Entre a Academia e a Receita de Bolo

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Entre a academia e a receita de bolo Unir o fundamental, como a liberdade e a ética, ao que se considera banal, como o uso do controle remoto, é o caminho para a filosofia pop Charles Feitosa 30/11/2011 Dois momentos que aparentemente nada têm a ver um com o outro.Aparentemente.No primeiro,Rio de Janeiro, março de 2006, Auditório da Caixa Econômica Federal. Lou Marinoff, autor dos livros Menos Prozac e mais Platão e Pergunte a Platão, fala para minguada plateia sobre seu projeto de tornar popular a filosofia, conjugando pensamento e terapia. Apesar da simpatia pela nobre intenção de Marinoff, há um grave problema tanto na palestra como nos livros: o autor confere à filosofia papel aconselhador. Por meio de breves descrições de casos clínicos são apresentadas respostas prontas e simplificadas. Ao fazer da filosofia uma espécie de terapia rápida e indolor, ele inscreve mais um produto na galeria dos itens de autoajuda. É questionado se não seria um tanto inapropriado citar Platão nos títulos de seus livros, mas não responde. Limitase a repetir: “boaobservação!” É que nos diálogos do antigo pensador, as pessoas entravam em cena cheias de certezas e saíam do encontro repletas de dúvidas e questionamentos. No consultório de Marinoff parecia acontecer o contrário: as pessoas chegavam em crise e saíam felizes, satisfeitas, com soluções práticas para seus problemas. No segundo momento, Berlim, junho de 2006, auditório universitário. Renomados especialistas na obra do filósofo alemão George Wilhelm Friedrich Hegel (17701831) se encontram num sábado ensolarado para discutir a relação entre ação e intenção na ética e na política contemporâneas. Em tempos de guerra contra o terrorismo e de terrorismo de Estado, a questão é importantíssima. Afinal, como julgar uma ação má se a intenção era boa? É possível condenar alguém porque tinha má intenção, mesmo que não tenha passado à ação? Infelizmente, os participantes do evento passam o dia inteiro, das 10 da manhã às seis da tarde, discutindo firulas da dialética hegeliana. A questão mesmo ficou ofuscada por um preciosismo técnico. O risco de pensar criativa e experimentalmente acabou substituído pela segurança de simplesmente tentar compreender corretamente o que os grandes filósofos escreveram. Dois momentos, duas situações extremas. Dois riscos possíveis para a filosofia na atualidade. De um lado, a filosofia acadêmica, altamente codificada, perdendo cada vez mais a conexão com seu lugar e seu momento. De outro, projetos que fazem da filosofia apenas mais uma receita de bolo, uma forma de explorar comercialmente a inquietação das pessoas diante de um mundo em que não se sentem em casa. Numa entrevista antiga do artista plástico norteamericano Keith Haring (19581990), famoso pelos desenhos e grafites, ele conta que em toda a sua obra há uma preocupação em mostrar para as novas gerações que a arte não é atividade restrita às elites. Qualquer um, com um pouco de imaginação e coragem, pode reorganizar seu mundo, criar novas formas, belas e instigantes. A filosofia no Brasil também deveria ser assim. Sem descuidar do conteúdo, mas também sem transformála numa espécie de código Da Vinci, acessível a poucos iniciados.

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Filosofia Pop, artigo na revista de história

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Entre a academia e a receita de bolo

Unir o fundamental, como a liberdade e a ética, ao que se considera banal, como o uso do controle remoto, é o caminho para a filosofia pop

Charles Feitosa 30/11/2011

Dois momentos que aparentemente nada têm a ver um com o outro.Aparentemente.No primeiro,Rio de Janeiro, março de 2006, Auditório da Caixa Econômica Federal. Lou Marinoff, autor dos livros Menos Prozac e mais Platão e Pergunte a Platão, fala para minguada plateia sobre seu projeto de tornar popular a filosofia, conjugando pensamento e terapia. Apesar da simpatia pela nobre intenção de Marinoff, há um grave problema tanto na palestra como nos livros: o autor confere à filosofia papel aconselhador. Por meio de breves descrições de casos clínicos são apresentadas respostas prontas e simplificadas. Ao fazer da filosofia uma espécie de terapia rápida e indolor, ele inscreve mais um produto na galeria dos itens de autoajuda. É questionado se não seria um tanto inapropriado citar Platão nos títulos de seus livros, mas não responde. Limita­se a repetir: “boaobservação!” É que nos diálogos do antigo pensador, as pessoas entravam em cena cheias de certezas e saíam do encontro repletas de dúvidas e questionamentos. No consultório de Marinoff parecia acontecer o contrário: as pessoas chegavam em crise e saíam felizes, satisfeitas, com soluções práticas para seus problemas.

