Escada do Céu_SJClimaco

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1http://alexandriacatolica.blogspot.com.brPROLOGOi SO JOO CLMACO compoz duas obras notabilis-simas: uma a Escada do Ceo, tambm denominada Escada Santa, Escada Espiritual, Escada do Paraso; outra a Carta ao Pastor. A Escada do Co, allegoria da escada que o patriarcha Jacob viu em sonho, formada de trinta degraus, correspondentes aos trinta annos da vida privada de JESUS CHRISTO, dividida por isso em trinta captulos. O santo autor applica esta escada mysteriosa da Escriptura escada das virtudes. E' este o livro que tomei a peito traduzir para o portuguez, no obstante a minha pouca competncia. Procurei a bibliographia dessa obra na Historia Geral dos Autores Sagrados e Ecclesias ticos, por DOM REMY CEILLYER (edio de 1882, Paris, Louis Vives, Rue e-lambre, 13) tomo XI, pag. 676 a 695, onde vi que foi originalmente escripta em grego e est no tomo 88. da Patrologia Grega, columnas 631-12x0. O citado REMY CEILLYER refere muitas edies de SO JOO CLMACO em lnguas vivas, a saber: uma, italiana, impressa em Veneza, por Marinelli, em 1585; outra em grego vulgar, pelos cuidados de Margonius, bispo de Cythera, impressa nesta mesma cidade em 59> outras, hespanholas, uma das quaes impressa em Toledo, em 1504, outra, em Salamanca ( a traduco de FR. LUIZ DE GRANADA), em 1571; outras francezas, impressas em Paris, em 1654 e cm 1G61, alm de uma verso livre que appareceu em 1784. Uma dessas edies francezas a traduco de ARNAUD DANDILLY.http://alexandriacatolica.blogspot.com.brIV3No consegui encontrar as traduces francezas e a italiana; mas, felizmente, na Bibliotlieca Nacional, do Rio de Janeiro, havia e ha um exemplar do Clhnax ou Escada do Ceo, tradueco hespanhola, impresso em 1562: a mesma traduco de FR. Luiz DE GRANADA, reimpressa em Alada de Henares, em 1571, conforme verifiquei de um exemplar que, por intermdio da Casa Laemmert, pude adquirir. Nas paginas do frontespicio desse livro acha-se o seguinte: Livro de SO JOO CLMACO, chamado Escada Espiritual, no qual so descriptos os trinta degraus, por onde podem subir os homens ao cume da perfeio. Agora novamente posto em ro-mance pelo padre FR. LUIZ DE GRANADA, e com an-notaes suas aos primeiros cinco captulos, para inteligncia delles. Impresso com licena em Alcal de Henares, em casa de Sebastio Martinez.Anno de 157 I. Est taxado em dous rcaes. Foi examinado este livro pelo R. P. F. Francisco Foreyro, Examinador de livros pelo Reverendssimo e Serenssimo Cardeal In-efante D. Henrique, Inquisidor Geral nestes Reinos de Portugal, etc.Por mandado dos senhores do conselho, passe um livro que se intitula So JOO CLMACO, traduzido do latim em romance, pelo padre Fr. Luiz de Granada, no qual no acho doutrina que no seja catholica romana; e assim me parece que se deve im-primir, porque contem grandes conselhos para os que querem renunciar o mundo, e muitos avisos para os que o ho renunciado. Feita em S. Francisco de Madrid, a 18 de Novembro de 1564. Fr. Francisco Pacheco. Por aqui se v que FR. LUIZ DE GRANADA fez a traduco, tendo em vista outra traduco hespanhola. Elie prprio diz que romanceou, isto , deu forma amena e vulgar; mas, teve tambm de faz*er, em grande parte, traduco nova. E assim o refere na sua dedicatriaA' muito alta e muito poderosa Rainha de Portugal Dona Catharina, nossa senhora, nos seguintes termos: Entre os livros que, tratando do instituto e costumes da vida religiosa, nos ficaram daquella gloriosa antiguidade e tm prevalecido contra a injuria dos tempos, dous, Serenssima Senhora, sobre todos, se tornam notveis: as Conferencias, de J00 CASSIANO, e a Escada Espiritual (ou Escada do Ceo), de So JOO CLMACO. O primeiro, at agora, no tem tido interprete castelhano, o que, alis, seria de muita utilidade, visto estar cm latim escuro para os menos versados em latinidade, alm da necessidade de proporcionar o goso de to cxcel-lente doutrina a muitos Religiosos e Religiosas, que de todo no sabem o latim; mas, o segundo, que mais breve, posto que no menos dificil de ser entendido, teve muitas traduces em diversas lnguas. Este livro foi originalmente escripto em grego e, por duas vezes, foi traduzido para o latim. Destas traduces, uma antiga, muito escura e barbara; outra, feita por AMBRSIO CAMALDULENSE (o mesmo que traduziu as obras de So DIONSIO), nova e elegante. Tambm foi traduzido nas lnguas toscana e castelhana, sendo que, nesta, duas vezes: destas traduces, uma tambm antiga e to antiga, que difficilmeote se entende; outra, que muito nova, feita por um arigonez ou valenciano, no menos obscura e dihcil, tanto pela difiiculdade do livro, como por muitos vocbulos peregrinos e estrangeiros de que est recheada. Parecendo-me que bastaria, para intelligencia do livro, mudar estes vocbulos e tornar claras algumas phrases e alguns perodos, assim comecei a fazer; mas, vendo-me forado a recorrer algumas vezes fonte do original, achei que, cm muitas partes, era to differente da lettra do autor o sentido do interprete, que fui forado a tomar de novo todo o trabalho da traduco. Este trabalho me foi to grande, que, si desde o principio eu o previsse, por ventura no me atreveria a elle, comquanto o d por bem empregado, para que saia luz, como convm, uma obra de to excellente autor e de to alta e maravilhosa doutrina. E si a algum parecer que estes livros no devem ser postos em vulgar, por no conservarem na traduco a graa do original, a isto se responde que necessrio haver livros santos e devotos cm lingua tal, que possam ser entendidos; afim de serem lidos nos mosteiros, lio ordinria, comida e ceia em seus refeitrios, assim como nos coros e nos captulos das Ordens dos Augustinianos, Franciscanos, Bernardos c outras, c mesmo nas horas de trabalho manual nos mosteiros de Religiosas. Ora, no ha livros que melhor correspondam a este santo propsito, do que os escriptos pelos Santos Padres antigos, to assignalados, no s na santidade, como na experincia e doutrina, nas cousas da Religio. Alm disso, posso ainda mais facilmente ex-cusar-me, allegando que no fiz cousa nova cm traduzir este livro, porque j estava elle traduzido, limitando-mc eu a tornar fcil, fiel e claro, aquillo que se achava em estylo escuro, perplexo e escabroso. Eu quiz offerecer a Vossa Alteza este trabalho, porque, alm de ser a nossa Ordem sustentada pela vossa Real prudncia e magnificncia, tambm entendi que no vinham estes escriptos fora do vosso religiosssimo e santo propsito; pois, segundo se l do Beato S. Martinho, de tal maneira preenchia a dignidade de bispo, que nem por isso desamparava o propsito de monge, assim Vossa Alteza, pela piedade e clemncia, de tal maneira cumpre as obrigaes do estado de Rainha, que no deixa de ter espirito e costumes de Religiosa; como tambm se l daquella Beata virgem Ceclia, que, andando por fora vestida de sedas e rendas, trazia junto s carnes um cilicio. Receba, pois, Vossa Alteza, com sua costumada serenidade, este pequeno presente, para que, quando alguma vez fr aos mosteiros da MADRE DE DEUS, ou da Esperana, a respirar com DEUS dos trabalhos contnuos do governo, tenha com que recrear algum tanto o espirito na leitura deste divino livro. NOSSO SENHOR amplifiquee engrandea a mui alta e poderosa pessoa e estado de Vossa Alteza com perptuos favores do Co. Fr. Luiz de Granada. No estranhem os leitores que seja dado, nessa dedicatria, o titulo deVossa Alteza rainha D. Catharina, viuva de D. Joo III, e regente de Portugal. Outr'ora, somente o imperador tinha o tratamento de Vossa Majestade; os outros reis tinham o tratamento deVossa Alteza, Vossa Serenidade, Vossa Graa. Depois de 1741 que o titulo Majestadefoi generalizado a todos os reis e rainhas. Em seguida a essa dedicatria, FR. LUIZ seus leitores: Ao leitor christo. Dos quatro degraus com que So BERNARDO arma uma escada espiritual, por onde os verdadeiros Religiosos sobem ao cume da perfeio, o primeiro a Lio, o segundo a Meditao, o terceiro a Orao, e o quarto a Contemplao, para 0 qual se ordenam todos os outros. Os quatro degraus de tal maneira esto entre si travados, que o primeiro dispe para o segundo, o segundo para o terceiro, o terceiro para o quarto; porque a Lio d matria de Meditao, a Meditao, uma vez accendida, desperta a Orao, e a Orao perfeita vem parar na Contemplao, onde a alma, esquecida de todas as cousas e de si mesma, docemente repousa e adormece em DEUS. Por aqui se v que a Lio, como semente c principio de todos os outros degraus, assignaladamente pasto c mantimento da alma, recolhimento do corao, despertadora da devoo, porque estes so officios prprios da palavra de DEUS. E como a Lio, para estes e outros fins, deva ser to familiar e quotidiana ao verdadeiro Religioso, no sei si para isto seria possvel achar mais conveniente leitura do que a deste bemaventurado Padre, (pie neste livro to alta e divinamente tratou do instituto e costumes da vida religiosa. Para tratar desta matria, requer-se principalmente santidade e experincia das cousas espirituaes, porque isto que principalmente faz os homens sbios nesta doutrina, como disse o Propheta Por teus mandamentos. Senhor, entendi, querendo significar que o exerccio e cumprimento dos mnndameutos de DEUS, o principal mestre desta celestial philosophia. Ora, um tal magistrio no faltou a este glorioso Padre, que, depois de ter vivido dezoito annos debaixo da obedincia de um santo velho, esteve quarenta na soledade, perseverando em contnuos jejuns, oraes, e exerccios de virtudes, vivendo vida mais que humana; e, por conseguinte, as palavras de sua doutrina no podem ser tomadas como de puro homem, e sim como de homem escolhido de DEUS, para que sua doutrina aproveite, no s aos de seu tempo, mas tambm aos que venham nos tempos futuros. < Outra particularidade tem esta celestial doutrina: que toda ella vae, nos respectivos logares, conferida e confirmada com diversos exemplos daquelles Santos Padres que em seu tempo floresceram, bem assim com alguns insignes milagres, muitos dos quaes o mesmo santo que os refere, viu com os seus prprios olhos. Dest'arte o leitor suavissimamente recreado pela variedade e doura da historia; e, por outro lado, com isso se nos representa aquclla idade de ouro, aquelle sculo bemaventurado em que floresceram aquelles gloriosssimos padres, dignos de eterna memoria, que foram os Paulos, Antonios, Hilaries, Macarios, Arsenios, e outros illustrissimos vares que viviam por aquelles desertos do Egypto, Thebas e Scithia, uns apartados em soledade, outros presidindo a grandes companhias e enxames de monges, derramados por todos aquelles desertos, vivendo vida de anjos na terra: cujos exemplos humilham nossa soberba, confundem nossa pre-sumpo e,* declarandonos o estado da verdadeira e perfeita Religio que ento havia, nos envergonham e do a entender a pobreza a que agora estamos reduzidos. Abunda, outrosim, em maravilhosas semelhanas e comparaes: porque este glorioso padre espiritualizava cm sua alma todas as cousas que via e, de todas as flores, fazia favos de mel com que a apascentava; e isto poder ser apreciado cm todo o decurso do livro, especialmente em uma recapitulao feita depois do capitulo da Dis-creo. Declara tambm infinitas maneiras de laos, tentaes, enganos e artes de nossos inimigos, como