Entrevista Com Eizirik

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Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 11-16, jun. 2006. 11 ENTREVISTA COM CLÁUDIO EIZIRIK * — PSICANÁLISE: INVESTIGAÇÃO E PRODUÇÃO TEÓRICA No dia 8 de março de 2006, por ocasião da visita de Cláudio Eizirik, atual presidente da IPA, a São Paulo para abertura do ano letivo do Instituto de Psicanálise da SBPSP, o Corpo Edi- torial de Jornal de Psicanálise teve a honra de recebê-lo para uma entrevista sobre o tema: “Psicanálise: investigação e produção teórica”. Jornal: Quais as principais metas e obje- tivos de sua gestão como presidente da IPA? Quais são as prioridades de sua gestão, que dificuldades tem encontrado e qual a importância para a psicanálise na América Latina e no Brasil de um presidente brasileiro? Cláudio Eizirik: Após consultas com colegas de vários países e um exame cuidadoso dos principais desafios que a psicanálise e a IPA enfrentam atualmente, estabelecemos para esta gestão três prioridades principais: estimular a atividade clínica psicanalítica e sua discussão, formulação e teorização; aumentar o contato da IPA com os membros, sociedades e regiões, e os intercâmbios entre os mesmos; e incrementar a presença e a interface da psicanálise com a cultura, em várias dimensões. Em torno destes três objetivos prioritários foi formulado um plano estratégico, aprovado pelo Board (o Conselho da IPA, formado pelos vinte e um representantes das três regiões, a tesoureira, a secretária geral e o presidente) em agosto de 2005. A etapa seguin- te consistiu no estabelecimento, reformulação ou * Analista Didata. Membro Efetivo da SPPA.

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ENTREVISTA COM CLÁUDIO EIZIRIK*

— PSICANÁLISE: INVESTIGAÇÃO E PRODUÇÃO TEÓRICA

No dia 8 de março de 2006, por ocasião davisita de Cláudio Eizirik, atual presidente da IPA,a São Paulo para abertura do ano letivo doInstituto de Psicanálise da SBPSP, o Corpo Edi-torial de Jornal de Psicanálise teve a honra derecebê-lo para uma entrevista sobre o tema:“Psicanálise: investigação e produção teórica”.

Jornal: Quais as principais metas e obje-tivos de sua gestão como presidente da IPA?Quais são as prioridades de sua gestão, quedificuldades tem encontrado e qual a importânciapara a psicanálise na América Latina e no Brasilde um presidente brasileiro?

Cláudio Eizirik: Após consultas comcolegas de vários países e um exame cuidadosodos principais desafios que a psicanálise e a IPAenfrentam atualmente, estabelecemos para estagestão três prioridades principais: estimular aatividade clínica psicanalítica e sua discussão,formulação e teorização; aumentar o contato daIPA com os membros, sociedades e regiões, e osintercâmbios entre os mesmos; e incrementar apresença e a interface da psicanálise com acultura, em várias dimensões. Em torno destestrês objetivos prioritários foi formulado um planoestratégico, aprovado pelo Board (o Conselho daIPA, formado pelos vinte e um representantesdas três regiões, a tesoureira, a secretária geral eo presidente) em agosto de 2005. A etapa seguin-te consistiu no estabelecimento, reformulação ou

* Analista Didata. Membro Efetivo daSPPA.

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fechamento dos comitês que devem de-senvolver as atividades científicas, admi-nistrativas e operacionais da IPA, e naidentificação de colegas com perfil paratais tarefas. Foi um processo algo traba-lhoso, pois envolve quarenta comitês ecerca de quatrocentas pessoas. Em algu-mas das novas idéias introduzidas houvealguma resistência, mas em princípio pre-dominou até o momento um acolhimentopositivo.

