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REALIS, v.4, n. 02, Jul-Dez. 2014ISSN 2179-7501
EPISTEMOLOGIA FREIREANA E PS-COLONIALIDADE
reflexes a partir da pesquisa participante na Amrica Latina
Thiago Ingrassia Pereira1
Resumo: o atual debate sobre estudos ps-coloniais aponta, entre outras questes, para umcenrio de reconstruo epistemolgica. Nesse sentido, a pesquisa em educao apresentacontribuies importantes a partir do campo da Educao Popular, paradigma latino-americano que surge em contraponto aos processos de dominao (econmica, poltica ecultural) advindos dos pases centrais do capitalismo no sculo XX. Dessa forma, a obra dePaulo Freire referncia em suas concepes antropolgicas, epistemolgicas, polticas eticas, ofertando premissas tericas que oportunizam a (re)construo do conhecimento a
partir da realidade concreta das classes populares. Neste artigo, discuto elementos daepistemologia freireana que sustentam prticas de pesquisa participante, problematizando o
prprio conhecimento acadmico em contexto permanente de disputa poltica, tendo em vistaque a colonialidade interfere de forma intersubjetiva na compreenso de mundo dos sujeitos.
Palavras-chave: Ps-colonialidade. Paulo Freire. Reconstruo epistemolgica. PesquisaParticipante.
Abstract: the current debate about postcolonial studies show, among other things, for a
epistemological reconstruction scenario. In this sense, research in education has importantcontributions from the field of Popular Education, latin-american paradigm that arises incounterpoint to the processes of domination (economic, political and cultural) arising from thecapitalist core countries in the twentieth century. Thus, the work of Paulo Freire is a referencein its anthropological, epistemological, political and ethical conceptions, offering theoretical
premises which nurture the (re)construction of knowledge from the concrete reality of thepopular classes. In this article, I discuss elements of Freire's epistemology that supportpractices of participatory research, questioning the academic knowledge in the permanentcontext of political dispute, in view of given that the coloniality interfere intersubjective wayin understanding the world of individual.
Keywords: Post-colonialism. Paulo Freire. Epistemological reconstruction. ResearchParticipant.
1Socilogo, Doutor em Educao. Professor Adjunto da rea de Fundamentos da Educao da UniversidadeFederal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim. E-mail: [email protected]
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1 Primeiras palavras
O processo reflexivo acerca da (des)colonialidade nos remete ao aspecto poltico
intrnseco produo do conhecimento nos meios acadmicos e no mbito da sociedade em
geral. Na Amrica Latina, observa-se que o contexto da segunda metade do sculo XX vai
originar experincias de organizao e formao de uma conscincia que busca (re)construir
entendimentos acerca do mundo social, colocando a compreenso da realidade em disputa.
Assim, a questo do conhecimento se constitui em um dos pontos centrais dos
movimentos que promovem a Educao Popular como um projeto de emancipao dosoprimidos (FLEURI, 2002). Construda a partir dos saberes mobilizados na luta por
reconhecimento e por dignidade, a Educao Popular assume diretrizes polticas de diversas
orientaes (socialistas, libertrias etc) que convergem para o enfrentamento das situaes
desumanizadoras que a explorao fomenta no cenrio capitalista.
Um dos principais desdobramentos em termos metodolgicos deste paradigma a
pesquisa participativa. Ao problematizar a lgica tradicional de pesquisa de cunho positivista,
na qual a ciso entre sujeito e objeto est posta em uma realidade dada, essa modalidade deproduo do conhecimento se assenta na valorizao dos diversos saberes provenientes da
leitura de mundodos sujeitos sociais, promovendo a equidade epistmica.
A pesquisa passa a ser uma ao solidria, compartilhada entre sujeitos que buscam
qualificar o entendimento do mundo, construindo e reconstruindo instrumentos tericos e
metodolgicos para intervir no cotidiano. A pesquisa-ao anuncia que, para alm da
compreenso, preciso que o conhecimento nos ajude na transformao social.
Neste artigo, aspectos epistemolgicos e metodolgicos da Educao Popular sero
discutidos, tendo como referncia o pensamento de Paulo Freire. Ao produzir essa reflexo,
assumo a natureza complementar dos termos colonialismo e colonialidade, ainda que seu
significado conceitual nos remeta a diferentes entendimentos, pois
em sntese, enquanto o colonialismo tem claras ligaes geogrficas ehistricas, a colonialidade atua como matriz subjacente ao poder colonialque seguiu existindo aps as independncias polticas de nossos pases e que
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hoje se perpetua pelas variadas formas de dominao norte sobre o sul(STRECK; ADAMS, 2014, p. 36).
