Entrevista com Mário Chamie

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CULT - março/2000 4 entrevista João Mussolin M ` R I O CHAMIE

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Entrevista com Mário Chamie realizada pelos poetas Luís Rodolfo de Souza Dantas e Fabio Weintraub (Revista Cult/Março de 2000).

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CULT - março/20004

e n t r e v i s t a

João

Mus

solin

M Á R I OC H A M I E

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Há aproximadamente quarenta anos do

lançamento de Lavra lavra � marco de uma

vanguarda que veio, segundo seu idealizador, para

espanar o mofo das letras nacionais contrapondo-

se ao formalismo introflexo, auto-incestuoso, das

�vanguardas velhas� �, o poeta e ensaísta Mário

Chamie retoma seu percurso criativo e desenha

o arco de influências exercido pela poética práxis

desde o início dos anos 60. Influências que não se

limitaram à literatura, estendendo-se também à

música, ao cinema, ao teatro, à dança, às artes

plásticas, e cujos desdobramentos talvez ainda

não tenham sido devidamente rastreados pela

crítica contemporânea. Conferencista convidado

pelas universidades de Nova York, Columbia,

Harvard, Princeton, Wisconsin e Califórnia;

interlocutor de poetas e intelectuais como Oswald

de Andrade, Murilo Mendes, Roman Jakobson e

Umberto Eco; ex-secretário municipal de Cultura

e responsável pelo projeto do Centro Cultural São

Paulo, Chamie fala de seus livros, da recepção a

suas propostas estéticas, das relações possíveis

entre psicanálise e poesia e do espaço reservado

à utopia em tempos de fragmentação e descrédito

quanto a projetos coletivos de transformação

social. Entre uma agulhada e outra, enquanto cofia

seu basto bigode, este �sírio helenizado�, leitor

atilado de Menipo e Luciano e adepto entusiasta

da sátira menipéia, segue nos convidando

a enfrentar o texto não como herdeiros

silenciosos, mas como partícipes, elementos-chave

na conversão do poema em hemorragia de

sentido, excesso de significação sobre os

significados explícitos, campo de pensamento.

Fabio Weintraub

Rodolfo Dantas

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CULT Lavra Lavra está prestes a completar quarenta anos.Visto assim à distância, como você avalia o impacto desselivro (e do manifesto didático do poema-práxis) sobre aliteratura nacional?

Mário Chamie Em 2002, Lavra lavra completaquarenta anos, a contar da data de seu lançamento em livro(janeiro de 1962). Mas, na verdade, ele já fez quarentaanos, porque um terço do livro foi publicado em 1959, narevista Narceja, de prestígio intelectual na década de 50.Além disso, no começo de 1960, os dois terços restantes,em sua quase totalidade, compareceram na página�Invenção�, do Correio Paulistano, quando a página aindaera aberta a diferentes linhas de produção poética. Lavralavra surgiu trazendo uma concepção inovadora da palavraenquanto matéria-prima do poema e de uma possível novaescrita. Poetas e críticos importantes (a exemplo de MuriloMendes, José Guilherme Merquior e Umberto Eco)viram no livro o nascimento de uma vanguarda nova, ouseja, de uma vanguarda que não transformasse o criadorem refém de teoria ou sistema retórico pré-constituído. Oconcretismo era o modelo dominante dessa teoria. Nopoema concreto, a palavra, considerada coisa, reificava opoema, tornando-o um objeto neutro e estetizante. Empráxis, a palavra, entendida como mediadora de significadospossíveis, fez do poema um espaço aberto às contradiçõesda realidade nele referida. Lidando com as contradiçõeshistóricas e existenciais do homem do campo brasileiro,Lavra lavra instaurou a prática de uma escrita transgressoraque, desconstruindo sistemas retóricos estabelecidos, levouartistas e poetas a conceber soluções próprias e originaisde linguagem. Por isso o arco de influência de Lavra lavra(�as geórgicas da era industrial�, na expressão de MuriloMendes) foi muito abrangente.

CULT Mas qual o saldo específico, quais os resíduosdeixados por essa experiência na cena lírica contem-porânea? E nas artes em geral (música, cinema, teatro etc.)?

