Entrevista de Lipman

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JOGOS COTIDIANOS E LIÇÕES METAFÍSICAS Matthew Lipman fala sobre seu método de ensino Crianças são aptas a lidar mais com idéias do que imaginamos Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 1 de maio de 1994 Bernardo Carvalho Da Reportagem Local As primeiras preocupações filosóficas de Matthew Lipman, 70, diziam respeito à estética e à metafísica. Formado pela Universidade de Columbia, defendeu sua tese de doutorado, sobre arte, em 1950. Pouco a pouco, as questões cognitivas passaram a ocupar a maior parte do tempo do filósofo. A partir de 68, Lipman desenvolveu um método de filosofia para crianças, que hoje é aplicado da Islândia à Nigéria, passando por Portugal, Espanha, Austrália, Egito, Taiwan, Alemanha etc. Em 1974, fundou o Institute for the Advancement of Philosophy for Children (IAPC), na Montclair State University (Nova Jersey). O instituto, que dá formação a educadores de todo o mundo, é dirigido por Lipman e sua principal assistente, Ann Margaret Sharp. Os dois estarão no Brasil em julho para participar do 1º Encontro Nacional de Educação para o Pensar, em Florianópolis. A entrevista a seguir foi feita por telefone. Folha — O sr. trabalhava inicialmente com estética... Matthew Lipman Estava abordando a arte como uma forma de inteligência e pensamento. A criação artística é uma atividade altamente cognitiva. Folha — O sr. esteve associado ao crítico de arte Meyer Shapiro. O sr. continua achando que a arte pode ajudar na educação? Lipman Shapiro foi meu professor em Columbia. A natureza da arte mudou muito desde que eu era um estudante. Naquela época, a arte era em geral abstrata. Estava interessado na maneira como a arte abstrata parecia concentrada na metodologia da arte e não no valor da representação, no conteúdo. Aquilo me parecia muito semelhante ao que ocorria em filosofia, com a filosofia da linguagem, que abandonava os conteúdos para dar ênfase aos procedimentos e métodos. Sempre estive interessado em analogias entre arte e filosofia. Folha — O sr. foi próximo do poeta francês Francis Ponge. Há alguma influência da poesia no seu método? Banco de Dados Folha - Acervo de Jornais http://almanaque.folha.uol.com.br/entrevista_filos... 1 de 4 26/09/2015 19:41

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Lipman Entrevista na folha de são paulo

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JOGOS COTIDIANOS E LIÇÕES METAFÍSICAS

Matthew Lipman fala sobre seu método de ensino

Crianças são aptas a lidar mais com idéias do que imaginamos

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 1 de maio de 1994

Bernardo CarvalhoDa Reportagem Local

As primeiras preocupações filosóficas de Matthew Lipman, 70, diziam respeito à estética e àmetafísica. Formado pela Universidade de Columbia, defendeu sua tese de doutorado, sobrearte, em 1950.Pouco a pouco, as questões cognitivas passaram a ocupar a maior parte do tempo dofilósofo. A partir de 68, Lipman desenvolveu um método de filosofia para crianças, que hojeé aplicado da Islândia à Nigéria, passando por Portugal, Espanha, Austrália, Egito, Taiwan,Alemanha etc.Em 1974, fundou o Institute for the Advancement of Philosophy for Children (IAPC), naMontclair State University (Nova Jersey). O instituto, que dá formação a educadores de todoo mundo, é dirigido por Lipman e sua principal assistente, Ann Margaret Sharp.Os dois estarão no Brasil em julho para participar do 1º Encontro Nacional de Educação parao Pensar, em Florianópolis. A entrevista a seguir foi feita por telefone.

Folha — O sr. trabalhava inicialmente com estética...

Matthew Lipman — Estava abordando a arte como uma forma de inteligência epensamento. A criação artística é uma atividade altamente cognitiva.

Folha — O sr. esteve associado ao crítico de arte Meyer Shapiro. O sr. continuaachando que a arte pode ajudar na educação?

Lipman — Shapiro foi meu professor em Columbia. A natureza da arte mudou muito desdeque eu era um estudante. Naquela época, a arte era em geral abstrata. Estava interessadona maneira como a arte abstrata parecia concentrada na metodologia da arte e não no valorda representação, no conteúdo. Aquilo me parecia muito semelhante ao que ocorria emfilosofia, com a filosofia da linguagem, que abandonava os conteúdos para dar ênfase aosprocedimentos e métodos. Sempre estive interessado em analogias entre arte e filosofia.

Folha — O sr. foi próximo do poeta francês Francis Ponge. Há alguma influência dapoesia no seu método?

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Lipman — Acho que há muita, mas não posso apontar exatamente onde. Sempre estiveinteressado na relação entre estética, poesia e filosofia em geral. A poesia é frequentementeum avanço mesmo em relação à filosofia, quando se trata de desenvolver novos conceitos.Primeiro rascunhamos os nomes em forma poética e só em seguida a filosofia dá um novopolimento e os passa à ciência, que os coloca sob verificação.

Folha — Como o sr. explica que, com seu interesse pela tradição filosófica francesa,tenha passado de repente para uma tradição mais prática e lógica, da filosofiaanalítica?

Lipman — Meu interesse inicial era pela filosofia americana, por John Dewey. Quando fuipara a França, me interessei por fenomenologia e existencialismo, porque me pareceu umtipo de filosofia mais intensa e vivencial. A tradição americana me parecia na épocainsuficiente para o que eu procurava. Quando comecei a me envolver com filosofia paracrianças, me dei conta de que era impossível realizar meu objetivo sem a tradição dafilosofia analítica. As crianças são muito preocupadas com a linguagem, as palavras e ossentidos. A experiência inglesa em análise linguística é indispensável.