Considero, ento, a pesquisa participante como um desdobramento do projeto da
Educao Popular. Por isso, apresento elementos que configuram o campo da Educao
Popular para, num segundo momento, apresentar as caractersticas da pesquisa participante e
as possibilidades que enseja de reconstruo epistemolgica.
2 Princpios da Educao Popular
Ao longo da segunda metade do sculo XX muitas experincias ligadas concepo
de Educao Popular se desenvolveram na Amrica Latina. Essa diversidade de movimentos
sob essa denominao no nos permite conceituar de forma precisa o que seja Educao
Popular. Contudo, o exame histrico desse campo nos direciona para pelo menos trs
movimentos que se entrecruzam desde o comeo do sculo XX:
em primeiro lugar, os trabalhos de educao escolar e prticas de formaode quadros entre os operrios. Em segundo lugar, o movimento de
educadores e intelectuais pela escola pblica e pela democratizao derivadada educao. Em terceiro lugar, os movimentos e campanhas dealfabetizao de adultos (FLEURI, 2002, p. 55).
Esses movimentos so desdobramentos de duas vertentes que disputam a orientao de
projetos no campo da Educao Popular (ZITKOSKI, 2000). Uma vertente voltada ao
mundo da economia e do conhecimento instrumental, preparando segmentos das classes
populares para o trabalho (sentido profissionalizante), apostando em processos de mobilidade
social dentro da sociedade capitalista. Uma segunda vertente compreende a educao comomovimento popular, ou seja, centra-se na cultura popular como princpio estratgico para a
transformao social.
Seja numa dimenso mais reformista, seja uma dimenso mais revolucionria, entendo
que essas duas vertentes da Educao Popular nos ajudam a pensar nosso papel como
educadores, apostando em aes politicamente situadas em um projeto de transformao
social.
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Dessa forma, possvel termos como estratgia poltica a busca pela emancipao das
classes populares a partir de uma educao como prtica da liberdade, na qual o
desvelamento da realidade se apresenta como possibilidade de mudana. Essa estratgia no
nos afasta de posies tticas dentro do sistema hegemnico, justificando, assim, movimentos
de disputa por espaos institucionais do aparelho estatal, como a universidade pblica.
Minha posio em relao ao conceito de Educao Popular construda na sntese
entre essas duas vertentes histricas, tendo em vista o contexto histrico em que vivemos. Ao
apostarmos na utopia da transformao social, caminhamos cotidianamente tensionando as
estruturas opressoras e buscando criar e reinventar espaos e relaes sociais.
A Educao Popular um saber originrio, sendo forjada nas relaes sociais que
contm, em si, um carter educativo que se assenta na prpria condio humana em seu
percurso cultural. Ao recuperar as razes do processo geral do saber, Carlos Rodrigues
Brando aponta o saber escolar como uma ruptura em relao educao da comunidade,
fomentando, com a institucionalizao da escola no Brasil, um trabalho poltico de luta pela
democratizao da escola pblica. Segundo o autor,
a produo de um saber popularse d, pois, em direo oposta quela quemuitos imaginam ser a verdadeira. No existiu primeiro um saber cientfico,tecnolgico, artstico ou religioso sbio e erudito que, levado a escravos,servos, camponeses e pequenos artesos, tornou-se, empobrecido, um saberdo povo. Houve primeiro um saber de todos que, separado e interdito,tornou-se saber erudito; o saber legtimo que pronuncia averdade e que,por oposio, estabelece como popular o saber do consenso de onde seoriginou. A diferena fundamental entre um e outro no est tanto em grausde qualidade. Est no fato de que um, erudito, tornou -se uma formaprpria, centralizada e legtima de conhecimento associado a diferentesinstncias de poder, enquanto o outro, popular, restou difuso no-centralizado em uma agncia de especialistas ou em um plo separado depoderno interior da vida subalterna da sociedade (BRANDO, 2006b, p.30-31).
