ENTRE A HISTÓRIA E A MEMÓRIA: O FOLIÃO, A REZADEIRA E … (249).pdf · nos séculos anteriores...
Transcript of ENTRE A HISTÓRIA E A MEMÓRIA: O FOLIÃO, A REZADEIRA E … (249).pdf · nos séculos anteriores...
ENTRE A HISTÓRIA E A MEMÓRIA: O FOLIÃO, A REZADEIRA E A BANDEIRA,
RELIGIOSIDADE E CULTURA POPULAR NA FESTA DE SANTOS REIS NA
COMUNIDADE NEGRA DE ÁGUA LIMPA.
Rosinalda C. Da Silva Simoni1
Deusilene da Silva Leão2
RESUMO
As transformações sociais e econômicas do século XX alteraram profundamente a
sociedade brasileira. O perfil predominantemente rural foi ultrapassado. A urbanização
solidificou novas práticas sociais e culturais. Contudo, a maioria dos valores, crenças e
manifestações culturais, que são características da cultura popular brasileira, foi constituída
nos séculos anteriores à urbanização e à industrialização. Sua sobrevivência revela a
disposição da população vinculada a essas práticas em conservar elementos de sua identidade
cultural, através de suas tradições familiares e regionais. Um bom exemplo é o caso das folias,
em especial a em homenagem aos Reis Magos, também chamados de Santos Reis
(CHARTIE, 1990). A Folia de Reis, segundo Brandão (1981), é um espaço camponês
simbolicamente estabelecido durante um período de tempo igualmente ritualizado, para
efeitos de circulação de dádivas - bens e serviços - entre os moradores do território por onde
ele circula. Ao constituir o espaço simbólico da jornada dos Reis, a Folia transporta seus
foliões e seguidores para dentro dele, com nomes e proclamações de bênçãos. Assim, os
mesmos homens do trabalho agrário cotidiano aparecem por sete dias revestidos de
cumplicidade com os mitos populares de uma história sagrada que todos conhecem por ali.
Transformando a paisagem a sua volta e buscando recontar, nos versos e no que eles
comandam, a jornada da busca, por três Reis Magos, de um Deus nascido pobre. Nesta
comunicação abordaremos alguns aspectos da ritualidade e os instrumentos que compõem a
Folia de Reis da Comunidade Negra de Água Limpa, folia que agrega, em sua história e
memória, a trajetória de um grupo que supomos tenha nesta manifestação a maior expressão
identitária de suas raízes afrodescendentes.
PALAVRAS-CHAVE História. Memória. Folia de Reis. Comunidade Negra. Identidade.
Introdução
O Brasil, até a década de 1970, era essencialmente rural. O modo de vida e a percepção
de mundo eram, portanto, diferentes do que observamos hoje, principalmente nas áreas mais
urbanizadas. Hoje, a maioria da população brasileira vive em cidades, boa parte delas
conectadas a áreas metropolitanas, as quais não possuem infraestrutura para acolher o inchaço
urbano decorrente do êxodo rural. Este cenário, a metropolização (SANTOS, 2008) não
significou necessariamente bem-estar. E o campo continuou sendo um problema. Nele, a
concentração fundiária exclui a possibilidade da família de fixação na terra e acesso a
qualidade de vida. O tema da terra – e o processo acima comentado - é diretamente
1 Doutoranda em Ciências da Religião pela PUC-Goiás, Bolsista CAPES [email protected] 2 Doutoranda em Ciências da Religião pela PUC-Goiás, Bolsista CAPES [email protected]
2
relacionado à questão quilombola no Brasil. Esta, segundo Leite (2006), constitui-se como
tema relevante para a formação e entendimento da nação. Isto desde os primeiros focos de
resistência dos africanos, no período do escravismo colonial, passando pelo Brasil/República
com alguns episódios, como por exemplo, a frente negra brasileira (1930/40) e a cena política
no final dos anos 70, durante a redemocratização do país, até os dias de hoje, quando se
refere, sobretudo ao acesso à terra e à garantia de qualidade de vida, a certas parcelas da
população brasileira. Trata-se, portanto, de uma questão persistente tendo na atualidade uma
importante dimensão na luta por reconhecimento dos afrodescendentes, que são,
consequentemente e legalmente, reclassificados como remanescentes, termo que, segundo o
dicionário Michaelis, aponta para o sentido daqueles que sobraram ou para o resto. Ambos os
sentidos indicando algo pejorativo e tendo como base o processo de exploração e
expropriação a que tais populações foram submetidas.