homem mui experimentado nesta guerra espiritual, e assim tambm nos prov de competentes remdios para tudo isto; porm, no que mais admirvel se mostra, nas definies que d dos vicios e virtudes, pintando com brevidade e elegncia todas as condies e propriedades do vicio e da virtude, de modo tal que, para conhecer a natureza destas cousas, ou mesmo para louvor ou condemnao delias, nada se pde desejar de mais completo. E no menos admirvel no declarar a causalidade e dependncia que ha entre uns vicios e outros, explicao essa que constituc ama principal parte da doutrina moral; pois, assim como, nas outras sciencias, principal oficio declarar as causas das cousas, assim tambm o nesta sciencia divina. Entendidos mui bem os vicios que um vicio acarreta, e as virtudes geradas por uma virtude, logo se move o homem a amar a esta e aborrecer o outro, pela fecundidade de bens ou de males que cada cousa destas traz comsigo. E isto o faz este santo com uma singular graa; pois, ao fim de cada capitulo, quasi sempre se tomar o vicio e pol-o a questo de tormento, isto , a perguntas, at fazel-o confessar toda a sua genealogia e parentela, a saber, quem seu pae, sua me, seus irmos, seus filhos e filhas, seus inimigos e contrrios e, finalmente, quaes os que lhe fazem a guerra e lhe cortam a cabea. Por isso, chama-se o livro Escada Espiritual, pela ordem e consequncia com que nelle so tratados tanto os vicios, como as virtudes; e o autor mereceu o o cognome deDEGRANADA faz est'outra aosIV4Clmaco, que em grego (v.huat) quer dizer escada, por ter clle ordenado e traado to altamente todo o livro com esta ordem e consequncia de degraus espirituaes, comeando pelo primeiro, que a renuncia do mundo, e acabando no ultimo, que o das Ires virtudes theologaes, e das virtudes hericas, que so dos nimos j purgados e no ultimo grau de perfeio.Faz lambem muito fincap na mortificao das paixes e appetites (que uma das principaes cousas que nesta doutrina devem ser recommendadas), porque a natureza humana, como inimiga do trabalho e amiga" do prazer, quando quer dar-se virtude, anda cata de florinhas e leite da devoo e dos gostos de DEUS, furtando o corpo s labutaes e aos exerccios da mortificao, necessrios para vencer as nossas ms inclinaes. E nisto carrega clle tanto a mo, (pie a alguns pareceu demasiado, isto , pareceu a alguns que queria lazer um homem quasi estico e de lodo sem paixes. Mas, no ha tal: elle la/, captulos apropriados sobre espirituaes affectos, como sejam o pranto, a dr, o temor, o amor, o goso espiritual e outros, recommendando os bons, desterrando os maus, e espiritualizando e santificando os indiflerentes; alis, commum estylo dos Doutores, quando querem tirar os homens de um extremo a que esto mui inclinados, dobral-os fortemente at o outro extremo, afim de que fiquem no meio termo. Para tudo isto no falta ao nosso autor eloquncia ensinada, mais pelo ESPIRITO SANTO do que por industria humana, como pde o discreto leitor bem apreciar, no s pelos epitbetos, pelas mil maneiras de meta-phoras e figuras de que elle usa, como pelos muitos affectos suavssimos que intromelte na doutrina, no inventados por arte, mas nascidos do mpeto interior e gosto do espirito, verdadeira e natural eloquncia que a arte pretende imitar. Isto resplandece no capitulo e degrau quinto, sobre a Penitencia, no qual so descriptas as penitencias e asperezas que faziam os monges santssimos de um mosteiro denominado Crcere. E porque alguns fracos pudessem desmaiar ou temer demasiadamente, considerada a grandeza e rigor das penitencias que ahi so narradas, foi acerescentada, no fim do capitulo, uma Anno-tao, para amenizar e ensinar o uso desta doutrina, que serve, no para desmaiar os coraes, mas para vr quo admirvel DEUS em seus santos, e para humilhar e confundir toda a nossa presumpo c soberba com os seus exemplos. No sei si, para os tempos que correm, seria possvel achar doutrina mais conveniente, pela qual to a propsito sejam confundidas todas as blasphemias e loucuras dos hereges; pois, si verdade que toda a sabedoria de DEUS (que, como diz DANIEL, o mestre e corregedor dos sbios), claro est de vr quanto mais perto estava o espirito do SENHOR de ensinar um homem que, depois de dezoito annos de obedincia, viveu quarenta em soledade vida de anjo,do que a uns brutos animaes que nenhuma outra cousa fazem sino comer e beber, nem souberam, em toda a vida, que cousa jejuar um dia, nem estar uma noite com DEUS em orao. Pois este santo philosopho, cheio desta sabedoria celestial, aprendida, em parte, deste ESPIRITO e, em parte, dos ditos c feitos daquelles illustrissimos e santssimos Padres antigos, nada mais profere sino gemidos, trabalhos, lagrimas, viglias, jejuns, oraes, penitencias, obedincia, sujeio, cnticos de psalmos, soffrimento de injurias, macerao da carne, abnegao de si mesmo, mortificao de paixes, imitao de CHRISTO, castidade, piedade, silencio, continncia, esmola, juntando sempre trabalhos a trabalhos, obras a obras, e ensinando desta maneira a amar, crer e confiar em DEUS. Esta a philosophia que o ESPIRITO SANTO ensina aos seus, e que todos os santos professaram e ensinaram; o contrario delia dogmatiza a philosophia do mundo, do diabo, e da carne. Para que o leitor christo comparticipe de todos esses bens, tomei a tarefa de traduzir este livro, traduco que, como j disse, achei muito mais difficultosa do que pensava: primeiramente, pela variedade de traduces, o que me obrigou frequentemente a comparar, examinar e ponderar o sentido mais conforme inteno do autor; segundo, porque o nosso autor era grande amigo da brevidade, ou por serem mui sbios aquelles para quem clle escrevia, ou porque, sendo clle, como parece, grande amigo do silencio, e tendo sido impellido a fallar, buscou fallar o menos que lhe fosse possvel. D'ahi resulta que, algumas vezes, prope questes e no as responde; outras vezes, prope comparaes e no as applica; e, assim, as deixa como allegorias, ou como enigmas. Outras vezes, por uma sentena contraria, quer que se entenda a outra, sem explical-a; outras vezes, corta o raciocnio, deixando a sentena suspensa ao juzo do leitor. E, sendo elle em taes logares to escuro quanto profundo, tive eu de deixar o officio de interprete e tomar o de paraphrasta, estendendo a brevidade para explicao da sentena. E, assim como nestes logares acerescento palavras e clausulas, em dous ou tres, apenas, as supprimo, por se referirem a cousas que s os sbios podem comprehender exactamente. Com todas estas diligencias, ainda assim no ousarei aflirmar que acertei sempre na traduco; antes suspeito que em muitos pontos errei e mais erraria, si me no ajudassem os commentarios de DIONSIO CARTUXANO, varo religioso e doutssimo, que, entre outros trabalhos, tomou Lambem o de glosar este livro. Por certo no fora mal empregado o trabalho de algumas annotaes que fiz aos cinco primeiros captulos, afim de declarar o estylo c inteno do autor, tanto mais (pianto suas sentenas, muitas vezes debaixo de breves palavras, comprehendem grandes avisos, como,por exemplo, quando diz que, na orao, deve estar o homem diante de DEUS como o ro sentenciado morte diante do juiz. Emfim, o intento do autor a formao do perfeito Religioso, tal que, vivendo na carne, viva como si estivesse fora delia, segundo escreve SO JERONYMO a EUSTACHIO. Este o fim desta obra e para este fim ordenado tudo o mais.. II Esta critica, feita pelo prprio FR. LUIZ DE GRANADA, dispensa a reproduco da critica de DOM REMY CEILLIER; mas, no dispensa alguns esclarecimentos bibliographicos que o mesmo CEILLIER nos fornece, nem a noticia da Carta ao Pastor, outra obra de SO JOO CLMACO, qual FR. LUIZ DE GRANADA no faz referencia. O pastor a quem elle se dirige, o mesmo abbade de Raithe. O verdadeiro pastor aquelle que pde, por seus cuidados e por suas. oraes, chamar ao aprisco as ovelhas desgarradas; para isso, lhe necessrio ser illu-minado por DEUS, ter experincia da condueta das almas, ser to casto de corpo e de espirito, que possa dispensar o auxilio e os remdios dos outros. Em suas instruces publicas, deve collocar-se em logar elevado, afim de fazer-se ouvir melhor; empregar palavras speras para corrigir aquelles que estacam no caminho da virtude; velar com o mximo cuidado sobre aquelles que cahem na tibieza e no desanimo; no perder de vista aquelles que a tentao pe cm perigo de perecer; chorar e gemer por elles perante DEUS; compadecer-se de suas fraquezas; animar-se de uma santa clera contra o vicio, sem temer contristar por algum tempo aquelles que se acham sob a presso desse demnio. Elle aconselha os superiores a que reprehendam os inferiores, advertindo-os que se corrijam, attribuindo a si mesmos a culpa pie queiram fazer recahir sobre os outros; e, quando um certo pudor impedir a reprehenso com liberdade, faam-n'a por escripto. O modo de agir no deve ser o mesmo para com todos os que se apresentam para a converso: aos que se apresentarem acabrunhados sob o peso de seus peccados e prestes a cahir no desespero, preciso prlhes diante dos olhos a doura do' jugo de JESUS-CHRISTO; pelo contrario, aos que estiverem cheios de estima de si prprios, fazer-lhes notar que o caminho do Co rude e estreito. O superior deve estudar perfeitamente o espirito e o corao daquelles que se acham sob sua disciplina: no deve nem abater-se nem elevar-se imprudentemente, mas, imitando a discreo de SO PAULO, deve ora humilbar-se para consolar e edificar os fracos, ora elevar-se para confundir e abater os soberbos. Ha duas classes de pessoas que se apresentam para professar em Religio: umas so carregadas de peccados; outras so innocentes. O superior deve indagar das primeiras as culpas que commetteram, e isto por duas razes: uma, afim de que a confisso destes peccados torne-as to profundamente humildes, que permaneam na modstia e em estado de verdadeira penitencia; outra, afim de que, pela memoria das chagas que tinham quando entraram para o mosteiro, concebam por aquelle que trabalhou em cural-as, uma affeio sincera. Cuidado, acerescenta SO JOO CLMACO, em no ser demasiadamente exacto e severo no reprehender at as menores culpas: de outro modo, no imitars a bondade de DEUS, que soffre um numero infinito de defeitos nossos. D um alimento mais solido aos que correm com ardor na carreira da vida espiritual; mas, no alimentes sino com leite aquelles que caminham mais de vagar, tendo menos coragem e virtude, porque um alimento muito forte os lanaria em languidez. E' da prudncia do superior observar aquelles que lhe contradizem e lhe resistem com audcia, e reprehen-del-os com palavras duras cm presena de pessoas elevadas em dignidade, afim de dar temor aos outros; e deve usar desta severidade, ainda que os Religiosos fiquem vivamente resentidos desta humilhao, pois que o bem e a cura de muitos so preferveis pena e dor de um s.EDtre aquelles que se incumbem da conducta dos outros, uns, fervendo de caridade, fazem por seus subordinados mais do que podem; outros, porm, se empregam na direco do prximo a contragosto e como que forados, no obstante terem recebido de DEUS a graa e as luzes necessrias ao cargo. So JOO CLMACO louva os primeiros e censura os segundos; mas, de par recer que um pastor pde dispensarse de fazer um bem por um maior bem, por exemplo, fugir