A posio poltica a favor da emancipao dos oprimidos ganha, com o movimento da
sociedade, novos contornos. Inclusive, a relao seminal da Educao Popular com os
movimentos sociais2ganha novas possibilidades histricas com o contexto da queda do Muro
2Ver Gohn (1999), Ribeiro (2002, 2004) e Beninc (2011).
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de Berlim (1989), fomentando o debate sobre a refundamentao3, refundao ou
revivificao4do prprio paradigma.
Dessa forma, a pedagogia do oprimido desdobra-se em pedagogias, no plural: de
grupos juvenis, de direitos humanos, de ecologia, dos sem-teto, da terra e muitas outras. A
educao popular passa a ser uma espcie de metapedagogia que abriga essas diferenas
(STRECK, 2010, p. 306). O objeto deste artigo no proceder a uma exaustiva reviso
histrica, terica e metodolgica da Educao Popular, muito embora os seus fundamentos
sejam essenciais para a construo argumentativa que almejo acerca dos processos de
descolonialidade.
Dessa forma, me filio sntese a seguir sobre as principais caractersticas da Educao
Popular:
1) Educao Popular vem a ser todo o trabalho de base, orientado eorganizado com clareza da diferenciao de classes existente na estrutura dasociedade; 2) Educao Popular entendida como todas as aes voltadas realidade das classes trabalhadoras, com o objetivo de organiz-las poltica esocialmente; 3) Educao Popular a atuao consciente da classetrabalhadora na luta em defesa de seus direitos; tambm considera-se como
Educao Popular a participao poltica e solidria dos sindicatos eassociaes em outros movimentos populares de lutas; 4) Educao Popular um processo educativo que liberta o homem em todos os sentidos,conscientiza e promove a participao social e poltica; a educao polticados trabalhadores, que prepara o trabalhador para lutar por seus direitos epela transformao da sociedade; 5) A Educao Popular volta-se realidade do povo, por isso, trabalha com os fatos concretos do cotidiano darealidade do povo, com base para superar as situaes limites que oprimemas pessoas, conhecendo-as, vendo o porqu das mesmas e discutindoestratgias de ao poltica para transp-las; 6) Educao Popular o ato deeducar o cidado com uma pedagogia que o leve a pensar por si prprio eque possibilite a construo da sociedade emancipada; 7) A Educao
Popular requer um trabalho de conscientizao que se realiza a partir donvel sociocultural em que os educandos se encontram, permitindo aidentificao das diferenas e contradies sociais e, sobretudo,compreendendo que h leituras diferentes de acordo com o ponto de vista decada um; 8) Educao Popular uma educao vivenciada pelo povoatravs de seus saberes que devem ser problematizados para atingir, pormeio do dilogo, a organizao das classes populares na luta por seusdireitos iguais para todos; 9) A Educao Popular est articulada
3 Nesse sentido, h a argumentao de Zitkoski (2000) ao aproximar Freire e Habermas no debate sobre arefundamentao da Educao Popular.4Segundo a linha argumentativa de Ghiggi (2010).
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diretamente com os movimentos sociais para potencializar o projeto detransformao social. Ela , desse modo, o caminho para organizar a
sociedade civil e recriar as estruturas sociais vigentes luz dos princpiosdemocrticos e de justia social (ZITKOSKI, 2011, p. 20-21).
Nesse sentido, estabelecido pontos fundamentais do projeto poltico da Educao
Popular, podemos discutir aspectos constituintes das prticas participativas de pesquisa que
surgiram ao longo do sculo XX.
3 Pesquisa participante e (des)colonialidade: apontamentos a partir de Freire
Ao me situar no campo da Educao Popular, compartilho uma forma de ver e estar no
e com o mundo e, em especial, de construir o conhecimento. Para Paulo Freire, as
experincias dos sujeitos so o ponto de partida e de chegada da pesquisa social aplicada. Ao
objetivar o cotidiano, o pesquisador realiza um movimento intelectual de apreenso desta
realidade, permitindo que volte a ela ressignificando-a. Somente tomando distncia da
realidade, em termos epistemolgicos, que consigo me aproximarde sua razo de ser 5.
Assim, a epistemologia freireana, como parte do campo da Educao Popular, construda na sntese entre algumas vertentes tericas. Freire no procura ser desta ou daquela
corrente filosfica, mas procura embasamento para explicar a vida prtica, j que ela o
grande fenmeno a ser explicado, porque vivida, experenciada. Paulo Freire inaugura uma
nova concepo epistemolgica caracterizada por ser dialgica, intersubjetiva e dialtica,
abarcando a totalidade da experincia humana e profundamente articulada com sua
concepo antropolgica, poltica e tica (ZITKOSKI, 2007, p. 233).