M.C. Um saldo expressivo. Lavra lavra e sua práxisexerceram influência dupla, atingindo autores e movi-mentos em atividade, além de gerações emergentes. Em

relação aos primeiros, quem sofreu de imediato o impactodos poemas de Lavra lavra, foram os poetas concretistas.Num plano geral, em face da importância dada por práxisao projeto semântico, em oposição ao mecanicismo for-malista do poema concreto, os concretistas se viram for-çados a tentar a saída do �pulo da onça�, através dochamado �salto conteudístico-semântico-participante�. Aevidência desse impacto se faz presente no livro Servidão depassagem, de Haroldo de Campos. Os minúsculos poemasde Servidão de passagem são fragmentos (em alguns casosliterais) pinçados dos poemas de Lavra Lavra, em particu-lar os publicados na página �Invenção�. Demonstrei issona revista Práxis, n. 1. Hoje, a poesia de Haroldo deCampos tornou-se a própria heráldica do mofo.... Asinstigações da vanguarda nova também repercutiram emoutras frentes. Mesmo que essa repercussão se apresentecamuflada, ela não deixa de ser palpável. Osman Lins,certa vez, me fez este lembrete bem-humorado: �O projetopráxis, nos anos 60, passou a ser um anagrama inscritona produção cultural do País; esse anagrama chega a usaro som óbvio de Lavra lavra e de sua estrutura semântica nomeu Avalovara�. De fato, �lavra� está no título e naarquitetura do romance de Osman Lins. Murilo Mendesacolheu esse som óbvio em seu livro Convergência, expondo-o até em homenagens citadas nas peças �Murilograma aWebern� (�o som da práxis/ a práxis do som�) e�Murilograma a C.D.A.�: E agora Josés?/ Além de Cummings& Pound/ Além de Sousândrade/ Além de �Noigandres�/ Além de�Terceira Feira�/ Além de Poesia-Práxis/ Além do texto �Isso éaquilo�/ Sereis teleguiados? A repercussão de práxis perpassao Cinema Novo brasileiro e configura-se em Terra em transe,de Glauber Rocha, cuja estética, segundo Glauber, é feitade �conteúdos práxis explosivos�. Comparece em duasobras primas da cineasta Ana Carolina, os filmes Indústriae Lavrador (baseado em meu poema �Lavra dor�). Perpassanossa melhor música popular, em que o anagrama inscritotorna-se trancrição visível. Aldir Blanc sintetizou essainscrição no seu �Minifesto para Mário Chamie� (mini-festo, com i mesmo), que tem por referência o meu livroObjeto selvagem. Chico Buarque consagrou o princípio da

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co-autoria práxis primorosamente em �Construção�. Domesmo modo, práxis marca presença nos momentos detransformação de nossas artes cênicas. A montagem de Orei da vela, realizada por Zé Celso com Fernando Peixoto, éa transposição de nossa releitura pansexualista de Oswaldde Andrade. Escreve Fernando Peixoto (Dionysos, n. 26):�O espetáculo foi dedicado a Glauber Rocha, depois queassistimos a Terra em transe e estudamos as teorias dopansexualismo oswaldiano, apoiados fundamentalmente emanálises de Mário Chamie�. Fernando Peixoto acrescentaque essa fusão práxis Terra em transe/O rei da vela �deu alentocriativo novo e surpreendente às artes plásticas e à musicapopular, influenciando o grupo baiano de Caetano e Gil eo compositor Edu Lobo�. Essa nossa transgressão criativamudou ainda os rumos da dança e das artes gráficasbrasileiras, com os históricos e clássicos espetáculos deMarilena Ansaldi e Emilie Chamie como Isso e aquilo e Pordentro/Por fora, todos com poemas meus. O arco de influêncianão-proselitista e radial da vanguarda nova alcançou atelevisão com o programa Dimensão 2 (TV Cultura), queprovocou mudanças no trato da imagem televisiva entrenós. O reconhecimento da influência de práxis traz aassinatura de historiadores, sociólogos da cultura e críticosqualificados. Isso, apesar de sonegações corporativas querondam o nosso trabalho. Um trabalho que pavimentou,principalmente, o caminho do discurso livre e articuladoda poesia brasileira, dos anos 60 aos nossos dias. Oanagrama inscrito de que me falava Osman Lins pareceter entrado na corrente sanguínea do nosso corpus literário.Antonio Candido teria resumido essa inscrição ao escrever:�Poesia-Práxis, movimento que recuperou o verso demaneira renovada e intensificou a referência às circuns-tâncias do mundo�.