Hoje, há registros de quilombos3 na Amazônia, no Mato Grosso, Sergipe, Bahia, Minas
Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Goiás. Segundo Lopes
(2004) estes afrodescendentes são os descendentes dos africanos trazidos ao Brasil durante o
período colonial para trabalho forçado, especialmente para a produção de riqueza com base no
modelo plantation, ou seja, através da associação de alguns elementos, como a grande
propriedade, a monocultura e a produção de gêneros tropicais destinados ao mercado externo.
Neste período, a apropriação por parte dos europeus da lógica “da escravidão por
linhagem ou parentesco”, que era resumidamente o processo de escravização entre etnias
africanas quando, da guerra por território, gerou-se um enorme contingente populacional,
entendido e vendido como categoria comercial. Note-se que até a chegada dos primeiros
europeus essa prática não tinha valor comercial e que, posteriormente, gerou grande
quantidade de riqueza 4 . Ressalte-se ainda que a quebra dos padrões tradicionais da
“escravidão” africana gerou resistência. As mais conhecidas formas de resistir eram as lutas
na hora do embarque. O desejo e a esperança de voltar para casa fez com que muitos escravos
se adaptassem a nova condição de sobrevida, gerando uma falsa impressão de passividade.
Outra possibilidade de resistência à nova situação era a fuga. Os maus tratos que sofriam e o
3 A palavra quilombo, segundo Lopes (2005), é de origem Umbundu e se refere a uma espécie de instituição
sócio-político-militar, um arraial ou associação de homens, aberto a todos, e, por isso, ligada ao sentido de
liberdade. Ainda, de acordo com Lopes, a existências desses núcleos também conhecidos como refugio de
fugitivos comprova-se por todas as regiões do Brasil. 4 Isto porque durante quatro séculos multidões foram trazidas acorrentadas do interior do continente africano,
para serem transportadas nos navios com destino ao novo continente. Sendo assim, entre os séculos XV e XIX
milhões de africanos de diversas etnias desembarcaram nas Américas, transportados em porões e sem
condições mínimas de sobrevivência.
3
desejo de liberdade faziam com que muitos escravos fugissem de seus donos e se refugiassem
em lugares longínquos e de difícil acesso, fazendo nascer nesses lugares, os chamados
quilombos. Segundo Munanga (2004), “durante muitos anos, no Brasil, acreditou-se que o
africano escravizado sofreu de maneira passiva todos os maus-tratos praticados pelos
senhores. Essa crença interfere, ainda hoje, no imaginário construído em nossa sociedade a
respeito dos africanos escravizados”.
Com a instituição da lei de terras de 1850, os conflitos e a situação de exclusão no que
se refere à posse da terra das comunidades de afrodescendentes fez-se mais presente. Isto
porque tal lei proibia a aquisição de terras a não ser pela via de compras, como expressa seu
artigo 1˚, quando menciona que “ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por título
que não seja o de compra”, beneficiando àqueles que podiam pagar. Essa lei, ainda, invalidou
os títulos das comunidades quilombolas que vinham de várias origens como: a doação ou
herança familiar; as terras desagregadas da lavoura de monoculturas, como a cana-de-açúcar e
o algodão; a compra de terreno pelo próprio sujeito ou as terras que foram conquistadas pelos
negros por prestação de serviços de guerra. Nesse contexto, foram invalidadas, da mesma
forma, as terras de preto, terras de santo ou terras santíssimas, que segundo o “Programa
Brasil Quilombola” indicavam uma territorialidade originada na propriedade das ordens
religiosas, na doação de terras para santos e no recebimento de terras em troca de serviços
religiosos prestados por negros a senhores de escravos5.