ao martyrio, no por temor nem por cobardia, mas para utilidade de seu rebanho. O superior deve tomar todas as medidas necessrias para experimentar a vocao de cada um; testemunhar maior doura e caridade que antes, aos Religiosos que lhe confessaram culpas, afim de augmenlar sua confiana; supportar com pacincia as imperfeies dos seus subordinados, mas nunca soffrer que desobedeam formalmente s suas ordens. O mais agradvel de todos os presentes que possam ser offerecidos a DEUS, diz ellc, o de consagrar-lhe as almas pela penitencia. Todo o universo no comparvel a uma s alma, porque o universo, sendo corruptvel, passar, e as almas, sendo immortaes, subsistiro eternamente. Mas, para soecorrer e consolar aquelles que emprehendemos fazer entrar na calma das paixes e na paz interna da alma, precisamos da graa de DEUS.Antes de concluir sua carta, descreve como o excellente superior que elle teve, no seu mosteiro, dirigia os Religiosos, as leituras, as oraes, o numero de psalmos, que esse superior mandava recitar, asIV5vigilncias que exercia, os cuidados que tinha at no modo de alimentao de cada um, e termina: Todos executam pontualmente, sem o menor murmrio, as suas ordens. Elle tinha sua disposio uma loura, isto , um certo numero de cellas situadas no deserto e longe umas das outras, para onde enviava de seu mosteiro os Religiosos que tinham attin-gido a uma virtude asss sublime para viver constantemente na soledade. Lamentamos no ter encontrado livro algum, onde por extenso haja traduco dessa Carla ao Pastor; mas, j muita, j mesmo superior ao nosso merecimento, a consolao de ter encontrado a Escada do Ceo, traduzida em hespanhol por FR. Luiz DE GRANADA.subseininata a principio. . . ostc?idens ei boniim et malum, et hcec conscientia vocattir lex natnralis, isto , Conscincia uma centelha da luz divina, como que semeada no homem desde o momento de sua creao, man:festando-lhe o bem e o mal, e esta conscincia chama-se lei natural.Mas, no ha necessidade de acerescentar cousa alguma s annotaes de FR. LUIZ DE GRANADA, O admirvel dominicano, que, nas lnguas da pennsula ibrica, considerado entre os clssicos mais autorisados, e que, na litteratura asctica, tem proeminente logar de honra. Como est dito na sua dedicatria rainha D. Catharina, o Clmax ou Escada do Ceo um livro destinado aquelles que aspiram perfeio christ; mas, exceptuados os cinco primeiros captulos, e o vigesimosetimo, que quasi completamente se referem aos que renunciaram 011 pretendem renunciar o mundo, e o penltimo, que se refere s virtudes hericas, os outros so quasi completamente appliveis a todos os estados. Alis, o perfeito cumprimento dos deveres de cada estado encerra a mais sublime santidade; pois, como lembram So FRANCISCO DE SALLES e outros, na creao, DEUS ordenou que todas is plantas produzissem fruetos, mas cada uma segundo seu gnero, juxta gemts suum. O prprio So JOO CLMACO, no estupendo capitulo sobre a Discreco, nos explica o alcance da sua doutrina, quando diz que o demnio, s vezes, incita-nos a obras que excedem as nossas foras, como sejam grandes abstinncias, viglias, longas oraes, etc, para que, no podendo fazer o que queremos, deixemos de fazer o que podemos; e os Santos Padres no deixam de notar, em muitas de suas obras, que ha nos santos cousas que so para admirar e no para imitar. rv Qual tenha sido o logar e qual tenha sido o anno do nascimento de SO JOO CLMACO, nada ha de certo confiar na misericrdia e clemncia de DEUS. O monge Isaac, vendo-se logo livre de to extranha e sensual paixo, ficou attonito e deu graas a DEUS e ao seu servo. As virtudes do santo j provocavam a inveja a alguns que viam a sua cella como um ponto de visita dos que iam pedir-lhe conselhos; e, desejando elle, imitao do Apostolo, tirar a oceasio de calumniar aos que a buscam, determinou calar-se durante algum tempo e recolher-se ao silencio. Seus emulos, maravilhados desta humildade, vendo que tinham estancado uma fonte de celestiaes ex-hortaes, vieram, elles prprios, compungidos, pedir o costumado pasto de sua doutrina. E, por fim, quando j elle tinha chegado aos oitenta e cinco annos, todos os monges do mosteiro do monte Sinai, com um mesmo affecto e desejo, o foraram a tomar o cargo de abbade, para que os dirigisse e conduzisse na vida espiritual, como mestre c pastor. Por esse tempo, outro bemaventurado, Joo, abbade de Rafthe, mosteiro situado junto ao Mar Vermelho, a algumas lguas do mosteiro do Sinai, escreveu-lhe a seguinte carta: Ao admirvel varo, igual aos anjos, padre de padres, doutor excellentc, Joo, abbade do mosteiro do monte Sinai, Joo, peccador, abbade do mosteiro dc Raithe, sade no Senhor. Ns, que to apartados estamos da perfeio, venervel padre, sabemos que a singular e perfeita obedincia no examina o que mandado, especialmente quanto s cousas conformes ao talento que DEUS vos liberalizou; e, por isso, determinmos supplicar-vos e pr em pratica aquelle mandado do Propheta: Pergunta a teu pae e elle te ensinar, e aos antigos e elles te respondero. Por esta carta, prostrados diante de vs, vos sup-pl iam os que, como pae commum de todos, e como o mais antigo na lucta dos espirituaes trabalhos, e como o mais avantajado em agudeza de entendimento e em perfeio de todas as virtudes, tenhaes por bem descrever, a ns outros, rudes e ignorantes, as cousas que, na contemplao divina, como outro Moyss, neste mesmo monte vistes; e d'ahi vos digneis trazer-nos as taboas divinamente escriptas, com a doutrina para o novo Israel, isto , para aquelles que inteira e perfeitamente sahirain deste Egypto espiritual e do mar tempestuoso deste mundo. E do mesmo modo que, com essa lingua divinal, como com outra vara, fizestes maravilhas nesse mar, assim agora, inclinado por nossos rogos, vinde diligentemente ensinar-nos a perfeio da vida monstica. No por lisonja que assim vos falamos: nada mais dizemos do que aquillo que todos veem, entendem e dizem. Confiamos no SENHOR, que receberemos em breve as vossas lettras, esculpidas pelo ESPIRITO DE DEUS, pelas quaes direitamente sejam guiados os que sem erro desejam caminhar, lettras que sero como uma escada que chega at as portas do Co, pela qual subam com segurana, sem que as espirituaes malcias e os prncipes das trevas do mundo possam impedir a subida; pois, assim como o santo patriarcha JACOB, sendo pastor de ovelhas, viu em sonho aquella escada (pie chegava at o Co, tambm a ver e armar mestre das racionaes ovelhas. Seja DEUS sempre com-vosco. SO JOO CLMACO tomou esta rogativa por uma ordem vinda de DEUS, e assim respondeu: Recebi vossa venervel carta, produeto de vosso humilde e limpo corao, a qual considero um preceito c mandamento que excede as minhas foras. Era prprio de vs pedir-me a mim, rude e ignorantssimo, regras de doutrina e virtude; e, si no me compcllisse o medo e o perigo de sacudir de mim o jugo da obedincia, recusaria O encargo. Melhor fora que tivsseis procurado outros mais exercitados; mas, como a verdadeira obedincia consiste, segundo dizem os Santos Padres, exactamente no cumprimento das cousas que parecem exceder as nossas foras, tomei ousadamente a tarefa,III Os interpretes e commentadorcs da Escada do Ceo, alm de ARNAUD D'ANDLLLY e FR. LUIZ DE GRANADA. foram: JOO, abbade de Raithe, a cujas instancias foi escripta a obra, e que a traduziu para o latim; ELIAS, metropolitano de Creta ou de Candia, que, em tres volumes, fez os seus commentarios em grego vulgar; DIONSIO CARTUXANO, a quem se refere FR. LUIZ DE GRANADA; ISSELTIUS, doutor flamengo, que commentou a verso latina de AMBRSIO CAMALDULENSE; e outros a que j nos referimos. Mas, a edio seguida nas antigas Bibliothecas dos Padres, a feita em grego e em latim, por MATHEUS RARUS, que reviu um grande numero de manuscriptos, e impressa nas officinas dos celebres irmos Cramoisy, em 1633. O citado CEILLIER aproveita algumas notas de ARNAUD DANDILLY e analysa os Commentarios do abbade de Ranhe, do qual transcreve, como mais notvel, a definio da conscincia, que elle no distingue da lei natural: Conscientia est scintilla divini luminis in homine condito a respeito disso; mas, os seus escriptos so do fim do sculo VI ou principio do sculo VII; e, tendo elle passado sua mocidade e quasi toda a sua vida na montanha do Sinai, conjecturam que tivesse nascido na Palestina e que ahi mesmo aprendesse as bellas lettras e, em geral, as sciencias humanas, nas quaes era muito versado. Aos dezeseis annos renunciou o mundo paia receber o jugo da vida monstica em um mosteiro do monte Sinai: conta-se que um piedoso abbade, chamado Stratcgio, assistindo sua profisso, predisse que esse joven Religioso seria um dos grandes luzeiros do mundo. Durante dezoito annos esteve elle sob a direco disciplinar de um santo velho chamado Martyrio, mantendo-se na mais perfeita obedincia; e, durante esse tempo, SANTO ANASTCIO, solitrio da mesma montanha do Sinai, predisse que aquelle joven seria o futuro abbade do mosteiro. No fim dos dezoito annos de exerccios e fiel sujeio, SO JOO CLMACO viu fallecer o velho Martyrio; e esta morte despertou nelle o desejo de abraar a vida dos anachortas, isto c, a soledade. Escolheu para isto um logar chamado Thola, a cinco milhas de uma egreja; c, a essa egreja, aos sabbados e domingos, vinha elle, como os outros solitrios, para ouvir missa e commungar. Assim perseverou, por espao de quarenta annos, com grande alegria e fervor de seu espirito, em orao, trabalho de mos, meditao das grandes verdades da Religio, sobretudo a meditao da morte. Sua abstinncia era perfeitamente regulada: comia de tudo, porm em minima quantidade, afim de que, comendo de tudo, evitasse a nota de singularidade e vangloria, e, comendo pouco, vencesse a intemperana. De tal maneira apagou a chamma da luxuria, que j no lhe dava esforo a resistncia aos incentivos da carne. Venceu a avareza, essa idolatria dos bens da terra, na phrase do Apostolo, com a largueza e misericrdia para com os outros e com a escassez para comsigo, afim de que, contentando-se com o pouco, no tivesse necessidade de cobiar o muito, que o prprio desta pestilncia ; venceu a acidia e a preguia com a memoria da morte; venceu a ira com a obedincia; venceu a soberba e a frota de vicios que ella traz comsigo, levantando contra ella a memoria da Paixo de JESUS-CHRISTO e a virtude da humildade. DEUS lhe concedeu o dom das lagrimas: elle recolhia-se a uma cova, situada raiz do monte, para secretamente e longe dos outros solitrios, levantar vozes ao Co, gemer, suspirar, chorar, como si recebesse cautrios de fogo, cortes, dc feno afiado, e como si lhe estivessem arrancando os olhos. Dormia apenas o sufficiente para conservar a substancia do entendimento c no desfallecer com a demasia das viglias. O curso de sua vida era perpetua orao e constante exerccio no amor de DEUS: e o seu descano consistia em ler os Livros Sagrados e os Santos Padres, especialmente SO GREGORIO NAZIANZENO, SO BASILIO, CASSIANO e SO NILO. Mas, por maior que fosse o seu desejo de viver solitrio, teve de ceder a instancias de um monge, chamado Moyss, e tomal-o para discpulo. Conta-se que, achan-do-se o bemaventurado SO JOO CLMACO em sua cella, meditando e rezando, cahira em delicado somno e teve a viso de uma pessoa de rosto e habito venervel, que lhe dizia: Tu dormes