Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do...

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Francisco Oliveira, Cláudia Teixeira e Paula Barata Dias Espaços e Paisagens Antiguidade Clássica e Heranças Vol. I IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA COIMBRA UNIVERSITY PRESS ANNABLUME Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

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Page 1: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

Francisco Oliveira Claacuteudia Teixeira e Paula Barata Dias

Espaccedilos e PaisagensAntiguidade Claacutessica e Heranccedilas

Vol I

ImPrEnsa Da UnIVErsIDaDE DE COImBraCOImBra UnIVErsITy PrEss

annaBlUmE

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Espaccedilos e PaisagensAntiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas

VII Congresso da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos

Eacutevora 10-12 de Abril de 2008

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Espaccedilos e PaisagensAntiguidade Claacutessica e Heranccedilas ContemporacircneasVol I Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e Roma

Francisco de Oliveira Claacuteudia TeixeiraPaula Barata Dias (Coords)

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Tiacutetulo bull Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas ContemporacircneasVol I Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e RomaCoordenaccedilatildeo bull Francisco de Oliveira Claacuteudia Teixeira Paula Barata Dias

Seacuterie Hvmanitas Svpplementvm

Coordenador Cientiacutefico do plano de ediccedilatildeo Maria do Ceacuteu Fialho

Conselho EditorialJoseacute Ribeiro FerreiraMaria de Faacutetima Silva

Director Teacutecnico Delfim Leatildeo

Francisco de Oliveira Nair Castro Soares

EdiccedilatildeoImprensa da Universidade de CoimbraURL httpwwwucptimprensa_ucE-mail imprensaucptVendas online httpwwwlivrariadaimprensacom

Coordenaccedilatildeo editorialImprensa da Universidade de Coimbra

Concepccedilatildeo graacutefica amp PaginaccedilatildeoRodolfo Lopes

Preacute-ImpressatildeoImprensa da Universidade de Coimbra

Impressatildeo e Acabamento wwwartipolnet

ISBN978-989-26-0282-0

ISBN Digital978-989-26-0293-6

Depoacutesito LegaL

34698312

1ordf eDiccedilatildeo CECH APEC bull 20092ordf eDiccedilatildeo IUC bull 2012

copy Julho 2012 Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis (httpclassicadigitaliaucpt)Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra

Reservados todos os direitos Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial por qualquer meio em papel ou em ediccedilatildeo electroacutenica sem autorizaccedilatildeo expressa dos titulares dos direitos Eacute desde jaacute excepcionada a utilizaccedilatildeo em circuitos acadeacutemicos fechados para apoio a leccionaccedilatildeo ou extensatildeo cultural por via de e-learning

Todos os volumes desta seacuterie satildeo sujeitos a arbitragem cientiacutefica independente

Obra realizada no acircmbito das actividades da UIampDCentro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

DOIhttpdxdoiorg1014195978-989-721-069-3

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Nota de apreseNtaccedilatildeo

A Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos - APEC optou haacute alguns anos pela deslocalizaccedilatildeo do seu congresso perioacutedico o qual de Coimbra jaacute peregrinou por Viseu Aveiro Faro Braga Lisboa e Eacutevora

Foi exactamente nesta beliacutessima cidade que se realizou o VII Congresso Internacional da APEC nos dias 10-12 de Abril de 2008

Nesse encontro uma enorme plecirciade de participantes desenvolveu um exerciacutecio de intensa interdisciplinaridade agrave volta do tema Espaccedilos e paisagens Antiguidade Claacutessica e heranccedilas contemporacircneas Foi de cerca de uma centena o nuacutemero de conferencistas presentes um terccedilo dos quais vindos de paiacuteses estrangeiros e eacute para eles que vai um primeiro agradecimento em especial para os que aceitaram o desafio da publicaccedilatildeo das suas comunicaccedilotildees

O segundo agradecimento eacute dirigido agraves entidades que assumiram a co-responsabilidade da organizaccedilatildeo e da ediccedilatildeo

o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade mdash de Coimbra coordenado pela Professora Doutora Maria do Ceacuteu Zambujo Fialho

mdash o Centro de Histoacuteria da Arte e de Investigaccedilatildeo Artiacutestica da Universidade de Eacutevora dirigido pela Prof Doutora Christine Zurbach

o Centro Interdisciplinar de Histoacuteria Culturas e Sociedades mdash da Universidade de Eacutevora coordenado pela Prof Doutora Mafalda Soares da Cunha

mdash o Laboratoacuterio de Arqueologia ldquoPinho Monteirordquo da Universidade de Eacutevora presidido pelo Prof Doutor Jorge de Oliveira

o Departamento de Linguiacutestica e Literaturas da Universidade mdash de Eacutevora

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Os agradecimentos que endereccedilamos a estas entidades satildeo extensivos agraves proacuteprias instituiccedilotildees acolhedoras a Universidade de Coimbra e a Universidade de Eacutevora e nesta cidade tambeacutem ao Governo Civil de Eacutevora agrave Cacircmara Municipal de Eacutevora ao Comando da Unidade de Apoio e ao Banco Millenium BCP cujos responsaacuteveis mobilizaram toda a sua clarividecircncia e generosidade para garantir as melhores condiccedilotildees para a realizaccedilatildeo deste evento cultural e cientiacutefico

Em terceiro lugar manifestamos a nossa viva gratidatildeo agraves entidades financiadoras com particular relevo para o sempre soliacutecito apoio da FCT mdash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e da Fundaccedilatildeo Engenheiro Antoacutenio de Almeida

Mas seria injusto natildeo valorizar tambeacutem a colaboraccedilatildeo da Drordf Carla Braz tanto no secretariado do congresso como na recolha do material dos senhores Dr Rodolfo Lopes e Luiacutes Miguel Barata Dias na preparaccedilatildeo da ediccedilatildeo digital e do Doutor Delfim Leatildeo pelo interesse em promover a divulgaccedilatildeo atraveacutes de Classica Digitalia

Estamos certos de que tais apoios colaboraccedilotildees financiamentos patrociacutenios e responsaacuteveis se sentiratildeo compensados pela qualidade dos escritos dados ao prelo organizados em trecircs volumes com o tiacutetulo geral Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas e os subtiacutetulos correspondentes

vol 1 mdash Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e Romavol 2 mdash Liacutenguas e Literaturas Idade Meacutedia Renascimento Recepccedilatildeovol 3 mdash Histoacuteria e Arqueologia

No seu conjunto tais contributos incluindo os de jovens investigadores ilustram uma grande diversidade de perspectivas uma enorme riqueza e variedade de temas da filologia grega e latina e da tradiccedilatildeo claacutessica agrave literatura comparada da arte e do urbanismo agrave arqueologia e agrave economia da poliacutetica agrave filosofia e desde a Antiguidade ateacute aos nossos dias

Por acreacutescimo ficam assim tambeacutem nobilitados os estudos claacutessicos humaniacutesticos histoacutericos filosoacuteficos e literaacuterios em Portugal com a Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos mdash APEC a cumprir a missatildeo cultural e cientiacutefica consagrada nos seus estatutos em especial no espaccedilo da lusofonia e da Uniatildeo Europeia

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Comissatildeo Cientiacutefica Ana Cardoso de MatosArnaldo Espiacuterito SantoClaacuteudia TeixeiraCristina PimentelFilipe Themudo BarataFrancisco de OliveiraHermiacutenia VilarJorge de OliveiraJoseacute Alberto Gomes MachadoLeonor RochaManuel PatrociacutenioMafalda Soares da CunhaMaria de Faacutetima Sousa e SilvaMaria do Ceacuteu FialhoRicardo SantosTeresa Santos

Coordenaccedilatildeo do VolumeFrancisco de Oliveira

Claacuteudia TeixeiraPaula Barata Dias

Comissatildeo OrganizadoraAndreacute CarneiroArmando MartinsCarla Braz (secretariado)Clara OliveiraClaacuteudia TeixeiraFrancisco de OliveiraJorge de OliveiraLeonor RochaManuel PatrociacutenioPaula Barata DiasRicardo SantosValentina Castro

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IacuteNDICE

Vol 1 liacutenguas e literaturas greacutecia e roma

I - Antiguidade Grega

Espaccedilos do Grego e espaccedilos do outro nas Suplicantes de Eacutesquilo 15 Carlos A Martins de Jesus

Paisagens marinhas no Hipoacutelito de Euriacutepides 23 Maria do Ceacuteu Fialho

Tebas a cidade de Dioniso O caso de Heacuteracles de Euriacutepides 29 Sofia Frade

Nas moradas das ninfas o cenaacuterio do drama satiacuterico 35 Tereza Virgiacutenia Ribeiro Barbosa

A aacutegora de Atenas Coraccedilatildeo de uma urbe cosmopolita 43 Maria de Faacutetima Silva

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico 49 Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

Espaccedilos concebidos pela mente 59 Susana Marques Pereira

Quando Patilde e as Ninfas convertiam os simples mortais 65 Ana Seiccedila Carvalho

Turismo e patrimoacutenio na Antiguidade Claacutessica o texto atribuiacutedo a Fiacutelonde Bizacircncio sobre as Sete Maravilhas 73

Luiacutesa de Nazareacute Ferreira

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II - Antiguidade Romana

El espacio de la mujer en la medicina romana 83 Joseacute Pablo Barragaacuten Nieto

Espacios para la curacioacuten la domus en la tradicioacuten hipocraacutetico-galeacutenica 89 Mordf Carmen Fernaacutendez Tijero

Espacios literarios para la botaacutenica un jardiacuten de plantas medicinales 97 Alejandro Garciacutea Gonzaacutelez

A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre Metricologia Latina 105 Joatildeo Batista Toledo Prado

Entre vida puacuteblica e luxuria privada A propoacutesito das villae de Luculo 113 Manuel Troumlster

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero 121 Virgiacutenia Soares Pereira

Piacutendaro e Horaacutecio face a face 131 Maria Mafalda de Oliveira Viana

Virgiacutelio e a invenccedilatildeo da paisagem simboacutelica 139 Luiacutes M G Cerqueira

Um repasto na Arcaacutedia as Bucoacutelicas de Virgiacutelio 147 Inecircs de Ornellas e Castro

A poetizaccedilatildeo do espaccedilo nas Bucoacutelicas de Virgiacutelio simbologia da vida humana entre a euforia e a disforia 155

Antoacutenio Moniz

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas Metamorphoses de Oviacutedio 169

Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca Troades e Thyestes 175

Mariana Horta e Costa Matias

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Os espaccedilos das Troades de Seacuteneca 183 Paulo Seacutergio Ferreira

Salomatildeo parodiado elementos judaicos na paisagem pompeiana 191 Nuno Simotildees Rodrigues

O Anfiteatro de Ceacutesar a uacutenica obra que a Fama haacute-de celebrar 199 Joana Mestre Costa

De rio lamacento a corrente cristalina a transformaccedilatildeo do espaccedilo e da paisagem em Silvas 43 207

Ana Maria dos Santos Loacuteio

Paisaje fiacutesico y paisaje humano de la Germania seguacuten Ceacutesar y Taacutecito 215 Aurora Loacutepez

A ekphrasis suetoniana da Domus Aurea 223 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Villae y otros espacios de recreo en las Vidas de los Doce Ceacutesares de Suetonio 231 Mordf J Peacuterez Ibaacutentildeez

Roma nas Vidas Paralelas de Plutarco 237 Joaquim Pinheiro

O espaccedilo britacircnico e a paisagem no Agricola de Taacutecito 247 Ana Isabel Fonseca

Espaccedilos da morte na historiografia de Taacutecito 255 Maria Cristina Pimentel

O espaccedilo no conto de Eros e Psique 265 Maria Leonor Santa Baacuterbara

La relacioacuten del hombre con la naturaleza y el medio ambiente 273 Paolo Fedeli

Iacutendice de palavras-chave 283

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num universo marcadamente rural a despeito do paradoxo que isso representa A proacutepria forma de organizaccedilatildeo e administraccedilatildeo que propotildees estaacute recheada de elementos do campo atribuindo agraves aves o direito de reinar sobre os demais seres colocando-as inclusive acima dos deuses O proacuteprio desenho arquitetocircnico imaginado pelo poeta e o estilo de vida que ali se desenvolveraacute nos remetem a uma paisagem campestre Observemos a passagem seguinte (vv 610ss)

ldquoEm primeiro lugar natildeo haveraacute necessidade de lhes construir templos de maacutermore com portas de oiro habitaratildeo nos bosques e sob a folhagem dos carvalhos as aves mais veneraacuteveis teratildeo por templo uma oliveira Natildeo seraacute preciso ir a Delfos ou ao tempo de Amon oferecer sacrifiacutecios De peacute entre os medronheiros e as oliveiras bravas mostrar-lhes-emos um punhado de cevada e de trigo e ali de matildeos estendidas pedir-lhes-emos que espalhem sobre noacutes os seus benefiacutecios E tudo por um punhado de trigordquo

A despeito de como observamos anteriormente o presente trabalho encontrar-se em estaacutegio inicial aferimos algumas conclusotildees parciais Aristoacutefanes euforiza a Chocircra em detrimento da aacutesty O espaccedilo rural aparece no teatro aristofacircnico como o lugar em que o camponecircs deve estar pois na cidade ele eacute infeliz e soacute pensa no dia em que poderaacute retornar agrave sua terra agraves suas atividades o pastoreio a agricultura a caccedila atividades verdadeiramente edificantes para o ser humano Os campos aristofacircnicos satildeo proacutesperos desde que impere a paz a abundacircncia de comida a bebida as festas regadas a cantigas danccedilarinas sexo Pensamos entatildeo que o poeta estaacute mais ligado aos valores veiculados na sociedade ateacute a primeira metade do seacuteculo V aC isto eacute aos valores aristocraacuteticos o que natildeo nos autoriza afirmar que estivesse comprometido politicamente com a aristocracia

Bibliografia

Textos AntigosAristoacutefanes Os Acarnenses Trad Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC 1985_____________ Os Cavaleiros Trad de Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC

1985_____________ As Vespas Trad Junito de Souza Brandatildeo In Teatro Grego

Euriacutepedes e Aristoacutefanes Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo sd_____________ As Nuvens Trad Gilda Maria Reale Starzynski_____________ A Paz Trad Maria de Faacutetima Silva 2ordf ed Coimbra INIC

1989

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico

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Textos ModernosA L Chevitarese (2004) Fronteiras internas Atenienses no Periacuteodo Claacutessico

(Re)Definindo Conceitos e Propondo instrumentais Teoacutericos de Anaacutelise PHOIcircNIX Rio de Janeiro Mauad

__________ (2000) O Espaccedilo Rural da Polis Grega O Caso Ateniense no Periacuteodo Claacutessico Rio de Janeiro

V Ehrenberg (1951) The People of Aristophanes A Sociology of Attic Comedy 2ordf ed Oxford Basil Blackwell

D M Macdoweell (1996) Aristophanes and Athen ndash Na introduction to the Plays New York Oxford University Press

L O de Magalhatildees (2005) A Cidade Grega e os Modos urbanos da poliacutetica In M M de Carvalho As Cidades no Tempo Franca UNESP Satildeo Paulo Olho DacuteAacutegua

L O de Magalhatildees (1996) Curtumeiros e Salsicheiros ndash A Representaccedilatildeo Cocircmica da Demagogia em Cavaleiros de Aristoacutefanes Dissertaccedilatildeo de Mestrado Satildeo Paulo USP

Mordf F Sousa e Silva Poliacuteticos e Mulheres na Comeacutedia Grega Disponiacutevel lerletrasupptuploadsficheiros2537pdf

J P Vernant (1986) As Origens do Pensamento Grego Satildeo Paulo DifelA L B Vieira (2000) Os Camponeses e a Phisis Heacutelade 1 (2)__________ (2002) Polis Phisis e Chora o quinto seacuteculo ateniense In Neide

(org) Linguagens e Formas de Poder na Antiguidade Rio de Janeiro Mauad

Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

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ESPAccedilOS CONCEBIDOS PELA MENTE

Susana Marques Pereirauniversidade de Coimbra

AbstractlsquoIf I could review in dreams my fatherly house and the cityhelliprsquo (E iT 452 sq) cries out the

chorus of the Greek captives in Euripidesrsquo iphigenia among the Tauris The transposition of the physical real space to the world of dreams and visions waking

visions ie to a psychological subjective space allows us illustrate both the cares and longings of figures from the Homeric epics or of the Greek tragedies (cf Od 19581 2179 E iT 452 ss E HF 943 ss) As well as revealing symbolically way premonitory elements related to the human faith (cf E iT 42 ss) or still in a metaphoric language satirize the politiciansrsquo behaviour during Aristophanesrsquo time in pieces written by the comedian (cf V 31 ss)

The real spaces to which the dreams and visions point to contemplate the generic references to the city the reference to a place particularly associated to power the royal palace such as Ithaca or before the one of Argos and the amusing description of the public places of the polis

This study is intended to consider from a literary perspective the motives and the consequences of this connection between the physical and the psychological space taking into consideration the context in which the afore mentioned examples occur as well as the time in which they take placeKeywords illusion physical space psychological space realityPalavras-chave espaccedilo fiacutesico espaccedilo psicoloacutegico ilusatildeo realidade

lsquoSe eu pudesse rever em sonhos a casa e a cidade paternahelliprsquo(E iT 452 s) desabafa o coro de cativas gregas da ifigeacutenia entre os Tauros euripidiana A manifestaccedilatildeo nostaacutelgica das jovens que serviam Ifigeacutenia sacerdotisa de Aacutertemis na longiacutenqua Taacuteuride resulta de uma prolongada separaccedilatildeo da paacutetria heleacutenica que haviam sido constrangidas a abandonar No sonho as cativas encontram a capacidade de recuperar um local de fruiccedilatildeo existencial vivenciado no passado circunstacircncia sugestiva da alteridade espacial implicada na criaccedilatildeo da utopia topograficamente representada O desejo expresso pelo coro evidencia como a transposiccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico para o espaccedilo psicoloacutegico eacute capaz de aliviar anguacutestias pessoais natildeo obstante a consistecircncia fraacutegil da realidade entrevista Ao caraacutecter deacutebil - e breve - da visatildeo sobrepotildee-se a consolaccedilatildeo de ter novamente diante dos olhos a imagem cara da paacutetria amada o sonho permite um ansiado esvanecimento da separaccedilatildeo espacial efectiva provocada pelo doloroso exiacutelio assumindo-se claramente como um meio de evasatildeo propiciador de

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Susana Marques Pereira

uma satisfaccedilatildeo passageira como um veiacuteculo de esperanccedila Felicidade e dor inscrevem-se assim em lugares distintos para as jovens gregas respectivamente a Heacutelade e a Taacuteuride o antes e o agora A menccedilatildeo especiacutefica agrave casa de outrora tecto protector porto de abrigo e agrave cidade paterna local de criaccedilatildeo de laccedilos afectivos eacute sugestiva do desamparo a que se sentem votadas num espaccedilo em que se vecircem privadas da seguranccedila e do saudoso aconchego familiares

O sonho como meio de tornar presente um local grato ao receptor eacute jaacute referido por Peneacutelope na Odisseia de modo reiterado (cf Od 19 581 21 79) decidida por fim a deixar o lar e a conceder a matildeo a um dos pretendentes que haacute longos anos a instigavam a casar de novo a rainha de Iacutetaca afirma que atraveacutes de experiecircncias sonhadas poderaacute recordar lsquouma casa bela cheia de riquezasrsquo1 A deslocaccedilatildeo suscitada por um novo casamento que se afigura necessaacuterio realizar incita-a a prolongar no imaginaacuterio um passado que deseja que continue a existir O palaacutecio real de Iacutetaca afigura-se para a rainha como o elemento ideal de intersecccedilatildeo de espaccedilos e tempos distintos Curiosamente poreacutem ela natildeo o destaca enquanto local de felicidade conjugal mas refere-se antes agrave sua beleza e aos bens que possui valorizando a simbologia a que por tradiccedilatildeo estaacute associado i e ao poder A tal realce natildeo eacute por certo alheio o facto de devido agrave prolongada ausecircncia de Ulisses caberem a Peneacutelope competecircncias como salvaguarda de uma soberania que devia manter

Para a rainha de Iacutetaca como para o coro de cativas da ifigeacutenia entre os Tauros a involuntaacuteria mudanccedila espacial iminente e efectiva respectivamente corresponde a uma indesejada alteraccedilatildeo de condiccedilatildeo que o recurso agrave visatildeo sonhada permite de algum modo escamotear ao facultar-lhes a apropriaccedilatildeo momentacircnea de uma outra realidade conhecida e agradaacutevel Em qualquer um dos casos daacute-se relevo ao caraacutecter voluntaacuterio do sonho humano e em simultacircneo ao seu efeito terapecircutico

O espaccedilo percepcionado por Heacuteracles na peccedila homoacutenima de Euriacutepides revela motivos e consequecircncias bem distintos das situaccedilotildees antes descritas Na verdade enquanto a esposa de Ulisses e as jovens gregas encontram no espaccedilo da memoacuteria uma forma de atenuar os cuidados que as consomem e de satisfazer os seus desejos a deslocaccedilatildeo fictiacutecia no espaccedilo do filho de Alcmena converte-se na causa da sua desgraccedila pessoal Saliente-se poreacutem que se a alusatildeo das cativas e de Peneacutelope agraves experiecircncias oniacutericas espelha o tipo de sonho induzido e preparado como uma terapia para o proacuteprio sonhador as visotildees de Heacuteracles satildeo propositadamente forjadas pelo mundo divino como um meio de puniccedilatildeo do receptor (cf E HF 822 ss)2 De facto a compreensatildeo deturpada da realidade envolvente durante um acesso de loucura despoletado por intervenccedilatildeo de divindades nega a time devida ao ilustre heroacutei instigando-o a exibir uma violecircncia assassina num cenaacuterio por ele apreendido como outro o palaacutecio de Heacuteracles em Tebas eacute por malogrados momentos identificado com o

1 F Lourenccedilo 620052 De acordo com as palavras de Iacuteris e de Lissa divindades que surgem em cena de forma ater-

rorizadora sobre o palaacutecio de Tebas eacute a fuacuteria de Hera pelos amores furtivos de Zeus com Alcmena a responsaacutevel pelo deliacuterio de Heacuteracles (cf HF 825 ss)

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

Espaccedilos concebidos pela mente

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

Susana Marques Pereira

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

Poemas HomeacutericosG S Kirk (ed) M Edwards (1991) The iliad a commentary vol V

CambridgeG S Kirk (ed) N Richardson (1993) The iliad a commentary vol VI

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EuriacutepidesHeraclesS Barlow (1996) Euripides Heracles WarminsterG Bond (1981) Euripides Heracles Oxford

Espaccedilos concebidos pela mente

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Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

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Susana Marques Pereira

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

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Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 2: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

Espaccedilos e PaisagensAntiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas

VII Congresso da Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos

Eacutevora 10-12 de Abril de 2008

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Espaccedilos e PaisagensAntiguidade Claacutessica e Heranccedilas ContemporacircneasVol I Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e Roma

Francisco de Oliveira Claacuteudia TeixeiraPaula Barata Dias (Coords)

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Tiacutetulo bull Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas ContemporacircneasVol I Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e RomaCoordenaccedilatildeo bull Francisco de Oliveira Claacuteudia Teixeira Paula Barata Dias

Seacuterie Hvmanitas Svpplementvm

Coordenador Cientiacutefico do plano de ediccedilatildeo Maria do Ceacuteu Fialho

Conselho EditorialJoseacute Ribeiro FerreiraMaria de Faacutetima Silva

Director Teacutecnico Delfim Leatildeo

Francisco de Oliveira Nair Castro Soares

EdiccedilatildeoImprensa da Universidade de CoimbraURL httpwwwucptimprensa_ucE-mail imprensaucptVendas online httpwwwlivrariadaimprensacom

Coordenaccedilatildeo editorialImprensa da Universidade de Coimbra

Concepccedilatildeo graacutefica amp PaginaccedilatildeoRodolfo Lopes

Preacute-ImpressatildeoImprensa da Universidade de Coimbra

Impressatildeo e Acabamento wwwartipolnet

ISBN978-989-26-0282-0

ISBN Digital978-989-26-0293-6

Depoacutesito LegaL

34698312

1ordf eDiccedilatildeo CECH APEC bull 20092ordf eDiccedilatildeo IUC bull 2012

copy Julho 2012 Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis (httpclassicadigitaliaucpt)Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra

Reservados todos os direitos Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial por qualquer meio em papel ou em ediccedilatildeo electroacutenica sem autorizaccedilatildeo expressa dos titulares dos direitos Eacute desde jaacute excepcionada a utilizaccedilatildeo em circuitos acadeacutemicos fechados para apoio a leccionaccedilatildeo ou extensatildeo cultural por via de e-learning

Todos os volumes desta seacuterie satildeo sujeitos a arbitragem cientiacutefica independente

Obra realizada no acircmbito das actividades da UIampDCentro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

DOIhttpdxdoiorg1014195978-989-721-069-3

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Nota de apreseNtaccedilatildeo

A Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos - APEC optou haacute alguns anos pela deslocalizaccedilatildeo do seu congresso perioacutedico o qual de Coimbra jaacute peregrinou por Viseu Aveiro Faro Braga Lisboa e Eacutevora

Foi exactamente nesta beliacutessima cidade que se realizou o VII Congresso Internacional da APEC nos dias 10-12 de Abril de 2008

Nesse encontro uma enorme plecirciade de participantes desenvolveu um exerciacutecio de intensa interdisciplinaridade agrave volta do tema Espaccedilos e paisagens Antiguidade Claacutessica e heranccedilas contemporacircneas Foi de cerca de uma centena o nuacutemero de conferencistas presentes um terccedilo dos quais vindos de paiacuteses estrangeiros e eacute para eles que vai um primeiro agradecimento em especial para os que aceitaram o desafio da publicaccedilatildeo das suas comunicaccedilotildees

O segundo agradecimento eacute dirigido agraves entidades que assumiram a co-responsabilidade da organizaccedilatildeo e da ediccedilatildeo

o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade mdash de Coimbra coordenado pela Professora Doutora Maria do Ceacuteu Zambujo Fialho

mdash o Centro de Histoacuteria da Arte e de Investigaccedilatildeo Artiacutestica da Universidade de Eacutevora dirigido pela Prof Doutora Christine Zurbach

o Centro Interdisciplinar de Histoacuteria Culturas e Sociedades mdash da Universidade de Eacutevora coordenado pela Prof Doutora Mafalda Soares da Cunha

mdash o Laboratoacuterio de Arqueologia ldquoPinho Monteirordquo da Universidade de Eacutevora presidido pelo Prof Doutor Jorge de Oliveira

o Departamento de Linguiacutestica e Literaturas da Universidade mdash de Eacutevora

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Os agradecimentos que endereccedilamos a estas entidades satildeo extensivos agraves proacuteprias instituiccedilotildees acolhedoras a Universidade de Coimbra e a Universidade de Eacutevora e nesta cidade tambeacutem ao Governo Civil de Eacutevora agrave Cacircmara Municipal de Eacutevora ao Comando da Unidade de Apoio e ao Banco Millenium BCP cujos responsaacuteveis mobilizaram toda a sua clarividecircncia e generosidade para garantir as melhores condiccedilotildees para a realizaccedilatildeo deste evento cultural e cientiacutefico

Em terceiro lugar manifestamos a nossa viva gratidatildeo agraves entidades financiadoras com particular relevo para o sempre soliacutecito apoio da FCT mdash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e da Fundaccedilatildeo Engenheiro Antoacutenio de Almeida

Mas seria injusto natildeo valorizar tambeacutem a colaboraccedilatildeo da Drordf Carla Braz tanto no secretariado do congresso como na recolha do material dos senhores Dr Rodolfo Lopes e Luiacutes Miguel Barata Dias na preparaccedilatildeo da ediccedilatildeo digital e do Doutor Delfim Leatildeo pelo interesse em promover a divulgaccedilatildeo atraveacutes de Classica Digitalia

Estamos certos de que tais apoios colaboraccedilotildees financiamentos patrociacutenios e responsaacuteveis se sentiratildeo compensados pela qualidade dos escritos dados ao prelo organizados em trecircs volumes com o tiacutetulo geral Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas e os subtiacutetulos correspondentes

vol 1 mdash Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e Romavol 2 mdash Liacutenguas e Literaturas Idade Meacutedia Renascimento Recepccedilatildeovol 3 mdash Histoacuteria e Arqueologia

No seu conjunto tais contributos incluindo os de jovens investigadores ilustram uma grande diversidade de perspectivas uma enorme riqueza e variedade de temas da filologia grega e latina e da tradiccedilatildeo claacutessica agrave literatura comparada da arte e do urbanismo agrave arqueologia e agrave economia da poliacutetica agrave filosofia e desde a Antiguidade ateacute aos nossos dias

Por acreacutescimo ficam assim tambeacutem nobilitados os estudos claacutessicos humaniacutesticos histoacutericos filosoacuteficos e literaacuterios em Portugal com a Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos mdash APEC a cumprir a missatildeo cultural e cientiacutefica consagrada nos seus estatutos em especial no espaccedilo da lusofonia e da Uniatildeo Europeia

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Comissatildeo Cientiacutefica Ana Cardoso de MatosArnaldo Espiacuterito SantoClaacuteudia TeixeiraCristina PimentelFilipe Themudo BarataFrancisco de OliveiraHermiacutenia VilarJorge de OliveiraJoseacute Alberto Gomes MachadoLeonor RochaManuel PatrociacutenioMafalda Soares da CunhaMaria de Faacutetima Sousa e SilvaMaria do Ceacuteu FialhoRicardo SantosTeresa Santos

Coordenaccedilatildeo do VolumeFrancisco de Oliveira

Claacuteudia TeixeiraPaula Barata Dias

Comissatildeo OrganizadoraAndreacute CarneiroArmando MartinsCarla Braz (secretariado)Clara OliveiraClaacuteudia TeixeiraFrancisco de OliveiraJorge de OliveiraLeonor RochaManuel PatrociacutenioPaula Barata DiasRicardo SantosValentina Castro

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33

IacuteNDICE

Vol 1 liacutenguas e literaturas greacutecia e roma

I - Antiguidade Grega

Espaccedilos do Grego e espaccedilos do outro nas Suplicantes de Eacutesquilo 15 Carlos A Martins de Jesus

Paisagens marinhas no Hipoacutelito de Euriacutepides 23 Maria do Ceacuteu Fialho

Tebas a cidade de Dioniso O caso de Heacuteracles de Euriacutepides 29 Sofia Frade

Nas moradas das ninfas o cenaacuterio do drama satiacuterico 35 Tereza Virgiacutenia Ribeiro Barbosa

A aacutegora de Atenas Coraccedilatildeo de uma urbe cosmopolita 43 Maria de Faacutetima Silva

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico 49 Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

Espaccedilos concebidos pela mente 59 Susana Marques Pereira

Quando Patilde e as Ninfas convertiam os simples mortais 65 Ana Seiccedila Carvalho