Portanto, constri sua compreenso do processo cognoscente6
influenciado pelafenomenologiade Husserl e pela dialtica materialistade Marx e Hegel. Sua epistemologia
5 Nessa perspectiva, o processo de objetivao do mundo pela intencionalidade nos impulsiona para acapacidade crtica de reflexo que implica o distanciamento do mundo e ressignificao dos sentidos jconstrudos (ZITKOSKI, 2007, p. 238-239).6Em acordo com sua noo de educao articulada com a v ida e a transformao social, o ato cognoscente,
para Paulo Freire, s poderia ser expresso de um processo de autopercepo do sujeito no mundo em que seencontra (BOUFLEUER, 2008, p. 82).
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fomenta sua filosofia sobre a educao, passando por diferentes etapas ao longo de sua vasta
produo bi(bli)ogrfica (SCOCUGLIA, 1999).
Freire foi capaz de articular, com sucesso, o referencial fenomenolgicodatradio que parte de Husserl e se desenvolve com seus discpulos da 1 e 2geraes, principalmente com Sartre, Jaspers e Merleau-Ponty com afilosofia dialtica de Hegel e Marx. Esse um aspecto profundamenteoriginal e significativo, a partir do qual a epistemologia freireana ganhacorpo e articula-se coerentemente com uma viso antropolgico-polticalibertadora (ZITKOSKI, 2007, p. 235).
Ainda sobre a perspectiva epistemolgica de Freire, importante destacar que ele no
chega a construir, como desdobramento de suas concepes polticas e epistemolgicas,apenas um mtodo, pelo menos essa no parece ser sua preocupao fundamental, mas, sim,
oferta uma teoria sobre a construo do conhecimento a partirdos oprimidos.
Contudo, em termos de alfabetizao de adultos, Freire reconhecido como
proponente de um mtodo que pretende, por meio da experincia de vida dos alfabetizandos,
descodificadas no crculo de cultura, promover a leitura da palavra (BRANDO, 1983,
2008).
O Mtodo Paulo Freire muito mais a expresso de uma concepo poltico-
pedaggica do que um conjunto articulado de procedimentos, ainda que deles tambm se
constitua. Para fins desta reflexo, trago esses pontos da epistemologia de Freire para articular
uma forma de produo do conhecimento que considere as vivncias, concretas e simblicas,
dos sujeitos envolvidos na construo do conhecimento.
Essa concepo assenta-se sobre o processo de ao e reflexo sobre o mundo, sobre a
prxis7 humana. Isso acaba tensionando a posio original de nossa conscincia, que
tributria de nossas vivncias imediatas (experincias), tendo um carter espontneo. Este o
primeiro momento da tomada da conscincia e precede a chegada da esfera crtica, onde a
7 Prxis pode ser compreendida como a estreita relao que se estabelece entre um modo de interpretar arealidade e a vida e a consequente prtica que decorre desta compreenso levando a uma ao transformadora(ROSSATO, 2008, p. 331). Para uma maior discusso sobre o conceito de prxis aplicado formao polticadas classes populares, ver Arruda (2003).
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realidade transforma-se em objeto cognoscvel. A conscientizao entendida, assim, como a
assuno de uma posio epistemolgica8.
Assim, a conscientizao9 no um processo evolucionista direto e no algo
espontneo que acontece nas pessoas. Est diretamente relacionada com o contexto social,
sendo, por isso, que o trabalho de conscientizao das classes populares um grande desafio,
visto que esse segmento sofre com a insuficincia de recursos para sanar adequadamente suas
demandas materiais concretas (alimentao, sade, emprego, educao, acesso tecnologia,
lazer, etc.).
O real no est dado e o futuro no inexorvel e, sim, problemtico. A educaolibertadora atua nesse desvelamento das situaes que formam o cotidiano, assumindo uma
conotao crtica. Desse modo, para Freire, conscincia e mundo esto implicados em relao
dialtica, formando um corpo consciente que se forma socialmente na histria.
