Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos...

20
Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos 1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade de São Paulo - USP Resumo: Propõe-se um exercício de reflexão em torno dos trânsitos entre os campos da arte e da religião tendo em vista a produção dos vèvès, grafismos que em um lugar fundamental nos rituais vodu no Haiti e que são também fundamentais na construção de uma imagem estética nacional. Trata-se de questionar em que medida a noção de arte, tal como a concebemos, dá conta ou não da relação entre pessoas, coisas e espíritos no âmbito do regime de conhecimento vodu e, ainda, de pensar nas implicações da incorporação de desenhos rituais para dentro das galerias de arte contemporânea, bem como em seu uso político. Para tal tomaremos como fonte de análise o material produzido por duas exposições recentes que tem como mote uma noção ampliada de 'arte haitiana': uma realizada na França em 2014, "Haiti:deux siècles de création artistique", e outra no Brasil em 2015, "Haiti:vida e arte". Apesar de construídas em torno de curadorias com objetivos distintos essas exposições permitem uma aproximação privilegiada tanto à produção material haitiana quanto à uma certa concepção de arte que queremos apreender criticamente. Palavras-chave: Haiti, arte, religião. 1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. Este texto se insere no contexto da pesquisa de doutorado que realizo atualmente no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade de São Paulo (USP) com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Transcript of Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos...

Page 1: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas,

coisas e espíritos1

Júlia Vilaça Goyatá

Universidade de São Paulo - USP

Resumo:

Propõe-se um exercício de reflexão em torno dos trânsitos entre os campos da arte e da

religião tendo em vista a produção dos vèvès, grafismos que em um lugar fundamental

nos rituais vodu no Haiti e que são também fundamentais na construção de uma imagem

estética nacional. Trata-se de questionar em que medida a noção de arte, tal como a

concebemos, dá conta ou não da relação entre pessoas, coisas e espíritos no âmbito do

regime de conhecimento vodu e, ainda, de pensar nas implicações da incorporação de

desenhos rituais para dentro das galerias de arte contemporânea, bem como em seu uso

político. Para tal tomaremos como fonte de análise o material produzido por duas

exposições recentes que tem como mote uma noção ampliada de 'arte haitiana': uma

realizada na França em 2014, "Haiti:deux siècles de création artistique", e outra no Brasil

em 2015, "Haiti:vida e arte". Apesar de construídas em torno de curadorias com objetivos

distintos essas exposições permitem uma aproximação privilegiada tanto à produção

material haitiana quanto à uma certa concepção de arte que queremos apreender

criticamente.

Palavras-chave:

Haiti, arte, religião.

                                                                                                               1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. Este texto se insere no contexto da pesquisa de doutorado que realizo atualmente no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade de São Paulo (USP) com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Page 2: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  2  

Em entrevista dada em vídeo por ocasião da exposição Histoires de voir: show

and tell, realizada em 2012 na Fondation Cartier em Paris2, o artista haitiano Jean Joseph

Jean-Baptiste, ao falar do seu processo de criação envolvendo a confecção de bandeiras

vodu, relata:

“Quando eu não gostava mais do vodu eu mostrava meu trabalho em galerias, como por exemplo em Pétionville, e eles me diziam: ‘não há mais cliente pra esse tipo de obra’, equanto que desde que comecei a desenhar Erzuli Freda, Damballah e Ogou Ferraile, que são os vèvès, todo mundo ficou interessado. E meu trabalho não é único somente graças a Erzuli Freda ou Damballah, eu trabalho pela religião, eu trabalho pelo vodu”3.

A fala de Jean-Baptiste parece paradigmática em diversos sentidos que queremos

aqui exlorar. Numa primeira direção ela aponta para o problema da apropriação pelo

sistema de arte ocidental do que podemos chamar dessas materialidades outras, isto é,

objetos e expressões materiais advindas de outros universos significativos. O relato indica

que essa incorporação, apesar de ter passado por mudanças desde a crítica pós-colonial

iniciada nos anos 1980, segue nos dias de hoje atrelada à chave do exotismo. Como

comenta o artista haitiano, a arte do Outro interessa às galerias quando símbolo sagrado

de uma cultura diversa, isto é, quando está vinculada à um imaginário religioso e místico.

Na própria descrição da exposição da qual participa Jean Joseph Jean-Baptiste e outros

artistas tidos como outsiders em relação à arte ocidental, já que estariam “fora da norma

dos códigos visuais convencionais”, está explicitamente colocado pelo curador que o que

lhe interessa nessa arte “primitiva”ou “naif” é seu olhar “encantado para o mundo” e sua

“hipersensibilidade humana” 4. Tudo se passa então como se fora do Ocidente, e nesse

                                                                                                               2 A exposição, concebida pelo italiano Alessandro Mendini tinha a intenção de mostrar trabalhos de artistas de 40 países diferentes ao redor do mundo. No site da exposição encontra-se a seguinte descrição: “Show and Tell arose from a desire to explore the meaning of the terms “naïve” “primitive” and “self-taught” art, to meet artists who pursue paths outside the norm of conventional visual codes, and to examine the relationships between contemporary art and folk art, artist and artisan” (http://fondation.cartier.com/#/en/art-contemporain/26/exhibitions/294/all-the-exhibitions/248/histoires-de-voir-show-and-tell/, acesso em 10/07/2015). 3 Ver entrevista completa em: https://www.youtube.com/watch?v=esWL0_Sffww. A fala transcrita em questão está localizada entre os minutos 3’37’’a 4’14’’do vídeo, sendo que a tradução para o português desta e das próximas citações é de minha autoria. 4 Citações retiradas do site da exposição: http://fondation.cartier.com/#/en/art-contemporain/26/exhibitions/294/all-the-exhibitions/248/histoires-de-voir-show-and-tell/). Para ver entrevista com o curador da mesma: https://www.youtube.com/watch?v=0lcrzMv2hkw.

