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Universidade Federal de Mato Grosso Programa de Pós-Graduação em Educação Linha de Pesquisa: Cultura, Memória e Teorias em Educação Área temática: Constituição de Estilos de Individuação ESCRITURA, VIDA E CONSTITUIÇÃO DE SI a arte do estilo Orientador: Prof. Dr. Silas Borges Monteiro Orientanda: Polyana Cindia Olini Cuiabá, março de 2012

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Universidade Federal de Mato Grosso Programa de Pós-Graduação em Educação

Linha de Pesquisa: Cultura, Memória e Teorias em Educação Área temática: Constituição de Estilos de Individuação

ESCRITURA, VIDA E CONSTITUIÇÃO DE SI a arte do estilo

Orientador: Prof. Dr. Silas Borges Monteiro Orientanda: Polyana Cindia Olini

Cuiabá, março de 2012

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O46e Olini, Polyana Cindia. Escritura, Vida e Constituição de Si: A Arte do Estilo./ Polyana Cindia Olini. Cuiabá: UFMT, 2012. 99 fls. Dissertação - Mestrado em Educação. Orientador: Prof. Dr. Silas Borges Monteiro 1.Escritura. 2.Constituição de Si. 3.Estilo. 4.Otobiografia. 5.Nietzsche. 6.Derrida. 7.Barthes. I.Título. CDU 37

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Avenida Fernando Corrêa da Costa, 2367 - Boa Esperança - Cep: 78060900 -CUIABÁ/MT Tel : 3615-8431/3615-8429 - Email : [email protected]

FOLHA DE APROVAÇÃO

TÍTULO: "Escritura, vida e constituição de si: a arte do estilo"

AUTORA: Mestranda Polyana Cindia Olini

Dissertação defendida e aprovada em 24/04/2012.

Composição da Banca Examinadora: _________________________________________________________________________________________

Presidente Banca / Orientador Doutor Silas Borges Monteiro Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO Examinadora Interna Doutora Vera Lúcia Blum Instituição : Universidade Federal de Mato Grosso Examinadora Interna Doutora Michèle Tomoko Sato Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO Examinadora Externa Doutora Sandra Mara Corazza Instituição : UFRGS

CUIABÁ, 24/04/2012.

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Agradeço

Ao Silas Borges Monteiro, pelos tempos felizes e os aprendizados que se viveram aqui

nesta escritura. Não ocorreriam sem sua sabedoria;

Às inspiradoras professoras Sandra Corazza, Michèle Sato e Vera Blum,

agradeço me terem lido, relido e contribuído;

Aos meus pais e família – Paulo, Ana Zilda, Fausto, Jandira e Nainara, por todo carinho

e paciência com que tratam minha formação;

À Graciela e ao Bruno, pela sensibilidade com que sempre

me ajudaram e incentivaram;

Aos amigos Josemeire, Gisely, Eliane, Edson, Camila, Kreyssia e Marina pelos

encontros, faltas e satisfações de nossas amizades;

Aos cúmplices que integram o grupo Estudos de Filosofia e Formação – Emília, Renato,

Alessandra, Regina, Ângela, Márcia, Wesley, Gracielle, Lídia, Líliam e Catiane –, pelos

estudos e aventuras que experimentamos juntos;

À notável turma de Psicologia UFMT 2011/2, por me receber no Estágio Docência.

À CAPES, à Universidade Federal de Mato Grosso e a seu Programa de

Pós-Graduação em Educação, pelo investimento e apoio nesta pesquisa.

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Para minha avó, Vicentina.

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Resumo A arte do estilo toma do corpo do autor sua escritura. Refere-se à diversidade de seus estados internos e, consequentemente, às possibilidades de expressá-los textualmente. A escritura se caracteriza por exceder aquilo que se entendia até então como linguagem. A variação contínua presente na escritura e no estilo é o que permite pensar aqui os projetos filosóficos e as vivências como formação de si mesmo, e portanto como constituintes de maneiras subjetivas e plurais de cultivar e de afirmar a própria vida. A isso se chama, neste trabalho, constituição de si, isto é, ação que, por meio da escritura e dos elementos que a circundam, com todas as suas banalidades e seus egoísmos, é força constitutiva do vir a ser o que se é. Em vista disso, este texto, desenvolve tais elementos conceituais, experimentando o tema da constituição de si, perseguindo as ideias de escritura, (auto)biografia, (auto)formação, adotando as perspectivas da suspeita e da desconstrução. Do mesmo modo, é abordado o encontro com a margem vida-morte, a ruptura da distinção entre os discursos filosóficos e literários, bem como os discursos verbais e imagéticos. Nesse contexto, examina e explicita o sentido de gesto otobiográfico como método-labirinto. Palavras-chave escritura, constituição de si, estilo, otobiografia, Nietzsche, Derrida, Barthes.

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Abstract The art of style takes from the body of the author his writing. It refers to the diversity of its internal states and, consequently, the possibility to express them verbatim. The writing is characterized by exceeding what is understood so far as language. The continuous variation present in the writing and style is what allows us to think philosophical projects and experiences as a formation of oneself, and therefore as constituting subjective and plural ways of cultivating and asserting one’s own life. This is called, in this work, the constitution of self, that is, an action that, through the writing and the elements that surround it, with all its banalities and its selfishness, is the constitutive power of the becoming what one is. As a result, this text develops these conceptual elements, experimenting with the theme of the constitution itself, pursuing the ideas of writing, (auto)biography, (self)formation, adopting the perspective of suspicion and deconstruction. Similarly, we approached the meeting with the life-death margin, the rupture of the distinction between philosophical and literary discourses, as well as the verbal and imagery speeches. In this context, examines and explains the meaning of gesture otobiographical as method- labyrinth. Keywords writing, constitution of self, otobiography, style, Nietzsche, Derrida, Barthes.

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Notação bibliográfica 9

[1] Sobre vidas escritas 11

[2] A escritura do vivente

breve contextualização seguida de notas sobre o

problema da vida e da obra 24

[3] Nietzsche, escritura e vida 39

[4] Derrida, escritura e morte 57

[5] Constituição de si e escritura

o gesto otobiográfico 70

[6] Aos pretendentes a Penélope 84

Referências 88

Suplemento 95

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NOTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

Foi adotada, para citação das obras de Nietzsche, a convenção proposta pela

edição Colli/Montinari das Obras Completas. Siglas facilitam a leitura das referências,

que são as seguintes:

NT - O nascimento da tragédia

Co. Ext. III - Considerações extemporâneas III: Schopenhauer como educador

HH I - Humano, demasiado humano (vol. 1)

AS - Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra

A - Aurora

GC - A gaia ciência

ZA - Assim falou Zaratustra

BM - Para além de bem e mal

GM - Genealogia da moral

CI - Crepúsculo dos ídolos

EH - Ecce homo

EE - Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino

Na citação, o algarismo arábico que segue a sigla indica o aforismo, a seção ou

parágrafo do livro. No caso de GM, o algarismo romano anterior ao arábico remete à

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parte do livro; no caso de ZA, o algarismo romano remete à parte do livro e a ele se

seguirá o título do discurso; no caso de CI e de EH, o algarismo arábico, que segue ao

título do capítulo, indica a seção. Para EE, que é um escrito inédito inacabado, o

algarismo arábico indica a parte do texto.

Os fragmentos póstumos estão indicados por algarismos arábicos, aos quais

acrescentou-se a data em que o fragmento foi escrito, de acordo com a edição Kritsche

Studienausgabe (KSA). Os fragmentos póstumos, citados do Vontade de potência (VP), são

da “edição canônica” publicada por Otto Weiss.

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“Porque a escritura deriva de um gesto significativo do escritor é que ela aflora a História de maneira muito mais sensível do que tal outro

recorte da Literatura.”

BARTHES - O grau zero da escritura

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[1] SOBRE VIDAS ESCRITAS

| o duplo inquietante | A escritura derridiana, desde o final dos anos 1960 até os

dias de hoje, continua originando quase tanta controvérsia quanto o pensamento

nietzschiano. O próprio interesse de Derrida em Nietzsche oferece um ponto

particularmente impressionante de partida, para perguntar como um autor assume a

responsabilidade das opções do pensamento de um outro autor, quando seu trabalho se

torna objeto de interpretações conflitantes. A apropriação nazista das obras de Nietzsche,

por exemplo, constitui decisões interpretativas que exigem esclarecimentos de muitos de

seus leitores. Derrida também assume essa tarefa.

O estilo resultante do interesse por Nietzsche e também, talvez em menor gama,

por outros pensadores como Freud e Lacan, demonstra mais maturidade do pensamento

derridiano do que se possa imaginar, sem maior aproximação à obra, é claro. Embora o

filósofo francês frequentemente movimente as contradições em um texto particular,

representativo ou sintomático, é notável que seu projeto está situado em implicações

mais amplas do “mundo real” ou na análise de qualquer fenômeno. Assim, por exemplo,

Gramatologia não é primeiramente sobre os textos de Rousseau, é um livro que aborda a

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repressão da escritura em benefício da fala.

Derrida quer abordar a impressão deixada por certos pensadores na história do

pensamento, com base na impressão com a qual estes o marcaram. Ressalvam-se muitas

dessas marcas que Derrida mobiliza e que se caracterizam pela ambivalência à tradição

filosófica. Tanto o pharmakóm de Platão, em A farmácia de Platão, como o suplemento de

Rousseau, em Gramatologia, apontam para o jogo entre bem e mal, remédio e veneno,

mais e menos, escrita e phoné, dentro e fora, acidente e essência.

Este movimento duplo da desconstrução derridiana é abordado aqui como

argumento contra o comum pensamento de que o trabalho de Derrida tem mais

afinidade com o discursivo – entendido exclusivamente como “teoria” – do que com o

não-discursivo, o visual e o espacial. Não se trata apenas de um ataque ao discurso em

nome do não verbal, imagético, espacial e visual, mas sim de “deixar nascer uma nova

linguagem: nova partida para qual escritura, música, cor e desenho não se afastariam

mais um do outro” (Derrida; Bergstein, 1998, p. 95).

Devemos ligar este aspecto da desconstrução à leitura que Derrida faz de Artaud,

principalmente nos dois ensaios publicados em A escritura e a diferença de 1967 –

intitulados A palavra soprada e O teatro da crueldade e o fechamento da representação –, bem

como em Enlouquecer o subjétil – texto extraído do livro Antonin Artaud, desis e portraits,

publicado com Paule Thévenin, em 1986, e republicado em parceria com a artista

plástica brasileira Lena Bergetein, em 1998. No entanto, o interesse de Derrida em

Artaud se estende por toda a amplitude cronológica de seu trabalho, em que, com o

respeito à originalidade do teatro da crueldade, pensa a desconstrução como um tipo de

teatro, isto é, uma performance da filosofia (Irwin, 2012).

Apropositado o pensar de Michèle Sato:

A intenção de Antonin Artaud era expressar contradições entre o sujeito e o mundo exterior, entre a dualidade surrealista do imaginário e do real, ou entre o poético e o prosaico de um teatro em duplo. Na construção de cosmogonias invertidas, seus surtos psicóticos o tornaram a personagem contorcida no chão de um palco como denúncia contra a crueldade do mundo (Sato, 2011, p. 303).

Artaud foi internado por longo período de sua vida e, tido como louco, recebeu grande

quantidade de eletrochoques, como suposta terapêutica que ocasionou efeitos terríveis

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sobre sua mente e corpo. É dito que seu cabelo e dentes caíram; e o câncer que o matou

estava ligado a uma infecção que também havia sido causada pelos eletrochoques. Com

Derrida, entendemos sua obra inserida neste período, em que a própria vida de Artaud

era a linguagem possível em seus escritos, “a existência de um artista que não é mais a

via ou a experiência que dão acesso a outra coisa além delas próprias, de uma palavra

que é corpo de um corpo que é teatro, de um teatro que é um texto” (Derrida, 1971, p.

115).

A radicalidade do projeto de Artaud está em propor à arte teatral um retorno à

vida. Este reencontro da vida do teatro, como maneira de substituir a arte pela vida, ocorre

“no texto dos grandes trágicos, quando o ouvimos com sua cor, quando o vemos com

suas dimensões e seu nível, seu volume, suas perspectivas, sua densidade particular”

(Artaud, 2008, p. 26). Assim, Artaud assume as inúmeras possibilidades de um texto

assentado na necessidade de dedicar-se ilimitadamente a ele. É isto que Derrida

considera tão importante, e também tão singularmente eficaz para sua tentativa de

transgredir os limites do pensamento filosófico ocidental sobre a vida.

Em Enlouquecer o subjétil, Derrida parte de uma palavra misteriosa usada por

Artaud em seus textos, quando se refere a seus desenhos. E assim, a palavra rara subjétil,

do francês subjectile, passa a ser traçada como um conceito que assume amplo significado

(ou não significado) para a leitura de Derrida, tanto no que diz respeito ao pensamento

de Artaud quanto para o gesto de sua própria filosofia. Com Derrida, é possível entender

a cena do subjétil em Artaud como uma dramaturgia onde até mesmo a palavra em si, ao

assumir uma “dupla coerção”, pode não ter nenhum significado definitivo e “se torna

irrepresentável”. Isto é, o que é chamado subjétil remete a uma ênfase no duplo e seu

intervalo, uma vez que “nem objeto nem sujeito, nem tela nem projétil, o subjétil pode

tornar-se tudo isso, estabilizar-se sobre essa ou aquela forma ou mover-se sobre qualquer

outra” (Derrida; Bergstein, 1998, p. 45).

A partir daí, Derrida passa então a questionar se as pinturas e desenhos de

Artaud, chamados por ele de pictogramas, podem ser tratados apenas como oposições ao

texto discursivo, já que, para o devoto da arte, transformar a palavra em imagem faz

parte do intuito de reduzir ao máximo a intenção lógica e discursiva da linguagem teatral

e sua ação, de forma a aproximá-la cada vez mais de um sistema ligado à vida. Esta ação

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teatral estaria, portanto, relacionada com a realidade de um acontecimento único (cf.

Artaud, 2008, pp. 137-140). Neste sentido, Derrida ensaia uma resposta perspectivista

para a questão; defende que os desenhos e pinturas de Artaud, por um lado, são

oposições ao discurso verbal, à medida que tratam de sua tentativa de perfurar o limite

entre texto e imagem. Por outro lado, se empenha em dizer que não, pois “a pintura – a

cor, mesmo que seja a cor preta – o desenho e a escritura não toleram nenhuma parede

divisória, nem a das artes nem a dos gêneros, nem a dos suportes, nem as das

substâncias” (Derrida; Bergstein, 1998, 46-47). É certo que as pictografias de Artaud não

abandonam as palavras, mas as ultrapassam.

Derrida diz que, em Artaud e para Artaud, se escuta a pictografia, como letras que

transcrevem fonemas e como música que propõe coreografia com base nos tons das cores

presentes nas imagens ou simplesmente na tinta – mesmo monocromática – das letras

impressas no papel. Esta partilha entre a arte literária e o dito desenho literal de Artaud

só é possível a partir do distanciamento de toda e qualquer palavra sem espaço e sem

desenho, de toda e qualquer linguagem que desconsidere a vida e o corpo.

Diante deste modelo, vejo surgir o que pode constituir, creio, um caminho para

esta dissertação. A relação entre o discursivo e o não discursivo, entre a grafia e a

imagem, vem evidenciar a necessidade de se estender a escrita. Dessa forma, o conjunto

de imagens aqui presentes não se configura apenas como textos não verbais, mas sim

como escrituras, imagens que, apesar de não argumentativas, são polifônicas, isto é,

estabelecem diálogos e propõem relações com o texto, dando estilo e sensibilidade a ele.

Os artistas – pintores e fotógrafos – a que recorro são tidos como maestros das múltiplas

vozes em suas obras e, portanto, como autores que contribuem em rastros e citações para

a intertextualidade deste discurso que não se apoia na busca das intenções das imagens,

mas faz uso de suas intensidades e impressões.

| estilo e escritura | É importante que este prefácio ajude a observar as

semelhanças e diferenças entre Nietzsche e Derrida, com o intuito de começar a explorar

as conexões entre o que vai ser abordado como escritura ao pensarmos filosofia e

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educação e, fundado nisso, desenvolver os elementos conceituais que circundam a

escritura, como estilo, morte, vida, otobiografia, etc.. Desde já, busca-se movimentar a

filosofia de Nietzsche, as leituras desta filosofia – principalmente as feitas por Derrida – e

as implicações disso para pensar as relações entre filosofia, educação e constituição de si.

A exemplo de Nietzsche, Derrida favorece leituras ativas, nas quais a filosofia

desempenha papel dinâmico na criação de valores, assim como na afirmação e

transvaloração da vida.

Tomo o conceito de escritura (écriture) trabalhado por Derrida ao longo de seu

projeto filosófico, com ênfase nos textos do início de sua obra, como Gramatologia. A

escritura se caracteriza por exceder aquilo que se entendia até então por Linguagem,

porque rompe com a relação metafísica que a última pressupõe. Dessa forma, Derrida

defende uma visão inovadora sobre o tema, apontando para a criação de nova concepção

de escritura, através da qual é possível operar a desconstrução das oposições de caráter

binário, permitindo a articulação (o jogo da diferença) da fala e da escrita.

Derrida anuncia a liberação da escritura, dizendo: “(…) tudo aquilo que – há pelo

menos uns vinte séculos – manifestava tendência e conseguia finalmente reunir-se sob o

nome de linguagem começa a deixar-se deportar ou pelo menos resumir sob o nome de

escritura” (Derrida, 2008, p. 8).

Como em outros termos:

Certamente, há uma noção de que Derrida se porta de forma inquieta com relação

ao discurso filosófico tradicional e, desde seus primeiros trabalhos, podemos ver uma

gradual “radicalização do estilo”, por esta via. Conforme Jones Irwin (2010, p. 17-19), é

metodologicamente isto o que desperta seu interesse em um pensador como Artaud, que

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nos fala do solo da vanguarda poética. E quando O teatro e seu duplo traz afinidades com o

estilo nietzschiano, isso fica ainda mais claro na leitura de Derrida, em A palavra soprada.

Como Nietzsche, Derrida é um grande defensor da transição e da transformação.

Über; différance. É neste sentido que se faz aqui a aproximação entre eles: Nietzsche

transvalora, Derrida desconstrói. Nos labirintos da escritura, o texto nunca terá um

significado único. A convicção de que a linguagem pode ser uma generalização estável e

“total” é perigosa, assim como equivocada. Em seu texto Esporas (Os estilos de Nietzsche),

Derrida sustenta que não há uma verdade de Nietzsche ou do texto nietzschiano. E isso

compõe os estilos de Nietzsche. A linguagem é um meio que congela conceitos úteis,

uma ferramenta ilusória, como as de verdade e conhecimento. Não importa se elas são

verdadeiras ou não, porque os seres sociais precisam delas.

A dissenção com alguns temas clássicos da filosofia caracteriza uma consequência

necessária para escrita filosófica, em ambos os pensadores. Mesmo com estranheza ao

pensamento ocidental, conservam a paixão da filosofia pela busca da verdade – como

coloca Platão–, ao mesmo tempo em que a própria filosofia é posta em suspeita. Nem

Derrida nem Nietzsche abandonam o desejo de buscar a verdade, apenas demonstram a

impossibilidade de chegar a uma imagem, singular e transparente da “verdade”.