Assim, se antes de 1850 ainda havia a possibilidade da posse como modo de
territorialização, a “Lei de Terras” ressignificou a relação entre a terra e o sujeito. A categoria
terra-mercadoria passou a operacionalizar preponderantemente o acesso à terra, que não
servia mais tanto para a segurança da família e a perpetuação de uma comunidade, mas para a
produção de riqueza. Estabelece-se, assim, um novo processo de desterritorialização. Neste
novo cenário, alguns poucos e poderosos senhores, dominando o instrumental da lei,
aprenderam a produzir muita riqueza com a especulação e a grilagem do território. Em Goiás,
inclusive, o estatuto de 1893, baseado na Lei de Terras, favoreceu a desterritorialização
determinando que as terras devolutas, pertencentes à Capitania, fossem vendidas em hasta
pública ou fora dela. Esses fatores refletiram, sobremaneira, na estrutura social estabelecida
na Capitania (ALENCAR, 1993).
A lógica da desterritorialização continuou mesmo com o processo de fim da escravidão,
já que os distúrbios sociais resultantes da abolição da escravatura foram profundos
5 Esses escravos eram sacerdotes de cultos religiosos afro-brasileiros.
4
(NASCIMENTO, 1978). Não havia trabalho nem moradia para todos os negros libertos e
livres.
Uma das dificuldades de integração do liberto à sociedade, especialmente no
mercado de trabalho, advinha do fato de que algumas funções não podiam ser
executadas por negros, nem livres nem libertos. Dos cargos que poderiam ser
ocupados por negros, alguns exigiam maior qualificação ou responsabilidade,
podendo ser atribuídos aos livres, mas não aos libertos. Diante disso, muitos libertos
continuaram nas fazendas de seus ex-senhores, mesmo sem receber remuneração
monetária; outros conseguiram acomodações como agregados, meeiros, parceiros ou
diaristas de campo (EISENBERG, 1989, apud REZENDE, 2000, p. 228).
Segundo Rezende (2000), ainda, a grande massa de ex-escravos, porém, ficou sem
ocupação, por não poder competir nem com negros nascidos livres nem com os colonos,
menos ainda com os imigrantes europeus que começaram a chegar ao país. Desta maneira,
grande parcela desses indivíduos marginalizados foi aumentar o número de miseráveis nos
campos brasileiros.
Este processo acima brevemente mencionado de desterritorialização e territorialização
ou de adaptação, pode ser lido como regra positiva (LÉVI-STRAUSS, 1958), gerando modos
sincréticos de organização social e cultural, os quais apontam para a agência dos sujeitos. Na
mesma concepção, Ferretti (1995) afirma que o sincretismo não é apenas um dado observável,
mas um processo sociocultural. Nele, o negro transformou muito de sua cultura, a partir de
suas matrizes iniciais, e hoje se apodera da contemporaneidade. Nesse sentido podemos
entender o quilombo como uma estratégia de reação contra escravidão e um novo modo de
territorialização, representando, assim, uma ruptura da ordem jurídica, econômica e social na
estrutura de poder dos períodos colonial, imperial e contemporâneo. Em outras palavras,
conforme Moura (1981, pag. 87), “o quilombo foi, incontestavelmente, a unidade básica de
resistência do escravo. Pequeno ou grande, estável ou de vida precária, em qualquer região
que exista a escravidão, lá se encontra ele como elemento de desgaste do regime servil”6. Por
isso, os quilombos sempre foram reprimidos. A repressão às comunidades quilombolas se fez
durante todo o período escravista. Moura (2001) acrescenta que esse processo de protesto
radical e permanente contribuiu decisivamente no agravamento da crise do modo de produção
escravista e possibilitou a visualização da necessidade de uma nova ordem social, gerando,
entre outros desdobramentos, a abolição da escravatura. Hoje a repressão se dá tanto nos
conflitos de terra quanto no plano jurídico-político.
6 Neste processo, inúmeros quilombos foram constituídos no século XIX, principalmente nas décadas finais do
período escravista, seus habitantes sendo chamados quilombolas; termo que aponta para o remanescente de
quilombo (MUNANGA, 2006), classificação marcada na constituição brasileira.