Page 3: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  3  

caso o Ocidente parece se restringir à Europa e sua produção canônica, só houvesse arte

onde há sagrado, sendo que a religião parece significar aqui uma espécie de relação

romântica entre elementos da natureza e da cultura. Diante disso, a pergunta que nos cabe

fazer é a seguinte: será que simplesmente podemos dizer que para os povos ditos

“pimitivos” arte e religião não se separam? Ou bem será mais interessante nos

perguntarmos se os próprios termos arte e religião se sustentam como conceitos razoáveis

para dar conta da produção material desses outros modos de conhecimento? O que

efetivamente está em jogo na produção desses vèvès vodu que fazem com que Jean

Joseph “trabalhe por eles” como ele diz?

No mínimo, pode-se dizer que o relato do artista nos dá uma pista sobre a

produção das bandeiras vodu haitianas incorporadas pelo sistema de arte ocidental: ela

parece estar envolta em uma série complexa de relações que extrapolam a divisão

clássica entre sujeito/artista e objeto/obra de arte. Além de dizer explicitamente que a

produção dessas bandeiras tem como fim último a religião vodu, em outro momento do

vídeo Jean Joseph dirá que o início de sua carreira artística está estitamente associado à

uma revelação sagrada em sonho5. Nas palavras do artista: “no sonho eu pegava quatro

pedaços de madeira, colava, e pegava um lápis para desenhar uma mulher com uma

criança nos braços. Tinha também um homem que estava se drogando, ele pega o lápis

das minhas mãos e termina o desenho acrescentando um vèvè e me explica que é Erzuli

Dantor”6. Provavelmente este homem que aparece no sonho é uma divindade disfarçada

que vem para dar um recado à Jean Joseph, apontando-lhe um caminho profissional.

Nesse caso, a produção das bandeiras vodu é ela mesma informada pela relação entre

homens, coisas e espíritos. Mas nem sempre a produção de bandeiras vodu, certamente os

objetos mais cobiçados pelos estrangeiros no Haiti, está diretamente associada à prática

religiosa, como nesse caso. O vodu, descrito como religião por trabalhos canônicos como

o de Alfred Métraux (1958), que usaremos aqui, passou no Haiti por um longo processo

de “culturalização” se assim podemos dizer e a proliferação dos vèvès enquanto símbolos

nacionais acompanhou esse processo. Nos resta entender que lugar esses objetos, as

                                                                                                               5 Sabe-se que no sistema vodu os sonhos são uma das vias de comunicação entre os loa, entidades ou espíritos, e os homens (MÉTRAUX, 1958:127). 6 A fala transcrita em questão está localizada entre os minutos 2’15’’a 2’59’’do vídeo.

Page 4: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  4  

bandeiras, e mais que elas, os vèvès, desenhos dos espíritos, ocupam no universo de saber

vodu e como eles proliferam para além dele.

Figura 1: bandeira vodu fabricada por Jean Joseph Jean-Baptiste com um vève de Erzulie

Figura 2: cartaz da exposição Histoires de voir

Figura 3: imagem retirada de guia turístico oficial do Haiti em que aparece uma montagem com inspiração nos traços vèvès

As exposições

Page 5: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  5  

Assim como na exposição citada acima, também em Haiti Vida e Arte, realizada

em São Paulo de maio a junho de 2015, está pressuposto, e isso desde o título da

exposição, um grande divisor entre as chamadas belas-artes, artes ocidentais, e as artes

primitivas, ou arte dos outros. A reflexão da antropóloga Joanna Overing sobre os Piaroa,

grupo amazônico estudado por ela, nos ajuda a entender a conexão entre arte e vida

proposta pela exposição. No contexto da realização dos Key debates organizados por Tim

Ingold (1994)7, em que a pergunta em questão era se a estética podia ser um conceito

transcultural, Overing argumentará que não, explicitando que a arte em determinadas

populações não adquire estatuto autônomo, portanto, não se pode falar em estética como

um domínio separado dos outros: “para os Piaroa, ‘arte’ não existe como algo que se

sustenta sozinha, fora do contexto da vida” (apud INGOLD, 1994: 212)8. A estética seria

uma categoria vinculada à uma “consciencia específica da arte” ausente em diversos

grupos sociais (idem: 210). A exposição em questão reproduz essa espécie de argumento:

é como se no Haiti tudo pudesse ser arte ao mesmo tempo em que nada é arte, já que a

produção material não se descolaria da vida cotidiana. Trata-se, na verdade, de uma

versão ocidental bastante típica sobre a relação do “primitivo” com seus objetos: eles não

conseguem separar aquilo que é apenas funcional daquilo que é pura beleza.

A situação da arte haitiana, de saída, é ainda mais complexa que o caso dos Piaroa

aboradado por Overing quando comparada às belas-artes de padrão europeu. Isso porque

nesse caso o constraste não se dá de maneira tão nítida, já que estamos falando de uma

sociedade moderna, que comunga das formas de saber ocidentais, mas que tem também

regimes de conhecimento que escapam à lógica dos conceitos construídos por essa

filosofia. Como comenta Michel-Rouph Trouillot (1992), os países caribenhos se

caracterizam por serem “indisciplinados”, não se encaixando em rótulos tais como os de

sociedade ocidental moderna ou sociedade primitiva; embora o caso haitiano, salienta o                                                                                                                

7 Sobre os Key debates: “Every year, leading social anthropologists meet in Manchester to debate a motion at the heart of current theoretical developments in their subject. Key Debates in Anthropology collects together the first six of these debates, spanning the period from 1988 to 1993. For each debate there are four principal speakers: one to propose the motion, another to oppose it, and two seconders. These debates give unprecedented insight into the process of anthropological theory in the making, as the many contributors both engage with each other’s positions and respond to wider intellectual currents of the time” (1994: contracapa do livro).