to seguro, e Moyss, teu discpulo, cone perigo! Despertando apressadamente, comeou a rezar pelo discpulo, a quem, logo que regressou, perguntou si lhe tinha acontecido alguma cousa; Moyss, ento, referiu que estava dormindo debaixo de uma enormssima pedra, quando, parecendo-lhe ouvir a voz do mestre que o despertava, cheio de temor dera um salto para fora, e, logo depois, a pedra despenhou-sc c cahiu em terra. O nosso santo era tambm medico de secretas chagas. Conta-se que, chegando-se a elle um monge, chamado Isaac, pediu-lhe que o curasse de uma tentao e paixo carnal que o devorava; e, maravilhado o santo com essa humilde confisso, consolou o monge, convidando-o a rezarem juntos e aIV6fazendo este debuxo delineando as regras da vida espiritual, certo de que vs, como grande mestre que sois, haveis de accresccntar as cores e preencher as faltas. No a vs que eu dirijo esta pequena obra, mas quelles que nessa santa congregao recebem de vs, do mesmo modo que ns, as instruces de um sbio como vs sois. Rogo a todos aquelles a cujas mos vier este livro, que, si nellc acharem algo de proveitoso, no o attribuam sino ao soecorro de JESUS CHRISTO; a mim, paguem com oraes supplicando a DEUS que me d o premio do bom propsito, no mirando a minha ignorncia e simplicidade. Como a viuva do Evangelho, no offereo muito, mas offereo de boa vontade aquillo que tenho; alis, DEUS no attende tanto ao valor das olfertas e dos trabalhos, quanto alegria do propsito e ao fervor da vontade. Depois de haver dirigido por algum tempo o mosteiro do Sinai, So JOO CLMACO voltou soledade, deixando como suecessor na abbadia seu irmo Jorge, ana-chorta da mesma montanha, e que ahi tinha passado setenta annos na pratica de todas as virtudes. Quando SO JOO CLMACO achava-se nas ultimas horas de vida, veiu seu irmo visital-o, e em lagrimas lamentou que o santo o deixasse sem soecorro e sem assistncia. No te aflli-jas, respondeu-lhe o santo; si eu tiver algum poder perante DEUS, elle no vos deixar um anuo no mundo. Com cffeito, Jorge morreu dez mezes depois de seu irmo.V Os gregos celebram a festa de So JOO CLMACO a 30 de Maro de cada anno, dia que lhes parece ter sido o de sua morte; e o kalend.irio da Egreja consagrou esse dia sua memoria. Eu nasci no dia 30 de Maro de 1856: minha me, minha boa e santa me, foi a primeira pessoa de quem ouvi o nome do santo do dia do meu nascimento; dons irmos meus, Maria e Fernando, este j chamado ao seio de DEUS, nasceram nesse mesmo dia, aquella em 1858 e este em 1860; meu pae, cuja vida foi uma escada de virtudes e cujos ltimos annos loram de continua penitencia e constante orao, incitou-me a promover a construco de uma capella dedicada a So JOO CLMACO, nos limites dos municpios desta Capital e de S. Bernardo, assistiu cerimonia da beno do local, celebrada pelo padre Cesar de Angelis, da Companhia de Jesus, e foi o primeiro signatrio do respectivo auto. Aili actualmente est formado um bairro, que os moradores do logar denominaram bairro de So Joo Clmaco, nome que, afinal, foi consagrado nos actos officiaes do Governo de S. Paulo. Sirva a capella de ponto de retiro espiritual; e DEUS se digne abenoar este meu esforo como penitencia dos meus peccados. S. Paulo, 24 de Agosto de 1902.SFpSodidiiici?a 3umoz.CLMAXOUESCADA DO COAMEU IRMOD r . F r Pa en nc ni Ms a c ef o on rdd l ee s d e A l m e i d aCAPITULO ID a r e n u n c ia e m e n o s p r e z o d o m u n d oEUS, cm sua incomprehensivel bondade infinita, houve por bem honrar com a dignidade do livre arbtrio as suas creaturas racionaes. )estas, umas podem ser chamadas amigos seus, w outras fieis e legtimos servos, outras de todo o Q ponto inteis, outras brbaros e apartados delle, outras seus inimigos e adversrios. Amigos de Deus so aquellas intellectuaes e espirituaes substancias que com elle moram. Servos fieis so aquclles que, sem preguia e sem cansao, obedecem sua santssima vontade. Servos inteis so aquelles que, depois de haver sido lavados com a agua do santo baptismo, no guardam o que nelle assentaram e capitularam. Brbaros so aquelles cpie esto arredados de sua santa f. Adversrios e inimigos so aquelles que, no contentes de ter sacudido de si o jugo da Lei de Deus, perseguem aos que procuram guardal-a. Cada uma destas classes de pessoas requer especial tratado; mas, o nosso propsito tratar somente daquellas que justamente merecem ser chamadas fidelssimos servos de Deus. Foram estes que, com a fora potentssima da caridade, nos impediram a tomar esta carga; e, por obedincia, sem tergiversar, estenderemos a nossa rude mo, tomaremos a penna, molhal-.i-hemos na tinta da humildade, para escrever em seus brandos e pie-http://alexandriacatolica.blogspot.com.br- 8 dosoi coraes, como em tahoas espirituaes, as palavras de Deus. Todavia, e antes de tudo, consignemos que Deus se offerece e prope, por verdadeira vida e sade, a todos os que tm vontade e livre arbtrio, sejam fieis ou infiis, justos ou injustos, religiosos ou irreligiosos, seculares ou monges, sbios ou ignorantes, sos ou enfermos, moos ou velhos, como a communicao da luz, a vista do sol e o curso do tempo, que so feitos pira todos. E comearemos pelas definies de alguns vocbulos que mais aproveitam ao nosso propsito. Irreligioso creatura racional e mortal, que por sua prpria vontade foge vida, tratando de tal maneira com o seu Creador como si acreditara que elle no existe. Iniquo aquellc que violentamente torce o entendimento da Lei de Deus, para. conformal-a com seu appetite e, sendo de contrario parecer, pensa que cr na palavra de Deus. Christo aquelle que trabalha, quanto ao homem possvel, por imitar a Jesus Christo, tanto em suas obras, como em suas palavras, crendo firmemente na Santssima Trindade. Amante de Deus aquelle que, ordenadamente e como deve, usa de todas as cousas naturaes e nunca deixa de fazer o bem que pde. Continente aquelle que, no meio das tentaes e laos, trabalha, com todas as suas foras, para alcanar paz e tranquillidade de corao e bons costumes. Monge uma ordem e modo de viver de anjos, estando em corpo mortal; monge aquelle que traz sempre os olhos da alma postos em Deus, e faz orao em todo o tempo, logar e negocio; monge uma perpetua contradico e violncia da natureza, e uma vigilantssima e infatigvel guarda dos sentidos; monge um corpo casto, uma bocca limpa, e um animo esclarecido com os raios da divina luz; monge um animo afflicto e triste, o qual, trazendo sempre diante dos olhos a memoria da morte, sempre se exercita na virtude. Renuncia e desamparo do mundo um odio voluntrio e um abandono das cousas da natureza, pelo desejo de gozar do sobrenatural. Todos os que abandonam voluntariamente as commodidades, prazeres e mais bens da vida presente, devem fazel-o, ou pela esperana da gloria futura, ou pela memoria de seus peccados, ou pelo amor de Deus: si algum tal fizesse por outras causas, sua renuncia seria indiscreta e temerria; comtudo, qual for o fim e termo de nossa vida, tal ser o premio que receberemos de Jesus Christo, juiz e remunerador de nossos trabalhos. Aquelle que sahiu do mundo para descarregar-se do peso de seus peccados, trabalhe por imitar os que esto sobre as sepulturas chorando os mortos, e no deixe de derramar continuas e fervorosas lagrimas e de gemer profundamente do intimo do corao, at que Jesus Christo levante a pedra do sepulchro (que a dureza do corao) e resuscite Lazaro (que o nosso cego espirito), livrando-o dos peccados, isto , ordenando aos ministros (que so os anjos) que o desatem das ataduras dos vidos e deixem-n'o ir para a bemaventurada liberdade da alma, isto , para a santa tranquillidade da conscincia. Todos ns que desejamos sahir do Egypto e da sujeio de Phara, temos necessidade de algum Moyss, que nos sina de medianeiro para com Deus, o qual medianeiro, guiando-nos por este caminho, com a ajuda, tanto de suas palavras, como de suas obras e de sua orao, levante por ns outros as mos para Deus, afim de que, guiados por tal capito, passemos o mar dos peccados e laamos volver as espadas a Amalech, principe dos vicios. Alguns fiados em si mesmos, acreditaram no ter necessidade de guia, e ficaram enganados. Os que sahiram do Egypto, tiveram Moyss por capito; os que sahiram de Sodoma, tiveram um anjo por guia. Os primeiros, isto , os que sahiram do Egypto, so figura daquclles epie procuram sanar as enfermidades de sua alma com a cura c diligencia do medico espiritual; mas, os segundos, isto , os que sahiram de Sodoma, significam aquelles que, estando cheios de immundicies e torpezas corporaes, desejam grandemente ver-se livres delias, os quaes tem para isso necessidade de um homem que seja semelhante aos anjos, porque, segundo a corrupo das chagas, assim temos necessidade de sapientis-SmO medico para a cura delias. E, verdadeiramente, aquellc que, vestido desta carne mortal, deseja subir ao Co, tem necessidade de summa violenci.i, contnuos e infatigveis trabalhos, especialmente nos princpios, para conseguir deshabituar-se de deleites, e para (pie o corao, que antes era impassvel ao sentimento de sevis males, venha a afleioar-sc a Deus e a ser santificado com a castidade, mediante o attentissimo estudo e exerccio das lagrimas e da penitencia. Trabalho, grande trabalho e amargura de penitencia, eis o necessrio especialmente para aquelles que esto mal habituados, at que o nosso miservel animo, acostumado carni-ceria e guloseima dos vicios, torne-se amante da contemplao e da castidade, ajudando-nos para isso das virtudes da simplicidade, da mortificao da ira, e de uma grande e discreta diligencia. Porm, com tudo isto, ns, que somos combalidos de vicios, comquanlo no tenhamos alcanado bastantes foras contra elles, confiemos em Jesus Christo; e, com f firmssima, lhe apresentemos humildemente a fraqueza e a enfermidade de nossa alma, e, sem duvida, alcanaremos seu favor e graa, procurando sumir perpetuamente o nosso meiecimento no abysmo da humildade. Saibam com certeza os que nesta formosa, dura e arriscada batalha entram, que vo metter-se em um fogo, si desejam inflammar seu corao com o fogo dodivino amor. Portanto, prove cada um a si mesmo, e desta maneira cheguese a comer deste po com amargura, e a beber deste suavssimo clix com lagrimas, afim de que no entre nesta milcia para seu juzo e condemnao. Si verdade que nem todos os baptisados se salvam, vigiemos com temor e atteno, que no corram tambm este mesmo perigo os que professam em Religio. Por isso, os que desejam lazer firme fundamento de virtude, todas as cousas deste mundo negaro, todas desprezaro, todas poro debaixo dos ps, e todas examinaro; e, para que este fundamento seja tal, ha de ter tres columnas com que se sustente, as quaes so: Jejum, Castidade, Innocencia. Todos os que so principiantes em Jesus Christo, comearo por estas tres cousas, tomando para exemplo os que so creanas na idade, pois que, nas creancinhas, no ha dobrez, nem dureza de corao, nem fingimento, nem desmedida cobia, nem ventre insacivel, nem movimento de vcios deshonestos: porque de um se segue o outro e, conforme a cheia dos manjares, assim se accende o fogo da luxuria. E' cousa aborrecida e mui perigosa que aquelle que comea, comece com frouxido e brandura, porque se ser isto indicio manifesto de futura queda. Por isso, cousa mui