CULT Você falou nessa influência radial, extraliterária,mas citou apenas autores e obras das décadas de 60 e 70.E hoje? Quais os vestígios deixados por práxis na produçãoartística dos anos 80 e 90?

M.C. Aqui dou a palavra ao ensaísta Ivan Teixeira (RevistaUSP, n. 36): �Não seria mau reler Mário Chamie, sem

Dois poetas místicos

William Blakepôs o inferno

nas mãos de Deuse jurou conquistar

o paraíso

O reverendo Hopkinspôs o paraíso

nas mãos do homeme jurou esconjurar

o infernoa seu juízo.

Blake salvou-sepelo pecado

do amor vencido

Hopkins perdeu-seinteiro no inferno

pelo bendito suplíciode nunca ter perdidoseu maldito paraíso

Iguais na diferença

O cético diziaque narciso

é um enganode auto-estima.

O cínico respondiaque a auto-estima

é uma tramado engano

contra si mesma.

O lúdico decidiana porfia da polêmicaque tanto o cético

quanto o cínicosão iguais

nos seus dilemas:

� um espelhano outro

o que nenhumdos dois enfrenta:

a doença de narcisosempre igual na diferença.

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preconceito nem partidarismo. A releitura de Chamiepoderia começar por Lavra lavra, livro convincente,sobretudo se se levar em conta o momento em que foiconcebido, agitado pelo desejo de supremacia de váriasvozes. Não se pode esquecer que, quando a PoesiaConcreta fez crer que o verso estava morto, Mário Chamieempenhou-se na manutenção dele, praticando-o de mododenso e rigoroso o que, paradoxalmente, tem sido o idealde quase todos os poetas nas duas últimas décadas�.Complementa Ivan, falando dos �poetas que, com soluçõesnão-retrógadas�, podem ser nossos tributários. Entre oscitados por Ivan, lembro-me dos nomes de NelsonAscher, Carlito Azevedo, Frederico Barbosa e ArnaldoAntunes. Eu abriria o leque para bom número de poetasmarginais dos anos 70, outros dos anos 80 e 90, em que olastro residual de práxis é devastador. A sensação que ficadesses poetas é a de que ainda não conseguiram vencercerto catatonismo epigônico e livresco. Dão a impressãode fazer muita força para disfarçar o indisfarçável. Oexemplo claro disso está numa das cartas de PauloLeminski a certo destinatário com vocação para clone decópia rasurada. Num dado momento, ao comentar adisposição formal de algum poema de seu destinatário,diz Leminski: �A disposição que v. deu parece coisa depraxista�. Pois é. Não tem jeito: quem, nas últimas décadas,tentou e tenta escrever poesia, com �soluções não-retrógadas�, pagou e paga tributo à práxis. Daí ser bonitover Ferreira Gullar, em seu livro Muitas vozes, não escondero jogo e dignamente citar, de O lugar e de Lavra lavra, estestrechos: �a flora aflora/ a fala que fala�. Novo sangue emcorrente sanguínea é isso.

CULT Contra a clericarização das vanguardas, aliteratura práxis sempre se apresentou como o �campogeral de defesa dos valores humanos contra a alienação deuma sociedade que necessita transformar-se paraconquistar-se�. Como essa questão se coloca hoje, quandose fala tanto numa poesia pós-utópica que aposta napluralização das poéticas possíveis contra o princípiototalizador das vanguardas? �Toda ilha é ensimesmada� jáque �nenhuma utopia é dada�?