Turismo e patrimoacutenio na Antiguidade Claacutessica o texto atribuiacutedo a Fiacutelonde Bizacircncio sobre as Sete Maravilhas 73

Luiacutesa de Nazareacute Ferreira

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44

II - Antiguidade Romana

El espacio de la mujer en la medicina romana 83 Joseacute Pablo Barragaacuten Nieto

Espacios para la curacioacuten la domus en la tradicioacuten hipocraacutetico-galeacutenica 89 Mordf Carmen Fernaacutendez Tijero

Espacios literarios para la botaacutenica un jardiacuten de plantas medicinales 97 Alejandro Garciacutea Gonzaacutelez

A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre Metricologia Latina 105 Joatildeo Batista Toledo Prado

Entre vida puacuteblica e luxuria privada A propoacutesito das villae de Luculo 113 Manuel Troumlster

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero 121 Virgiacutenia Soares Pereira

Piacutendaro e Horaacutecio face a face 131 Maria Mafalda de Oliveira Viana

Virgiacutelio e a invenccedilatildeo da paisagem simboacutelica 139 Luiacutes M G Cerqueira

Um repasto na Arcaacutedia as Bucoacutelicas de Virgiacutelio 147 Inecircs de Ornellas e Castro

A poetizaccedilatildeo do espaccedilo nas Bucoacutelicas de Virgiacutelio simbologia da vida humana entre a euforia e a disforia 155

Antoacutenio Moniz

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas Metamorphoses de Oviacutedio 169

Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca Troades e Thyestes 175

Mariana Horta e Costa Matias

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55

Os espaccedilos das Troades de Seacuteneca 183 Paulo Seacutergio Ferreira

Salomatildeo parodiado elementos judaicos na paisagem pompeiana 191 Nuno Simotildees Rodrigues

O Anfiteatro de Ceacutesar a uacutenica obra que a Fama haacute-de celebrar 199 Joana Mestre Costa

De rio lamacento a corrente cristalina a transformaccedilatildeo do espaccedilo e da paisagem em Silvas 43 207

Ana Maria dos Santos Loacuteio

Paisaje fiacutesico y paisaje humano de la Germania seguacuten Ceacutesar y Taacutecito 215 Aurora Loacutepez

A ekphrasis suetoniana da Domus Aurea 223 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Villae y otros espacios de recreo en las Vidas de los Doce Ceacutesares de Suetonio 231 Mordf J Peacuterez Ibaacutentildeez

Roma nas Vidas Paralelas de Plutarco 237 Joaquim Pinheiro

O espaccedilo britacircnico e a paisagem no Agricola de Taacutecito 247 Ana Isabel Fonseca

Espaccedilos da morte na historiografia de Taacutecito 255 Maria Cristina Pimentel

O espaccedilo no conto de Eros e Psique 265 Maria Leonor Santa Baacuterbara

La relacioacuten del hombre con la naturaleza y el medio ambiente 273 Paolo Fedeli

Iacutendice de palavras-chave 283

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5757

num universo marcadamente rural a despeito do paradoxo que isso representa A proacutepria forma de organizaccedilatildeo e administraccedilatildeo que propotildees estaacute recheada de elementos do campo atribuindo agraves aves o direito de reinar sobre os demais seres colocando-as inclusive acima dos deuses O proacuteprio desenho arquitetocircnico imaginado pelo poeta e o estilo de vida que ali se desenvolveraacute nos remetem a uma paisagem campestre Observemos a passagem seguinte (vv 610ss)

ldquoEm primeiro lugar natildeo haveraacute necessidade de lhes construir templos de maacutermore com portas de oiro habitaratildeo nos bosques e sob a folhagem dos carvalhos as aves mais veneraacuteveis teratildeo por templo uma oliveira Natildeo seraacute preciso ir a Delfos ou ao tempo de Amon oferecer sacrifiacutecios De peacute entre os medronheiros e as oliveiras bravas mostrar-lhes-emos um punhado de cevada e de trigo e ali de matildeos estendidas pedir-lhes-emos que espalhem sobre noacutes os seus benefiacutecios E tudo por um punhado de trigordquo

A despeito de como observamos anteriormente o presente trabalho encontrar-se em estaacutegio inicial aferimos algumas conclusotildees parciais Aristoacutefanes euforiza a Chocircra em detrimento da aacutesty O espaccedilo rural aparece no teatro aristofacircnico como o lugar em que o camponecircs deve estar pois na cidade ele eacute infeliz e soacute pensa no dia em que poderaacute retornar agrave sua terra agraves suas atividades o pastoreio a agricultura a caccedila atividades verdadeiramente edificantes para o ser humano Os campos aristofacircnicos satildeo proacutesperos desde que impere a paz a abundacircncia de comida a bebida as festas regadas a cantigas danccedilarinas sexo Pensamos entatildeo que o poeta estaacute mais ligado aos valores veiculados na sociedade ateacute a primeira metade do seacuteculo V aC isto eacute aos valores aristocraacuteticos o que natildeo nos autoriza afirmar que estivesse comprometido politicamente com a aristocracia

Bibliografia

Textos AntigosAristoacutefanes Os Acarnenses Trad Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC 1985_____________ Os Cavaleiros Trad de Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC

1985_____________ As Vespas Trad Junito de Souza Brandatildeo In Teatro Grego

Euriacutepedes e Aristoacutefanes Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo sd_____________ As Nuvens Trad Gilda Maria Reale Starzynski_____________ A Paz Trad Maria de Faacutetima Silva 2ordf ed Coimbra INIC

1989

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico

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5858

Textos ModernosA L Chevitarese (2004) Fronteiras internas Atenienses no Periacuteodo Claacutessico

(Re)Definindo Conceitos e Propondo instrumentais Teoacutericos de Anaacutelise PHOIcircNIX Rio de Janeiro Mauad

__________ (2000) O Espaccedilo Rural da Polis Grega O Caso Ateniense no Periacuteodo Claacutessico Rio de Janeiro

V Ehrenberg (1951) The People of Aristophanes A Sociology of Attic Comedy 2ordf ed Oxford Basil Blackwell

D M Macdoweell (1996) Aristophanes and Athen ndash Na introduction to the Plays New York Oxford University Press

L O de Magalhatildees (2005) A Cidade Grega e os Modos urbanos da poliacutetica In M M de Carvalho As Cidades no Tempo Franca UNESP Satildeo Paulo Olho DacuteAacutegua

L O de Magalhatildees (1996) Curtumeiros e Salsicheiros ndash A Representaccedilatildeo Cocircmica da Demagogia em Cavaleiros de Aristoacutefanes Dissertaccedilatildeo de Mestrado Satildeo Paulo USP

Mordf F Sousa e Silva Poliacuteticos e Mulheres na Comeacutedia Grega Disponiacutevel lerletrasupptuploadsficheiros2537pdf

J P Vernant (1986) As Origens do Pensamento Grego Satildeo Paulo DifelA L B Vieira (2000) Os Camponeses e a Phisis Heacutelade 1 (2)__________ (2002) Polis Phisis e Chora o quinto seacuteculo ateniense In Neide

(org) Linguagens e Formas de Poder na Antiguidade Rio de Janeiro Mauad

Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

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5959

ESPAccedilOS CONCEBIDOS PELA MENTE

Susana Marques Pereirauniversidade de Coimbra

AbstractlsquoIf I could review in dreams my fatherly house and the cityhelliprsquo (E iT 452 sq) cries out the

chorus of the Greek captives in Euripidesrsquo iphigenia among the Tauris The transposition of the physical real space to the world of dreams and visions waking

visions ie to a psychological subjective space allows us illustrate both the cares and longings of figures from the Homeric epics or of the Greek tragedies (cf Od 19581 2179 E iT 452 ss E HF 943 ss) As well as revealing symbolically way premonitory elements related to the human faith (cf E iT 42 ss) or still in a metaphoric language satirize the politiciansrsquo behaviour during Aristophanesrsquo time in pieces written by the comedian (cf V 31 ss)

The real spaces to which the dreams and visions point to contemplate the generic references to the city the reference to a place particularly associated to power the royal palace such as Ithaca or before the one of Argos and the amusing description of the public places of the polis

This study is intended to consider from a literary perspective the motives and the consequences of this connection between the physical and the psychological space taking into consideration the context in which the afore mentioned examples occur as well as the time in which they take placeKeywords illusion physical space psychological space realityPalavras-chave espaccedilo fiacutesico espaccedilo psicoloacutegico ilusatildeo realidade

lsquoSe eu pudesse rever em sonhos a casa e a cidade paternahelliprsquo(E iT 452 s) desabafa o coro de cativas gregas da ifigeacutenia entre os Tauros euripidiana A manifestaccedilatildeo nostaacutelgica das jovens que serviam Ifigeacutenia sacerdotisa de Aacutertemis na longiacutenqua Taacuteuride resulta de uma prolongada separaccedilatildeo da paacutetria heleacutenica que haviam sido constrangidas a abandonar No sonho as cativas encontram a capacidade de recuperar um local de fruiccedilatildeo existencial vivenciado no passado circunstacircncia sugestiva da alteridade espacial implicada na criaccedilatildeo da utopia topograficamente representada O desejo expresso pelo coro evidencia como a transposiccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico para o espaccedilo psicoloacutegico eacute capaz de aliviar anguacutestias pessoais natildeo obstante a consistecircncia fraacutegil da realidade entrevista Ao caraacutecter deacutebil - e breve - da visatildeo sobrepotildee-se a consolaccedilatildeo de ter novamente diante dos olhos a imagem cara da paacutetria amada o sonho permite um ansiado esvanecimento da separaccedilatildeo espacial efectiva provocada pelo doloroso exiacutelio assumindo-se claramente como um meio de evasatildeo propiciador de

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6060

Susana Marques Pereira

uma satisfaccedilatildeo passageira como um veiacuteculo de esperanccedila Felicidade e dor inscrevem-se assim em lugares distintos para as jovens gregas respectivamente a Heacutelade e a Taacuteuride o antes e o agora A menccedilatildeo especiacutefica agrave casa de outrora tecto protector porto de abrigo e agrave cidade paterna local de criaccedilatildeo de laccedilos afectivos eacute sugestiva do desamparo a que se sentem votadas num espaccedilo em que se vecircem privadas da seguranccedila e do saudoso aconchego familiares

O sonho como meio de tornar presente um local grato ao receptor eacute jaacute referido por Peneacutelope na Odisseia de modo reiterado (cf Od 19 581 21 79) decidida por fim a deixar o lar e a conceder a matildeo a um dos pretendentes que haacute longos anos a instigavam a casar de novo a rainha de Iacutetaca afirma que atraveacutes de experiecircncias sonhadas poderaacute recordar lsquouma casa bela cheia de riquezasrsquo1 A deslocaccedilatildeo suscitada por um novo casamento que se afigura necessaacuterio realizar incita-a a prolongar no imaginaacuterio um passado que deseja que continue a existir O palaacutecio real de Iacutetaca afigura-se para a rainha como o elemento ideal de intersecccedilatildeo de espaccedilos e tempos distintos Curiosamente poreacutem ela natildeo o destaca enquanto local de felicidade conjugal mas refere-se antes agrave sua beleza e aos bens que possui valorizando a simbologia a que por tradiccedilatildeo estaacute associado i e ao poder A tal realce natildeo eacute por certo alheio o facto de devido agrave prolongada ausecircncia de Ulisses caberem a Peneacutelope competecircncias como salvaguarda de uma soberania que devia manter

Para a rainha de Iacutetaca como para o coro de cativas da ifigeacutenia entre os Tauros a involuntaacuteria mudanccedila espacial iminente e efectiva respectivamente corresponde a uma indesejada alteraccedilatildeo de condiccedilatildeo que o recurso agrave visatildeo sonhada permite de algum modo escamotear ao facultar-lhes a apropriaccedilatildeo momentacircnea de uma outra realidade conhecida e agradaacutevel Em qualquer um dos casos daacute-se relevo ao caraacutecter voluntaacuterio do sonho humano e em simultacircneo ao seu efeito terapecircutico

O espaccedilo percepcionado por Heacuteracles na peccedila homoacutenima de Euriacutepides revela motivos e consequecircncias bem distintos das situaccedilotildees antes descritas Na verdade enquanto a esposa de Ulisses e as jovens gregas encontram no espaccedilo da memoacuteria uma forma de atenuar os cuidados que as consomem e de satisfazer os seus desejos a deslocaccedilatildeo fictiacutecia no espaccedilo do filho de Alcmena converte-se na causa da sua desgraccedila pessoal Saliente-se poreacutem que se a alusatildeo das cativas e de Peneacutelope agraves experiecircncias oniacutericas espelha o tipo de sonho induzido e preparado como uma terapia para o proacuteprio sonhador as visotildees de Heacuteracles satildeo propositadamente forjadas pelo mundo divino como um meio de puniccedilatildeo do receptor (cf E HF 822 ss)2 De facto a compreensatildeo deturpada da realidade envolvente durante um acesso de loucura despoletado por intervenccedilatildeo de divindades nega a time devida ao ilustre heroacutei instigando-o a exibir uma violecircncia assassina num cenaacuterio por ele apreendido como outro o palaacutecio de Heacuteracles em Tebas eacute por malogrados momentos identificado com o

1 F Lourenccedilo 620052 De acordo com as palavras de Iacuteris e de Lissa divindades que surgem em cena de forma ater-

rorizadora sobre o palaacutecio de Tebas eacute a fuacuteria de Hera pelos amores furtivos de Zeus com Alcmena a responsaacutevel pelo deliacuterio de Heacuteracles (cf HF 825 ss)

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

Susana Marques Pereira

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

Poemas HomeacutericosG S Kirk (ed) M Edwards (1991) The iliad a commentary vol V

CambridgeG S Kirk (ed) N Richardson (1993) The iliad a commentary vol VI

CambridgeF Lourenccedilo (22005) Homero iliacuteada Lisboa

EuriacutepidesHeraclesS Barlow (1996) Euripides Heracles WarminsterG Bond (1981) Euripides Heracles Oxford

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Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

G Devereux (1976) Dreams in Greek Tragedy an ethno-psycho-analytical study Oxford

E R Dodds (2004) The Greeks and the Irrational BerkeleyA H M Kessels (1978) Studies on the Dream in Greek Literature UtrechtR G A van Lieshout (1980) Greeks on Dreams Utrecht

Susana Marques Pereira

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 3: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

Espaccedilos e PaisagensAntiguidade Claacutessica e Heranccedilas ContemporacircneasVol I Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e Roma

Francisco de Oliveira Claacuteudia TeixeiraPaula Barata Dias (Coords)

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Tiacutetulo bull Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas ContemporacircneasVol I Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e RomaCoordenaccedilatildeo bull Francisco de Oliveira Claacuteudia Teixeira Paula Barata Dias

Seacuterie Hvmanitas Svpplementvm

Coordenador Cientiacutefico do plano de ediccedilatildeo Maria do Ceacuteu Fialho

Conselho EditorialJoseacute Ribeiro FerreiraMaria de Faacutetima Silva

Director Teacutecnico Delfim Leatildeo

Francisco de Oliveira Nair Castro Soares

EdiccedilatildeoImprensa da Universidade de CoimbraURL httpwwwucptimprensa_ucE-mail imprensaucptVendas online httpwwwlivrariadaimprensacom

Coordenaccedilatildeo editorialImprensa da Universidade de Coimbra

Concepccedilatildeo graacutefica amp PaginaccedilatildeoRodolfo Lopes

Preacute-ImpressatildeoImprensa da Universidade de Coimbra

Impressatildeo e Acabamento wwwartipolnet

ISBN978-989-26-0282-0

ISBN Digital978-989-26-0293-6

Depoacutesito LegaL

34698312

1ordf eDiccedilatildeo CECH APEC bull 20092ordf eDiccedilatildeo IUC bull 2012

copy Julho 2012 Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis (httpclassicadigitaliaucpt)Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra

Reservados todos os direitos Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial por qualquer meio em papel ou em ediccedilatildeo electroacutenica sem autorizaccedilatildeo expressa dos titulares dos direitos Eacute desde jaacute excepcionada a utilizaccedilatildeo em circuitos acadeacutemicos fechados para apoio a leccionaccedilatildeo ou extensatildeo cultural por via de e-learning

Todos os volumes desta seacuterie satildeo sujeitos a arbitragem cientiacutefica independente

Obra realizada no acircmbito das actividades da UIampDCentro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

DOIhttpdxdoiorg1014195978-989-721-069-3

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Nota de apreseNtaccedilatildeo

A Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos - APEC optou haacute alguns anos pela deslocalizaccedilatildeo do seu congresso perioacutedico o qual de Coimbra jaacute peregrinou por Viseu Aveiro Faro Braga Lisboa e Eacutevora

Foi exactamente nesta beliacutessima cidade que se realizou o VII Congresso Internacional da APEC nos dias 10-12 de Abril de 2008

Nesse encontro uma enorme plecirciade de participantes desenvolveu um exerciacutecio de intensa interdisciplinaridade agrave volta do tema Espaccedilos e paisagens Antiguidade Claacutessica e heranccedilas contemporacircneas Foi de cerca de uma centena o nuacutemero de conferencistas presentes um terccedilo dos quais vindos de paiacuteses estrangeiros e eacute para eles que vai um primeiro agradecimento em especial para os que aceitaram o desafio da publicaccedilatildeo das suas comunicaccedilotildees

O segundo agradecimento eacute dirigido agraves entidades que assumiram a co-responsabilidade da organizaccedilatildeo e da ediccedilatildeo

o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade mdash de Coimbra coordenado pela Professora Doutora Maria do Ceacuteu Zambujo Fialho

mdash o Centro de Histoacuteria da Arte e de Investigaccedilatildeo Artiacutestica da Universidade de Eacutevora dirigido pela Prof Doutora Christine Zurbach

o Centro Interdisciplinar de Histoacuteria Culturas e Sociedades mdash da Universidade de Eacutevora coordenado pela Prof Doutora Mafalda Soares da Cunha

mdash o Laboratoacuterio de Arqueologia ldquoPinho Monteirordquo da Universidade de Eacutevora presidido pelo Prof Doutor Jorge de Oliveira

o Departamento de Linguiacutestica e Literaturas da Universidade mdash de Eacutevora

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Os agradecimentos que endereccedilamos a estas entidades satildeo extensivos agraves proacuteprias instituiccedilotildees acolhedoras a Universidade de Coimbra e a Universidade de Eacutevora e nesta cidade tambeacutem ao Governo Civil de Eacutevora agrave Cacircmara Municipal de Eacutevora ao Comando da Unidade de Apoio e ao Banco Millenium BCP cujos responsaacuteveis mobilizaram toda a sua clarividecircncia e generosidade para garantir as melhores condiccedilotildees para a realizaccedilatildeo deste evento cultural e cientiacutefico

Em terceiro lugar manifestamos a nossa viva gratidatildeo agraves entidades financiadoras com particular relevo para o sempre soliacutecito apoio da FCT mdash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e da Fundaccedilatildeo Engenheiro Antoacutenio de Almeida

Mas seria injusto natildeo valorizar tambeacutem a colaboraccedilatildeo da Drordf Carla Braz tanto no secretariado do congresso como na recolha do material dos senhores Dr Rodolfo Lopes e Luiacutes Miguel Barata Dias na preparaccedilatildeo da ediccedilatildeo digital e do Doutor Delfim Leatildeo pelo interesse em promover a divulgaccedilatildeo atraveacutes de Classica Digitalia

Estamos certos de que tais apoios colaboraccedilotildees financiamentos patrociacutenios e responsaacuteveis se sentiratildeo compensados pela qualidade dos escritos dados ao prelo organizados em trecircs volumes com o tiacutetulo geral Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas e os subtiacutetulos correspondentes

vol 1 mdash Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e Romavol 2 mdash Liacutenguas e Literaturas Idade Meacutedia Renascimento Recepccedilatildeovol 3 mdash Histoacuteria e Arqueologia

No seu conjunto tais contributos incluindo os de jovens investigadores ilustram uma grande diversidade de perspectivas uma enorme riqueza e variedade de temas da filologia grega e latina e da tradiccedilatildeo claacutessica agrave literatura comparada da arte e do urbanismo agrave arqueologia e agrave economia da poliacutetica agrave filosofia e desde a Antiguidade ateacute aos nossos dias

Por acreacutescimo ficam assim tambeacutem nobilitados os estudos claacutessicos humaniacutesticos histoacutericos filosoacuteficos e literaacuterios em Portugal com a Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos mdash APEC a cumprir a missatildeo cultural e cientiacutefica consagrada nos seus estatutos em especial no espaccedilo da lusofonia e da Uniatildeo Europeia

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Comissatildeo Cientiacutefica Ana Cardoso de MatosArnaldo Espiacuterito SantoClaacuteudia TeixeiraCristina PimentelFilipe Themudo BarataFrancisco de OliveiraHermiacutenia VilarJorge de OliveiraJoseacute Alberto Gomes MachadoLeonor RochaManuel PatrociacutenioMafalda Soares da CunhaMaria de Faacutetima Sousa e SilvaMaria do Ceacuteu FialhoRicardo SantosTeresa Santos

Coordenaccedilatildeo do VolumeFrancisco de Oliveira

Claacuteudia TeixeiraPaula Barata Dias

Comissatildeo OrganizadoraAndreacute CarneiroArmando MartinsCarla Braz (secretariado)Clara OliveiraClaacuteudia TeixeiraFrancisco de OliveiraJorge de OliveiraLeonor RochaManuel PatrociacutenioPaula Barata DiasRicardo SantosValentina Castro

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33

IacuteNDICE

Vol 1 liacutenguas e literaturas greacutecia e roma

I - Antiguidade Grega

Espaccedilos do Grego e espaccedilos do outro nas Suplicantes de Eacutesquilo 15 Carlos A Martins de Jesus

Paisagens marinhas no Hipoacutelito de Euriacutepides 23 Maria do Ceacuteu Fialho

Tebas a cidade de Dioniso O caso de Heacuteracles de Euriacutepides 29 Sofia Frade

Nas moradas das ninfas o cenaacuterio do drama satiacuterico 35 Tereza Virgiacutenia Ribeiro Barbosa

A aacutegora de Atenas Coraccedilatildeo de uma urbe cosmopolita 43 Maria de Faacutetima Silva

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico 49 Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

Espaccedilos concebidos pela mente 59 Susana Marques Pereira

Quando Patilde e as Ninfas convertiam os simples mortais 65 Ana Seiccedila Carvalho

Turismo e patrimoacutenio na Antiguidade Claacutessica o texto atribuiacutedo a Fiacutelonde Bizacircncio sobre as Sete Maravilhas 73

Luiacutesa de Nazareacute Ferreira

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44

II - Antiguidade Romana

El espacio de la mujer en la medicina romana 83 Joseacute Pablo Barragaacuten Nieto

Espacios para la curacioacuten la domus en la tradicioacuten hipocraacutetico-galeacutenica 89 Mordf Carmen Fernaacutendez Tijero

Espacios literarios para la botaacutenica un jardiacuten de plantas medicinales 97 Alejandro Garciacutea Gonzaacutelez

A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre Metricologia Latina 105 Joatildeo Batista Toledo Prado

Entre vida puacuteblica e luxuria privada A propoacutesito das villae de Luculo 113 Manuel Troumlster

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero 121 Virgiacutenia Soares Pereira

Piacutendaro e Horaacutecio face a face 131 Maria Mafalda de Oliveira Viana

Virgiacutelio e a invenccedilatildeo da paisagem simboacutelica 139 Luiacutes M G Cerqueira

Um repasto na Arcaacutedia as Bucoacutelicas de Virgiacutelio 147 Inecircs de Ornellas e Castro

A poetizaccedilatildeo do espaccedilo nas Bucoacutelicas de Virgiacutelio simbologia da vida humana entre a euforia e a disforia 155

Antoacutenio Moniz

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas Metamorphoses de Oviacutedio 169

Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca Troades e Thyestes 175

Mariana Horta e Costa Matias

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Os espaccedilos das Troades de Seacuteneca 183 Paulo Seacutergio Ferreira

Salomatildeo parodiado elementos judaicos na paisagem pompeiana 191 Nuno Simotildees Rodrigues

O Anfiteatro de Ceacutesar a uacutenica obra que a Fama haacute-de celebrar 199 Joana Mestre Costa

De rio lamacento a corrente cristalina a transformaccedilatildeo do espaccedilo e da paisagem em Silvas 43 207

Ana Maria dos Santos Loacuteio

Paisaje fiacutesico y paisaje humano de la Germania seguacuten Ceacutesar y Taacutecito 215 Aurora Loacutepez

A ekphrasis suetoniana da Domus Aurea 223 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Villae y otros espacios de recreo en las Vidas de los Doce Ceacutesares de Suetonio 231 Mordf J Peacuterez Ibaacutentildeez

Roma nas Vidas Paralelas de Plutarco 237 Joaquim Pinheiro

O espaccedilo britacircnico e a paisagem no Agricola de Taacutecito 247 Ana Isabel Fonseca

Espaccedilos da morte na historiografia de Taacutecito 255 Maria Cristina Pimentel

O espaccedilo no conto de Eros e Psique 265 Maria Leonor Santa Baacuterbara

La relacioacuten del hombre con la naturaleza y el medio ambiente 273 Paolo Fedeli

Iacutendice de palavras-chave 283

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num universo marcadamente rural a despeito do paradoxo que isso representa A proacutepria forma de organizaccedilatildeo e administraccedilatildeo que propotildees estaacute recheada de elementos do campo atribuindo agraves aves o direito de reinar sobre os demais seres colocando-as inclusive acima dos deuses O proacuteprio desenho arquitetocircnico imaginado pelo poeta e o estilo de vida que ali se desenvolveraacute nos remetem a uma paisagem campestre Observemos a passagem seguinte (vv 610ss)

ldquoEm primeiro lugar natildeo haveraacute necessidade de lhes construir templos de maacutermore com portas de oiro habitaratildeo nos bosques e sob a folhagem dos carvalhos as aves mais veneraacuteveis teratildeo por templo uma oliveira Natildeo seraacute preciso ir a Delfos ou ao tempo de Amon oferecer sacrifiacutecios De peacute entre os medronheiros e as oliveiras bravas mostrar-lhes-emos um punhado de cevada e de trigo e ali de matildeos estendidas pedir-lhes-emos que espalhem sobre noacutes os seus benefiacutecios E tudo por um punhado de trigordquo

A despeito de como observamos anteriormente o presente trabalho encontrar-se em estaacutegio inicial aferimos algumas conclusotildees parciais Aristoacutefanes euforiza a Chocircra em detrimento da aacutesty O espaccedilo rural aparece no teatro aristofacircnico como o lugar em que o camponecircs deve estar pois na cidade ele eacute infeliz e soacute pensa no dia em que poderaacute retornar agrave sua terra agraves suas atividades o pastoreio a agricultura a caccedila atividades verdadeiramente edificantes para o ser humano Os campos aristofacircnicos satildeo proacutesperos desde que impere a paz a abundacircncia de comida a bebida as festas regadas a cantigas danccedilarinas sexo Pensamos entatildeo que o poeta estaacute mais ligado aos valores veiculados na sociedade ateacute a primeira metade do seacuteculo V aC isto eacute aos valores aristocraacuteticos o que natildeo nos autoriza afirmar que estivesse comprometido politicamente com a aristocracia

Bibliografia

Textos AntigosAristoacutefanes Os Acarnenses Trad Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC 1985_____________ Os Cavaleiros Trad de Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC

1985_____________ As Vespas Trad Junito de Souza Brandatildeo In Teatro Grego

Euriacutepedes e Aristoacutefanes Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo sd_____________ As Nuvens Trad Gilda Maria Reale Starzynski_____________ A Paz Trad Maria de Faacutetima Silva 2ordf ed Coimbra INIC

1989

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico

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5858

Textos ModernosA L Chevitarese (2004) Fronteiras internas Atenienses no Periacuteodo Claacutessico

(Re)Definindo Conceitos e Propondo instrumentais Teoacutericos de Anaacutelise PHOIcircNIX Rio de Janeiro Mauad

__________ (2000) O Espaccedilo Rural da Polis Grega O Caso Ateniense no Periacuteodo Claacutessico Rio de Janeiro

V Ehrenberg (1951) The People of Aristophanes A Sociology of Attic Comedy 2ordf ed Oxford Basil Blackwell

D M Macdoweell (1996) Aristophanes and Athen ndash Na introduction to the Plays New York Oxford University Press

L O de Magalhatildees (2005) A Cidade Grega e os Modos urbanos da poliacutetica In M M de Carvalho As Cidades no Tempo Franca UNESP Satildeo Paulo Olho DacuteAacutegua

L O de Magalhatildees (1996) Curtumeiros e Salsicheiros ndash A Representaccedilatildeo Cocircmica da Demagogia em Cavaleiros de Aristoacutefanes Dissertaccedilatildeo de Mestrado Satildeo Paulo USP

Mordf F Sousa e Silva Poliacuteticos e Mulheres na Comeacutedia Grega Disponiacutevel lerletrasupptuploadsficheiros2537pdf

J P Vernant (1986) As Origens do Pensamento Grego Satildeo Paulo DifelA L B Vieira (2000) Os Camponeses e a Phisis Heacutelade 1 (2)__________ (2002) Polis Phisis e Chora o quinto seacuteculo ateniense In Neide

(org) Linguagens e Formas de Poder na Antiguidade Rio de Janeiro Mauad

Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

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ESPAccedilOS CONCEBIDOS PELA MENTE

Susana Marques Pereirauniversidade de Coimbra

AbstractlsquoIf I could review in dreams my fatherly house and the cityhelliprsquo (E iT 452 sq) cries out the

chorus of the Greek captives in Euripidesrsquo iphigenia among the Tauris The transposition of the physical real space to the world of dreams and visions waking

visions ie to a psychological subjective space allows us illustrate both the cares and longings of figures from the Homeric epics or of the Greek tragedies (cf Od 19581 2179 E iT 452 ss E HF 943 ss) As well as revealing symbolically way premonitory elements related to the human faith (cf E iT 42 ss) or still in a metaphoric language satirize the politiciansrsquo behaviour during Aristophanesrsquo time in pieces written by the comedian (cf V 31 ss)

The real spaces to which the dreams and visions point to contemplate the generic references to the city the reference to a place particularly associated to power the royal palace such as Ithaca or before the one of Argos and the amusing description of the public places of the polis