8 Todas as traduções de textos em inglês e francês que se seguem são de minha autoria.

Page 6: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  6  

autor, seja paradigmático como exemplo de uma espécie de “estranho familiar” do

Ocidente9. Isso porque as narrativas construídas em torno do país, principalmente de

origem norte-americana e francesa, passariam sempre pela ênfase em sua

“excepcionalidade” histórico-cultural, funcionando, segundo Trouillot, como “escudo

para a integração do Haiti num mundo dominado pelo cristianismo, o capitalismo e a

branquitude” (1990:7).

Assim, ao mesmo tempo em que é possível falarmos em arte haitiana, já que há

uma comunidade de artistas produzindo para o mercado internacional de arte ali e

dependente dele, é também possível nos questionarmos sobre se os objetos que circulam

da religião vodu para as galerias e delas para a casa das pessoas podem ser pensados

como arte10. Qual o estatuto do que é projetado para o mundo como sendo “a arte

haitiana”?

Apesar da complexidade que envolve a formação dos Estados nacionais no Caribe

em geral e no Haiti em particular, tema que não explorarei aqui, tanto em Histoires de

voir quanto em Haiti Vida e Arte, a região aparece classificada na chave do exotismo, tal

qual o grupo indígena estudado por Overing, como exemplo de primitivismo e de

ingenuidade criativa. Nesse sentido, a arte haitiana é construída, como comenta Trouillot

como “não usual”, ou seja, como signo do que é “singular”, “peculiar” ou até mesmo

“bizarro” (1990: 5-6). O texto informativo que figura no catálogo da última exposição é

revelador nesse sentido: “A ingenuidade surpreendente, o talento e a inspiração mística

do povo haitiano, revelada pela necessidade de sobrevivência, têm impulsionado um

mercado de arte que vem sendo cada vez mais valorizado no exterior” (Catálogo Haiti

Vida e Arte, 2015, sem paginação). Atrelada à vida cotidiana a arte “primitiva” adquire

aqui mais um sentido, o de redenção diante das agruras sociais, da miséria e das tragédias

ocorridas no país, mais precisamente o terremoto de 201011.

                                                                                                               9 O “estranho familiar” aqui refere-se indiretamente ao unheimlich, conceito freudiano forjado para explicar a atitude ambígua do sujeito diante de um desejo reprimido que volta à tona em função de um estímulo exterior. Ele desenvolve a idéia em O inquietante (1919). 10 O texto de Mireille Pérodin-Jérôme para o catálogo da exposição Haiti, deux siècles de création artistique aborda diretamente a formação dos diversos coletivos de arte que se formaram no Haiti contemporaneamente. Além de grupos artísticos eles funcionam também como espécies de “bolsões de resistencia” política (2015:21). 11 Sabe-se que o Haiti foi vítima de um violento terremoto em 12 de janeiro de 2010 alcançando a magnitide 7,0 Mw na escala MMS.

Page 7: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  7  

Não é difícil localizar a natureza etnocêntrica do tipo de discurso que envolve as

exposições acima mencionadas. Apesar da crítica pós-colonial, que se centrava em

apontar a natureza ideológica da narrativa evolucionista que envolvia as artes e os

museus, esse tipo de abordagem essencializante do “primitivo” ainda é extremamente

comum. James Clifford (1988) fornece um exemplo dessa crítica, que explicita o

anacronismo presente em abordagens museológicas que tratam os objetos dos outros

como habitando um “tempo mítico” (1988: 202). Ao falar de uma exposição ocorrida em

1984 no Museu de Arte Moderna (MOMA) de Nova York, que procurava justapor obras

de arte modernas e objetos “tribais” mostrando suas analogias de superfície, Clifford irá

destacar que esse tipo de abordagem nega a historicidade dos povos abordados, alocando-

os somente em função das preocupações modernas e ocidentais12. Segundo ele, “as

relações de poder pela qual uma porção da humanidade pode selecionar, valorizar e

colecionar os autênticos produtos dos outros deve ser criticada e transformada” (idem:

213). Nessa direção parece ser surpreendente que exposições tão recentes, apesar de não

terem uma abordagem evolucionista direta, reponham sensos comuns como os de que a

arte primitiva está necessariamente vinculada ao religioso ou à vida cotidiana.

A terceira exposição que aborda a arte haitiana e que mencionaremos aqui,

diferentemente das duas primeiras, parece já ter incorporado de forma substancial a

crítica feita por autores como Clifford. Contudo, ainda há nessa tentativa uma nova

dicotomia reposta, dessa vez não mais entre arte primitiva e arte ocidental, mas dentro do

escopo da arte haitiana, entre arte sacra e belas-artes. Dicotomia esta que, vale dizer, faz

parte da apreensão das artes no Haiti desde pelo menos meados dos anos 1940, quando

vemos surgir no país o Centre d’Art, instituição fundada para dar valor à arte nacional e

que se propunha a desenvolver duas frentes de atuação, a da “arte clássica ou avançada” e

a da “arte popular”13. Dessa segunda corrente fez parte Hector Hyppolite (1894-1948),

                                                                                                               12 A exposição em questão tinha como título “’Primitivism’ in 20th Century Art: Affinity of the Tribal and tha Modern”. 13 O Centre d’Art nasce em 1944 por iniciativa de Dewitt Peters (1896-1967), norte-americano enviado ao Haiti em 1943 para ensinar inglês no tradicional Lycée Pétion. Interessado em artes, durante as férias, Peters organizava pequenas exposições de artistas haitianos no Institut Haïtien Américain e parece ter sido em uma dessas ocasiões que teve a ideia de abrir um local próprio para o desenvolvimento e divulgação da arte local. Visitei os arquivos do Centre d’Art, instituição ainda atuante em Porto Príncipe, entre fevereiro e março de 2016 e as denominações por mim citadas foram encontradas no acervo: Caixa Expositions 1944-1945, pasta Peinture Populaire Haïtienne, USA CUBA.