Quanto a haver um presidente bra-sileiro, alguns dados quantitativos mos-tram que esta circunstância já provocoualgumas mudanças na IPA, pois temosagora um número sem precedentes decoordenadores e membros de comitêslatino-americanos. Além disto, acabamosde assinar com a FEPAL (FederaciónPsicoanalítica de América Latina) a cria-ção do Instituto Latino-Americano dePsicanálise, que visa desenvolvê-la empaíses do continente onde a IPA não estápresente.

Além disto, temos uma forma par-ticular de pensar e praticar a psicanálise,e de desenvolver um convívio institucio-nal mais intenso e participativo, incluindomembros e candidatos. Esta nossa ma-neira de ser psicanalistas está mais pre-sente dentro da IPA e penso que contribuipara um melhor conhecimento de nossarealidade. Sem dúvida, há um longo cami-nho a percorrer, incluindo publicações,traduções e intercâmbios clínicos – algoque estamos iniciando através de umnovo comitê, o CAPSA (Comitê de Prá-tica Analítica e Atividades Científicas),

do Comitê de Publicações e do estímulo amaior participação latino-americana noscongressos. O do Rio foi um sucesso emtermos científicos e de participação e o deBerlim está sendo organizado com o mes-mo objetivo. Observo que há um movi-mento importante de deslocamento doeixo usual de comunicação. Ou seja, an-tes costumávamos importar conhecimen-to analítico, através de convites a autoresilustres e estudos de seus trabalhos. Nosúltimos anos, observo o crescimento deuma tendência mais colaborativa e com-partilhada, por exemplo, encontros entreduas sociedades de diferentes continen-tes estão aumentando, e mais analistaslatino-americanos são convidados paraexpor seu trabalho na Europa e na Amé-rica do Norte. Nosso propósito é contri-buir para aumentar esse deslocamento doeixo tradicional.

Em suma, ainda é cedo para saberem que a presença de um presidentebrasileiro pode de fato constituir um fatorde mudança. Assim, sugiro que observe-mos o que vai acontecer nos próximosanos e depois avaliar o que aconteceuneste período.

Jornal: Apesar de haver produ-ção teórica brasileira consistente, há delapouca repercussão internacional. Poroutro lado o brasileiro lê e valoriza aprodução estrangeira, principalmente ainglesa e a francesa. O senhor concordacom essa nossa observação? Como ex-plicaria esse fenômeno? Em sua opinião,como melhorar a divulgação de nossa

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produção internacionalmente? A IPA te-ria condições de favorecer um melhorintercâmbio?

Cláudio Eizirik: Concordo comesta observação, que de algum modo jámencionei. Como explicá-la? Há váriaspossíveis razões, como uma certa tendên-cia ao deslumbramento com a metrópole,herança dos tempos coloniais. A isto seassocia um certo sentimento de inferiori-dade e de baixa auto-estima, o que dificul-ta as publicações. (Aliás, isto me lembrauma expressão forte que o Nélson Rodri-gues usava em 1958, quando o Brasilvenceu sua primeira Copa do Mundo —tínhamos o que ele chamava de “comple-xo de vira-latas”.) Também existe umadificuldade em aceitar o sistema de revi-são pelos pares, hoje padrão internacionalem qualquer periódico de qualidade. Tam-bém é inegável que as tradições culturaispsicanalíticas européias são muito consis-tentes, por sua história e produção, edevem ser respeitadas. Ao mesmo tempohá um grande desconhecimento recípro-co na América Latina, embora mais re-centemente estejamos aumentando o in-tercâmbio na nossa área geográfica. Estaé uma das áreas que considero prioritáriaspara a IPA.

Assim, por exemplo, foi lançado noCongresso do Rio um livro organizado porSérgio Lewkowicz e Silvia Flechner so-bre os desenvolvimentos dos principaisconceitos psicanalíticos latino-america-nos, cada um deles comentados por umcolega europeu e norte-americano, a par-

tir dos textos aqui produzidos. Foi lançadosimultaneamente em inglês e espanholpelo Comitê de Publicações da IPA. Essecomitê está dando continuidade a umtrabalho de publicações que inclui, de formaeqüitativa, as três regiões geográficas.