Folha — Por que o sr. resolveu criar esse método?

Lipman — É difícil traçar as causas precisas. No início dos anos 50, li um artigo do filósofofrancês Bernard Groethuysen, que morreu em 46, sobre a semelhança entre o pensamentode crianças e o dos grandes metafísicos. Isso me marcou muito. O trabalho de Vigotskytambém confirmou que as crianças eram capazes de trabalhar com idéias muito mais que aspessoas imaginavam.

Folha — Qual é a prioridade do método? A principal finalidade?

Lipman — Ajudar as pessoas a pensar por conta própria. Para isso, você precisa seguir umcerto número de etapas. Temos que fornecer às crianças modelos do que elas são através depersonagens que tentam lidar com seus problemas de uma maneira racional. Dizemos àscrianças para serem racionais, mas elas não sabem do que estamos falando. Precisamosmostrar. Uma maneira de mostrar é com as histórias em que representamos como criançasracionais se comportam, como falam umas com as outras, como discutem as idéias, comorespeitam umas às outras. Você começa com a narrativa, as questões levantadas por essasnarrativas, as discussões etc. São várias etapas do processo.

Folha — O que o sr. acha do método Paulo Freire?

Lipman — Nós nos conhecemos quando estive no Brasil há alguns anos. Ele me falou dassemelhanças do que fazíamos. O interesse dele na formação de comunidades de trabalhocom o intuito de chegar à alfabetização está muito próximo do nosso interesse em formarcomunidades de investigação para fazer as crianças chegarem a uma solidariedade socialque possa melhorar sua educação.

Folha — O sr. acha que o seu método é mais adequado para comunidades pobres epaíses do Terceiro Mundo?

Lipman — Para os países do Terceiro Mundo que procuram suas identidades esse é o tipo deeducação que parece fornecer algumas respostas. Em países mais antigos, onde há

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resistência ao método, ele é usado para as minorias de imigrantes estrangeiros.

Folha — Quais são as maiores dificuldades de traduzir e adaptar o método paraoutra língua?

Ann Margret Sharp — Normalmente, as histórias são adaptadas às outras culturas. Quantoaos procedimentos de ensino, eles são em grande parte universais. Praticamos o quechamamos de comunidade de investigação, onde o grupo se reúne para falar e refletir sobreo texto. Mesmo em países onde a educação é bastante tradicional, como a Nigéria, onde háuma forte influência da educação britânica, eles acharam que a comunidade de investigaçãoera perfeitamente adequada.

Lipman — Isso porque há uma tradição semelhante de sentar e discutir ou contar históriasque são ambíguas e problemáticas e abertas à interpretação. É a mesma coisa que fazemos.Perceberam que eram formas comparáveis.

Folha — Por que o seu método ensina melhor a pensar?

Lipman — A filosofia contém a lógica, que ajuda a melhorar o raciocínio das pessoas, ojuízo. A filosofia também ajuda a melhorar a formação de conceitos. Outros programas nãotêm essa ênfase. Quando você se concentra nas questões de raciocínio, juízo e formação deconceitos, está lidando com três instrumentos muito poderosos que fazem parte do nossopensamento.

Sharp — Os temas que tratamos são reconhecidos pelas crianças como parte de suaexperiência diária. Não é algo estranho. São questões que as crianças levantam entreamigos, mas infelizmente não as levam muito longe, porque não sabem como.

Folha — Como vocês respondem à crítica de certos filósofos de que o método éuma vulgarização da filosofia, que é impossível ensinar filosofia a crianças?

Lipman — Estão cometendo um erro. Não estamos tentando fazer com que memorizemAristóteles. Não estamos querendo que aprendam filosofia, mas que façam filosofia. Issoenvolve deliberação, diálogo, raciocínio. As crianças podem ler, discutir, raciocinar. Podemfalar das coisas sobre as quais falam os filósofos: sobre a verdade, a justiça etc. Podemdizer que as crianças não são capazes de fazer isso, mas o fato é que elas fazem.

Sharp — Não apenas isso. Embora não saibam que estejam sendo expostas às idéias deAristóteles, Platão etc., a tradição está lá pela voz dos personagens da história. Não estãoapenas discutindo numa sessão de conversa, mas sendo colocados em contato com umasérie de idéias sobre as quais pensaram os filósofos nos últimos 2.500 anos. E não têmnenhum problema com esses conceitos trazidos para a linguagem do dia-a-dia. Elasentendem.

Folha — Não há o risco de que as crianças estejam apenas repetindo o que ouvemem casa e na escola, de pais e professores, em vez de pensar por conta própria?Não há o risco de que, em vez de uma classe de filosofia, ela vire uma classe demoral?

Lipman — Isso pode ocorrer até certo ponto. Você não vai alcançar originalidade a todo

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instante numa sala de aula. Vai haver muita repetição da opinião de outras pessoas,sobretudo do que as crianças ouvem em casa. É normal. Mas o processo convida aoquestionamento e, no percurso, as crianças começam a examinar suas opiniões e crenças.Ao longo do tempo, você percebe que essas crianças fazem progressos. Mudam também ocomportamento. Passam a se respeitar mais entre si.

Sharp — Você tem que fazer uma distinção entre o início de uma investigação e o que sepassa dois meses depois. É lógico que quando você pergunta a uma criança sua opiniãosobre alguma coisa, ela vai repetir o que ouve em casa, mas o confronto com essacomunidade de investigação muda essas opiniões com os meses. É lógico que o progresso ea profundidade dessa mudança depende da qualidade do professor, se ele está bempreparado e sabe como passar da opinião que vem de casa para o que está por trás esustenta essa opinião.

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