This study is intended to consider from a literary perspective the motives and the consequences of this connection between the physical and the psychological space taking into consideration the context in which the afore mentioned examples occur as well as the time in which they take placeKeywords illusion physical space psychological space realityPalavras-chave espaccedilo fiacutesico espaccedilo psicoloacutegico ilusatildeo realidade

lsquoSe eu pudesse rever em sonhos a casa e a cidade paternahelliprsquo(E iT 452 s) desabafa o coro de cativas gregas da ifigeacutenia entre os Tauros euripidiana A manifestaccedilatildeo nostaacutelgica das jovens que serviam Ifigeacutenia sacerdotisa de Aacutertemis na longiacutenqua Taacuteuride resulta de uma prolongada separaccedilatildeo da paacutetria heleacutenica que haviam sido constrangidas a abandonar No sonho as cativas encontram a capacidade de recuperar um local de fruiccedilatildeo existencial vivenciado no passado circunstacircncia sugestiva da alteridade espacial implicada na criaccedilatildeo da utopia topograficamente representada O desejo expresso pelo coro evidencia como a transposiccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico para o espaccedilo psicoloacutegico eacute capaz de aliviar anguacutestias pessoais natildeo obstante a consistecircncia fraacutegil da realidade entrevista Ao caraacutecter deacutebil - e breve - da visatildeo sobrepotildee-se a consolaccedilatildeo de ter novamente diante dos olhos a imagem cara da paacutetria amada o sonho permite um ansiado esvanecimento da separaccedilatildeo espacial efectiva provocada pelo doloroso exiacutelio assumindo-se claramente como um meio de evasatildeo propiciador de

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Susana Marques Pereira

uma satisfaccedilatildeo passageira como um veiacuteculo de esperanccedila Felicidade e dor inscrevem-se assim em lugares distintos para as jovens gregas respectivamente a Heacutelade e a Taacuteuride o antes e o agora A menccedilatildeo especiacutefica agrave casa de outrora tecto protector porto de abrigo e agrave cidade paterna local de criaccedilatildeo de laccedilos afectivos eacute sugestiva do desamparo a que se sentem votadas num espaccedilo em que se vecircem privadas da seguranccedila e do saudoso aconchego familiares

O sonho como meio de tornar presente um local grato ao receptor eacute jaacute referido por Peneacutelope na Odisseia de modo reiterado (cf Od 19 581 21 79) decidida por fim a deixar o lar e a conceder a matildeo a um dos pretendentes que haacute longos anos a instigavam a casar de novo a rainha de Iacutetaca afirma que atraveacutes de experiecircncias sonhadas poderaacute recordar lsquouma casa bela cheia de riquezasrsquo1 A deslocaccedilatildeo suscitada por um novo casamento que se afigura necessaacuterio realizar incita-a a prolongar no imaginaacuterio um passado que deseja que continue a existir O palaacutecio real de Iacutetaca afigura-se para a rainha como o elemento ideal de intersecccedilatildeo de espaccedilos e tempos distintos Curiosamente poreacutem ela natildeo o destaca enquanto local de felicidade conjugal mas refere-se antes agrave sua beleza e aos bens que possui valorizando a simbologia a que por tradiccedilatildeo estaacute associado i e ao poder A tal realce natildeo eacute por certo alheio o facto de devido agrave prolongada ausecircncia de Ulisses caberem a Peneacutelope competecircncias como salvaguarda de uma soberania que devia manter

Para a rainha de Iacutetaca como para o coro de cativas da ifigeacutenia entre os Tauros a involuntaacuteria mudanccedila espacial iminente e efectiva respectivamente corresponde a uma indesejada alteraccedilatildeo de condiccedilatildeo que o recurso agrave visatildeo sonhada permite de algum modo escamotear ao facultar-lhes a apropriaccedilatildeo momentacircnea de uma outra realidade conhecida e agradaacutevel Em qualquer um dos casos daacute-se relevo ao caraacutecter voluntaacuterio do sonho humano e em simultacircneo ao seu efeito terapecircutico

O espaccedilo percepcionado por Heacuteracles na peccedila homoacutenima de Euriacutepides revela motivos e consequecircncias bem distintos das situaccedilotildees antes descritas Na verdade enquanto a esposa de Ulisses e as jovens gregas encontram no espaccedilo da memoacuteria uma forma de atenuar os cuidados que as consomem e de satisfazer os seus desejos a deslocaccedilatildeo fictiacutecia no espaccedilo do filho de Alcmena converte-se na causa da sua desgraccedila pessoal Saliente-se poreacutem que se a alusatildeo das cativas e de Peneacutelope agraves experiecircncias oniacutericas espelha o tipo de sonho induzido e preparado como uma terapia para o proacuteprio sonhador as visotildees de Heacuteracles satildeo propositadamente forjadas pelo mundo divino como um meio de puniccedilatildeo do receptor (cf E HF 822 ss)2 De facto a compreensatildeo deturpada da realidade envolvente durante um acesso de loucura despoletado por intervenccedilatildeo de divindades nega a time devida ao ilustre heroacutei instigando-o a exibir uma violecircncia assassina num cenaacuterio por ele apreendido como outro o palaacutecio de Heacuteracles em Tebas eacute por malogrados momentos identificado com o

1 F Lourenccedilo 620052 De acordo com as palavras de Iacuteris e de Lissa divindades que surgem em cena de forma ater-

rorizadora sobre o palaacutecio de Tebas eacute a fuacuteria de Hera pelos amores furtivos de Zeus com Alcmena a responsaacutevel pelo deliacuterio de Heacuteracles (cf HF 825 ss)

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

Espaccedilos concebidos pela mente

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

Susana Marques Pereira

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

Poemas HomeacutericosG S Kirk (ed) M Edwards (1991) The iliad a commentary vol V

CambridgeG S Kirk (ed) N Richardson (1993) The iliad a commentary vol VI

CambridgeF Lourenccedilo (22005) Homero iliacuteada Lisboa

EuriacutepidesHeraclesS Barlow (1996) Euripides Heracles WarminsterG Bond (1981) Euripides Heracles Oxford

Espaccedilos concebidos pela mente

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Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

G Devereux (1976) Dreams in Greek Tragedy an ethno-psycho-analytical study Oxford

E R Dodds (2004) The Greeks and the Irrational BerkeleyA H M Kessels (1978) Studies on the Dream in Greek Literature UtrechtR G A van Lieshout (1980) Greeks on Dreams Utrecht

Susana Marques Pereira

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

1 FontesOviacutedio Les Meacutetamorphoses (trad Gustave Lafaye) Paris Belles Lettres 1985-

1989_______ Metamorfosis (trad Ruben Bonifaz Nuntildeo) Mexico Universidad

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EdiOuro 1983_______ As Metamorfoses i - V (trad Antocircnio Feliciano de Castilho) Rio de

Janeiro Simotildees 1959_______ Extraits de Meacutetamorphoses (ed H Martin) Paris Hachette 1930_______ Metamorphoses i (ed A G Lee) Wauconda Bolchazy-Carducci

1988_______ Metamorphoses iii (ed A A Henderson) Bristol Bristol Classical

1981

2 EstudosA Crabbe (1981) ldquoStructure and Content in Ovidrsquos lsquoMetamorphosesrsquordquo in

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K S Myers (1994) Ovidrsquos causes Cosmogony and aetiology in the lsquoMetamorphosesrsquo Ann Arbor Univ of Michigan Press

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of Carolina PressS Viarre (1976) Ovide Essai de lecture poeacutetique Paris Belles Lettres

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 4: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

Tiacutetulo bull Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas ContemporacircneasVol I Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e RomaCoordenaccedilatildeo bull Francisco de Oliveira Claacuteudia Teixeira Paula Barata Dias

Seacuterie Hvmanitas Svpplementvm

Coordenador Cientiacutefico do plano de ediccedilatildeo Maria do Ceacuteu Fialho

Conselho EditorialJoseacute Ribeiro FerreiraMaria de Faacutetima Silva

Director Teacutecnico Delfim Leatildeo

Francisco de Oliveira Nair Castro Soares

EdiccedilatildeoImprensa da Universidade de CoimbraURL httpwwwucptimprensa_ucE-mail imprensaucptVendas online httpwwwlivrariadaimprensacom

Coordenaccedilatildeo editorialImprensa da Universidade de Coimbra

Concepccedilatildeo graacutefica amp PaginaccedilatildeoRodolfo Lopes

Preacute-ImpressatildeoImprensa da Universidade de Coimbra

Impressatildeo e Acabamento wwwartipolnet

ISBN978-989-26-0282-0

ISBN Digital978-989-26-0293-6

Depoacutesito LegaL

34698312

1ordf eDiccedilatildeo CECH APEC bull 20092ordf eDiccedilatildeo IUC bull 2012

copy Julho 2012 Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis (httpclassicadigitaliaucpt)Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra

Reservados todos os direitos Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial por qualquer meio em papel ou em ediccedilatildeo electroacutenica sem autorizaccedilatildeo expressa dos titulares dos direitos Eacute desde jaacute excepcionada a utilizaccedilatildeo em circuitos acadeacutemicos fechados para apoio a leccionaccedilatildeo ou extensatildeo cultural por via de e-learning

Todos os volumes desta seacuterie satildeo sujeitos a arbitragem cientiacutefica independente

Obra realizada no acircmbito das actividades da UIampDCentro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

DOIhttpdxdoiorg1014195978-989-721-069-3

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Nota de apreseNtaccedilatildeo

A Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos - APEC optou haacute alguns anos pela deslocalizaccedilatildeo do seu congresso perioacutedico o qual de Coimbra jaacute peregrinou por Viseu Aveiro Faro Braga Lisboa e Eacutevora

Foi exactamente nesta beliacutessima cidade que se realizou o VII Congresso Internacional da APEC nos dias 10-12 de Abril de 2008

Nesse encontro uma enorme plecirciade de participantes desenvolveu um exerciacutecio de intensa interdisciplinaridade agrave volta do tema Espaccedilos e paisagens Antiguidade Claacutessica e heranccedilas contemporacircneas Foi de cerca de uma centena o nuacutemero de conferencistas presentes um terccedilo dos quais vindos de paiacuteses estrangeiros e eacute para eles que vai um primeiro agradecimento em especial para os que aceitaram o desafio da publicaccedilatildeo das suas comunicaccedilotildees

O segundo agradecimento eacute dirigido agraves entidades que assumiram a co-responsabilidade da organizaccedilatildeo e da ediccedilatildeo

o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade mdash de Coimbra coordenado pela Professora Doutora Maria do Ceacuteu Zambujo Fialho

mdash o Centro de Histoacuteria da Arte e de Investigaccedilatildeo Artiacutestica da Universidade de Eacutevora dirigido pela Prof Doutora Christine Zurbach

o Centro Interdisciplinar de Histoacuteria Culturas e Sociedades mdash da Universidade de Eacutevora coordenado pela Prof Doutora Mafalda Soares da Cunha

mdash o Laboratoacuterio de Arqueologia ldquoPinho Monteirordquo da Universidade de Eacutevora presidido pelo Prof Doutor Jorge de Oliveira

o Departamento de Linguiacutestica e Literaturas da Universidade mdash de Eacutevora

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Os agradecimentos que endereccedilamos a estas entidades satildeo extensivos agraves proacuteprias instituiccedilotildees acolhedoras a Universidade de Coimbra e a Universidade de Eacutevora e nesta cidade tambeacutem ao Governo Civil de Eacutevora agrave Cacircmara Municipal de Eacutevora ao Comando da Unidade de Apoio e ao Banco Millenium BCP cujos responsaacuteveis mobilizaram toda a sua clarividecircncia e generosidade para garantir as melhores condiccedilotildees para a realizaccedilatildeo deste evento cultural e cientiacutefico

Em terceiro lugar manifestamos a nossa viva gratidatildeo agraves entidades financiadoras com particular relevo para o sempre soliacutecito apoio da FCT mdash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e da Fundaccedilatildeo Engenheiro Antoacutenio de Almeida

Mas seria injusto natildeo valorizar tambeacutem a colaboraccedilatildeo da Drordf Carla Braz tanto no secretariado do congresso como na recolha do material dos senhores Dr Rodolfo Lopes e Luiacutes Miguel Barata Dias na preparaccedilatildeo da ediccedilatildeo digital e do Doutor Delfim Leatildeo pelo interesse em promover a divulgaccedilatildeo atraveacutes de Classica Digitalia

Estamos certos de que tais apoios colaboraccedilotildees financiamentos patrociacutenios e responsaacuteveis se sentiratildeo compensados pela qualidade dos escritos dados ao prelo organizados em trecircs volumes com o tiacutetulo geral Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas e os subtiacutetulos correspondentes

vol 1 mdash Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e Romavol 2 mdash Liacutenguas e Literaturas Idade Meacutedia Renascimento Recepccedilatildeovol 3 mdash Histoacuteria e Arqueologia

No seu conjunto tais contributos incluindo os de jovens investigadores ilustram uma grande diversidade de perspectivas uma enorme riqueza e variedade de temas da filologia grega e latina e da tradiccedilatildeo claacutessica agrave literatura comparada da arte e do urbanismo agrave arqueologia e agrave economia da poliacutetica agrave filosofia e desde a Antiguidade ateacute aos nossos dias

Por acreacutescimo ficam assim tambeacutem nobilitados os estudos claacutessicos humaniacutesticos histoacutericos filosoacuteficos e literaacuterios em Portugal com a Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos mdash APEC a cumprir a missatildeo cultural e cientiacutefica consagrada nos seus estatutos em especial no espaccedilo da lusofonia e da Uniatildeo Europeia

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Comissatildeo Cientiacutefica Ana Cardoso de MatosArnaldo Espiacuterito SantoClaacuteudia TeixeiraCristina PimentelFilipe Themudo BarataFrancisco de OliveiraHermiacutenia VilarJorge de OliveiraJoseacute Alberto Gomes MachadoLeonor RochaManuel PatrociacutenioMafalda Soares da CunhaMaria de Faacutetima Sousa e SilvaMaria do Ceacuteu FialhoRicardo SantosTeresa Santos

Coordenaccedilatildeo do VolumeFrancisco de Oliveira

Claacuteudia TeixeiraPaula Barata Dias

Comissatildeo OrganizadoraAndreacute CarneiroArmando MartinsCarla Braz (secretariado)Clara OliveiraClaacuteudia TeixeiraFrancisco de OliveiraJorge de OliveiraLeonor RochaManuel PatrociacutenioPaula Barata DiasRicardo SantosValentina Castro

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IacuteNDICE

Vol 1 liacutenguas e literaturas greacutecia e roma

I - Antiguidade Grega

Espaccedilos do Grego e espaccedilos do outro nas Suplicantes de Eacutesquilo 15 Carlos A Martins de Jesus

Paisagens marinhas no Hipoacutelito de Euriacutepides 23 Maria do Ceacuteu Fialho

Tebas a cidade de Dioniso O caso de Heacuteracles de Euriacutepides 29 Sofia Frade

Nas moradas das ninfas o cenaacuterio do drama satiacuterico 35 Tereza Virgiacutenia Ribeiro Barbosa

A aacutegora de Atenas Coraccedilatildeo de uma urbe cosmopolita 43 Maria de Faacutetima Silva

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico 49 Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

Espaccedilos concebidos pela mente 59 Susana Marques Pereira

Quando Patilde e as Ninfas convertiam os simples mortais 65 Ana Seiccedila Carvalho

Turismo e patrimoacutenio na Antiguidade Claacutessica o texto atribuiacutedo a Fiacutelonde Bizacircncio sobre as Sete Maravilhas 73

Luiacutesa de Nazareacute Ferreira

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II - Antiguidade Romana

El espacio de la mujer en la medicina romana 83 Joseacute Pablo Barragaacuten Nieto

Espacios para la curacioacuten la domus en la tradicioacuten hipocraacutetico-galeacutenica 89 Mordf Carmen Fernaacutendez Tijero

Espacios literarios para la botaacutenica un jardiacuten de plantas medicinales 97 Alejandro Garciacutea Gonzaacutelez

A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre Metricologia Latina 105 Joatildeo Batista Toledo Prado

Entre vida puacuteblica e luxuria privada A propoacutesito das villae de Luculo 113 Manuel Troumlster

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero 121 Virgiacutenia Soares Pereira

Piacutendaro e Horaacutecio face a face 131 Maria Mafalda de Oliveira Viana

Virgiacutelio e a invenccedilatildeo da paisagem simboacutelica 139 Luiacutes M G Cerqueira

Um repasto na Arcaacutedia as Bucoacutelicas de Virgiacutelio 147 Inecircs de Ornellas e Castro

A poetizaccedilatildeo do espaccedilo nas Bucoacutelicas de Virgiacutelio simbologia da vida humana entre a euforia e a disforia 155

Antoacutenio Moniz

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas Metamorphoses de Oviacutedio 169

Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca Troades e Thyestes 175

Mariana Horta e Costa Matias

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Os espaccedilos das Troades de Seacuteneca 183 Paulo Seacutergio Ferreira

Salomatildeo parodiado elementos judaicos na paisagem pompeiana 191 Nuno Simotildees Rodrigues

O Anfiteatro de Ceacutesar a uacutenica obra que a Fama haacute-de celebrar 199 Joana Mestre Costa

De rio lamacento a corrente cristalina a transformaccedilatildeo do espaccedilo e da paisagem em Silvas 43 207

Ana Maria dos Santos Loacuteio

Paisaje fiacutesico y paisaje humano de la Germania seguacuten Ceacutesar y Taacutecito 215 Aurora Loacutepez

A ekphrasis suetoniana da Domus Aurea 223 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Villae y otros espacios de recreo en las Vidas de los Doce Ceacutesares de Suetonio 231 Mordf J Peacuterez Ibaacutentildeez

Roma nas Vidas Paralelas de Plutarco 237 Joaquim Pinheiro

O espaccedilo britacircnico e a paisagem no Agricola de Taacutecito 247 Ana Isabel Fonseca

Espaccedilos da morte na historiografia de Taacutecito 255 Maria Cristina Pimentel

O espaccedilo no conto de Eros e Psique 265 Maria Leonor Santa Baacuterbara

La relacioacuten del hombre con la naturaleza y el medio ambiente 273 Paolo Fedeli

Iacutendice de palavras-chave 283

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num universo marcadamente rural a despeito do paradoxo que isso representa A proacutepria forma de organizaccedilatildeo e administraccedilatildeo que propotildees estaacute recheada de elementos do campo atribuindo agraves aves o direito de reinar sobre os demais seres colocando-as inclusive acima dos deuses O proacuteprio desenho arquitetocircnico imaginado pelo poeta e o estilo de vida que ali se desenvolveraacute nos remetem a uma paisagem campestre Observemos a passagem seguinte (vv 610ss)

ldquoEm primeiro lugar natildeo haveraacute necessidade de lhes construir templos de maacutermore com portas de oiro habitaratildeo nos bosques e sob a folhagem dos carvalhos as aves mais veneraacuteveis teratildeo por templo uma oliveira Natildeo seraacute preciso ir a Delfos ou ao tempo de Amon oferecer sacrifiacutecios De peacute entre os medronheiros e as oliveiras bravas mostrar-lhes-emos um punhado de cevada e de trigo e ali de matildeos estendidas pedir-lhes-emos que espalhem sobre noacutes os seus benefiacutecios E tudo por um punhado de trigordquo

A despeito de como observamos anteriormente o presente trabalho encontrar-se em estaacutegio inicial aferimos algumas conclusotildees parciais Aristoacutefanes euforiza a Chocircra em detrimento da aacutesty O espaccedilo rural aparece no teatro aristofacircnico como o lugar em que o camponecircs deve estar pois na cidade ele eacute infeliz e soacute pensa no dia em que poderaacute retornar agrave sua terra agraves suas atividades o pastoreio a agricultura a caccedila atividades verdadeiramente edificantes para o ser humano Os campos aristofacircnicos satildeo proacutesperos desde que impere a paz a abundacircncia de comida a bebida as festas regadas a cantigas danccedilarinas sexo Pensamos entatildeo que o poeta estaacute mais ligado aos valores veiculados na sociedade ateacute a primeira metade do seacuteculo V aC isto eacute aos valores aristocraacuteticos o que natildeo nos autoriza afirmar que estivesse comprometido politicamente com a aristocracia

Bibliografia

Textos AntigosAristoacutefanes Os Acarnenses Trad Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC 1985_____________ Os Cavaleiros Trad de Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC

1985_____________ As Vespas Trad Junito de Souza Brandatildeo In Teatro Grego

Euriacutepedes e Aristoacutefanes Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo sd_____________ As Nuvens Trad Gilda Maria Reale Starzynski_____________ A Paz Trad Maria de Faacutetima Silva 2ordf ed Coimbra INIC

1989

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico

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Textos ModernosA L Chevitarese (2004) Fronteiras internas Atenienses no Periacuteodo Claacutessico

(Re)Definindo Conceitos e Propondo instrumentais Teoacutericos de Anaacutelise PHOIcircNIX Rio de Janeiro Mauad

__________ (2000) O Espaccedilo Rural da Polis Grega O Caso Ateniense no Periacuteodo Claacutessico Rio de Janeiro

V Ehrenberg (1951) The People of Aristophanes A Sociology of Attic Comedy 2ordf ed Oxford Basil Blackwell

D M Macdoweell (1996) Aristophanes and Athen ndash Na introduction to the Plays New York Oxford University Press

L O de Magalhatildees (2005) A Cidade Grega e os Modos urbanos da poliacutetica In M M de Carvalho As Cidades no Tempo Franca UNESP Satildeo Paulo Olho DacuteAacutegua

L O de Magalhatildees (1996) Curtumeiros e Salsicheiros ndash A Representaccedilatildeo Cocircmica da Demagogia em Cavaleiros de Aristoacutefanes Dissertaccedilatildeo de Mestrado Satildeo Paulo USP

Mordf F Sousa e Silva Poliacuteticos e Mulheres na Comeacutedia Grega Disponiacutevel lerletrasupptuploadsficheiros2537pdf

J P Vernant (1986) As Origens do Pensamento Grego Satildeo Paulo DifelA L B Vieira (2000) Os Camponeses e a Phisis Heacutelade 1 (2)__________ (2002) Polis Phisis e Chora o quinto seacuteculo ateniense In Neide

(org) Linguagens e Formas de Poder na Antiguidade Rio de Janeiro Mauad

Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

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ESPAccedilOS CONCEBIDOS PELA MENTE

Susana Marques Pereirauniversidade de Coimbra

AbstractlsquoIf I could review in dreams my fatherly house and the cityhelliprsquo (E iT 452 sq) cries out the

chorus of the Greek captives in Euripidesrsquo iphigenia among the Tauris The transposition of the physical real space to the world of dreams and visions waking

visions ie to a psychological subjective space allows us illustrate both the cares and longings of figures from the Homeric epics or of the Greek tragedies (cf Od 19581 2179 E iT 452 ss E HF 943 ss) As well as revealing symbolically way premonitory elements related to the human faith (cf E iT 42 ss) or still in a metaphoric language satirize the politiciansrsquo behaviour during Aristophanesrsquo time in pieces written by the comedian (cf V 31 ss)

The real spaces to which the dreams and visions point to contemplate the generic references to the city the reference to a place particularly associated to power the royal palace such as Ithaca or before the one of Argos and the amusing description of the public places of the polis

This study is intended to consider from a literary perspective the motives and the consequences of this connection between the physical and the psychological space taking into consideration the context in which the afore mentioned examples occur as well as the time in which they take placeKeywords illusion physical space psychological space realityPalavras-chave espaccedilo fiacutesico espaccedilo psicoloacutegico ilusatildeo realidade

lsquoSe eu pudesse rever em sonhos a casa e a cidade paternahelliprsquo(E iT 452 s) desabafa o coro de cativas gregas da ifigeacutenia entre os Tauros euripidiana A manifestaccedilatildeo nostaacutelgica das jovens que serviam Ifigeacutenia sacerdotisa de Aacutertemis na longiacutenqua Taacuteuride resulta de uma prolongada separaccedilatildeo da paacutetria heleacutenica que haviam sido constrangidas a abandonar No sonho as cativas encontram a capacidade de recuperar um local de fruiccedilatildeo existencial vivenciado no passado circunstacircncia sugestiva da alteridade espacial implicada na criaccedilatildeo da utopia topograficamente representada O desejo expresso pelo coro evidencia como a transposiccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico para o espaccedilo psicoloacutegico eacute capaz de aliviar anguacutestias pessoais natildeo obstante a consistecircncia fraacutegil da realidade entrevista Ao caraacutecter deacutebil - e breve - da visatildeo sobrepotildee-se a consolaccedilatildeo de ter novamente diante dos olhos a imagem cara da paacutetria amada o sonho permite um ansiado esvanecimento da separaccedilatildeo espacial efectiva provocada pelo doloroso exiacutelio assumindo-se claramente como um meio de evasatildeo propiciador de

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Susana Marques Pereira

uma satisfaccedilatildeo passageira como um veiacuteculo de esperanccedila Felicidade e dor inscrevem-se assim em lugares distintos para as jovens gregas respectivamente a Heacutelade e a Taacuteuride o antes e o agora A menccedilatildeo especiacutefica agrave casa de outrora tecto protector porto de abrigo e agrave cidade paterna local de criaccedilatildeo de laccedilos afectivos eacute sugestiva do desamparo a que se sentem votadas num espaccedilo em que se vecircem privadas da seguranccedila e do saudoso aconchego familiares

O sonho como meio de tornar presente um local grato ao receptor eacute jaacute referido por Peneacutelope na Odisseia de modo reiterado (cf Od 19 581 21 79) decidida por fim a deixar o lar e a conceder a matildeo a um dos pretendentes que haacute longos anos a instigavam a casar de novo a rainha de Iacutetaca afirma que atraveacutes de experiecircncias sonhadas poderaacute recordar lsquouma casa bela cheia de riquezasrsquo1 A deslocaccedilatildeo suscitada por um novo casamento que se afigura necessaacuterio realizar incita-a a prolongar no imaginaacuterio um passado que deseja que continue a existir O palaacutecio real de Iacutetaca afigura-se para a rainha como o elemento ideal de intersecccedilatildeo de espaccedilos e tempos distintos Curiosamente poreacutem ela natildeo o destaca enquanto local de felicidade conjugal mas refere-se antes agrave sua beleza e aos bens que possui valorizando a simbologia a que por tradiccedilatildeo estaacute associado i e ao poder A tal realce natildeo eacute por certo alheio o facto de devido agrave prolongada ausecircncia de Ulisses caberem a Peneacutelope competecircncias como salvaguarda de uma soberania que devia manter

Para a rainha de Iacutetaca como para o coro de cativas da ifigeacutenia entre os Tauros a involuntaacuteria mudanccedila espacial iminente e efectiva respectivamente corresponde a uma indesejada alteraccedilatildeo de condiccedilatildeo que o recurso agrave visatildeo sonhada permite de algum modo escamotear ao facultar-lhes a apropriaccedilatildeo momentacircnea de uma outra realidade conhecida e agradaacutevel Em qualquer um dos casos daacute-se relevo ao caraacutecter voluntaacuterio do sonho humano e em simultacircneo ao seu efeito terapecircutico

O espaccedilo percepcionado por Heacuteracles na peccedila homoacutenima de Euriacutepides revela motivos e consequecircncias bem distintos das situaccedilotildees antes descritas Na verdade enquanto a esposa de Ulisses e as jovens gregas encontram no espaccedilo da memoacuteria uma forma de atenuar os cuidados que as consomem e de satisfazer os seus desejos a deslocaccedilatildeo fictiacutecia no espaccedilo do filho de Alcmena converte-se na causa da sua desgraccedila pessoal Saliente-se poreacutem que se a alusatildeo das cativas e de Peneacutelope agraves experiecircncias oniacutericas espelha o tipo de sonho induzido e preparado como uma terapia para o proacuteprio sonhador as visotildees de Heacuteracles satildeo propositadamente forjadas pelo mundo divino como um meio de puniccedilatildeo do receptor (cf E HF 822 ss)2 De facto a compreensatildeo deturpada da realidade envolvente durante um acesso de loucura despoletado por intervenccedilatildeo de divindades nega a time devida ao ilustre heroacutei instigando-o a exibir uma violecircncia assassina num cenaacuterio por ele apreendido como outro o palaacutecio de Heacuteracles em Tebas eacute por malogrados momentos identificado com o

1 F Lourenccedilo 620052 De acordo com as palavras de Iacuteris e de Lissa divindades que surgem em cena de forma ater-

rorizadora sobre o palaacutecio de Tebas eacute a fuacuteria de Hera pelos amores furtivos de Zeus com Alcmena a responsaacutevel pelo deliacuterio de Heacuteracles (cf HF 825 ss)

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

Espaccedilos concebidos pela mente

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

Susana Marques Pereira

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

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CambridgeG S Kirk (ed) N Richardson (1993) The iliad a commentary vol VI

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Espaccedilos concebidos pela mente

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Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

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Susana Marques Pereira

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

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Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 5: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

Nota de apreseNtaccedilatildeo

A Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos - APEC optou haacute alguns anos pela deslocalizaccedilatildeo do seu congresso perioacutedico o qual de Coimbra jaacute peregrinou por Viseu Aveiro Faro Braga Lisboa e Eacutevora

Foi exactamente nesta beliacutessima cidade que se realizou o VII Congresso Internacional da APEC nos dias 10-12 de Abril de 2008

Nesse encontro uma enorme plecirciade de participantes desenvolveu um exerciacutecio de intensa interdisciplinaridade agrave volta do tema Espaccedilos e paisagens Antiguidade Claacutessica e heranccedilas contemporacircneas Foi de cerca de uma centena o nuacutemero de conferencistas presentes um terccedilo dos quais vindos de paiacuteses estrangeiros e eacute para eles que vai um primeiro agradecimento em especial para os que aceitaram o desafio da publicaccedilatildeo das suas comunicaccedilotildees

O segundo agradecimento eacute dirigido agraves entidades que assumiram a co-responsabilidade da organizaccedilatildeo e da ediccedilatildeo

o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade mdash de Coimbra coordenado pela Professora Doutora Maria do Ceacuteu Zambujo Fialho

mdash o Centro de Histoacuteria da Arte e de Investigaccedilatildeo Artiacutestica da Universidade de Eacutevora dirigido pela Prof Doutora Christine Zurbach

o Centro Interdisciplinar de Histoacuteria Culturas e Sociedades mdash da Universidade de Eacutevora coordenado pela Prof Doutora Mafalda Soares da Cunha

mdash o Laboratoacuterio de Arqueologia ldquoPinho Monteirordquo da Universidade de Eacutevora presidido pelo Prof Doutor Jorge de Oliveira

o Departamento de Linguiacutestica e Literaturas da Universidade mdash de Eacutevora

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Os agradecimentos que endereccedilamos a estas entidades satildeo extensivos agraves proacuteprias instituiccedilotildees acolhedoras a Universidade de Coimbra e a Universidade de Eacutevora e nesta cidade tambeacutem ao Governo Civil de Eacutevora agrave Cacircmara Municipal de Eacutevora ao Comando da Unidade de Apoio e ao Banco Millenium BCP cujos responsaacuteveis mobilizaram toda a sua clarividecircncia e generosidade para garantir as melhores condiccedilotildees para a realizaccedilatildeo deste evento cultural e cientiacutefico

Em terceiro lugar manifestamos a nossa viva gratidatildeo agraves entidades financiadoras com particular relevo para o sempre soliacutecito apoio da FCT mdash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e da Fundaccedilatildeo Engenheiro Antoacutenio de Almeida