Tanto em Nietzsche como em Derrida, a questão do estilo está indissoluvelmente

ligada com o conteúdo do texto, selecionando e seduzindo o leitor. Nietzsche afirma não

conhecer “outro modo de lidar com grandes tarefas senão o jogo: este é, como indício de

grandeza, um pressuposto essencial. A menor constrição, o ar sombrio, um tom duro na

garganta são objeções a um homem, mais ainda à sua obra!...” (Nietzsche, EH, “Porque

sou tão inteligente”, § 10).

O jogo ao qual Nietzsche dá destaque nesta seção, é o jogo com estilo. Exige que

o leitor se torne tão atento ao ritmo e tom da escritura, quanto a seu conteúdo. Não é

inesperado, então, que Nietzsche constantemente faça alertas para que os leitores

prestem atenção a quem lhes fala, quase que como uma intimação para que seus textos

sejam escutados com os ouvidos corretos. Ainda que ajustar os próprios ouvidos para ler

Nietzsche seja, provavelmente, uma das tarefas mais desafiadoras, pois “os livros de

Nietzsche são mais fáceis de ler, porém mais difíceis de entender do que os de qualquer

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outro pensador” (Kaufmann, 1974, p. 72)1. Seu tom muda, propositadamente, de um

grito a um sussurro dentro de um único aforismo. Muitas vezes curtos, os aforismos de

Nietzsche são formatos que rompem padrões convencionais da filosofia moderna,

escritos entre suas caminhadas, como monumentos às suas crises de dores de cabeça,

consolidando seus meios particulares de apresentação – disposições gráficas, itálicos,

aspas e reticências ganham usos característicos.

Evidentemente, estas questões não se ausentaram em Derrida, leitor de Nietzsche,

que percebe haver um limite no discurso que chamamos de filosofia; esse limite precisa

encontrar uma maneira de gesticular em direção a seus lados, como que a um exterior

quase impossível de alcançar, tornando-se uma margem sem centros de controle e

referência. E para que esse discurso não volte a marchar rumo a qualquer limite, para

que haja a superação deste, ao ler e escrever é preciso se envolver com vários estilos e

registros de uma vez, isto é, devemos ser constantemente atravessados pelos sentidos.

Enquanto Nietzsche ressalta, em suas obras, para a multiplicidade e duplicidade

de sentido que expõe o perspectivismo, Derrida enfatiza a necessidade estrutural de o

significado não ser capaz de chegar ao destino desejado, a uma margem vazia, como

condição de possibilidade para desconstrução do logocentrismo e da metafísica da presença,

entre um monte de outros temas e aspectos. Esse fracasso do significado, tal qual o

pensamento ocidental sempre temeu, é que deixa ocorrer a contradição na perspectiva de

que das contradições emergem a possibilidade da remarcação do texto/escritura, como

dobra que “nega a prescrição de um pensar metafísico tradicionalizado e

tradicionalizante” (Santiago, 1976, p. 26).

Filosofia como gesto da margem... Não à delimitação de objetos, mas sim à margem e suas águas misturadas.

A compreensão do conceito de metafísica da presença é determinante para chegar a

um entendimento das estratégias de desconstrução de leitura e escrita – da vida, sobre a

vida e na vida – debatidas neste trabalho. Convencionalmente, podemos seguir

Aristóteles para dizer da metafísica: está preocupada com “o por que as coisas são”. O

cálculo físico que visa à persistência de qualidades essenciais dentro de cada coisa que

1 São de minha responsabilidade as traduções aqui citadas cujo os textos originais não são em português.

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existe, mesmo que em um mundo em constante mudança.

Metafísica diz respeito aos princípios que formam as estruturas e fundações

necessárias para que qualquer pensamento ou experiência tenha um lugar, uma origem.

Derrida argumenta que toda experiência e pensamento ocidentais são estruturados pela

herança histórica e conceitual da metafísica, por isso pressupõe e prioriza o valor da

“presença”. As dimensões espaciais e temporais do aqui e agora são privilegiadas,

pressupondo que o acessível em terra se trata apenas do “o que é”. Assim, Derrida

argumenta que a questão “o que é” nos torna obrigados a supor que algo “é” e tem uma

essência. O problema surge quando a tradição filosófica tenta alcançar essências.

As obras de Nietzsche, constantemente, expressam a necessidade de escapar a

metafísica, assim como as de Heidegger depois dele. Derrida se junta a seus antecessores

em perseguir as mesmas perguntas, mas ressalta a impossibilidade de escapar do que ele

chama de metafísica da presença. Já que não há como escapar a linguagem da presença,

Derrida nos chama a atenção para a precisão de aprender a colocar a linguagem para

trabalhar de outra forma através do estilo e do registro.

A escritura é uma construção idiossincrática. Todo texto é confissão de seu autor.

Derrida afirma que a autobiografia se distingue do que se entende

frequentemente, nas definições literárias. O autobiográfico deve nos fazer reconsiderar o

lugar do “autos”, pois toda escritura autobiográfica é singular e põe em movimento de

cooperação o “auto” de sua “autoidentidade”; determinando a inevitabilidade deste

movimento, que o autor, diz ser psicanalítico, na margem de todo texto e discurso, para

além dos limites tradicionais da escrita.

Vem daí a insistência de Derrida, que sucede Nietzsche, ao defender a conquista

do caráter autobiográfico também nos escritos filosóficos em geral. Na escritura

autobiográfica, o nome do autor, seu corpo, sua posição no espaço e no tempo são,

paradoxalmente, fatos e ficções que devem ser tomados pela filosofia como “uma

descrição mais ou menos viva de sua própria escritura” (Derrida, 2007, p. 337). Em

Otobiografias: o ensino de Nietzsche e a política do nome próprio, Derrida também investe nas

discussões clássicas sobre autobiografia. Declara que, muitas vezes, pormenorizam a

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autobiografia de um filósofo, “como um corpus de acidentes empíricos deixando um

nome e uma assinatura fora de um sistema que seria, ele, oferecido a uma leitura

filosófica imanente, a única que seja tida como filosoficamente legítima (...)” (Idem,

2009, p. 31).

| de praxe | A partir dos pontos e argumentos expostos até aqui, com toda a

concessão da fantasia e das fabulações, não como oposição ao real ou a verdade2 mas

sim como reconhecimento da potência da multiplicidade, apresento as escolhas e os

estabelecimentos em que a pesquisa está inserida.

Com Deleuze, o pensamento passa por encontros múltiplos. Pesquisar trata de

criar um deserto que possa ser atravessado por acontecimentos, velocidades, afetos,

sensações, multiplicidades e devires. Inspirada pelas provocações de Deleuze, Sandra M.

Corazza apresenta a pesquisa do acontecimento como possibilidade de “novos meios de

expressão”, em que o direito à singularidade e o pensar diferente se movimentam nos

campos da filosofia, da arte e da ciência. Estas suas afirmações, de certo modo,

atravessam todo o pensamento deste estudo, “assim, para a Pesquisa do Acontecimento,

escrever não é impor uma forma de expressão a uma matéria vivida, mas trata-se de um

procedimento informe, de um processo inacabado, de uma passagem de Vida que

atravessa o vivível e o vivido” (Corazza, 2008, p. 250).

A questão que enfeixa a elaboração desta dissertação: a proposta de constituição

de si, poetizada por Píndaro na sentença: “Homem, torna-te no que és”. Assumida por

Nietzsche como uma de suas grandes tarefas, principalmente em Ecce homo, e discutida

por Derrida, quando toma o estilo filosófico de Nietzsche como forma de ensino

fundado, nas vivências, em Otobiografias. Também se toma tal proposta como principal

objetivo, buscando justificar novas perspectivas sobre as experiências de vida que deixam

marcas, que geram concepções, que desenvolvem crenças, que levam à tomada de 2 Sem o objetivo de estabelecer que cada um tem sua verdade, ou ainda de definir quem tem a posse da verdade, lembro-me das seguintes palavras de Philipe Lejeune: “na tríade o Belo, o Bem, o Verdadeiro, só o primeiro diz respeito ao escritor atual que pensa não ter obrigação de ser, em sua obra, nem moral, nem “verídico”, ou antes, ser tudo isso automaticamente pelo simples fato de ser belo (LEJEUNE, 2008, p. 109).

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atitudes. Ou, talvez, nada disso, a não ser “suas insignificantes vivências diárias”

(Nietzsche, HH I, § 627), que, no entanto, produzem texto escritura. Ainda mais. Aspira à

compreensão de temas geralmente desprezados pela filosofia e pela educação: refiro-me a

sinalizar casuísticas do egoísmo como operadores conceituais da constituição de si.

A tessitura do trabalho procura abordar o que entende por si a partir do

perspectivismo nietzschiano, que está diretamente relacionado com sua noção de si

mesmo (selbst) como uma espécie de multiplicidade subjetiva, que entende nossa

experiência do mundo diante de uma experiência multifacetada. Dessa forma, “o sujeito

unitário (...), protótipo das demais ficções erigidas pela longa tradição metafísica, torna-

se obsoleto perante as rigorosas exigências de um pensamento que procura acolher, sem

restrições, a plenitude e a inocência do vir a ser” (Onate, 2003, p. 19). Como as seções

Dos que desprezam o corpo e Do domínio de si do Assim falou Zaratustra bem retratam,

Nietzsche revela um compromisso com a importância e o valor do corpo e da vida para o

conhecimento e o domínio de si, em sua forma nietzschiana mais elevada, isto é, criando

para nós mesmos uma moderação de instintos.

Como caminho para pensar como tornar-se o que se é, tento ligar as noções de

(auto)formação e estilo, que aparecem no decorrer da obra de Nietzsche e são tomadas

de forma fértil e particular por filósofos como Foucault, Deleuze e Derrida.

Foucault concebe os apontamentos para uma hermenêutica do sujeito em sua

determinação histórica e ética. Pelo retorno aos helênicos e romanos, apresenta o

“cuidado de si” como forma de “substituir o princípio da transcendência do ego pela

busca das formas da imanência do sujeito” (Foucault, 2004, p. 636). Para pensar um

sujeito em movimento é preciso que o sujeito se constitua na imanência de sua ação.

Assim, Foucault propõe formas não normalizadoras de constituir aquilo que somos.

Recorro ao transgressor pensamento da diferença para investigar a constituição de

si. Pois bem, tomar este tema (também é um desafio) da filosofia e da educação – de

decifrar e constituir o si mesmo – é reconhecer a nova forma de filosofia que se concebe

através da aposta de entender vida e escritura como possibilidades de experimentação e

de pensamento. Certamente, trata-se de questão metodológica: experimentar o tema da

constituição de si, perseguindo as ideias de escritura, (auto)biografia, (auto)formação,

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adotando as perspectivas da suspeita e da desconstrução, visto que retrata o “método

como criação”, onde “o devir é composto como possibilidades de trilhas, diferentes e

diversas” (Monteiro; Biato, 2008, p. 266).

A primeira seção visa trazer reflexões sobre as implicações do problema filosófico

que envolve o jargão “Vida e Obra”, passando pelo estruturalismo e o pós-

estruturalismo. Apresenta uma perspectiva de leitura para escritos (auto)biográficos ou

não, ao se empenhar no que diz Nietzsche em Para além de bem e mal: “gradualmente foi

se revelando para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal

de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas” (Nietzsche, BM, §

6).

Na segunda seção, trato a vida como o principal ponto de aproximação da

escritura na filosofia nietzschiana. Nessa medida “são os estilos de vida – escreve

Deleuze (1992, p. 126) –, que estão sempre implicados nos gestos e nas palavras, que nos

constituem como este ou aquele”. Neste sentido, encontramos um intenso diálogo entre

filosofia, vida e escritura por meio de reflexões sobre o debate que Deleuze empreende

acerca da literatura e da questão do estilo. Assim, o capítulo retrata também que a

renovação da filosofia, no período moderno, está ligada à questão da escrita.

Na terceira seção, abordo questões relativas ao tema da morte e sua relação com a

escritura. Em Derrida, a escritura da vida se revela como escritura da morte; ao narrar e

assinar sua vida, o autor (signatário e vivente de seu próprio texto) adianta sua morte.

Assim, toda escritura derridiana repete incansavelmente a morte, é portadora da morte

de seu autor. No entanto, procuro atentar para o fato de que Derrida sempre associou a

problemática da morte com a afirmação da vida, em sentido nietzschiano.

Na quarta e última seção, tento, pela elaboração de um sistema, pensar Como

tornar-se o que se é pela trilha da arte do estilo. E, portanto, uma possibilidade de pensar

escritura como força constitutiva do escritor/vivente/signatário, apesar das proteções de

suposta racionalidade científica presente em muitos escritos.

Ainda na última seção, procuro entreabrir alguns apontamentos para o gesto

otobiográfico. Com Derrida “tudo se enrola, vocês o sabem, na orelha de Nietzsche, nos

motivos do seu labirinto” (2009, p. 57). Silas B. Monteiro estabelece a otobiografia como

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um tipo de investigação de escritos, na qual sua busca por perspectivas sustentadas em

vivências-escuta-estilo-escritura justifica o interesse e o comprometimento desta

dissertação com o que foi apresentado em sua tese de doutoramento como conceito

derridiano, suas possibilidades metodológicas e a proposição de um método-labirinto.

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“Lá onde os outros propõem suas obras, eu não pretendo fazer outra coisa senão mostrar meu espírito. A vida é de queimar as questões. Eu não concebo nenhuma obra separada da vida. Eu não gosto da

criação separada.”

ARTAUD - O umbigo dos limbos

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[2] A ESCRITURA DO VIVENTE breve contextualização seguida de notas sobre o problema da vida e da obra

| discurso bricoleur | Tenho, como uma das questões a serem tratadas nesta

dissertação, a vida na produção filosófica. Ao procurar instrumentos para movimentá-la,

sem a intenção de encontrar uma referência centralizadora e privilegiada, esta seção do

trabalho acaba por permitir um jogo entre discursos. Isto sinaliza para a bricolagem como

“a necessidade de ir buscar os conceitos ao texto de uma herança mais ou menos

coerente ou arruinada”. Dessa forma, “deve dizer-se que todo discurso é bricoleur”

(Derrida, 1971, p. 239).

A implicação da vida na produção filosófica não é considerada na leitura feita

pelo estruturalismo, principalmente se nos perdemos nas polêmicas que censuram este

sistema por desprezar a história e abolir o sujeito. Isso muda se pensarmos o

estruturalismo como inspirador de novos estilos de filosofar. O pós-estruturalismo, por

exemplo, novo movimento filosófico que tenta ampliar e colocar o estruturalismo em

nova direção, por meio da filosofia nietzschiana.

O Dicionário de Filosofia de Cambridge define o estruturalismo como “uma série de

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pesquisa produtiva, peculiar, mas extremamente ampla, levada a cabo nas ciências

sociais e humanas desde os anos 1950 e ao longo dos anos 1970, principalmente na

França” (Audi, 2006, p. 296). Essa compreensão condiz com a resposta dada por

Barthes, em Crítica e Verdade, à questão feita por ele mesmo: “O que é o estruturalismo?”

(2007a, p. 49). É difícil descrever o estruturalismo como um movimento por causa das

restrições metodológicas exercidas pelas disciplinas e teóricos que por ele foram

influenciados – a filosofia, a antropologia, a teoria política, a teoria literária, a psicanálise

e até mesmo a matemática. Mais ainda. Com o primeiro Barthes3, a maior dificuldade

em definir o estruturalismo como movimento está na distinção entre os autores que são

associados a ele. De qualquer forma, é importante pensar o conceito de estrutura antes de

buscar, por compreensão deste período, atividade ou léxico do pensamento

contemporâneo.

A chave está na fonologia. É a “verdadeira estrutura das estruturas, suporte essencial da estruturalidade” (Dosse, 2007a, p. 245).

3 De acordo com François Dosse (2007b, p. 81), nos dois volumes da História do Estruturalismo, a obra do estruturalista francês se divide em dois momentos; no primeiro, Barthes aspirava fazer uma ciência do homem nas obras Elementos de Semiologia e Crítica e Verdade. Isso muda quando seu encontro com Julia Kristeva ocorre. O segundo Barthes é marcado por fazer uma reorientação em seu próprio trabalho “para dar maior liberdade à sua intuição literária. Barthes surge onde não era esperado”.

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Imagem composta a partir da pintura Férias de Hegel - 1958, de René Magritte's.

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Uma estrutura constitui um conjunto de elementos em que cada um só tem sentido

pelas relações que mantém com os outros e em que a modificação de um único elemento

acarreta uma modificação do conjunto. No caso do estruturalismo, esse conjunto de

elementos é formado, basicamente, por elementos gramaticais e semânticos.

Simplificando, o estruturalismo compartilha a ideia de que a língua é um sistema

social de signos, governado por regras, e que a comunicação efetiva depende dos recursos

disponíveis para o falante. A partir de dentro dos próprios códigos de linguagem ou

cadeias significantes (significante-significado, signo-significações), a abordagem estruturalista

tende a estar menos preocupada com as considerações tradicionais da subjetividade e da

história em seu tratamento do discurso.

Para grande parte de seus primeiros teóricos, o estruturalismo foi um método

essencialmente formalista, que se concentrou nas estruturas do significante e do

significado, definidos em níveis de análise e distribuições fonéticas. Seguindo Saussure,

partem do princípio que a linguagem e a estrutura nascem juntas e os símbolos só têm

sentido na posição que assumem uns em relação aos outros, com o objetivo de produzir

sentido.

A gramática enuncia as regras de possibilidade de tudo aquilo que pode ser dito,

formando uma estrutura de relações formais: “para o estruturalismo, os signos circulam,

tomados num código que a análise permite decodificar uma investida posterior. Bem

independente do emissor, o código fundamentalmente precede a mensagem que nele se

inscreve” (Descamps, 1991, p. 31).

No entanto, arrisco dizer que Barthes – inspirado em Flaubert, Mallarmé, Proust,

Robbe-Grillet e na liberdade do surrealismo – antecipa alguns poucos aspectos da

intertextualidade de seus trabalhos futuros, ao inverter a proposta saussuriana de

semiologia e fundar a literatura como linguagem conotativa, submetida à potencialidade

da reflexão lógica sobre as estruturas narrativas do texto, que ativamente se envolvem ao

articular um ou mais sentidos possíveis. Nesse sentido, Barthes comenta que “a

linguagem-objeto é a própria matéria que é submetida à investigação lógica; a

metalinguagem é a linguagem forçosamente artificial pela qual se leva adiante essa

investigação” (Barthes, 2007a, p. 27).

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Para Jonathan Culler (2002, p. 8), ao “propor novas perspectivas, Barthes expõe

maneiras habituais de tornar o mundo inteligível, e trabalha para modificá-las”. É assim

que, anos mais tarde, em vez de continuar seu trabalho pelas vias de uma unidade

binária redutora, Barthes anuncia a possibilidade da pluralização do texto, propondo

uma reflexão ancorada na filosofia desconstrutora de Derrida.

Em 1970, Barthes publica O império dos signos. Uma viagem ao Japão: o mundo do

signo vazio, lugar onde a escrita não é presunçosa a ponto de querer criar uma plenitude

simbólica. Com o autor, a escrita, a sabedoria, a “metafísica” oriental são possibilidades

de constituição de uma escritura que permanece vazia de sentido.

Jogo infinito dos significantes! Escritura e Vida como satori, sem ordem, sem centro e sem estrutura.

A “possibilidade de uma diferença, de uma mutação, de uma revolução na

propriedade de sistemas simbólicos” (Barthes, 2007b, p. 8). Barthes ultrapassa a busca

por um único significado na fala e na escritura, mesmo no campo literário; ele vai além

de padrões, códigos e convenções subjacentes às práticas humanas culturais. Tal

momento é culminante para este peculiar estruturalista, pois abandona suas pretensiosas

ideias de cientificidade, sem descontinuação entre os dois períodos de sua obra, para dar

espaço à vontade de trabalhar escritura “à sua subjetividade, à sua diferença” (Dosse,

2007b, p. 84).