proveitosa comear com grande animo e fervor, ainda que depois seja necessrio conter algum tanto este rigor. A alma que comeou a pelejar varonilmente, e depois algum tanto se debilitou e enfraqueceu, muitas vezes ferida e provocada ao bem com a memoria da antiga virtude, e diligencia, como com um aguilho e aoite; e alguns, por este caminho, voltaram ao passado vigor, e renovaram suas primeiras azas. Tantas quantas vezes a alma se achar fora de si, por haver perdido aquelle benemrito e amvel calor da caridade, faa diligente inquirio, investigue por que causa o perdeu, e arme-se contra essa causa com todas as suas foras, porque no poder introduzil-o por outra porta que no seja aquella por onde sahiu. Aquelles que, somente por temor, comeam o caminho da renuncia, por ventura parecero semelhantes ao incenso que se queima, o qual ao principio cheira muito e depois pra cm fumaa; aquelles que, somente tendo em vista o galardo, sem outro movei, se resolvem a isto, so como pedra de atafona, que sempre anda no mesmo sitio, sem dar passo adiante, nem aproveitar mais. Mas, aquelles que deixaram o inundo s por amor de Deus, estes, desde logo, mereceram o accresceniamento deste fogo, que, como si estivesse no meio de um grande bosque, sempre vae alastrando cada vez mais. Ha uns que edificam com pedras sobre ladrilhos; ha outros que sobre terra levantam columnas; ha outros que, caminhando a p, esquentados os membros e nervos, mais ligeiramente andam. Quem l, entenda o que significa esta parbola. Os primeiros, isto , aquelles que sobre ladrilhos assentam pedras, so aquelles que sobre excellentes obras de virtudes se elevam contemplao das cousas divinas, mas que, no estando bem fundados em humildade e pacincia, cahem, por falta de segurana nos alicerces, quando se desencada uma grande tempestade. Os segundos, que sobre terra edificam columnas, so aquelles que, depois de haver passado pelos exerccios e trabalhos da vida monstica, querem logo voar vida solitria, os quaes, por falta de virtude e de experincia, so facilmente enganados por inimigos invisveis. Os terceiros so aquelles que pouco a pouco caminham a p com humildade, debaixo de obedincia, nos quaes o Senhor infunde o espirito da caridade, com a qual, inlammados e esforados, acabam prosperamente o caminho. E j que somos chamados por Deus, que nosso Rei e Senhor, corramos alegremente, para que, si por ventura o prazo de nossa vida fr curto, no nos achemos estreis e pobres hora da morte, e no venhamos a morrer de fome. Procuremos agraciar nosso Rei e Senhor, como os soldados ao seu; porque, depois de professados nesta milcia, mais estreita conta se nos ha de pedir. Temamos a Deus, ao menos como os homens temem alguns animaes ferozes; pois, vi alguns que, querendo furtar, deixaram de fazel-o, no por temor de Deus, mas de medo dos ces que ladravam, de modo que aquillo que no foi evitado pelo temor de Deus, o foi pelo temor dos ces. Amemos a Deus, ao menos como amamos aos amigos; pois, tambm vi muitas vezes alguns que, havendo offen-dido a Deus e provocado a sua ira, nenhum cuidado tiveram de recuperar sua amizade, ao passo que, havendo incommodado a algum dos amigos com a mnima offensa, trabalharam com toda a diligencia c industria, e com toda a afflico e confisso de sua culpa, para reconciliarem-se, meitendo neste empenho terceiros, d'entre outros amigos e parentes, e ofTerecendo muitas dadivas e presentes. No principio da renuncia no se praticam as virtudes sem trabalho, amargura e violncia; mas, depois que comeamos a aproveitar, com mui pouca ou nenhuma tristeza as praticamos ; e depois que a natureza est j absorvida e vencida com o favor e alegria do Espirito Santo, ento obramos j com goso, alegria, diligencia e fervor de caridade. Quanto mais dignos so de louvor os que, logo ao principio, abraam as virtudes e cumprem os mandamentos de Deus com fervor e alegria, tanto so mais de chorar os que, tendo vivido muito neste exercido, as exercitam com trabalho c pesadume, si porventura as exercitam.- 9 No devemos condemnar aquellas maneiras de renuncia, que parecem ter sido feitas por acaso; pois, tenho visto alguns delinquentes que, fugindo, encontraram por acaso o Rei, foram recebidos em seu servio, contados entre seus cavalheiros, e recebidos em seu palcio e sua mesa. Vi tambm algumas vezes cahirem, descuidadamente, alguns gros de trigo da mo do semeador, os quaes se apoderaram muito bem da terra e vieram depois a dar grande fructo. Vi tambm alguns irem casa do medico para outro negocio, os quaes acertaram era receber nella sade que no tinham e recuperar a vista quasi perdida. E deste modo acontece que, algumas vezes, so mais firmes e estveis as cousas que suecedem sem nossa vontade do que as eme de propsito tivessem sido feitas. Ningum, considerando os seus muitos peccados, diga que indigno da profisso e vida dos monges, nem se engane com esta cor e apparencia de humildade, para deixar de seguir a senda estreita da virtude e dar-se a vicios: isto embuste do demnio e oceasio para perseverar nos peccados. Alis, onde as chagas esto mais fistulosas e purulentas, ahi assignaladamente necessria a diligencia e destreza de sbio medico. Si um rei mortal e terreno, nos chamando a seu servio ou sua milcia, no ha cousa que nos detenha, nem buscamos oceasio para excusar-nos e, ao contrario, deixamos tudo, e vamos servil-o e obedecer com summa alegria, no recusemos obedecer ao Rei dos reis, ao Senhor dos senhores, a Deus, que nos chama ordem desta milcia celestial; porque ser depois difficil a excusa diante daquelle seu terrvel e espantoso tribunal. Pde ser que aquelle que est preso e aferrolhado aos negcios do sculo, d alguns passos e ande, ainda que com impedimento e trabalho; pois tambm acontece que aquelle que tem grilhes ou cadas nos ps, ande, ainda que mal e trabalhosamente. Aquelle que vive no mundo sem mulher, mas com cuidados e negcios, semelhante ao que tem algemas nas mos e, por isso, ainda pde, si quizer, correr livremente vida monstica, ou solitria; mas, aquelle que tem mulher semelhante ao que est de ps e mos atados. Ouvi uma vez a certos negligentes que, vivendo no mundo, me diziam: Como poderemos ns, morando com nossas mulheres e cercados de cuidados e negcios de republica, viver vida monstica? Aos quaes respondi: Fazei todo o bem que puderdes; no injurieis a ningum, no digaes mentira, no tomeis o alheio, no queiraes mal a ningum, no vos levanteis contra ningum, frequentae as egrejas e os sermes, usae de misericrdia com os necessitados, no escandalizeis, nem deis mau exemplo a ninguem, nem sejaes favorecedores de bandos de malfeitores, nem vos empregueis em metter discrdias, sino em des-fazel-as, e contentae-vos com o uso legitimo de vossas mulheres; porque, si isto fizerdes, no estareis longe do reino de Deus. Preparemo-nos com alegria e sem temor para esta gloriosa batalha, no acobardando-nos, nem desanimando pelo temor de nossos adversrios: pois, Deus est com-nosco. Os nossos adversrios, posto que de ns no sejam vistos, vem muito bem a figura de nossas almas; e, si nos virem acobardados c medrosos, tomam armas mais fortes contra ns, apezar de contarem com a nossa fraqueza e cobardia. Portanto, com grande animo devemos tomar contra elles as armas da alegria e da coragem, porque ningum poderoso para vencer a quem alegre e animosamente peleja. Nosso Senhor costuma a usar de uma maravilhosa concesso aos principiantes e novos guerreiros, temperando e mqderando-lhes as primeiras batalhas, afim de que no voltem ao mundo, espantados da grandeza do perigo. Portanto, gosae sempre no Senhor e tomae isto por signal de chamamento, e da piedade c providencia paternal que elle tem devs outros. Outras vezes tambm acontece que este mesmo Senhor, quando v as almas fortes no principio, lhes apparelha mais fortes batalhas, desejando mais cedo coroal-as. Se o Senhor esconder aos homens do sculo as dif-ficuldades desta milcia (posto que, sob outro respeito, melhor se poderiam chamar facilidades), porque, si isto conhecessem, no haveria quem quizesse deixar o mundo. Offerece os trabalhos de tua juventude a Jesus Christo, e na velhice te alegrars com as riquezas de uma quietssima paz e tranquillidade; pois, as cousas que recolhemos e ganhamos na mocidade, depois nos sustentam e consolam, quando estamos fracos e debilitados na velhice. Trabalhem os moos, ardentemente, e corram com toda a sobriedade e vigilncia; pois, a morte, to incerta, nos est aguardando a cada hora. Alm disto, temos inimigos perversssimos, fortssimos, astutssimos, potentssimos, invisveis e despidos de todos os impedimentos corporaes, e que nunca dormem, os quaes, tendo fogo nas mos, trabalham com todo o estudo por abrazar e queimar o templo vivo de Deus. Ningum, por ser moo, d ouvidos aos demnios, que costumam dizer: No maltrates tua carne para que no venhas cahir em enfermidades e doenas; pois, deste modo, sob a cr da discreo, muitas vezes fazem o homem mui brando e piedoso para comsigo. E nesta edade difficilmente se encontra quem de todo mortifique sua carne, ainda que se abstenha de muitos e delicados manjares; porque uma das principaes astcias de nosso adversrio tornar brando e fraco o principio da nossa profisso, para depois fazer o fim semelhante ao principio. Aqnellcs que fielmente desejam servir a Jesus Clirisio devem, antes de tudo, com grandssima diligencia, buscar os logares, os costumes e a quietude, assim como os exerccios, que acharem mais acommodados a seu propsito c espirito, segundo o conselho dos padres directores espirituaes, c segundo lhes der a entender a experincia de si prprios; pois, nem a todos convm morar nos mosteiros, especialmente quelles que so tocados do vicio da gula no comer e no beber; nem a todos convm seguir a quietude da vida solitria, especialmente quelles que so inclinados ira. Observe cada um diligentemente, como dito , o estado que mais se lhe coaduna, porque tres maneiras de estados e profisses contm a vida monstica: o primeiro o da vida solitria, o estado dos monges anachoretas; o segundo o da companhia de dois ou tres que vivem em soledade; o terceiro o dos que servem na obedincia dos mosteiros. Ningum, pois, se desvie, como diz o Sabio, destes estados, nem para a direita nem para a esquerda: siga pelo caminho real. Entre estas tres maneiras de estados, a do meio foi mui proveitosa para muitos, porque ai daquclle que est s, que si cahir em tristeza espiritual, ou no somno, ou na preguia, ou na desconfiana, no ter entre os homens quem o levante; ao passo que onde esto ajuntados dous ou tres em meu nome, diz o Senhor, abi estou no meio delles. Emfim, ser fiel e prudente monge aquelle que, guardando seu fervor inteiro at o fim da vida, persevere sempre, acerescentando cada dia fogo a fogo, fervor a fervor, desejo a desejo, e diligencia a diligencia. do que pertence ao outro. Porque familiar cousa 6 a este santo (como o (> a todos os que, escrevendo, seguem o instincto e o magistrio do ESPIRITO SANTO), no ter tanto em conta o fio e consequncia das matrias e a ligao das clausulas e sentenas, quanto seguir o dictanie e movimento deste espirito divino que OS ensina, como se mostra no autor daquclle tilo espiritual livro < ./.. /.;,/.