Participar dos congressos, comotem ocorrido, também contribui. Mas tal-vez tenhamos que desenvolver esta ques-tão em dois movimentos; um interno eoutro operacional. O interno é um traba-lho de mudança de mentalidade, de fanta-sia básica, que nos permita reconhecerum fato objetivo: a psicanálise produzidana América Latina é de tão alto nívelcomo o de qualquer região, e a nossaacuidade clínica pode ser igual ou melhordo que a de qualquer outro lugar. Ooperacional inclui essas medidas quemencionei e a realização de mais inter-câmbios clínicos e teóricos com socieda-des de outras regiões.

Jornal: Também observamos pro-dução teórica psicanalítica importante forados quadros da IPA, isto tanto no Brasilcomo fora — basta observar as produ-ções ligadas ao movimento Estados Ge-rais, a grupos lacanianos e as ligadas àuniversidade como as teses de doutora-mento e as dissertações de mestrado.Como a IPA vê essas questões? Reco-nhece, deixa de lado, não leva em conta...

Cláudio Eizirik: Seria não só umapostura arrogante, como até uma levian-dade epistemológica pretender que sódentro da IPA se produz trabalho teórico

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e clínico de qualidade. Cada vez maisexiste diálogo, intercâmbio e trocas frutí-feras com analistas de outras filiações.Em nossas diferentes publicações, comoobservo no Jornal de Psicanálise, tra-balhos de colegas não pertencentes àIPA são publicados e nos congressos daIPA tem havido painéis com analistaslacanianos e junguianos. Assim, esta éuma fronteira que necessita ser mantida eexpandida, de acordo com as peculiarida-des de cada país ou região.

Na universidade há uma produçãoteórica e também de estudos empíricosmuito importantes que resulta em publica-ções internacionais e nacionais. OInternational Journal acolhe trabalhossem pedir atestado de filiação. Em suma,a IPA reconhece essa presença impor-tante e age no sentido de promover trocasmutuamente benéficas.

Jornal: Sabe-se que a IPA tem sepreocupado com a questão da pesquisaem psicanálise, tendo inclusive defendidoa pesquisa empírica utilizando tratamentopróprio das ciências. Como o senhor con-sidera esta questão se aceitarmos o queFreud propõe, ou seja: que a psicanálise é,ao mesmo tempo, um método de investi-gação, um método de cura e de produçãode teoria? É legítimo o uso do métodoexperimental para produção de conheci-mento psicanalítico? O que ganhamos e oque perdemos com isso?

Cláudio Eizirik: Esta é de fatouma questão extremamente relevante,

porque implica não só pensarmos emtermos de modelos de pesquisa psicana-lítica, como talvez mais apropriadamenteexaminar o que entendemos por métodopsicanalítico, e de que maneira ele podeser desenvolvido. Freud acertadamentedescreveu o método psicanalítico comoaquele em que investigação e tratamentocaminham juntos. Assim, seguindo essaidéia, podemos pensar que a única verda-deira pesquisa psicanalítica é a que ocor-re na sessão analítica. De fato, pratica-mente toda a nossa teoria se desenvolvea partir dos insights que foram sendoobtidos na clínica analítica. Essa visão édefendida muito claramente por AndréGreen, por exemplo. O outro lado damoeda, cujos defensores incluemWallerstein e Kernberg, por exemplo,sustenta que é possível fazer pesquisapsicanalítica usando o método científicoexperimental e que a psicanálise é umaciência e como tal deve submeter-se àssuas regras gerais. Desta visão decorreua grande ênfase da IPA na pesquisa empí-rica, com um orçamento elevado para fi-nanciar este tipo de estudo, em anos ante-riores. Já na gestão de Wallerstein foiestimulada também a pesquisa conceitual.Na atual, estamos incrementando aindamais esta última ênfase, embora devamosreconhecer aqui que as propostas de Greene Wallerstein não são necessariamenteexcludentes. Pensando teoricamente, am-bas são, sim, possivelmente incompatíveis,pois são duas visões de psicanálise.

