Luiz Antônio Ribeiro* Aurélio Vieira Kubo* RESUMO: Este artigo se insere no quadro do Interacionismo Sociodiscursivo e propõe investigar como as sequências didáticas podem ser planejadas e implementadas a fim de favorecer práticas de leitura. Considera-se que as práticas de leitura podem ser potencializadas se forem planejadas por meio de um projeto de Engenharia Didática que contemple a fruição do texto e a vivência emocional dos alunos. O referencial teórico utilizado concebe a linguagem como interação, a Engenharia Didática como suporte conceitual para a pesquisa e o desenvolvimento de inovações, a fruição literária como processo de produção de sentido e forma de humanização, bem como a emoção como elemento constitutivo do processo educativo. Os autores estudados são Bakhtin (1986), Candido (1995), Cosson (2007), Barthes (1987), Dolz (2016), Vygotsky (2003) e Artigue, (2002), entre outros. Os resultados sinalizam para o fortalecimento/favorecimento das interações entre professor, aluno e objeto de ensino; maior engajamento no cumprimento das atividades; e a fruição como práxis fundamental para a humanização e criticidade. Este trabalho se justifica, pois oportuniza maior reflexão e compreensão de como a prática de leitura pode alcançar resultados mais satisfatórios, se for desenvolvida por meio de um projeto de Engenharia Didática, que explore atividades de fruição literária desencadeadoras da emoção. ABSTRACT: The main framework of this paper is Social interactionist theory and looks into how didactic sequences must be planned and implemented in order to favor reading practice. We understand that as social practice reading activities can be fostered if they are planned bya Didactic Engineering project that contemplatesliterary fruition and emotional experiences of students. The theoretical framework assumes language as interaction, Didactic Engineering as conceptual framework for research and development of innovations, literary fruition as a process of meaning production and a way for humanization and, finally, emotion as constitutive part of educational process. The references come from Bakhtin (1986), Candido (1995), Cosson (2007), Barthes (1987), Dolz (2016), Vygotsky (2003) and Artigue (2002) among others. Results suggest fostered/enhanced interactions between teacher, studentand educational objects; greater commitment to carry out tasks; and fruition as fundamental praxis for humanization and criticism. This research is justified as it gives opportunity to further reflection and understanding of how the practice of reading can achieve more satisfactory results if developed through a Didactic Engineering project that explores literary fruition activities as triggers of emotion. PALAVRAS-CHAVE: engenharia didática, fruição literária, emoção. KEYWORDS: Didactic Engineering, literary fruition, emotion.

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ENGENHARIA DIDÁTICA: UM PROJETO DE LEITURA COM FOCO NA

FRUIÇÃO LITERÁRIA E NA VIVÊNCIA EMOCIONAL DO LEITOR

Luiz Antônio Ribeiro*

Aurélio Vieira Kubo*

RESUMO: Este artigo se insere no quadro do Interacionismo Sociodiscursivo e propõe investigar como

as sequências didáticas podem ser planejadas e implementadas a fim de favorecer práticas de leitura.

Considera-se que as práticas de leitura podem ser potencializadas se forem planejadas por meio de um

projeto de Engenharia Didática que contemple a fruição do texto e a vivência emocional dos alunos. O

referencial teórico utilizado concebe a linguagem como interação, a Engenharia Didática como suporte

conceitual para a pesquisa e o desenvolvimento de inovações, a fruição literária como processo de

produção de sentido e forma de humanização, bem como a emoção como elemento constitutivo do

processo educativo. Os autores estudados são Bakhtin (1986), Candido (1995), Cosson (2007), Barthes

(1987), Dolz (2016), Vygotsky (2003) e Artigue, (2002), entre outros. Os resultados sinalizam para o

fortalecimento/favorecimento das interações entre professor, aluno e objeto de ensino; maior

engajamento no cumprimento das atividades; e a fruição como práxis fundamental para a humanização e

criticidade. Este trabalho se justifica, pois oportuniza maior reflexão e compreensão de como a prática

de leitura pode alcançar resultados mais satisfatórios, se for desenvolvida por meio de um projeto de

Engenharia Didática, que explore atividades de fruição literária desencadeadoras da emoção.

ABSTRACT: The main framework of this paper is Social interactionist theory and looks into how didactic

sequences must be planned and implemented in order to favor reading practice. We understand that as

social practice reading activities can be fostered if they are planned bya Didactic Engineering project

that contemplatesliterary fruition and emotional experiences of students. The theoretical framework

assumes language as interaction, Didactic Engineering as conceptual framework for research and

development of innovations, literary fruition as a process of meaning production and a way for

humanization and, finally, emotion as constitutive part of educational process. The references come from

Bakhtin (1986), Candido (1995), Cosson (2007), Barthes (1987), Dolz (2016), Vygotsky (2003) and

Artigue (2002) among others. Results suggest fostered/enhanced interactions between teacher,

studentand educational objects; greater commitment to carry out tasks; and fruition as fundamental

praxis for humanization and criticism. This research is justified as it gives opportunity to further

reflection and understanding of how the practice of reading can achieve more satisfactory results if

developed through a Didactic Engineering project that explores literary fruition activities as triggers of

emotion.

PALAVRAS-CHAVE: engenharia didática, fruição literária, emoção.

KEYWORDS: Didactic Engineering, literary fruition, emotion.

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1. REFERENCIAL TEÓRICO

1.1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A LEITURA LITERÁRIA NA ESCOLA, A

EMOÇÃO E A FRUIÇÃO DO TEXTO

Um projeto de Engenharia Didática que contemple a formação do leitor deve

fundamentar-se sobre a seguinte questão: que leitor queremos formar? Para Uchôa

(1991, p. 76), leitor é “aquele que, lendo um texto, é capaz de discutir ideias, expor

interpretações individuais e partilhar das experiências geradas pela incursão nos textos,

em suma, alcançar o adentramento crítico da leitura feita.” Esse conceito fundamenta-se

na enunciação dialógica bakhtiniana, segundo a qual a verdadeira substância da língua

constitui-se pelo fenômeno social da interação verbal, visto que “toda palavra comporta

duas faces. Ela é determinada, tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato

de que se dirige a alguém.” (BAKHTIN, 1986, p. 113). Essa concepção de dialogismo

encontra ressonância nas afirmações de Antônio Candido acerca do papel da literatura.