No segundo momento, Berlim, junho de 2006, auditório universitário. Renomados especialistas na obra do filósofo alemão George Wilhelm Friedrich Hegel (1770­1831) se encontram num sábado ensolarado para discutir a relação entre ação e intenção na ética e na política contemporâneas. Em tempos de guerra contra o terrorismo e de terrorismo de Estado, a questão é importantíssima. Afinal, como julgar uma ação má se a intenção era boa? É possível condenar alguém porque tinha má intenção, mesmo que não tenha passado à ação? Infelizmente, os participantes do evento passam o dia inteiro, das 10 da manhã às seis da tarde, discutindo firulas da dialética hegeliana. A questão mesmo ficou ofuscada por um preciosismo técnico. O risco de pensar criativa e experimentalmente acabou substituído pela segurança de simplesmente tentar compreender corretamente o que os grandes filósofos escreveram.

Dois momentos, duas situações extremas. Dois riscos possíveis para a filosofia na atualidade. De um lado, a filosofia acadêmica, altamente codificada, perdendo cada vez mais a conexão com seu lugar e seu momento. De outro, projetos que fazem da filosofia apenas mais uma receita de bolo, uma forma de explorar comercialmente a inquietação das pessoas diante de um mundo em que não se sentem em casa.

Numa entrevista antiga do artista plástico norte­americano Keith Haring (1958­1990), famoso pelos desenhos e grafites, ele conta que em toda a sua obra há uma preocupação em mostrar para as novas gerações que a arte não é atividade restrita às elites. Qualquer um, com um pouco de imaginação e coragem, pode reorganizar seu mundo, criar novas formas, belas e instigantes. A filosofia no Brasil também deveria ser assim. Sem descuidar do conteúdo, mas também sem transformá­la numa espécie de código Da Vinci, acessível a poucos iniciados.

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Filosofia pop é um termo que o filósofo francês Gilles Deleuze (1925­1995) mencionou muito rapidamente, sem maiores aprofundamentos, ante a necessidade de novas formas de ler e escrever na filosofia. O termo “pop” nada tem a ver com a acepção corrente, presente em títulos de programas televisivos do tipo “Superpop” e que se aplica ao entretenimento de caráter raso, fácil e meramente comercial. A ideia, ao contrário, é resgatar o projeto presente no movimento da pop art dos anos 1950, quando o conceito era visto como algo imaginativo, crítico e alegre. O movimento visual da pop art começou como reação contra o estilo do expressionismo abstrato dos anos 1940 e 50, representado por artistas como Adolph Gottlieb, Mark Rothko e Barnett Newman, entre outros. A pintura abstrata se caracterizava por excessiva preocupação com elementos formais da linguagem visual, que exigiam do observador certo conhecimento teórico dos princípios estéticos vigentes desde a Primeira Guerra Mundial (1914­1918).

Para os artistas pop, o expressionismo abstrato era tido como exageradamente intelectual, subjetivo e alienado da realidade. Mesmo sem nunca ter lançado um manifesto em conjunto, artistas como Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Claes Oldenburg, James Rosenquist e Tom Wesselman começaram a desenvolver, cada um à sua maneira, uma nova sensibilidade, promovendo um retorno ao figurativo sem recair num realismo mimético, quer dizer, sem ficar preso a qualquer obrigação de meramente reproduzir o mundo tal como se apresenta à primeira vista. Inspirados pelas experimentações do Dadaísmo e do Surrealismo, tinham como meta principal reaproximar a arte da vida cotidiana. Para que isso se tornasse possível, começaram a trabalhar contra a distinção e a hierarquia entre o “inferior” e o “superior” na cultura. Suas obras se caracterizavam por embaralhar o que pertence ao erudito e o que pertence ao popular, construindo assim uma sátira sutil ao materialismo da cultura moderna de massa. Por meio de técnicas de duplicação, reprodução, incorporação, reciclagem, superposição e colagem de elementos díspares nas telas, integrantes do movimento ajudaram a consolidar o conceito “pop” como algo rebelde, original e irreverente. Era uma nova estética, uma nova sensibilidade, enfim, uma linha de fuga de dentro do sistema.