Entre outros aspectos históricos, o enfraquecimento no crescimento do

estruturalismo foi causado por Derrida com a publicação das obras Gramatologia e A

escritura e a diferença, que identificam e teorizam elementos presentes neste pensamento –

como os de logocentrismo e metafísica da presença – com o propósito de transbordar

qualquer referência a um centro estrutural. Nos percursos de Derrida, como vimos em

sua influência sobre Barthes, o jogo entre as diferenças sobressai à estrutura rompendo

limites. Tudo com o uso de estratégias subversivas e criativas que consentem, portanto, à

transdiciplinaridade – juntando poética e reflexão filosófica nas Ciências Humanas e

Sociais. Contudo, segundo François Dosse, podemos considerar Derrida como o filósofo

“que levou ao extremo a lógica estruturalista, na direção de um questionamento ainda

mais radical de toda a substantivação, de toda a essência fundadora, no sentido de um

esvaziamento do significado” (Ibid., p. 36).

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Esses aspectos falam do que podemos chamar de tradição estruturalista e de

desconstrução de seu fluxo, que contribuiu de diversas maneiras para o estatuto de

cientificidade da linguagem e para profissionalização da produção filosófica, na França e

no “departamento francês de ultramar”, para citar o livro de Paulo Eduardo Arantes

sobre a Filosofia desenvolvida na Universidade de São Paulo.

Além de abrir caminho para o movimento pós-estruturalista, inaugurado com a

interpretação da obra de Nietzsche, feita pelo alemão Heidegger e um grupo de

pensadores franceses – entre eles, Deleuze e Derrida –, o pós-estruturalismo pode ser

caracterizado como um modo de filosofar. Embora, importa ressalvar, o termo não deva

ser usado para configurar homogeneidade ou singularidade a um método ou uma escola

de pensamento.

O pós-estruturalismo pode ser compreendido como reação, ou fuga, ao

pensamento hegeliano. Essa reação implica – para usar as palavras de Deleuze – a

celebração do jogo da diferença contra o trabalho da dialética (cf. Deleuze, 1987). É certo

que “as investigações estruturalistas, muito diversas sobre outros aspectos, convergiam

em um único ponto: sua oposição filosófica à afirmação teórica do primado do sujeito”

(Peters, 2000, p. 28). Os pós-estruturalistas, diferindo-se dos estruturalistas, passam a

descrever o sujeito em toda sua complexidade histórica e cultural. Dessa forma, “o pós-

estruturalismo, em particular, deve ser visto como uma resposta filosófica específica –

fortemente motivada pelo trabalho de Friedrich Nietzsche e Martim Heidegger – contra

as pretensões científicas do estruturalismo” (Ibid., p. 9).

| celebrar a différance | O método estrutural é, ainda hoje, instrumento de

trabalho eficaz e, por isso, muito usado para os exercícios de exegese precisa e análise

rigorosa do pensamento de um autor. No estudo sobre Nietzsche, na condição de objeto

ou ferramenta, para especialistas ou não, este constitui um primeiro caminho viável e

fértil.

Em 1967, Deleuze escreve o artigo Em que se pode reconhecer o estruturalismo?,

publicado em 1972, para compor a obra Historie de la philosophie; o texto tratou do

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estruturalismo em uma época de grande interesse pelo tema, pois se referia às obras que

estavam em voga e a outras ainda em período de conclusão. O filósofo francês aborda a

diversidade de estudiosos que se identificam e se influenciam pelo estruturalismo, mesmo

explorando domínios diferentes. Porém ressalta ser possível avaliar isso positivamente,

por meio das descobertas e criações singulares feitas à sombra do rótulo estruturalista.

Deleuze afirma a importância do texto no estruturalismo, como que lembrando o leitor

da, já debatida aqui, origem linguística do método estrutural, pois “só há estrutura

daquilo que é linguagem, nem que seja uma linguagem esotérica ou mesmo não verbal.

As próprias coisas só têm estrutura na medida em que mantêm um discurso silencioso,

que é uma linguagem dos signos” (Deleuze, 2006b, p. 221).

Deleuze quer lembrar que os estruturalistas influenciados por Saussure – podemos

aplicar isso também para os pós-estruturalistas influenciados por Nietzsche – apresentam

grande sensibilidade textual e uma compreensão complexa da importância do estilo,

tanto na Literatura quanto na Filosofia e nas Ciências Humanas.

Entretanto, esta proposta estruturalista de que os significados são estáveis e

emergem de sinais estruturados foi muito contestada. Derrida é o responsável pela crítica

mais famosa que o estruturalismo já recebeu: a desconstrução. Se os signos são

“arbitrários”, então o seu significado não pode ser fixado, pois tal significado sempre será

instável, já que “os esquemas estruturais são sempre propostos como hipóteses” (Derrida,

1971, p. 243).

Ao nos mostrar o movimento pelo qual a escritura excede o que se entendia como

linguagem, como abordado no prefácio deste trabalho, Derrida não está convencido que

a escritura deixe de determinar o “significante do significante”4 como nos descreve a

Linguística de Saussure, porém acredita que esta determinação deixa de indicar um

elemento exterior da escritura, em relação à língua falada. O

transbordamento/arrombamento da escritura, em relação ao conceito de linguagem, faz

com que o elemento “significante do significante” passe a exceder o lugar que lhe teria

sido atribuído no decorrer de toda a história do pensamento metafísico.

4 Derrida (2008) considera que a linguagem, sob tendência estruturalista, é tida como um significante maior ou principal. Nesse sentido, define a escrita, também sob tendência estruturalista, inferior à linguagem, apenas como um “significante do significante”.

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De acordo com Derrida, “o advento da escritura é o advento do jogo; o jogo

entrega-se hoje a si mesmo, apagando o limite a partir do qual se acreditou poder regular

a circulação dos signos” (Idem, 2008, p. 8), diferenciando-se então da confirmação que a

linguística costumava dar, passando a ser o jogo da linguagem o seu significado; ao qual

segue funcionando desde sempre como um significante, e cada significante, por sua vez,

só possuindo identidade em sua diferença com relação aos outros.

O gesto de desconstrução mostra que qualquer conjunto de signos linguísticos

pode sempre produzir diferentes tipos de significados. Todos os escritores, mesmo os

mais cuidadosos, são prisioneiros inconscientes dos sistemas de signos que constituem

seus pensamentos e, inevitavelmente, deixam vestígios destes sistemas em seu trabalho.

Os significados são inerentemente instáveis e, portanto, inevitavelmente, deixam de

funcionar quando rearranjados. Não pode haver uma “presença” de significado estável

quando a comunicação ocorre entre o escritor-falante e o leitor-ouvinte.

Pós-estruturalistas como Derrida celebram a différance, “a atenção dada à

polissemia ou ao politematismo constitui, possivelmente, um progresso relativamente à

linearidade de uma escrita ou de uma leitura monossêmica” (Idem, 2000, p. 51), dando,

enfim, livre curso à diversidade, àquelas coisas que florescem em uma “liberdade”

perspectivista, pluralista e tolerante.

Trata-se do neografismo mais conhecido na filosofia derridiana, pensado com base

na introdução da letra a no lugar da letra e para escrever a palavra différence. Para

Derrida, “o motivo da différance, quando marcado por um ‘a’ silencioso, não atua, na

verdade, nem como ‘conceito’ nem simplesmente como ‘palavra’”. Continua chamando-

a de escrita desdobrada, fruto dela própria. Por isso, o rastro e a différance são chamados

por ele de “‘indecidíveis’”, entendidas como “unidades de simulacro, ‘falsas’

propriedades verbais, nominais ou semânticas, que não se deixam mais compreender na

oposição filosófica (binária) e que, entretanto, habitam-na, opõem-lhe resistência,

desorganizam-na”. Ação esta que ocorre “sem nunca constituir um terceiro termo, sem

nunca dar lugar a uma solução na forma da dialética especulativa” (Derrida, 2000, p. 49

e p. 46).

Estruturalismo e pós-estruturalismo possuem características em comum. Logo,

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entre os aspectos que compartilham, destaco a compreensão de linguagem e cultura. Para

ambos, linguagem e cultura são concebidas em termos de sistemas linguísticos e

simbólicos nos quais as relações entre os elementos que constituem as estruturas são

consideradas mais importantes do que os elementos isolados.

Neste ponto, feito o debate sobre estruturalismo e pós-estruturalismo, é válido

dizer que, para este trabalho, reflexão filosófica e vivência são indissociáveis. Refuta-se

aqui o método estrutural binário. É claro, não pretendo discordar de seus merecimentos,

mas ao distinguir, com transparência, a obra separadamente da vida, o sistema e o sujeito

do sistema, afasta do universo de reflexão a possibilidade de refazer os movimentos que

produziram as proposições filosóficas. É preciso aprender “a jamais abrir mão do

filosófico apelo biográfico”, escreve Scarlett Marton (2004, p. 15-16).

| linhas fronteiriças | Lia-se a filosofia de um pensador como composição dos

efeitos de seus pesares e conquistas pessoais. Para Silas B. Monteiro: “os textos eram

lidos como um conjunto dos dramas psicológicos de seus autores”5. Implicava-se vida e

obra sob abordagem psicológica. Portanto, usar a vida para interpretar e justificar a obra

era uma estratégia acionada como chave de compreensão das questões que compõem o

corpus filosófico. Além da referência à metafísica atomista, outros claros exemplos são os

manuais de filosofia publicados no início do século passado.

Convém ressaltar que, quando chamo a atenção para a estreita vinculação entre

obra e vivências, como um dos objetivos deste trabalho, não pretendo fazer este tipo de

abordagem. O desafio é mobilizar a margem que atravessa o corpo do autor e o corpus do

texto, sem “tomar conta da gênese do sistema, segundo processos empíricos de tipo

psicologista, historicista ou sociológico” (Derrida, 2009, p. 31), dando lugar à análise de

novos recursos, como o nome próprio, a assinatura e a différance.

Antes de seguir com algumas notas sobre o problema da vida e da obra na

filosofia, penso ser pertinente transcrever o trecho abaixo, in Otobiografias, de Derrida. A

5 Monteiro, Em conferência na Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá, em 2007.

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citação é longa, no entanto, deve ser destacada por parecer tratar do importante

momento em que se deslocam as linhas fronteiriças entre vida e obra, neste texto da

conferência feita por Derrida, na Universidade de Virginia em 1976:

A ‘vida’ tem também dificuldade de tornar-se objeto de uma ciência, no sentido que a filosofia e a ciência sempre deram a essa palavra, como ao estatuto legal da cientificidade. Esse mal, os atrasos que se seguem, tudo isso torna em particular o fato que uma filosofia da vida tem sempre seu abrigo preparado na ciência da vida. Não é o caso de todas as outras ciências, ciências da não vida, ou seja, da morte. O que levaria a dizer que todas as ciências que conquistam sua cientificidade sem demora nem resíduo são ciências do morto; e que existe entre a morte e o estatuto do objeto científico uma co-implicação que nos interessa, e que interessa o desejo de saber. Se é assim, o sujeito dito vivente do discurso biológico faz parte, parte que toma ou parte tomada, do campo investido, com a enorme aquisição filosófica, ideológica, política, com todas as forças que a trabalham, com tudo o que se potencializa na subjetividade de um biologista ou de uma comunidade de biologistas. Todas essas avaliações marcam a assinatura científica e inscrevem o bio-gráfico no biológico (Ibid., p. 32-33).

Em sua busca por estatuto de cientificidade, as Ciências Humanas, assim como as

chamadas Naturais, vêm deixando de lado a contribuição da vida para pensar a filosofia

de cada autor. A relação entre vida e obra deve contribuir para mostrar o autor em

movimento, ajudando a escapar das definições essencialistas que buscam pelo significado

principal de um texto.

Para Derrida, as leituras que abordam vida e obra não questionam a potência da

margem divisível que atravessa vida-obra. Mesmo que se trate de projetos que atentem

para as implicações das vivências no texto, o foco dessas leituras é corpus de acidentes

empíricos, os quais compõem a vida de uma pessoa. Esse engendramento empírico do

texto vai contra a proposta derridiana de atribuir um status que não o posicione, nem

dentro nem fora, ou dentro e fora, do biológico e do biográfico ao mesmo tempo.

| nota: teatralização de Zaratustra | Deleuze propõe o dicionário dos principais

personagens na obra de Nietzsche; defende um processo de teatralização da vida do

filósofo e sua filosofia, afirmando que o pensamento de Nietzsche, em especial o seu

Zaratustra, é uma espécie de cena dramática. A isso denomina de criação de um teatro da

vontade de potência e do eterno retorno, apresentando a possibilidade de que Nietzsche seja

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um homem e um filósofo teatral, devido, principalmente, à sua aproximação do deus

Dioniso. Deleuze adverte, ainda, que em diversas vezes “os aforismos de Nietzsche

devem ser compreendidos como princípios e avaliações de diretor, de metteur en scène”

(Deleuze, 2006a, p. 166).

Diante da originalidade dos escritos de Nietzsche – e da possibilidade da direção

de seus leitores –, Deleuze o anuncia como precursor da constituição de novos meios de

expressão filosófica. Seria, até mesmo, tal qual promete o filósofo francês, a tarefa de

toda a filosofia do porvir, qual seja: constituição de nova imagem do pensamento e do

filosofar, a partir da renovação dos meios de expressão do pensar filosófico. Tal

renovação filosófica, exposta por Deleuze, também trata de uma seleção, engendrada

pelo próprio Nietzsche, escritor e vivente de seus textos, dos leitores metteur en scène,

seleção que faz da vida seu maior critério. Com Nietzsche, é preciso ter vivências para

saber respirar e saber ouvir certos escritos.

“Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal. Não me confundam, sobretudo” (Nietzsche, EH, “Prólogo” § 1).

− “Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que é um ar das alturas, um ar forte” (Ibid, “Prólogo” § 3).

A ideia de plano de imanência está diretamente implicada na ideia de conceito em

Deleuze e Guattari, na sobrevida dos conceitos filosóficos. Já os conceitos ressoam à

filosofia que os cria, pois só é filosofia o pensamento que se dá a inventar conceitos.

Contudo, os conceitos não constituem por si sós um plano de imanência. O plano de

imanência não é um conceito particular ou um conceito geral a englobar todos os outros,

ele é a pré-condição de existência de todo conceito filosófico, ele é o solo onde os

conceitos devem vir à luz. O plano de imanência é o “mundo” do conceito.

Por sua vez, a ideia de personagem conceitual leva adiante as relações do

pensamento com determinada cena na obra. Isso porque ao destacar, por exemplo,

Sócrates como um personagem conceitual do teatro filosófico de Platão, deixa claro que

não se trata do Sócrates histórico, nem propriamente de um simples personagem por

intermédio do qual as ideias platônicas seriam defendidas: seu alter ego. Mas, de um

intercessor. Esses personagens conceituais são os sujeitos em sua filosofia. Logo, descarta-se

qualquer alusão a que os personagens conceituais sejam meramente ilustrativos: eles são

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pro-ativos na construção de uma tese filosófica. No entanto, segundo Deleuze e Guattari

(1992, p. 86), não são conceitos, pois eles não são ferramentas de representação do

filósofo.

O filósofo é a idiossincrasia de seus personagens conceituais. E o destino do filósofo é de transformar-se em seu ou (em) seus personagens conceituais, ao mesmo tempo em que estes personagens se tornam, eles mesmos, coisa diferente do que são historicamente, mitologicamente ou comumente (o Sócrates de Platão, o Dioniso de Nietzsche, o Idiota de Cusa).

Quando Nietzsche assume outros nomes, vai além de contar quem é. Ao assumir

seus personagens, também na condição de plano de imanência, o filósofo fala de como se

torna o que se é.

| outra nota: a doença de Cézanne | O ensaio A dúvida de Cézanne, escrito por

Merleau-Ponty, desfila com extrema beleza o pensamento estético, com ênfase na

reflexão vida e obra. A angústia do pintor esquizoide é a potência do ensaio. Pode a obra

corresponder, retratar, dizer a vida? Tendo como referência Paul Cézanne, o

fenomenólogo afirma: “é certo que a vida não explica a obra, porém certo é também que

se comunicam. A verdade é que esta obra a fazer exigia esta vida” (Merleau-Ponty, 1995, p.

312).

A dúvida de Cézanne busca e apresenta vias de comunicação entre a vida e a obra,

de modo a manifestá-las, buscando novas formas de expressão, comunicação, registro e

pintura. Para tanto, Cézanne concebe a pintura impressionista – restabelecer na tela o

próprio modo como os objetos chegam à visão –, recusa a perspectiva geométrica, não

quer uma pintura sem deformações. Mais tarde, se separa desta escola. Os pontos

marcantes de sua pintura correspondem ao mundo, à nossa visão sobre as coisas e sobre

a própria existência. Para isso, deixa de lado os dualismos comuns da tradição de escolas

artísticas.

De fato, o assunto a ser examinado no ensaio se refere a que os gestos do pintor se

transformam em pintura. Discorre Merleau-Ponty, em relação a Cézanne:

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Se nos parece que a vida de Cézanne trazia um germe de sua obra é porque conhecemos sua obra antes e vemos através delas as circunstâncias da vida, carregando-as de um sentido que tomamos à obra. Os dados de Cézanne que enumeramos e de que falamos como condições prementes, se devessem figurar no tecido de projetos que era, só poderiam propondo-se-lhe como o que tinha a viver, deixando indeterminada a maneira de o viver (Ibid., p. 311-312).

Na maior parte do tempo não vemos senão a partir do ponto de vista dualista; sua

(uma) vida, sua (outra) obra. A pintura de Cézanne rompe com essa nossa familiaridade

de olhar renascentista. Porém, esse trato com a tarefa infinita de expressar a realidade

não deve ser interpretado de forma que ocorra a privação da vida do pintor em sua obra,

pois Cézanne fazia relações com sua doença; sua obra revela sentidos de sua doença: não

há diferença entre a constituição própria de Cézanne e a constituição própria de Cézanne

esquizoide. Ora! Se a esquizoidia é definida para patologia pela inadaptação à realidade

intrafísica, pode-se dizer que “são as próprias coisas e os próprios rostos, tais quais via,

que pediam para assim serem pintados, e Cézanne não disse mais do que queriam dizer”

(Ibid., p. 312).

Em suas diversas e obstinadas maneiras de retratar o Monte Sainte-Victoire –

durante os 67 anos de sua vida, Cézanne pintou 87 versões desta mesma paisagem –,

formou conjuntos de paisagens que dão visibilidade à sua obra. Duas pinturas em

especial, datadas do último período 1904-1906, retratam seus laços emotivos com o local

e o crescente desejo por luz na vida. Em uma das telas, Cézanne deixou espaçamentos

são espaços em branco que, segundo especialistas, não indicam falta de acabamento, mas

dão ênfase a áreas de transição, em que duas cores não poderiam ser justapostas. Não é

difícil pensar que foram deixados para que pudessem fundir-se apenas opticamente,

retratando a luz que ele tanto desejou.

Paul Cézanne deixou sete autorretratos que revelam íntima observação pessoal. A

mim, faltam pistas no mistério de Cézanne e no lindo debate que Merleau-Ponty faz a

seu respeito. Por isso, junto-me à opinião do pintor Kurt Badt. Para ele, nos quadros de

“Cézanne, suas experiências pessoais transparecem de forma um tanto disfarçada, isso

leva a interpretar sua arte desse ângulo particular, sobretudo por seus aspectos subjetivos.