Mas seria injusto natildeo valorizar tambeacutem a colaboraccedilatildeo da Drordf Carla Braz tanto no secretariado do congresso como na recolha do material dos senhores Dr Rodolfo Lopes e Luiacutes Miguel Barata Dias na preparaccedilatildeo da ediccedilatildeo digital e do Doutor Delfim Leatildeo pelo interesse em promover a divulgaccedilatildeo atraveacutes de Classica Digitalia

Estamos certos de que tais apoios colaboraccedilotildees financiamentos patrociacutenios e responsaacuteveis se sentiratildeo compensados pela qualidade dos escritos dados ao prelo organizados em trecircs volumes com o tiacutetulo geral Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas e os subtiacutetulos correspondentes

vol 1 mdash Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e Romavol 2 mdash Liacutenguas e Literaturas Idade Meacutedia Renascimento Recepccedilatildeovol 3 mdash Histoacuteria e Arqueologia

No seu conjunto tais contributos incluindo os de jovens investigadores ilustram uma grande diversidade de perspectivas uma enorme riqueza e variedade de temas da filologia grega e latina e da tradiccedilatildeo claacutessica agrave literatura comparada da arte e do urbanismo agrave arqueologia e agrave economia da poliacutetica agrave filosofia e desde a Antiguidade ateacute aos nossos dias

Por acreacutescimo ficam assim tambeacutem nobilitados os estudos claacutessicos humaniacutesticos histoacutericos filosoacuteficos e literaacuterios em Portugal com a Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos mdash APEC a cumprir a missatildeo cultural e cientiacutefica consagrada nos seus estatutos em especial no espaccedilo da lusofonia e da Uniatildeo Europeia

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Comissatildeo Cientiacutefica Ana Cardoso de MatosArnaldo Espiacuterito SantoClaacuteudia TeixeiraCristina PimentelFilipe Themudo BarataFrancisco de OliveiraHermiacutenia VilarJorge de OliveiraJoseacute Alberto Gomes MachadoLeonor RochaManuel PatrociacutenioMafalda Soares da CunhaMaria de Faacutetima Sousa e SilvaMaria do Ceacuteu FialhoRicardo SantosTeresa Santos

Coordenaccedilatildeo do VolumeFrancisco de Oliveira

Claacuteudia TeixeiraPaula Barata Dias

Comissatildeo OrganizadoraAndreacute CarneiroArmando MartinsCarla Braz (secretariado)Clara OliveiraClaacuteudia TeixeiraFrancisco de OliveiraJorge de OliveiraLeonor RochaManuel PatrociacutenioPaula Barata DiasRicardo SantosValentina Castro

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33

IacuteNDICE

Vol 1 liacutenguas e literaturas greacutecia e roma

I - Antiguidade Grega

Espaccedilos do Grego e espaccedilos do outro nas Suplicantes de Eacutesquilo 15 Carlos A Martins de Jesus

Paisagens marinhas no Hipoacutelito de Euriacutepides 23 Maria do Ceacuteu Fialho

Tebas a cidade de Dioniso O caso de Heacuteracles de Euriacutepides 29 Sofia Frade

Nas moradas das ninfas o cenaacuterio do drama satiacuterico 35 Tereza Virgiacutenia Ribeiro Barbosa

A aacutegora de Atenas Coraccedilatildeo de uma urbe cosmopolita 43 Maria de Faacutetima Silva

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico 49 Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

Espaccedilos concebidos pela mente 59 Susana Marques Pereira

Quando Patilde e as Ninfas convertiam os simples mortais 65 Ana Seiccedila Carvalho

Turismo e patrimoacutenio na Antiguidade Claacutessica o texto atribuiacutedo a Fiacutelonde Bizacircncio sobre as Sete Maravilhas 73

Luiacutesa de Nazareacute Ferreira

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44

II - Antiguidade Romana

El espacio de la mujer en la medicina romana 83 Joseacute Pablo Barragaacuten Nieto

Espacios para la curacioacuten la domus en la tradicioacuten hipocraacutetico-galeacutenica 89 Mordf Carmen Fernaacutendez Tijero

Espacios literarios para la botaacutenica un jardiacuten de plantas medicinales 97 Alejandro Garciacutea Gonzaacutelez

A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre Metricologia Latina 105 Joatildeo Batista Toledo Prado

Entre vida puacuteblica e luxuria privada A propoacutesito das villae de Luculo 113 Manuel Troumlster

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero 121 Virgiacutenia Soares Pereira

Piacutendaro e Horaacutecio face a face 131 Maria Mafalda de Oliveira Viana

Virgiacutelio e a invenccedilatildeo da paisagem simboacutelica 139 Luiacutes M G Cerqueira

Um repasto na Arcaacutedia as Bucoacutelicas de Virgiacutelio 147 Inecircs de Ornellas e Castro

A poetizaccedilatildeo do espaccedilo nas Bucoacutelicas de Virgiacutelio simbologia da vida humana entre a euforia e a disforia 155

Antoacutenio Moniz

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas Metamorphoses de Oviacutedio 169

Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca Troades e Thyestes 175

Mariana Horta e Costa Matias

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55

Os espaccedilos das Troades de Seacuteneca 183 Paulo Seacutergio Ferreira

Salomatildeo parodiado elementos judaicos na paisagem pompeiana 191 Nuno Simotildees Rodrigues

O Anfiteatro de Ceacutesar a uacutenica obra que a Fama haacute-de celebrar 199 Joana Mestre Costa

De rio lamacento a corrente cristalina a transformaccedilatildeo do espaccedilo e da paisagem em Silvas 43 207

Ana Maria dos Santos Loacuteio

Paisaje fiacutesico y paisaje humano de la Germania seguacuten Ceacutesar y Taacutecito 215 Aurora Loacutepez

A ekphrasis suetoniana da Domus Aurea 223 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Villae y otros espacios de recreo en las Vidas de los Doce Ceacutesares de Suetonio 231 Mordf J Peacuterez Ibaacutentildeez

Roma nas Vidas Paralelas de Plutarco 237 Joaquim Pinheiro

O espaccedilo britacircnico e a paisagem no Agricola de Taacutecito 247 Ana Isabel Fonseca

Espaccedilos da morte na historiografia de Taacutecito 255 Maria Cristina Pimentel

O espaccedilo no conto de Eros e Psique 265 Maria Leonor Santa Baacuterbara

La relacioacuten del hombre con la naturaleza y el medio ambiente 273 Paolo Fedeli

Iacutendice de palavras-chave 283

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5757

num universo marcadamente rural a despeito do paradoxo que isso representa A proacutepria forma de organizaccedilatildeo e administraccedilatildeo que propotildees estaacute recheada de elementos do campo atribuindo agraves aves o direito de reinar sobre os demais seres colocando-as inclusive acima dos deuses O proacuteprio desenho arquitetocircnico imaginado pelo poeta e o estilo de vida que ali se desenvolveraacute nos remetem a uma paisagem campestre Observemos a passagem seguinte (vv 610ss)

ldquoEm primeiro lugar natildeo haveraacute necessidade de lhes construir templos de maacutermore com portas de oiro habitaratildeo nos bosques e sob a folhagem dos carvalhos as aves mais veneraacuteveis teratildeo por templo uma oliveira Natildeo seraacute preciso ir a Delfos ou ao tempo de Amon oferecer sacrifiacutecios De peacute entre os medronheiros e as oliveiras bravas mostrar-lhes-emos um punhado de cevada e de trigo e ali de matildeos estendidas pedir-lhes-emos que espalhem sobre noacutes os seus benefiacutecios E tudo por um punhado de trigordquo

A despeito de como observamos anteriormente o presente trabalho encontrar-se em estaacutegio inicial aferimos algumas conclusotildees parciais Aristoacutefanes euforiza a Chocircra em detrimento da aacutesty O espaccedilo rural aparece no teatro aristofacircnico como o lugar em que o camponecircs deve estar pois na cidade ele eacute infeliz e soacute pensa no dia em que poderaacute retornar agrave sua terra agraves suas atividades o pastoreio a agricultura a caccedila atividades verdadeiramente edificantes para o ser humano Os campos aristofacircnicos satildeo proacutesperos desde que impere a paz a abundacircncia de comida a bebida as festas regadas a cantigas danccedilarinas sexo Pensamos entatildeo que o poeta estaacute mais ligado aos valores veiculados na sociedade ateacute a primeira metade do seacuteculo V aC isto eacute aos valores aristocraacuteticos o que natildeo nos autoriza afirmar que estivesse comprometido politicamente com a aristocracia

Bibliografia

Textos AntigosAristoacutefanes Os Acarnenses Trad Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC 1985_____________ Os Cavaleiros Trad de Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC

1985_____________ As Vespas Trad Junito de Souza Brandatildeo In Teatro Grego

Euriacutepedes e Aristoacutefanes Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo sd_____________ As Nuvens Trad Gilda Maria Reale Starzynski_____________ A Paz Trad Maria de Faacutetima Silva 2ordf ed Coimbra INIC

1989

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico

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5858

Textos ModernosA L Chevitarese (2004) Fronteiras internas Atenienses no Periacuteodo Claacutessico

(Re)Definindo Conceitos e Propondo instrumentais Teoacutericos de Anaacutelise PHOIcircNIX Rio de Janeiro Mauad

__________ (2000) O Espaccedilo Rural da Polis Grega O Caso Ateniense no Periacuteodo Claacutessico Rio de Janeiro

V Ehrenberg (1951) The People of Aristophanes A Sociology of Attic Comedy 2ordf ed Oxford Basil Blackwell

D M Macdoweell (1996) Aristophanes and Athen ndash Na introduction to the Plays New York Oxford University Press

L O de Magalhatildees (2005) A Cidade Grega e os Modos urbanos da poliacutetica In M M de Carvalho As Cidades no Tempo Franca UNESP Satildeo Paulo Olho DacuteAacutegua

L O de Magalhatildees (1996) Curtumeiros e Salsicheiros ndash A Representaccedilatildeo Cocircmica da Demagogia em Cavaleiros de Aristoacutefanes Dissertaccedilatildeo de Mestrado Satildeo Paulo USP

Mordf F Sousa e Silva Poliacuteticos e Mulheres na Comeacutedia Grega Disponiacutevel lerletrasupptuploadsficheiros2537pdf

J P Vernant (1986) As Origens do Pensamento Grego Satildeo Paulo DifelA L B Vieira (2000) Os Camponeses e a Phisis Heacutelade 1 (2)__________ (2002) Polis Phisis e Chora o quinto seacuteculo ateniense In Neide

(org) Linguagens e Formas de Poder na Antiguidade Rio de Janeiro Mauad

Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

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5959

ESPAccedilOS CONCEBIDOS PELA MENTE

Susana Marques Pereirauniversidade de Coimbra

AbstractlsquoIf I could review in dreams my fatherly house and the cityhelliprsquo (E iT 452 sq) cries out the

chorus of the Greek captives in Euripidesrsquo iphigenia among the Tauris The transposition of the physical real space to the world of dreams and visions waking

visions ie to a psychological subjective space allows us illustrate both the cares and longings of figures from the Homeric epics or of the Greek tragedies (cf Od 19581 2179 E iT 452 ss E HF 943 ss) As well as revealing symbolically way premonitory elements related to the human faith (cf E iT 42 ss) or still in a metaphoric language satirize the politiciansrsquo behaviour during Aristophanesrsquo time in pieces written by the comedian (cf V 31 ss)

The real spaces to which the dreams and visions point to contemplate the generic references to the city the reference to a place particularly associated to power the royal palace such as Ithaca or before the one of Argos and the amusing description of the public places of the polis

This study is intended to consider from a literary perspective the motives and the consequences of this connection between the physical and the psychological space taking into consideration the context in which the afore mentioned examples occur as well as the time in which they take placeKeywords illusion physical space psychological space realityPalavras-chave espaccedilo fiacutesico espaccedilo psicoloacutegico ilusatildeo realidade

lsquoSe eu pudesse rever em sonhos a casa e a cidade paternahelliprsquo(E iT 452 s) desabafa o coro de cativas gregas da ifigeacutenia entre os Tauros euripidiana A manifestaccedilatildeo nostaacutelgica das jovens que serviam Ifigeacutenia sacerdotisa de Aacutertemis na longiacutenqua Taacuteuride resulta de uma prolongada separaccedilatildeo da paacutetria heleacutenica que haviam sido constrangidas a abandonar No sonho as cativas encontram a capacidade de recuperar um local de fruiccedilatildeo existencial vivenciado no passado circunstacircncia sugestiva da alteridade espacial implicada na criaccedilatildeo da utopia topograficamente representada O desejo expresso pelo coro evidencia como a transposiccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico para o espaccedilo psicoloacutegico eacute capaz de aliviar anguacutestias pessoais natildeo obstante a consistecircncia fraacutegil da realidade entrevista Ao caraacutecter deacutebil - e breve - da visatildeo sobrepotildee-se a consolaccedilatildeo de ter novamente diante dos olhos a imagem cara da paacutetria amada o sonho permite um ansiado esvanecimento da separaccedilatildeo espacial efectiva provocada pelo doloroso exiacutelio assumindo-se claramente como um meio de evasatildeo propiciador de

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6060

Susana Marques Pereira

uma satisfaccedilatildeo passageira como um veiacuteculo de esperanccedila Felicidade e dor inscrevem-se assim em lugares distintos para as jovens gregas respectivamente a Heacutelade e a Taacuteuride o antes e o agora A menccedilatildeo especiacutefica agrave casa de outrora tecto protector porto de abrigo e agrave cidade paterna local de criaccedilatildeo de laccedilos afectivos eacute sugestiva do desamparo a que se sentem votadas num espaccedilo em que se vecircem privadas da seguranccedila e do saudoso aconchego familiares

O sonho como meio de tornar presente um local grato ao receptor eacute jaacute referido por Peneacutelope na Odisseia de modo reiterado (cf Od 19 581 21 79) decidida por fim a deixar o lar e a conceder a matildeo a um dos pretendentes que haacute longos anos a instigavam a casar de novo a rainha de Iacutetaca afirma que atraveacutes de experiecircncias sonhadas poderaacute recordar lsquouma casa bela cheia de riquezasrsquo1 A deslocaccedilatildeo suscitada por um novo casamento que se afigura necessaacuterio realizar incita-a a prolongar no imaginaacuterio um passado que deseja que continue a existir O palaacutecio real de Iacutetaca afigura-se para a rainha como o elemento ideal de intersecccedilatildeo de espaccedilos e tempos distintos Curiosamente poreacutem ela natildeo o destaca enquanto local de felicidade conjugal mas refere-se antes agrave sua beleza e aos bens que possui valorizando a simbologia a que por tradiccedilatildeo estaacute associado i e ao poder A tal realce natildeo eacute por certo alheio o facto de devido agrave prolongada ausecircncia de Ulisses caberem a Peneacutelope competecircncias como salvaguarda de uma soberania que devia manter

Para a rainha de Iacutetaca como para o coro de cativas da ifigeacutenia entre os Tauros a involuntaacuteria mudanccedila espacial iminente e efectiva respectivamente corresponde a uma indesejada alteraccedilatildeo de condiccedilatildeo que o recurso agrave visatildeo sonhada permite de algum modo escamotear ao facultar-lhes a apropriaccedilatildeo momentacircnea de uma outra realidade conhecida e agradaacutevel Em qualquer um dos casos daacute-se relevo ao caraacutecter voluntaacuterio do sonho humano e em simultacircneo ao seu efeito terapecircutico

O espaccedilo percepcionado por Heacuteracles na peccedila homoacutenima de Euriacutepides revela motivos e consequecircncias bem distintos das situaccedilotildees antes descritas Na verdade enquanto a esposa de Ulisses e as jovens gregas encontram no espaccedilo da memoacuteria uma forma de atenuar os cuidados que as consomem e de satisfazer os seus desejos a deslocaccedilatildeo fictiacutecia no espaccedilo do filho de Alcmena converte-se na causa da sua desgraccedila pessoal Saliente-se poreacutem que se a alusatildeo das cativas e de Peneacutelope agraves experiecircncias oniacutericas espelha o tipo de sonho induzido e preparado como uma terapia para o proacuteprio sonhador as visotildees de Heacuteracles satildeo propositadamente forjadas pelo mundo divino como um meio de puniccedilatildeo do receptor (cf E HF 822 ss)2 De facto a compreensatildeo deturpada da realidade envolvente durante um acesso de loucura despoletado por intervenccedilatildeo de divindades nega a time devida ao ilustre heroacutei instigando-o a exibir uma violecircncia assassina num cenaacuterio por ele apreendido como outro o palaacutecio de Heacuteracles em Tebas eacute por malogrados momentos identificado com o

1 F Lourenccedilo 620052 De acordo com as palavras de Iacuteris e de Lissa divindades que surgem em cena de forma ater-

rorizadora sobre o palaacutecio de Tebas eacute a fuacuteria de Hera pelos amores furtivos de Zeus com Alcmena a responsaacutevel pelo deliacuterio de Heacuteracles (cf HF 825 ss)

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

Susana Marques Pereira

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

Poemas HomeacutericosG S Kirk (ed) M Edwards (1991) The iliad a commentary vol V

CambridgeG S Kirk (ed) N Richardson (1993) The iliad a commentary vol VI

CambridgeF Lourenccedilo (22005) Homero iliacuteada Lisboa

EuriacutepidesHeraclesS Barlow (1996) Euripides Heracles WarminsterG Bond (1981) Euripides Heracles Oxford

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Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

G Devereux (1976) Dreams in Greek Tragedy an ethno-psycho-analytical study Oxford

E R Dodds (2004) The Greeks and the Irrational BerkeleyA H M Kessels (1978) Studies on the Dream in Greek Literature UtrechtR G A van Lieshout (1980) Greeks on Dreams Utrecht

Susana Marques Pereira

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

Mariana Horta e Costa Matias

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179179

Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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180180

(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 6: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

Os agradecimentos que endereccedilamos a estas entidades satildeo extensivos agraves proacuteprias instituiccedilotildees acolhedoras a Universidade de Coimbra e a Universidade de Eacutevora e nesta cidade tambeacutem ao Governo Civil de Eacutevora agrave Cacircmara Municipal de Eacutevora ao Comando da Unidade de Apoio e ao Banco Millenium BCP cujos responsaacuteveis mobilizaram toda a sua clarividecircncia e generosidade para garantir as melhores condiccedilotildees para a realizaccedilatildeo deste evento cultural e cientiacutefico

Em terceiro lugar manifestamos a nossa viva gratidatildeo agraves entidades financiadoras com particular relevo para o sempre soliacutecito apoio da FCT mdash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e da Fundaccedilatildeo Engenheiro Antoacutenio de Almeida

Mas seria injusto natildeo valorizar tambeacutem a colaboraccedilatildeo da Drordf Carla Braz tanto no secretariado do congresso como na recolha do material dos senhores Dr Rodolfo Lopes e Luiacutes Miguel Barata Dias na preparaccedilatildeo da ediccedilatildeo digital e do Doutor Delfim Leatildeo pelo interesse em promover a divulgaccedilatildeo atraveacutes de Classica Digitalia

Estamos certos de que tais apoios colaboraccedilotildees financiamentos patrociacutenios e responsaacuteveis se sentiratildeo compensados pela qualidade dos escritos dados ao prelo organizados em trecircs volumes com o tiacutetulo geral Espaccedilos e Paisagens Antiguidade Claacutessica e Heranccedilas Contemporacircneas e os subtiacutetulos correspondentes

vol 1 mdash Liacutenguas e Literaturas Greacutecia e Romavol 2 mdash Liacutenguas e Literaturas Idade Meacutedia Renascimento Recepccedilatildeovol 3 mdash Histoacuteria e Arqueologia

No seu conjunto tais contributos incluindo os de jovens investigadores ilustram uma grande diversidade de perspectivas uma enorme riqueza e variedade de temas da filologia grega e latina e da tradiccedilatildeo claacutessica agrave literatura comparada da arte e do urbanismo agrave arqueologia e agrave economia da poliacutetica agrave filosofia e desde a Antiguidade ateacute aos nossos dias

Por acreacutescimo ficam assim tambeacutem nobilitados os estudos claacutessicos humaniacutesticos histoacutericos filosoacuteficos e literaacuterios em Portugal com a Associaccedilatildeo Portuguesa de Estudos Claacutessicos mdash APEC a cumprir a missatildeo cultural e cientiacutefica consagrada nos seus estatutos em especial no espaccedilo da lusofonia e da Uniatildeo Europeia

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Comissatildeo Cientiacutefica Ana Cardoso de MatosArnaldo Espiacuterito SantoClaacuteudia TeixeiraCristina PimentelFilipe Themudo BarataFrancisco de OliveiraHermiacutenia VilarJorge de OliveiraJoseacute Alberto Gomes MachadoLeonor RochaManuel PatrociacutenioMafalda Soares da CunhaMaria de Faacutetima Sousa e SilvaMaria do Ceacuteu FialhoRicardo SantosTeresa Santos

Coordenaccedilatildeo do VolumeFrancisco de Oliveira

Claacuteudia TeixeiraPaula Barata Dias

Comissatildeo OrganizadoraAndreacute CarneiroArmando MartinsCarla Braz (secretariado)Clara OliveiraClaacuteudia TeixeiraFrancisco de OliveiraJorge de OliveiraLeonor RochaManuel PatrociacutenioPaula Barata DiasRicardo SantosValentina Castro

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33

IacuteNDICE

Vol 1 liacutenguas e literaturas greacutecia e roma

I - Antiguidade Grega

Espaccedilos do Grego e espaccedilos do outro nas Suplicantes de Eacutesquilo 15 Carlos A Martins de Jesus

Paisagens marinhas no Hipoacutelito de Euriacutepides 23 Maria do Ceacuteu Fialho

Tebas a cidade de Dioniso O caso de Heacuteracles de Euriacutepides 29 Sofia Frade

Nas moradas das ninfas o cenaacuterio do drama satiacuterico 35 Tereza Virgiacutenia Ribeiro Barbosa

A aacutegora de Atenas Coraccedilatildeo de uma urbe cosmopolita 43 Maria de Faacutetima Silva

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico 49 Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

Espaccedilos concebidos pela mente 59 Susana Marques Pereira

Quando Patilde e as Ninfas convertiam os simples mortais 65 Ana Seiccedila Carvalho

Turismo e patrimoacutenio na Antiguidade Claacutessica o texto atribuiacutedo a Fiacutelonde Bizacircncio sobre as Sete Maravilhas 73

Luiacutesa de Nazareacute Ferreira

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44

II - Antiguidade Romana

El espacio de la mujer en la medicina romana 83 Joseacute Pablo Barragaacuten Nieto

Espacios para la curacioacuten la domus en la tradicioacuten hipocraacutetico-galeacutenica 89 Mordf Carmen Fernaacutendez Tijero

Espacios literarios para la botaacutenica un jardiacuten de plantas medicinales 97 Alejandro Garciacutea Gonzaacutelez

A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre Metricologia Latina 105 Joatildeo Batista Toledo Prado

Entre vida puacuteblica e luxuria privada A propoacutesito das villae de Luculo 113 Manuel Troumlster

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero 121 Virgiacutenia Soares Pereira

Piacutendaro e Horaacutecio face a face 131 Maria Mafalda de Oliveira Viana

Virgiacutelio e a invenccedilatildeo da paisagem simboacutelica 139 Luiacutes M G Cerqueira

Um repasto na Arcaacutedia as Bucoacutelicas de Virgiacutelio 147 Inecircs de Ornellas e Castro

A poetizaccedilatildeo do espaccedilo nas Bucoacutelicas de Virgiacutelio simbologia da vida humana entre a euforia e a disforia 155

Antoacutenio Moniz

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas Metamorphoses de Oviacutedio 169

Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca Troades e Thyestes 175

Mariana Horta e Costa Matias

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55

Os espaccedilos das Troades de Seacuteneca 183 Paulo Seacutergio Ferreira

Salomatildeo parodiado elementos judaicos na paisagem pompeiana 191 Nuno Simotildees Rodrigues

O Anfiteatro de Ceacutesar a uacutenica obra que a Fama haacute-de celebrar 199 Joana Mestre Costa

De rio lamacento a corrente cristalina a transformaccedilatildeo do espaccedilo e da paisagem em Silvas 43 207

Ana Maria dos Santos Loacuteio

Paisaje fiacutesico y paisaje humano de la Germania seguacuten Ceacutesar y Taacutecito 215 Aurora Loacutepez

A ekphrasis suetoniana da Domus Aurea 223 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Villae y otros espacios de recreo en las Vidas de los Doce Ceacutesares de Suetonio 231 Mordf J Peacuterez Ibaacutentildeez

Roma nas Vidas Paralelas de Plutarco 237 Joaquim Pinheiro

O espaccedilo britacircnico e a paisagem no Agricola de Taacutecito 247 Ana Isabel Fonseca

Espaccedilos da morte na historiografia de Taacutecito 255 Maria Cristina Pimentel

O espaccedilo no conto de Eros e Psique 265 Maria Leonor Santa Baacuterbara

La relacioacuten del hombre con la naturaleza y el medio ambiente 273 Paolo Fedeli

Iacutendice de palavras-chave 283

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5757

num universo marcadamente rural a despeito do paradoxo que isso representa A proacutepria forma de organizaccedilatildeo e administraccedilatildeo que propotildees estaacute recheada de elementos do campo atribuindo agraves aves o direito de reinar sobre os demais seres colocando-as inclusive acima dos deuses O proacuteprio desenho arquitetocircnico imaginado pelo poeta e o estilo de vida que ali se desenvolveraacute nos remetem a uma paisagem campestre Observemos a passagem seguinte (vv 610ss)

ldquoEm primeiro lugar natildeo haveraacute necessidade de lhes construir templos de maacutermore com portas de oiro habitaratildeo nos bosques e sob a folhagem dos carvalhos as aves mais veneraacuteveis teratildeo por templo uma oliveira Natildeo seraacute preciso ir a Delfos ou ao tempo de Amon oferecer sacrifiacutecios De peacute entre os medronheiros e as oliveiras bravas mostrar-lhes-emos um punhado de cevada e de trigo e ali de matildeos estendidas pedir-lhes-emos que espalhem sobre noacutes os seus benefiacutecios E tudo por um punhado de trigordquo

A despeito de como observamos anteriormente o presente trabalho encontrar-se em estaacutegio inicial aferimos algumas conclusotildees parciais Aristoacutefanes euforiza a Chocircra em detrimento da aacutesty O espaccedilo rural aparece no teatro aristofacircnico como o lugar em que o camponecircs deve estar pois na cidade ele eacute infeliz e soacute pensa no dia em que poderaacute retornar agrave sua terra agraves suas atividades o pastoreio a agricultura a caccedila atividades verdadeiramente edificantes para o ser humano Os campos aristofacircnicos satildeo proacutesperos desde que impere a paz a abundacircncia de comida a bebida as festas regadas a cantigas danccedilarinas sexo Pensamos entatildeo que o poeta estaacute mais ligado aos valores veiculados na sociedade ateacute a primeira metade do seacuteculo V aC isto eacute aos valores aristocraacuteticos o que natildeo nos autoriza afirmar que estivesse comprometido politicamente com a aristocracia

Bibliografia

Textos AntigosAristoacutefanes Os Acarnenses Trad Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC 1985_____________ Os Cavaleiros Trad de Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC

1985_____________ As Vespas Trad Junito de Souza Brandatildeo In Teatro Grego

Euriacutepedes e Aristoacutefanes Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo sd_____________ As Nuvens Trad Gilda Maria Reale Starzynski_____________ A Paz Trad Maria de Faacutetima Silva 2ordf ed Coimbra INIC

1989

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico

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5858

Textos ModernosA L Chevitarese (2004) Fronteiras internas Atenienses no Periacuteodo Claacutessico

(Re)Definindo Conceitos e Propondo instrumentais Teoacutericos de Anaacutelise PHOIcircNIX Rio de Janeiro Mauad

__________ (2000) O Espaccedilo Rural da Polis Grega O Caso Ateniense no Periacuteodo Claacutessico Rio de Janeiro

V Ehrenberg (1951) The People of Aristophanes A Sociology of Attic Comedy 2ordf ed Oxford Basil Blackwell

D M Macdoweell (1996) Aristophanes and Athen ndash Na introduction to the Plays New York Oxford University Press

L O de Magalhatildees (2005) A Cidade Grega e os Modos urbanos da poliacutetica In M M de Carvalho As Cidades no Tempo Franca UNESP Satildeo Paulo Olho DacuteAacutegua

L O de Magalhatildees (1996) Curtumeiros e Salsicheiros ndash A Representaccedilatildeo Cocircmica da Demagogia em Cavaleiros de Aristoacutefanes Dissertaccedilatildeo de Mestrado Satildeo Paulo USP

Mordf F Sousa e Silva Poliacuteticos e Mulheres na Comeacutedia Grega Disponiacutevel lerletrasupptuploadsficheiros2537pdf

J P Vernant (1986) As Origens do Pensamento Grego Satildeo Paulo DifelA L B Vieira (2000) Os Camponeses e a Phisis Heacutelade 1 (2)__________ (2002) Polis Phisis e Chora o quinto seacuteculo ateniense In Neide

(org) Linguagens e Formas de Poder na Antiguidade Rio de Janeiro Mauad

Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

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5959

ESPAccedilOS CONCEBIDOS PELA MENTE

Susana Marques Pereirauniversidade de Coimbra

AbstractlsquoIf I could review in dreams my fatherly house and the cityhelliprsquo (E iT 452 sq) cries out the

chorus of the Greek captives in Euripidesrsquo iphigenia among the Tauris The transposition of the physical real space to the world of dreams and visions waking

visions ie to a psychological subjective space allows us illustrate both the cares and longings of figures from the Homeric epics or of the Greek tragedies (cf Od 19581 2179 E iT 452 ss E HF 943 ss) As well as revealing symbolically way premonitory elements related to the human faith (cf E iT 42 ss) or still in a metaphoric language satirize the politiciansrsquo behaviour during Aristophanesrsquo time in pieces written by the comedian (cf V 31 ss)

The real spaces to which the dreams and visions point to contemplate the generic references to the city the reference to a place particularly associated to power the royal palace such as Ithaca or before the one of Argos and the amusing description of the public places of the polis

This study is intended to consider from a literary perspective the motives and the consequences of this connection between the physical and the psychological space taking into consideration the context in which the afore mentioned examples occur as well as the time in which they take placeKeywords illusion physical space psychological space realityPalavras-chave espaccedilo fiacutesico espaccedilo psicoloacutegico ilusatildeo realidade

lsquoSe eu pudesse rever em sonhos a casa e a cidade paternahelliprsquo(E iT 452 s) desabafa o coro de cativas gregas da ifigeacutenia entre os Tauros euripidiana A manifestaccedilatildeo nostaacutelgica das jovens que serviam Ifigeacutenia sacerdotisa de Aacutertemis na longiacutenqua Taacuteuride resulta de uma prolongada separaccedilatildeo da paacutetria heleacutenica que haviam sido constrangidas a abandonar No sonho as cativas encontram a capacidade de recuperar um local de fruiccedilatildeo existencial vivenciado no passado circunstacircncia sugestiva da alteridade espacial implicada na criaccedilatildeo da utopia topograficamente representada O desejo expresso pelo coro evidencia como a transposiccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico para o espaccedilo psicoloacutegico eacute capaz de aliviar anguacutestias pessoais natildeo obstante a consistecircncia fraacutegil da realidade entrevista Ao caraacutecter deacutebil - e breve - da visatildeo sobrepotildee-se a consolaccedilatildeo de ter novamente diante dos olhos a imagem cara da paacutetria amada o sonho permite um ansiado esvanecimento da separaccedilatildeo espacial efectiva provocada pelo doloroso exiacutelio assumindo-se claramente como um meio de evasatildeo propiciador de