- viundi, e em outros muitos. O que muito ha de notar neste capitulo e em quasi todo este livro, o rigor, trabalho e diligencia, que este insigne mestre pede a todos os que verdadeiramente se determinam a buscar DEUS, especialmente nos princpios de sua converso, at- desfazerem-sc os maus hbitos da vida passada, paia pie se veja claro por autoridade de tflo grande varo, que esta empreza nilo de frouxos 6 folgazes, mas de valentes e esforados cavalleinis, conforme aquella sentena do Salvador, que diz: 0 reino dos Civs padece fora e os esforados so os que o arrebatam.ANNOTAESP&ro Intelligencia deste capitulo, leitor christo, lias de presnppor, que segundo se collfge da doutrino dos Santo Padres, n renuncia tem tres grtis: o primeiro deixar, por amor de DEUS, todas as cousas do mundo, como o Salvador o aconselhava a aquelle mancebo do Evangelho; o segundo deixar-se a si mesmo, que deixar a prpria vontade, com todos os appelites e paixes de nossa alma, para fazer de ns mesmos verdadeiro sacrifcio, holocausto a DES-j o terceiro que nosso espirito pura e inteiramente se offerea a DEUS, se transporte para DEUS, se Jonte com DEUS, que o fim dos giaus passados, porque tanto mais se ajuntar nosso espirito com DEUS, quanto mais apartado estiver das cousas do inundo e de si mesmo. Do primeiro destes tres graus sc trata neste primeiro capitulo; do segundo, que o da*iiinrtific;ijlo das paixes, se trata no seguinte; e do terceiro se trata consequentemente no capitulo terceiro, comquanto em cada um se toque algoCAPITULO IID a mortificao das paixes e Victoria sobreappetites e affectosQUELLE que ama verdadeiramente a Deus e que verdadeiramente deseja gosar do reino NG^c^^dos Cos; aquelle que verdadeiramente sc J-^y^ arrepende de seus peccados e que deveras (1>-CV est impressionado com a memoria das penas r%2 do inferno e do juizo final, e com o temor da morte,este cousa alguma amar desordenadamente. No lhe fatigaro os cuidados do dinheiro, nem da fazenda, nem dos paes, nem dos irmos, nem de qualquer outra cousa mortal e terrena; mas antes, abominando e sacudindo de si todos os cuidados, e aborrecendo com um santo odio sua mesma carne, despido de ludo, seguro e ligeiro seguir a Jesus Christo, com os olhos sempre no Co, donde, com toda a confiana, esperar o soccorro, segundo as palavras do Propheta, que diz: Eu no me turbei, seguindo-te, Pastor meu, e nunca desejei o dia do homem, isto , o descanso e felicidade que soem desejar os homens. Grandssima confuso , |ior certo, a daquellcs que, depois de sua vocao, isto , depois de terem sido chamados, no por homens mas por Deus, olvidados disso, se applicam a outros cuidados que, na hora da ultima necessidade, no os possam valer: isto,D a v e r d a d e ir a p e r e g r in a ? ? oANNOTA?OES 11 i 15 como disse o Senhor, seria voltar a cabea para traz depois de ter posto a mo a charrua, e, portanto, no ter aptido para o reino dos Cos; e elle o disse como quem sabe quanto so escorregadios os primeiros princpios da nossa profisso, e quo facilmente voltaremos ao sculo, si tivermos conversao familiar com pessoas do sculo. A um mancebo que lhe disse Dae-me, Senhor, licena para ir enterrar meu pae, elle respondeu Deixa aos mortos o enterrar seus mortos. Soem os demnios, depois de havermos deixado o mundo, pr-nos diante dos olhos alguns homens misericordiosos e esmoleres, que vivem no mundo, fazendo-nos notar as virtudes que elles tm e de que carecemos, e fazendo-nos crer que elles so benaventurados e ns outros uns miserveis peccadores: isto fazem os demnios, muitas vezes, para que, sob a capa desta adultera e falsa humildade, nos devolvam ao mundo, ou para que, permanecendo em Religio, vivamos desconfiados e desconsolados nella. Ha alguns Religiosos que, com soberba e presumpo, desprezam, como aquelle Phariseu do Evangelho, os homens que vivem no mundo, no se recordando de que est escripto: Aquelle que est em p, trate de no cahir. Outros ha que, no por soberba, mas para evitar este despenhadeiro da desconfiana e conceber maior esforo e alegria por se verem livres do mundo, desprezam ou, ao menos, do pouca estimao aos costumes dos que nelle vivem. Mas, todos ns que temos em pouco nossa profisso, lembremo-nos de que o Senhor disse quelle mancebo que havia guardado quasi todos os mandamentos: uma cousa te falta; vae e vende teus bens e d-os aos pobres e faz-te por amor de Deus pobre e necessitado de alheia misericrdia. Por ahi se v que, sobrepujando em virtudes aos que vivem no mundo, nada mais fazemos do que aquillo que prprio da nossa profisso. Si desejamos correr ligeira e alegremente por este caminho, esti-niando-o no que elle merece, consideremos attentamente que o Senhor chamou mortos aos homens que no mundo vivem, dizendo a um delles: Deixa aos mortos o enterrar seus mortos. No foram causa as riquezas para que aquelle mancebo rico deixasse de receber o baptismo (e claramente se enganam os que pensam que por esta causa lhe mandava o Senhor vender sua fazenda):- -no era esta a causa, mas sim querer levantal-o altura do estado de nossaprofisso. E para ser reconhecida a gloria delia, deveria bastar este argumento: aquelles que, vivendo no mundo, se exercitam em jejuns, viglias, trabalhos e outras semelhantes afflices, quando entram na vida monstica, como em uma officina e escola de virtude, no fazem caso daquelles primeiros exerccios; e, presuppondo-os muitas vezes adlteros c fingidos, comeam com outros novos fundamentos. Vi muitas e diversas plantas de virtudes de homens que viviam no mundo, as quaes se regavam com a agua lodosa da vangloria, se mondavam com ostentao c apparencia de mundo, e se estercavam com o estrume dos louvores humanos; vi que estas plantas, transplantadas para terra deserta, apartadas da vista e companhia dos homens, e privadas do sobredito lavor, logo seccaram, porque as arvores criadas com este trato, no soem dar frueto em terra secca. Quem tiver perfeito odio ao mundo, estar livre de tristeza do mundo; mas quem est tocado da affeio das cousas do mundo, no estar de todo livre desta paixo, porm difhcilmcnte deixar de entristecer-se quando se achar privado do que ama. Em todas as cousas temos necessidade de grande temperana e vigilncia; mas, sobretudo, nos havemos de extremar em procura desta liberdade e pureza de corao. Conheci no mundo alguns homens, que, vivendo com muitos cuidados, oceupaes, afflires e viglias do mundo, ainda assim escaparam dos movimentos e ardores da prpria carne; entretanto, estes mesmos, entrando nos mosteiros, ahi vivendo livres de cuidados, cahiram torpe e miseravelmente nestes vicios. Observenn>-nos muito, olhemo-nos muito para ns mesmos, afim de que no nos acontea que, pensando caminhar per caminho estreito e difficul-toso, caminhemos por caminho largo e espaoso, e assim vivamos enganados. Estreito caminho a afflico do ventre, a perseverana nas viglias, a agua por medida, o po por taxa, o beber a purga saudvel das ignominias e vituprios, a mortificao de nossas prprias vontades, o snffrimento das offensas, o menosprezo de ns mesmos, a pacincia sem murmurao, o tolerar fortemente as injurias, e no indignar-se contra os que nos infamam, o no queixar-se dos que nos desconsideram, e o abaixar-se humildemente aos que nos consideram. Benaventurados os que por esta via caminham, porque delles 6 o remo dos ("os. Ningum entra no thalamo celestial paia receber a coroa dos grandes santos, si no tiver cumprido a primeira, a segunda, e a terceha maneira de renuncia, convm saber: primeiramente, ha de renunciar o que estiver fora de si, como so os paes, parentes, amigos e tudo o mais; em segundo logar, ha de renunciar sua prpria vontade; em terceiro logar, ha de acautelar-se contra a vangloria, que muitas vezes se acompanhar a obedincia, sendo que a este vicio mais sujeitos esto os que vivem em companhia do que os que moram em soledade. S%i, di/ o Senhor, do meio delles, apartai-vos e no toqueis em cousa stija ou profana. Pois, quem dos homens do mundo fez milagres? Quem resuscitou os mortos? Quem xpellhi os demnios? So estas as insgnias dos verdadeiros monges, as quaes o inundo no merece receber,porque, si as merecesse, suprfluos seriam os nossos trabalhos c a solido de nossas cellas. Quando, depois da nossa renuncia, os demnios incendiam importunamente o nosso corao com a memoria de nossos paes e irmos, ento principalmente temos de tomar contra elles as armas da orao e de inflammar nosso corao com a memoria do fogo eterno, para com ella apagarmos a chamma damnosa daquelle outro fogo. Os mancebos que, depois de se haverem dado a deleites e vicios da carne, querem entrar em Religio, procurem excilar-se com toda a atteno c vigilncia em honestos trabalhos; e determinem absterse de todo o gnero de vicios e deleites, afim de que no venham ter peiores os fins do que tiveram os princpios. Muitas vezes o porto que costuma ser de salvao, tambm o de perigos, como bem o sabem aquellcs que navegam por este mar espiritual. E cousa miservel perderemse no porto os navios que estiveram salvos cm alto mar. Neste capitulo se trata do segundo grau de renuncia, que consiste na mortificao dos appetites e affectos, como os tem mortificados somente aquelle que dev-ras e de todo o corao est af-feioado s cousas divinas. E repete-se muitas vnj EM agora muito a propsito tratar da obedincia, para doutrina dos novos cavalleiros e guerreiros de JesusChristo; pois, assim como ao frueto precede a flor, assim obedincia precede a peregrinao, ou do corpo, ou da vontade. Com estas duas virtudes, como com duas azas douradas, levanta-se at o Co a alma do varo santo; e a isso, por ventura, se referia o Propheta, cheio do Espirito Santo, quando disse: Quem me dera azas como as da pomba, para voar pela vida activa e descansar na contemplao c na humildade! Penso que no ser razovel passar era silencio o habito e as armasum adiante, apparelhado para executar a obedincia, e o outro atraz, posto em continua orao. E' este o habito, essa a armadura dos verdadeiros obedientes; vejamos, agora, que cousa seja obedincia. Obedincia perfeita abnegao da alma, abnegao declarada por exerccio e obras do corpo; obedincia perfeita abnegao do corpo, declarada com fervor e vontade da alma: porque, para a perfeita obedincia, necessrio que tudo concorra, tanto o corpo como a alma; e tudo necessrio que se negue, quando a obedincia o exige. Obedincia mortificao dos membros em alma viva. Obedincia obra sem exame, morte voluntria, vida sem curiosidade, porto seguro, excusa perante Deus, menosprezo do temor da morte, navegao impvida, caminho pelo qual dormindo se transita. Obedincia sepulchro da prpria vontade e resur-reio da humildade; pois. o verdadeiro obediente, a nada resistindo, fazendo sem discernimento tudo o que lhe mandado (quando no claramente mau), confiando humildemente na discreo de seu prelado, santamente desta maneiradestes fortissimos guerreiros: devem elles ter, primeiramente, um escudo, que a grande e viva f e lealdade para com Deus e para com o mestre que os exercita, afim de que, aparando e recebendo nelle os golpes dos pensamentos de infidelidade, usem, logo e bem, da espada do espirito, cortando com ella todas-as suas ' prprias vontades; revistam-se de uma forte couraa de mansido e de pacincia, contra a qual nada possa qualquer gnero de injuria e desacato, e que faa cahir todas