Page 8: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  8  

pintor e sacerdote vodu que caíra nas graças do pintor surrealista André Breton (1896-

1966) quando de sua passagem pelo Haiti, tendo sua obra exposta na França e nos EUA,

e até hoje símbolo da produção haitiana identificada não por acaso pela palavra francesa

“naïf”.

Figura 4: folder de exposição de Hector Hyppolite em Nova York, 1948

Nomeada Haiti, deux siècles de création artistique e realizada em 2014 em Paris a

exposição passa pela produção artística haitiana do século XX e XXI, tendo em vista

estabelecer, segundo sua curadora, não uma abordagem cronológica das correntes

artísticas, mas “um diálogo no interior e entre seus capítulos, em um encontro entre as

obras contemporâneas, modernas e antigas, muitas apresentadas pela primeira vez na

França” (CUZIN, 2014a:12). Trata-se, assim, de tomar a arte haitiana não em

comparação com as artes ocidentais, mas em sua integridade; e o cuidado de não cair na

tentação evolucionista é aqui ainda mais evidente se temos em vista a relação colonial

entre França e Haiti. A exposição, dividida em quatro temas – Sem títulos, sessão que

destaca figuras populares e paisagens cotidianas; Espíritos, que aborda a religião vodu;

Paisagens, que privilegia o trabalho de artistas ostracizados nos anos 1950 e 1960; e

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           

Page 9: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  9  

Chefes, sobre representações do poder político e intelectual – diz explicitamente querer

tomar a arte haitiana para além do “filtro do exotismo e das referências mágico

religiosas”, reconhecendo “a reivindicação legítima dos artistas haitianos de serem

reconhecidos pela pertinência de seu trabalho mais que pelo simples pertencimento a um

território” (CUZIN, 2014b:14).

Contudo, ainda que consciente das relações de poder que envolvem a execução de

uma exposição que se quer a expressão da arte haitiana no último século, a postura

relativista adotada por Haiti, deux siècles de création artistique, não resolve inteiramente

o problema da projeção da noção ocidental de arte para pelo menos parte dos trabalhos ali

exibidos. É preciso pensar se o esforço da exposição em, digamos, elevar a arte haitiana

ao patamar das belas-artes, tidas como universais, é suficiente no sentido de construir

uma postura simétrica entre distintas relações com a materialidade, a ocidental e a

haitiana, que como vimos é híbrida. Se a intenção política da exposição é das melhores, o

caminho para o reconhecimento da arte haitiana se dá nela mais pela via da identidade

que pela via da diferença. Isto é, trata-se menos de tomar a relação haitiana com a

materialidade em sua especificidade, tensionando-a com a maneira ocidental canônica de

fazê-lo, que de tomar o Haiti como um caso específico dentro do modelo universalista da

estética pressuposto pela filosofia ocidental. Dizendo de outro modo, parece haver aqui

uma projeção da centralidade que a arte tem no mundo ocidental para outros mundos, em

que talvez ela ocupe outro lugar ou sequer exista. Desconfio que o vodu, pensado menos

como religião e mais como modo de conhecimento no Haiti, tenha uma relação direta

com essa problemática.

A divisão entre “belas-artes” e “artes sagradas do vodu” abordadas por Carlo

Célius (2014) em um dos textos do catálogo da exposição nos ajuda a entender melhor o

ponto. Ele localiza que houve no país, pelo menos desde o início do século XX, um

processo crescente de valorização do que ele chama das artes do vodu, que passa pela

construção de uma identidade nacional, tomando a religião como fundamento tradicional

da cultura14. Assim,

                                                                                                               14 Não entraremos aqui nos detalhes que envolvem a construção das narrativas nacionais haitianas na primeira metade do século XX, que envolvem inclusive os percursos da profissionalização da antropologia no país. Basta dizer que a obra de Jean Price-Mars (1876-1969), Ainsi parla l’oncle (1928), é inaugural nesse sentido e é a partir dela que o vodu ganha centralidade como traço da cultura nacional. A atuação de

Page 10: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  10  

“a favor do processo da valorização do vodu, sua reapropriação tornou-se prática corrente, a ponto de tendermos perceber toda a criação plástica do Haiti pelo prisma do vodu, confundindo aquela que se inspira nele e aquela que lhe é propria” (CÉLIUS, 2015: 29).

O autor chama a atenção justamente para aquilo que destacávamos há pouco: o

fato de nem toda a arte haitiana estar necessariamente vinculada ao sagrado, tal como as

duas primeiras exposições abordadas sugeriam, e, ao mesmo tempo, de nem tudo aquilo

que é produzido materialmente pelo vodu ser necessariamente arte.