O resultado tem sido que sua obra me parece uma confissão” (Coleção de Arte, 1997, p.

4).

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Cézanne encara sua existência como um projeto estético, nos lembra Nietzsche, valorizando a dimensão artística da vida, onde o belo é um constante vir a ser.

Composição feita a partir das obras Autorretrato,1883-1887, e duas versões de Mont Sainte-Victoire, 1904-1906, de Paul Cézanne.

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Vivem em nós inúmeros; Se penso ou sinto, ignoro

Quem é que pensa ou sente. Sou somente o lugar onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.

Há mais eus do que eu mesmo. Existo todavia

Indiferente a todos. Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados

Do que sinto ou não sinto Disputam em quem sou.

Ignoro-os. Nada ditam A quem me sei: eu ’screvo.

FERNANDO PESSOA - Odes de Ricardo Reis

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[3] NIETZSCHE, ESCRITURA E VIDA

| pluralidade de estilos | Como há de elucidar este título, um filósofo e um

conceito constituem o vetor para essa reflexão: Nietzsche e o conceito de vivências. Para o

extemporâneo, as vivências impregnam o corpo. Ora, se impregnam o corpo, o texto é

marca de vivências! Pois, se vida impregna corpo, vida conduz escritura, e escritura

conduz vida. Nietzsche diz que “de tudo quanto se escreve, agrada-me apenas o que

alguém escreve com o próprio sangue” (Nietzsche, ZA I, “Do ler e escrever”). Escrever

com a vida, com sangue, e não com a verdade. Melhor: não seria isso escrever com a

verdade? Escritura, assim como vida, deve ser afirmação dionisíaca, e não “grande

suspeita, um enigma a ser desvendado pelas marcas e desejos de um real sempre passível

de ser historiografado” (Costa, 2010, p. 52).

A obra autobiográfica de Nietzsche se inscreve em sua filosofia. Segundo Silas B.

Monteiro, “a biografia foi um dos principais pontos de aproximação de Nietzsche à

escrita filosófica” (Monteiro, 2004, p. 30). Isso é evidente desde o início do terceiro

período de sua obra (1882-1888), em que reconstrói seu pensamento ao apresentar um

balanço conceitual e a organização de seu sistema filosófico. Organização que

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fortalecerá, cada vez mais, “a profunda vinculação entre a reflexão filosófica e as

vivências, deslocando a concepção de que pensamento ou razão sejam de ordem lógica

para fundá-los na concretude da vida” (Ibid., p. 30). Com Nietzsche, a elaboração textual

se revela como um processo significativo de constituição de si.

“a vida faz do pensamento qualquer coisa de ativo, o pensamento faz da vida qualquer coisa de afirmativo” (Deleuze, 1987, p. 153).

Nietzsche conta sua vida, a si mesmo, organizada, de acordo com o que se pode

chamar de sua saúde fisiológica. E, dessa forma, responde porque é tão sábio, tão

inteligente, escreve livros tão bons e se considera um destino. O Ecce homo trata, talvez,

de uma coerência, vinda das últimas elaborações da filosofia nietzschiana: a tarefa

filosófica de buscar a constituição de si. Ouvir as vivências do filósofo significa buscar os

valores, as fundamentações e os conceitos que possibilitaram a compreensão de seu

pensamento que não faz, de forma alguma, oposição à sua vida: a vida de um homem

profundamente afinado com seus estados internos.

Estilo e inspiração são tratados, aqui, na perspectiva da arte do estilo, desenvolvida

por Nietzsche no decorrer dos capítulos Por que escrevo livros tão bons e Assim falou

Zaratustra, da obra Ecce homo. O bom estilo foi descoberto com Zaratustra e seus meios

artísticos, novos e inauditos de filosofar. Sobre o bom estilo, Nietzsche afirma:

Direi ao mesmo tempo uma palavra geral sobre a minha arte do estilo. Comunicar um estado, uma tensão interna de phatos por meio de signos, incluído o tempo desses signos – eis o sentido de todo estilo; e considerando que a multiplicidade de estados interiores é em mim extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo – a mais multifária arte do estilo de que um homem já dispôs. Bom é todo estilo que realmente comunica um estado interior, que não se equivoca nos signos, no tempo dos signos, nos gestos – todas as leis do período são arte dos gestos. Nisso meu instinto é infalível. Bom estilo em si – pura estupidez, mero “idealismo”, algo assim como o “belo em si”, como o “bom em si”, como a “coisa em si”... (Nietzsche, EH, “Por que escrevo livros tão bons”§ 4).

Refere-se à sua própria diversidade dos estados internos e, consequentemente, às

possibilidades de expressá-los textualmente. É, portanto, a pluralidade de estilos,

gêneros, tropos e ritmos – textos curtos ou longos, frases interrompidas, traços longos ou

espaços em branco entre os aforismos, metáforas, níveis diferentes de escrita, alusões,

etc. –, que servem para escritura de Nietzsche como meio de expressar um pensamento

que é, em si, pluralista.

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No penúltimo capítulo de sua obra sobre Proust, Deleuze define a função do estilo

como forma de comunicação do todo dentro da obra. Sua função é unificar uma

multiplicidade de pontos de vista, “afirmando sua diferença irredutível”. Assim, essa

unidade da obra de arte, tratar-se-ia de “uma unidade que é a unidade desse múltiplo,

dessa multiplicidade (...); um Uno e um Todo que não seriam princípio, mas, ao

contrário, ‘o efeito’ do múltiplo e de suas partes fragmentadas” (Deleuze, 2003, p. 155).

No decorrer do capítulo, Deleuze se refere ao estilo como “essência”, apesar da

estranheza que o uso da palavra causa de imediato, ele a usa como o que permite a

individuação de uma obra em seu todo, quando ressalta um estatuto da essência como

“ponto de vista individuante, superior aos próprios indivíduos, em ruptura com suas

cadeias de associações”. Assim, a essência da essência ou o estilo como o ponto de vista

essencial para a obra de arte é ‘conjuntiva’, pois “aparece ao lado dessas cadeias,

encarnada em uma parte fechada, adjacente ao que ela domina, contígua ao que ela

mostra” (Ibid., p. 154). Estilo, portanto, expressa unidade, na condição de jogo das

multiplicidades de fragmentos, tecidos e peças. No entanto, ao mesmo tempo, o estilo

deve também ser definido como um aspecto comum que é produzido em conjunto com a

obra, mas em sua extremidade – talvez o gesto de uma pincelada ou canetada final –,

que, no entanto, continua a coexistir com a obra.

O fato de que o estilo, esta forma de experimentação da multiplicidade, continua a

existir, contingentemente relacionada com a obra, de maneira não estática, mas sim em

movimento que acompanha a vida – sempre uma dimensão de transversalidade –, é o

que faz do estilo um elemento de transformação para além do autor ou artista. Visto que,

“os grandes filósofos são também grandes estilistas”, cada leitor procura compreender a

unidade da obra de um autor, descobrindo o elemento estilístico que define sua obra, ou

sua estrutura, ou ainda sua ideia essencial. Como essa descoberta não é simples nem livre

de conflito, a função do estilo abre a questão de uma possível unidade da obra como devir

minoritário. Este comunica, através da expressão singular de um estilo, como tantas

perspectivas ou pontos de vista, a possibilidade de visualizar um todo que não é fechado

ou contido em uma totalidade, mas sim em multiplicidades potencialmente criativas. Por

isso, “duas coisas se opõem ao estilo: uma língua homogênia, ou, ao contrário, quando a

heterogeneidade é tão grande que se torna indiferença” (Deleuze, 1992, p. 176).

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Com Deleuze, acredito que esses aspectos fazem com que o estilo funcione como

uma “língua estrangeira presente na própria língua”, como uma ordem de segundo nível

de significação, ou uma convenção através da qual a obra é determinada. O estilo

trabalha para a criação de um “uso menor da língua maior”. Conforme Deleuze, o boom

e o krach, essa feitiçaria que pela criatividade empurra a sintaxe a seu limite. Fazendo a

língua gaguejar em si mesma, o grande estilista “toma suas forças numa minoria muda e

desconhecida, que só a ele pertence, é um estrangeiro em sua própria língua: não mistura

outra língua à sua, e sim talha na sua língua uma língua estrangeira que não preexiste”

(Idem, 1997a, p. 124-125). Em Mil platôs, confere as qualidades de variável e contínua a

essa língua secreta:

O que denominamos como um estilo, que pode ser a coisa mais natural do mundo, é precisamente o movimento de uma variação contínua. Ora, dentre todos os dualismos instaurados pela linguística, existem poucos menos fundados do que aquele que separa a linguística da estilística: sendo um estilo não uma criação psicológica individual, mas um agenciamento de enunciação, não será possível impedi-lo de fazer uma língua dentro de outra língua (Idem, 1995, p. 41).

Neste sentido, na filosofia nietzschiana, o estilo não é simplesmente uma série de

degraus para a compreensão do texto. É, no que concerne ao vigor da escrita, uma

maneira de o texto ser, da qual não poderiam os instintos se agenciar diferentemente.

“Nietzsche subverte os limites da linguagem por meio do uso de neologismos, de aspas e

da paródia, ressaltando o caráter afirmativo do estilo nietzschiano e sua diversidade

estilística, como ditirambos, poesias, sentenças, etc.” (Itaparica, 2002, p. 16).

“Para Deleuze (1997b, p. 49), “é todo o agenciamento em seu conjunto individuado que é uma hecceidade”.

Na qualidade de dimensões da multiplicidade presentes no estilo de Nietzsche, é

como se a forma ultrapassasse os limites do conteúdo, nos processos de variação pelo

qual a língua e o texto são submetidos. Tal pensamento é, de fato, notado nos aforismos.

Com Deleuze, “um aforismo é um jogo de forças, um estado de forças sempre exteriores

umas às outras (...) a mais recente, a mais atual é a provisória-última, é sempre a mais

exterior” (2006c, p. 323).

Dessa maneira, para interpretar Nietzsche se torna necessário encontrar a força

que dá sentido ao texto. Esse movimento é chamado por Deleuze de maquinação. Dessa

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maneira, para interpretar Nietzsche torna-se necessário encontrar a dynamis que dá

margem ao texto. Esse movimento é chamado por Derrida de otobiografias. Dessa

maneira, para interpretar Nietzsche se torna necessário encontrar no pluralismo

estilístico o ritmo do texto. Esse movimento é chamado por Nehamas de perspectivismo.

Dessa maneira, para interpretar Nietzsche se torna necessário encontrar o pensamento

lúcido, o delírio e o complô do texto. Esse movimento é chamado por Klossowski de

indissolubilidade. Dessa maneira, para interpretar Nietzsche se torna necessário gesto.

Se o pensamento de Nietzsche, como sugere Deleuze, entra em uma relação de

forças, toda interpretação deste pensamento é provisória. Já que a interpretação também

mudaria, de acordo com o surgimento de novas perspectivas e estilos do texto, que

tendem a condicioná-lo, e são condicionados por ele. Se Nietzsche sempre utiliza o

mesmo estilo para diferentes perspectivas, pode-se supor que suas ideias são totalmente

autônomas e que podem ser expressas independentemente do estilo. No entanto, observa

Alexander Nehamas:

Eu penso que não nos é tão fácil descrever os diversos escritos de Nietzsche como se cada um apresentasse a mesma ideia de diferentes formas. Ainda que existem, naturalmente, conexões e repetições, cada obra dá sua própria contribuição ao legado literário e filosófico de Nietzsche. Se um único objeto emerge dos escritos de Nietzsche, esse é a figura do seu autor, que emerge do conjunto de todos os seus textos (Nehamas, 2002, p. 282).

O comentador de Nietzsche, nascido na Grécia e naturalizado americano, salienta

uma perspectiva importante nesta observação: estas ideias que aparentam ser as mesmas,

não têm objetivo de se tornar independentes do estilo do corpus nietzschiano,

precisamente porque são expressas de maneira diferente. Ou melhor, as mesmas ideias

são relidas e reinterpretadas a cada instante em que voltam ao texto, na repetição e na

diferença, em contínua renovação e contínua recriação que constitui seu autor. Com o

estilo, o importante não é mais o que se diz ou quantas vezes se diz o mesmo, mas quem

cria o texto e como se cria o texto.

O pensamento de Nietzsche é atravessado por diversas transformações. Muitas

vezes ele diversifica o estilo, no sentido de que emprega, para cada ocasião, personagens

e ritmos diferentes. Gosto do caminho tortuoso “do conjunto de seu pensamento”,

continuamente se transformando, movendo, escapando, dissimulando, para reaparecer

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mais vivaz. Sua rota é cheia de desvios imprevisíveis e, talvez por isso, seja ligada

claramente à sua vida. Às vezes, o ritmo é mais lento, como se quisesse enganar ou

distrair o leitor:

(...) giram dez vezes em torno de algo, com benévola hesitação, mas marcam por seguir seu rigoroso caminho. São rios de muitos meandros e afastados eremitérios; há locais, em seu curso, em que a corrente brinca de esconder consigo mesma e faz para si um breve idílio, com ilhas, árvores, grutas e cascatas: e depois prossegue, passando por rochedos e forçando caminho pela mais dura pedra (Nietzsche, A,§ 530).

No primeiro parágrafo de Por que escrevo livros tão bons, Nietzsche narra as críticas

literárias feitas a algumas de suas obras, além de comentar a falta de entendimento de

muitos com relação a elas. Compreender o estilo de Nietzsche depende,

fundamentalmente, de ter compartilhado suas vivências, “ninguém pode escutar mais das

coisas, livros incluídos, do que aquilo que já sabe. Não se tem ouvido para aquilo a que

não se tem acesso por vivência” (Idem, EH, “Por que escrevo livros tão bons”, § 1).

Assim, a materialidade do texto há de sofrer a influência do estilo, ou seja, como o texto

comunica um fatum6 interno, dependerá da angústia do escritor e das vivências do leitor.

Em Nietzsche, “sua constante presença estilística destaca que suas teorias são tão

diversas e idiossincráticas, tais como a escrita que lhe dá corpo” (Nehamas, 2002, p. 30).

Com Kossoviski (2000), entendemos a fisiologia como fornecedora de pontos de

partida para as forças, implicadas na pluralidade do corpo, que formam o si mesmo

regido pelos instintos. Qual seria, então, o sentido do registro autobiográfico de

Nietzsche, em Ecce homo, do ponto de vista da arte do estilo? A resposta para essa

questão está em toda vida-obra do autor: Nietzsche quer dar estilo a seu caráter, quer

reinterpretar sua vida, afirmando-a e retornando, mesmo ao feio e ao angustiante, de

maneira dionisíaca. Alguns poderiam lançar mão da seguinte questão: tal registro

autobiográfico poderia, talvez, indicar um enfraquecimento no pensamento do debilitado

Nietzsche, por se tratar de texto narrativo comprometido com a verdade?

Ao arriscar dizer que, de forma alguma, o Ecce homo representa um

enfraquecimento na filosofia de Nietzsche, não ignoro quanto é complexo pensar em que

sentido a loucura faz parte da obra. 6 “À letra coisa dita, destino irrevogável, o que está escrito” ou “o que é ou acontece na medida em que é tomado como um dado real da experiência, sobre o qual um pensamento se pode fundar” (LALANDE, 1993, p. 390).

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Um leitor pouco perspicaz seria capaz de perceber que não há loucura em Ecce

homo. Explico-me: mesmo que um texto autobiográfico sugira o retrospecto de uma vida

e determinado relacionamento com os fatos, com a verdade dos fatos, tal compreensão

não se aplica ao Ecce homo. Isso porque, para filosofia nietzschiana, não existem fatos

verdadeiros, mas sim interpretações instintuais e diferentes perspectivas. Ao escrever sua

autobiografia, não se deixou apreender pela cobrança de um texto verídico. Todavia, não

se trata de apenas sustentar uma ideia de que o texto é ficção, que contraria as normas da

imparcialidade e da veracidade, mas sim de tornar ficção a própria existência, criar uma

imagem da vida como puro artifício para expressar seu pensamento por meio de suas

vivências.

Passemos ao capítulo do Ecce homo que trata do Zaratustra. No primeiro aforismo,

Nietzsche conta a história da concepção mais importante desta obra: o pensamento do

eterno retorno. Declara a ocorrência de um mal-entendido a seu respeito, pois o texto não

seria de sua autoria. O texto pertenceria à assombrosa inspiração de Lou Andréas Salomé

e, portanto, o entendimento do pensamento do eterno retorno não pode ser abstraído do

bio-gráfico. Isso nos diz que o conceito de inspiração nietzschiano é uma forma pela qual é

possível caracterizar o fatum filosófico. A inspiração é súbita, libera um redemoinho de

instintos que lutam pela potência.

“um pensamento reluz como relâmpago, com necessidade, sem hesitação na forma – jamais tive opção” (Nietzsche, EH, “Assim falou Zaratustra” § 3).

A seção trata diretamente do conceito de inspiração através da expressão dos

estados de forças do universo. Com Nietzsche, a inspiração não consiste em ideia externa

que toma o filósofo como porta-voz, mas sim um instinto que “subitamente se torna

palavra e exprime nada (Fornazari, 2004, p. 107).

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“Sua ideia de reduzir os sistemas filosóficos a atos pessoais de seus autores é verdadeiramente a ideia de uma ‘alma gêmea’.”

Carta de Nietzsche a Lou Andreás Salomé, em 16 de novembro de 1882

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| saber do instinto | Entende-se o Ecce homo, no contexto autobiográfico, pelo

viés da luta dos instintos e das disputas entre as forças do universo, isto é, compreendem-

se os estados internos dando ideia de retratos instintuais dessas disputas. Nietzsche

trabalha sobre temas clássicos do pensamento ocidental. Entretanto, é importante

lembrar que o filósofo pretende apresentar tais temas, querendo diferenciá-los, de certa

forma, já que os importa de outro solo conceitual: o metafísico. Silas B. Monteiro explica

que “contrário da tradição platônica, logo metafísica; em Nietzsche os instintos operam o

sentido da racionalidade, por condição fisiológica, por exigência da preservação da

espécie”7.

Para Nietzsche, o mundo é cognoscível quando os impulsos tentam absorvê-lo,

resultando em perspectivas diversas. Em vez de intérprete, ou sujeito cognoscível,

“Nietzsche assevera serem as nossas necessidades que interpretam o mundo, alojadas nos

nossos impulsos, que lutam para impor sua perspectiva como norma sobre todos os

demais impulsos, numa espécie de tirania” (Monteiro, 2004, p. 42). Variados instintos

por vezes dominam, por vezes são submissos aos demais, por durações passageiras.

Consequentemente, vão exercer perspectivas e interpretações como meios de se tornar

determinantes ou “impositores” de uma de suas vontades.

Nesse sentido, “nossos instintos são redutíveis à vontade de potência. A vontade de

potência é o fatum último em que conseguimos nos aprofundar” (Nietzsche, Fragmento

póstumo, 40 [61] agosto-setembro1885). Tornar-se o que se é, creio eu, é permitir que esses

instintos atinjam seu máximo de potência. A vontade de potência é um constante vir a ser.

Nossos instintos são expressão de nossas necessidades e estão lutando,

constantemente, para impor sua perspectiva e seus “valores instintuais”. Compreendem

um processo orgânico que chamamos de racionalidade, já que esta é sempre uma

imposição de perspectiva.