as setas de palavras" ms; tenham tambm um elmo salvador, que a orao espiritual, elmo que guardar a cabea de sua alma; e, alm disto, tenham os ps no juntos, mas mortificando sua alma, seguras contas de si dar a Deus. Obedincia resignar, com grande discreo, a prpria discreo. No principio deste santo exercicio, para mortificar os membros do corpo ou a vontade da alma, ha trabalho. No meio, s vezes ha trabalho, s vezes descano; mas, no fim, ha perfeita paz, tranquillidade e mortificao de toda a desordenada perturbao. Ento, este bemaventu-rado acha-se obediente, vivo e ao mesmo tempo morto, vivo por ver que fez sua prpria vontade, morto por temer sempre a carga da prpria vontade. Todos vs que desejaes despojar-vos de empecilhos para passar esta carreira espiritual; todos vs que desejaes pr o jugo de Jesus-Christo sobre o pescoo e vossas cargas sobre os honibros dos outros; todos vs que desejaes assentar-vos e inscrever-vos no livro dos servos, paca receber por este assentamento carta de alforria na perpetua liberdade da vida eterna; todos vs que desejaes passar a nado o grande mar do mundo em hombros alheios: sabei que ha para isto um caminho breve, porm spero especialmente nos princpios, qual o estado de obedincia. Quem quizer entrarpor esse caminho, saiba desviar-se do principal perigo, que o amor e contentamento de si mesmo, e jamais lhe parea eme sufficiente para regerse e governar-se a si mesmo. Quem escapar disto, tenha a certeza de que chegar s cousas espirituaes e honestas quasi antes de principiar a caminhada; pois, obedincia no crer o homem, nem fiar-se de si mesmo, at o. fim da vida, nem mesmo nas cousas que paream boas, sem a autoridade de seu pastor. Quando, pelo amor de Deus, determinarmos inclinar a cerviz obedincia, devemos, antes de entrar nesta milcia, (si em ns outros ha alguma centelha de juizo e discreo), examinar com todo o cuidado o pastor que tomamos, afim de que no nos acontea tomar marinheiro por piloto, enfermo por medico, vicioso por virtuoso, de sorte que, em vez de encontrar porto seguro, nos matamos em um golpho tempestuoso e venhamos a ser apanhados em naufrgio certo. Mas, depois que tivermos entrado nesta carreira, j no nos licito julgar o nosso bom mestre em cousa alguma, ainda que elle, como homem que , tenha quaesquer pequenos defeitos; e, si assim no fizermos, pouco aproveitaremos da obedincia. Aos que querem ter esta inviolvel confiana nos mestres, convm muito notar com diligencia as virtudes e obras louvveis que seus mestres praticam, e guardal-as em memoria, afim de taparem a bocea aos demnios, quando estes quizerem demolir essa confiana; pois, quanto mais viva em vosso espirito estiver esta confiana, tanto mais prompto estar o corpo para os trabalhos da obedincia. Porm, aquelle que tiver cabido em infidelidade para com seu prelado, tenhase cahido da virtude da obedincia, porque tudo o que carece de fundamento de f, vae mal edificado; e, por isso, quando algum pensamento te instigar a que julgues ou coudemnes teu prelado, deves fugir tanto como de um pensamento deshonesto; nem jamais te acontea dar logar,nem entrada, nem principio, nem descano a esta serpente. Falia com este drago e dizlhe: O' perversssimo enganador, no tenho eu de julgar o meu guia, c sim elle a mim; no sou eu o seu juiz, elle o meu. As anuas dos mancebos so o canto dos psalmos; a muralha, so as oraes; o lavatrio, as lagrimas de penitencia. Mas, a bemaventurada obedincia, dizem que semelhante confisso do martyrio, porque nella (az o homem sacrificio de si mesmo; pois, quem est sujeito e obedece ao imprio de outrem, pronuncia sentena contra si mesmo. Aquelle que, por amor de Deus, obedece perfeitamente, ainda em caso e cousa que no lhe parea ser completamente razovel, todavia se excusa ao juizo divino, pondo a carga sobre seu prelado. Aquelle, porm, que em algumas cousas quer cumprir a sua vontade e, nessas o prelado manda como elle deseja, no pratica verdadeira obedincia; e, portanto, si so ms, o prprio prelado far bem em reprehendel-o por obedecer, e si calar-se, tenho a dizer apenas que elle toma esta carga sobre si. Aquelles epie com simplicidade se sujeitam ao Senhor, caminham perfeitamente; porque no se meltem a examinar nem deslindar curiosamente os mandamentos de seus maiores, curiosidade a que os demnios sempre nos provocam. Antes de tudo, convm que somente a nosso juiz confessemos nossas culpas; e estejamos apparelhados para confessal-as a todos, si por ellc assim fr mandado, porque as chagas descobertas toda a luz podem no corromper-se nem afistular-se, como aconteceria si as tivssemos encobertas ou secretas. Uma vez, vindo eu a um mosteiro, tive oceasio de observar um juizo de um cxcel-lente pastor que o governava. Um ladro vciu tomar habito; o bom pastor e sapientissimo medico mandou que o deixassem estar com toda a quietao e descano por espao de sete dias, afim de que, durante este tempo, 15 15 visse o estado c a ordem do mosteiro. Passado esse prazo, chamou-o o pastor a ss, e perguntou-lhe si lhe parecia bem morar naquella companhia; e, como elle respondesse, com toda a sinceridade, que sim e de muito boa vontade, o pastor tornou-lhe outra pergunta, isto , perguntou-lhe que males havia commettido no sculo; e, como prompta e discretamente os confessasse todos, para melhor proval-o, disse o Padre: Quero que todas essas culpas confesses em presena de todos os Religiosos. Elle, como verdadeiro penitente e como homem que aborrecia de corao todas as suas maldades, pondo de lado toda a humana vergonha e confuso, respondeu que assim o faria e que, si ao Padre aprouvesse, as diria em voz alta mesmo no meio da praa de Alexandria. Reunidos, pois, todos os Religiosos (que eram em numero de duzentos e trinta) na egreja, em um dia de Domingo, lido o Evangelho e acabados os mysterios divinos, mandou o Padre que trouxessem aquelle ro. Foram buscal-o alguns Religiosos, que o apresentaram de mos atadas atraz, revestido de um asprrimo cilicio, coberta de cinza a cabea, e disciplinando-o mansamente entre as espduas; e, ao chegar elle porta da egreja, mandou-lhe aquelle sagrado Padre, com voz terrvel, que parasse, porque no era digno de transpor os humbraes daquella porta. O ro, ferido com o golpe desta voz proferida com to grande conselho e sabedoria, cahiu prostrado em terra, tremendo de pavor e debulhado em lagrimas. Diante deste doloroso espectculo ficaram todos estupefactos, e proromperam em pranto e gemidos; pois nenhum delles entendia do que se passava. Ento, aquelle padre e maravilhoso medico mandou-lhe que dissesse em publico todos os peccados que havia commettido; e elle obedeceu,fazendo com toda a humildade, e com grande espanto dos presentes, a narrao minuciosa de tudo, sem deixar de dizer todas as maneiras de homicdios, feitiarias, furtos, e outras cousas tpie no licito escrever. E, depois de haver-se assim confessado, mandou o Padre tonsural-o e recebel-o na companhia dos Religiosos. Maravilhado eu da sabedoria deste santo Padre, perguntei-lhe depois, em reserva, porque tinha feito to extraordinria forma de juizo; e elle, como verdadeiro medico, me disse que a fez por duas causas: a primeira, para livrar aquelle penitente da eterna confuso mediante aquella presente confuso; a segunda, para que alguns Religiosos, que l se achavam e que ainda no tinham confessado inteiramente suas culpas, se movessem por aquelle exemplo completa confisso, sem a qual ningum ser salvo. Outras muitas cousas admirveis e dignas de memoria, vi naquella santssima congregao e no pastor delia, das quaes estou habilitado a contar-vos algumas, porque no pouco tempo alli estive, attendendo grande e continuamente vida e maneira de convivncia daquelles anjos da terra, e maravilhando-me de ver como imitavam aos do Co. Primeiramente, eram' entre si muito unidos por um estreitssimo vinculo de caridade, e (o que muito mais de maravilhar) amando-se tanto como se amavam, no havia entre ellcs atrevimento nem confiana demasiada, nem soltura de palavras ociosas; trabalhavam, com muito estudo, no empenho de no se escandalizarem uns aos outros, nem serem uns oceasio de peccado ou de mal para outros. Depois, si acontecia que algum manifestasse rancor contra outro, o santo pastor desterrava-o, como a homem condemnado, para outro mosteiro. Uma oceasio, tendo um delles amaldioado a outro, o santo pastormandou que puzessem aquelle fora da companhia, dizendo "que no era razovel soffrer no mosteiro demnios visveis e invisveis. Vi eu naquelles santos cousas grandemente proveitosas e dignas de admirao. Vi uma companhia de muitos, que com o vinculo da caridade eram todos um s em JesusChristo, e todos mui exercitados em obras da vida activa e contemplativa; pois de tal modo se despertavam e aguilhoavam uns aos outros para as cousas de Deus, que quasi no tinham necessidade de ser admoestados pelo pae espiritual, chegando ao ponto de ter entre si ordenadas certas maneiras de exerccios e admoestaes a propsito. Acontecia, por exemplo, que algum delles, na ausncia do prelado, proferia qualquer palavra ociosa, ou damnosa, ou de murmurao: o irmo que esta ouvisse fazialhe secretamente um convencionado signal, para que olhasse por si e moderasse suas palavras; e si, por ventura, o admoestado no via ou no attendia, ento o outro se prostrava em terra deante delle, e logo se ia. Quando algumas vezes se juntavam para conversar, toda a pratica versava sobre a memoria da morte e do juizo final. No quero passar em silencio a virtude singular do cozinheiro daquelle mosteiro. Observando eu que ellc, perseverando em to continua e constante oceupao, estava sempre mui recolhido, e que, alm disso, havia alcanado virtude do pranto, roguei-lhe humildemente que me quizesse descobrir como tinha merecido esta graa. Importunado por meus rogos, respondeu-me em poucas palavras: Nunca pensei que servia a homens, mas a Deus; sempre tiveme por indigno de quietude e repouso; e a vista deste fogo material me faz sempre chorar e pensar no ardor do fogo eterno. Quero contar outras virtuosas singularidades, que vi entre elles. Percebi que, nem mesmoassentados mesa, cessavam dos espirituaes exerccios, e usavam de certos signaes com que uns aos outros se exhortavam orao, mesmo emquanto estavam comendo; faziam isto, no s quando estavam mesa, mas Lambem quando por acaso se encontravam, ou quando algumas vezes se ajuntavam. Si acontecia que qualquer delles commettesse alguma (alta, vinham os outros pedir-lhe, com toda a instancia, que lhes desse cargo de dar conta daquella culpa ao pae espiritual e de receber a penitencia delia; e, como aquelle grande vaio conhecesse esta piedosa conteno de seus discpulos, usava de mais branda correco, e, as mais das vezes ou quasi sempre, no queria averiguar nem fazer pesquiza do autor do delicto. Si a algum delles acontecia estar porfiando com outro irmo, aquelle que acaso por alli passava, prostrando se a seus ps, assim os amansav.i; si, por ventura, percebia que guardavam lembrana de alguma injuria, logo fazia-o saber ao padre que, depois do abbadc, tinha cargo do mosteiro, e trabalhava com todo o estudo para que no se puzesse o sol sobre a sua ira; e si, todavia, continuassem endurecidos e porfiados, no tinham licena para comer at que um ao outro se perdoassem; por