O caso das bandeiras vodu, tal qual abordado por Jean Joseph Jean-Baptiste no

início do texto, é exemplar nesse sentido, pois apresenta justamente essa ambiguidade:

objeto preparado dentro dos quadros rituais do vodu ele foi incorporado como arte

tipicamente haitiana pelas galerias ocidentais, fato possível após a “virada etnológica”

dos anos 1930 apontada por Célius (idem:30). O que essas bandeiras e seus desenhos, os

vèvès, nos dizem sobre a produção de objetos na religião vodu? E, ainda, o que elas nos

dizem sobre a nossa maneira de conceber arte?

Figura 5: bandeiras vodu em miçangas expostas em Haiti Vida e Arte (2015)

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         instituições como o Bureau d’Ethnologie e o Institut d’Ethnologie, ambos fundados em 1941, são também fundamentais. Para mais detalhes ver: CHARLIER-DOUSSET, 2005 e MAGLOIRE & YELVINGTON, 2005.

Page 11: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  11  

Figura 6: bandeira, altar e vèvè recém desenhado por M. Yvon para Ogou/Saint Jacques

O vodu como forma de conhecer

De acordo com a descrição sucinta de Alfred Métraux na etnografia clássica Le

vaudou haitien (1958) o vodu corresponde à “um conjunto de crenças e ritos de origem

africana que, estreitamente misturados às práticas católicas, constituem a religião da

maior parte do campesinato e proletariado da República negra do Haiti” (1958: 11).

Contudo, é o próprio Métraux quem sugere que podemos pensar no vodu como mais que

uma religião no Haiti, ele é propriamente um “conhecimento”, um saber, um modo de

apreensão do mundo e das relações (idem:54). Embora tomado como religião pelos

antropólogos, que no momento em que Métraux escreve tinham a preocupação política de

alçar o vodu, que sofrera graves perseguições, à condição de objeto científico digno de

valor, tirando-o da condição pejorativa de “superstição”, é sabido que tomá-lo desse

ponto de vista e apenas como prática “popular” é uma perspectiva redutora15. Não é

preciso muito tempo de campo no Haiti para perceber o quanto a palavra “vodu” é

mobilizada por diversas pessoas em situações variadas e com significados diferentes.                                                                                                                15 Sabe-se que o vodu foi alvo de perseguição durante o século XIX, quando ouve a primeira campanha anti-superstição; depois com a ocupação norte-americana no Haiti (1915-1934) e ainda no inicio dos anos 1940 com a segunda campanha anti-superstição encabeçada pela Igreja católica junto ao governo. Para mais detalhes das relações entre o vodu e a história política do Haiti: MINTZ & TROUILLOT, 1995.

Page 12: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  12  

Embora não caiba no espaço desse artigo explorar o caráter prismático do vodu no Haiti

proponho o imaginarmos como fornecendo uma “estética” nos termos de Marylin

Strathern (1988), no sentido de que é através dele que algumas relações entre coisas,

pessoas e espíritos “aparecem” (STRATHERN, 2006:432).

Em The gender of the gift a autora afirmará que na Melanésia “as idéias sobre

gênero proporcionam a convenção estética da qual se faz com que as coisas apareçam”,

isto é, o gênero “dá forma às relações” (idem). A idéia é a de que as coisas e as pessoas

precisam aparecer umas para as outras de uma certa maneira, nesse caso através do

idioma do gênero, para que o fluxo de relações sociais, que é a base da socialidade

melanésia, não cesse de ocorrer. Assim, estética é aqui menos um conceito relacionado à

uma percepção interior do mundo exterior, que uma noção que dá conta da forma pela

qual se dão as relações sociais.

Ainda que a noção seja usada por Strathern no contexto de uma teoria etnográfica

melanésia e não se trata aqui de realizar uma importação artificial, a estética, tal qual

abordada por ela, serve como inspiração para pensarmos essas materialidades outras, no

caso deste trabalho aquela proposta pelo vodu haitiano. Isso porque a antropóloga faz

uma torção conceitual interessante ao tomar contato com o conhecimento melanésio16.

Ao trazer o conceito de estética para explicitar o aparecimento de pessoas e coisas nessa

região, ela nos ensina que as relações com a forma podem se dar de uma outra maneira

que não aquela pressuposta pelo mundo da arte ocidental, a saber através das oposições

natureza/cultura, indivíduo/sociedade, interior/exterior, espírito/corpo, dentre outras.

É, então, nesse sentido que o conhecimento vodu parece fornecer uma outra

dimensão do conceito de estética. Nem ocidental nem melanésia, a estética vodu, que é

uma transformação da estética de matriz africana, parece relacionar pessoas e coisas de

uma outra maneira. Uma breve análise dos vèvès, desenhos dos loa, nos ajuda a refletir

sobre isso.

Os vèvès e a estética da possessão                                                                                                                16 Nas palavras de Strathern: “a expectativa aqui é por algo mais compreensivo do que simplesmente demonstrar a inaplicabilidade deste ou daquele conceito ocidental específico. É importante mostrar que a inaplicabilidade não é apenas resultado de tradução inadequada. (…) Quero formular um certo conjunto de idéias sobre a natureza da vida social na Melanésia opondo-as às idéias apresentadas como a ortodoxia ocidental”(2006: 39-40).

Page 13: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  13  

Os vèvès são comumente conhecidos como representações gráficas dos loa,

espíritos ou entidades do panteão vodu. Inumeráveis, os loa são divididos em alguns

representantes de destaque, correspondentes às divindades africanas ancestrais, e os

demais espíritos, que segundo Métraux, vão sendo inventados a cada dia

progressivamente (1958:71)17. A relação das divindades com os homens se dá de diversas

formas, como por exemplo através dos sonhos, como vimos no caso de Jean Joseph, mas

a mais comum delas é a possessão: através de um “cavalo”, isto é, de um corpo preparado

ritualmente para tal, os loa descem para se comunicar com os homens. O processo de

possessão se dá no houmfò, o santuário, sob orientação de um houngan (se for homem)

ou mambo (se for mulher), os sacerdotes vodu detentores do saber técnico e teórico

vinculado à religião. São nornalmente os hounsi, os iniciados, que participam de maneira

ativa da vida do santuário, que recebem em seus corpos os loa.