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Susana Marques Pereira

uma satisfaccedilatildeo passageira como um veiacuteculo de esperanccedila Felicidade e dor inscrevem-se assim em lugares distintos para as jovens gregas respectivamente a Heacutelade e a Taacuteuride o antes e o agora A menccedilatildeo especiacutefica agrave casa de outrora tecto protector porto de abrigo e agrave cidade paterna local de criaccedilatildeo de laccedilos afectivos eacute sugestiva do desamparo a que se sentem votadas num espaccedilo em que se vecircem privadas da seguranccedila e do saudoso aconchego familiares

O sonho como meio de tornar presente um local grato ao receptor eacute jaacute referido por Peneacutelope na Odisseia de modo reiterado (cf Od 19 581 21 79) decidida por fim a deixar o lar e a conceder a matildeo a um dos pretendentes que haacute longos anos a instigavam a casar de novo a rainha de Iacutetaca afirma que atraveacutes de experiecircncias sonhadas poderaacute recordar lsquouma casa bela cheia de riquezasrsquo1 A deslocaccedilatildeo suscitada por um novo casamento que se afigura necessaacuterio realizar incita-a a prolongar no imaginaacuterio um passado que deseja que continue a existir O palaacutecio real de Iacutetaca afigura-se para a rainha como o elemento ideal de intersecccedilatildeo de espaccedilos e tempos distintos Curiosamente poreacutem ela natildeo o destaca enquanto local de felicidade conjugal mas refere-se antes agrave sua beleza e aos bens que possui valorizando a simbologia a que por tradiccedilatildeo estaacute associado i e ao poder A tal realce natildeo eacute por certo alheio o facto de devido agrave prolongada ausecircncia de Ulisses caberem a Peneacutelope competecircncias como salvaguarda de uma soberania que devia manter

Para a rainha de Iacutetaca como para o coro de cativas da ifigeacutenia entre os Tauros a involuntaacuteria mudanccedila espacial iminente e efectiva respectivamente corresponde a uma indesejada alteraccedilatildeo de condiccedilatildeo que o recurso agrave visatildeo sonhada permite de algum modo escamotear ao facultar-lhes a apropriaccedilatildeo momentacircnea de uma outra realidade conhecida e agradaacutevel Em qualquer um dos casos daacute-se relevo ao caraacutecter voluntaacuterio do sonho humano e em simultacircneo ao seu efeito terapecircutico

O espaccedilo percepcionado por Heacuteracles na peccedila homoacutenima de Euriacutepides revela motivos e consequecircncias bem distintos das situaccedilotildees antes descritas Na verdade enquanto a esposa de Ulisses e as jovens gregas encontram no espaccedilo da memoacuteria uma forma de atenuar os cuidados que as consomem e de satisfazer os seus desejos a deslocaccedilatildeo fictiacutecia no espaccedilo do filho de Alcmena converte-se na causa da sua desgraccedila pessoal Saliente-se poreacutem que se a alusatildeo das cativas e de Peneacutelope agraves experiecircncias oniacutericas espelha o tipo de sonho induzido e preparado como uma terapia para o proacuteprio sonhador as visotildees de Heacuteracles satildeo propositadamente forjadas pelo mundo divino como um meio de puniccedilatildeo do receptor (cf E HF 822 ss)2 De facto a compreensatildeo deturpada da realidade envolvente durante um acesso de loucura despoletado por intervenccedilatildeo de divindades nega a time devida ao ilustre heroacutei instigando-o a exibir uma violecircncia assassina num cenaacuterio por ele apreendido como outro o palaacutecio de Heacuteracles em Tebas eacute por malogrados momentos identificado com o

1 F Lourenccedilo 620052 De acordo com as palavras de Iacuteris e de Lissa divindades que surgem em cena de forma ater-

rorizadora sobre o palaacutecio de Tebas eacute a fuacuteria de Hera pelos amores furtivos de Zeus com Alcmena a responsaacutevel pelo deliacuterio de Heacuteracles (cf HF 825 ss)

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

Espaccedilos concebidos pela mente

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

Poemas HomeacutericosG S Kirk (ed) M Edwards (1991) The iliad a commentary vol V

CambridgeG S Kirk (ed) N Richardson (1993) The iliad a commentary vol VI

CambridgeF Lourenccedilo (22005) Homero iliacuteada Lisboa

EuriacutepidesHeraclesS Barlow (1996) Euripides Heracles WarminsterG Bond (1981) Euripides Heracles Oxford

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Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

G Devereux (1976) Dreams in Greek Tragedy an ethno-psycho-analytical study Oxford

E R Dodds (2004) The Greeks and the Irrational BerkeleyA H M Kessels (1978) Studies on the Dream in Greek Literature UtrechtR G A van Lieshout (1980) Greeks on Dreams Utrecht

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 7: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

Comissatildeo Cientiacutefica Ana Cardoso de MatosArnaldo Espiacuterito SantoClaacuteudia TeixeiraCristina PimentelFilipe Themudo BarataFrancisco de OliveiraHermiacutenia VilarJorge de OliveiraJoseacute Alberto Gomes MachadoLeonor RochaManuel PatrociacutenioMafalda Soares da CunhaMaria de Faacutetima Sousa e SilvaMaria do Ceacuteu FialhoRicardo SantosTeresa Santos

Coordenaccedilatildeo do VolumeFrancisco de Oliveira

Claacuteudia TeixeiraPaula Barata Dias

Comissatildeo OrganizadoraAndreacute CarneiroArmando MartinsCarla Braz (secretariado)Clara OliveiraClaacuteudia TeixeiraFrancisco de OliveiraJorge de OliveiraLeonor RochaManuel PatrociacutenioPaula Barata DiasRicardo SantosValentina Castro

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33

IacuteNDICE

Vol 1 liacutenguas e literaturas greacutecia e roma

I - Antiguidade Grega

Espaccedilos do Grego e espaccedilos do outro nas Suplicantes de Eacutesquilo 15 Carlos A Martins de Jesus

Paisagens marinhas no Hipoacutelito de Euriacutepides 23 Maria do Ceacuteu Fialho

Tebas a cidade de Dioniso O caso de Heacuteracles de Euriacutepides 29 Sofia Frade

Nas moradas das ninfas o cenaacuterio do drama satiacuterico 35 Tereza Virgiacutenia Ribeiro Barbosa

A aacutegora de Atenas Coraccedilatildeo de uma urbe cosmopolita 43 Maria de Faacutetima Silva

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico 49 Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

Espaccedilos concebidos pela mente 59 Susana Marques Pereira

Quando Patilde e as Ninfas convertiam os simples mortais 65 Ana Seiccedila Carvalho

Turismo e patrimoacutenio na Antiguidade Claacutessica o texto atribuiacutedo a Fiacutelonde Bizacircncio sobre as Sete Maravilhas 73

Luiacutesa de Nazareacute Ferreira

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44

II - Antiguidade Romana

El espacio de la mujer en la medicina romana 83 Joseacute Pablo Barragaacuten Nieto

Espacios para la curacioacuten la domus en la tradicioacuten hipocraacutetico-galeacutenica 89 Mordf Carmen Fernaacutendez Tijero

Espacios literarios para la botaacutenica un jardiacuten de plantas medicinales 97 Alejandro Garciacutea Gonzaacutelez

A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre Metricologia Latina 105 Joatildeo Batista Toledo Prado

Entre vida puacuteblica e luxuria privada A propoacutesito das villae de Luculo 113 Manuel Troumlster

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero 121 Virgiacutenia Soares Pereira

Piacutendaro e Horaacutecio face a face 131 Maria Mafalda de Oliveira Viana

Virgiacutelio e a invenccedilatildeo da paisagem simboacutelica 139 Luiacutes M G Cerqueira

Um repasto na Arcaacutedia as Bucoacutelicas de Virgiacutelio 147 Inecircs de Ornellas e Castro

A poetizaccedilatildeo do espaccedilo nas Bucoacutelicas de Virgiacutelio simbologia da vida humana entre a euforia e a disforia 155

Antoacutenio Moniz

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas Metamorphoses de Oviacutedio 169

Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca Troades e Thyestes 175

Mariana Horta e Costa Matias

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55

Os espaccedilos das Troades de Seacuteneca 183 Paulo Seacutergio Ferreira

Salomatildeo parodiado elementos judaicos na paisagem pompeiana 191 Nuno Simotildees Rodrigues

O Anfiteatro de Ceacutesar a uacutenica obra que a Fama haacute-de celebrar 199 Joana Mestre Costa

De rio lamacento a corrente cristalina a transformaccedilatildeo do espaccedilo e da paisagem em Silvas 43 207

Ana Maria dos Santos Loacuteio

Paisaje fiacutesico y paisaje humano de la Germania seguacuten Ceacutesar y Taacutecito 215 Aurora Loacutepez

A ekphrasis suetoniana da Domus Aurea 223 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Villae y otros espacios de recreo en las Vidas de los Doce Ceacutesares de Suetonio 231 Mordf J Peacuterez Ibaacutentildeez

Roma nas Vidas Paralelas de Plutarco 237 Joaquim Pinheiro

O espaccedilo britacircnico e a paisagem no Agricola de Taacutecito 247 Ana Isabel Fonseca

Espaccedilos da morte na historiografia de Taacutecito 255 Maria Cristina Pimentel

O espaccedilo no conto de Eros e Psique 265 Maria Leonor Santa Baacuterbara

La relacioacuten del hombre con la naturaleza y el medio ambiente 273 Paolo Fedeli

Iacutendice de palavras-chave 283

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5757

num universo marcadamente rural a despeito do paradoxo que isso representa A proacutepria forma de organizaccedilatildeo e administraccedilatildeo que propotildees estaacute recheada de elementos do campo atribuindo agraves aves o direito de reinar sobre os demais seres colocando-as inclusive acima dos deuses O proacuteprio desenho arquitetocircnico imaginado pelo poeta e o estilo de vida que ali se desenvolveraacute nos remetem a uma paisagem campestre Observemos a passagem seguinte (vv 610ss)

ldquoEm primeiro lugar natildeo haveraacute necessidade de lhes construir templos de maacutermore com portas de oiro habitaratildeo nos bosques e sob a folhagem dos carvalhos as aves mais veneraacuteveis teratildeo por templo uma oliveira Natildeo seraacute preciso ir a Delfos ou ao tempo de Amon oferecer sacrifiacutecios De peacute entre os medronheiros e as oliveiras bravas mostrar-lhes-emos um punhado de cevada e de trigo e ali de matildeos estendidas pedir-lhes-emos que espalhem sobre noacutes os seus benefiacutecios E tudo por um punhado de trigordquo

A despeito de como observamos anteriormente o presente trabalho encontrar-se em estaacutegio inicial aferimos algumas conclusotildees parciais Aristoacutefanes euforiza a Chocircra em detrimento da aacutesty O espaccedilo rural aparece no teatro aristofacircnico como o lugar em que o camponecircs deve estar pois na cidade ele eacute infeliz e soacute pensa no dia em que poderaacute retornar agrave sua terra agraves suas atividades o pastoreio a agricultura a caccedila atividades verdadeiramente edificantes para o ser humano Os campos aristofacircnicos satildeo proacutesperos desde que impere a paz a abundacircncia de comida a bebida as festas regadas a cantigas danccedilarinas sexo Pensamos entatildeo que o poeta estaacute mais ligado aos valores veiculados na sociedade ateacute a primeira metade do seacuteculo V aC isto eacute aos valores aristocraacuteticos o que natildeo nos autoriza afirmar que estivesse comprometido politicamente com a aristocracia

Bibliografia

Textos AntigosAristoacutefanes Os Acarnenses Trad Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC 1985_____________ Os Cavaleiros Trad de Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC

1985_____________ As Vespas Trad Junito de Souza Brandatildeo In Teatro Grego

Euriacutepedes e Aristoacutefanes Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo sd_____________ As Nuvens Trad Gilda Maria Reale Starzynski_____________ A Paz Trad Maria de Faacutetima Silva 2ordf ed Coimbra INIC

1989

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico

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5858

Textos ModernosA L Chevitarese (2004) Fronteiras internas Atenienses no Periacuteodo Claacutessico

(Re)Definindo Conceitos e Propondo instrumentais Teoacutericos de Anaacutelise PHOIcircNIX Rio de Janeiro Mauad

__________ (2000) O Espaccedilo Rural da Polis Grega O Caso Ateniense no Periacuteodo Claacutessico Rio de Janeiro

V Ehrenberg (1951) The People of Aristophanes A Sociology of Attic Comedy 2ordf ed Oxford Basil Blackwell

D M Macdoweell (1996) Aristophanes and Athen ndash Na introduction to the Plays New York Oxford University Press

L O de Magalhatildees (2005) A Cidade Grega e os Modos urbanos da poliacutetica In M M de Carvalho As Cidades no Tempo Franca UNESP Satildeo Paulo Olho DacuteAacutegua

L O de Magalhatildees (1996) Curtumeiros e Salsicheiros ndash A Representaccedilatildeo Cocircmica da Demagogia em Cavaleiros de Aristoacutefanes Dissertaccedilatildeo de Mestrado Satildeo Paulo USP

Mordf F Sousa e Silva Poliacuteticos e Mulheres na Comeacutedia Grega Disponiacutevel lerletrasupptuploadsficheiros2537pdf

J P Vernant (1986) As Origens do Pensamento Grego Satildeo Paulo DifelA L B Vieira (2000) Os Camponeses e a Phisis Heacutelade 1 (2)__________ (2002) Polis Phisis e Chora o quinto seacuteculo ateniense In Neide

(org) Linguagens e Formas de Poder na Antiguidade Rio de Janeiro Mauad

Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

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ESPAccedilOS CONCEBIDOS PELA MENTE

Susana Marques Pereirauniversidade de Coimbra

AbstractlsquoIf I could review in dreams my fatherly house and the cityhelliprsquo (E iT 452 sq) cries out the

chorus of the Greek captives in Euripidesrsquo iphigenia among the Tauris The transposition of the physical real space to the world of dreams and visions waking

visions ie to a psychological subjective space allows us illustrate both the cares and longings of figures from the Homeric epics or of the Greek tragedies (cf Od 19581 2179 E iT 452 ss E HF 943 ss) As well as revealing symbolically way premonitory elements related to the human faith (cf E iT 42 ss) or still in a metaphoric language satirize the politiciansrsquo behaviour during Aristophanesrsquo time in pieces written by the comedian (cf V 31 ss)

The real spaces to which the dreams and visions point to contemplate the generic references to the city the reference to a place particularly associated to power the royal palace such as Ithaca or before the one of Argos and the amusing description of the public places of the polis

This study is intended to consider from a literary perspective the motives and the consequences of this connection between the physical and the psychological space taking into consideration the context in which the afore mentioned examples occur as well as the time in which they take placeKeywords illusion physical space psychological space realityPalavras-chave espaccedilo fiacutesico espaccedilo psicoloacutegico ilusatildeo realidade

lsquoSe eu pudesse rever em sonhos a casa e a cidade paternahelliprsquo(E iT 452 s) desabafa o coro de cativas gregas da ifigeacutenia entre os Tauros euripidiana A manifestaccedilatildeo nostaacutelgica das jovens que serviam Ifigeacutenia sacerdotisa de Aacutertemis na longiacutenqua Taacuteuride resulta de uma prolongada separaccedilatildeo da paacutetria heleacutenica que haviam sido constrangidas a abandonar No sonho as cativas encontram a capacidade de recuperar um local de fruiccedilatildeo existencial vivenciado no passado circunstacircncia sugestiva da alteridade espacial implicada na criaccedilatildeo da utopia topograficamente representada O desejo expresso pelo coro evidencia como a transposiccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico para o espaccedilo psicoloacutegico eacute capaz de aliviar anguacutestias pessoais natildeo obstante a consistecircncia fraacutegil da realidade entrevista Ao caraacutecter deacutebil - e breve - da visatildeo sobrepotildee-se a consolaccedilatildeo de ter novamente diante dos olhos a imagem cara da paacutetria amada o sonho permite um ansiado esvanecimento da separaccedilatildeo espacial efectiva provocada pelo doloroso exiacutelio assumindo-se claramente como um meio de evasatildeo propiciador de

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Susana Marques Pereira

uma satisfaccedilatildeo passageira como um veiacuteculo de esperanccedila Felicidade e dor inscrevem-se assim em lugares distintos para as jovens gregas respectivamente a Heacutelade e a Taacuteuride o antes e o agora A menccedilatildeo especiacutefica agrave casa de outrora tecto protector porto de abrigo e agrave cidade paterna local de criaccedilatildeo de laccedilos afectivos eacute sugestiva do desamparo a que se sentem votadas num espaccedilo em que se vecircem privadas da seguranccedila e do saudoso aconchego familiares

O sonho como meio de tornar presente um local grato ao receptor eacute jaacute referido por Peneacutelope na Odisseia de modo reiterado (cf Od 19 581 21 79) decidida por fim a deixar o lar e a conceder a matildeo a um dos pretendentes que haacute longos anos a instigavam a casar de novo a rainha de Iacutetaca afirma que atraveacutes de experiecircncias sonhadas poderaacute recordar lsquouma casa bela cheia de riquezasrsquo1 A deslocaccedilatildeo suscitada por um novo casamento que se afigura necessaacuterio realizar incita-a a prolongar no imaginaacuterio um passado que deseja que continue a existir O palaacutecio real de Iacutetaca afigura-se para a rainha como o elemento ideal de intersecccedilatildeo de espaccedilos e tempos distintos Curiosamente poreacutem ela natildeo o destaca enquanto local de felicidade conjugal mas refere-se antes agrave sua beleza e aos bens que possui valorizando a simbologia a que por tradiccedilatildeo estaacute associado i e ao poder A tal realce natildeo eacute por certo alheio o facto de devido agrave prolongada ausecircncia de Ulisses caberem a Peneacutelope competecircncias como salvaguarda de uma soberania que devia manter

Para a rainha de Iacutetaca como para o coro de cativas da ifigeacutenia entre os Tauros a involuntaacuteria mudanccedila espacial iminente e efectiva respectivamente corresponde a uma indesejada alteraccedilatildeo de condiccedilatildeo que o recurso agrave visatildeo sonhada permite de algum modo escamotear ao facultar-lhes a apropriaccedilatildeo momentacircnea de uma outra realidade conhecida e agradaacutevel Em qualquer um dos casos daacute-se relevo ao caraacutecter voluntaacuterio do sonho humano e em simultacircneo ao seu efeito terapecircutico

O espaccedilo percepcionado por Heacuteracles na peccedila homoacutenima de Euriacutepides revela motivos e consequecircncias bem distintos das situaccedilotildees antes descritas Na verdade enquanto a esposa de Ulisses e as jovens gregas encontram no espaccedilo da memoacuteria uma forma de atenuar os cuidados que as consomem e de satisfazer os seus desejos a deslocaccedilatildeo fictiacutecia no espaccedilo do filho de Alcmena converte-se na causa da sua desgraccedila pessoal Saliente-se poreacutem que se a alusatildeo das cativas e de Peneacutelope agraves experiecircncias oniacutericas espelha o tipo de sonho induzido e preparado como uma terapia para o proacuteprio sonhador as visotildees de Heacuteracles satildeo propositadamente forjadas pelo mundo divino como um meio de puniccedilatildeo do receptor (cf E HF 822 ss)2 De facto a compreensatildeo deturpada da realidade envolvente durante um acesso de loucura despoletado por intervenccedilatildeo de divindades nega a time devida ao ilustre heroacutei instigando-o a exibir uma violecircncia assassina num cenaacuterio por ele apreendido como outro o palaacutecio de Heacuteracles em Tebas eacute por malogrados momentos identificado com o

1 F Lourenccedilo 620052 De acordo com as palavras de Iacuteris e de Lissa divindades que surgem em cena de forma ater-

rorizadora sobre o palaacutecio de Tebas eacute a fuacuteria de Hera pelos amores furtivos de Zeus com Alcmena a responsaacutevel pelo deliacuterio de Heacuteracles (cf HF 825 ss)

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

Poemas HomeacutericosG S Kirk (ed) M Edwards (1991) The iliad a commentary vol V

CambridgeG S Kirk (ed) N Richardson (1993) The iliad a commentary vol VI

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EuriacutepidesHeraclesS Barlow (1996) Euripides Heracles WarminsterG Bond (1981) Euripides Heracles Oxford

Espaccedilos concebidos pela mente

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Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

G Devereux (1976) Dreams in Greek Tragedy an ethno-psycho-analytical study Oxford

E R Dodds (2004) The Greeks and the Irrational BerkeleyA H M Kessels (1978) Studies on the Dream in Greek Literature UtrechtR G A van Lieshout (1980) Greeks on Dreams Utrecht

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 8: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

33

IacuteNDICE

Vol 1 liacutenguas e literaturas greacutecia e roma

I - Antiguidade Grega

Espaccedilos do Grego e espaccedilos do outro nas Suplicantes de Eacutesquilo 15 Carlos A Martins de Jesus

Paisagens marinhas no Hipoacutelito de Euriacutepides 23 Maria do Ceacuteu Fialho

Tebas a cidade de Dioniso O caso de Heacuteracles de Euriacutepides 29 Sofia Frade

Nas moradas das ninfas o cenaacuterio do drama satiacuterico 35 Tereza Virgiacutenia Ribeiro Barbosa

A aacutegora de Atenas Coraccedilatildeo de uma urbe cosmopolita 43 Maria de Faacutetima Silva

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico 49 Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

Espaccedilos concebidos pela mente 59 Susana Marques Pereira

Quando Patilde e as Ninfas convertiam os simples mortais 65 Ana Seiccedila Carvalho

Turismo e patrimoacutenio na Antiguidade Claacutessica o texto atribuiacutedo a Fiacutelonde Bizacircncio sobre as Sete Maravilhas 73

Luiacutesa de Nazareacute Ferreira

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44

II - Antiguidade Romana

El espacio de la mujer en la medicina romana 83 Joseacute Pablo Barragaacuten Nieto

Espacios para la curacioacuten la domus en la tradicioacuten hipocraacutetico-galeacutenica 89 Mordf Carmen Fernaacutendez Tijero

Espacios literarios para la botaacutenica un jardiacuten de plantas medicinales 97 Alejandro Garciacutea Gonzaacutelez

A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre Metricologia Latina 105 Joatildeo Batista Toledo Prado

Entre vida puacuteblica e luxuria privada A propoacutesito das villae de Luculo 113 Manuel Troumlster

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero 121 Virgiacutenia Soares Pereira

Piacutendaro e Horaacutecio face a face 131 Maria Mafalda de Oliveira Viana

Virgiacutelio e a invenccedilatildeo da paisagem simboacutelica 139 Luiacutes M G Cerqueira

Um repasto na Arcaacutedia as Bucoacutelicas de Virgiacutelio 147 Inecircs de Ornellas e Castro

A poetizaccedilatildeo do espaccedilo nas Bucoacutelicas de Virgiacutelio simbologia da vida humana entre a euforia e a disforia 155

Antoacutenio Moniz

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas Metamorphoses de Oviacutedio 169

Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca Troades e Thyestes 175

Mariana Horta e Costa Matias

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55

Os espaccedilos das Troades de Seacuteneca 183 Paulo Seacutergio Ferreira

Salomatildeo parodiado elementos judaicos na paisagem pompeiana 191 Nuno Simotildees Rodrigues

O Anfiteatro de Ceacutesar a uacutenica obra que a Fama haacute-de celebrar 199 Joana Mestre Costa

De rio lamacento a corrente cristalina a transformaccedilatildeo do espaccedilo e da paisagem em Silvas 43 207

Ana Maria dos Santos Loacuteio

Paisaje fiacutesico y paisaje humano de la Germania seguacuten Ceacutesar y Taacutecito 215 Aurora Loacutepez

A ekphrasis suetoniana da Domus Aurea 223 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Villae y otros espacios de recreo en las Vidas de los Doce Ceacutesares de Suetonio 231 Mordf J Peacuterez Ibaacutentildeez

Roma nas Vidas Paralelas de Plutarco 237 Joaquim Pinheiro

O espaccedilo britacircnico e a paisagem no Agricola de Taacutecito 247 Ana Isabel Fonseca

Espaccedilos da morte na historiografia de Taacutecito 255 Maria Cristina Pimentel

O espaccedilo no conto de Eros e Psique 265 Maria Leonor Santa Baacuterbara

La relacioacuten del hombre con la naturaleza y el medio ambiente 273 Paolo Fedeli

Iacutendice de palavras-chave 283

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5757

num universo marcadamente rural a despeito do paradoxo que isso representa A proacutepria forma de organizaccedilatildeo e administraccedilatildeo que propotildees estaacute recheada de elementos do campo atribuindo agraves aves o direito de reinar sobre os demais seres colocando-as inclusive acima dos deuses O proacuteprio desenho arquitetocircnico imaginado pelo poeta e o estilo de vida que ali se desenvolveraacute nos remetem a uma paisagem campestre Observemos a passagem seguinte (vv 610ss)

ldquoEm primeiro lugar natildeo haveraacute necessidade de lhes construir templos de maacutermore com portas de oiro habitaratildeo nos bosques e sob a folhagem dos carvalhos as aves mais veneraacuteveis teratildeo por templo uma oliveira Natildeo seraacute preciso ir a Delfos ou ao tempo de Amon oferecer sacrifiacutecios De peacute entre os medronheiros e as oliveiras bravas mostrar-lhes-emos um punhado de cevada e de trigo e ali de matildeos estendidas pedir-lhes-emos que espalhem sobre noacutes os seus benefiacutecios E tudo por um punhado de trigordquo

A despeito de como observamos anteriormente o presente trabalho encontrar-se em estaacutegio inicial aferimos algumas conclusotildees parciais Aristoacutefanes euforiza a Chocircra em detrimento da aacutesty O espaccedilo rural aparece no teatro aristofacircnico como o lugar em que o camponecircs deve estar pois na cidade ele eacute infeliz e soacute pensa no dia em que poderaacute retornar agrave sua terra agraves suas atividades o pastoreio a agricultura a caccedila atividades verdadeiramente edificantes para o ser humano Os campos aristofacircnicos satildeo proacutesperos desde que impere a paz a abundacircncia de comida a bebida as festas regadas a cantigas danccedilarinas sexo Pensamos entatildeo que o poeta estaacute mais ligado aos valores veiculados na sociedade ateacute a primeira metade do seacuteculo V aC isto eacute aos valores aristocraacuteticos o que natildeo nos autoriza afirmar que estivesse comprometido politicamente com a aristocracia

Bibliografia

Textos AntigosAristoacutefanes Os Acarnenses Trad Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC 1985_____________ Os Cavaleiros Trad de Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC

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Euriacutepedes e Aristoacutefanes Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo sd_____________ As Nuvens Trad Gilda Maria Reale Starzynski_____________ A Paz Trad Maria de Faacutetima Silva 2ordf ed Coimbra INIC

1989

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico

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5858

Textos ModernosA L Chevitarese (2004) Fronteiras internas Atenienses no Periacuteodo Claacutessico

(Re)Definindo Conceitos e Propondo instrumentais Teoacutericos de Anaacutelise PHOIcircNIX Rio de Janeiro Mauad

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Mordf F Sousa e Silva Poliacuteticos e Mulheres na Comeacutedia Grega Disponiacutevel lerletrasupptuploadsficheiros2537pdf

J P Vernant (1986) As Origens do Pensamento Grego Satildeo Paulo DifelA L B Vieira (2000) Os Camponeses e a Phisis Heacutelade 1 (2)__________ (2002) Polis Phisis e Chora o quinto seacuteculo ateniense In Neide

(org) Linguagens e Formas de Poder na Antiguidade Rio de Janeiro Mauad

Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

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ESPAccedilOS CONCEBIDOS PELA MENTE

Susana Marques Pereirauniversidade de Coimbra

AbstractlsquoIf I could review in dreams my fatherly house and the cityhelliprsquo (E iT 452 sq) cries out the

chorus of the Greek captives in Euripidesrsquo iphigenia among the Tauris The transposition of the physical real space to the world of dreams and visions waking

visions ie to a psychological subjective space allows us illustrate both the cares and longings of figures from the Homeric epics or of the Greek tragedies (cf Od 19581 2179 E iT 452 ss E HF 943 ss) As well as revealing symbolically way premonitory elements related to the human faith (cf E iT 42 ss) or still in a metaphoric language satirize the politiciansrsquo behaviour during Aristophanesrsquo time in pieces written by the comedian (cf V 31 ss)

The real spaces to which the dreams and visions point to contemplate the generic references to the city the reference to a place particularly associated to power the royal palace such as Ithaca or before the one of Argos and the amusing description of the public places of the polis

This study is intended to consider from a literary perspective the motives and the consequences of this connection between the physical and the psychological space taking into consideration the context in which the afore mentioned examples occur as well as the time in which they take placeKeywords illusion physical space psychological space realityPalavras-chave espaccedilo fiacutesico espaccedilo psicoloacutegico ilusatildeo realidade

lsquoSe eu pudesse rever em sonhos a casa e a cidade paternahelliprsquo(E iT 452 s) desabafa o coro de cativas gregas da ifigeacutenia entre os Tauros euripidiana A manifestaccedilatildeo nostaacutelgica das jovens que serviam Ifigeacutenia sacerdotisa de Aacutertemis na longiacutenqua Taacuteuride resulta de uma prolongada separaccedilatildeo da paacutetria heleacutenica que haviam sido constrangidas a abandonar No sonho as cativas encontram a capacidade de recuperar um local de fruiccedilatildeo existencial vivenciado no passado circunstacircncia sugestiva da alteridade espacial implicada na criaccedilatildeo da utopia topograficamente representada O desejo expresso pelo coro evidencia como a transposiccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico para o espaccedilo psicoloacutegico eacute capaz de aliviar anguacutestias pessoais natildeo obstante a consistecircncia fraacutegil da realidade entrevista Ao caraacutecter deacutebil - e breve - da visatildeo sobrepotildee-se a consolaccedilatildeo de ter novamente diante dos olhos a imagem cara da paacutetria amada o sonho permite um ansiado esvanecimento da separaccedilatildeo espacial efectiva provocada pelo doloroso exiacutelio assumindo-se claramente como um meio de evasatildeo propiciador de