Para ele,

Ao confirmar e negar, propor e denunciar, apoiar e combater, a literatura

possibilita ao homem viver seus problemas de forma dialética, tornando-se

um “bem incompressível”, pois confirma o homem na sua humanidade,

inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente.

(CANDIDO, 1995, p. 243).

Esse fenômeno da interação verbal nos faz questionar: o que devemos entender por

literatura? Trazemos à baila a definição apresentada por esse mesmo autor:

Chamarei de literatura, de maneira mais ampla possível, todas as criações de

toque poético, ficcional ou dramático, em todos os níveis de uma sociedade,

em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, até as

formas mais complexas e difíceis de produção das grandes civilizações.

(CANDIDO, 1995, p. 242).

A teoria estética da recepção ressalta que o texto literário possui função diferenciada

dos demais textos que circulam ordinariamente em nossa sociedade. Nos dizeres de

Cosson (2007, p. 17), “a literatura é uma experiência a ser realizada”. O texto literário,

dado o seu caráter ficcional, poético e/ou dramático, possibilita-nos expressar a nossa

visão de mundo, vivenciar a experiência do outro, bem como romper os limites do

tempo e do espaço. Destaca-se, dessa afirmação, que o significado gerado a partir do

encontro dos sujeitos – escritor e leitor – será sempre polissêmico e mutável.

Essas considerações apontam para uma compreensão da leitura – e em especial a de

leitura literária – como um exercício do olhar, uma experiência estética individual.

Nesse sentido, trazemos à baila as considerações de Vygotsky (2003) acerca do

pensamento, cuja origem reside na esfera motivacional e envolve predisposições,

interesses, afeições e emoção. Segundo esse autor,

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As reações emocionais exercem uma influência essencial e absoluta em todas

as formas de nosso comportamento e em todos os momentos do processo

educativo. Se quisermos que os alunos recordem melhor ou exercitem mais

seu pensamento, devemos fazer com que essas atividades sejam

emocionalmente estimuladas. A experiência e a pesquisa têm demonstrado

que um fato impregnado de emoção é recordado de forma mais sólida, firme

e prolongada que um feito indiferente. (VYGOTSKY, 2003, p.121)

Em “Teoria das emoções”, Vygotsky (1998) propôs-se a refletir sobre a relação entre as

dimensões afetiva e cognitiva no psiquismo humano. Para ele, as emoções devem ser

analisadas enquanto função psicológica superior e compreendidas como sistemas

abertos, voltados para a transformação do mundo e do sujeito, consideradas, para isso,

um conjunto de estratégias cognitivas e emocionais, as quais se encontram estritamente

relacionadas com as normas e os valores culturais.

Considerando-se que as reações emocionais estão na base do processo educativo, é

necessário que as atividades de leitura sejam impulsionadas de tal forma que

oportunizem a fruição literária. A fruição literária nos propicia experimentações

singulares, visto que a literatura, enquanto manifestação estética, fundamenta-se na

opacidade, na plurissignificação, na recriação da realidade a partir de modos de

apropriação específicos. Ela se distingue do prazer gratuito, conforme assevera Barthes:

Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da

cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura.

Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta

(talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais,

psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de

suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem.

(BARTHES, 1987, p. 20-21)

A fruição literária deve provocar rupturas com as convenções, vivências emocionais

inusitadas e complexas, bem como reconstrução de valores, pensamentos e sentimentos.

Daí que o prazer, em vez de gratuito, passa a ser uma consequência do engajamento do

leitor no ato da fruição, intrinsecamente relacionada ao processo de construção,

desconstrução e (re)configuração de sentidos.Mas como transformar as aulas de leitura

em um conjunto de atividades estruturadas e articuladas com vistas à fruição literária?

Tal questionamento nos leva a refletir sobre a Engenharia Didática como um campo

particular do ensino de língua, conforme veremos a seguir.

1.2. ENGENHARIA DIDÁTICA: PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS

Compreende-se a Engenharia Didática como um processo análogo ao ofício do

engenheiro, cujos designs são desenvolvidos como forma de gerar soluções criativas,

inovadoras e viáveis. O professor é considerado como um designer de dispositivos

didáticos, e a profissão docente, como a “Engenharia Didática”. Sob essa ótica, o

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projeto surge da necessidade de uma metodologia de investigação científica que

relacione pesquisa e ação sobre o sistema fundamentado em conhecimentos didáticos

preestabelecidos. Assim, um projeto de Engenharia Didática deve envolver

planejamento de ensino, criação de materiais didáticos e desenvolvimentos

experimentais.

Em linhas gerais, a Engenharia Didática caracteriza-se como um modo específico de

organização dos procedimentos metodológicos de pesquisas que tenham como

fundamento a prática pedagógica. Como metodologia de pesquisa, ela se diferencia de

métodos experimentais habituais na educação por seu método de validação, o qual se

baseia no confronto entre uma análise a priori em que se realizou uma série de

pressupostos e uma análise a posteriori, pautada em dados da efetiva realização.

Tais estudos foram incorporados pelos pesquisadores da chamada “Escola de Genebra”

sob a égide do interacionismosociodiscursivo. Para Dolz (2016, p. 241), a Engenharia

Didática “organiza, transforma e adapta os saberes sobre a língua e as práticas

discursivas para o ensino”. Seu objetivo consiste na concepção de projetos escolares e

na elaboração de “dispositivos, atividades, exercícios, materiais escolares e novas

tecnologias da comunicação escrita, oral e audiovisual” (idem). Assim, ela deve

organizar as formas sociais das práticas escolares, elaborar ferramentas de

aprendizagem, orientar as intervenções e as práticas didáticas, além de promover

pesquisas sobre as inovações implementadas.

Dolz (2016, p. 243-244) destaca as quatro fases que constituem um projeto de

Engenharia Didática: análise prévia do trabalho de concepção; concepção de um

protótipo de dispositivo didático; experimentação; e análise a posteriori.