Além de decorados com bandeiras e imagens de santos católicos identificados aos

loa, os santuários recebem pouco antes do começo dos rituais de possessão os desenhos

vèvè no solo18. Feitos com farinha de trigo ou de milho, esses grafismos geométricos, que

são compostos em alguns casos também por imagens figurativas (como o coração, a faca,

a cobra e o barco), ocupam toda a extensão do que é chamado o péristyle, espaço

reservado ao ritual, e também o pé dos santuários dedicados a cada espírito/divindade

(como na figura 6). São desenhados normalmente de forma concêntrica em torno do

poteau-mitan, poste sagrado que marca o centro do espaço, e é sobre eles que serão

colocadas as oferendas em sacrifício aos loa correspondentes durante a cerimônia 19. Os

vèves depois de traçados no solo recebem ainda uma preparação especial pelos hougan:

uma vela é acesa sobre eles, são proferidas fórmulas rituais e depois há uma libação,

                                                                                                               17 Podemos citar alguns deles como Legba, Agoué, Damballah-wèdo, Aida-wèdo, Simbi, Ogou, Chango, Loco, Zaka e Erzuli-Freda. Para mais detalhes sobre cada divindade ver Métraux (1958), especialmente capítulo 3 e Rigaud (2015). 18 Sabe-se que o vodu haitiano é uma religião sincrética que possui referências das religiões africanas, principalmente da região do Benim, antigo reino do Daomé, e católicas. Cabe questionar também sua relação com o protestantismo. Não entraremos neste mérito aqui, mas para ver mais: Métraux (1957). 19 Segundo Métraux: “A única construção que permite rechonhecer um houmfò de fora é o ‘péristyle’, espécie de hangar largamente aberto onde as danças e cerimônias se desenvolvem salvas das intempéries. A cobertura, em sapé ou mais frequentemente em telha, é sustentada por postes alinhados: o do centro, o ‘poteau-mitan’, é o eixo das danças rituais e recebe durante as cerimônias diversas homenagens que atestam seu significado iminentemente sagrado. O lugar que ele ocupa no ritual se explica por sua função: ele é o ‘caminhos dos espíritos’”(1958: 66-67).

Page 14: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  14  

derrama-se um pouco de água sobre cada desenho como forma de saudação às

divindades. É preciso ressaltar que o caráter desses grafismos é efêmero: eles são

apagados durante cada ritual e redesenhados para um próximo. O próprio material de que

são feitos, a farinha, e o local onde se dispõem, o solo, apontam para essa dimensão da

contingência ritual com a qual estão ligados. Ainda que reproduzidos em outras

superfícies, como as bandeiras vodu, que lhes dão um caráter permanente, os vèves dentro

da cosmologia vodu são imagens transitórias.

Figura 7: Hougan faz traço de vèvè para ritual de possessão vodu

Figura 8: traço de vèvè em altar de Legba no péristyle de Mariani

Ao descrever os vèves e seu lugar no ritual de possessão, Métraux dirá que esses

desenhos “constituem a ‘marca’ do deus traçada no chão sob os objetos de culto, afim de

estabelecer uma associação estreita entre estes e a divindade” (1958: 147). São os

desenhos então que estabelecem a relação entre as divindades e os sacrifícios feitos à ela.

É nesse sentido que Métraux ressaltará o caráter mágico dos traços vèvè, capazes de

mediar a relação entre espítritos e homens: “pelo simples fato de os traçar, o sacerdote

exerce um constrangimento sobre os loa e lhes força a se manifestar, sua função é a de

chamar os loa” (idem: 148, grifos meus).

Diante disso, torna-se difícil imaginar os vèvès apenas como representações

simbólicas dos loa como comumente são abordados, seja nas exposições de arte, seja em

Page 15: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  15  

seu uso cotidiano, como o dado pelo desenho no folder turístico representado pela figura

3. Mais que isso, como vimos, eles fazem relações acontecerem e “aparecerem”, no

sentido dado por Strathern. É Alfred Gell (1998) quem também nos fornece um aparato

teórico interessante para pensar o lugar desses desenhos, já que o autor questiona

justamente os limites da abordagem semiótica para dar conta da produção de objetos e

imagens em diversas culturas. Seguindo sua sugestão, não se trata de ler esses desenhos

como se fossem textos, isto é, como se houvesse um significado por detrás deles ou fora

deles, mas de vê-los como “índices capazes de abduzir a agência social” (GELL, 1998:

15). Os índices, que são também as obras de arte na teoria de Gell, parecem ser espécies

de nexos num fluxo de relações causais, pontos que funcionam como capturadores, como

potencializadores da agência distribuida em uma “rede de intencionalidades”

característica do mundo social (1998, 2001, 2005). Pensados como “armadilhas”, os

índices materiais seriam capazes de fazer relações acontecerem em sua vizinhança; nas

palavras de Gell, “toda obra de arte que funciona como tal é uma armadilha, um ardil que

impede a passagem” (2001: 213). Nesse sentido, Gell amplia consideravelmente a noção

de obra de arte, de modo a entendê-la mais como uma posição a ser ocupada por

diferentes manifestações materiais capazes de movimentar a agência social, que por uma

essência estética determinada por um sistema exterior ao objeto/imagem.