M.C. Toda ilha é ensimesmada, digo no poema�Caçadores de ilhas�. Mas o indivíduo é portador de uto-pias próprias. Essa questão de modernidade e pós-modernidade merece outro equacionamento, o da práxisindividual. Historicamente, a utopia cobra dos indivíduosuma cumplicidade compulsória em relação a projetoscoletivos. A idéia de ilha ensimesmada introduz umaambigüidade crítica nessa questão. Assim, se a ilha émetáfora de um indivíduo, de uma subjetividade, esseensimesmamento torna-se combustível para uma explosãode comunicação poética, a favor de ressurreições utópicaspossíveis. É preciso considerar que, no quadro histórico,o fim das utopias está ligado, de certo modo, à falência dosocialismo real como promessa política, de feiçãosalvacionista. Com o suposto fim da história e a entradaem cena da globalização num mundo de pensamento único,adveio a desilusão das utopias associadas às grandesmobilizações coletivas. Mas há a práxis individual. E épor isso que a instauração de um livro tem condições degerar outras instaurações capazes de confluir para areformulação de um pensamento histórico. Isso é viável.Não podemos pensar sempre com epistemologias deempréstimo. Podemos gerar processos epistemológicosdivergentes, diferenciados. Especialmente em termos decriação poética, onde a transfiguração e a liberdade andamjuntas. Não só a transfiguração dos instrumentos e daspalavras, mas a transfiguração dos olhares sobre asrealidades dadas. Daí essa minha posição contra omovimento, a escola poética e os planos-pilotos. A culturaliterária brasileira sucumbe ao engodo sedutor dessasformas de controle e exclusão. Práxis é um grito contínuocontra isso. Não é possível o indivíduo desvincular-se deum processo utópico, ainda que entrincheirado em suailha ensimesmada.

CULT Mas você não acha que a produção poética dasduas últimas décadas, chamadas de décadas perdidas,renunciou por completo ao desejo de transformação dasociedade, à expectativa de que ao poema corresponda umaexperiência? Você não acha que para muitos o poema setornou quase uma mônada produzida por partenogênese?

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Reprodução

A idéia de uma utopia individual não acaba legitimandouma concepção de literatura um tanto conformista?

M.C. Sim e não. Sim, se o poeta renuncia ao seu dizerpróprio, contentando-se em fazer a lição de casa como merointerpolador de discursos alheios já estabelecidos. Nopoema �Esboço de um breve manifesto dromedário� tratodisso. O interpolador anula sua voz para ser uma simplesrasura de Drummond, Pound ou Mallarmé. Nesse caso,o que ele imagina ser sua utopia individual é meramanifestação conformista, à espera de que as macro-uto-pias de transformação coletiva um dia se cumpram. Poroutro lado, o poeta não legitimará nenhuma concepçãoimobilista da literatura se cultivar sua liberdade individualde criação e denúncia. É a prática dessa liberdade, emtermos de utopia, que poderá constituir o tecido de umanova manhã, para lembrar o galo do poema cabralino, cujocanto encontra eco no canto de outros tantos galosdespertos.

CULT No manifesto didático, você preconiza trêscondições de ação: o ato de compor, a área de levantamentoda composição e o ato de consumir. Tais condiçõescontinuam a valer de alguma forma para sua produçãorecente?

M.C. Todo discurso possui seu vocabulário de época.O ato de compor comprometia-se com a busca de umanova escrita. Isso era uma espécie de estilema predominanteno discurso crítico da década de 60. O ato de consumirtinha uma acepção mais estética. Consumir o poema eraconviver com ele, assumi-lo e transformá-lo num produtoque produz. A área de levantamento remetia a uma propostamais aberta, para não se ficar preso a temas comuns ecanônicos. Essas áreas não são apenas objetivas, sãotambém subjetivas, intersubjetivas, estão enraizadas emseu tempo histórico. Não tenho, neste ano 2000,necessidade de recorrer a esses expedientes. A permanênciadeles depende da qualidade dos livros em que foramaplicados. Veja o caso de Indústria, muito bem analisadopor Vilém Flusser, sob essa óptica. Indústria lida com aafasia do discurso das sociedades urbanas massificadas.

OBRAS DE MÁRIO CHAMIEPoesia

Espaço inaugural � Editora Leia, 1955O lugar � Editora XI de Agosto, 1957Os rodízios � Clube de Poesia, 1958Lavra lavra � Massao Ohno, 1962Now tomorrow mau � Revista Práxis n°4, 1964Indústria � Mirante das Artes, 1967Planoplenário � Práxis, 1974Objeto selvagem (poesia reunida, incluindo os inéditos Configurações, de 1956,e Conquista de terreno, de 1968) � Quíron/INL-MEC, 1977Sábado na hora da escuta (antologia) � Summus, 1978A quinta parede � Nova Fronteira, 1986Natureza da coisa � Maltese, 1993Caravana contrária � Geração Editorial, 1998