Tornar-se o que se é, máxima da filosofia nietzschiana, necessita de uma hierarquia

de instintos, isto é, as condições que permitam o crescimento de determinados instintos

7 Monteiro, Em conferência no Laço Analítico. Escola de Psicanálise, em Cuiabá, em 2004.

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devem ser empregadas. É possível perceber que as hierarquias são compostas por uma

multiplicidade instintual, isto é, a configuração de instintos que se faz dominante é capaz

de afirmar-se por meio de suas distintas faculdades e, até mesmo, de seus equívocos, pois

não rejeita a pluralidade de instintos que a constitui.

Com a dupla perspectiva da saúde e da decadência exposta por Nietzsche, em Ecce

homo, é possível exemplificar a atuação dos instintos quando discorre:

“sem considerar que sou um décadent, sou também o seu contrário. Minha prova para isso é, entre outras, que instintivamente sempre escolhi os remédios certos contra os estados ruins: enquanto o décadent em si sempre escolhe os meios que o prejudicam” (Nietzsche, EH, “Por que sou tão sábio”).

Nietzsche demonstra a atuação dos instintos em seu corpo. Entende o corpo como essa

pluralidade de instintos ou forças que lutam entre si por mais potência.

O filósofo “pode expressar, em sua terminologia, saúde e doença conforme se

apresenta a configuração dessa pluralidade de impulsos. Pode mesmo propor reorganizá-

la ou curá-la” (Frezzati Jr, 2006, p. 103). A hierarquia de impulsos que não puder crescer

deve ser deixada para a decadência derradeira.

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O instinto é animado por uma vontade de potência, e a luta interna dos impulsos representa a pluralidade de seres.

Em si mesmos.

Duane Michals, Violent Woman, 1983.

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Voltando ao segundo parágrafo de Por que sou tão sábio, Nietzsche não se considera

um decadente por conta de sua doença. Para ele a diminuição da capacidade espontânea

da expansão de potência, portanto, da debilidade fisiológica, transforma o corpo em algo

frágil para reagir contra a ação da doença. Diante de sua “fraqueza fisiológica”,

Nietzsche conclui que não poderia ser paciente da medicina tradicional. Sem um

diagnóstico médico, fez-se ele mesmo seu próprio médico.

Essa passagem de sua vida é contada como um aprendizado, visto que, na

condição de doente, pode enxergar melhor certos conceitos, “descer os olhos ao secreto

lavor do instinto de décadence” (Nietzsche, EH, “Por que sou tão sábio”§ 1). Diz sobre

este exercício como uma vivência, na qual ele se julga mestre. Somente por conta de

empregar perspectivas distintas em suas observações, como o olhar diferente dos doentes,

é que Nietzsche julga ser possível, somente para ele, a transvaloração dos valores.

Dados os parágrafos que nos remetem à saúde e à decadência, podemos

perguntar: Nietzsche se considerava doente, ou cultivava saúde fisiológica o suficiente

para configurar-se em um forte? A descrição dos três dias de dores de cabeça contínuas,

acompanhadas de distúrbios gástricos e vômitos, se inscreve no texto bio-gráfico; retratam,

então, sua longa experiência como decadente e marcam sua passagem do estado de

fraqueza fisiológica para que, a partir de uma configuração de impulsos, fosse capaz do

restabelecimento de sua potência. Dessa forma, ele se configura, em contingência de seus

instintos, em homem bem-logrado. Essa passagem só é possível porque o filósofo “era

sadio, como ângulo, como especialidade era décadent” (Ibid., “Por que sou tão sábio”§ 1).

Este ponto do trabalho já ressoa como resposta às perguntas que circundam os

títulos dos primeiros capítulos do Ecce homo. Afinal, por que Nietzsche é tão sábio e

esperto? “Pois entre o que ele chama de sua sabedoria e sua esperteza não há uma

diferença fundamental” (Fornazari, 2004, p. 96). Primeiramente porque, nos tempos de

décadence, impôs proibição, através de sua configuração instintiva, a tudo aquilo que lhe

fosse prejudicial. Foi astuto em buscar condições favoráveis para expansão de sua

potência. Depois porque, dessa forma, o filósofo compõe seu instinto de conservação de si,

é o que faz dando atenção às coisas realmente importantes da vida – refiro-me à escolha

da alimentação, do clima e do lugar, aspectos que, em outro passo, serão discutidos.

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Diante da saúde deteriorada, Nietzsche se dá conta de que precisava de sua

própria filosofia. É nesse momento em que pensou no autodomínio dos instintos, na

autoformação e no autoconhecimento, não apenas abstrato ou intelectual, à medida que

todo conhecimento tem sua raiz no corpo.

| daqueles que fazem belas coisas | Após o prólogo de Ecce homo, Nietzsche

começa seu livro escrevendo breve homenagem à sua vida, no exergo. Narra o dia como

perfeito, alega jamais ter visto coisas tão belas e gratificantes ao olhar para seu passado e

para seu futuro. Exalta seus 44 anos e continua perguntando a si mesmo: “Como não

deveria ser grato a minha vida inteira?” (Nietzsche, EH, “Exergo”) O exergo “é um

momento sem sombra, em consonância com todos os ‘meio-dia’ de Zaratustra.

Momento de afirmação que retorna como o aniversário, de quando se pode assistir a ele

para frente e para trás de uma única vez” (Derrida, 2009, p. 42).

Nietzsche se orgulha em anunciar gratidão à totalidade de sua existência, quando

se refere à beleza que enxerga nos períodos contrários de sua vida – passado e futuro –,

demonstra a vontade do eterno retorno de tudo o que viveu sem que isso o pressionasse

como o maior dos pesos. O exergo declara que “sua vida estava salva na medida em que

fora imortalizada em sua obra” (Fornazari, 2004, p. 30). Assim ao morrer, o

autor/vivente não morre por inteiro, não completamente. Ao fazer isso o filósofo leitor

dos latinos e gregos antigos reapresenta e reafirma duas de suas principais teses

filosóficas: a ideia de amor fati e o eterno retorno do mesmo. Está aí a importância de

verificar como o amor fati e o eterno retorno estariam indissociavelmente encadeados,

enovelados e enamorados – para usar as palavras de Zaratustra.

O quarto livro de A gaia ciência é aberto por Nietzsche com a expressão

inspiradora de amor fati, quando diz:

Para o Ano Novo. – Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: – assim me tornarei um daqueles que fazem belas coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar; não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação

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seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim! (Nietzsche, GC, § 276).

Posteriormente, é fechado com a seção em que trata do eterno retorno, na qual

enuncia a repetição dos acontecimentos e o movimento circular de ocorrência desses

acontecimentos, com a “metáfora”:

O maior dos pesos. – E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais descolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida terão de lhe suceder novamente (...) (Ibid., § 341).

Não podemos abandonar a memória de que o eterno retorno, embora seja um

conceito fundamental da filosofia nietzschiana, foi apenas introduzido por Nietzsche

com o efeito de inspiração. Há pistas de que não foi desenvolvido como o filósofo

planejava. Assim, sempre temos a sensação de que “a obra de Nietzsche é brutalmente

interrompida pela doença antes que ele tenha podido escrever o que lhe parecia

essencial” (Deleuze, 2006a, p. 156). No entanto, quando Nietzsche experimenta o

pensamento do eterno retorno em A gaia ciência, o demônio está a perguntar sobre uma

situação em que o homem é parte e, portanto, integra o destino de forças que,

necessariamente, se afirmam e se repetem. Não é possível dizer que as opiniões e

decisões não transformam, não determinam. Entendo também que, por esse motivo, a

filosofia nietzschiana é para todos e para ninguém, pois desafia a suspeitar e a fazer as

escolhas certas.

Nietzsche considerava o pensamento do eterno retorno e do amor fati como

intimamente ligados um ao outro. Esse entendimento é reforçado pelo fato de que ambos

reaparecem em Assim falou Zaratustra. Amar o destino8, no limite, para dizer Sim, até

mesmo, ao mais intragável da existência, é algo que não parece, de fato, ser possível.

Em A gaia ciência, a única maneira é o domínio artístico da vida e de falsificação

8 Diferentemente do que o uso desta palavra possa aparentar, em sua obra, Nietzsche se preocupava com todo e qualquer caráter determinista que sua filosofia poderia aparentar. Isso fica evidente quando lança a pergunta: “Mas se tudo é necessário, em que posso dispor de meus atos?” (Nietzsche, Fragmento póstumo, § 11(143), primavera-outono de 1881). O destino não se configura exatamente em uma organização decisiva, porém é uma situação.

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da “existência”, para tornar a vida suportável. Ele diz que, “como fenômeno estético, a

existência ainda nos é suportável, e por meio da arte nos são dados olhos e mãos e,

sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno”

(Nietzsche, GC, § 107). O espírito criativo visto em A gaia ciência é, portanto, aquele que,

primeiro, enfrenta a realidade da forma mais honesta possível; em segundo lugar, tenta

ver quão belas as coisas são e o que é necessário nas coisas e, então, finalmente, falsifica as

condições que atrapalham essa tentativa – isto é, transforma a “existência” em um

“fenômeno” estético – para o mínimo possível de beleza consistente com tornar a vida

“suportável”.

Pode-se ver que a conexão entre amor fati e eterno retorno deve ser feita como

afirmação do pensamento de que tudo vai ser repetido indefinidamente, assim se trata

necessariamente de afirmar a repetição, até mesmo do que é desagradável.

O eterno retorno se apoia no amor incondicional ao fatum ou fatalidade inexorável.

Essa junção só tem significado na vida de alguém quando é determinada por esse

alguém. Na perspectiva de amor fati: é possível então reconhecer Nietzsche, em sua

autobiografia, como afirmante incondicional de sua vida, além de grato e desejoso de

que ela volte eternamente.

Em Por que sou tão inteligente, o filósofo apresenta o amor fati como sua fórmula

para grandeza, “nada querer diferente, seja para trás, seja para frente, seja em toda a

eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo – todo idealismo e

mendacidade ante o necessário – mas amá-lo...” (Nietzsche, EH, “Por que sou tão

esperto”§ 10). Nietzsche refere-se à grandeza como somente sendo possível por meio de

um resgate: o das coisas fundamentais da vida – que costumam comumente ser

desprezadas em detrimento das ditas abstrações. “Desse ponto de vista possuem sentido

e valor próprios até os desacertos da vida, os momentâneos desvios e vias secundárias”

(Ibid., “Por que sou tão esperto”§ 9). A grandeza do amor fati está no que ele retrata, na

afirmação incondicional de si mesmo e do mundo, em seus acontecimentos sempre

necessários e circulares.

A expressão amor fati e sua ligação com o eterno retorno é tida, nesta dissertação,

como forma de entender a constituição de si. Tornar-se o que se é, “obra máxima de

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preservação de si mesmo – do amor de si” (Ibid., “Por que sou tão esperto”§ 9), exige a

arte de distinguir entre o que é e o que não é, algo necessário nas coisas. Nas seções

debatidas acima, Nietzsche está descrevendo uma forma de autocriação, ou seja, um

caminho para tornar-se o que se é. Um grande ser humano é aquele que aprende a ver com

todas as circunstâncias de sua vida, aprende a tratar todos os fatos sobre si mesmo e de

seu mundo, como condições necessárias de sua liberdade de agir e de criar-se.

“Queremos nos tornar aqueles que somos – os novos, os únicos, incomparáveis, que dão leis a si mesmo, que criam a si mesmos!” (Nietzsche, GC,§ 335).

A melhor maneira de interpretar amor fati é vê-lo como uma atitude ética em

relação ao mundo, ao invés de uma tese metafísica sobre quanto o mundo é necessário.

Na verdade, a única diferença entre o uso dessa expressão em A gaia ciência e Ecce homo é

que, no primeiro, a apresentação da ideia de amor ao destino é uma vontade, Nietzsche a

apresenta como resolução para o próximo ano. Já no segundo, ele afirma todas as suas

vivências, está certo de que tem aprendido com cada aspecto de sua existência.

| loucura, mas também vontade | Diante dos pressupostos conceituais até aqui

analisados, penso ser preciso indagar em que sentido se deve considerar o Ecce homo

como uma autoconstrução tipológica, na qual Nietzsche toma para si a tipologia do

forte.

Suas assinaturas são retratos desta tipologia. Talvez a mais polêmica delas seja: “Dioniso contra o crucificado...”. De 1888, no

próprio Ecce homo (“Por que sou um destino” § 9).

Para leitores apressados, seu estilo de marcar autoria é frequentemente associado

à loucura de seus últimos dias de vida. Porém, todo drama que se passou pela mente de

Nietzsche e, consequentemente, por seus escritos, antes de ser encontrado em estado de

demência, refletiam um despertar ou uma reavaliação de seus próprios valores.

Nas chamadas Cartas de loucura, escritas no início de janeiro de 1889, parece óbvio

que havia enlouquecido. Ele assina essas cartas ora como Dioniso, ora como O

crucificado. Por estar suportando todos os sofrimentos da humanidade, por se sentir o

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único a conhecer e aceitar seus sofrimentos, ele realmente se considera um deus. Mesmo

prestes a enlouquecer, esses escritos e suas assinaturas refletem muito de seu pensamento

filosófico, de que todo ser humano deveria ser um Deus para si mesmo.

A compreensão do Ecce homo, na qualidade de narrativa de uma organização bem-

lograda de instintos, configura Nietzsche como filósofo trágico. A autobiografia de

Nietzsche nos deixa pistas disso, quando este se apresenta como filósofo trágico. De

acordo com O nascimento da tragédia no espírito da música, a tragédia deve ser considerada

hino de louvor à vida e às suas manifestações ébrias de instintos e impulsos, bem como

revigorante da vontade de viver.

Essa leitura resulta do fato de ser Dioniso um elemento fundamental das

interpretações de Nietzsche. Diz respeito à divindade que encara aquilo que é com

exuberante sentido de vontade, na qual até mesmo a dor é estimulante para selecionar e

hierarquizar instintos.

Ao falar sobre a possível psicologia da tragédia, no capítulo intitulado O

nascimento da tragédia do Ecce homo, Nietzsche afirma: “o dizer sim à vida, mesmo em

seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegando-se da própria

inesgotabilidade no sacrifício de seus mais variados tipos – a isto chamei dionisíaco”

(Nietzsche, EH, “O nascimento da tragédia”, § 3). Dioniso representa a afirmação da

vida até mesmo naquilo que ela tem de pior. Espelhando-se nesta atitude é que Nietzsche

se caracteriza como filósofo trágico, à medida que se observa uma aprovação da vida tal

qual ela lhe apresenta.

Ainda no mesmo capítulo do Ecce homo, Nietzsche declara não só ser possuidor da

sabedoria trágica. Igualmente se define como o primeiro filósofo trágico, afirmando:

“antes de mim não há essa transposição do dionisíaco em um phatos filosófico: falta a

sabedoria trágica – procurei em vão por indícios dela, inclusive nos grandes gregos da

filosofia” (Ibid., “O nascimento da tragédia”, § 3). Visto que a ninguém, antes de

Nietzsche, foi adequado transpor o dionisíaco em um fatum filosófico, é possível inferir

que o filósofo se caracteriza como o próprio Dioniso afirmando a vida, sem reservas à

existência. Sem negar a ela nem mesmo o sofrimento.

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“Solidão que irradia, vazio do céu, morte diferida: desastre.”

BLANCHOT - La escritura del desastre

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[4] DERRIDA, ESCRITURA E MORTE

| dispersão | Barthes, no ensaio A morte do autor de 1968 – quando, conforme

vimos, o estruturalismo ainda predominava como referência teórica para as Ciências

Humanas, principalmente na França –, toma posição diferente através da qual ele

anuncia a morte metafórica do autor, questionando o histórico lugar do autor no texto

literário. Argumenta que, quando o autor escreve o texto, sua voz não é mais dominante

no processo. Como leitor, interpretar o texto é mais importante. O autor passa a ser nada

mais do que tradutor e imitador, e nada é original para ele. O texto é tecido por citações

de muitas fontes culturais, e o autor utiliza uma linguagem para colocá-lo em

significados infinitos.

Escrever não é expressão – de um si mesmo –, mas uma criação.

A escritura se caracteriza, desse modo como a destruição da própria voz ou o

apagar do si mesmo. Com o advento da escritura, o autor começa a entrar em sua própria

morte, porque quando escreve passa a não ter controle sobre o texto; com Barthes, isso

dependerá da proliferação de sentidos a serem singularmente reunidos por cada leitor.

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Simplificando, o autor morre no momento da escrita. Um produtor de texto, ao

escrever, não é nada, porque ele busca tudo em uma espécie de dicionário cultural. Um

escritor é alguém que apenas mantém a língua, “perdido no meio do texto (não atrás dele

ao modo de um deus de maquinaria)” (Barthes, 1987, p. 37). O autor tradicional que se

achava autoridade para prender o texto – paraíso de ideias, palavras e significados – é

morto.

Comecei com uma epígrafe vinda de Blanchot por querer ressaltar, desde o início,

a morte e implicitamente a vida, como um momento rico de significado para escritura

literária e filosófica.

Mónica Cragnolini (2008, p. 49) diz que “a escritura toda (a da morte, a da vida) é

um modo de oscilação entre a vida e a morte”. Quando o autor inscreve seu nome ou se

inscreve no texto, está adiantando sua ausência nele e, portanto, torna-se vivo e morto,

testemunha sua morte diante de sua criação. Para ela, Derrida demonstra isso em

Morada, Maurice Blanchot, texto em que comenta O instante de minha morte de 1994.

Em O instante de minha morte, seu narrador descreve como ele se lembra de um

jovem “quase morto” na crueldade da guerra. Deixando pistas que se trata de

autobiografia ficcional, a escritura deste instante apresenta o impossível: o jovem se sente

sempre pendente com a própria morte diante da não execução de seu fuzilamento. Essa

experiência do (não)morrer pode ser aplicada à noção de morte do autor, de Barthes.

Muitas vezes, a tarefa de escrever é assumida como um nobre meio para as

palavras ganharem vida, para que na presença eterna de uma obra literária seja concedida

a imortalidade do autor. Mas este ganhar vida para além de si mesmo pode ser entendido

de maneira ainda mais obscura do que a imortalidade, à medida que a existência do

narrador é irrelevante para as palavras que ganham vida além do si mesmo.

Nesse sentido, um autor é condenado a um certo tipo de morte pelo próprio ato

da escritura; “o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor” (Barthes,

2004a, p. 6), porque o significado do texto literário pertence à compreensão individual do

leitor. Blanchot comenta este limite da escritura, as fronteiras entre a literatura e seu

outro, a morte e a vida, em A escritura do desastre:

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Escrever sua autobiografia, seja para se confessar, seja para se analisar, seja para se expor aos olhos de todos, à maneira de uma obra de arte, é talvez procurar sobreviver, mas por um suicídio perpétuo – morte total, enquanto fragmentária. Escrever-se é deixar de ser para se confiar a um hospedeiro – outrem, leitor – que não terá doravante por dever e por vida senão a inexistência de vocês (Blanchot, 1990, p. 59).

Podemos argumentar que na literatura, assim como na filosofia, o que se encontra

na verdade não é uma “negação” da morte como o fim último, mas a apropriação de

morte como uma transição para novo nível de compreensão. Com Derrida, essas

passagens entre limites são anunciadas de acordo com o movimento de determinado

acontecimento de ruptura. Isto é, trata-se do tema da morte, em modo de ruptura deste

limite.

O que é tão fascinante sobre a abordagem da problemática da morte em Barthes,

Blanchot e Derrida é a forma como tratam o encontro com a fronteira vida-morte, o

limiar perigoso de vida, permitindo a seus interlocutores uma percepção de morte que

pode ser articulada com a vida.