Pensando pragmaticamente, e le-vando em conta nossas múltiplas necessi-

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dades e níveis de interface com a univer-sidade, a psiquiatria, a psicologia, as ciên-cias humanas – minha posição é quenecessitamos de vários tipos de pesquisapsicanalítica disponíveis. Com a concei-tual cuidaremos do nosso desenvolvimen-to teórico; com a clínica melhoramosnossa acuidade terapêutica e podemoscompartilhar mais com nossos colegas; ecom a empírica realizaremos estudos deefetividade terapêutica e outros que nosajudarão no diálogo com os sistemas desaúde e as disciplinas científicas. Ou seja,podemos perder quanto à especificidade,mas ganhamos quanto à interlocução comos outros saberes e ainda exercemos anecessária liberdade de permitir que nos-sos membros e candidatos sigam os cami-nhos e a busca de conhecimento que lhespareçam mais de acordo com suas incli-nações.

Jornal: Um dado também da atu-alidade é a queda da procura por forma-ção em psicanálise dentro dos institutosdas sociedades ligadas à IPA e isto nomundo inteiro. Observamos isso em SãoPaulo e sabemos que outros institutosbrasileiros também passam por esse pro-blema. Em sua opinião, a que devemosesse quadro e que medidas a IPA preten-de tomar para minorá-lo?

Cláudio Eizirik: De fato, este éum fenômeno observado em vários paí-ses, em graus variáveis. Vários fatorespodem estar contribuindo para isto: aoferta de outras formações menos rigoro-

sas do que a nossa, a atração de métodosde tratamento mais rápidos e exigindomenor imersão emocional; as dificulda-des socioeconômicas, que podem tornarmais difícil aceitar um enquadre analítico;e, como sempre houve, as resistências aenfrentar o encontro com a própria subje-tividade e o exame dos significados econflitos que produzem sofrimento psí-quico. Muitas vezes fico na dúvida quantoà ordem desses fatores, mas penso que aênfase numa suposta crise da psicanálise— na qual não acredito, pois nossa disci-plina é sólida e de fato é uma obra emconstrução, como propus em meu discur-so de posse — e um certo tom alarmistaou catastrófico podem encobrir essas re-sistências que existem dentro dos pacien-tes e dos analistas. É muito difícil manter-se analista e trabalhar dentro do métodoanalítico, com o que nos exige de trabalhopsíquico com a contratransferência e comas várias dimensões do campo analítico.

O que a IPA tem feito? Desde agestão de Kernberg, várias coisas, comoas conferências inter-regionais, por exem-plo. Na de Widlöcher, foi iniciado o pro-grama DPPT, para estimular e financiarprojetos das sociedades que ampliem suainserção social e possam estimular futu-ros pacientes a procurar análise e profis-sionais a buscar formação analítica. Naatual gestão, o programa CAPSA, deintercâmbio da atividade clínica entre astrês regiões, e a ação de vários comitêscomo de crianças e adolescentes,COWAP, informação pública, psicanáli-se e cultura, assuntos profissionais. Uma

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área vital é a do trabalho conjunto com oscandidatos. Temos um comitê de interfa-ce IPA-IPSO, um sistema de bolsas paracandidatos, estamos procurando incluirmais os candidatos nas atividades da IPA,como na organização dos congressos (decujo comitê de programa a IPSO parti-cipa) e nos comitês, e outras medidas.

Em suma, penso que o futuro denossa disciplina será decidido dentro decada sala de análise, e de nossa disposi-ção para trabalhar analiticamente comnossos pacientes. A IPA, assim como associedades, devem estar e estão compro-metidas com a abertura e o desenvolvi-mento de espaços de troca em que ométodo analítico seja estudado, desenvol-vido e compartilhado.

Cláudio Laks EizirikR. Marquês do Pombal, 783/307

90540-001 Porto Alegre, RSFone/Fax: (51) 3224-4364

E-mail: [email protected]