5
Atualmente o quilombo significa, para esta parcela da sociedade brasileira, a
possibilidade de reterritorialização e uma forma de reelaborar o passado e, consequentemente,
o presente. Inaugura-se, então, uma espécie de demanda na política nacional, que resultou em
parte do texto da constituição de 1988 (ALMEIDA, 2002). Desta forma, para o quilombola a
terra é mais do que o próprio sustento, mais do que a manutenção de uma família, ela
significa a vida de um sistema cultural, a manutenção de uma etnia, de todo um emaranhado
de símbolos e valores culturais, a possibilidade de ser um sujeito autônomo.
Percebe-se, então, que o processo de produção de riqueza no Brasil sempre esteve
relacionado com a exclusão de parte da população dos bens de capital, inclusive da terra.
Dentro deste contexto a comunidade aqui retratada é a comunidade negra de Água Limpa,
localizada a aproximadamente 70 km da cidade de Goiás, antiga capital do estado. Onde
atualmente vivem aproximadamente 40 famílias com algum grau de parentesco. Essa
comunidade não tem o titulo de comunidade quilombola e pleiteia o titulo de terra de pretos,
através da Fundação Palmares, titulo que é direcionado a comunidades tradicionais de origem
étnica negra.
Comunidades rurais em Goiás
De acordo com Palacín (1994), Goiás nasceu sob o signo do ouro e em relação de
subordinação a São Paulo. Neste cenário, a Goiás cabia tão somente fornecer matéria-prima.
Neste contexto, as primeiras minas foram descobertas em Goiás, por volta de 1726, quando os
bandeirantes invadiram as terras dos índios Goyazes para explorar tanto o nativo quanto os
recursos minerais (PALACÍN, 1994). Com a atividade mineradora surgiram os primeiros
arraiais nos arredores das minas. Em decorrência disso ocorreu o surgimento, entre 1727 e
1732, de vários povoados no sul de Goiás, como, por exemplo, Anta, Ferreiro, Ouro Fino,
Barra, Agua Quente, Santa Cruz e Meia Ponte. Entre 1730 e 1740, surgiram outros vilarejos
na região norte, Traíras, São Jose do Alto Tocantins (atual Niquelandia), Cachoeira, Crixás,
Natividade, São Felix, Pontal, Arraias, Cavalcante, Papuan (Pilar), Santa Luzia (Luziania),
Carmo e Cocal.
O negro situa-se nesse contexto como elemento central do processo de mineração.
O escravo faiscador, às margens dos rios Vermelho e das Almas, extraía, de sol a
sol, o ouro misturado aos seixos de areia. Com bateia de madeira, movimentava a
mistura heterogênea de rochas, fazendo acumular os grãos de ouro no fundo, sendo
as impurezas extras lavadas pela água, que afluía, aos poucos, na superfície da
vasilha. Trabalhava, inclinado e seminu, os pes n’água, o corpo exposto ao calor do
sol. (BAIOCCHI, 1983, p. 18)
6
A autora chama a atenção para a principal atividade no século XVIII, a mineração na
região do Rio das Almas e Rio Vermelho, região onde se desenvolveram muitos quilombos,
entre eles Pombal. Note-se que depois, com o declínio da mineração no século XIX, ela foi
substituída pela agricultura e pecuária.
Ressalte-se ainda que os arraiais auríferos citados tinham uma característica
eminentemente urbana (PALACÍN, 1995), contando, inclusive, com uma classe socialmente
destacada, a dos mineiros. Sendo assim, simultaneamente, a lógica explícita da interiorização
violenta apontava para a formação de uma elite, baseada em um pequeno número de colonos,
os quais tiveram acesso aos poucos cativos, como dito, produtores da riqueza e, mesmo,
patrimônio em si. Desta forma, com a distribuição desigual tanto das terras como dos
trabalhadores, a riqueza concentrou-se nas mãos de poucas e poderosas famílias (REZENDE,
2000). Segundo Monteiro (1995), a mesma produção de riqueza gerou o surgimento de uma
maioria ligada à pobreza rural.