A primeira fase, relativa à análise prévia do trabalho de concepção, volta-se para o

conhecimento dos objetos de ensino a partir de um quadro teórico adotado pelo

pesquisador e dos conhecimentos didáticos relacionados ao objeto de estudo.

Compreende também uma avaliação das capacidades dos educandos e dos desafios que

determinam sua evolução. Caberá ao pesquisador elaborar a sequência didática a ser

aplicada, estabelecer uma previsão das ações e dos comportamentos dos alunos durante

a fase de experimentação, além de explicitar como as atividades propostas propiciarão a

aprendizagem almejada. Também será preciso estabelecer, por meio de hipóteses, o

processo de validação fundamentado na confrontação entre as análises a priori e a

posteriori.

A segunda fase volta-se para a concepção de um protótipo de dispositivo didático,

constituído de uma produção inicial com uma série de oficinas e atividades que

permitam avaliar as capacidades dos alunos, bem como de uma produção final que

possa mensurar os efeitos do ensino. Tais ações serão executadas de forma mais

eficiente por meio do desenvolvimento de sequências didáticas, que consiste de “um

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conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um

gênero textual oral ou escrito” (Dolz, Noverraz & Schneuwly, 2004, p.97). O objetivo

das sequências didáticas é auxiliar o aluno no domínio de uma prática de

linguagem(re)configurada em um gênero de texto, de modo que ele possa adaptá-la a

uma situação de comunicação específica.

A terceira fase, a da experimentação, constitui-se da aplicação da sequência didática

elaborada na fase anterior a um grupo de alunos, com vistas a verificar as hipóteses

levantadas na análise preliminar. Para Machado (2002, p. 206), a experimentação

pressupõe “a explicitação dos objetivos e condições de realização da pesquisa à

população de alunos que participará da experimentação; o estabelecimento do contrato

didático; a aplicação do instrumento de pesquisa; e o registro das observações feitas

durante a experimentação”. A quarta e última fase, a da análise dos resultados, permite

confrontar as conclusões elaboradas na análise prévia com as constatações evidenciadas

na aplicação da sequência didática. Assim é possível estabelecer um demonstrativo dos

resultados obtidos, em que se evidenciem as contribuições para a superação de um

problema bem como os limites do dispositivo criado, de modo que o objetivo da

pesquisa possa ser validado.

Dolz (2016, p. 250-251)destaca a importância das atividades escolares na aprendizagem

e apresenta sete princípios basilares para a concepção e elaboração de exercícios

inovadores, com foco nos pressupostos da Engenharia Didática: permitir ao aluno que

passe pela atividade da linguagem; considerar a Zona de Desenvolvimento Proximal do

aluno (ZDP); garantir uma dinâmica que vai da elementarização para aprender à

integração dos elementos novos na totalidade do texto; fabricar as ferramentas para o

aluno por um movimento progressivo de devolução; diversificar e articular as tarefas;

antecipar as interações e explicitar os conceitos e comportamentos a desenvolver;

respeitar a escolha do aluno.

Tais princípios são fundamentais se quisermos que os alunos experienciem situações de

comunicação as quais façam sentido para si e lhes permitam participar ativamente da

construção do conhecimento. Como mediador desse processo, o professor deve observar

as capacidades iniciais dos alunos, bem como planejar e propor atividades de linguagem

diversificadas e articuladas que atendam aos diferentes estilos de aprendizagem,

garantam a motivação e a superação das dificuldades. Além disso, deve agir no sentido

de apresentar propostas que favoreçam as interações e que oportunizem aos alunos

escolhas que lhes garantam o desenvolvimento da própria linguagem e,

progressivamente, a conquista de sua própria autonomia enquanto leitor e produtor de

textos. Em síntese, o trabalho com um projeto de Engenharia Didática oportuniza ao

professor engenheiro sistematizar um conjunto de procedimentos metodológicos, que

lhe permita uma ação investigativa por meio da qual será capaz de associar a ação

pedagógica com os pressupostos teóricos a ela subjacente.

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2. METODOLOGIA DA PESQUISA

A pesquisa que originou este artigo inseriu-se no quadro do

InteracionismoSociodiscursivo e pretendeu discutir sobre o planejamento e aplicação

das atividades de leitura para alunos do Ensino Médio. Considerou-se, para isso, a

seguinte pergunta-chave: como as sequências didáticas podem ser planejadas a fim de

favorecer práticas de leitura com foco na fruição literária e na vivência emocional do

leitor? Partiu-se da hipótese de que o desenvolvimento de um projeto de Engenharia

Didática, relativo a práticas de leitura com foco na fruição literária e na vivência

emocional dos alunos, potencializa a vivência de experiências estéticas e

humanizadoras. Objetivou-se verificar como e se o desenvolvimento de um projeto de

Engenharia Didática na área de leitura literária com base na experienciação e na

exploração do potencial emocional dos alunos contribui para a sua formação leitora. O

corpus analisado contemplou um projeto de Engenharia Didática constituído de uma

sequência didática organizada e implementada, de atividades realizadas pelos alunos e

dos processos avaliativos realizados. Os resultados apontaram para experienciação das

práticas de leitura que oportunizaram, mediante a fruição literária e o despertar da

emoção, a ação sobre o texto. Refletiram também o engajamento em um projeto de

Engenharia Didática, que permitiu aos docentes uma investigação sobre a própria

prática e o aprimoramento desta, no sentido de oportunizar aos alunos uma formação

mais humana e cidadã.

3. ANÁLISE DOS DADOS

Diante do desafio de planejar as atividades de recepção dos alunos do 1º ano do Ensino

Médio no início do ano letivo de 2016, uma equipe de professores da rede federal de

ensino engajou-se no desenvolvimento de uma proposta interdisciplinar que permitisse

estabelecer um quadro diagnóstico dos conhecimentos prévios dos alunos sobre leitura e

produção de textos. Além disso, levou em conta as atividades que seriam desenvolvidas

para a Olimpíada de Língua Portuguesa de 2016 e, consequentemente, o gênero crônica

como objeto de ensino a ser explorado.