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A morte é o resumo da opacidade, em sua relação com a escritura, com

o outro e com a excedência de sentido.

Walde Huth, 33ª, 7ª e 51ª cartas do ciclo Cem cartas não escritas, 1979.

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| o fim | A escritura de Derrida diante da morte ou escritura de luto é tão vasta,

que alguns dos especialistas dizem quase se tratar de um gênero, em sua obra filosófica.

Ele “escrevia sobre o tema da morte com amor de quem sabe da presente ausência dos

mortos em nossa vida” (Cragnolini, 2008, p. 54). Cada vez único, o fim do mundo é uma

espécie de coletânea fúnebre, organizada por Pascale-Anne Brault e Michael Naas, que

reúne vários textos escritos por ele depois perder amigos – próximos intelectualmente ou

não –, como Roland Barthes, Michel Foucault, Louis Althusser, Sarah Kofman, Gilles

Deleuze, Emmanuel Levinas e outros. Todos esses textos, escritos de 1980 a 1998, têm

caráter de saudação. Homenagens únicas resignadas ao adeus necessário, diante da

morte de um fim do mundo, como fim de toda a ressurreição.

A escritura de luto representa a separação do corpus e do corpo de seu autor. Ao modo

de adeus e saudação os textos de luto de Derrida atentam para o êxito e para o fracasso

dos que ficam depois da morte de seus amigos.

Quando em Terei de errar só, escreve para Deleuze morto: “seu pensamento nunca

me abandonou em quase 40 anos. Como ele o fará daqui para frente?” (Derrida, 2001, p.

195), demonstra o êxito na interiorização da imagem do outro que o luto deixa em nós,

carregado ainda do fracasso do alcance desse outro, que é reduzido totalmente ao fora,

ao invisível, ao intocável pela morte. Neste sentido, os escritos anunciam dois lutos: o do

amigo homenageado e o do que escreve. Logo, o ato da escritura envolve os dois.

No capítulo As mortes de Roland Barthes, publicado pela primeira vez na Revista

Poétique, em setembro de 1981 – número destinado a uma homenagem póstuma ao autor

de Fragmentos de um discurso amoroso, morto em Paris, no dia 26 de março de 1980 –,

Derrida tenta, na homenagem, alcançar o amigo pela escrita. Transcrevo aqui o lindo e

longo fragmento em que essa tentativa é posta:

Escrever-para ele, presentear ao amigo morto com seus próprios presentes de sua inocência. Para ele, eu teria procurado evitar, e então poupá-lo, do duplo golpe de falar dele, aqui e agora, como se fala de um vivo ou de um morto. Em ambos os casos se desfigura, golpeia, anestesia ou mata. Mas quem? Ele? Não. Ele em mim? Em nós? Em você? Mas o que isso significa? Que nós continuamos nós mesmos? Isso é verdade, mas

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ainda um pouco simples. Roland Barthes olha para nós (dentro de cada um de nós, tanto que cada um de nós pode dizer que o pensamento de Barthes, sua memória e amizade interessa apenas a nós), e não nos contentamos com esse olhar, ainda que cada um tenha essa disposição, ao seu próprio modo, de acordo com seu lugar ou história. Isso está em nós, mas não conosco; não temos isso disponível para nós como um momento de nossa interioridade. E o que olha pra nós pode ser indiferente, amado, sofrido, gratificante, atento, irônico, silencioso, tedioso, reservado, fervoroso ou sorridente, infantil ou já velho; em suma, isso pode dar-nos algo de inumeráveis signos de vida ou morte que podemos desenhar da circunscrita reserva de seus textos ou de nossa memória (Ibid., p. 44).

Em As mortes de Roland Barthes, Derrida trata da relação entre a singularidade da

morte, sua repetição inevitável, e do que significa contar com a morte, ou com aqueles

que foram significantes para nós uma vez, porém que não estão mais, como dizemos,

“conosco”, ou que estão apenas à medida que estão em nós e são para nós. A

interiorização não deve ser negada, o outro é de fato reduzido às suas imagens “em nós”.

E, ainda, a própria noção de interiorização limita esta relação, pois ressalta o que é nosso

e o que é o outro. É na vida que vive a morte que há luto.

Na solidão do luto, Barthes tomou nota sobre as mudanças em seu cotidiano e

sobre seu sofrimento ao perder a mãe. Por quase dois anos o (re)fluxo dessas notas foi

variado. E os 330 cartões – recortados por ele e espalhados em sua mesa de trabalho –,

foram publicados postumamente com o título Diário de luto. Recentemente, uma edição

traduzida para o espanhol, aparentemente fiel à escritura fragmentária, refinada e

romântica do autor, surpreendeu-me. Na linda livraria onde foi encontrada. E em casa,

entre a bagunça do tempo e do espaço de finalização desta dissertação. Primeiro, por até

então não saber sobre a existência da obra. Depois, por não esperar encontrar uma

escrita ainda mais subjetiva e mais direcionada para morte e para vida, em Barthes, ao

retirar o livro da mala.

“Luto: mal-estar, situação impossível de chantagear” (Barthes, 2009, p. 92).

Levo as mãos às bochechas, não como Munch faria, pois silencio. Reservo a

madrugada para lê-lo melhor. Diante do pouco tempo que tenho, deverá ser, então, o

esquete final. Durante a leitura é possível sentir, com a brevidade dos fragmentos, o luto

da linguagem, e no fluxo poético de sofrimento a necessidade da morte para traduzir a

vida em escritura.

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| estilo, questão de vida ou morte | A partir do fonocentrismo ou logocentrismo de

Derrida, isto é, a subordinação histórica da escrita à fala, o discurso pode ser concebido

como presença, porque o falante é simultaneamente presente para o ouvinte. Conforme

Derrida (1991a), a escritura, segundo esta tradição logocêntrica, é considerada apenas

como um complemento da voz, fadada à carência do logos e sua posição paternal

platônica. Derrida, em certa harmonia com Barthes, também segue as vias de dissolução

da noção de autoria, quando também decreta a morte do autor (falante e escritor) e toda

esta sua prevalência. Ambos libertam a escrita dessa herança metafísica que a aprisiona

em favor de uma máquina autônoma de escritura.

A escritura impõe uma espécie de ausência, primeiro porque o escritor não está

simultaneamente presente para o leitor. Aqui, a escritura se torna registro de um certo

“absoluto de ausência”, necessário a si mesma. Usando o exemplo de uma carta, conclui-

se que a ausência do destinatário se torna constitutiva da escritura em si. Mas, não só a

ausência do destinatário-leitor é manifestada, por escrito, mas também a ausência do

remetente-autor. Deste modo, a escritura que é estruturalmente legível, ou seja, que pode

agir na ausência de um ou de outro é ainda uma escritura, mesmo que o sujeito empírico

não responda mais como autor.

Consequentemente, a leitura é possibilidade da escrita e da morte, é sempre uma

confirmação dessa ausência, “é uma ruptura da presença, a morte ou a possibilidade da

morte” do autor (Idem, 1991b, p. 19). Esta perspectiva de leitura coloca a escritura em

contínuo movimento de reinterpretação.

Diante da ausência do escritor, ela é tida como espaço para o movimento de seus

rastros de disseminação e de seus leitores. “Escrever é saber a priori que sou mortal, mas

que eu, leitor, também sou” (Bennington, 1996, p. 45). No lugar de totalidade, de

significado transcendental (origem e fim), o jogo entre presença e ausência que faz a

filosofia possível é demonstrado.

Reconhecendo que não há nada fora do texto, Derrida desconstrói a hierarquia

entre fala e escrita. Não há nenhuma referência externa que divida a representação em

significante e significado, mas uma cadeia de suplementos que infinitamente se referem

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uns aos outros. É nesta lógica do suplemento, isto é, do jogo de relações no descentramento

que a escritura possui seu significado dinâmico, no espaço da polissemia e da

intertextualidade.

Neste sentido, Derrida escreve sobre a morte do livro e o início da escritura, em

Gramatologia. A morte do livro é a morte do sentido unívoco e absoluto, deve ser

entendida na condição de morte do registro, unicamente gráfico da fala, pois não há

nada fora do texto, nem mesmo a ideia do significado transcendental, a origem absoluta

do sentido. Em seu lugar, Derrida argumenta que todos os significados já estão em uma

posição de significante, é o rastro e o movimento de rastro em uma produção de diferenças

que produz sentido. A palavra escrita é diferença, pois está distante (temporalmente e

espacialmente) das representações da phoné.

“O phármakon e a escritura são, pois, sempre uma questão de vida ou de morte” (Derrida, 1991a, p. 52).

| o nome do autor | Associado às perspectivas de morte e luto do autor, em

relação com a escritura de homenagem ao morto ou não, tudo começaria já no nome

próprio. “Enquanto tantos códigos e ritos trabalham para tirar esse privilégio por sê-lo tão

terrível, o nome próprio, sozinho e por si mesmo, forçosamente declara o único

desaparecimento do único – quero dizer, a singularidade de uma morte inqualificável”

(Idem, 2001, p. 34). A possibilidade de repetição infinita do nome próprio é que assinala a

própria finitude – a possibilidade de dizer que sou em minha ausência, mesmo depois de

minha morte – por isso porta a morte de seu portador.

Na cena da escritura o nome do autor declara seu próprio desaparecimento.

Derrida apresenta a herança que o nome de Nietzsche carrega e sua história como

o filho de seu pai e de sua mãe, em Otobiografias, a partir do trecho do Ecce homo, que diz;

“a felicidade de minha existência, sua singularidade, talvez, está em sua fatalidade: para

exprimi-lo em forma de enigma, eu, como meu pai, já estou morto, como minha mãe,

vivo ainda e envelheço” (Nietzsche, EH, “Porque sou tão sábio” §1).

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Nesse sentido, Derrida expressa a consciência de Nietzsche sobre seu nome. O

sobrenome do pai que adere à sua própria identidade. E o “nome” duplo e dividido de

seus pais, um morto, outro vivo, fazendo com que ele morra a morte de seu pai e

continue a viver por conta de sua mãe. Enquanto a vida está ligada à posse do nome

próprio, apenas o nome pode herdar, por isso o nome, para ser distinguido do portador, é

sempre e a priori o nome de um morto, um nome de morte; o que retorna ao nome nunca

retorna ao mundo dos vivos.

Como Nietzsche escreve com a consciência de que seu nome é pluralizado, atribui

suas próprias assinaturas, como contrato diante de suas obras, “com tudo que se empenha

e que não se resume a um eu”. Esta consciência se estende ao colocar um nome em jogo,

para um futuro em que o portador do nome não pode receber o que retorna, ou o que se

envolve com o legado desse nome “para ‘ele’, para ‘eles’, para suas vidas, seus nomes e

seus futuros, o futuro político singularmente daquilo que deixou assinado”. Com Derrida

(2009, p. 33), entendemos que Nietzsche está a “colocar em cena as assinaturas, fazer de

tudo que se escreve da vida ou da morte uma imensa rubrica biográfica, eis o que teria

feito e do qual nós devemos tomar nota”.

Com a assinatura “meu nome próprio me sobrevive. Depois de minha morte,

ainda poderão me nomear e falar de mim” (Bennington, 1996, p. 107). É uma marca

escrita que implica a ausência do signatário, em que há garantia do que foi falado e de

quem falou. A assinatura permanece como uma espécie de pré-requisito lógico para toda

uma gama de efeitos de assinatura, que inclui a possibilidade de um discurso falado, o

chamado presente de enunciação.

É interessante que Derrida, pensador da temática do nome próprio e da assinatura,

mudou seu nome no momento em que começou a publicar, por achar que Jacques é mais

francês e intelectual do que seu nome de registro Jackie, como conta Jason Powell. Em

diversas entrevistas, ele justificava seu nome renunciado, dizendo que a comunidade

judaica, na Argélia, nos anos 1930, passou a escolher nomes americanos para seus filhos,

ocasionalmente, os de estrelas de cinema ou heróis.

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| morte como vivência | Derrida passa a escrever mais sobre o tema da morte e

com mais detalhamento nos textos dos seus últimos 15 anos. Dar a morte é também deste

período, precisamente de 1999, e caracteriza o debate ético-político de 1989 a 2004. Até

então, seus “escritos da morte” eram talvez mais bem conhecidos por seu ataque à

presença, usando a problemática da morte apenas como nome genérico à ausência, em

relação com a escritura e com a desconstrução metafísica, ou ainda, por sua homenagem

a seus amigos mortos, como no caso dos textos tratados acima.

Em Dar a morte, empenha-se em alguns textos bíblicos – dando destaque para as

figuras de Abraão e Isaac –, debatendo-os a partir de Platão, Nietzsche, Heidegger,

Ricoeur, Levinas, Patocka, Kafka e, principalmente, Kierkegaard. Apresenta a morte

como singularidade absoluta, “uma nova apreensão da morte, uma nova maneira de se

dar (a) morte” (Derrida, 2000a, p. 38).

Cada indivíduo é portador de sua experiência exclusiva e insubstituível de morte

solitária, secreta e silenciosa. Portanto, alicerçado nessa ideia de mortalidade é definida a

identidade como uma relação de si para si.

Contrariamente a isso está o dom exigido pelo cristianismo, que envolve renúncia

do eu, a abnegação do próprio dom, como responsabilidade, que deve retirar-se,

esconder, sacrificar-se para dar. É apenas na medida em que a identidade do si mesmo é

possível, como singularidade irredutível, que a morte para os outros ou a morte do outro

pode fazer sentido. Por isso, nessa perspectiva, a morte passa a ser tida como dimensão

ética porque, na morte, somos únicos e, portanto, chamados à responsabilidade.

Todos devem assumir sua própria morte, e isso é a única coisa no mundo que

ninguém mais pode dar ou tomar, nisso reside a liberdade e a responsabilidade, porque,

sem este momento da singularidade, de posse única do próprio eu à morte, não haveria

nenhuma outra forma de se aproximar com o si mesmo.

Talvez esta dimensão ética da morte, posta em questão por Derrida, seja um

caminho para pensar o tema da morte em uma perspectiva nietzschiana de afirmação da

vida. Além dos argumentos que revelam a escritura da vida como escritura portadora de

morte, há também um gesto de ordem cosmológica e, portanto, vital que precisa ser

pensado aqui. Como a morte – melhor dizendo, a certeza dela – contribui para a

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constituição de si?

Aos que negam a vida desejando ou santificando a morte, Nietzsche aconselha

que desapareçam. Aos vivos, isto é, aos que afirmam a vida, ele apresenta a morte como

incentivo. Até mesmo os afirmantes da vida precisam aprender como se deve morrer,

pois “todos concedem importância à morte; mas a morte não é ainda uma festa. Os

homens não sabem ainda como se consagram as mais belas festas” (Nietzsche, ZA I,

“Da morte livre”). Somente à medida que se aprende a morte é que se passa a desejá-la

de maneira afirmativa, são as próprias vivências que ensinam sobre a celebração da vida e

da morte. Quais vivências? Por que não as de morrer ao assinar um texto (científico;

“São-João-Evangelista; autobiográfico; retrouvéz; Elbehmon; Aqui-e-agora; da-Meia-Noite;

louco; roda; pós-coito; tex-tinho...”9); ou as de viver o luto ou, ainda, as de assinar um

texto de luto?

| escritura de morte | Há assuntos que não são tratados com ideias. Diante disso,

há ideias que, quando tocam o corpo, se refazem.

Derrida nasceu entre mortos. Seu irmão Paul Moïse, antes mesmo de seu

nascimento, anunciou a morte na família, sem ao menos completar um ano. Em 1940,

este se soube filho entre duas insurreições. Norbert Pinhas, seu irmão mais novo, morre

com menos de dois anos de nascimento, quando Derrida tinha dez anos. Jackie se vê

como intruso, substituto. Ao mesmo tempo, se recorda do luto da mãe por Norbert, o

que se tornaria o luto fundante, aquele com que Jacques, escrevendo por Jackie, veria a

doação de todos os sentidos dos lutos posteriores.

JD, seja um ou outro, americanado ou afrancesado, é aquele por quem sua mãe

não chora. Nascido entre mortos, enterra a mãe em 1991, como convém aos filhos,

depois de publicar sua autobiografia sem pudor, ao contar sobre os últimos dias com ela.

Fez isso consciente de uma ameaça: “a do escritor que teme morrer antes do fim de uma

longa frase” (Derrida, 1996, p. 45).

9 Alguns tipos textuais “definidos” por Sandra Corazza. In: Corazza, 2008, p. 246-256.

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Salvem os pontos finais escritos por aqueles que morrem quando o texto nasce! E,

mais ainda, salvem os escritores que se decidem pelo texto abrindo mão de sua presença.

Oração fúnebre: a escritura é portadora de mortes.

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“Por toda parte, haverá uma única e mesma paixão de ler e de escrever; Por toda parte, haverá uma única e mesma paixão de ler e

de escrever; Por toda parte, haverá uma única e mesma paixão de ler e de escrever.

Mas não será a mesma paixão, já que as suas linhas abstratas traçam uma variação contínua.

Variação contínua que, somente ela, constrói um real por vir, um novo de realidade”

SANDRA CORAZZA - Os cantos de fouror

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[5] CONSTITUIÇÃO DE SI E ESCRITURA o gesto otobiográfico

| escrever-se | Em seus últimos anos de produção, Foucault demonstra grande

interesse nas práticas (ou técnicas) de si, a partir do tema da relação do sujeito com os

jogos de verdade. Interessado em subjetivação e em processos de autoformação, sempre

entendendo o auto com relação a si mesmo, mas também em relações complexas com o

outro. Dessa forma, contribui para uma virada na maneira de ver e entender o sujeito,

ancorado numa perspectiva bastante nietzschiana de autoformação, em que a vida e a

cultura seguem o princípio da individuação, como estratégias da conduta de indivíduos

livres.

No conjunto de aulas intitulado A hermenêutica do sujeito (1981-82), assim como

em entrevistas e artigos da mesma época, Foucault enfatiza a problematização do

“cuidado de si”, “prática de si”, “escrita de si”, etc., nos antigos textos gregos e latinos

sobre a doutrina do prazer. Um de seus aspectos principais é “a ideia de que a vida, com

todo seus sistemas de provas e infortúnios, a vida por inteiro, é uma educação”

(Foucault, 2004, p. 532).

Para a transformação progressiva de si mesmo, “é preciso que o sujeito inteiro se

volte para si e se consagre a si mesmo” (Ibid., p. 302). Assim, o cuidar de si de Foucault

vai além de um imperativo, trata-se de regra da vida e para vida. Nisso implica o aspecto

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ascético do “cuidado de si”, uma forma de transformar-se com base no conhecimento de

si em meio à vida e suas relações com a verdade e com o poder.

A escrita tem papel importante neste “ascetismo”. Por isso, Foucault traça a

escrita de si como um dos elementos centrais das “artes de si mesmo” por meio do

estudo dos chamados hupomnemata (ὑποµνήµατα) e das correspondências. Simplificando,

os hupomnemata são bloc-notes, uma espécie de caderno para os gregos antigos. A

correspondência constitui uma ferramenta para o cuidado de si; também fornece um

exercício de transformação pessoal por meio da escrita.

Foucault conta que, por ser uma criação de si, os hupomnemata eram uma

ferramenta com a qual os gregos praticavam o “cuidado de si”, isto é, uma ferramenta

que permitia ao escritor praticar a arte de viver, uma vez que seu objetivo era “o

estabelecimento de uma relação de si consigo mesmo tão adequada e perfeita quanto

possível” (Foucault, 2006a, p. 149). O uso da correspondência contribuía para esta

prática de outro modo, pois, mesmo servindo a propósitos semelhantes aos dos

hupomnemata, era definida sobretudo como um texto destinado a outros.