Neste cenário, o censo de 1779 – veja abaixo – aponta para a ideia que a pobreza rural
era constituída majoritariamente por “pretos”, que constituíam entre 45% e 80% da
população. Nas cidades mineradoras, tais como Crixás, Pilar, Arraias, 70% ou mais da
população eram definidas, como constituída por “pretos” (KARASH, 1998, p. 241-242).
7
Fonte: IHGB Arq. 1.2.7 Estatística "Ofício de Luiz da Cunha Menezes a Martinho de Melo e Castro, remetendo
o mapa da População da capitania de Goiáz, com distinção de classes". Vila Boa, 8 de julho de 1780, f. 246.
Esses negros famintos e maltratados viam na fuga uma forma de sobreviver, e tinha na
capitania dos Goyazes as condições que favoreciam não apenas a fuga mas a possibilidade de
não serem encontrados.
Para Martiniano (1998) a capitania de Goiás foi um local ideal para a formação de
quilombos, pois estava afastada dos grandes centros administrativos portugueses e distante
das forças coloniais militares responsáveis pela destruição dos quilombos. A capital Vila Boa,
atual Cidade de Goiás, ficava distante de Salvador ou do Rio de Janeiro. Os oficiais e
soldados portugueses enviados para guarnecer Vila Boa e os registros de ouro eram poucos
para aquela capitania. Conforme revela a correspondência oficial, a maioria dos governadores
estava mais preocupada com as guerras indígenas e o contrabando do ouro do que com os
quilombos. Uma segunda vantagem desses quilombolas no século XVIII foi a capitania
possuir uma população esparsa; e se reconhece que as revoltas escravas de quilombos
ocorreram quando os escravos superavam numericamente os senhores. O censo de 1779 para
Goiás esclarece que os pretos constituíam entre 45% e 80% da população. Nas cidades
mineradoras, tais como Crixás, Pilar, Tocantins e Arraias, onde os quilombos deram trabalho
aos portugueses, 70% ou mais da população era definida como preta. O último fator que
favorecia a formação dos quilombos era o tipo de terreno dos estados de Goiás e Tocantins. A
capitania possuía ecossistemas que protegiam escravos fugidos. A fuga em canoa ou jangada
era facilitada por três grandes rios: o Araguaia, a oeste; o Tocantins, a leste; e o Paranaíba do
Sul. Assim Goiás abriga hoje inúmeros quilombos e dentre eles o mais numeroso è o dos
Kalungas, localizado na chapada dos Veadeiros, mas ainda se podem citar os quilombos de
Pombal, de Porto Leocadio, de Muquém, de Água Fria e muitos outros.
8
A Comunidade Água Limpa
Existem poucos documentos sobre a estrutura interna ou economia dos quilombos como
comunidades negras autônomas de Goiás. Na sua maioria, os quilombolas do século XVIII
eram escravos garimpeiros em fuga que continuaram a praticar seus ofícios escondidos em
montanhas remotas. Os quilombolas contribuíram para a descoberta e a exploração da riqueza
mineral da capitania de Goiás. Também viviam da caça, da pesca e do cultivo de roças, além
de cuidar de gado e produzir carne seca. E em si tratando da comunidade Água Limpa não é
diferente. A história dessa comunidade está registrada apenas na memória dos mais velhos
que ali residem e de alguns jovens que buscam compreender não apenas o processo de
surgimento da comunidade mas a tradição que ainda os une em torno daquele território, que
hoje em seu total não chega a um terço dos 100 hectares de um século atrás. Mesmo que
fragmentadas, estas narrativas possuem uma grande importância para a identificação de
algumas dimensões da experiência histórico-social dos quilombos e comunidades negras
Goiás. Pois ajudam a compreender as formas de economia, as práticas culturais, organizações
sociais, alforrias e resistência.
No entanto, essas dimensões históricas ganham complexidade e relevância maior
quando são entrelaçadas com as narrativas do presente, quando são colocadas em diálogo com
a memória social e com o conjunto das recordações das experiências vividas ou mitificadas
pelos agentes históricos desse grupo ao se expressarem sobre suas identidades e dinâmicas
sociais.