Na análise que faz de padrões gráficos, no capítulo seis de Art and Agency, o

autor chamará a atenção justamente para a função apotropaica de certos padrões, que

teriam o poder de afastar demônios, capturando-os em seus labirintos de linhas e formas:

“aqui ‘padrão’ é associado com a idéia de uma jornada difícil e com obstáculos que

devem ser superados” (1998: 93). Podemos pensar os vèvès também nesse sentido, apesar

de serem padrões que buscam não afastar os demônios, mas capturar as divindades. A

forma pela qual são desenhados está diretamente ligada à essa função apotropaica dentro

do sistema vodu, eles são tramas que podem se repetir ao infinito. Como no caso da

figura 8 em que o padrão de Legba, constituído pelo círculo e seus arabescos é repetido

igualmente três vezes, o que nos leva a imaginar a possibiidade de uma série maior ou

menor. Como comenta Milo Rigaud, em seu clássico estudo de 1953, os vèvès são

essencialmente “diagramas cabalísticos”, que estão também relacionados às cores

reservadas à cada loa e aos potes e pratos preferidos por cada um deles, sendo que todos

Page 16: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  16  

esses artefatos são recursos que “atraem magneticamente” os espíritos (RIGAUD,

2015:169).

O desenho abaixo, retirado da etnografia de Métraux, mostra a representação de

sete traçados de vèvè em torno do poteau-mitan e ao analisá-los o antropólogo chamará a

atenção justamente para a presença ao final de cada sequencia ou em torno dos motivos

principais (a espada de Ogou, o barco de Agoué, a serpente de Damballah, o coração de

Erzuli, etc.) de formas estelares (asteriscos e cruzes). Segundo ele, essas pequenas formas

são chamadas pelos praticantes do vodu de “pontos de captura” ou “pontos de

embelezamento”20.

Figura 9: Vèves coletados por Métraux, na sequência: 1)emblemas de tambores, 2) Agoué-taroyo, 3) Ogou-badagri, 4)

desenhos em torno do poteau-mitan, 5) Erzuli, 6) Damballah-wedo e 7) emblemas de tambores.

                                                                                                               20 Em francês no original “points d’arrestation” ou “points d’embellissement” (1958:148). A palavra “arrestation” pode ser traduzida literalmente por “prender” em português.

Page 17: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  17  

A ambiguidade da denominação dessas formas estelares nos faz retornar ao

argumento de Gell e à discussão que fizemos até então: captura e beleza se não

significam aqui a mesma coisa, têm pelo menos uma oscilação tradutória interessante. Se

os vèvès são obras de arte no sentido dado por Gell, eles o são em função de seu poder de

abduzir a agência das divindades em relação aos homens, isto é, de fazê-los cair na

armadilha, de capturá-los. Nesse sentido a possessão ritual também não deve ser lida

como uma representação simbólica da presença da divindade, mas como uma forma de

aparecimento da entidade. O corpo que veste a divindade não é nem o de o homem e nem

o de um loa, é um artefato que faz a ponte, que comunica esses universos. Os vèvès,

então, existem como parte do processo de possessão, eles atraem para o péristyle as

divindades que serão incorporadas pelos hounsi. Nesse sentido, a própria possessão

poderia ser pensada como uma “estética” no sentido de Strathern, uma forma necessária

de aparecimento das relações entre pessoas, coisas e espíritos dentro da cosmologia vodu.

Arte e religião

Gostaria de retomar o caso com a qual se inicia o texto, o do artista haitiano Jean

Joseph Jean-Baptiste, quando este comenta sobre seu trabalho com as bandeiras vodu,

para fechar, ou mais precisamente, abrir o debate traçado aqui. Não se trata de dizer que

Jean Joseph não seja um artista e que suas bandeiras só possam fazer sentido dentro de

um santuário vodu; tampouco não parece ser razoável tomar seus desenhos apenas como

expressões artísticas nos termos do sistema de arte ocidental. Uma breve e simplificada

análise dos vèvès haitianos nos mostrou que mais que representações simbólicas esses

desenhos possuem um lugar ativo no sistema de conhecimento e prática vodu, tendo lugar

de destaque nos rituais de possessão.

Dizer que as bandeiras de Jean Joseph são ou não são arte ou são ou não são

religião não parece ser o caminho mais interessante para abordar a vasta produção de

objetos e imagens no Haiti. Elas são arte e religião tanto quanto não o são. Confrontar

uma produção material diferente requer lidar com as minúciais que envolvem um

conhecimento baseado em outros pressupostos e principalmente em outras relações

sociais que não necessariamente as de matriz ocidental. Para isso é necessário, como

Page 18: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  18  

comenta Strathern, não apenas uma etnografia das práticas de conhecimento alheias, mas

também uma “etnografia das práticas ocidentais de conhecimento” (2006:21). É diante

deste tipo de desafio que a produção de exposições como as que vimos acima ainda tem

que se haver, trata-se de pensar nos limites de nosso arcabouço conceitual para lidar com

materialidades que ocupam outras posições; com uma estética que, como comenta Gell, é

mais sobre eficácia que sobre beleza (1998:94).

Não se trata, assim, de dizer aqui que a arte produzida no Haiti não possa ocupar

as galerias parisienses ou que esteja necessariamente atrelada à vida cotidiana de tal

maneira que fora de seu contexto de origem ela não faça mais sentido, mas apenas de

chamar a atenção para a complexidade envolvida no processo de produção de coisas e

pessoas nessa região e especialmente dentro do mundo vodu. O exemplo dos vèvès é

interessante justamente porque ele é um artefato que se proliferou e se performou em

direções diversas, no e para além do vodu (como vimos no caso da imagem 3). Não se

trata tampouco de opor o uso “tradicional” dos vèvès de seus aparecimentos

contemporâneos, criando assim uma oposição entre “original” e “artificial”, mas de

entender os trânsitos entre essas formas e as potencialidades que elas guardam entre si.