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Susana Marques Pereira

uma satisfaccedilatildeo passageira como um veiacuteculo de esperanccedila Felicidade e dor inscrevem-se assim em lugares distintos para as jovens gregas respectivamente a Heacutelade e a Taacuteuride o antes e o agora A menccedilatildeo especiacutefica agrave casa de outrora tecto protector porto de abrigo e agrave cidade paterna local de criaccedilatildeo de laccedilos afectivos eacute sugestiva do desamparo a que se sentem votadas num espaccedilo em que se vecircem privadas da seguranccedila e do saudoso aconchego familiares

O sonho como meio de tornar presente um local grato ao receptor eacute jaacute referido por Peneacutelope na Odisseia de modo reiterado (cf Od 19 581 21 79) decidida por fim a deixar o lar e a conceder a matildeo a um dos pretendentes que haacute longos anos a instigavam a casar de novo a rainha de Iacutetaca afirma que atraveacutes de experiecircncias sonhadas poderaacute recordar lsquouma casa bela cheia de riquezasrsquo1 A deslocaccedilatildeo suscitada por um novo casamento que se afigura necessaacuterio realizar incita-a a prolongar no imaginaacuterio um passado que deseja que continue a existir O palaacutecio real de Iacutetaca afigura-se para a rainha como o elemento ideal de intersecccedilatildeo de espaccedilos e tempos distintos Curiosamente poreacutem ela natildeo o destaca enquanto local de felicidade conjugal mas refere-se antes agrave sua beleza e aos bens que possui valorizando a simbologia a que por tradiccedilatildeo estaacute associado i e ao poder A tal realce natildeo eacute por certo alheio o facto de devido agrave prolongada ausecircncia de Ulisses caberem a Peneacutelope competecircncias como salvaguarda de uma soberania que devia manter

Para a rainha de Iacutetaca como para o coro de cativas da ifigeacutenia entre os Tauros a involuntaacuteria mudanccedila espacial iminente e efectiva respectivamente corresponde a uma indesejada alteraccedilatildeo de condiccedilatildeo que o recurso agrave visatildeo sonhada permite de algum modo escamotear ao facultar-lhes a apropriaccedilatildeo momentacircnea de uma outra realidade conhecida e agradaacutevel Em qualquer um dos casos daacute-se relevo ao caraacutecter voluntaacuterio do sonho humano e em simultacircneo ao seu efeito terapecircutico

O espaccedilo percepcionado por Heacuteracles na peccedila homoacutenima de Euriacutepides revela motivos e consequecircncias bem distintos das situaccedilotildees antes descritas Na verdade enquanto a esposa de Ulisses e as jovens gregas encontram no espaccedilo da memoacuteria uma forma de atenuar os cuidados que as consomem e de satisfazer os seus desejos a deslocaccedilatildeo fictiacutecia no espaccedilo do filho de Alcmena converte-se na causa da sua desgraccedila pessoal Saliente-se poreacutem que se a alusatildeo das cativas e de Peneacutelope agraves experiecircncias oniacutericas espelha o tipo de sonho induzido e preparado como uma terapia para o proacuteprio sonhador as visotildees de Heacuteracles satildeo propositadamente forjadas pelo mundo divino como um meio de puniccedilatildeo do receptor (cf E HF 822 ss)2 De facto a compreensatildeo deturpada da realidade envolvente durante um acesso de loucura despoletado por intervenccedilatildeo de divindades nega a time devida ao ilustre heroacutei instigando-o a exibir uma violecircncia assassina num cenaacuterio por ele apreendido como outro o palaacutecio de Heacuteracles em Tebas eacute por malogrados momentos identificado com o

1 F Lourenccedilo 620052 De acordo com as palavras de Iacuteris e de Lissa divindades que surgem em cena de forma ater-

rorizadora sobre o palaacutecio de Tebas eacute a fuacuteria de Hera pelos amores furtivos de Zeus com Alcmena a responsaacutevel pelo deliacuterio de Heacuteracles (cf HF 825 ss)

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

Espaccedilos concebidos pela mente

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

Susana Marques Pereira

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

Poemas HomeacutericosG S Kirk (ed) M Edwards (1991) The iliad a commentary vol V

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Espaccedilos concebidos pela mente

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Susana Marques Pereira

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

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Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 9: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

44

II - Antiguidade Romana

El espacio de la mujer en la medicina romana 83 Joseacute Pablo Barragaacuten Nieto

Espacios para la curacioacuten la domus en la tradicioacuten hipocraacutetico-galeacutenica 89 Mordf Carmen Fernaacutendez Tijero

Espacios literarios para la botaacutenica un jardiacuten de plantas medicinales 97 Alejandro Garciacutea Gonzaacutelez

A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre Metricologia Latina 105 Joatildeo Batista Toledo Prado

Entre vida puacuteblica e luxuria privada A propoacutesito das villae de Luculo 113 Manuel Troumlster

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero 121 Virgiacutenia Soares Pereira

Piacutendaro e Horaacutecio face a face 131 Maria Mafalda de Oliveira Viana

Virgiacutelio e a invenccedilatildeo da paisagem simboacutelica 139 Luiacutes M G Cerqueira

Um repasto na Arcaacutedia as Bucoacutelicas de Virgiacutelio 147 Inecircs de Ornellas e Castro

A poetizaccedilatildeo do espaccedilo nas Bucoacutelicas de Virgiacutelio simbologia da vida humana entre a euforia e a disforia 155

Antoacutenio Moniz

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas Metamorphoses de Oviacutedio 169

Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca Troades e Thyestes 175

Mariana Horta e Costa Matias

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55

Os espaccedilos das Troades de Seacuteneca 183 Paulo Seacutergio Ferreira

Salomatildeo parodiado elementos judaicos na paisagem pompeiana 191 Nuno Simotildees Rodrigues

O Anfiteatro de Ceacutesar a uacutenica obra que a Fama haacute-de celebrar 199 Joana Mestre Costa

De rio lamacento a corrente cristalina a transformaccedilatildeo do espaccedilo e da paisagem em Silvas 43 207

Ana Maria dos Santos Loacuteio

Paisaje fiacutesico y paisaje humano de la Germania seguacuten Ceacutesar y Taacutecito 215 Aurora Loacutepez

A ekphrasis suetoniana da Domus Aurea 223 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Villae y otros espacios de recreo en las Vidas de los Doce Ceacutesares de Suetonio 231 Mordf J Peacuterez Ibaacutentildeez

Roma nas Vidas Paralelas de Plutarco 237 Joaquim Pinheiro

O espaccedilo britacircnico e a paisagem no Agricola de Taacutecito 247 Ana Isabel Fonseca

Espaccedilos da morte na historiografia de Taacutecito 255 Maria Cristina Pimentel

O espaccedilo no conto de Eros e Psique 265 Maria Leonor Santa Baacuterbara

La relacioacuten del hombre con la naturaleza y el medio ambiente 273 Paolo Fedeli

Iacutendice de palavras-chave 283

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num universo marcadamente rural a despeito do paradoxo que isso representa A proacutepria forma de organizaccedilatildeo e administraccedilatildeo que propotildees estaacute recheada de elementos do campo atribuindo agraves aves o direito de reinar sobre os demais seres colocando-as inclusive acima dos deuses O proacuteprio desenho arquitetocircnico imaginado pelo poeta e o estilo de vida que ali se desenvolveraacute nos remetem a uma paisagem campestre Observemos a passagem seguinte (vv 610ss)

ldquoEm primeiro lugar natildeo haveraacute necessidade de lhes construir templos de maacutermore com portas de oiro habitaratildeo nos bosques e sob a folhagem dos carvalhos as aves mais veneraacuteveis teratildeo por templo uma oliveira Natildeo seraacute preciso ir a Delfos ou ao tempo de Amon oferecer sacrifiacutecios De peacute entre os medronheiros e as oliveiras bravas mostrar-lhes-emos um punhado de cevada e de trigo e ali de matildeos estendidas pedir-lhes-emos que espalhem sobre noacutes os seus benefiacutecios E tudo por um punhado de trigordquo

A despeito de como observamos anteriormente o presente trabalho encontrar-se em estaacutegio inicial aferimos algumas conclusotildees parciais Aristoacutefanes euforiza a Chocircra em detrimento da aacutesty O espaccedilo rural aparece no teatro aristofacircnico como o lugar em que o camponecircs deve estar pois na cidade ele eacute infeliz e soacute pensa no dia em que poderaacute retornar agrave sua terra agraves suas atividades o pastoreio a agricultura a caccedila atividades verdadeiramente edificantes para o ser humano Os campos aristofacircnicos satildeo proacutesperos desde que impere a paz a abundacircncia de comida a bebida as festas regadas a cantigas danccedilarinas sexo Pensamos entatildeo que o poeta estaacute mais ligado aos valores veiculados na sociedade ateacute a primeira metade do seacuteculo V aC isto eacute aos valores aristocraacuteticos o que natildeo nos autoriza afirmar que estivesse comprometido politicamente com a aristocracia

Bibliografia

Textos AntigosAristoacutefanes Os Acarnenses Trad Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC 1985_____________ Os Cavaleiros Trad de Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC

1985_____________ As Vespas Trad Junito de Souza Brandatildeo In Teatro Grego

Euriacutepedes e Aristoacutefanes Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo sd_____________ As Nuvens Trad Gilda Maria Reale Starzynski_____________ A Paz Trad Maria de Faacutetima Silva 2ordf ed Coimbra INIC

1989

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico

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Textos ModernosA L Chevitarese (2004) Fronteiras internas Atenienses no Periacuteodo Claacutessico

(Re)Definindo Conceitos e Propondo instrumentais Teoacutericos de Anaacutelise PHOIcircNIX Rio de Janeiro Mauad

__________ (2000) O Espaccedilo Rural da Polis Grega O Caso Ateniense no Periacuteodo Claacutessico Rio de Janeiro

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Mordf F Sousa e Silva Poliacuteticos e Mulheres na Comeacutedia Grega Disponiacutevel lerletrasupptuploadsficheiros2537pdf

J P Vernant (1986) As Origens do Pensamento Grego Satildeo Paulo DifelA L B Vieira (2000) Os Camponeses e a Phisis Heacutelade 1 (2)__________ (2002) Polis Phisis e Chora o quinto seacuteculo ateniense In Neide

(org) Linguagens e Formas de Poder na Antiguidade Rio de Janeiro Mauad

Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

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ESPAccedilOS CONCEBIDOS PELA MENTE

Susana Marques Pereirauniversidade de Coimbra

AbstractlsquoIf I could review in dreams my fatherly house and the cityhelliprsquo (E iT 452 sq) cries out the

chorus of the Greek captives in Euripidesrsquo iphigenia among the Tauris The transposition of the physical real space to the world of dreams and visions waking

visions ie to a psychological subjective space allows us illustrate both the cares and longings of figures from the Homeric epics or of the Greek tragedies (cf Od 19581 2179 E iT 452 ss E HF 943 ss) As well as revealing symbolically way premonitory elements related to the human faith (cf E iT 42 ss) or still in a metaphoric language satirize the politiciansrsquo behaviour during Aristophanesrsquo time in pieces written by the comedian (cf V 31 ss)

The real spaces to which the dreams and visions point to contemplate the generic references to the city the reference to a place particularly associated to power the royal palace such as Ithaca or before the one of Argos and the amusing description of the public places of the polis

This study is intended to consider from a literary perspective the motives and the consequences of this connection between the physical and the psychological space taking into consideration the context in which the afore mentioned examples occur as well as the time in which they take placeKeywords illusion physical space psychological space realityPalavras-chave espaccedilo fiacutesico espaccedilo psicoloacutegico ilusatildeo realidade

lsquoSe eu pudesse rever em sonhos a casa e a cidade paternahelliprsquo(E iT 452 s) desabafa o coro de cativas gregas da ifigeacutenia entre os Tauros euripidiana A manifestaccedilatildeo nostaacutelgica das jovens que serviam Ifigeacutenia sacerdotisa de Aacutertemis na longiacutenqua Taacuteuride resulta de uma prolongada separaccedilatildeo da paacutetria heleacutenica que haviam sido constrangidas a abandonar No sonho as cativas encontram a capacidade de recuperar um local de fruiccedilatildeo existencial vivenciado no passado circunstacircncia sugestiva da alteridade espacial implicada na criaccedilatildeo da utopia topograficamente representada O desejo expresso pelo coro evidencia como a transposiccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico para o espaccedilo psicoloacutegico eacute capaz de aliviar anguacutestias pessoais natildeo obstante a consistecircncia fraacutegil da realidade entrevista Ao caraacutecter deacutebil - e breve - da visatildeo sobrepotildee-se a consolaccedilatildeo de ter novamente diante dos olhos a imagem cara da paacutetria amada o sonho permite um ansiado esvanecimento da separaccedilatildeo espacial efectiva provocada pelo doloroso exiacutelio assumindo-se claramente como um meio de evasatildeo propiciador de

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Susana Marques Pereira

uma satisfaccedilatildeo passageira como um veiacuteculo de esperanccedila Felicidade e dor inscrevem-se assim em lugares distintos para as jovens gregas respectivamente a Heacutelade e a Taacuteuride o antes e o agora A menccedilatildeo especiacutefica agrave casa de outrora tecto protector porto de abrigo e agrave cidade paterna local de criaccedilatildeo de laccedilos afectivos eacute sugestiva do desamparo a que se sentem votadas num espaccedilo em que se vecircem privadas da seguranccedila e do saudoso aconchego familiares

O sonho como meio de tornar presente um local grato ao receptor eacute jaacute referido por Peneacutelope na Odisseia de modo reiterado (cf Od 19 581 21 79) decidida por fim a deixar o lar e a conceder a matildeo a um dos pretendentes que haacute longos anos a instigavam a casar de novo a rainha de Iacutetaca afirma que atraveacutes de experiecircncias sonhadas poderaacute recordar lsquouma casa bela cheia de riquezasrsquo1 A deslocaccedilatildeo suscitada por um novo casamento que se afigura necessaacuterio realizar incita-a a prolongar no imaginaacuterio um passado que deseja que continue a existir O palaacutecio real de Iacutetaca afigura-se para a rainha como o elemento ideal de intersecccedilatildeo de espaccedilos e tempos distintos Curiosamente poreacutem ela natildeo o destaca enquanto local de felicidade conjugal mas refere-se antes agrave sua beleza e aos bens que possui valorizando a simbologia a que por tradiccedilatildeo estaacute associado i e ao poder A tal realce natildeo eacute por certo alheio o facto de devido agrave prolongada ausecircncia de Ulisses caberem a Peneacutelope competecircncias como salvaguarda de uma soberania que devia manter

Para a rainha de Iacutetaca como para o coro de cativas da ifigeacutenia entre os Tauros a involuntaacuteria mudanccedila espacial iminente e efectiva respectivamente corresponde a uma indesejada alteraccedilatildeo de condiccedilatildeo que o recurso agrave visatildeo sonhada permite de algum modo escamotear ao facultar-lhes a apropriaccedilatildeo momentacircnea de uma outra realidade conhecida e agradaacutevel Em qualquer um dos casos daacute-se relevo ao caraacutecter voluntaacuterio do sonho humano e em simultacircneo ao seu efeito terapecircutico

O espaccedilo percepcionado por Heacuteracles na peccedila homoacutenima de Euriacutepides revela motivos e consequecircncias bem distintos das situaccedilotildees antes descritas Na verdade enquanto a esposa de Ulisses e as jovens gregas encontram no espaccedilo da memoacuteria uma forma de atenuar os cuidados que as consomem e de satisfazer os seus desejos a deslocaccedilatildeo fictiacutecia no espaccedilo do filho de Alcmena converte-se na causa da sua desgraccedila pessoal Saliente-se poreacutem que se a alusatildeo das cativas e de Peneacutelope agraves experiecircncias oniacutericas espelha o tipo de sonho induzido e preparado como uma terapia para o proacuteprio sonhador as visotildees de Heacuteracles satildeo propositadamente forjadas pelo mundo divino como um meio de puniccedilatildeo do receptor (cf E HF 822 ss)2 De facto a compreensatildeo deturpada da realidade envolvente durante um acesso de loucura despoletado por intervenccedilatildeo de divindades nega a time devida ao ilustre heroacutei instigando-o a exibir uma violecircncia assassina num cenaacuterio por ele apreendido como outro o palaacutecio de Heacuteracles em Tebas eacute por malogrados momentos identificado com o

1 F Lourenccedilo 620052 De acordo com as palavras de Iacuteris e de Lissa divindades que surgem em cena de forma ater-

rorizadora sobre o palaacutecio de Tebas eacute a fuacuteria de Hera pelos amores furtivos de Zeus com Alcmena a responsaacutevel pelo deliacuterio de Heacuteracles (cf HF 825 ss)

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

Espaccedilos concebidos pela mente

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

Susana Marques Pereira

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

Poemas HomeacutericosG S Kirk (ed) M Edwards (1991) The iliad a commentary vol V

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Espaccedilos concebidos pela mente

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Susana Marques Pereira

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

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Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 10: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

55

Os espaccedilos das Troades de Seacuteneca 183 Paulo Seacutergio Ferreira

Salomatildeo parodiado elementos judaicos na paisagem pompeiana 191 Nuno Simotildees Rodrigues

O Anfiteatro de Ceacutesar a uacutenica obra que a Fama haacute-de celebrar 199 Joana Mestre Costa

De rio lamacento a corrente cristalina a transformaccedilatildeo do espaccedilo e da paisagem em Silvas 43 207

Ana Maria dos Santos Loacuteio

Paisaje fiacutesico y paisaje humano de la Germania seguacuten Ceacutesar y Taacutecito 215 Aurora Loacutepez

A ekphrasis suetoniana da Domus Aurea 223 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo

Villae y otros espacios de recreo en las Vidas de los Doce Ceacutesares de Suetonio 231 Mordf J Peacuterez Ibaacutentildeez

Roma nas Vidas Paralelas de Plutarco 237 Joaquim Pinheiro

O espaccedilo britacircnico e a paisagem no Agricola de Taacutecito 247 Ana Isabel Fonseca

Espaccedilos da morte na historiografia de Taacutecito 255 Maria Cristina Pimentel

O espaccedilo no conto de Eros e Psique 265 Maria Leonor Santa Baacuterbara

La relacioacuten del hombre con la naturaleza y el medio ambiente 273 Paolo Fedeli

Iacutendice de palavras-chave 283

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5757

num universo marcadamente rural a despeito do paradoxo que isso representa A proacutepria forma de organizaccedilatildeo e administraccedilatildeo que propotildees estaacute recheada de elementos do campo atribuindo agraves aves o direito de reinar sobre os demais seres colocando-as inclusive acima dos deuses O proacuteprio desenho arquitetocircnico imaginado pelo poeta e o estilo de vida que ali se desenvolveraacute nos remetem a uma paisagem campestre Observemos a passagem seguinte (vv 610ss)

ldquoEm primeiro lugar natildeo haveraacute necessidade de lhes construir templos de maacutermore com portas de oiro habitaratildeo nos bosques e sob a folhagem dos carvalhos as aves mais veneraacuteveis teratildeo por templo uma oliveira Natildeo seraacute preciso ir a Delfos ou ao tempo de Amon oferecer sacrifiacutecios De peacute entre os medronheiros e as oliveiras bravas mostrar-lhes-emos um punhado de cevada e de trigo e ali de matildeos estendidas pedir-lhes-emos que espalhem sobre noacutes os seus benefiacutecios E tudo por um punhado de trigordquo

A despeito de como observamos anteriormente o presente trabalho encontrar-se em estaacutegio inicial aferimos algumas conclusotildees parciais Aristoacutefanes euforiza a Chocircra em detrimento da aacutesty O espaccedilo rural aparece no teatro aristofacircnico como o lugar em que o camponecircs deve estar pois na cidade ele eacute infeliz e soacute pensa no dia em que poderaacute retornar agrave sua terra agraves suas atividades o pastoreio a agricultura a caccedila atividades verdadeiramente edificantes para o ser humano Os campos aristofacircnicos satildeo proacutesperos desde que impere a paz a abundacircncia de comida a bebida as festas regadas a cantigas danccedilarinas sexo Pensamos entatildeo que o poeta estaacute mais ligado aos valores veiculados na sociedade ateacute a primeira metade do seacuteculo V aC isto eacute aos valores aristocraacuteticos o que natildeo nos autoriza afirmar que estivesse comprometido politicamente com a aristocracia

Bibliografia

Textos AntigosAristoacutefanes Os Acarnenses Trad Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC 1985_____________ Os Cavaleiros Trad de Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC

1985_____________ As Vespas Trad Junito de Souza Brandatildeo In Teatro Grego

Euriacutepedes e Aristoacutefanes Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo sd_____________ As Nuvens Trad Gilda Maria Reale Starzynski_____________ A Paz Trad Maria de Faacutetima Silva 2ordf ed Coimbra INIC

1989

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico

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5858

Textos ModernosA L Chevitarese (2004) Fronteiras internas Atenienses no Periacuteodo Claacutessico

(Re)Definindo Conceitos e Propondo instrumentais Teoacutericos de Anaacutelise PHOIcircNIX Rio de Janeiro Mauad

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Mordf F Sousa e Silva Poliacuteticos e Mulheres na Comeacutedia Grega Disponiacutevel lerletrasupptuploadsficheiros2537pdf

J P Vernant (1986) As Origens do Pensamento Grego Satildeo Paulo DifelA L B Vieira (2000) Os Camponeses e a Phisis Heacutelade 1 (2)__________ (2002) Polis Phisis e Chora o quinto seacuteculo ateniense In Neide

(org) Linguagens e Formas de Poder na Antiguidade Rio de Janeiro Mauad

Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

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ESPAccedilOS CONCEBIDOS PELA MENTE

Susana Marques Pereirauniversidade de Coimbra

AbstractlsquoIf I could review in dreams my fatherly house and the cityhelliprsquo (E iT 452 sq) cries out the

chorus of the Greek captives in Euripidesrsquo iphigenia among the Tauris The transposition of the physical real space to the world of dreams and visions waking

visions ie to a psychological subjective space allows us illustrate both the cares and longings of figures from the Homeric epics or of the Greek tragedies (cf Od 19581 2179 E iT 452 ss E HF 943 ss) As well as revealing symbolically way premonitory elements related to the human faith (cf E iT 42 ss) or still in a metaphoric language satirize the politiciansrsquo behaviour during Aristophanesrsquo time in pieces written by the comedian (cf V 31 ss)

The real spaces to which the dreams and visions point to contemplate the generic references to the city the reference to a place particularly associated to power the royal palace such as Ithaca or before the one of Argos and the amusing description of the public places of the polis

This study is intended to consider from a literary perspective the motives and the consequences of this connection between the physical and the psychological space taking into consideration the context in which the afore mentioned examples occur as well as the time in which they take placeKeywords illusion physical space psychological space realityPalavras-chave espaccedilo fiacutesico espaccedilo psicoloacutegico ilusatildeo realidade

lsquoSe eu pudesse rever em sonhos a casa e a cidade paternahelliprsquo(E iT 452 s) desabafa o coro de cativas gregas da ifigeacutenia entre os Tauros euripidiana A manifestaccedilatildeo nostaacutelgica das jovens que serviam Ifigeacutenia sacerdotisa de Aacutertemis na longiacutenqua Taacuteuride resulta de uma prolongada separaccedilatildeo da paacutetria heleacutenica que haviam sido constrangidas a abandonar No sonho as cativas encontram a capacidade de recuperar um local de fruiccedilatildeo existencial vivenciado no passado circunstacircncia sugestiva da alteridade espacial implicada na criaccedilatildeo da utopia topograficamente representada O desejo expresso pelo coro evidencia como a transposiccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico para o espaccedilo psicoloacutegico eacute capaz de aliviar anguacutestias pessoais natildeo obstante a consistecircncia fraacutegil da realidade entrevista Ao caraacutecter deacutebil - e breve - da visatildeo sobrepotildee-se a consolaccedilatildeo de ter novamente diante dos olhos a imagem cara da paacutetria amada o sonho permite um ansiado esvanecimento da separaccedilatildeo espacial efectiva provocada pelo doloroso exiacutelio assumindo-se claramente como um meio de evasatildeo propiciador de

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Susana Marques Pereira

uma satisfaccedilatildeo passageira como um veiacuteculo de esperanccedila Felicidade e dor inscrevem-se assim em lugares distintos para as jovens gregas respectivamente a Heacutelade e a Taacuteuride o antes e o agora A menccedilatildeo especiacutefica agrave casa de outrora tecto protector porto de abrigo e agrave cidade paterna local de criaccedilatildeo de laccedilos afectivos eacute sugestiva do desamparo a que se sentem votadas num espaccedilo em que se vecircem privadas da seguranccedila e do saudoso aconchego familiares

O sonho como meio de tornar presente um local grato ao receptor eacute jaacute referido por Peneacutelope na Odisseia de modo reiterado (cf Od 19 581 21 79) decidida por fim a deixar o lar e a conceder a matildeo a um dos pretendentes que haacute longos anos a instigavam a casar de novo a rainha de Iacutetaca afirma que atraveacutes de experiecircncias sonhadas poderaacute recordar lsquouma casa bela cheia de riquezasrsquo1 A deslocaccedilatildeo suscitada por um novo casamento que se afigura necessaacuterio realizar incita-a a prolongar no imaginaacuterio um passado que deseja que continue a existir O palaacutecio real de Iacutetaca afigura-se para a rainha como o elemento ideal de intersecccedilatildeo de espaccedilos e tempos distintos Curiosamente poreacutem ela natildeo o destaca enquanto local de felicidade conjugal mas refere-se antes agrave sua beleza e aos bens que possui valorizando a simbologia a que por tradiccedilatildeo estaacute associado i e ao poder A tal realce natildeo eacute por certo alheio o facto de devido agrave prolongada ausecircncia de Ulisses caberem a Peneacutelope competecircncias como salvaguarda de uma soberania que devia manter

Para a rainha de Iacutetaca como para o coro de cativas da ifigeacutenia entre os Tauros a involuntaacuteria mudanccedila espacial iminente e efectiva respectivamente corresponde a uma indesejada alteraccedilatildeo de condiccedilatildeo que o recurso agrave visatildeo sonhada permite de algum modo escamotear ao facultar-lhes a apropriaccedilatildeo momentacircnea de uma outra realidade conhecida e agradaacutevel Em qualquer um dos casos daacute-se relevo ao caraacutecter voluntaacuterio do sonho humano e em simultacircneo ao seu efeito terapecircutico

O espaccedilo percepcionado por Heacuteracles na peccedila homoacutenima de Euriacutepides revela motivos e consequecircncias bem distintos das situaccedilotildees antes descritas Na verdade enquanto a esposa de Ulisses e as jovens gregas encontram no espaccedilo da memoacuteria uma forma de atenuar os cuidados que as consomem e de satisfazer os seus desejos a deslocaccedilatildeo fictiacutecia no espaccedilo do filho de Alcmena converte-se na causa da sua desgraccedila pessoal Saliente-se poreacutem que se a alusatildeo das cativas e de Peneacutelope agraves experiecircncias oniacutericas espelha o tipo de sonho induzido e preparado como uma terapia para o proacuteprio sonhador as visotildees de Heacuteracles satildeo propositadamente forjadas pelo mundo divino como um meio de puniccedilatildeo do receptor (cf E HF 822 ss)2 De facto a compreensatildeo deturpada da realidade envolvente durante um acesso de loucura despoletado por intervenccedilatildeo de divindades nega a time devida ao ilustre heroacutei instigando-o a exibir uma violecircncia assassina num cenaacuterio por ele apreendido como outro o palaacutecio de Heacuteracles em Tebas eacute por malogrados momentos identificado com o

1 F Lourenccedilo 620052 De acordo com as palavras de Iacuteris e de Lissa divindades que surgem em cena de forma ater-

rorizadora sobre o palaacutecio de Tebas eacute a fuacuteria de Hera pelos amores furtivos de Zeus com Alcmena a responsaacutevel pelo deliacuterio de Heacuteracles (cf HF 825 ss)

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

Espaccedilos concebidos pela mente

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

Susana Marques Pereira

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

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Espaccedilos concebidos pela mente

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Susana Marques Pereira

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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in Cicerordquo JRA 12 33-56M Troumlster (2004) ldquoAspetti della tecnica biografica di Plutarco A proposito

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 11: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

5757

num universo marcadamente rural a despeito do paradoxo que isso representa A proacutepria forma de organizaccedilatildeo e administraccedilatildeo que propotildees estaacute recheada de elementos do campo atribuindo agraves aves o direito de reinar sobre os demais seres colocando-as inclusive acima dos deuses O proacuteprio desenho arquitetocircnico imaginado pelo poeta e o estilo de vida que ali se desenvolveraacute nos remetem a uma paisagem campestre Observemos a passagem seguinte (vv 610ss)

ldquoEm primeiro lugar natildeo haveraacute necessidade de lhes construir templos de maacutermore com portas de oiro habitaratildeo nos bosques e sob a folhagem dos carvalhos as aves mais veneraacuteveis teratildeo por templo uma oliveira Natildeo seraacute preciso ir a Delfos ou ao tempo de Amon oferecer sacrifiacutecios De peacute entre os medronheiros e as oliveiras bravas mostrar-lhes-emos um punhado de cevada e de trigo e ali de matildeos estendidas pedir-lhes-emos que espalhem sobre noacutes os seus benefiacutecios E tudo por um punhado de trigordquo

A despeito de como observamos anteriormente o presente trabalho encontrar-se em estaacutegio inicial aferimos algumas conclusotildees parciais Aristoacutefanes euforiza a Chocircra em detrimento da aacutesty O espaccedilo rural aparece no teatro aristofacircnico como o lugar em que o camponecircs deve estar pois na cidade ele eacute infeliz e soacute pensa no dia em que poderaacute retornar agrave sua terra agraves suas atividades o pastoreio a agricultura a caccedila atividades verdadeiramente edificantes para o ser humano Os campos aristofacircnicos satildeo proacutesperos desde que impere a paz a abundacircncia de comida a bebida as festas regadas a cantigas danccedilarinas sexo Pensamos entatildeo que o poeta estaacute mais ligado aos valores veiculados na sociedade ateacute a primeira metade do seacuteculo V aC isto eacute aos valores aristocraacuteticos o que natildeo nos autoriza afirmar que estivesse comprometido politicamente com a aristocracia

Bibliografia

Textos AntigosAristoacutefanes Os Acarnenses Trad Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC 1985_____________ Os Cavaleiros Trad de Maria de Faacutetima Silva Lisboa INIC

1985_____________ As Vespas Trad Junito de Souza Brandatildeo In Teatro Grego

Euriacutepedes e Aristoacutefanes Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo sd_____________ As Nuvens Trad Gilda Maria Reale Starzynski_____________ A Paz Trad Maria de Faacutetima Silva 2ordf ed Coimbra INIC

1989

O espaccedilo rural ateniense no teatro aristofacircnico

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5858

Textos ModernosA L Chevitarese (2004) Fronteiras internas Atenienses no Periacuteodo Claacutessico

(Re)Definindo Conceitos e Propondo instrumentais Teoacutericos de Anaacutelise PHOIcircNIX Rio de Janeiro Mauad

