Ensaios Mínimos 22 09 2015

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ENSAIOS MÍNIMOS A grana e a culpa Silvio Demétrio Nunca foi fácil e não seria diferente agora. Nietzsche foi quem melhor definiu o problema em seu “Além do Bem e do Mal”. A ideia de bem comum traz em si uma contradição. A ideia de bem está atrelada à de valor. Um bem é aquilo que tem valor, o que o torna desejável. E só é bem porque não é dado, porque não é fácil, porque é raro. Incomum, portanto. Então não é demasiado cuidado lembrar sempre o fato de que Nietzsche era filólogo. A linguagem se torna a graça sedutora que encobre a insuficiência de nossas fraquezas de espírito. Todos nós sabemos que a grana é o fio do arame farpado que nos separa. Ela nos torna desiguais. Ela é o produto da ideia de bem que impossibilita o comum. A sentença que condena todo avaro à solidão. E consentimos em acatar essa solidão toda vez que pensamos antes em nós mesmos. Aliás, essa é uma maneira melhor talvez de se definir hoje o que é “esquerda” e “direita” em política. Gilles Deleuze falava disso em seu “abecedário”. Um modo de pensar canhoto é aquele que é endereçado ao coletivo, ao todo (e o todo é sempre aberto) – e um pensamento assim sempre é construído, um artifício, porque ele não é dado. É um devir humano ativo. A direita vai no sentido oposto. Ela se vale dos impulsos e forças naturais como a matriz de sua maneira de pensar. O organismo e suas demandas de autopreservação. O que é dado é a competição de todos contra todos. A vida como uma luta individual. Não há como não pensar em grana e na imensa culpa que ela encobre em suas cifras e névoas abstratas de puro enxofre. Max Weber já fazia essa observação a respeito do lucro na sociedade capitalista – os países do norte protestante prosperaram

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ENSAIOS MÍNIMOS

A grana e a culpaSilvio Demétrio

Nunca foi fácil e não seria diferente agora. Nietzsche foi quem melhor definiu o problema em seu “Além do Bem e do Mal”. A ideia de bem comum traz em si uma contradição. A ideia de bem está atrelada à de valor. Um bem é aquilo que tem valor, o que o torna desejável. E só é bem porque não é dado, porque não é fácil, porque é raro. Incomum, portanto. Então não é demasiado cuidado lembrar sempre o fato de que Nietzsche era filólogo. A linguagem se torna a graça sedutora que encobre a insuficiência de nossas fraquezas de espírito. Todos nós sabemos que a grana é o fio do arame farpado que nos separa. Ela nos torna desiguais. Ela é o produto da ideia de bem que impossibilita o comum. A sentença que condena todo avaro à solidão. E consentimos em acatar essa solidão toda vez que pensamos antes em nós mesmos. Aliás, essa é uma maneira melhor talvez de se definir hoje o que é “esquerda” e “direita” em política. Gilles Deleuze falava disso em seu “abecedário”. Um modo de pensar canhoto é aquele que é endereçado ao coletivo, ao todo (e o todo é sempre aberto) – e um pensamento assim sempre é construído, um artifício, porque ele não é dado. É um devir humano ativo. A direita vai no sentido oposto. Ela se vale dos impulsos e forças naturais como a matriz de sua maneira de pensar. O organismo e suas demandas de autopreservação. O que é dado é a competição de todos contra todos. A vida como uma luta individual. Não há como não pensar em grana e na imensa culpa que ela encobre em suas cifras e névoas abstratas de puro enxofre. Max Weber já fazia essa observação a respeito do lucro na sociedade capitalista – os países do norte protestante prosperaram por sublimar a culpa do lucro através de uma concepção da grana como graça alcançada como recompensa por uma vida virtuosa. O “espírito do capitalismo”.

A grana e também o ressentimento. Aquilo que rebaixa a vida em seu aqui e agora para dar crédito a um alhures. Toda a ideologia da noção de poupança, de mercado futuro, de investimento. Entre a cigarra e a formiga eu fico é com o passarinho que janta as duas e sai por aí voando sem culpa. Coloco Abbie Hoffmann nas alturas de um panteão estritamente pessoal. Hoffmann foi uma das figuras mais carismáticas da contracultura. Organizava atos coletivos de protesto nos quais se queimavam, entre outras coisas, certificados de alistamento militar e, por que não, cédulas de dinheiro. Ao sacrificar o dinheiro, Hoffmann expiou todas as nossas culpas.

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E para você que já está se sentindo meio que culpado com toda essa minha catilena, não vá pirar com essas idéias. Os verdes anos da contracultura já se foram há muito e a caretice é a marca das novas gerações. Das velhas também. A caretice é uma desgraça. E para isso felizmente existe uma nova forma de conjuração: o “crowdfunding”, financiamento coletivo. Uma série de projetos independentes que se bancam assim trazem ar fresco em meio a essa atmosfera carregada desse pragmatismo castrador de nossos tempos de sucesso. Alguém tem uma boa ideia e a coloca na internet em busca de quem queira ajudar com alguma grana. E funciona. Quem recorreu a esse tipo de financiamento foi o filme Tropicalia Banana Fuzz do cineasta paranaense Artur Ratton Kummer – um documentário sobre a psicodelia brasileira (https://vimeo.com/28912549) . Ideias tão boas quanto essa ainda podem ser ajudadas por quem se interessar. É o caso do livro Maria Café, projeto de publicação de um livro infantil escrito por Izzy Gomes e Lorenzo, seu filho. Izzy é professora do curso de Comunicação da Federal do Paraná e está desde 2014 em Maputo, Moçambique. Quem está divulgando o projeto é o pai, também professor da Federal, Toni André Charlau Vieira: “já conseguimos chegar na metade de nossa meta”. Para quem quiser colaborar com o livro de Lorenzo o endereço é http://www.kickante.com.br/campanhas/ajude-izzy-e-o-lorenzo-publicarem-um-livro .

Outro projeto que merece apoio é o LP “Garganta”, um projeto que busca reunir um grande time de poetas da nova geração como Gregório Duvivier, Omar Salomão e Sérgio Cohn. O endereço para quem quiser contribuir é http://www.embolacha.com.br/projeto/434-garganta-o-lp-de-poesia-falada . Vamos lá, nem só de pão vive o homem. Deixe a culpa para quem ainda acredita em políticos.