Em si tratando da comunidade Água Limpa, mesmo tendo como datação de inicio de
povoamento o final do século XIX, não há nenhuma memória que comprove que nessas terras
existia um quilombo. Ao serem indagados sobre quando chegaram à localidade, a única
versão contada pelos moradores é a que se segue: “Durante a ocupação dos sertões goianos
vieram de Salvador, região conhecida hoje como Feira de Santana, um fazendeiro por nome
Francisco de Deus Guerra e seis cativos, dentre eles dois irmãos de origem Nagô que
atendiam pelo nome de Cedott e Anju, e uma única mulher negra de cozinha conhecida como
Messias, ela estava grávida. Foi doada a esse fazendeiro uma sesmaria na beira de côrrego de
águas limpa e fria, nome dado a fazenda pelo fazendeiro. Os cativos eram bem tratados pelo
fazendeiro a quem chamavam de sinhozinho, esse não teve filhos e antes de morrer doou a
sesmaria a seus cativos. Outros cativos foram chegando na região e ali faziam morada. Um
dos irmãos se casou com uma índia, não se sabe a etnia já que para eles todos os índios eram
chamados de Tapuios. Eles casaram e tiveram filhos e netos. A negra Messias deu a luz a uma
menina chamada Benedita, dona Benedita (nasceu em 1891, faleceu em 1998) aos 107 anos.
9
Ela era parteira, rezadeira, benzedeira, cortava quebranto, mal olhado e cobreiro, e entendia
de chás, era devota de Santos Reis e foi matriarca da principal família dessa comunidade, os
Corrêa da Silva.” É atraves da memória dela que esse ensaio dialoga sobre a importância da fé
para consolidação da identidade histórica desse grupo, que se relaciona com um espaço e com
o sagrado na mesma dimensão, ressignificando saberes e fazeres do período colonial.
Segundo Le Goff (1924, pag. 423) no estudo histórico da memória histórica é
necessário dar uma importância especial às diferenças entre sociedades de memória
essencialmente oral e sociedades de memória essencialmente escritas, como também às fases
de transição da oralidade para escrita. Em si tratando da comunidade em questão essa
transição ainda está acontecendo, de forma lenta, porém esse fato não interfere nas dinâmicas
culturais do grupo. Essa memória étnica é vivenciada durante os festejos em homenagem aos
três reis Magos, durante o “giro”7 de treze dia. As quatro gerações da mesma família falam a
mesma língua, carregam a mesma fé, e reforçam suas relações com o grupo e com o espaço.
A Bandeira, a Folia, a festa e a tradição
Uma bandeira azul cor do céu, e no centro uma imagem de papel dos três Reis Magos,
por eles chamado de Santos Reis, gasta pelos anos e rica em tradição: a imagem foi doada por
um dos fundadores deste cortejo que há mais de um século percorre os pequenos casebres de
pau a pique que formam a comunidade rural de Água Limpa. “... Caminhando, caminhando
pra lapinha de Belém visita Jesus Menino que salvou seu mundo bem...” (Cântico de louvor
entoado pelos foliões, autoria desconhecida).
De acordo com as memórias da Sra. Benedita, reafirmada por sua filha, a primeira vez
que que a bandeira de Santos Reis percorreu as terras da comunidade ela ainda era criança. A
folia saiu para cumprir uma promessa feita pelo senhor Fidélio Corrêa da Silva, seu tio avô,
que tinha um filho por nome Ingrácio Correa da Silva que nasceu muito doente, e foi curado
pelo santo. Desde então todos os anos a folia sai em giro, e a festa era sempre na sua casa, ali
se encontravam todos para agradecer e pagar mais e mais promessas. A popularidade desse
santo na comunidade e tão grande quanto a do próprio menino Jesus. Após a morte do senhor
Fidélio seu filho Ingrácio seguiu com a devoção, e durante os quase 80 anos de sua vida não
houve um ano que a folia não saísse. A folia tem em seus ritual características que a tornam
única, as orações os benditos são feitos com um misto de latim, mas um latim sertanejo onde
as línguas se misturam, e por vezes algumas palavras em banto aparecem.