Estas formas de escritura se destacam nas análises de Foucault, porque retratam a

subjetivação no exercício da escrita pessoal, pelas vias da apropriação ou da

comunicação. Aí as coisas que o escritor ouviu, aprendeu e pensou ao longo do tempo,

que antes de escritas eram informações fragmentadas, se tornam “memória material”;

uma só voz que contribui para a transformação de si. Ou ainda, onde as informações

enviadas ao outro se transformam em meios de chamar atenção para si, dando ao

correspondente o status de “deus interior”.

Na escrita de si “é sua própria alma que é preciso criar no que se escreve (...),

também é bom que se possa perceber, no que ele escreve, a filiação dos pensamentos que

se gravaram em sua alma” (Ibid., p. 152-153). Trata-se da experiência de escrever como

contribuição para as práticas artísticas de viver e constituir-se.

As esporas derridianas tratam da mulher, da verdade, do dentista. De mulheres

que visitam dentistas, de pretexto para serem vistas, é pretexto para quem quer ver e não

para quem quer ser visto. Nietzsche. Wagner; mais a Cosima do que Richard, embora

ambos deem a mesma alegria juvenil. A mulher é a verdade, para Derrida, pois a

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verdade não existe [Lacan, Lacan, Lacan, Lacan, Lacan...]. A verdade se escreve, a verdade se

cria. Logo, o esporeador dirá: “A mulher (a verdade) não se deixa conquistar”; mais

adiante, proximamente adiante: “Ela (se) escreve” (Derrida, 1981, p. 33).

Escrever-se está longe de descrever-se, assim como qualquer texto, pois, sendo

escritura, deixam pelo caminho a afirmação da verdade para afirmar a vida por ela

produzida, por ela escrita: escritura-se.

| vontade de vir a ser | Penso ser importante compreender como Nietzsche

concebe o processo de individuação, inserido em forças instintuais que ele chama de

vontade de potência, desta vez, para pensar a ideia da constituição de si.

Dentro de um universo de forças existe uma continuidade essencial entre todas as

suas formas, o que permite um processo de metamorfose contínua de uma para outra.

No entanto, esta continuidade não pode ser um todo indiferenciado. Nietzsche o

concebeu com variações de intensidade, com pelo menos duas ordens de potência.

Essas diferenças na potência pressupõem a existência de pontos ou singularidades

que constituem dois polos de condensação e os princípios de variação, “meras diferenças

de poder ainda não poderiam sentir a si mesmas como tais: há de existir um algo que

quer crescer, que interpreta cada outro algo que quer crescer a partir de seu valor”

(Nietzsche, VP, § 643). Esse “algo” representa uma singularidade capaz de determinar

essas variações de força, interpretando-as em relação a seu próprio valor. O que é este

“algo que quer crescer”, este elemento mínimo do universo da força?

No fragmento citado há pouco, Nietzsche define em duas determinações

fundamentais: a vontade de crescimento, e um “ser” de interpretação ininterrupta, elementos

mínimos que compõem a totalidade dos estabelecimentos de força e formam o princípio

de sua diferenciação interna. Desse modo, são concebidos com base em três

determinações:

- existem em uma relação de tensão com todos os instintos;

- lutam para alcançar seu próprio crescimento;

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- interpretam sistemas diferentes a partir de seu próprio valor.

A individualidade, como o princípio da diferenciação da força, configura o

processo de constituição de si como “sistemas” de vida. Se a individuação precede a

diferenciação de valores próprios, então, individuação em si deve ser constituída por

indivíduos dotados de individualidade, ou seja, com uma qualidade interna que permite

interpretar variações de potência. É a existência de uma multiplicidade de singularidades

individualizantes no universo, cada um com sua própria individualidade, é que é possível

criar, conhecer e constituir a si mesmo como totalidades orgânicas.

O princípio de valoração de Nietzsche parece oscilar entre uma definição

extrínseca, em que o indivíduo é mera expressão do sistema de relações que vive; e uma

definição intrínseca, em que o indivíduo é dotado de qualidades imanentes, que se

manifestam de forma incondicionada nas relações de conflito; que seus instintos e

vontades estabelecem entre si. Afirma que cada ser torna-se aquilo que se é, constituído de

uma forma absolutamente individualizada, a qual se manifesta em todas as suas

peculiaridades, “o essencial é que os fatores que se encontram em luta saem com outras

quantidades de potência” (Ibid., § 633).

Como vimos, a escritura derridiana desconstrói as costumeiras distinções feitas

entre fala e escritura, vida e morte, presença e ausência, e enfatiza a possibilidade de

conceitualização por meio da différance e seus aspectos “indecidíveis”. As chamadas

filosofias da presença, mesmo que priorizem o vivente, humano, individual e consciente,

tratam como de segunda ordem qualquer uma de suas mediações externas, por

requererem essas distinções e demarcações, a fim de manter o sujeito ontológico puro e

autoconsciente.

Embora a solução adotada por Nietzsche, para lidar com a contradição sobre o

estatuto ontológico das relações do sujeito, não seja sistemática, ela define todas as

relações dinâmicas como essencialmente perspectivistas, afirmando a superioridade do

dinamismo interno de cada singularidade em suas relações externas.

Assim, é a vida e o vivente quem criam e interpretam a escritura e a leitura, “a

vontade de vir a ser, crescer, dar forma, isto é, criar e, no criar está incluído o destruir”

(Idem, Fragmento póstumo, 17 [3] maio-junho 1888), não tem uma origem nem um fim.

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Para Nietzsche, tudo ainda está por se criar, na vida, no presente. A capacidade de

tornar-se o que se é está ligada à nossa forma de ler, de escrever, de lidar com nossos

estados corporais e com nossos instintos em luta de forças internas.

Por essas vias de pensamento, o filósofo buscou, inutilmente, por um modelo de

educador que ensinasse “pela expressão do rosto, atitude, vestuário, alimentação

costumes, mais ainda do que aquilo que é dito ou escrito” (Idem, Co. Ext. III, § 3). Sem

êxito, passa a defender que cada um deve educar-se a si próprio, pois esperar que seu

modelo seja impresso pelo outro, desejar que seja igual ao outro significa impedir que a

interpretação de seus instintos cresça.

Com Nietzsche, aprendemos que a grande relevância da vida está em seus

aspectos fundamentais e que detalhes nos determinam muito mais do que podemos

medir, ao apresentar a visão errônea da moral e sua história de menosprezo pelo mundo

e pelo corpo.

No Ecce homo, demonstra ser atento a essas coisas pequenas, mais próximas ou

cotidianas, como alimentação, lugar, clima, distração, toda a casuística do egoísmo. Tudo o

que é mais próximo nunca foi objeto de interesse, nem da Arte, nem da Filosofia e,

muitas vezes, nem mesmo da vida.

Ocorre justamente o contrário, expressam com equívoco aquilo que julgam mais

importante. Aquilo com que Nietzsche nunca se preocupou: Deus, imortalidade da alma,

virtude, verdade, salvação e além, por exemplo. Declara-se um ateu por instinto e

completa dizendo: “de maneira bem outra, interessa-me uma questão da qual depende

mais a ‘salvação da humanidade’ do que qualquer curiosidade de teólogos: a questão da

alimentação” (Idem, EH, “Porque sou tão esperto”, § 1).

São, as coisas, leituras e escrituras menores que definem e dão expressão e

subjetividade ao sujeito. “Em tudo isso (...) reina um instinto de autoconservação que se

expressa da maneira mais inequívoca como instinto de autodefesa” (Idem, EH, “Porque

sou tão esperto”, § 8). O instinto de autoconservação, chamado também de gosto, é

fundamental para a constituição de si, pois essa tarefa não consiste em uma volta ou uma

revelação do eu verdadeiro. Tornar-se aquilo que se é não é a possibilidade de chegar a um

eu fixo. Nem mesmo considera um si mesmo para além do corpo, mas sim uma criação,

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um cultivo de si permanente.

| conceito-método | Em Otobiografias, Derrida trata de dois textos de Nietzsche.

1) Discute a fértil metáfora do ouvido como um órgão captador e, portanto,

“aprendedor”. Considera a perspectiva do jovem professor da Basileia que dá à orelha a

função principal do método de ensino – acroamático – na Alemanha do fim do século

18. O jovem zombeteiro fala sobre um “suposto” professor e seus alunos, com jeito de

narrativa autobiográfica, proferida na Universidade da Basileia de 1872, com o título

Sobre o futuro das nossas instituições de ensino. 2) Valoriza a cena do Ecce homo para

reconhecer a astúcia da vida na indagação de como alguém se torna o que se é, sabendo que

aquele que responde a esta questão vive de seu próprio crédito, o que torna o texto

(auto)biográfico um corpus escrito da morte; o “nome do vivente como nome da morte”

(Derrida, 2009, p. 37). Uma tensão trágica, afinal quando jovem, escuta; quando vive,

morre.

O livro traça concepções de assinatura, liberdade acadêmica e rastros biológicos,

biográficos e tanatológico. Quando apresentadas por Derrida, apontam para a

elaboração cuidadosa de respostas sobre algumas leituras políticas e pedagógicas de

Nietzsche. Ele viveu, assim como nós temos vivido, tempos em que o nome do filósofo

intempestivo é associado aos piores tipos de política – o fascismo e o totalitarismo, por

exemplo.

Assim, o que permanece neste livro de Derrida, leitor de Nietzsche, é a constante

advertência de que a vida afirmativa pode muito facilmente ser transformada em uma

forma reativa e degenerativa de políticas, entregue à presunção da metafísica da presença.

Assim como escreve Deleuze em O mistério de Ariadne: “afirmar não é carregar a vida

com o peso dos valores superiores, mesmo os heroicos, mas criar valores novos, que

sejam valores da vida, que façam da vida a ‘fácil’, que a tornem afirmativa” (Deleuze,

1996, p. 51).

Desde Otobiografias, Derrida movimenta a filosofia nietzschiana com certa

singularidade que, por vezes, surpreende. Mas deixa sempre claro que a afirmação da

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vida, em Nietzsche, se dá através da criação de novos valores, por meio do jogo de forças

que classificam os seres em ativos ou reativos – para usar as palavras de Deleuze –,

enquanto o jogo de diferenças de Derrida diz respeito à alteridade do outro. Enfim,

demonstra ser possível visitar o pensamento de Nietzsche e mobilizá-lo de forma

diferente, sem que seja necessário inserir falsas analogias.

A educação para Nietzsche, quando jovem e professor na Basiléia, é um processo

contínuo de transformação e superação da incultura. Caracteriza-se como formação e

desenvolvimento da sensibilidade. Portanto, não consiste em habilidades técnico-

científicas – como o conhecimento enciclopédico e a falsa erudição dos textos

jornalísticos de sua época –, mas sim na capacidade de educar a si mesmo e criar outras

formas de comportamento. A crítica à racionalidade e a instituição de novo sentido de

individualidade são aspectos da posição ácida de Nietzsche com relação à cultura de seu

país, no início de sua filosofia.

Com o passar dos anos o vir a ser nietzschiano se instaura como filosofia

dionisíaca que remete à intensificação da vida, dos instintos, da potência. Como diz

Zaratustra: “eu sou, originária e fundamentalmente, força que puxa, que atrai, que

levanta, que eleva: guia, corretor e educador, e não foi em vão que um dia disse a mim

próprio: ‘Torna-te o que és!’” (Nietzsche, ZA IV, “A oferenda de mel”).

A visão de (auto)biografia, disseminada por Derrida, não é para ser de forma

alguma confundida com a chamada vida do autor e o corpus de acidentes empíricos que

compõem esta vida. Pelo contrário, o biográfico, uma vez que é autobiográfico, atravessa

a fronteira entre vida-obra. No entanto, acredito que isso já tenha sido dito, em outra

passagem. Logo, destaco o que ainda não foi dito aqui, a saber como Derrida (2009, p.

30) retrata esta concepção.

Um discurso sobre vida-morte deve ocupar certo espaço entre o logos e a grama, a analogia e o programa, os diferentes sentidos do programa e da reprodução. E já que se trata da vida, o trato que relaciona lógica a gráfica deve trabalhar também entre o biológico e o biográfico, o tanatológico e o tanatográfico.

O Ecce homo é um texto autobiográfico, nele o signatário conta sua vida. Nesse sentido,

parece-me que Derrida exemplifica isso com o registro gráfico do exergo que situa esta

excedência biológica e biográfica, na autobiografia de Nietzsche. A folha inserida entre o

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prefácio e o desenvolvimento do texto fica nesta margem de dynamis que não representa

nem a obra nem a vida do autor/vivente/signatário. Isso caracteriza a margem – tão

abordada aqui – como heterogênea, tanto para a obra quanto para a vida. Assim, a

escritura que é portadora de vida-morte, é também livre da carga aprisionante da

metafísica, por não ser pura e unicamente fala ou escrita. O momento (auto)biográfico se

dá como um alinhamento entre vivente e signatário, nessa página datada e assinada.

O conceito de otobiografia, como conceito-margem, não é hermenêutico, pois se

julga impotente para obscurecer10 ou “iluminar” um texto. Como gesto, quer escutar a

dynamis da margem vida-morte, texto-escritura, biografia-trabalho filosófico,

considerando o jogo como seu movimento que se farta em usar e-ou-sim-não. Se no meio

do caminho há um signo, é porque há um signo no meio do caminho, afinal no meio do

caminho há um signo... “Nunca me esquecerei desse acontecimento” (Andrade, 2002,

No meio do caminho). Como conceito-método, a otobiografia não descobre, não desvenda

e nem mesmo desvela, mas desconstrói. Entende que só há véu <Éperons>. Estes

pensamentos que des, desconhecem que toda filosofia é uma filosofia de fachada, que há

“um sem fundo por trás de cada fundo” (Nietzsche, BM, § 289).

Gestos otobiográficos desconstroem: “ainda que a ‘verdade’ não fosse mais que

uma superfície, só chegaria a ser verdade profunda, crua, desejável, sob o efeito de um

véu: que a cubra. Verdade não suspensa por aspas e que recubra a superfície de um

movimento de pudor” (Derrida, 1981, p. 33). Quando nos aproximamos do texto, somos

atravessados por seu estilo. A partir daí, o próprio texto opera uma relação de sedução

com o leitor, e técnicas de interpretação se fazem dispensáveis.

| método-labirinto | Em 2004, Silas B. Monteiro faz publicações sobre os temas

nietzschianos tratados por Derrida, no livro cujo título não é escrito no corpo do texto

propriamente dito nenhuma vez. Propõe a criação de um conceito e, com base neste

conceito, um método otobiográfico, que consiste em investigar as vivências implicadas

10 NIETZSCHE, AS, §17.

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nos escritos. Fundamentando na ideia de que toda produção escrita é formativa – o que

retrato aqui sob o conceito de escritura –, o pesquisador concebe um conceito operador,

que prefiro denominar gesto otobiográfico.

Otobiografia é mais um neografísmo derridiano, inspirado nas inúmeras

possibilidades da phoné como différance, isto é, palavra escrita diferida temporal e

espacialmente. Na língua francesa, as palavras autobiographie (autobiografia) e

otobiographie (otobiografia), ao serem pronunciadas, não possuem diferenças fonéticas

perceptíveis. Trata-se “do ‘óto’ som do ouvido em francês, e do ‘óto’ som francês para si-

mesmo (...). Ora, Derrida dirá na Introdução do se A voz e o fenômeno que a voz é a

resposta à dificuldade indiscernibilidade da não-presença no coração da presença”

(Monteiro, 2011, p. 103).

Em Terei que errar sozinho, Derrida indica os “desvios” e as proximidades

intelectuais e afetivas entre ele e Deleuze. Um dos “desvios” é o pensamento de que a

filosofia consiste em criar conceitos, feita a ressalva de que o tenha feito sem nenhum

caráter antipático, assim como o faço agora. Apenas achei pertinente citar esse detalhe

porque, no mesmo texto, Derrida denomina suas diferenças com Deleuze meramente

como “gestos”, “estratégias” e “modos” diferentes de filosofar sobre ideias, na maioria

das vezes perturbadoramente semelhantes. O uso da palavra gesto me parece explicar

melhor o empenho otobiográfico, como estratégia de ouvir, pensar e assentado na obra

de Derrida e, é claro, em seu título.

O gesto otobiográfico se fundamenta na metáfora da escuta aliada à de labirinto,

visto que Nietzsche trata do ensino e suas instituições, o ouvido como ponto de partida.

Com Derrida, voltamos nossas atenções à metáfora da orelha e do ouvir em Nietzsche.

As partes do ouvido são denominadas e explicadas pela fisiologia, a qual define: ouvido

externo que consiste na orelha e sua função de captador sonoro; ouvido médio,

responsável pelo transporte acústico; e ouvido interno, que consiste em membranas

nervosas – ligadas ao cérebro–, receptoras das ondas sonoras. No ouvido interno está o

tímpano e o enigmático labirinto e seus canais semicirculares, sensíveis aos movimentos

da cabeça. Para Silas B. Monteiro, Derrida brinca com a otofisiologia: “quando fala do

ouvido de Nietzsche, recreia-se em lembrar do labirinto que, nesse caso, possui duas

conotações: um orgânulo do ouvido e um termo caro ao poeta de Ariadne, oriundo da

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mitologia grega” (Monteiro, 2007, p. 473).

Ariadne, filha do rei Minos de Creta, na mitologia grega, é conhecida por ter se

apaixonado pelo herói ateniense Teseu, quando esteve em Creta, com um grupo de

rapazes e moças que estavam condenados a ser devorados pelo touro de Minos.

Metade touro, metade homem, o Minotauro era mantido em um labirinto

construído por Dédalo e espelhado no inconsciente do rei. Teseu decidiu enfrentar o

Minotauro e contou com a ajuda da princesa Ariadne e de seu novelo de fios para deixar

uma trilha, à medida em que ia penetrando na complicada edificação. Assim, o herói

encontrou seu caminho para fora do labirinto, depois de matar o Minotauro. Ariadne,

em seguida, fugiu com Teseu, mas foi abandonada na ilha de Naxos, enquanto dormia.

Dioniso, o Deus da embriaguez, no qual Nietzsche se inspira, a encontrou e decidiu fazer

dela sua esposa (Brandão, 1997).

O gesto otobiográfico não descarta nenhuma das duas sugestões para mobilizar o

entendimento da função da metáfora do ouvido e seus caminhos labirínticos na escuta

das vivências. “Escutar, portanto, é percorrer o labirinto das significações das forças

presentes na produção humana, nos escritos, na autobiografia” (Monteiro, 2007, p. 481).

Se o processo de constituição de si é tido ao modo de “sistemas” de vida que

caracterizam a individualidade dos seres, de que modo devemos pensar as vivências como

parte deste processo que excede o interno e o externo? Como as vivências estão ligadas à

escritura?

Dois aforismos nos ajudam a pensar em respostas:

“Viver é inventar – Qualquer que seja o grau a que cada um de nós possa atingir no

conhecimento de si próprio, nada pode ser mais incompleto que a imagem que se forma

de todos os instintos que constituem a si mesmo” (Nietzsche, A, §119). As vivências

podem ser definidas como momentos, em nossas vidas, que provocam o crescimento

destes instintos. Nesse sentido, o ponto da frase anterior é explicativo: esses momentos

não são caracterizados por nada, além disso, e ponto! Tem-me sido comum deparar com

explicações que dão conotações metafísicas à “coisa”, isto é, por mais bonito que possa

parecer, para alguns a ideia de vivências transcendentais que nos ensinam a aprender

com erros ou a acreditar em bens maiores que nós não se aplicam ao pensamento de

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Nietzsche.