Assim, procedeu à construção de um projeto de Engenharia Didática, que

compreendesse práticas de linguagem relacionadas à leitura e à produção do gênero

textual crônica. Como o foco do projeto era a leitura, a equipe se empenhou na

construção de dispositivos didáticos que oportunizassem aos alunos a experienciação de

diferentes estratégias de leitura e, principalmente, a análise literária de diferentes

crônicas, que culminasse com a produção escrita de um texto desse gênero. Para isso,

era necessário que os alunos tivessem uma participação mais ativa nas atividades e se

envolvessem emocionalmente em sua concretização.

A análise ora apresentada fundamenta-se nas quatro etapas previstas para um projeto de

Engenharia Didática e nos sete princípios que orientam a concepção e elaboração de

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dispositivos didáticos em conformidade com os pressupostos da Engenharia Didática.

Para a construção do projeto, foram organizados dez encontros presenciais em um total

de quarenta horas trabalhadas. A implementação do projeto ocorreu a partir de cinco

oficinas, que perfizeram um total de 20 horas/aula e contaram com a participação de l28

alunos, divididos em quatro turmas. As propostas didático-pedagógicas foram divididas

entre os oito professores da área de Linguagens e Códigos, sendo que cada dupla de

professores se responsabilizou pela mediação da aprendizagem em uma turma.As

atividades foram assim desenvolvidas:

1ª Fase – análises preliminares: o objetivo geral da primeira fase do projeto foi

construir um referencial teórico-metodológico que abrangesse a organização geral da

pesquisa e os conhecimentos mais específicos da sequência didática a ser planejada e

implementada. As principais ações relativas à primeira fase podem ser assim

especificadas:

Número de

Encontros

Carga

Horária Procedimentos

5 20 horas

• Definição da proposta de trabalho, tomando-se como base os referenciais da

Olimpíada da Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro 5ª edição – 2016;

• Levantamento de material bibliográfico que suportasse a pesquisa

empreendida: a emoção como elemento constitutivo do processo educativo;

leitura e fruição literária; e o gênero textual crônica;

• Leitura e análise das informações e do material didático disponibilizados no

site da Olimpíada de Língua Portuguesa relacionado ao gênero textual crônica

e às sugestões de sequências didáticas propostas;

• Levantamento de materiais didáticos diversificados (diferentes textos

multimodais, filmes, músicas, etc.), que pudessem ser utilizados na construção

dos objetos de ensino.

Tabela 1: Análises preliminares

Essa fase consistiu de dois movimentos de pesquisa distintos, mas que se integravam

em uma única proposta: um relacionado ao levantamento dos pressupostos teóricos

subjacentes à leitura literária e ao gênero textual crônica, e outro relativo à seleção de

materiais didáticos disponibilizados na rede, que servissem como elementos norteadores

do protótipo de dispositivo didático a ser desenvolvido. Essa tarefa favoreceu o

desenvolvimento de um referencial cognitivo norteador da pesquisa em seus aspectos

tanto epistemológicos quanto metodológicos. Sua realização foi importante

principalmente porque nos possibilitou descrever o perfil dos alunos recém-ingressos,

analisar o contexto de ensino em que o projeto seria desenvolvido, traçar os objetivos de

aprendizagem e os objetos de ensino a serem explorados, definir o percurso

metodológico e ainda prever os desafios a serem enfrentados. Essa etapa foi constituída

de cinco encontros presenciais com duração de quatro horas cada.

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2ª Fase – construção de um protótipo de dispositivo didático: essa fase do projeto

consistiu da concepção das situações didáticas, que foram divididas em dois segmentos.

O primeiro consistiu da elaboração de um diagnóstico das competências linguísticas e

discursivas dos alunos, em especial no que respeita às estratégias de leitura que eles

efetivamente dominavam e ainda aos seus conhecimentos sobre o gênero textual

crônica. O segundo tratou da constituição de diferentes práticas didático-pedagógicas

que permitissem ao aluno-leitor um trabalho ativo com a leitura, por meio do qual ele

pudesse construir sentidos, explorar o seu conhecimento de mundo, desenvolver a

imaginação e o senso crítico, relacionar-se com os seus pares, professores e familiares,

bem como expressar-se por meio da linguagem artisticamente trabalhada. Nessa etapa,

foram organizadas as seguintes oficinas:

Número de

Encontros

Carga

Horária Procedimentos

5 20 horas

“Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração”:

Atividades a serem desenvolvidas na escola: exibição de um vídeo intitulado

“Campanha de incentivo às brincadeiras de rua”; leitura e análise da música

“Bola de Meia – bola de Gude”, de Fernando Brant; participação em jogos e

brincadeiras tradicionais – Queimada Real.

Atividade extraclasse: entrevista com os familiares sobre brincadeiras e jogos

de infância.

Howto play this game: jogos e brincadeiras em culturas de língua inglesa:

Atividades em classe: versão para o português e sistematização das regras de

um jogo.

Atravessando paredes e outros poderes: o gênero crônica e suas

especificidades discursivas e literárias:

Atividades em classe: leitura e análise do texto “O menino que atravessava

paredes”, de José Eduardo Agualusa.

Por que ler outras histórias? Outras experiências com a leitura de

crônicas:

Atividade extraclasse: pesquisa sobre cronistas e leituras prévias de crônicas,

a partir de indicação de leituras por parte do professor, bem como do

repertório cultural dos alunos;

Atividade em classe: relato de experiências e produção de pequenas resenhas

críticas sobre crônicas. Tais resenhas deveriam ser postadas no Facebook da

turma, como forma de incentivo à leitura das crônicas lidas.

O que conta a minha história? O que revela a minha escrita?

Oficina de escrita criativa

Atividade de escrita colaborativa: criação coletiva de cenas narrativas,

motivadas pela audição de músicas de filme.

Tabela 2: Protótipo de dispositivo didático

Os dispositivos didáticos acima foram produzidos em conformidade com a estrutura de

uma sequência didática proposta por Dolz, Noverraz, Schneuwly (2004, p. 98), a saber:

apresentação da situação, produção inicial, módulos de atividades e produção final. As

atividades foram desenvolvidas sob um viés interdisciplinar, de modo a oportunizar aos

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alunos o exercício da linguagem de forma interativa e em situação real de uso. Essa

etapa foi constituída de sete encontros presenciais com duração de quatro horas cada.