Por isso, a epistemologia freireana fornece subsdios para a construo de prticas de
produo do conhecimento que problematizem as noes tradicionais de pesquisa. Por isso,
[...] o dualismo entre sujeito-objeto, que imperou ao longo da tradio filosfica, superado
pela dialtica freireana em sua exigncia radical da vivncia dialgica no processo deconstruo do conhecimento (ZITKOSKI, 2007, p. 240).
Esta superao do dualismo entre sujeito e objeto na pesquisa social indica uma forma
de construo do conhecimento pautada pela troca, pela participao e pela compreenso da
realidade como ponto de partida e de chegada do processo cognoscente.
Assim, anuncio a modalidade de pesquisa participante em decorrncia do campo
poltico e terico da Educao Popular, no qual a construo do conhecimento um ato
solidrio e aplicado realidade das classes populares.
8A passagem da conscincia ingnua para a conscincia crtica fruto de um processo de desenvolvimento dashabilidades individuais, estimuladas pela criatividade e pela compreenso da realidade social concreta. Aeducao crtica e emancipatria pode desempenhar importante papel nesta passagem. Ver Freire (2005).9Acredita-se geralmente que sou autor deste estranho vocbulo conscientizaopor ser este o conceito centralde minhas ideias sobre a educao. Na realidade, foi criado por uma equipe de professores do Instituto Superiorde Estudos Brasileiros por volta de 1964. Pode-se citar entre eles o filsofo lvaro Pinto e o professor Guerreiro.Ao ouvir pela primeira vez a palavra conscientizao, percebi imediatamente a profundidade de seu significado,
porque estou absolutamente convencido de que a educao, como prtica da liberdade, um ato deconhecimento, uma aproximao crtica da realidade (FREIRE, 2008, p. 29).
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Contudo, ao falar de pesquisa participante, no estou me referindo a uma definio
precisa, muito embora alguns traos sejam decisivos nesta forma de produo do
conhecimento: a) relevncia social, b) reformulao da relao tradicional sujeito-objeto e c)
reconhecimento dos saberes populares como conhecimentos legtimos. Assim,
um dos aspectos sobre os quais no h unanimidade o da prpriadenominao da proposta metodolgica. As expresses pesquisaparticipante e pesquisa-ao so frequentemente dadas como sinnimas.A nosso ver, no o so, porque a pesquisa-ao, alm da participao, supeuma forma de ao planejada de carter social, educacional, tcnico ououtro, que nem sempre se encontra em propostas de pesquisa participante(THIOLLENT, 2011, p. 13-14).
De qualquer forma, ao adotar o referencial da pesquisa participante, estabeleo que
[...] pesquisadores e pesquisados so sujeitos de um mesmo trabalho comum, ainda que em
situaes e tarefas diferentes (BRANDO, 2006a, p. 11). A abordagem participativa indica
o rompimento definitivo com a pretensa neutralidadeda pesquisa acadmica tradicional de
recorte positivista, pois, ao produzirmos conhecimento, nos questionamos sobre sua
pertinncia social (para quem?), sendo o prprio pesquisador um sujeito implicado com o que
conhece.
A pesquisa-ao, como um modo de pesquisa participante, carrega consigo as
caractersticas que a situam como parte de uma estratgia de produo do conhecimento que
avance em relao aos tradicionais mtodos que verticalizam os sujeitos epistmicos.
Segundo Carlos Rodrigues Brando, a pesquisa participante avana em relao ao
debate sobre cincia purae cincia aplicada, se inserindo numa estratgia que se fundamenta
no outro. Se na pesquisa quantitativa criamos instrumentos e na perspectiva qualitativaconfiamos em ns como sujeitos da pesquisa, na pesquisa participante, eu, como pesquisador,
confio no outro, no sujeito que interfere, se emociona, reage e constitui a situao em
pesquisa. A pesquisa realizada no mbito da universidade deve levar conhecimento (que foi
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construdo coletivamente) para a ao dos grupos populares, rompendo com uma constatao
de Gramsci: eles sentem, mas no compreendem; ns compreendemos, mas no sentimos10.
Reafirmo, assim, um ponto que me parece central desta perspectiva de pesquisa: todos
os envolvidos na atividade de pesquisa so sujeitos do conhecimento, no h meros
informantes. Isso no significa que todos sejam iguais, ao pesquisador cabe um conjunto de
atividades pertinentes ao seu que-fazer. Por isso,
a pesquisa participante deve ser compreendida como um repertrio mltiploe diferenciado de experincias de criao coletiva de conhecimentosdestinados a superar a oposio sujeito/objeto no interior de processos que
geram saberes e na sequncia das aes que aspiram gerar transformaes apartir tambm desses conhecimentos (BRANDO; STRECK, 2006, p. 12).