Como não lembrar Manuel de Barros, em Memórias inventadas, quando afirma: “tudo o que não invento é falso” (Barros, 2010, “Exergo”).

“Ninguém pode escutar mais das coisas, livros incluídos, do que aquilo que já

sabe. Para aquilo a que não se tem acesso por vivência, não se tem ouvido” (Nietzsche,

EH, “Porque escrevo livros tão bons,”§ 1). O ato de interpretar vai além do que se chama

de hermenêutica, uma vez que a interpretação é contínua imposição de instintos,

alimentados por vivências, agem como totalidade vital, que se apropriam da escritura

criando, inventando significados plurais. Dito de uma vez, é método-criação. Aqui os

processos de decifração e de compreensão de um significado tomam conotações

distintas, o que acaba por afastar o gesto derridiano ou nietzschiano da hermenêutica.

Aqui, interpretar é criar valores renovados, dar espaço para a excedência dos sentidos.

Como labirinto, os sentidos não são encontrados, eles se perdem. Deste modo, ao

estilo derridiano, o sentido excede e restringe. Nas trilhas do excesso e da falta, em trilha

enviesada, se caminha. Odisseia sem moral. Ariadne sem novelo. Método como jornada

sugerida por Tirésias sem manteia. O método otobiográfico de inspiração desconstrutora,

denuncia a presença do sentido de um texto, pois o vê como recalque, como expressão

do alicerce logofonocêntrico, e passa a buscar no descentramento o abandono de um

significado transcendental, que seja livre de cadeias significantes.

| Ouvi. Pensando-o, ouvi-o em vão | 11 Derrida se refere ao tímpano como um

limite de proteção e debate a possível superação deste limite, para além do ouvido. Para

sustentar o novo entendimento e função atribuídos ao tímpano, por ele mesmo, anuncia

um ouvido totalmente diferente, em que o tímpano passa a ser uma margem heterogênea.

Por essa fenda da identidade filosófica que conduz a endereçar-se a si mesmo a verdade sob disfarce, a ouvir-se falar por dentro sem abrir a boca ou mostrar os dentes, a atrocidade de uma escritura disseminada sem separar os lábios, viola a boca da filosofia, põe a sua língua em movimento (...) Acontecimento necessariamente único, não

11 PESSOA, 1990, Oiço passar o vento na noite.

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reprodutível, ilidível, desde então, enquanto tal e de imediato, inaudível na concha [orelha], entre terra e mar, sem marca (Derrida, 1991c, p. 19).

Todo o ouvido, em Margens da filosofia, é um sismômetro registrador de acústica,

muito refinado, um ouvido pronto para escutar o ruído em um texto, por exemplo. Só

assim o discurso da escritura terá tanta repercussão quanto a fala. É a própria orelha que

desenvolve esse órgão, que precisa treinar-se para receber o imprevisível e o estranho das

chamadas estruturas de expropriação por meio do timbre, do estilo e da marca.

Elementos apresentados como importantes chaves de leitura de Nietzsche, em Esporas,

anos mais tarde.

A partir dessa definição de orelha, é possível compreender melhor o gesto

otobiográfico e sua escuta de vivências nos escritos. Em uma mesa-redonda na

Universidade de Nebraska, tratando do texto de Otobiografias, Derrida ressalta que “o

gesto consiste da escuta, enquanto falamos, o mais acuradamente possível, a voz de

Nietzsche. Mas isso não significa que ela seja simplesmente recebida. Para escutá-la e

entendê-la, é preciso, também, produzi-la” (Derrida, In: Mcdonald, 1988, p. 51), já que a

assinatura de Nietzsche possui forma e força próprias.

Como já vimos, as assinaturas estão em nossa vida como registros de nossa

ausência, que devem ser honrados. Inseridas nas vivências, as assinaturas se afinam com

identidade e singularidade, as quais, quando disseminadas, afastadas da presença, devem

carregar a intenção de sua produção no acontecimento. Embora represente a ausência, a

morte do signatário, deposita potência vital no texto, por se tratar de escritura. “Que o ‘eu

vivo’ seja garantido por um contrato nominal do qual o vencimento supõe a morte

daquele que diz ‘eu vivo’ no presente; que a relação de um filósofo com seu ‘grande

nome’, ou seja, ao que rodeia um sistema de sua assinatura, faça parte de uma

psicologia” (Derrida, 2009, p. 40).

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Nem o mar, nem as pedras.

Textos que ressoam; vozes em improváveis assinaturas – vertigem labiríntica.

Bill Brandt, Nude, east Sussex, 1957.

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[6] AOS PRETENDENTES A PENÉLOPE

| escritura e corpo | Entende-se que Nietzsche assumiu duas tarefas para se

constituir. A primeira foi unir absolutamente tudo o que foi confrontado com os eventos

peculiares, somente a ele. Suas vivências e os acidentes empíricos, tais como nascimento e

saúde, crescimento e doenças, constituindo um todo único e unificado que ele podia

afirmar. A segunda tarefa, pressuposta pelo esforço de tornar-se quem se é, foi dar estilo,

como se dá a um texto, a essas vivências, de modo a ser significativamente diferente de

todos os outros. Quanto a tornar-se quem se é, trata-se de projeto que envolve afirmar e

reconhecer que atitudes e experiências, instintos e desejos têm contribuído para a própria

constituição, independentemente do orgulho ou decepção que esse reconhecimento pode

inspirar. Para tornar-se o que se é “uma coisa é necessária. – ‘Dar estilo’ a seu caráter – uma

arte grande e rara!” (Nietzsche, CG, § 290).

Em carta a Georg Brandes, datada de 20 de novembro de 1888, Nietzsche conta

entusiasmado sobre a finalização de sua autobiografia e a forma como pensa que as

pessoas a receberão. Ao anunciar sentir-se como uma fatalidade, diante da obra

terminada, estabelece agenciamentos diferentes do si mesmo, pois se refere ao momento

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sem fazer distinções entre seu corpo e seu corpus textual. Escrituras, como esta carta, são

o que nos permite pensar projetos filosóficos e vivências como formação de si mesmo, e

portanto como constituintes de maneiras subjetivas e plurais de cultivar e de afirmar a

própria vida. Ação que, por meio da escritura e dos elementos que a circundam, com

todas as suas banalidades e seus egoísmos, é força constitutiva do vir a ser o que se é. A

certa altura, a filosofia e o trabalho filosófico devem se tornar, a qualquer custo,

abstração, sutileza, o que não está dito além da potência da vida e da morte.

Outra carta de Nietzsche destinada ao mesmo amigo, em 23 de maio de 1888,

aponta para o gesto otobiográfico, quando o filósofo se põe a escutar a dynamis da

margem hoje-amanhã, presente-futuro, ao relatar ser um ouvinte profundamente afinado

com seus estados internos. Passa a adotar a surpresa da vida como estilo.

O gesto otobiográfico denuncia que as produções filosóficas, literárias e

formativas sem vida consistem em metafísicas da presença. Concepções ou práticas presas

nas abordagens dos significantes polarizados, separados ou exercendo imposição um

sobre o outro. A vida em oposição à morte. (Auto)biografia em oposição à ficção. Fala

em oposição à escrita.

Com Nietzsche e Derrida, palavra escrita e palavra falada se misturam,

ultrapassam essas oposições binárias, constituem a escritura neste jogo de diferenças e se

encontram no corpo do leitor/escritor/vivente.

De fato, os temas da assinatura, do nome próprio, da dimensão do enunciador

dos atos de fala, declarativos e performativos – como a promessa ou juramento – são

intensamente presentes nos textos de Derrida. Essa insistência também pode ser

entendida como indicativo à compreensão da emergência da questão da escritura, uma

vez que os processos de assinatura são tratados como recordações da tensão entre fala e

escrita, para a própria condição da filosofia em sua modalidade contemporânea.

Outro fator que aponta a emergência da questão da escritura é a figura do duplo

gesto entre os gêneros do discurso filosófico e literário no período moderno,

principalmente após Nietzsche. Na perspectiva da filosofia da diferença, a escritura é

especialmente marcada em torno desta urgência contemporânea. Desse modo, os textos

de Derrida caracterizam uma resistência à tradicionalização do registro filosófico ou do

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registro literário, “eles se comunicam, assim (...), com outros textos que tenham efetuado

uma certa ruptura, não se chamam mais ‘filosóficos’ ou ‘literários’” (Derrida, 2001, p.

78). Esse movimento de desconstrução do registro é inspirado em textos que, embora

denominados literários, avançam “às artes, à poética, à retórica e à filosofia”. Derrida

cita como exemplo os textos de Artaud, Bataille, Mallarmé e Sollers. Deleuze, por sua

vez, considera autores e artistas estrangeiros em sua própria língua, refere várias vezes

Kafka, Beckett, Godard e Gherasim Luca como portadores de um procedimento de

variação, uma experiência cromática que excede o limite da linguagem.

Esta é uma política do estilo, encarar a literatura como escritura singular. E por

ela, o estilo vem a ter força de lei da singularidade, do outro, de nós e nossas leituras.

Aquilo que faz da experiência de escrever-e-ler uma experiência de posse, isto é, que

torna um texto evidentemente meu, pela assinatura ou pelo reconhecimento de um estilo

próprio, afirma-se a ação de assinar, em outras palavras, uma política do nome próprio.

É aí que podemos perceber a potência da ação da escritura, vista em todos os aspectos da

vida.

Talvez a meditação paciente e a investigação rigorosa em volta do que ainda se denomina provisoriamente de escritura, em vez de permanecerem aquém de uma ciência da escritura ou de a repelirem por uma reação obscurantista, deixando-a – ao contrário – desenvolver sua positividade ao máximo de suas possibilidades, sejam a errância de um pensamento fiel e atento ao mundo irredutivelmente por vir que se anuncia no presente, para além da clausura do saber. O futuro só se pode antecipar na forma de perigo absoluto (Idem, 2008, p. 4).

Mesmo com um tom que parece expressar certo agouro em torno da questão da

escritura, quando a denomina como um “perigo absoluto”, Derrida me parece traçar, já

nas primeiras páginas de Gramatologia, que o limite ou possibilidade de conhecimento

passarão no futuro a ter uma relação inevitável com “a experiência de escrever” e toda a

individuação que tal experiência implica. As afirmações citadas acima, no entanto,

também acarretam que a escritura tem substituído a morte, como a fronteira que guarda

o silêncio absoluto e a finitude. Depois desta obra, é certamente difícil descartar a

questão da escritura, mais difícil ainda abordar a experiência de escrever ingenuamente.

Meu traço.

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| aos pretendentes | No tempo bio-thanatográfico, costuman-se criar ideais de

conquista. Nietzsche insiste em nos alertar contra os ideais, pois costumam fazer com

que soframos do mal – ou bem – que tomou os adversários de Odisseu. Todo esforço que

fizeram garantiu-lhes a conquista das escravas, menos de sua esposa. Conforme Laêrtios

(2008, Livro II, §79), Arístipo (aproximadamente 435-350 a.C.), discípulo de Sócrates,

criou uma espécie de categoria de pessoas assim: àqueles que possuem currículo, mas

abandonam a filosofia, serão sempre ditos como pretendentes a Penélope. O sofista,

discípulo do anti-sofista, tem vivências para afirmar isto. De acordo com Michel Onfray,

ele sabia gozar o instante presente, vivia com uma jovem cortesã. Seu prazer estava em

uma boa mesa, na gula e na diversão. Costumava dançar em festas vestido de mulher –

aí está o antecedente estético de Ed Wood. Apreciava também os perfumes. Para o

filósofo, mesmo os sentidos de origem “vergonhosa” são bons meios de conhecer.

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SUPLEMENTO

A Georges Brandes

Turim - Via Carlo Alberto, 6 - 20 de novembro de 1888

Meu muito ilustre Senhor:

Perdão por responder-te tão rapidamente. Há agora, na minha vida, coisas

extraordinárias e sem igual. Anteontem, uma; hoje, outra. Se soubesses o que eu acabara

de escrever quando recebi sua carta!

Descrevi-me a mim próprio, com um cinismo que se tornará histórico. O livro,

que se intitula Ecce homo, constitui um atentado, sem consideração alguma, contra o

Crucificado, e termina com uma espantosa tormenta de trovões e raios contra tudo o que

é cristão, ou infectado de cristianismo. Sou o maior psicólogo do cristianismo! E, em

minha qualidade de antigo artilheiro, posso dispor de peças de um calibre insuspeitado

até agora por todos os inimigos de tal doutrina. Ecce homo constitui o prólogo da

Transvaloração de todos os valores, a obra que jaz terminada em minha frente. Juro que,

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dentro de dois anos, teremos toda a terra em convulsões. Sou uma fatalidade!

Adivinhas quem pior se sairá em meu livro? Os senhores alemães! Disse-lhes

coisas espantosas!. . . Eles têm, por exemplo, sobre sua consciência, o crime de afogar o

sentido real da última grande época da História – a Renascença – num momento em que

os valores cristãos, os valores da decadência, sucumbiam e estavam vencidos, mesmo

nos instintos do alto clero, pelos instintos contrários, os instintos vitais. Atacar a Igreja

supunha então restabelecer o cristianismo. (César Bórgia na cadeira papal é o sentido do

Renascimento, seu verdadeiro símbolo).

Não deverá aborrecer-se por aparecer num passo decisivo de meu livro – escrevia

então a ti – e em um momento em que estigmatizo a conduta de meus amigos alemães

para comigo, ao deixarem-me solitário na estacada, tanto em questões de Filosofia como

de honra – o senhor apareceu envolto numa nuvem de glória.

Creio, sem reservas, em suas palavras sobre Dostoievski. Eu, pela minha parte,

estimo-o com o mais valioso material psicológico que conheço, e estou-lhe agradecido

por uma curiosa razão: porque contrariou sempre meus instintos mais baixos. É como

minha relação com Pascal, a quem quase amo. Eu o considero o único cristão lógico.

A Georges Brandes

Turim, 23 de maio de 1888

Meu muito ilustre Senhor:

Não quero abandonar Turim sem lhe exprimir novamente quanto lhe devo do

muito que de bom esta primavera teve para mim. A história de minhas primaveras, pelo

menos de há uns quinze anos para cá, é uma história espantosa, uma fatal continuidade

de fraqueza e decadência. Os lugares onde as passei não tiveram a mínima influência

benéfica; nem eles, nem os diversos regimes, nem nenhum clima, conseguiram modificar

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o carácter essencialmente depressivo dessa época. Mas, oh surpresa! Turim! Turim e as

primeiras boas notícias, meu ilustre amigo, demonstraram-me que eu ainda vivia...

Chego a esquecer que existo. Num dia destes, uma pergunta casual me recordou que se

extinguiu em mim o mais importante conceito vital, o conceito “futuro”. Não tenho um

único desejo, nem a mais leve sombra de uma aspiração. À minha frente, não vejo mais

do que uma superfície lisa! Por que é que um dia dos meus setenta anos não há de ser

igual a um dos de agora? Será talvez porque vivi, durante demasiado tempo, muito perto

da morte, que não posso agora abrir os olhos às possibilidades belas? A verdade é que me

limito a pensar no dia imediato – hoje ainda resolvo o que hei de fazer amanhã, mas não

mais além. Pode ser que isto seja irracional, pouco prático e talvez até pouco cristão – o

predicador da montanha proibiu precisamente que nos preocupássemos com o dia

seguinte–, mas a mim parece-me profundamente filosófico. Eu próprio concebi, por mim

mesmo, maior respeito do que costumo ter, quando compreendi que tinha cessado de

desejar sem que me houvesse proposto voluntariamente.

Tenho aproveitado estas semanas para “transvalorar valores”. Compreende este

tropo? O alquimista é, na realidade, o homem de maior mérito. Quero dizer, o que faz do

ínfimo, do desprezível, qualquer coisa de muito valioso, ouro até. Esse é o único homem

que enriquece; os outros não fazem mais que mudar. O meu trabalho atual é muito

curioso. Perguntei a mim próprio: o que é que, até hoje, tem sido mais odiado, temido e

desprezado pela Humanidade? E deles fiz meu “ouro”.

Agora, só falta que me acusem de moedeiro falso. Ainda chegarão a fazê-lo, com

certeza.

O meu retrato chegou às suas mãos? Minha mãe me prestou o grande serviço de

evitar que eu parecesse ingrato, num caso tão extraordinário. Suponho que E. W.

Fritzsch, meu editor de Leipzig, cumpriu também seu dever, mandando-lhe meu livro.

Por último, confessar-lhe-ei uma curiosidade. Já que me foi impossível ouvir

qualquer coisa atrás da porta, para me edificar sobre mim próprio, gostaria de ouvir

doutra maneira. Apenas três palavras, indicando a característica dos temas de cada uma

das conferências. Quanto me ilustrariam essas três palavras!

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Fragmento póstumo 16[44] da primavera-verão de 1888

Eu tenho quase curiosidade, às vezes, em escutar como sou. Esta pergunta está de

maneira absurda distante de meus próprios costumes

Minha vivência típica (— coisas assim hão - - -

Em minha vida, há realmente surpresas: isso provém de que não me encontro

satisfeito ocupando-me do que poderia ser possível: uma prova do muito que eu vivo

entre pensamento... Um acaso me fez consciente, faz uns dias, do seguinte: me falta o

conceito de “futuro”, vejo adiante como por cima de uma superfície lisa: sem desejos,

nem sequer o mais ínfimo, sem fazer planos, sem querer que as coisas sejam diferentes.

Melhor meramente o que nos tem proibido esse santo epicúrio: o cuidado pelo próximo

dia, pelo amanhã... este é meu único estratagema: eu sei hoje o que deve suceder

amanhã.

naufragium feci: bene navigavi, [fiz boa navegação quando naufraguei], - - -

Omphalos (ὀµφαλός – noun sg masc nom)

Palavra grega que significa umbigo. Derrida a usa em seu Otobiografias.

Eis o pequeno capítulo:

É uma forte tentação, a tentação de reconhecer-mo-nos todos no programa dessa

cena ou nas partes deste fragmento. Eu o mostraria melhor se o tempo de uma

conferência acadêmica não me impedisse. Sim, reconhecer-nos todos nestes lugares, e

dentro das paredes de uma instituição em que o velho filósofo da meia-noite anuncia o

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colapso (“Com base na argila da atual cultura dos liceus, em uma fundação que se

desmorona, o seu edifício é de papelão e mal seguro contra um forte vento”).

Mas, mesmo que cedêssemos à tentação de reconhecer-mo-nos todos, e por

distante que nos levasse sua demonstração, um século depois nos reconheceríamos sem

dúvida, todos. Eu não disse todas. Pois tal é a cumplicidade profunda que une os

protagonistas desta cena, tal é o contrato que regula tudo, incluindo os conflitos entre

eles: a mulher, se li bem, nunca aparece. Nem para estudar nem para ensinar em nenhum

ponto do cordão umbilical. A grande “mutilada”, talvez. Não há mulher, e não queria

extrair desta observação o suplemento de sedução que hoje toma parte de todos os cursos

realizados a partir de procedimento comum que proponho chamar de “gynémagogie”.

Não há mulher, se eu li corretamente. Com exceção da mãe, é claro. Mas isso faz

parte do sistema. A mãe é a figura sem figura de uma figurante. Dá lugar a todas as

figuras ao perder-se no fundo da cena como uma personagem anônima. Tudo se deve,

em primeiro lugar, à vida, tudo se dirige a ela e se lhe destina. Ela sobrevive, a condição

de manter-se no fundo.