__________ (2000) O Espaccedilo Rural da Polis Grega O Caso Ateniense no Periacuteodo Claacutessico Rio de Janeiro

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L O de Magalhatildees (2005) A Cidade Grega e os Modos urbanos da poliacutetica In M M de Carvalho As Cidades no Tempo Franca UNESP Satildeo Paulo Olho DacuteAacutegua

L O de Magalhatildees (1996) Curtumeiros e Salsicheiros ndash A Representaccedilatildeo Cocircmica da Demagogia em Cavaleiros de Aristoacutefanes Dissertaccedilatildeo de Mestrado Satildeo Paulo USP

Mordf F Sousa e Silva Poliacuteticos e Mulheres na Comeacutedia Grega Disponiacutevel lerletrasupptuploadsficheiros2537pdf

J P Vernant (1986) As Origens do Pensamento Grego Satildeo Paulo DifelA L B Vieira (2000) Os Camponeses e a Phisis Heacutelade 1 (2)__________ (2002) Polis Phisis e Chora o quinto seacuteculo ateniense In Neide

(org) Linguagens e Formas de Poder na Antiguidade Rio de Janeiro Mauad

Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

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ESPAccedilOS CONCEBIDOS PELA MENTE

Susana Marques Pereirauniversidade de Coimbra

AbstractlsquoIf I could review in dreams my fatherly house and the cityhelliprsquo (E iT 452 sq) cries out the

chorus of the Greek captives in Euripidesrsquo iphigenia among the Tauris The transposition of the physical real space to the world of dreams and visions waking

visions ie to a psychological subjective space allows us illustrate both the cares and longings of figures from the Homeric epics or of the Greek tragedies (cf Od 19581 2179 E iT 452 ss E HF 943 ss) As well as revealing symbolically way premonitory elements related to the human faith (cf E iT 42 ss) or still in a metaphoric language satirize the politiciansrsquo behaviour during Aristophanesrsquo time in pieces written by the comedian (cf V 31 ss)

The real spaces to which the dreams and visions point to contemplate the generic references to the city the reference to a place particularly associated to power the royal palace such as Ithaca or before the one of Argos and the amusing description of the public places of the polis

This study is intended to consider from a literary perspective the motives and the consequences of this connection between the physical and the psychological space taking into consideration the context in which the afore mentioned examples occur as well as the time in which they take placeKeywords illusion physical space psychological space realityPalavras-chave espaccedilo fiacutesico espaccedilo psicoloacutegico ilusatildeo realidade

lsquoSe eu pudesse rever em sonhos a casa e a cidade paternahelliprsquo(E iT 452 s) desabafa o coro de cativas gregas da ifigeacutenia entre os Tauros euripidiana A manifestaccedilatildeo nostaacutelgica das jovens que serviam Ifigeacutenia sacerdotisa de Aacutertemis na longiacutenqua Taacuteuride resulta de uma prolongada separaccedilatildeo da paacutetria heleacutenica que haviam sido constrangidas a abandonar No sonho as cativas encontram a capacidade de recuperar um local de fruiccedilatildeo existencial vivenciado no passado circunstacircncia sugestiva da alteridade espacial implicada na criaccedilatildeo da utopia topograficamente representada O desejo expresso pelo coro evidencia como a transposiccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico para o espaccedilo psicoloacutegico eacute capaz de aliviar anguacutestias pessoais natildeo obstante a consistecircncia fraacutegil da realidade entrevista Ao caraacutecter deacutebil - e breve - da visatildeo sobrepotildee-se a consolaccedilatildeo de ter novamente diante dos olhos a imagem cara da paacutetria amada o sonho permite um ansiado esvanecimento da separaccedilatildeo espacial efectiva provocada pelo doloroso exiacutelio assumindo-se claramente como um meio de evasatildeo propiciador de

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Susana Marques Pereira

uma satisfaccedilatildeo passageira como um veiacuteculo de esperanccedila Felicidade e dor inscrevem-se assim em lugares distintos para as jovens gregas respectivamente a Heacutelade e a Taacuteuride o antes e o agora A menccedilatildeo especiacutefica agrave casa de outrora tecto protector porto de abrigo e agrave cidade paterna local de criaccedilatildeo de laccedilos afectivos eacute sugestiva do desamparo a que se sentem votadas num espaccedilo em que se vecircem privadas da seguranccedila e do saudoso aconchego familiares

O sonho como meio de tornar presente um local grato ao receptor eacute jaacute referido por Peneacutelope na Odisseia de modo reiterado (cf Od 19 581 21 79) decidida por fim a deixar o lar e a conceder a matildeo a um dos pretendentes que haacute longos anos a instigavam a casar de novo a rainha de Iacutetaca afirma que atraveacutes de experiecircncias sonhadas poderaacute recordar lsquouma casa bela cheia de riquezasrsquo1 A deslocaccedilatildeo suscitada por um novo casamento que se afigura necessaacuterio realizar incita-a a prolongar no imaginaacuterio um passado que deseja que continue a existir O palaacutecio real de Iacutetaca afigura-se para a rainha como o elemento ideal de intersecccedilatildeo de espaccedilos e tempos distintos Curiosamente poreacutem ela natildeo o destaca enquanto local de felicidade conjugal mas refere-se antes agrave sua beleza e aos bens que possui valorizando a simbologia a que por tradiccedilatildeo estaacute associado i e ao poder A tal realce natildeo eacute por certo alheio o facto de devido agrave prolongada ausecircncia de Ulisses caberem a Peneacutelope competecircncias como salvaguarda de uma soberania que devia manter

Para a rainha de Iacutetaca como para o coro de cativas da ifigeacutenia entre os Tauros a involuntaacuteria mudanccedila espacial iminente e efectiva respectivamente corresponde a uma indesejada alteraccedilatildeo de condiccedilatildeo que o recurso agrave visatildeo sonhada permite de algum modo escamotear ao facultar-lhes a apropriaccedilatildeo momentacircnea de uma outra realidade conhecida e agradaacutevel Em qualquer um dos casos daacute-se relevo ao caraacutecter voluntaacuterio do sonho humano e em simultacircneo ao seu efeito terapecircutico

O espaccedilo percepcionado por Heacuteracles na peccedila homoacutenima de Euriacutepides revela motivos e consequecircncias bem distintos das situaccedilotildees antes descritas Na verdade enquanto a esposa de Ulisses e as jovens gregas encontram no espaccedilo da memoacuteria uma forma de atenuar os cuidados que as consomem e de satisfazer os seus desejos a deslocaccedilatildeo fictiacutecia no espaccedilo do filho de Alcmena converte-se na causa da sua desgraccedila pessoal Saliente-se poreacutem que se a alusatildeo das cativas e de Peneacutelope agraves experiecircncias oniacutericas espelha o tipo de sonho induzido e preparado como uma terapia para o proacuteprio sonhador as visotildees de Heacuteracles satildeo propositadamente forjadas pelo mundo divino como um meio de puniccedilatildeo do receptor (cf E HF 822 ss)2 De facto a compreensatildeo deturpada da realidade envolvente durante um acesso de loucura despoletado por intervenccedilatildeo de divindades nega a time devida ao ilustre heroacutei instigando-o a exibir uma violecircncia assassina num cenaacuterio por ele apreendido como outro o palaacutecio de Heacuteracles em Tebas eacute por malogrados momentos identificado com o

1 F Lourenccedilo 620052 De acordo com as palavras de Iacuteris e de Lissa divindades que surgem em cena de forma ater-

rorizadora sobre o palaacutecio de Tebas eacute a fuacuteria de Hera pelos amores furtivos de Zeus com Alcmena a responsaacutevel pelo deliacuterio de Heacuteracles (cf HF 825 ss)

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

Espaccedilos concebidos pela mente

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

Poemas HomeacutericosG S Kirk (ed) M Edwards (1991) The iliad a commentary vol V

CambridgeG S Kirk (ed) N Richardson (1993) The iliad a commentary vol VI

CambridgeF Lourenccedilo (22005) Homero iliacuteada Lisboa

EuriacutepidesHeraclesS Barlow (1996) Euripides Heracles WarminsterG Bond (1981) Euripides Heracles Oxford

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Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

G Devereux (1976) Dreams in Greek Tragedy an ethno-psycho-analytical study Oxford

E R Dodds (2004) The Greeks and the Irrational BerkeleyA H M Kessels (1978) Studies on the Dream in Greek Literature UtrechtR G A van Lieshout (1980) Greeks on Dreams Utrecht

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 12: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

5858

Textos ModernosA L Chevitarese (2004) Fronteiras internas Atenienses no Periacuteodo Claacutessico

(Re)Definindo Conceitos e Propondo instrumentais Teoacutericos de Anaacutelise PHOIcircNIX Rio de Janeiro Mauad

__________ (2000) O Espaccedilo Rural da Polis Grega O Caso Ateniense no Periacuteodo Claacutessico Rio de Janeiro

V Ehrenberg (1951) The People of Aristophanes A Sociology of Attic Comedy 2ordf ed Oxford Basil Blackwell

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Mordf F Sousa e Silva Poliacuteticos e Mulheres na Comeacutedia Grega Disponiacutevel lerletrasupptuploadsficheiros2537pdf

J P Vernant (1986) As Origens do Pensamento Grego Satildeo Paulo DifelA L B Vieira (2000) Os Camponeses e a Phisis Heacutelade 1 (2)__________ (2002) Polis Phisis e Chora o quinto seacuteculo ateniense In Neide

(org) Linguagens e Formas de Poder na Antiguidade Rio de Janeiro Mauad

Maacutercia Cristina Lacerda Ribeiro

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ESPAccedilOS CONCEBIDOS PELA MENTE

Susana Marques Pereirauniversidade de Coimbra

AbstractlsquoIf I could review in dreams my fatherly house and the cityhelliprsquo (E iT 452 sq) cries out the

chorus of the Greek captives in Euripidesrsquo iphigenia among the Tauris The transposition of the physical real space to the world of dreams and visions waking

visions ie to a psychological subjective space allows us illustrate both the cares and longings of figures from the Homeric epics or of the Greek tragedies (cf Od 19581 2179 E iT 452 ss E HF 943 ss) As well as revealing symbolically way premonitory elements related to the human faith (cf E iT 42 ss) or still in a metaphoric language satirize the politiciansrsquo behaviour during Aristophanesrsquo time in pieces written by the comedian (cf V 31 ss)

The real spaces to which the dreams and visions point to contemplate the generic references to the city the reference to a place particularly associated to power the royal palace such as Ithaca or before the one of Argos and the amusing description of the public places of the polis

This study is intended to consider from a literary perspective the motives and the consequences of this connection between the physical and the psychological space taking into consideration the context in which the afore mentioned examples occur as well as the time in which they take placeKeywords illusion physical space psychological space realityPalavras-chave espaccedilo fiacutesico espaccedilo psicoloacutegico ilusatildeo realidade

lsquoSe eu pudesse rever em sonhos a casa e a cidade paternahelliprsquo(E iT 452 s) desabafa o coro de cativas gregas da ifigeacutenia entre os Tauros euripidiana A manifestaccedilatildeo nostaacutelgica das jovens que serviam Ifigeacutenia sacerdotisa de Aacutertemis na longiacutenqua Taacuteuride resulta de uma prolongada separaccedilatildeo da paacutetria heleacutenica que haviam sido constrangidas a abandonar No sonho as cativas encontram a capacidade de recuperar um local de fruiccedilatildeo existencial vivenciado no passado circunstacircncia sugestiva da alteridade espacial implicada na criaccedilatildeo da utopia topograficamente representada O desejo expresso pelo coro evidencia como a transposiccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico para o espaccedilo psicoloacutegico eacute capaz de aliviar anguacutestias pessoais natildeo obstante a consistecircncia fraacutegil da realidade entrevista Ao caraacutecter deacutebil - e breve - da visatildeo sobrepotildee-se a consolaccedilatildeo de ter novamente diante dos olhos a imagem cara da paacutetria amada o sonho permite um ansiado esvanecimento da separaccedilatildeo espacial efectiva provocada pelo doloroso exiacutelio assumindo-se claramente como um meio de evasatildeo propiciador de

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Susana Marques Pereira

uma satisfaccedilatildeo passageira como um veiacuteculo de esperanccedila Felicidade e dor inscrevem-se assim em lugares distintos para as jovens gregas respectivamente a Heacutelade e a Taacuteuride o antes e o agora A menccedilatildeo especiacutefica agrave casa de outrora tecto protector porto de abrigo e agrave cidade paterna local de criaccedilatildeo de laccedilos afectivos eacute sugestiva do desamparo a que se sentem votadas num espaccedilo em que se vecircem privadas da seguranccedila e do saudoso aconchego familiares

O sonho como meio de tornar presente um local grato ao receptor eacute jaacute referido por Peneacutelope na Odisseia de modo reiterado (cf Od 19 581 21 79) decidida por fim a deixar o lar e a conceder a matildeo a um dos pretendentes que haacute longos anos a instigavam a casar de novo a rainha de Iacutetaca afirma que atraveacutes de experiecircncias sonhadas poderaacute recordar lsquouma casa bela cheia de riquezasrsquo1 A deslocaccedilatildeo suscitada por um novo casamento que se afigura necessaacuterio realizar incita-a a prolongar no imaginaacuterio um passado que deseja que continue a existir O palaacutecio real de Iacutetaca afigura-se para a rainha como o elemento ideal de intersecccedilatildeo de espaccedilos e tempos distintos Curiosamente poreacutem ela natildeo o destaca enquanto local de felicidade conjugal mas refere-se antes agrave sua beleza e aos bens que possui valorizando a simbologia a que por tradiccedilatildeo estaacute associado i e ao poder A tal realce natildeo eacute por certo alheio o facto de devido agrave prolongada ausecircncia de Ulisses caberem a Peneacutelope competecircncias como salvaguarda de uma soberania que devia manter

Para a rainha de Iacutetaca como para o coro de cativas da ifigeacutenia entre os Tauros a involuntaacuteria mudanccedila espacial iminente e efectiva respectivamente corresponde a uma indesejada alteraccedilatildeo de condiccedilatildeo que o recurso agrave visatildeo sonhada permite de algum modo escamotear ao facultar-lhes a apropriaccedilatildeo momentacircnea de uma outra realidade conhecida e agradaacutevel Em qualquer um dos casos daacute-se relevo ao caraacutecter voluntaacuterio do sonho humano e em simultacircneo ao seu efeito terapecircutico

O espaccedilo percepcionado por Heacuteracles na peccedila homoacutenima de Euriacutepides revela motivos e consequecircncias bem distintos das situaccedilotildees antes descritas Na verdade enquanto a esposa de Ulisses e as jovens gregas encontram no espaccedilo da memoacuteria uma forma de atenuar os cuidados que as consomem e de satisfazer os seus desejos a deslocaccedilatildeo fictiacutecia no espaccedilo do filho de Alcmena converte-se na causa da sua desgraccedila pessoal Saliente-se poreacutem que se a alusatildeo das cativas e de Peneacutelope agraves experiecircncias oniacutericas espelha o tipo de sonho induzido e preparado como uma terapia para o proacuteprio sonhador as visotildees de Heacuteracles satildeo propositadamente forjadas pelo mundo divino como um meio de puniccedilatildeo do receptor (cf E HF 822 ss)2 De facto a compreensatildeo deturpada da realidade envolvente durante um acesso de loucura despoletado por intervenccedilatildeo de divindades nega a time devida ao ilustre heroacutei instigando-o a exibir uma violecircncia assassina num cenaacuterio por ele apreendido como outro o palaacutecio de Heacuteracles em Tebas eacute por malogrados momentos identificado com o

1 F Lourenccedilo 620052 De acordo com as palavras de Iacuteris e de Lissa divindades que surgem em cena de forma ater-

rorizadora sobre o palaacutecio de Tebas eacute a fuacuteria de Hera pelos amores furtivos de Zeus com Alcmena a responsaacutevel pelo deliacuterio de Heacuteracles (cf HF 825 ss)

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

Susana Marques Pereira

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

Poemas HomeacutericosG S Kirk (ed) M Edwards (1991) The iliad a commentary vol V

CambridgeG S Kirk (ed) N Richardson (1993) The iliad a commentary vol VI

CambridgeF Lourenccedilo (22005) Homero iliacuteada Lisboa

EuriacutepidesHeraclesS Barlow (1996) Euripides Heracles WarminsterG Bond (1981) Euripides Heracles Oxford

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Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

G Devereux (1976) Dreams in Greek Tragedy an ethno-psycho-analytical study Oxford

E R Dodds (2004) The Greeks and the Irrational BerkeleyA H M Kessels (1978) Studies on the Dream in Greek Literature UtrechtR G A van Lieshout (1980) Greeks on Dreams Utrecht

Susana Marques Pereira

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

Mariana Horta e Costa Matias

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179179

Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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180180

(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 13: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

5959

ESPAccedilOS CONCEBIDOS PELA MENTE

Susana Marques Pereirauniversidade de Coimbra

AbstractlsquoIf I could review in dreams my fatherly house and the cityhelliprsquo (E iT 452 sq) cries out the

chorus of the Greek captives in Euripidesrsquo iphigenia among the Tauris The transposition of the physical real space to the world of dreams and visions waking

visions ie to a psychological subjective space allows us illustrate both the cares and longings of figures from the Homeric epics or of the Greek tragedies (cf Od 19581 2179 E iT 452 ss E HF 943 ss) As well as revealing symbolically way premonitory elements related to the human faith (cf E iT 42 ss) or still in a metaphoric language satirize the politiciansrsquo behaviour during Aristophanesrsquo time in pieces written by the comedian (cf V 31 ss)

The real spaces to which the dreams and visions point to contemplate the generic references to the city the reference to a place particularly associated to power the royal palace such as Ithaca or before the one of Argos and the amusing description of the public places of the polis

This study is intended to consider from a literary perspective the motives and the consequences of this connection between the physical and the psychological space taking into consideration the context in which the afore mentioned examples occur as well as the time in which they take placeKeywords illusion physical space psychological space realityPalavras-chave espaccedilo fiacutesico espaccedilo psicoloacutegico ilusatildeo realidade

lsquoSe eu pudesse rever em sonhos a casa e a cidade paternahelliprsquo(E iT 452 s) desabafa o coro de cativas gregas da ifigeacutenia entre os Tauros euripidiana A manifestaccedilatildeo nostaacutelgica das jovens que serviam Ifigeacutenia sacerdotisa de Aacutertemis na longiacutenqua Taacuteuride resulta de uma prolongada separaccedilatildeo da paacutetria heleacutenica que haviam sido constrangidas a abandonar No sonho as cativas encontram a capacidade de recuperar um local de fruiccedilatildeo existencial vivenciado no passado circunstacircncia sugestiva da alteridade espacial implicada na criaccedilatildeo da utopia topograficamente representada O desejo expresso pelo coro evidencia como a transposiccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico para o espaccedilo psicoloacutegico eacute capaz de aliviar anguacutestias pessoais natildeo obstante a consistecircncia fraacutegil da realidade entrevista Ao caraacutecter deacutebil - e breve - da visatildeo sobrepotildee-se a consolaccedilatildeo de ter novamente diante dos olhos a imagem cara da paacutetria amada o sonho permite um ansiado esvanecimento da separaccedilatildeo espacial efectiva provocada pelo doloroso exiacutelio assumindo-se claramente como um meio de evasatildeo propiciador de

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Susana Marques Pereira

uma satisfaccedilatildeo passageira como um veiacuteculo de esperanccedila Felicidade e dor inscrevem-se assim em lugares distintos para as jovens gregas respectivamente a Heacutelade e a Taacuteuride o antes e o agora A menccedilatildeo especiacutefica agrave casa de outrora tecto protector porto de abrigo e agrave cidade paterna local de criaccedilatildeo de laccedilos afectivos eacute sugestiva do desamparo a que se sentem votadas num espaccedilo em que se vecircem privadas da seguranccedila e do saudoso aconchego familiares

O sonho como meio de tornar presente um local grato ao receptor eacute jaacute referido por Peneacutelope na Odisseia de modo reiterado (cf Od 19 581 21 79) decidida por fim a deixar o lar e a conceder a matildeo a um dos pretendentes que haacute longos anos a instigavam a casar de novo a rainha de Iacutetaca afirma que atraveacutes de experiecircncias sonhadas poderaacute recordar lsquouma casa bela cheia de riquezasrsquo1 A deslocaccedilatildeo suscitada por um novo casamento que se afigura necessaacuterio realizar incita-a a prolongar no imaginaacuterio um passado que deseja que continue a existir O palaacutecio real de Iacutetaca afigura-se para a rainha como o elemento ideal de intersecccedilatildeo de espaccedilos e tempos distintos Curiosamente poreacutem ela natildeo o destaca enquanto local de felicidade conjugal mas refere-se antes agrave sua beleza e aos bens que possui valorizando a simbologia a que por tradiccedilatildeo estaacute associado i e ao poder A tal realce natildeo eacute por certo alheio o facto de devido agrave prolongada ausecircncia de Ulisses caberem a Peneacutelope competecircncias como salvaguarda de uma soberania que devia manter

Para a rainha de Iacutetaca como para o coro de cativas da ifigeacutenia entre os Tauros a involuntaacuteria mudanccedila espacial iminente e efectiva respectivamente corresponde a uma indesejada alteraccedilatildeo de condiccedilatildeo que o recurso agrave visatildeo sonhada permite de algum modo escamotear ao facultar-lhes a apropriaccedilatildeo momentacircnea de uma outra realidade conhecida e agradaacutevel Em qualquer um dos casos daacute-se relevo ao caraacutecter voluntaacuterio do sonho humano e em simultacircneo ao seu efeito terapecircutico

O espaccedilo percepcionado por Heacuteracles na peccedila homoacutenima de Euriacutepides revela motivos e consequecircncias bem distintos das situaccedilotildees antes descritas Na verdade enquanto a esposa de Ulisses e as jovens gregas encontram no espaccedilo da memoacuteria uma forma de atenuar os cuidados que as consomem e de satisfazer os seus desejos a deslocaccedilatildeo fictiacutecia no espaccedilo do filho de Alcmena converte-se na causa da sua desgraccedila pessoal Saliente-se poreacutem que se a alusatildeo das cativas e de Peneacutelope agraves experiecircncias oniacutericas espelha o tipo de sonho induzido e preparado como uma terapia para o proacuteprio sonhador as visotildees de Heacuteracles satildeo propositadamente forjadas pelo mundo divino como um meio de puniccedilatildeo do receptor (cf E HF 822 ss)2 De facto a compreensatildeo deturpada da realidade envolvente durante um acesso de loucura despoletado por intervenccedilatildeo de divindades nega a time devida ao ilustre heroacutei instigando-o a exibir uma violecircncia assassina num cenaacuterio por ele apreendido como outro o palaacutecio de Heacuteracles em Tebas eacute por malogrados momentos identificado com o

1 F Lourenccedilo 620052 De acordo com as palavras de Iacuteris e de Lissa divindades que surgem em cena de forma ater-

rorizadora sobre o palaacutecio de Tebas eacute a fuacuteria de Hera pelos amores furtivos de Zeus com Alcmena a responsaacutevel pelo deliacuterio de Heacuteracles (cf HF 825 ss)

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

Espaccedilos concebidos pela mente

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

Susana Marques Pereira

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

Poemas HomeacutericosG S Kirk (ed) M Edwards (1991) The iliad a commentary vol V

CambridgeG S Kirk (ed) N Richardson (1993) The iliad a commentary vol VI

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EuriacutepidesHeraclesS Barlow (1996) Euripides Heracles WarminsterG Bond (1981) Euripides Heracles Oxford

Espaccedilos concebidos pela mente

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Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

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Susana Marques Pereira

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

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Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 14: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

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Susana Marques Pereira

uma satisfaccedilatildeo passageira como um veiacuteculo de esperanccedila Felicidade e dor inscrevem-se assim em lugares distintos para as jovens gregas respectivamente a Heacutelade e a Taacuteuride o antes e o agora A menccedilatildeo especiacutefica agrave casa de outrora tecto protector porto de abrigo e agrave cidade paterna local de criaccedilatildeo de laccedilos afectivos eacute sugestiva do desamparo a que se sentem votadas num espaccedilo em que se vecircem privadas da seguranccedila e do saudoso aconchego familiares

O sonho como meio de tornar presente um local grato ao receptor eacute jaacute referido por Peneacutelope na Odisseia de modo reiterado (cf Od 19 581 21 79) decidida por fim a deixar o lar e a conceder a matildeo a um dos pretendentes que haacute longos anos a instigavam a casar de novo a rainha de Iacutetaca afirma que atraveacutes de experiecircncias sonhadas poderaacute recordar lsquouma casa bela cheia de riquezasrsquo1 A deslocaccedilatildeo suscitada por um novo casamento que se afigura necessaacuterio realizar incita-a a prolongar no imaginaacuterio um passado que deseja que continue a existir O palaacutecio real de Iacutetaca afigura-se para a rainha como o elemento ideal de intersecccedilatildeo de espaccedilos e tempos distintos Curiosamente poreacutem ela natildeo o destaca enquanto local de felicidade conjugal mas refere-se antes agrave sua beleza e aos bens que possui valorizando a simbologia a que por tradiccedilatildeo estaacute associado i e ao poder A tal realce natildeo eacute por certo alheio o facto de devido agrave prolongada ausecircncia de Ulisses caberem a Peneacutelope competecircncias como salvaguarda de uma soberania que devia manter

Para a rainha de Iacutetaca como para o coro de cativas da ifigeacutenia entre os Tauros a involuntaacuteria mudanccedila espacial iminente e efectiva respectivamente corresponde a uma indesejada alteraccedilatildeo de condiccedilatildeo que o recurso agrave visatildeo sonhada permite de algum modo escamotear ao facultar-lhes a apropriaccedilatildeo momentacircnea de uma outra realidade conhecida e agradaacutevel Em qualquer um dos casos daacute-se relevo ao caraacutecter voluntaacuterio do sonho humano e em simultacircneo ao seu efeito terapecircutico

O espaccedilo percepcionado por Heacuteracles na peccedila homoacutenima de Euriacutepides revela motivos e consequecircncias bem distintos das situaccedilotildees antes descritas Na verdade enquanto a esposa de Ulisses e as jovens gregas encontram no espaccedilo da memoacuteria uma forma de atenuar os cuidados que as consomem e de satisfazer os seus desejos a deslocaccedilatildeo fictiacutecia no espaccedilo do filho de Alcmena converte-se na causa da sua desgraccedila pessoal Saliente-se poreacutem que se a alusatildeo das cativas e de Peneacutelope agraves experiecircncias oniacutericas espelha o tipo de sonho induzido e preparado como uma terapia para o proacuteprio sonhador as visotildees de Heacuteracles satildeo propositadamente forjadas pelo mundo divino como um meio de puniccedilatildeo do receptor (cf E HF 822 ss)2 De facto a compreensatildeo deturpada da realidade envolvente durante um acesso de loucura despoletado por intervenccedilatildeo de divindades nega a time devida ao ilustre heroacutei instigando-o a exibir uma violecircncia assassina num cenaacuterio por ele apreendido como outro o palaacutecio de Heacuteracles em Tebas eacute por malogrados momentos identificado com o

1 F Lourenccedilo 620052 De acordo com as palavras de Iacuteris e de Lissa divindades que surgem em cena de forma ater-

rorizadora sobre o palaacutecio de Tebas eacute a fuacuteria de Hera pelos amores furtivos de Zeus com Alcmena a responsaacutevel pelo deliacuterio de Heacuteracles (cf HF 825 ss)

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

Espaccedilos concebidos pela mente

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

Poemas HomeacutericosG S Kirk (ed) M Edwards (1991) The iliad a commentary vol V

CambridgeG S Kirk (ed) N Richardson (1993) The iliad a commentary vol VI

CambridgeF Lourenccedilo (22005) Homero iliacuteada Lisboa

EuriacutepidesHeraclesS Barlow (1996) Euripides Heracles WarminsterG Bond (1981) Euripides Heracles Oxford

Espaccedilos concebidos pela mente

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Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

G Devereux (1976) Dreams in Greek Tragedy an ethno-psycho-analytical study Oxford

E R Dodds (2004) The Greeks and the Irrational BerkeleyA H M Kessels (1978) Studies on the Dream in Greek Literature UtrechtR G A van Lieshout (1980) Greeks on Dreams Utrecht

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

1 FontesOviacutedio Les Meacutetamorphoses (trad Gustave Lafaye) Paris Belles Lettres 1985-

1989_______ Metamorfosis (trad Ruben Bonifaz Nuntildeo) Mexico Universidad

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EdiOuro 1983_______ As Metamorfoses i - V (trad Antocircnio Feliciano de Castilho) Rio de

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1988_______ Metamorphoses iii (ed A A Henderson) Bristol Bristol Classical

1981

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of Carolina PressS Viarre (1976) Ovide Essai de lecture poeacutetique Paris Belles Lettres

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 15: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

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de Euristeu em Micenas Inebriado pelo deliacuterio Heacuteracles rompe as fronteiras geograacuteficas delimitadas pelos muros da sua casa reacutegia e penetra com incriacutevel verosimilhanccedila num mundo imaginaacuterio que em breve se lhe revelaraacute fonte de distopia Numa descriccedilatildeo viva um mensageiro relata com pormenor a viagem fantasiosa de Heacuteracles a Micenas para se vingar de Euristeu (cf 943 ss) as suas palavras impressivas convidam o leitor a reconstruir o funesto itineraacuterio Verbos de movimento traduzem de modo sugestivo a agitada marcha empreendida pelo valente filho de Alcmena a bordo de um carro fantaacutestico (cf 947 ss) num trajecto que na realidade o leva apenas a percorrer o seu palaacutecio de alto a baixo No entanto Heacuteracles transpotildee o espaccedilo fiacutesico efectivo e deambulando pela casa inteira eis que se crecirc chegado agrave cidade de Niso onde natildeo se furta a uma refeiccedilatildeo evocativa dos banquetes que por norma andavam associados agraves muacuteltiplas expediccedilotildees do heroacutei O jogo entre espaccedilo real e imaginaacuterio apressa o percurso de Heacuteracles para a ruiacutena julgando-se no Istmo de Corinto luta contra um adversaacuterio inexistente qual atleta que toma parte nos Jogos Iacutestmicos e proclama-se o vencedor Por fim imagina-se em Micenas e identifica a voz de Anfitriatildeo que procura chamar o filho agrave razatildeo com a do pai de Euristeu e a sua proacutepria progeacutenie com a do rei de Micenas De nada valem os gritos e as palavras desesperadas dos seus Heacuteracles faz perecer a esposa Meacutegara e os filhos de ambos na ideia de que estaacute a punir a famiacutelia de Euristeu Somente a intervenccedilatildeo de Atena que adormece o heroacutei eacute capaz de pocircr termo ao deliacuterio e de evitar mais mortes Observa com oportunidade S Barlow que a alucinaccedilatildeo do protagonista constitui lsquouma terriacutevel paroacutedia da sua carreira viajar banquetear-se lutar e matar ndash e sempre o triunforsquo3 pese embora as armas utilizadas para anteriores e gloriosas vitoacuterias converterem-se em instrumento causador dos males do descendente de Alcmena As suacuteplicas insistentes de Anfitriatildeo de Meacutegara e dos proacuteprios filhos revelam-se vatildes perante o poder aniquilador da loucura satildeo outros os seres que o heroacutei crecirc liquidar eacute outro o espaccedilo do globo terrestre em que se movimenta Ao acordar Heacuteracles admira-se por estar rodeado de cadaacuteveres numa atitude de manifesto desajuste entre o lsquoeursquo genuiacuteno e o lsquooutrorsquo entre espaccedilo real e ilusoacuterio Anfitriatildeo revela-lhe a tremenda realidade numa descriccedilatildeo que acrescenta agrave visatildeo chocante e inesperada dos corpos inertes de Meacutegara e da progeacutenie de ambos o desespero de se saber o responsaacutevel involuntaacuterio pelo espectaacuteculo macabro que tem diante dos olhos e que parece representar o uacuteltimo ndash e o mais doloroso ndash dos seus trabalhos A utopia desmorona-se face ao confronto com a realidade deploraacutevel a projecccedilatildeo do lsquoeursquo real num cenaacuterio fantasioso traduz para o heroacutei a instabilidade e a fragilidade da vida humana Os confins efectivos do palaacutecio que abrigava a famiacutelia dilecta apenas satildeo ultrapassados no espaccedilo da ilusatildeo por ironia eacute no interior da sua proacutepria casa depois de ter livrado Meacutegara e os filhos de se tornarem viacutetimas de Lico que Heacuteracles os sacrifica vendo-se cruelmente despojado daqueles que tanto prezava O poder simboacutelico tradicional do palaacutecio eacute aqui relegado para um plano de menor