Prticas participantes de pesquisa se constituram como instrumento privilegiado de
ao nos trabalhos de Educao Popular, principalmente a partir da dcada de 1970
(BRANDO, 2006c). Desse modo, a realidade latino-americana o pano de fundo que
orienta essa concepo de pesquisa, associando-se a prticas cientficas populares, a chamada
cincia do homem comum (FALS BORDA, 2006a), potencializando o deslocamento de
pesquisa dos trmites essencialmente acadmicos para o campo concreto da realidade. ParaOrlando Fals Borda (2006b, p. 75), socilogo colombiano, [...] os socilogos deviam
reconhecer esse fato bvio, que o observvel no absoluto e que tem interpretao e
reinterpretao.
Ao interpretar um fato, fenmeno ou situao, os cientistas no podem evitar a
interferncia de sua subjetividade na interpretao que fazem (FREIRE, 2006, p. 37);
contudo, a responsabilidade tica do pesquisador diante dos achadosda pesquisa, ainda que
eles contrariem nossas concepes pessoais, deve prevalecer.
Dessa forma, os princpios metodolgicos que orientam a prtica participante de
pesquisa so: a) autenticidade e compromisso, b) antidogmatismo, c) restituio sistemtica,
10 Essas consideraes de Brando so provenientes de duas intervenes: 1) Seminrio de Pesquisa Pesquisa, Participao e Transformao Social, realizado entre os dias 20 e 21 de julho de 2006, em SoLeopoldoRS, pelo Grupo de Pesquisa: Mediao Pedaggica e Cidadania, da UNISINOS, integrando o DVDsobre o seminrio; 2) Ciclo de Conferncias Pesquisa-Ao e Pesquisa Participante: histria e prticas,
promovido pelo Instituto Goethe, UNISINOS E PUCRS, entre os dias 20 e 23 de junho de 2011, em PortoAlegreRS.
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d)feedbackpara os intelectuais orgnicos, e) ritmo e equilbrio de ao-reflexo e f) cincia
modesta e tcnicas dialogais (FALS BORDA, 2006a). Como parte do aprender a conhecer
(WANDERLEY, 2010), a pesquisa participante promove uma estrada de mo dupla: de um
lado, a participao popular no processo de investigao. De outro, a participao da pesquisa
no correr das aes populares (BRANDO, 2006c,p. 31).
Para Gabarrn e Landa (2006), a identidade epistmica da pesquisa participante se d
em trs dimenses: 1) ao transformadora, 2) produo de conhecimentos e 3) participao.
A dimenso participativa das classes populares no processo de pesquisa articula a produo de
conhecimento com a transformao social, pois elas, por sua condio, so interessadas na
mudana (SILVA e SILVA, 2006).
Outra dimenso importante neste paradigma de pesquisa a emancipao. De acordo
com Michel Thiollent (2006, p. 161), emancipao o contrrio de dependncia, submisso,
alienao, opresso, dominao, falta de perspectiva. O termo caracteriza situaes em que se
encontra um sujeito que consegue atuar com autonomia, liberdade, autorrealizao etc.
Portanto, ao situar este quefazercientfico participante, por meio da pesquisa-ao, possvel
vislumbrarmos que esta estratgia de pesquisa se desdobra em duas frentes: 1) poltica,reafirmando a identificao com as demandas e interesses das classes populares e 2)
acadmica, pois essa modalidade de pesquisa apresenta dois atributos bsicos: relao de
reciprocidade entre sujeito e objeto e relao dialtica entre teoria e prtica (SILVA e
SILVA, 2006, p. 127).
Alm disso, a pesquisa-ao como abordagem participante parte de um projeto
historicamente construdo que aponta para duas direes bsicas: a) vertente educacional da
pesquisa participante construda a partir da obra de Paulo Freire, b) vertente sociolgica destamodalidade de pesquisa que encontra em Orlando Fals Borda sua base.
Estabelecidos esses pontos em relao pesquisa participante como modalidade de
pesquisa, possvel compreendermos que a articulao entre as dimenses ontolgica,
epistemolgica e metodolgica no trabalho de pesquisa social (BAQUERO, 2009) aponta
para a complexidade que envolve a reconstruo da realidade (FERNANDES, 1997) pelo
pesquisador das cincias sociais.