Ensaio

Palavra-levantamento � Livraria São José, 1963Alguns problemas e argumentos � Conselho Estadual de Cultura, 1969Intertexto � Práxis, 1970A transgressão do texto � Práxis, 1972Instauração práxis (2 vols.) � Quíron, 1974A linguagem virtual � Quíron, 1976Casa da época � Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1979Mário de Andrade: Fato aberto e discurso carnavalesco � Secretaria Municipalde Cultura, 1979Modernismo e vanguarda literária brasileira: A falação possessória � UFRJ, 1991

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Nessas sociedades, há o predomínio dos ditos sumáriossobre as palavras e as frases, origem e fonte do diálogo eda reflexão. O ato de compor, no livro, se impõe como oprocesso poético de recuperação das significações por en-tre a crosta padronizada daqueles ditos. Para essarecuperação, diz Vilém Flusser: �Os ditos sumários sãoarrancados do seu contexto de conversa fiada, e põem-se agirar em torno dos seus eixos. Nessa rotação, revelam facesinsuspeitadas. Adquirem, como que por encanto, múltiplossignificados. São transformados, de ditos, em palavrasnovas�. Conclui Flusser: �O método de Chamie é potente.Rasga o próprio tecido do pensamento ao manipulá-lo. Éum constante abrir de fendas no edifício do pensamento,porque elimina os seus elementos redundantes. E simulta-neamente acrescenta ao pensamento novos elementos,compostos dos detritos eliminados. Trata-se pois de umareestruturação do universo pensável, por eliminação dogasto e introdução do novo. Trata-se de autêntica poesia�(�Variações sobre um tema� in �Suplemento Literário�, OEstado de S. Paulo, 3/2/1968). Por isso a instauração práxisse antecipou à estética da recepção, de Robert Jauss. Porisso também a atualidade de Indústria atualiza aquelas �trêscondições� em que foi concebido e escrito.

CULT �Sou Chamie,/ venho de Damasco./ Franco-egípcio/ é o meu passado./ Sírio sou helenizado.� Você vêalgum denominador comum entre o seu trabalho e o deoutros autores de origem árabe, como Raduan Nassar,Waly Salomão e Milton Hatoum?

M.C. Quem sabe? Fui contemporâneo de Raduan Nassar,quando estudante de Direito. Ele fazia parte de umpequeno grupo de colegas, dois ou três anos mais jovensdo que eu. O grupo me procurava muito para conversas eorientação literária. Faziam parte do grupo HamiltonTrevisan, Modesto Carone e o amigo José Carlos Abbate.Lembro-me que tinham um grande apreço pelos poemasde Os rodízios, em que há uma série de textos sobre origeme descendência. Conservo poemas modestos do Carone,imitando a minha dicção. Eu até o lancei na revista Prisma,da Ruth Escobar, onde eu dispunha de uma página mensal.O denominador comum entre autores de formação

Hipóteses de um eterno retorno

Que viagemé viagem de ida

e volta?

Se o começo recomeçapelo fim e o fio

de uma história,o retorno é sempre o rio

que se enroscaem outro rio

que derrama e se deforma.

O que retornana paixão que se desmancha

é a perda, é a escória: é a rosaque renasce e se arrebenta

contra o vasoque entorna

sobre a hora da desforra.

Nada se retomado nada que se afoga

e se arremessapara o fundo das promessas

de água morna.É da água

desse nadaque transborda

o retorno do consoloem hora morta.

Que viagemé viagem de ida

e volta?

Quem retornada partida?

Quem de voltanesta vida

não retoma em sua portasua rosa renascida?