Daí, o principal aspecto da “filosofia pop” é a atitude consciente de descompromisso com a distinção entre “alto” e “baixo” em termos de cultura. Assim como nas telas de Andy Warhol compareciam simultaneamente referências tanto do mundo erudito como da cultura de massa, a filosofia pop também defende a interseção constante dos conceitos fundamentais da filosofia com os aspectos normalmente considerados os mais banais da existência. Uma das consequências desse descompromisso com a dicotomia “alta” versus “baixa cultura” é a recusa do supostamente clássico e incontornável. A ideia é que a filosofia não precisa se restringir a pensar apenas a questão da liberdade ou da verdade em Descartes ou Kant, mas pode e deve também se debruçar, por exemplo, sobre as questões de poder no uso do controle remoto nas diferentes constelações familiares ou, ainda, sobre os desdobramentos ético­políticos das ideias presentes em uma história em quadrinhos, num videogame ou numa letra de funk. A filosofia pop busca conjugar o universal e o singular, no nosso caso, na tarefa de abordar filosoficamente as ambiguidades e os paradoxos da nossa própria cultura.

Para a realização dessa tarefa, a filosofia pop propõe uma outra relação entre conceitos e imagens, ou, de forma mais abrangente, entre filosofia e arte. Tradicionalmente, a filosofia tem duas atitudes em relação à arte: ou levanta suspeitas sobre sua capacidade de contribuir para a compreensão do mundo ou instrumentaliza as imagens e as obras de

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arte como se fossem meras ilustrações. A filosofia pop entende que as imagens não são inferiores aos conceitos quando a tarefa é pensar o mundo. Ao contrário, as imagens exigem outros tipos de pensamento e abrem perspectivas inacessíveis ao raciocínio lógico convencional. A filosofia pop faz parcerias com as artes, deixando­se levar por elas, permitindo­se processos de hibridização, mesmo correndo o risco de se tornar outra coisa, uma mutação, quase um monstro. Vale ressaltar que uma das funções dos monstros sempre foi a de relativizar nossos conceitos sobre limites e fronteiras. Na Biologia, os híbridos são considerados inférteis. Os híbridos culturais, ao contrário, enriquecem nossas perspectivas sobre a realidade.

Ao contrário da tradicional, a filosofia pop acredita que a ocupação das mídias é fundamental para um projeto de divulgação do pensamento. Não se trata de tarefa fácil. O tempo da televisão é completamente diferente do tempo da reflexão e do pensamento. A televisão exige uma aceleração do discurso; a filosofia acontece, segundo a formulação do filósofo alemão Theodor Adorno (1903­1969), enquanto um “longo e não violento olhar sobre as coisas em nossa volta”. As generalizações apressadas, tão comuns em entrevistas e depoimentos ao microfone, são um indício de descuido para o expert. A hesitação e a cautela, consideradas como virtudes para os pensadores, são vistas, ao contrário, como sinal de incompetência ou de ignorância na televisão. Nesse contexto, precisamos comemorar e incentivar as participações de filósofos na TV.

Divulgar ideias e conceitos é sempre um caminho de mão dupla. As universidades no Brasil trabalham ainda com uma distinção muito rígida e hierárquica entres suas três áreas de atuação mais fundamentais: pesquisa, ensino e extensão. Somente quando houver um entendimento de que essas três dimensões têm força e importância equivalentes, a questão da “divulgação” deixará de ser “menor” para a ciência. Faz parte do processo de pensar, de modo estrutural e não acidental, o compartilhamento dos saberes em busca de novas e melhores partilhas dos poderes.

CHARLES FEITOSA é professor do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais

da UniRio e autor de Explicando a Filosofia com Arte (Ediouro, 2004). Saiba Mais ­ Bibliografia DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. Oque é a filosofia?Rio de Janeiro: Editora 34,

2000. GOMES, Roberto. Crítica da razão tupiniquim. Curitiba: Criar Edições, 2001. SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte – O Pensamento pragmatista e a estética

popular. São Paulo: Editora 34, 1998. TIBURI, Marcia. Olho de Vidro. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011.