7 Nome dado ao percurso percorrido pelos foliões durante a busca dos três Reis Magos pelo menino Jesus.
10
O ritual do giro tem como símbolo máximo a bandeira, azul, que tem no centro a
imagem do santo, ao lado fitas coloridas, e sempre uma ou duas notas de dinheiro, para dar
sorte e prosperidade a quem tocar a mesma. Quando a bandeira chega nas casas já existe um
altar preparado para recebê-la. Os giros acontecem a noite lembrando a peregrinação dos
santos em busca de Jesus. Outro símbolo importante é a estrela de Belém, ou Dalva, como é
chamada por eles, que, além de estar pintada na bandeira, é lembrada em quase todos os
cânticos. “...O que hora tão bonita que a estrela apareceu, clariou lá em Belém onde Jesus
nasceu...” (Cântico de louvor de altar autoria desconhecida).
Tão importante quanto os símbolos já citados está o chefe da folia, ele é quem puxa os
cânticos, é o detentor da memória e quem comanda os tocadores, é sempre o primeiro a
comer. O seu comando é dado através de um apito, e esse é o som que dita os ritmos. Existe a
hora de cantar, para agradecer, para louvar, de rezar, de comer, de dançar a catira, e de
descansar. Depois do chefe das folia vêm as rezadeiras, os tocadores, e as cozinheiras. O
ritual da comida é marcado pelas cores e sabores, onde a memória fala através do jeito de
fazer e jeito de comer. E nessa memória festiva que as gerações se encontram, tecendo e
ressignificando essa tradição que, mesmo sendo explicitamente ligada ao catolicismo popular,
resguarda no seu ritual a maior característica étnica desse grupo, a relação com o espaço onde
viveram e vivem seus ancestrais, e a relação entre os indivíduos, marcada pelo patriarcalismo,
e pelo respeito aos mais velhos. Durante os dias de giro o que se percebe é a cumplicidade
entre os foliões, o cuidado e respeito para com as rezadeiras, e sobre tudo a fé no santo
homenageado. A cada pouso 8 o ritual se repete, se canta pedindo licença. “...Boa noite
morador abre a porta e acende a luz, pois vos vai receber o mensageiro de Jesus...” (Cântico
de chegada, autoria desconhecida). Em seguida o dono da casa recebe a bandeira e a
encaminha até o altar preparado para receber o santo e nesse momento os foliões cantam
agradecendo pelo preparo do altar. “...Deus vós salve a casa santa que os reis vai receber,
Deus vos salve o belo altar que vois fez pra oferecer...” (Trecho cântico de agradecimento do
altar, autoria desconhecida).
Ao som do apito os tocadores se posicionam e seguem mais e mais cânticos. Quanto
mais enfeitado o altar mais os cânticos são entoados. A bandeira só é colocada no altar depois
de agradecer cada símbolo ali representado, seja uma imagem ou uma flor. A riqueza de
detalhes e o esmero com o qual os devotos preparam as casas para receber a folia deixam
evidente a fé dessa comunidade no santo homenageado. Durante o dia ainda acontecem a reza
8 Pouso: local onde a bandeira e os foliões passam o dia.
11
do terço, com os benditos cantados em latim, e a dança da catira. Segundo a memória dos
mais velhos, como seu Joaquim de 73 anos, há tempo atrás se dançava ainda o forró pé de
serra, mas a maior diversão eram os desafios, onde um cantador desafiava o outro através dos
versos, ritmados com sanfona, viola e pandeiro, em cada verso uma lembrança do tempo em
que todos residiam naquele mesmo espaço, e plantavam juntos e colhiam em forma de
gitório9. Hoje esses momentos são revividos durante a folia de Reis: naqueles dias só existem
os foliões e todos se tornam um na mesma fé, recriando e se apropriando mas uma vez do
espaço.