Poemas extraídos do livro inéditoHorizonte de Esgrimas, de Mário Chamie

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semelhante sempre existe. Em nossa �arabidade�, há pelomenos um valor comum: é o da palavra com peso deparábola e provérbio. Se compararmos Lavoura arcaica comOs rodízios, vamos encontrar em ambos certo tom luxuriosoe, sensorialmente, paramístico. Minha formação familiarteria a ver com isso. Minha mãe era católica, de origemegípcia. Estudou em colégios franceses, na cidade deDamasco. Tinha por hábito, nos fins de tarde, lá em Cajobi,reunir os filhos para sua leitura da Bíblia, em francês.Eu, criança, não entendia nada, mas me fascinava ouvi-lanaquele tom litúrgico. Escrevi poemas a respeito. Umdeles, �A bandeja�, em O lugar, fala de �xícaras douradas/de um ouro excessivamente cristão�, nas quais minha mãelia a nossa sorte na borra do café. No meu caso, o tomproverbial materno acabou sendo compensado pelaracionalidade cartesiana de minha ascendência paterna. Daío franco-egípcio. Essa racionalidade, de algum modo,comparece nos meus livros de ensaio e crítica. Esses livrossão desdobramentos dos de poesia. Há neles a tentativado mesmo empenho de visão inédita e instauradora. É ocaso de Intertexto e A transgressão do texto, que provocaramuma revisão dialógica do Macunaíma, de Mário de Andrade.O livro O Tupi e o Alaúde, de Gilda de Mello Souza, dátestemunho disso. É o caso também de A linguagem virtualque, entre outras contribuições, recuperou, para a literaturabrasileira, Madame Pommery, de Hilário Tácito. Quanto aMilton Hatoum e Waly Salomão não seria descartável apossibilidade de haver, entre nossos escritos, algum ponto�atávico� em comum.

CULT Mas como se helenizou o sírio que havia em você?

M.C. A expressão �sírio helenizado� provém, em parte,de minha paixão pelo significado de Alexandria comomitema cultural; mitema da passagem da cultura gregapara o mundo do Ocidente, através daquela cidade. Opoema �Escola de Alexandria� dá uma idéia disso. Aexpressão tem a ver, ainda, com meus mestres Luciano eMenipo, cuja lição satírica comparece em meu livroNatureza da coisa. Em Caravana contrária, mantenho traçosdessa lição. Afinal, uma caravana (de idéias, projetos,linguagens), que percorre caminhos inversos aos caminhos

previsíveis, emblematiza certamente a coragem dedesconfiar de todo e qualquer consenso. A palavra poéticanão se casa com a unanimidade do consenso. Os signifi-cados que a palavra poética libera fazem dela uma men-sagem ativa de dissenso. Por isso, a sátira que exerço nãoé de origem romana, pela qual é rindo que corrigimos oscostumes (�ridendo castigat mores�). Pratico a sátira gregaou menipéia, que aponta os desvios e vícios, deixando-osem aberto para o julgamento das pessoas. Menipo eLuciano foram sírios helenizados. Nasceram nas cidadessírias de Samosata e Gadara (ou Gandara, como registroem meu livro). Falo deles no poema �Menipo e Luciano�.Num lance de paródia, incluo-me nessa linhagem porquemeu sobrenome Chamie significa, em árabe, a pessoa quevem de Damasco. O poema �Auto-estima� explica isso comsenso irônico, já que o núcleo e a essência da minha minhapoesia radicam-se, intransferivelmente, na minha condiçãode homem e de poeta brasileiros.

CULT No texto de Gilberto Freyre que serve de prefácioa Natureza da coisa e posfácio a Caravana contrária você écomparado a poetas do porte de um Augusto dos Anjos ede um João Cabral de Melo Neto. Você acha que taiscomparações procedem? Por quê? Fale um pouco sobreisso.

M.C. Gilberto Freyre é o maior intelectual brasileiro doséculo 20. Sua avaliação é mais do que respeitável. Ele nãome compara a ninguém. Diz que a originalidade de minhapoesia, em língua portuguesa, é única. São suas palavras:�A originalidade de Mário Chamie é tal que as aproximaçõesperdem, todas, o sentido de semelhanças mesmo indiretas�.Os nomes de Augusto dos Anjos e João Cabral são apenascitados como dois outros poetas marcantes de nossaliteratura, com suas individualidades específicas. No seuagudo ensaio, Gilberto Freyre está nos lembrando que hápoetas que são matriciais, para consolo ou desconsolo dasdemais vozes obedientes e comuns.

Fabio WeintraubFabio WeintraubFabio WeintraubFabio WeintraubFabio Weintraubpoeta e editor, autor de Sistema de Erros (Arte Pau Brasil)

Rodolfo DantasRodolfo DantasRodolfo DantasRodolfo DantasRodolfo Dantaspoeta, mestrando em direito constitucional na USP e professor da Unip