3ª Fase –experimentação: essa fase representou uma ótima oportunidade para que os

alunos, recém-chegados na instituição, pudessem se apresentar, estabelecer contatos,

encontrar e fazer novas amizades. Tal contexto favoreceu o trabalho a partir da

sequência didática, cuja realização dependeu de: explicitação dos objetivos e das

condições de realização do projeto; mediação pedagógica e observância à Zona de

Desenvolvimento Proximal dos aprendentes; apresentação de estratégias que

garantissem a eficácia e a viabilidade das atividades pedagógicas; conscientização dos

alunos quanto à necessidade de realização das atividades de leitura e produção de

textos; e atuação conjunta entre os pares, autonomia na tomada de decisões,

experimentação, reorganização das atividades e (re)adequação a um resultado

satisfatório. O projeto teve como ponto de partida o lúdico e a fantasia na infância,

temática abordada na crônica “O menino que atravessava paredes”, de José Eduardo

Agualusa. As atividades planejadas requereram dos alunos a execução das seguintes

ações:

Número de

Encontros

Carga

Horária Ações

10 20 horas

/ aula

• promover a leitura literária de crônicas com vistas à fruição e reelaboração

da realidade;

• participar do jogo “Queimada Real”, buscando compreender as regras do

mesmo e interagir com seus pares;

• entrevistar os familiares sobre brincadeiras e jogos de infância de que eles

gostavam e dos quais ainda se lembravam;

• montar jogos educativos em língua estrangeira e explicitar as estratégias

de leitura que permitiram compreender o seu funcionamento;

• ler e analisar textos que evidenciassem o funcionamento sociodiscursivo

do gênero textual crônica;

• pesquisar obras e crônicas produzidas por diferentes cronistas;

• redigir resenhas de crônicas previamente selecionadas, socializando a

produção por meio do Facebook da turma;

• participar de uma proposta de produção colaborativa de textos, que

permitisse evidenciar os conhecimentos sobre o funcionamento do gênero

crônica e explorar o potencial criativo da equipe.

Tabela 3: Experimentação da sequência didática

As oficinas foram realizadas em dez encontros presenciais, de duas horas/aula cada.

Além das atividades presenciais, foram planejadas atividades extraclasse, como leitura

de textos, entrevistas e produção textual. Como as oficinas foram planejadas em equipe

e de forma interdisciplinar, todos os professores estavam devidamente preparados para

conduzirem as atividades junto a uma classe, independentemente da sua área de

formação, o que favoreceu o registro das observações e a análise dos resultados.

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4ª Fase –análise dos resultados: essa fase apoiou-se em um conjunto de informações

coletadas na experimentação, por meio de registros orais e das produções escritas.

Optou-se por um modelo de avaliação processual, que garantisse a mediação e as

intervenções pedagógicas no transcorrer das atividades. Assim, em cada encontro,

professores e alunos realizaram uma avaliação qualitativa relacionada aos conteúdos

conceituais, procedimentais e atitudinais. Além da avaliação processual, efetuou-se uma

avaliação qualitativa relacionada ao desempenho dos alunos durante as atividades e dos

resultados alcançados, os quais constituíram insumos para o planejamento das etapas e a

participação na 5ª edição da Olimpíada da Língua Portuguesa.

4. DISCUSSÃO DOS DADOS

A discussão que ora se apresenta teve como ponto de partida a hipótese levantada nesta

pesquisa, de que o desenvolvimento de um projeto de Engenharia Didática, relativo a

práticas de leitura com foco na fruição literária e na vivência emocional dos alunos,

potencializa a vivência de experiências estéticas e humanizadoras. Os momentos iniciais

da primeira oficina “jogos e brincadeiras de rua” consistiram de um diálogo com os

alunos sobre o projeto. Na oportunidade, os professores se incumbiram de apresentar e

discutir os objetivos da proposta de leitura e motivá-los para uma participação efetiva

nas atividades propostas. Esse primeiro contato foi muito importante para que fossem

criados os primeiros vínculos afetivos com a turma, que pudessem desencadear um

ambiente assertivo e propício à atitude positiva de engajamento e busca de soluções

para os desafios propostos.

Nessa oficina foram realizadas duas atividades presenciais –a exibição do vídeo

“Brincadeira de rua” e o jogo de “Queimada Real”–euma entrevista extraclasse,

realizada pelos alunos com os seus familiares sobre as brincadeiras de infância de que

estes participaram e das quais tinham lembrança. As emoções proporcionadas pela

mensagem do vídeo puderam ser observadas a partir do momento em que os alunos

tiveram a oportunidade de conhecer e/ou resgatar as brincadeiras de rua. Isso motivou a

participação no jogo de “Queimada Real”, importante para promover a socialização com

os colegas. A vivência de brincadeiras por meio da memória e a participação em um

jogo entre os colegas recém-conhecidos foram atividades culturais lúdicas e criativas,

que oportunizaram a interação, a construção de conhecimentos, a identificação com o

espaço escolar e o resgate da própria infância, que começa a se esvair no curso natural

da vida.

Essas experiências transpuseram o espaço físico da escola e atingiram também as

famílias. Avós, pais, mães, tios e irmãos mais velhos foram convidados a reviverem, por

meio de uma entrevista, as brincadeiras de infância. Alguns depoimentos dos alunos

revelaram que a atividade extraclasse oportunizou a aproximação deles com os pais,

com quem pouco conversavam a não ser quanto às cobranças das tarefas escolares.

Outros enfatizaram a emoção dos pais ao lembrarem as brincadeiras de infância, a

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saudade dos amigos, dos irmãos, da casa onde viviam, etc. Havia, nas narrativas dos

pais apresentadas pelos alunos, as marcas da saudade, a sensação de perda, em suma, as

lembranças de um tempo que insistem em permanecer latentes em nossos espíritos.