Trata-se, em suma, de pensar em que tipo de política das formas queremos fazer.

Referências:

CÉLIUS, Carlo. “Dynamiques de création en Haiti”. In: CUZIN, Régine at alii. Haiti: deux siècles de création artistique. Paris: Réunion des musées nationaux – Grand Palais, 2015. CHARLIER-DOUSSET, R. “Anthropologie, politique et engagement social: l’expérience du Bureau d’ethnologie d’Haïti”, GRADHIVA, n. 1, 2005, pp. 109-125. CLIFFORD, James. The predicament of culture. Boston: Harvard University Press, 1988. CUZIN, Régine. “Avant-propos”. In: CUZIN, Régine at alii. Haiti: deux siècles de création artistique. Paris: Réunion des musées nationaux – Grand Palais, 2015a. _____________. “Le baiser d’Hypolite ou re-voir Haiti”. In: CUZIN, Régine at alii. Haiti: deux siècles de création artistique. Paris: Réunion des musées nationaux – Grand Palais, 2015b. FREUD, Sigmund. O Inquietante. Obras Completas volume 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.  GELL, Alfred. Art and Agency: an anthropological theory. New York: Oxford University Press, 1998.

Page 19: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  19  

____________. “Vogel’s net: traps as artworks and artworks as traps”. In: GELL, Alfred. The art of anthropology (essays and diagrams). London: The Athlone Press, 2001. ____________. “A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia”, Concinnitas, vol. 1, n. 8, pp. 41-63, 2005. INGOLD, Tim. (org.). Key Debates in Anthropology. London: Routledge, 1994. MAGLOIRE, G. & YELVINGTON, K. “Haiti and the anthropological imagination”, GRADHIVA, n. 1, 2005, pp. 127-152. MÉTRAUX, Alfred. “Croyances et pratiques magiques dans la la Valée de Marbial, Haiti”, Journal de la Société des Américanistes, Tome 42, 1953. pp. 135-198. _________________. “Le Vodou et le christianisme”, Les Temps Modernes, Paris, n. 136, juin, pp.1848-1883, 1957. _________________. Le vaudou haitien. Paris: Gallimard, 1958. _________________. Haiti. Pictures by Pierre Verger and Alfred Métraux. New York: Universe Books, 1960. MINTZ, Sidney & TROUILLOT, Michel-Rolph. “The social history of the haitian vodou”. In: COSENTINO, Donald J. (ed.). Sacred Arts of Haitian Vodou. Los Angeles: UCLA Museum of Social History, 1995. RIGAUD, Milo. La tradition voudoo et le voudoo haïtien (son temple, ses mystère, sa magie). Port-au-Prince: Éditions Fardin, 2015.  STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Malanésia. Campinas: Editora Unicamp, 2006. TROUILLOT, Michel-Rolph. “The odd and the ordinary: Haiti, the Caribbean, and the world”, Cimarro’n, v. 2, n. 3, 1990, pp. 3-12. _______________________. “The Caribbean Region: an open frontier in anthropological theory”, Annual Review of Anthropology, n. 21, pp.19-42, 1992.

Acervos visitados: Centre d’Art: https://www.facebook.com/Le-Centre-dArt-1493019994304870/ Exposições:

Histoires de voir: show and tell. Paris, Fondation Cartier, 15 Mai 2012 – 21 October 2012. (http://fondation.cartier.com/#/en/art-contemporain/26/exhibitions/294/all-the-exhibitions/248/histoires-de-voir-show-and-tell/).

Page 20: Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as …...Entre arte e religião: os vèvès haitianos e as relações entre pessoas, coisas e espíritos1 Júlia Vilaça Goyatá Universidade

  20  

Haiti: deux siècles de création artistique. Paris, Grand Palais, Galeries Nationales, 19 novembre 2014 - 15 février 2015. (http://www.grandpalais.fr/fr/presse/haiti-deux-siecles-de-creation-artistique). Haiti Vida e Arte. São Paulo, Galeria Olido, 25 de maio de 2015 a 21 de junho de 2015. (http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/noticias/?p=18009).

Fontes das imagens:

Figura 1: http://www.galerielakaye.com/art_haiti_jnjoseph2.html, acesso em 10/07/2015.

Figura 2: http://fondation.cartier.com/#/en/art-contemporain/26/exhibitions/294/all-the-

exhibitions/248/histoires-de-voir-show-and-tell/, acesso em 10/07/2015.

Figura 3: http://www.haititourisme.gouv.ht/wp-

content/uploads/2013/02/GuideTouristique2012Vol1LowRes.pdf, acesso em 10/06/2016.

Figura 4: foto da autora. Acervo do Centre d’Art, caixa Artistes, pasta Hector Hyppolite.

Figura 5: Catálogo da exposição Haiti Vida e Arte, Secretaria de Promoção da Igualdade Racial

de São Paulo, 2015, sem paginação.

Figura 6: foto da autora, pérystile de Mariani, departamento Oeste, Haiti, 28/02/2016.

Figura 7: CUZIN, Régine at alii. Haiti: deux siècles de création artistique. Paris: Réunion des

musées nationaux – Grand Palais, 2015, p. 31.

Figura 8: foto da autora, pérystile de Mariani, departamento Oeste, Haiti, 28/02/2016.

Figura 9: MÉTRAUX, Alfred. Le vaudou haitien. Paris: Gallimard, 1958, p. 146.