9 Modo de colheita coletiva.
12
Referências Bibliográficas
BAIOCCHI, Mari Nasaré. Kalunga – o povo da terra. Brasília: Ministério da
Justiça/Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, 1999.
BERTRAN, Paulo. História da Terra e do homem no Planalto Central: Ecohistória do
Distrito Federal, do Indígena ao Colonizador. Brasília: Solo Editores, 1994.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil – mito, história, etnicidade. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
Coletânea de Leis sobre preservação do Patrimônio, IPHAN Ministério da Cultura, Edição
2006.
DEL PRIORE, Mary. Ancestrais: Uma introdução à História da África. Ed. Campos São
Paulo, 2004.
EISENBERG, Peter. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores no Brasil – séc. XVII e
XIX‖, Campinas: Editora da Unicamp, 1989.
FERRETTI, S. Repensando o Sincretismo. São Paulo: Edusp, 1995.
GARCIA, Januario. 25 anos de Movimento Negro 1980-2005. Edição Fundação Palmares.
GEERTZ, C. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Editora LTC, 1989.
GURAN, Miltom. Agudás – os “brasileiros” do Benin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
GUSMÃO, Neusa M.M. Herança quilombola, negros terras e direitos, Brasil um país de
Negros. Organizado por Jefferson Barcelar, Salvador 1999.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004.
KARASH, Mary. Os quilombos do ouro na capitania de Goiás. In: REIS, João José e
GOMES, Flavio dos Santos. Liberdade por um fio – história dos quilombos no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LEITE, Ilka, B. Terras de quilombos. In: LIMA, Antonio Carlos de Souza (org.).
Antropologia e Direito – temas antropológicos para estudos jurídicos. Rio de Janeiro, Brasília:
Contra Capa, LACED, ABA, 2012.
LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008 (1958).
Tradução: Beatriz Perrone Moisés.
LEITE, Ilka, B. Experiências históricas dos quilombolas no Tocantins: organização,
resistência e identidades. Universidade Federal de Santa Catarina.
LOPES, Nei. Bantos, Malês e identidade negra. São Paulo: Forence Universitária, 1998.
13
MACHADO, Maria Sueli. Inventário lexical de Porto Leocadio. Mestrado em Linguística.
Universidade Federal de Goiás, 2005
MARTINIANO, José da Silva. Quilombos do Brasil central: séculos XVIII e XIX (1719 –
1888). Introdução ao estudo da escravidão. Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto
de Ciências e Letras da Universidade Federal de Goiás, para a obtenção de Grau de Mestre,
1998.
MENENDES, Márcia. O rural redescoberto: novas perspectivas nos estudos sobre a história
do direito à terra no Brasil. Revista ComCiência, n. 72. SBPC, 2011.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra – índios e bandeirantes nas origens de São
Paulo. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
MUNANGA, Kabengele. Para entender o negro no Brasil hoje. São Paulo: Ação educativa
Ed Global, 2004.
O’DWYER, Eliane Cantarino (org.). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2002.
PALACÍN, Luís. O Século do Ouro em Goiás. Goiânia: Editora da UCG, 1994.
Programa Brasil Quilombola, Comunidades quilombolas brasileira - Regularização Fundiária
e Políticas Públicas. Governo Federal, Ed. 2007.
Relatório Antropológico de identificação e delimitação do território da Comunidade
Quilombola Chácara do Buriti, Campo Grande/MS.
REZENDE, T.F. Discurso e identidade etno-cultural na comunidade de Pombal – GO.
Mestrado em Letras. Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2000.
ROCHA, Leandro Mendes da. O Estado e os índios: Goiás 1850-1889. Goiânia: Editora da
UFG, 1998.
SUNDFELD, Carlos Ari. 2006. Direito público e igualdade racial. In: SEPPIR. Saneamento
da ordem jurídica e igualdade étnico-racial. Fundação Ford, Instituto Pró-Bono, PUC-SP.
Terra de mulheres. Identidade e gênero em um bairro rural negro. Revista de História n.129-
131. São Paulo, 1994.
VILAS, Paula C. A voz dos quilombos. Na sende das vocalidades Afro-Brasileiras.
Universidade Federal da Bahia.