Na segunda oficina, “Howto play this game”, os alunos foram desafiados, em grupo, a

ler e compreender textos em inglês, mesmo não possuindo fluência nesse idioma. Cada

grupo recebeu a incumbência de ler regras de jogos populares em alguns países onde se

fala inglês como primeira língua e compartilhar os resultados com a turma. Foram

sugeridas as seguintes questões para direcionamento da leitura: Como se joga? É uma

brincadeira conhecida e popular no Brasil? Há jogos equivalentes no Brasil? É uma

brincadeira interessante? Pode ser adaptada à nossa realidade? Pode nos ajudar no

aprendizado de inglês? De que forma? A atividade também exigiu que eles utilizassem e

posteriormente externalizassem as estratégias utilizadas para leitura do texto. O

resultado foi a descoberta de suas capacidades e possibilidades, bem como a interação

entre os pares e a socialização dos conhecimentos, aspectos fundamentais para o

desenvolvimento sociocognitivo e emocional dos participantes.

As atividades realizadas nessa oficina ofereceram subsídios essenciais para o

desenvolvimento da terceira oficina, “Atravessando paredes e outros poderes: o gênero

crônica e suas especificidades discursivas e literárias”. Oportunizou-se a fruição do

texto a partir da sensação de estranhamento em relação à expressão “atravessava

paredes”. Para compreendê-la, era necessário inferir qual era o dom do personagem

principal sinalizado pelo subtítulo, relacionar as sensações e as impressões despertadas

pela sua história de vida, despertar a imaginação, vivenciar metáforas, enfim,

sensibilizar-se com a narrativa lida. A mensagem dessa crônica evoca também o prazer

e o fascínio pela leitura, bem como a capacidade de transmutação que ela provoca, fato

que gerou reflexões sobre a influência da leitura em nossas vidas.

“Por que ler outras histórias? Outras experiências com a leitura de crônicas”. Com esse

título, a terceira oficina objetivou oportunizar aos alunos o contato com crônicas

produzidas por diferentes autores. Nessa viagem literária, o aluno leitor foi motivado a

pesquisar e vivenciar estimulantes narrativas, entrelaçando as suas próprias vivências

com outras evocadas pelos textos literários lidos. Tal experiência se expandiu entre os

colegas, principalmente com o compartilhamento das narrativas em sala de aula e as

resenhas produzidas no Facebook da turma. Alguns índices linguísticos destacados da

resenha a seguir sinalizam a ocorrência da fruição literária:

Prioridades

Lya Luft

Por apresentar uma personalidade forte e literatura com traços marcantes, Lya Luft mostrou mais uma vez

em sua crônica “Prioridades” o quão interessante é seu ponto de vista relacionado ao cotidiano.

O principal tema abordado na crônica, que envolve todos os assuntos do texto, é o consumismo. Pode-se

observar que ela critica tais atos e transparece sua indignação com algumas atitudes humanas, por

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exemplo, a opção de comprar bolsas e sapatos ao passar um momento com a família. Em “Prioridades”

reconhecemos que é necessário que cada um se avalie e que dê valor ao que realmente importa.

Tabela 4: Resenha de crônica

Nesse texto, os adjetivos “forte”, “marcantes” e “interessante” externalizam a

apreciação e/ou a avaliação positiva do sujeito leitor sobre o autor e a crônica

resenhada. Tais itens lexicais nos permitem verificara manifestação da subjetividade do

leitor, que exercita sua capacidade interpretativa e crítica no processo de fruição

literária. O mesmo ocorre com o emprego do verbo “reconhecer” na primeira pessoa do

plural e da expressão modalizadora com valor deôntico “é necessário”, que revelam o

processo de identificação do leitor com o autor e com a mensagem do texto e, para além

disso, o seu posicionamento em relação à mesma. A fruição literária apresenta-se, desse

modo, como uma proposta de significação do texto.

Na quinta oficina, os alunos, divididos em equipes, foram engajados em uma proposta

de escrita colaborativa. Os participantes deveriam criar cenas narrativas de uma crônica,

com temática livre, inspirados pela audição de uma música previamente escolhida pelos

professores. O texto deveria apresentar os seguintes elementos fundamentais de uma

trama: onde, quem e o que. Em momentos distintos, cada participante-autor se

incumbiria de produzir um trecho da narrativa, observando a coerência e a coesão

necessárias à manutenção da unidade do texto. A proposta resultou em cerca de cento e

vinte textos produzidos de forma colaborativa pelos alunos. Deste total, serão

considerados setenta e oito, os quais atenderam plenamente a proposta.

O resultado dessa atividade mostrou-se bastante profícuo, tanto em relação à análise dos

dados dela extraídos quanto ao planejamento das aulas de leitura e produção de textos

durante o ano letivo. Por questão de limites de espaço, apresentaremos aqui apenas parte

das análises efetuadas, que dizem respeito à fruição literária e à nossa formação leitora.

Os dados a seguir refletem as principais temáticas recorrentes nas narrativas dos alunos.

Para facilitar a visualização dos dados, foram supridas as temáticas observadas em uma

só ocorrência. Por exemplo, os temas da “solidão” e da “orfandade”, que ocorrem em

dois textos, ora como principais, ora como secundários.

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Figura 1: Temáticas frequentes

Antes de passarmos à análise, é importante considerar que, em alguns textos,

evidenciam-se diferentes temáticas, que se misturam e se integram. É o caso, por

exemplo, de uma narrativa cuja temática mescla aventura, morte e amor. Assim sendo,

escolheu-se a mais expressiva para fins de classificação.

Mas o que os dados levantados acima podem nos revelar? Primeiramente despertaram-

nos a atenção os altos índices de “morte e assassinatos” e de “aventura, suspense e

mistérios”, seguidos de “relações familiares e afetivas” e de “amor” (desagrupado em

“namoro”, mais frequente, e “romance”).Um contexto mais estrito nos permite associar

os temas presentes nos textos dos alunos com o tema do texto trabalhado em sala de

aula, “O menino que atravessava paredes”, de José Eduardo Agualusa, que mescla

aventura, fantasia e relação familiar. Um cenário mais amplo, entretanto, nos remonta

aos gêneros fábula e contos de fada, principalmente os textos difundidos na era

romântica, cuja temática recorrente evidenciava a luta do bem contra o mal (aventuras),

a punição do mal (que pode culminar com a morte) e o final feliz (o enlace amoroso e a

constituição familiar). Por outro lado, a temática da morte também se concretiza por

meio do suicídio (em seis de suas trinta e três ocorrências).