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Em se tratando de uma pesquisa de natureza qualitativa na rea das cincias humanas e
sociais, entendo que a pesquisa social frequentemente acontece junto com seu pblico, sem
laboratrios, uniformes e rituais que criem distncias artificiais (SOBOTTKA, 2005, p. 51).
Essa uma potencialidade das prticas participativas de pesquisa no debate sobre a
descolonialidade: partir dos saberes populares, valoriz-los, dot-los de validade epistmica,
pois a leitura de mundo precede a leitura da palavra.
Assim, novas possibilidades de conhecimento podem fundar novos entendimentos
sobre a vida cotidiana, sobre a histria e sobre projetos futuros. Uma nova orientao em nvel
intersubjetivo nos faz caminhar para o sul,suleandonossas conscincias. Nesse sentido,
o sentido de sulear, portanto, sugere construir paradigmas endgenosenraizados em nossas realidades, invertendo a lgica que foi historicamentedeterminando o destino de nossos povos de fora para dentro. [...] Analisandoo caso brasileiro, [Freire] denunciou a atitude dos intelectuais queintrojetaram a viso europeia sobre o Brasil, como pas atrasado, posturaessa que fortalecia ainda mais a colonialidade (STRECK; ADAMS, 2014, p.38).
Ao produzirmos nossas pesquisas em dilogo com os segmentos populares,
provocamos novas possibilidades de prticas emancipatrias, que indicam caminhos
contrrios aos processos de colonialidade. O argumento que estou apresentando no procura
idealizar os saberes populares e apenas inverter a lgica hierrquica do conhecimento, pois,
pelo contrrio, ao dialogar com Freire e demais autores de referncia do campo da Educao
Popular, minha aposta que este debate epistemolgico seja precedido por uma postura
poltica inserida em um projeto de transformao social.
4 Consideraes FinaisUm dos objetivos deste artigo foi apresentar as implicaes da pesquisa participativa
com a (des)colonialidade na Amrica Latina. Para isso, apresentei algumas caractersticas do
pensamento freireano, tendo em vista o trabalho em nvel da prxis que a vertente da
Educao Popular nos legou.
Para alm das marcas do processo colonial em termos econmicos e polticos, ao me
referir colonialidade destaco o aspecto intersubjetivo que promove cenrios permanentes de
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dominao ideolgica, tanto na Amrica Latina como em frica. Assim, nosso complexo de
vira-latas, na linha de Nelson Rodrigues, indicativo desse processo que assume algumas
facetas de violncia simblica.
A epistemologia freireana oferta interessante abordagem a partir da realidade material
e simblica das classes populares, afirmando o estatuto epistmico dos sujeitos
desumanizados pelo sistema opressor. Ao viver, as pessoas produzem conhecimentos que
respondem a demandas postas pela sociedade de seu tempo histrico. Esse saber de
experincia feito prximo a uma primeira leitura do mundo e precisa de aportes crticos
que se sustentam na leitura da palavra, ao esta produzida em grande parte pelos processos
de escolarizao.
Nesse sentido, a conscincia parte do sujeito cognoscente, daquele que vive e produz
um saber que brota dessa vivncia. Assim, basta ser homem para ser capaz de captar os
dados da realidade. Basta ser capaz de saber, ainda que seja este saber meramente opinativo.
Da que no haja ignorncia absoluta, nem sabedoria absoluta (FREIRE, 2007, p. 113). O
desafio est em possibilitar aos sujeitos, a partir de processos emancipatrios, o
desenvolvimento de percepes mais crticas dessa realidade que os cerca, que os influncia,mas no os determina.
Dessa forma, os pressupostos da vertente da Educao Popular surgem e se afirmam
no contexto latino-americano fazendo a denncia dos processos de dominao (cultural,
econmica, poltica), anunciando possibilidades emancipatrias a partir da formao crtica
dos sujeitos.
Por isso, a questo do conhecimento na Educao Popular ponto central para a
construo de novas leituras da realidade. As estratgias metodolgicas de pesquisa
participante oportunizaram importante repertrio para a problematizao de aspectos
presentes no pensamento colonial que fomentaram o quadro de colonialidade ainda presente
em nossa sociedade.
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