fim, si no quizessem submetter-se, expelliam-n'os do mosteiro. Muitos daquelles santos vares eram assignalados e admirveis em vida activa e contemplativa, e em discreo e humildade. Vi alli uns velhos reveiendos, de mui venervel presena, os quaes estavam como meninos, appa-relhados para obedecer e correr para uma parte ou para outra, merecendo grande gloria com este exerccio de humildade. Vi alguns que, havia cincoenla annos, militavam debaixo da obedincia, os quaes, perguntando-lhes eu que consolao, ou que frueto, haviam alcanado de tanto trabalho, uns me respondiam que, por tal meio, tinham chegado ao abysmo da humildade, com a qual estavam livres de 16 15 muitos combates do inimigo, e outros me respondiam que, por abi, chegavam a perder o sentimento das injurias e deshonras. Vi outros daquelles vares dignos de eterna memoria, cobertos de cans, porm com rostos anglicos, os quaes chegaram a uma profundssima innocen-cia, cheia de simplicidade, alcanada com grande fervor de espirito e temor de Deus. Primeiro se acabaro os meus dias de vida (pie eu possa explicar todas as virtudes que alli observei; e, como a santidade daquella gente chegava at o Co, tenho por melhor adornar esta doutrina com os exemplos de seus trabalhos c virtudes, do que com a baixeza das minhas palavras. II Um Religioso, chamado Isidoro, que era dos prin-cipaes de Alexandria, renunciou o mundo ha poucos annos e entrou para este mosteiro. Aquelle maravilhoso pastor, ao recebcl-o, conjecturando, pelo aspecto da pessoa e por outras circumstancias, ser elle homem spero, intratvel, soberbo e inchado com a vaidade do sculo, determinou vencer a astcia dos demnios pelo seguinte artificio. Disse ao referido Isidoro que, si realmente queria tomar o jugo de Jesus-Christo, antes de tudo se exercitasse nos trabalhos da obedincia; a isto respondeu o novio que, assim como o ferro est sujeito s mos do ferreiro, assim queria elle sujeitar-se a tudo o que lhe mandasse o superior; replicou o Padre:Pois, quero, irmo, que estejas porta do mosteiro c te prostres aos ps de todos os que entrarem e sahirem, dizendo-lhes Roga, por mim, padre, que sou peccador. O novio obedeceu como um anjo a Deus; e, depois de sete annos empregados naquellaobedincia e de ter alcanado por esse meio uma profundssima humildade e compuneo, quiz o Padre, aps to grande exemplo de pacincia, le-vanral-o companhia dos Religiosos c honral-o com as ordens sacras, como verdadeiramente merecedor. Mas, elle, deitando ao Padre muitos rogadores (entre os quaes, eu), conseguiu que o deixassem naquelle mesmo logar, como at ento, at que acabasse sua carreira, dando a entender com estas palavras que se approximava o seu ultimo dia de vida. E assim foi; passados mais dez dias naquella ignominia e sujeio, foi chamado gloria. Sete dias depois, morreu tambm o porteiro do mosteiro, ao qual o bemaventurado varo promettra que, si tivesse alguma cabida com o Senhor, trataria do modo de lei-o como seu companheiro peqietuo, e muito em breve; e isso foi para ns certssimo indicio de seus merecimentos por to perfeita obedincia e humildade. Uma vez parei porta do mosteiro para perguntar-lhe como proseguia e se sentia sua alma naquelle exerccio; e elle, querendo dar-me aproveitamento, disse-me:A principio fazia conta que estava vendido por meus peccados e, assim, com summa amargura e violncia, prostrava-me aos ps de todos; apenas passado um anno, j eu fazia isto sem violncia e sem tristeza, esperando de Deus o galardo de minha pacincia; passado outro anno, de todo o corao comecei a ter-me por indigno da convivncia do mosteiro e da participao dos divinos sacramentos; c, por fim, cheguei a considerar-me indigno de levantar os olhos e de encarar qualquer pessoa, e assim, cravados os olhos em terra, e3 0no menos o corao do que o corpo, rogava aos que entravam e sahiam que fi/.esscm orao por mim. Outro Religioso, de nome Loureno, que estava naquelle mosteiro havia mais de quarenta e oito annos, chamado pelo Abbade, veiu pr-se de joelhos diante dcllc para receber a beno; mas, depois de se levantar, no lhe tendo dito o Abbade cousa alguma, deixou-se elle alli ficar: era a hora da comida e estvamos lodos assentados mesa, de sorte que o monge permaneceu em p diante da mesa, sem comer, sem mover-se durante talvez mais de uma hora, sem dizer palavra, at o fim da refeio dos outros. E, somente ao levantarmo-nos da mesa, mandou-lhe o Abbade que se dirigisse ao sobredito Isidoro e lhe recitasse o principio do Psalmo XXXIV. Eu estava com aquillo to incommodado, que no ousava encarar aquelle octogenrio; mas, por fim, no deixei de tentar o santo velho, perguntando-lhe em que pensava quando se achava naquella posio e situao. Elle respondeume que havia posto em seu pastor a imagem de Jesus-Christo, e que, assim imaginando, parecia-lhe que estava, no diante de uma mesa de homens, mas diante do altar de Deus; de sorte que, pela grande caridade c sincera confiana que depositava em seu pastor, fazia orao c no dava entrada a pensamento mau contra elle, nem Iogar nem tempo ao espirito mau contra si. E qual era aquelle bemaventurado pastor dc espiri-tuaes ovelhas, assim o era o procurador do mosteiro, que Deus lhe havia dado, casto e moderado como qualquer dos outros, e manso como mui poucos. Quiz, pois, o grande Padre experimental-o, reprehendendoo para utilidade dos outros; e, sem haver causa alguma, mandou exptdsal-o da egreja. Eu, sabendo que o monge era innocente, em reserva com o Padre, louvava e encarecia sua innocencia, ao epte me respondeu sapientissimamente: Bem sei que innocente; mas, assim como cruel cousa tirar o po da bocea de piem est a morrer de fome, assim cousa prejudicial, quer ao prelado, quer aos sbditos, no procurar aquelle para estes quantas coroas vir que podem merecer, exercitando-os com injurias, abjeces e escarneos, porque, si isto no fizer, produzir tres inconvenientes: primeiro, privar o sbdito devoto lo mrito da pacincia; segundo, defraudar a outros do bom exemplo de sua virtude; terceiro (e o principal), muitas vezes aquelles que parecem perfeitos c mui soflVedores de trabalhos, si durante muito tempo os prelados, considerando-os j acabados em virtudes, deixam-n'os sem proval-os, ou sem reprehendel-os, ou sem exercital-os com alguma manha de doestos e injurias,acontece que, afinal, perdem ou menoscabam aquella modstia e sofTri-mento que tinham. E, continuando, acerescentou: Ainda que a terra seja boa, si lhe falta o lavor e a irrigao, quero dizer, o exerccio do soffnmento das ignominias, costuma a tornar-se silvestre e infractuosa, a produzir espinhos de pensamentos deshonestos e de damnosa seguridade; e por isso que aquelle grande Apostolo, escrevendo a Timotheo, manda-lhe que admoeste e repre-henda aos sbditos opportima e importunamente. Mas, como eu replicasse quelle santo pastor, allcgando a avanada idade do monge, e tambm que muitos, reprehen-didos sem causa, e at s vezes com causa, sahiam e se desgarravam da manada, respondeu-me, como um armrio de sabedoria, o seguinte:-A alma que, por amor de Deus, est enlaada, com vinculo de f e amor, a seu pastor, soflrcr at derramar o sangue e nunca desfalle-cer, mormente si antes tiver sido espiritualmente ajudada com a cura de suas chagas, e regalada com os benefcios e consolaes espirituaes, recordando-se daquelle que disse que nem anjos, nem principados, nem virtudes, nem qualquer outra creatura, nos podero apartar da caridade de Jesus-Christo; mas, aquella que no estiver assim enlaada, fundada, ou para melhor dizer, collada a elle, maravilha ser no estar de balde em um mosteiro, porque a obedincia delia njo verdadeira, porm fingida. E, certamente, aquelle varo no foi defraudado em sua esperana; ao contrario, oflereceu a Jesus-Christo muitas dessas ofTerendas puras e limpas. Dcleitavel cousa vr e ouvir a sabedoria de Deus, encerrada em vasos de barro. Maravilhava-me de vr a f e pacincia- 17 15 insupervel nas ignominias e injurias, e s vezes nas perseguies dos que de novo vinham ao sculo, aquellas soffridas da mo do Abbade, como tambm de outros que eram muito menores que elle. Por isso, para edificao minha, perguntei a um dos Religiosos, que, havia quinze annos, estava no mosteiro, e que se chamava Abacyro, constantemente injuriado por quasi todos, e s vezes expulso da mesa pelos ministros, por ser esse Religioso um tanto incontinente da lingua, perguntei-lhe eu: Que isto, irmo Abacyro, que te vejo cada dia expulsar da mesa e, algumas vezes, estar nella sem comer? A isto respondeu-me elle: Cr, padre, no que vos digo: estes meus padres provam-me para vr siquero ser monge, e no porque me queiram injuriar; sabendo eu ser esta a inteno do Padre e de todos os outros, facilmente e sem molstia soffro tudo, ha quinze annos, e espero soflYcr mais, porque, quando entrei pata o mosteiro, elles me disseram que, at os urinta annos, provavam aos que deixavam o mundo, o que, alis, muito acertado, porque o ouro no se purifica seno na forja. Este nobre Abacyro falleceu no segundo anno depois que vim a este mosteiro; e, quaudo esteve para morrer, disse aos padres: Graas dou ao Senhor, e a vs, padres, que, para bem da minha alma, continuadamente me tentastes; por isso, 18 at agora hei vivido livre das tentaes do inimigo. O Abbade mandou inhumal-o mui justamente, como a um confessor de Jesus-Christo, no logar reservado aos santos que alli estavam sepultados. Parece-me que farei grande aggravo aos amantes da virtude, si calar a virtude e batalha de um Religioso chamado Macednio, que era o primeiro official do mosteiro. Uma vez, dois dias antes da festa da Epiphania, este santo varo pediu ao Abbade licena para ir a Alexandria, por causa de certos negcios que lhe eram necessrios, ficando, porm, de voltar em tempo de acudir aos deveres do seu officio e apparelhar o que convinha para a festa. Mas, o demnio, inimigo de todos os bons, rodeou o negocio de taes circumstancias, que elle no poude vir para o dia daquella sagrada solemnidade; e, como regressasse um dia depois, o Abbade o privou do seu oflicio e o mandou ficar no mais baixo logar dos novios. Aceitou este castigo o bom ministro de pacincia e prncipe de todos os ministros no soffrimento, e isto to sem tristeza,' sem pesar, como si fora outro e no elle, o penitenciado. Havendo cumprido por quarenta dias esta penitencia, mandou-lhe o Abbade voltar para o seu primeiro logar; passado, porm, um dia, rogou o religioso Macednio que o deixassem na humildade daquella ignominia, allegando ter commettido na cidade um grave delicto. Mas, o Abbade, sabendo que elle dizia isto mais por humildade do que. por verdade, cedeu entretanto ao honesto desejo daquelle bom trabalhador: alli estava, pois, o venervel ancio no logar e classe dos novios, pedindo sinceramente a todos que rogassem a Deus por elle. E este grande varo declarou-me que havia procurado com taDto empenho essa maneira de humildade e penitencia, porque nunca se sentira to descarregado de todo gnero de tentaes e to cheio da doura da divina luz, como naquelles dias. De anjos no cahir, porque os anjos, quando cahiram, tornaram-se demnios; de homens, porm, cahir e, quando tenham caliido, levantar-se. Um padre, que tinha cargo da procuradoria do mosteiro, contou-me que, quando era mancebo, cahira em gravs