A construção do espaço da narrativa também parece dialogar com os cenários das

fábulas e dos contos. Nesse sentido, observe-se o gráfico a seguir:

13

10

6 5 5

4 4 3 3 3 3

2 2 2 2 2

mo

rte

aven

tura

mis

téri

o

nam

oro

fan

tasi

a

viag

en

s

con

tam

inaç

ão

vio

lên

cia

rom

ance

esco

lari

zaçã

o

ado

lesc

ên

cia

rela

ções

fam

iliar

es

no

stal

gia

da

infâ

nci

a

lou

cura

dro

gas

div

ersã

o

Temáticas centrais

20

9 6

4 3 3 3 3 2 2 2 2 2 2

mo

rte

rela

ções

fam

iliar

es

nam

oro

de

sigu

ald

ade

soci

al

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lesc

ên

cia

amiz

ade

mis

téri

o

trab

alh

o

arte

s

carp

e d

iem

exp

. ge

tica

s

pre

ser.

da

nat

ure

za

riq

ue

za

sob

ren

atu

ral

Temáticas secundárias

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Figura 2: Localização espacial dos cenários

O espaço físico (outros países) é representado por cidades e países como Paris e

Inglaterra (Europa) e Dubai (Ásia). Ambos os continentes contribuíram fortemente para

a divulgação de narrativas orais. Os contos de fadas são narrativas originárias da cultura

céltico-bretã, na qual a fada e outros seres fantásticos ganham expressão na luta entre o

bem e o mal. Os contos maravilhosos são de origem oriental e abordam uma temática de

cunho mais social. Um exemplar conhecido é “As mil e uma noites”, uma coletânea de

narrativas populares originárias do Oriente Médio e do sul da Ásia. O cenário brasileiro

também se destaca, seja porque é o nosso berço, seja porque a nossa literatura está

impregnada dos valores culturais sedimentados nas e pelas narrativas originárias do

ocidente e do oriente. A exemplo disso, leia-se a importante e conhecida obra de

Monteiro Lobato, cujas narrativas são escritas em linguagem simples e associam

realidade e fantasia.

Ainda aventurando pelo espaço físico, observa-se a formação de um esquema conceitual

do espaço da narrativa marcadamente europeu, que evoca um clima de suspense,

mistério, curiosidade e surpresa. Esse esquema conceitual se concretiza a partir de

grupos nominais tais como “cabana”, “casa de madeira” e “chalé”, “bosque”, “floresta”,

“vila” e “vilarejo”. Tais nomes são frequentemente qualificados por adjetivos como

“frio”, “sombrio”, “escuro”, “silencioso”, “distante”, “chuvoso”. Daí se originam

sintagmas nominais tais como: “casa de madeira, grande, antiga, no meio de uma

floresta escura, cheia de neve, com árvores altas de troncos grossos”, “cabana de

caçador no meio de uma floresta escura, fria e de árvores altas” e “Uma fina e gelada

garoa caía, deixando as ruas de pedras escorregadias e perigosas”. Entre espaços

urbanos e rurais, 44% dos cenários podem ser listados neste grupo.

Sentidos opostos ocorrem em 51% dos cenários que explicitamente se valem do Brasil

ou outras regiões tropicais. Nestes textos, os vocábulos mais proeminentes passam a

“sítio”, “chácara”, “fazenda”, “praça”, “casa”, “apartamento”, “praia”, “ilha”. Uma vez

configurados estes cenários, os temas presentes nas narrativas também se alteram em

torno de “diversão”, “nostalgia da infância”, “namoro”, “drogas”, “violência urbana”

entre outros. Os 5% restantes dos cenários referem-se a espaços desérticos. Em sua

37%

29%

27%

7%

Cenários

outros países

representativos do Brasil

não específicos

fantásticos

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maioria, tais cenários são habitados por homens jovens, conforme se vê nos gráficos

abaixo:

Figura 3: Personagens humanas – faixa etária, gênero e papel nas narrativas

No conjunto de textos, foram mobilizadas 216 personagens, das quais 192 são humanas,

cuja distribuição etária se encontra representada nos gráficos acima. Além do gênero, o

traço distintivo idade parece ser relevante na constituição das personagens, tanto é que

foi atribuído à totalidade das personagens humanas. O mesmo não se verifica quanto a

personagens fantásticas (fantasmas, ETs, criaturas mitológicas) ou a animais. Se a idade

não se manifesta explicitamente por um número, ela pode ser determinada com por

vocábulos tais como “jovem”, “adolescente”, “moço”, mais frequentes nos textos.

É fato que as narrativas não existiriam sem a presença de heróis, arquétipos do bom

moço, de bom caráter, corajosos, fortes e destemidos e que, por isso, servem de guia

para nossas condutas. O perfil do herói pode ser evocado por meio de dois adjetivos que

se sobressaem: “jovem” e “bonito” – nos textos, não constam homens feios. Outros

vocábulos como “aventureiro”, “alto” e “inteligente” somam-se à constituição desse

arquétipo, como forma de destacar os atributos físicos (a força, a virilidade do homem,

que parece estar associada a “cabelos escuros”) e morais (sua inteligência). Ilustre

personalidade será ainda mais admirável se contar com um grupo de fiéis escudeiros –

“adolescentes” e “amigos” – na luta em prol do bem. Todas essas virtudes do herói

estão cristalizadas em nosso imaginário – afinal quem nunca se emocionou com as

aventuras do Rei Arthur e os cavaleiros da távola redonda? – e nos fazem conceber a

figura do herói como um semideus.

Quanto ao perfil feminino, o exame dos traços físicos das 48 personagens adolescentes

ou jovens adultas mostra preocupação com os cabelos. A partir de um conjunto de 60

traços físicos, a construção de uma bela jovem recorre a 40% de referências aos cabelos,

15% para os olhos; 10%, respectivamente, para estatura, juventude e compleição física,

8% para a clareza da pele e apenas 7% de referências explícitas à beleza. A esses traços

físicos, juntam-se outros itens lexicais proeminentes: “inteligente”, “calma”, “meiga”,

7%

58%

18%

15% 2%

Personagens por faixa etária

crianças

adolescentes

jovens adultos

adultos

idosos

38%

22%

26%

14%

Personagens por gênero e relevância

masc./principal

masc./secundário

fem./principal

fem./secundário

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“amiga” deixam entrever a idealização da mocinha, figura associada à imagem das

princesas dos contos de fada. Nesse gênero, a beleza é uma característica muito

valorizada e diz respeito não somente aos atributos físicos como também à índole das

princesas, manifestada por sua bondade e generosidade. Dócil e amável, ingênua e

desprotegida, a princesa sonha com o dia em que o seu príncipe a salvará dos perigos a

que está exposta e os dois viverão felizes para sempre unidos pelo amor. O contraponto

manifesta-se em traços psicológicos tais como: “extrovertida”, “aventureira”,

“corajosa”, “decidida”, entre outros.

A análise ora apresentada projeta luz sobre o grau de letramento literário dos alunos

concluintes do ensino fundamental e recém-ingressos no ensino médio. A exposição a

diferentes dispositivos didáticos construídos a partir de diferentes crônicas ao longo da

sequência didática foi importante para sua vivência emocional e para a fruição literária,

contudo representou apenas um primeiro passo para que eles obtivessem uma visão

global das características literárias e do funcionamento sociodiscursivo desse gênero,

bem como percebessem a diferença entre este e outros gêneros fortemente marcados por

sequências narrativas, como os contos de fadas. Assim sendo, os dados consolidados

evidenciam uma sólida experiência literária, fundamental para que os professores

orientem sua prática, de modo que os alunos sejam expostos a outros gêneros literários e

possam ampliar o seu repertório de leituras, que lhes permitirão novas fruições e outras

vivências estéticas.

O projeto de Engenharia Didática desenvolvido e implementado permitiu relacionar

metodologia de ensino e atividades de pesquisa, contribuindo significativamente para a

construção de conhecimentos em sala de aula. As ações planejadas e executadas

favorecer a uma integração das dimensões epistemológicas, cognitivas e sociais no

contexto da aprendizagem, já que se constituíram de atividades por meio das quais os

alunos puderam experienciar, individual ou colaborativamente, a leitura das crônicas

por meio da fruição literária, bem como refletir sobre a importância de uma formação

estética para a formação de um leitor crítico e mais humanizado.

Os professores compreenderam a importância de trabalhar com sequências didáticas e

com o desenvolvimento de materiais didáticos, planejados de modo a garantir a

organização, o controle e a avaliação dos processos adotados e dos resultados atingidos.

O confronto entre os objetivos de aprendizagem inicialmente previstos com os

resultados efetivamente alcançados permitiu mapear as experimentações e sensações

vivenciadas, os conceitos apreendidos e as interações estabelecidas. Ressaltamos, desse

modo, a importância de o professor trabalhar com projetos de Engenharia Didática

voltados para a mediação de situações de aprendizagem que envolvam a participação

ativa e reflexiva dos alunos e que favoreçam o desenvolvimento de suas competências

cognitivas, interacionais e emocionais. Reafirmamos também a importância de se

investir em uma proposta que integra conhecimentos científicos e didáticos, já que a

realização didática está intrinsecamente associada a uma prática de investigação.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta deste artigo foi refletir sobre a construção de um projeto de Engenharia

Didática como um meio de organizar os procedimentos metodológicos de pesquisas

realizadas no ambiente escolar. Buscamos observar como as sequências didáticas

podem ser planejadas e implementadas a fim de favorecer práticas de leitura com foco

na fruição literária e na vivência emocional dos alunos.

Os pressupostos teóricos primeiramente versaram sobre o caráter dialógico da literatura

e sobre a leitura literária como uma experiência estética. Tratou também sobre a

importância das reações emocionais no desenvolvimento do processo educativo e sobre

a necessidade de se promoverem, no contexto escolar, atividades de leitura com foco na

fruição literária e na exploração da vivência emocional dos alunos. Em seguida,

discorreu-se sobre a Engenharia Didática, metodologia que visa a investigar as relações

entre pesquisa e ação, bem como o lugar reservado para as realizações didáticas entre as

metodologias de pesquisa.

A abordagem prática consistiu da apresentação e análise de um projeto de Engenharia

Didática desenvolvido e implementado em quatro turmas de alunos do ensino médio,

por uma equipe de professores da área de Linguagens e Códigos, atuantes em uma

escola da rede federal de ensino. Nas oficinas realizadas, os alunos procederam à leitura

de crônicas de diferentes autores e realizaram atividades de leitura com foco na fruição

literária e na sua vivência emocional.

A execução do projeto de Engenharia Didática possibilitou confirmar a hipótese

levantada, de que o desenvolvimento de um projeto de Engenharia Didática, relativo a

práticas de leitura com foco na fruição literária e na vivência emocional dos alunos,

potencializa a vivência de experiências estéticas e humanizadoras. Também foi possível

verificar como e se o desenvolvimento de um projeto de Engenharia Didática na área de

leitura literária com base na experienciação e na exploração do potencial emocional dos

alunos interfere na sua formação leitora. As práticas pedagógicas e as investigações

feitas contribuíram para reafirmar a importância da Engenharia Didática como forma de

desenvolver e implementar artefatos de ensino a partir de pesquisas realizadas, bem

como por apresentar uma metodologia de pesquisa a partir de experiências realizadas

em sala de aula.

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* Professor de Língua Portuguesa e Literatura do Centro Federal de Educação Tecnológica de

Minas Gerais - CEFET-MG. Doutor em Linguística pela PUC Minas.

* Professor de Língua Portuguesa e Literatura do Centro Federal de Educação Tecnológica de

Minas Gerais - CEFET-MG. Mestre em Estudos Linguísticos pela UFMG