3 S Barlow 1996 10

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visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

Susana Marques Pereira

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no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

Poemas HomeacutericosG S Kirk (ed) M Edwards (1991) The iliad a commentary vol V

CambridgeG S Kirk (ed) N Richardson (1993) The iliad a commentary vol VI

CambridgeF Lourenccedilo (22005) Homero iliacuteada Lisboa

EuriacutepidesHeraclesS Barlow (1996) Euripides Heracles WarminsterG Bond (1981) Euripides Heracles Oxford

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Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

G Devereux (1976) Dreams in Greek Tragedy an ethno-psycho-analytical study Oxford

E R Dodds (2004) The Greeks and the Irrational BerkeleyA H M Kessels (1978) Studies on the Dream in Greek Literature UtrechtR G A van Lieshout (1980) Greeks on Dreams Utrecht

Susana Marques Pereira

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

Mariana Horta e Costa Matias

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179179

Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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180180

(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 16: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

6262

visibilidade Euriacutepides sublinha em particular o desalento profundo resultante da quebra involuntaacuteria dos laccedilos famliares precisamente no espaccedilo que se liga por excelecircncia agrave famiacutelia - a morada onde aquela habita e convive

O mesmo tragedioacutegrafo estabelece poreacutem na ifigeacutenia entre os Tauros a conexatildeo entre palaacutecio poder e utopia jaacute que eacute aquele o local visualizado por Ifigeacutenia num sonho simboacutelico revelador de elementos premonitoacuterios relativos ao destino da casa real argiva Todavia se na morada reacutegia de Heacuteracles o desmoronamento eacute interior reflectindo a vertente emocional que o dramaturgo pretende valorizar o palaacutecio de Argos no qual Ifigeacutenia se imagina a dormir eacute fisicamente abalado por um tremor de terra sugestivo da destruiccedilatildeo da famiacutelia real e desaba sob os olhos da donzela que consegue poreacutem escapar com vida Uma sucessatildeo de verbos indicadores de sensaccedilotildees cineacuteticas (cf iT 46 ss) traduz a queda do palaacutecio no regresso ilusoacuterio da sacerdotisa de Aacutertemis agrave casa paterna No entanto uma coluna manteacutem-se firme agrave qual crescem louros cabelos e eacute dada voz numa combinaccedilatildeo de siacutembolos visuais e auditivos que a receptora identifica com Orestes forma de reconhecimento ilustrativa do facto de os cabelos se manterem como elemento assinalador do reencontro tradicional dos dois irmatildeos O tom dourado dos cabelos (cf iT 52 xantas) ilumina por breves momentos o ambiente de devastaccedilatildeo percepcionado pela sonhadora apesar de Ifigeacutenia interpretar de modo errado essa luz libertadora que vislumbra no meio do desabamento da casa real argiva entendendo-a como um prenuacutencio da morte do irmatildeo No entanto em breve Orestes surge com vida diante dos olhos da proacutepria irmatilde revelando-se como o uacuteltimo sustentaacuteculo do palaacutecio de Argos quer dizer como o seu herdeiro legiacutetimo capaz de o salvar A escolha do motivo arquitectoacutenico para representar o filho de Agameacutemnon evidencia-se bastante oportuna porquanto expressiva de esperanccedila na reconstruccedilatildeo de um universo desconstruiacutedo

Se o palaacutecio sobressai por haacutebito como espaccedilo associado ao poder agrave autoridade reacutegia tambeacutem no mundo da utopia os lugares puacuteblicos de Atenas satildeo naturalmente um cenaacuterio adequado para a criacutetica da comeacutedia aristofacircnica aos poliacuteticos que se distinguem na democracia ateniense da eacutepoca marcada por um oportunismo radicado na deturpaccedilatildeo de ideias sofiacutesticas ligadas agrave arte da persuasatildeo Nessa perspectiva Aristoacutefanes potildee em cena o escravo Soacutesia a descrever um sonho no qual vecirc uma assembleia de carneiros sentada na Pnix com os habituais bastotildees e mantos usados nessas alturas pelos cidadatildeos (cf V 15-19) Os animais siacutembolos da doccedilura e da subserviecircncia escutam atentamente o discurso de um enorme cetaacuteceo pronto a devorar o que quer que seja e possuidor de uma voz de javalina irritada Pelo relato boa parte da audiecircncia perceberia a saacutetira agrave cupidez e ao tom inflamado das arengas de Cleacuteon poliacutetico muito popular na Atenas de entatildeo Os carneiros por seu turno representariam todos aqueles que na sua imbecilidade ouviam os discursos demagoacutegicos de um tal orador

A experiecircncia sonhada de Nuvens por sua vez traduz a actividade diurna do receptor o jovem Fidiacutepides enquanto ser individual (cf Nu 12-40) Apreciador de corridas hiacutepicas o jovem transfere para o sonho a sua obsessatildeo supondo-se

Susana Marques Pereira

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6363

no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

Poemas HomeacutericosG S Kirk (ed) M Edwards (1991) The iliad a commentary vol V

CambridgeG S Kirk (ed) N Richardson (1993) The iliad a commentary vol VI

CambridgeF Lourenccedilo (22005) Homero iliacuteada Lisboa

EuriacutepidesHeraclesS Barlow (1996) Euripides Heracles WarminsterG Bond (1981) Euripides Heracles Oxford

Espaccedilos concebidos pela mente

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6464

Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

G Devereux (1976) Dreams in Greek Tragedy an ethno-psycho-analytical study Oxford

E R Dodds (2004) The Greeks and the Irrational BerkeleyA H M Kessels (1978) Studies on the Dream in Greek Literature UtrechtR G A van Lieshout (1980) Greeks on Dreams Utrecht

Susana Marques Pereira

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6565

QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

1 FontesOviacutedio Les Meacutetamorphoses (trad Gustave Lafaye) Paris Belles Lettres 1985-

1989_______ Metamorfosis (trad Ruben Bonifaz Nuntildeo) Mexico Universidad

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EdiOuro 1983_______ As Metamorfoses i - V (trad Antocircnio Feliciano de Castilho) Rio de

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1988_______ Metamorphoses iii (ed A A Henderson) Bristol Bristol Classical

1981

2 EstudosA Crabbe (1981) ldquoStructure and Content in Ovidrsquos lsquoMetamorphosesrsquordquo in

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of Carolina PressS Viarre (1976) Ovide Essai de lecture poeacutetique Paris Belles Lettres

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 17: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

6363

no hipoacutedromo adormecido na cama de sua casa crecirc-se num concurso riposta com um outro concorrente que o prejudica (cf Nu 25) e daacute ordens ao seu tratador de cavalos (cf Nu 32) Ao lado de Fidiacutepides estaacute o pai Estrepsiacuteades que a braccedilos com diacutevidas causadas pelo filho natildeo eacute capaz de adormecer Por ironia tem junto a si um parceiro que sonha precisamente com aquilo que motivou os seus cuidados Ao vivenciar lsquoem directorsquo a experiecircncia oniacuterica exprimindo-a em voz alta Fidiacutepides permite em certa medida a interferecircncia de Estrepsiacuteades na sua visatildeo e uma interpretaccedilatildeo imediata o que constitui uma inovaccedilatildeo perante a tradiccedilatildeo do sonho Espaccedilo real e imaginaacuterio entrecruzam-se em particular na aproximaccedilatildeo que o velho faz entre os cavalos da corrida e ele proacuteprio o asno da cena viacutetima de uma crise econoacutemica para a qual aqueles de algum modo contribuiacuteram

Preferencialmente associadas a espaccedilos concretos da poacutelis em que os sonhadores vivem as visotildees oniacutericas aristofacircnicas reflectem as mudanccedilas sentidas na segunda metade do seacuteculo V a C em Atenas (cf difusatildeo de teorias sofiacutesticas a que o poeta se mostra atento nas suas comeacutedias) Favorecedores da caricatura e do ridiacuteculo os sonhos relacionam-se sobretudo com questotildees efectivas vividas pelos cidadatildeos no quotidiano evidenciando a inflexatildeo entre o sagrado e o profano que caracteriza a segunda metade do seacuteculo V a C A tendecircncia manifesta para dar ao homem maior relevo a par de alteraccedilotildees do contexto social e poliacutetico entre outras justificam decerto que paralelamente agrave menccedilatildeo agrave cidade em geral ou ao palaacutecio real surjam alusotildees a locais puacuteblicos de uma poacutelis democraacutetica que pretende dar voz aos seus cidadatildeos

Sonhos e visotildees em estado de vigiacutelia favorecem a transposiccedilatildeo de barreiras geograacuteficas permitindo a intersecccedilatildeo de lugares De modo directo ou inverso a utopia estabelece uma relaccedilatildeo de proximidade com locais da realidade sendo que tal analogia possibilita ora ilustrar cuidados e anseios dos receptores ora provocar-lhes inquietaccedilotildees nomeadamente pela revelaccedilatildeo de elementos premonitoacuterios relativos ao destino humano ora ainda numa linguagem metafoacuterica satirizar a sociedade

Bibliografia

Ediccedilotildees traduccedilotildees e comentaacuterios

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CambridgeG S Kirk (ed) N Richardson (1993) The iliad a commentary vol VI

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Espaccedilos concebidos pela mente

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6464

Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

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Susana Marques Pereira

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

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Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

1 FontesOviacutedio Les Meacutetamorphoses (trad Gustave Lafaye) Paris Belles Lettres 1985-

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Janeiro Simotildees 1959_______ Extraits de Meacutetamorphoses (ed H Martin) Paris Hachette 1930_______ Metamorphoses i (ed A G Lee) Wauconda Bolchazy-Carducci

1988_______ Metamorphoses iii (ed A A Henderson) Bristol Bristol Classical

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of Carolina PressS Viarre (1976) Ovide Essai de lecture poeacutetique Paris Belles Lettres

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

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O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 18: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

6464

Iphigenia in TaurisM J Cropp (2000) Euripides Iphigenia in Tauris Warminster

AristoacutefanesG Guidorizzi (ed) D del Corno (1996) Aristofane Le Nuvole MilanoD M Macdowell (1971) Aristophanes Wasps OxfordA H Sommerstein (1983) Aristophanes Wasps Warminster

ArtemidoroE Ruiz Garcia (1989) Artemidoro La interpretacioacuten de los suentildeos Madrid

Estudos

G Devereux (1976) Dreams in Greek Tragedy an ethno-psycho-analytical study Oxford

E R Dodds (2004) The Greeks and the Irrational BerkeleyA H M Kessels (1978) Studies on the Dream in Greek Literature UtrechtR G A van Lieshout (1980) Greeks on Dreams Utrecht

Susana Marques Pereira

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QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

Mariana Horta e Costa Matias

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179179

Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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180180

(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 19: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

6565

QUANDO Patilde E AS NINFAS CONVERTIAM OS SIMPLES MORTAIS1

Ana Seiccedila Carvalhouniversidade de Coimbra

AbstractStarting on Platorsquos Phaedrus and his references to Muses Nymphs and to the Great God

Pan we take a look at the numerous nympholepts and panolepts of the Greek culture strictly connected to the rural landscape Nymphrsquos power is attached to specific places like gardens (generally the perfect stage to Aphroditersquos dances and full of erotic fellings from her lover dates) caverns and lands full of trees and flowers

From caverns half-hidden in green and misteriours foliage to secret places on the highest mountains Nature itself is usually idyllic and rustic used as a scenery and as inspiration ndash the true locus amoenus ndash wich catapults the soul to a divine trance state

Socrates seems to distinguish the divine possession caused by the Muses or by Pan from de possession by Dionysos The divine possession caused by the Muses and by Pan is associated with the influence of the space and of the divinities related to it despite not translating as any kind of madness instead as a hyper lucidity which grants beauty art and eloquence sensitivity to the soulKeywords bucolic landscape nympholepsy panolepsyPalavras-chave ninfolepsia paisagem bucoacutelica panolepsia

O Deus Patilde e as Ninfas

ldquoVinde oacute Musas quer sejais chamadas melodiosas graccedilas agrave beleza do vosso canto quer devido agrave aptidatildeo musical do povo liacutegure vinde e ajudai-me neste discursordquo (Fedro 237a)2

No Fedro platoacutenico que tomamos como testemunho para o presente trabalho (cujo tema como sabemos suscitou inuacutemeras interpretaccedilotildees diversas3) Fedro vem de junto de Liacutesias com quem tinha passado toda a manhatilde sentado a ouvir um discurso sobre o amor Seguindo os conselhos do seu meacutedico Erixiacutemaco Fedro pretende dar um passeio a peacute para revigorar o corpo Curioso com o

1 Trabalho realizado sob a orientaccedilatildeo da Doutora Teresa Schiappa no Seminaacuterio de Grego do 4ordm ano da licenciatura

2 Nas citaccedilotildees do Fedro usaremos a traduccedilatildeo de J Ribeiro Ferreira 19973 O Fedro sofreu inuacutemeras interpretaccedilotildees e provocou uma seacuterie de discussotildees sobre a sua

temaacutetica jaacute desde a Antiguidade (vide P Friedlander 1969 241)

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discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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in Cicerordquo JRA 12 33-56M Troumlster (2004) ldquoAspetti della tecnica biografica di Plutarco A proposito

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

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Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 20: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

6666

discurso de Liacutesias e desejando ouvi-lo da boca do jovem Soacutecrates decide acompanhaacute-lo Descalccedilos os dois (jaacute era aliaacutes um haacutebito de Soacutecrates) saem das muralhas e caminham ao longo do Rio Ilissos molhando os peacutes na frescura da aacutegua de acordo com a proposta de Soacutecrates (229a)

Depois de caminharem mais ou menos a distacircncia de um estaacutedio na direcccedilatildeo do altar consagrado ao deus Boacutereas4 sentam-se a descansar agrave sombra de um grande plaacutetano (229b) onde ficam em amena conversaccedilatildeo ateacute passar a onda do calor Do local um verdadeiro locus amoenus daacute-se um quadro de grande beleza e vivacidade o riacho fresco a sombra oferecida pelo frondoso plaacutetano a brisa suave a fragracircncia que se sente no ar um aroma perfumado que se espalha o som do coro das cigarras a relva fofa tudo convida ao relaxamento e ao descanso

Longe dos moldes citadinos a paisagem idiacutelica cheia de memoacuterias mitoloacutegicas proporciona o ambiente sugestivo que nos iraacute conduzir ao longo da conversa ao reconhecimento de uma forma especial de possessatildeo bakkheuein que emana das divindades rurais Eacute neste contexto que Soacutecrates faz de Patilde filho de Hermes e das Ninfas filhas de Aquelocirco as fontes de inspiraccedilatildeo dos seus discursos sobre Eros as suas teknikoteroipros logous (Fedro 263d5-7)

Antes de mais seraacute conveniente debruccedilarmo-nos um pouco sobre as figuras de Patilde e das Ninfas que impregnam a ambiecircncia do Fedro

Sabemos com seguranccedila atraveacutes de testemunhos antigos (Pausacircnias 83711 Piacutendaro Fr 95 Snell) que no seacuteculo VI aC Patilde era uma divindade exclusiva da Arcaacutedia e de algumas regiotildees do Peloponeso Do seacuteculo V em diante segundo nos conta Heroacutedoto (6105) a sua presenccedila era jaacute uma constante em todo o mundo grego sobretudo na Aacutetica onde o culto teraacute sido introduzido apoacutes a batalha de Maratona5 A recepccedilatildeo da divindade na estrutura religiosa ter-se-aacute baseado na adaptaccedilatildeo do culto a rituais jaacute existentes Patilde eacute por isso recebido como deus xenos junto das Ninfas Seis cavernas espalhadas pela Aacutetica testemunham a devoccedilatildeo conjunta a Patilde e agraves Ninfas6

Existem variadas lendas sobre o nascimento de Patilde mas a mais completa e tradicional eacute talvez a do hino homeacuterico que lhe eacute dedicado que o apresenta como filho de Hermes e de uma ninfa cujo nome natildeo nos eacute dito filha de Driacuteope por sua vez filho de Apolo Outras fontes atribuem-lhe como matildee ora Calisto (deusa da Arcaacutedia) ora Peneacutelope deusa e ninfa confundida por muitos com a mulher de Ulisses7 outras ainda falam em Apolo Cronos e mesmo Zeus

4 Cf Rosenmeyer 19625 Eacute durante a Batalha de Maratona que se daacute a epifania do deus a um embaixador ateniense

Filiacutepides O deus daacute-lhe indicaccedilotildees para o ecircxito da batalha e o General seguindo os seus con-selhos consegue levar os atenienses agrave vitoacuteria Estes mais tarde construiacuteram um santuaacuterio em honra do deus predispondo-se a celebrar em seu nome sacrifiacutecios anuais de agradecimento

6 Vide R Parker 1996 especialmente pp 164-166 A associaccedilatildeo do culto de Patilde agraves Ninfas no seacuteculo V gera entre os estudiosos opiniotildees contraacuterias jaacute que por exemplo o Fedro platoacutenico natildeo permite situaacute-la antes do seacutec IV A Purvis 2003 especialmente pp 33-63 baseando-se em estudos da famosa gruta de Vari a cargo do ninfolepto Arquedamo de Tera assegura que a recepccedilatildeo de Patilde pelas Ninfas teraacute ocorrido somente em meados do seacuteculo IV aC mediante a dataccedilatildeo das peccedilas arqueoloacutegicas aiacute encontradas

7 Outros autores defendiam poreacutem que poderia ser filho de Peneacutelope natildeo tendo esta res-

Ana Seiccedila Carvalho

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para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

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O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 21: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

115115

para os anos 60 e 59 nos quais Ciacutecero se refere repetidamente a ele e a outros nobres como piscinarii6

Eacute claro por conseguinte que as anedotas sobre a vida ociosa de Luculo natildeo devem ser interpretadas como prova conclusiva da sua indiferenccedila aos assuntos puacuteblicos Pelo contraacuterio essas notiacutecias soacute se tornam compreensiacuteveis enquanto vestiacutegios de luta poliacutetica no pressuposto de que ele continuou como estadista activo e influente7 Assim a divulgaccedilatildeo consideraacutevel da imagem de Luculo como bon vivant somente comprova o amplo sucesso da propaganda orquestrada pelos partidaacuterios de Pompeu que o censuraram por negligenciar os interesses da res publica Neste contexto vale a pena notar que os outros membros do assim chamado Primeiro Triunvirato Ceacutesar e Crasso tambeacutem tentaram apresentar-se como homens de temperanccedila na vida privada8 Natildeo eacute improvaacutevel que ambos a par de Pompeu tenham tratado de pocircr em relevo as virtudes proacuteprias atraveacutes do contraste com os viacutecios atribuiacutedos a Luculo9

Ora como mostra o supramencionado discurso de Gabiacutenio a ligaccedilatildeo entre Luculo e a noccedilatildeo de luxuria foi estabelecida durante os anos do seu comando contra Mitridates De facto a estada prolongada do prococircnsul na Aacutesia parece ter provocado acusaccedilotildees de se deixar corromper pela riqueza habitualmente associada ao Oriente10 Estas denuacutencias foram sem duacutevida ampliadas durante o debate extenso sobre o triunfo de Luculo (Plu Luc 372) tornando-o extremamente vulneraacutevel agrave propaganda de Pompeu e dos seus aliados Assim o topos acabou por fossilizar-se numa interpretaccedilatildeo histoacuterica avanccedilada por Nicolau de Damasco (FGrH 90 F 77) e Veleio Pateacuterculo (2334) que apresenta a figura de Luculo como primeiro guia do luxo entre os romanos

Em seguida tentar-se-aacute desenhar uma imagem muito diferente das actividades de Luculo com base em alguns dados relativos ao uso dos seus domiciacutelios Essa tentativa natildeo tem como objectivo negar as caracteriacutesticas luxuosas das suas villae e do seu estilo de vida mas pretende mostrar que a magnificecircncia das suas residecircncias deve ser interpretada como elemento natural da sua autodefiniccedilatildeo de aristocrata que tambeacutem incluiacutea um envolvimento activo em assuntos poliacuteticos

Antes de prosseguir com a anaacutelise das villae de Luculo eacute preciso sublinhar que uma casa esplecircndida natildeo era necessariamente considerada como expressatildeo de aspiraccedilotildees ofensivas pelos romanos Natildeo se deve esquecer de que a domus aristocraacutetica cumpria funccedilotildees essenciais na vida poliacutetica e social servindo por exemplo de local para recepccedilotildees de clientes e para encontros com amigos

6 Cf Cic Att 1186 = 186 Shackleton Bailey 1196 = 196 1203 = 203 217 = 217 291 = 291 tambeacutem Macr 3156

7 Quanto agrave funccedilatildeo propagandiacutestica desse material cf tambeacutem L Ballesteros Pastor 1999 338-343 que parece poreacutem considerar fidedignas as informaccedilotildees sobre a degeneraccedilatildeo do ex-general

8 Ceacutesar Plu Caes 17 Suet Jul 53 Ath 6273b Crasso Plu Crass 11-3 26 31 s9 Para Ceacutesar cf G Zecchini 1995 599-607 Crasso eacute mencionado junto com Pompeu em

Plu Luc 38510 Cf Plu Luc 241 335 344 355

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

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O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 22: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

116116

Portanto uma casa magnificente podia dar brilho agrave imagem do nobre romano desejoso de exibir o seu prestiacutegio social e as suas ambiccedilotildees poliacuteticas

Ao mesmo tempo era importante evitar a impressatildeo de se viver numa habitaccedilatildeo excessivamente aparatosa o que podia implicar pretensotildees desmesuradas ou prioridades incompatiacuteveis com o bem-estar do Estado11 Ainda que todos os aristocratas proeminentes da Repuacuteblica tardia possuiacutessem villae sumptuosas fora de Roma podia ser extremamente pernicioso estarem associados agrave noccedilatildeo de luxo privado na percepccedilatildeo do puacuteblico da capital Eacute que como observa Ciacutecero odit populus Romanus privatam luxuriam publicam magnificentiam diligit (Mur 76)12

Tendo presente essa ambivalecircncia do discurso sobre a luxuria conveacutem fazer algumas observaccedilotildees relativas ao nuacutemero e agrave localizaccedilatildeo dos domiciacutelios de Luculo Natildeo obstante a grande quantidade de referecircncias anedoacuteticas os dados concretos sobre as suas villae natildeo satildeo muito abundantes De facto as fontes literaacuterias soacute indicam que ele foi proprietaacuterio dos horti Lucullani no Monte Pincio bem como de residecircncias em Tuacutesculo Miseno na ilha de Neacutesis e talvez de outra habitaccedilatildeo em Naacutepoles13 Agrave diferenccedila dos jardins nos arredores de Roma esses uacuteltimos domiciacutelios ficavam em zonas de vilegiatura mas o seu caraacutecter de villae luxuosas natildeo significa evidentemente que fossem incapazes de cumprir funccedilotildees suplementares em termos poliacuteticos sociais e econoacutemicos

Contudo o caso mais interessante para a presente investigaccedilatildeo eacute sem duacutevida aquele dos horti14 Por um lado eacute claro que o espaccedilo do jardim estava associado no pensamento antigo agrave filosofia epicurista e tinha conotaccedilotildees de oacutecio de descanso e de prazer Por outro lado isso natildeo implica como sugeriu Andrew Wallace-Hadrill que os proprietaacuterios dos grandes jardins na Roma tardo-republicana quisessem invariavelmente expressar um certo distanciamento da vida poliacutetica15 Basta recordar que esse grupo heterogeacuteneo inclui nomes tatildeo diferentes como Luculo e Pompeu Aleacutem disso natildeo se deve ignorar que os horti ficavam perto do centro da cidade e podiam ser usados para encontros e eventos puacuteblicos como veremos em dois exemplos Essa proximidade dos jardins ao centro poliacutetico parece particularmente importante no caso de Luculo jaacute que ele foi obrigado a permanecer fora do pomerium durante os trecircs anos da luta pelo seu triunfo

Segundo Plutarco o general retirado costumava receber convidados gregos na sua casa que o bioacutegrafo designa enfaticamente como prytaneion (lsquolugar de acolhimento puacuteblicorsquo) para os helenos (Luc 421 s) Visto que o escritor queronense se esforccedila para sublinhar o filelenismo de Luculo16 natildeo admira

11 Cf C Edwards 1993 150-16012 Cf E Narducci 1989 183-185 A Zaccaria Ruggiu 1995 326-338 S Treggiari 1999

41-5013 Cf V Jolivet 1987 tambeacutem J Van Ooteghem 1959 178-193 A Keaveney 1992

144-15014 Cf em geral H BroiseV Jolivet 199615 Cf A Wallace-Hadrill 1998 3-616 Cf S C R Swain 1992 Troumlster 2008 27-47

Manuel Troumlster

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

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Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 23: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

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que ele acentue neste contexto os interesses culturais do protagonista pondo em destaque sobretudo o ambiente acolhedor das suas bibliotecas17 Todavia eacute sem duacutevida significativo que Plutarco mencione expressamente natildeo soacute estudiosos mas tambeacutem poliacuteticos como beneficiaacuterios da hospitalidade e do apoio do aristocrata romano De facto Luculo estabelecera conexotildees com um nuacutemero elevado de amigos e clientes no acircmbito dos seus cargos no mundo grego durante as Guerras Mitridaacuteticas18 Estes viacutenculos natildeo deixaram de ser relevantes no termo do seu comando mas devem ter assumido uma grande importacircncia durante o conflito com Pompeu pois a questatildeo da ratificaccedilatildeo das medidas tomadas no Oriente afectou evidentemente os interesses vitais dos respectivos amigos de ambos os triunfadores19

Aleacutem da sua funccedilatildeo no acolhimento de convidados estrangeiros eacute claro que os domiciacutelios de Luculo tambeacutem foram usados para encontros com poliacuteticos romanos Um caso particularmente interessante eacute aquele de um conviacutevio com Ciacutecero e Pompeu que constitui o nuacutecleo de uma anedota contada por Plutarco (Luc 414-7) os dois poliacuteticos desejam jantar na casa de Luculo sem aviso preacutevio para verem como ele costuma jantar sozinho O anfitriatildeo poreacutem consegue escolher uma sala de jantar extremamente sumptuosa para lhes poder oferecer uma refeiccedilatildeo imensamente custosa Na versatildeo do bioacutegrafo eacute evidente que a histoacuteria serve para ilustrar o luxo culinaacuterio exigido e exibido por Luculo

Contudo Thomas Hillman sugeriu de maneira convincente que o episoacutedio deve ter perdido o contexto original de uma iniciativa poliacutetica pois seria difiacutecil supor que Pompeu pudesse pedir espontaneamente um convite para um conviacutevio puramente social na casa do seu inimigo encarniccedilado20 Portanto parece muito provaacutevel imaginar uma tentativa falhada para os dois adversaacuterios negociarem uma reconciliaccedilatildeo no final de 61 ou no iniacutecio de 60 assumindo Ciacutecero o papel de mediador Como Plutarco indica que os poliacuteticos se encontraram no Foro eacute verosiacutemil aliaacutes que o jantar se tenha passado nos horti Lucullani

Graccedilas agrave sua localizaccedilatildeo na periferia da capital esses jardins eram tambeacutem capazes de servir para encontros com um puacuteblico muito maior Concluindo o seu relatoacuterio do triunfo magnificente de Luculo em 63 Plutarco refere que o nobre romano acolheu o povo tanto a gente da cidade quanto os habitantes dos vici adjacentes num conviacutevio esplecircndido (Luc 376) Na mesma ocasiatildeo o triunfador tambeacutem fez uma generosa distribuiccedilatildeo de vinho como diz Pliacutenio-o-Antigo numa citaccedilatildeo do autor contemporacircneo Varratildeo (Nat 1496) Ainda que natildeo seja indicado o local do conviacutevio eacute evidente que os horti seriam um siacutetio muito adequado a um acto de liberalidade como este21 Seja como for essas notiacutecias sobre a munificecircncia puacuteblica de Luculo demonstram claramente que ele continuou a estar presente na vida da capital interagindo com o povo e

17 Cf T K Dix 200018 Cf Troumlster 2008 127-14819 Considere-se o caso do avocirc de Estrabatildeo (Str 12333)20 Cf Hillman 199421 Cf J H DrsquoArms 1998 sobre os jardins de Ceacutesar tambeacutem M Frass 2006 188-192

Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

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22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

Mariana Horta e Costa Matias

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179179

Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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180180

(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

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O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 24: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

118118

esforccedilando-se para ganhar o seu favor Com efeito emerge aiacute uma personagem muito diferente do homem ocioso descrito nas anedotas sobre a sua luxuria privada

Segundo dizem Pliacutenio-o-Antigo (Nat 1832) e Columela (146) um L Luculo ndash ou o cocircnsul de 74 ou o seu pai ndash foi censurado uma vez pelo facto de possuir uma villa que carecia de terreno araacutevel suficiente Isto natildeo significa poreacutem que os seus domiciacutelios natildeo cumprissem tambeacutem funccedilotildees econoacutemicas Como eacute bem sabido as villae de Luculo produziam vaacuterios alimentares de luxo nos seus recintos aviaacuterios e piscinas22 O valor de mercado dessas iguarias podia ser exorbitante como indica uma notiacutecia sobre a venda dos seus peixes por Catatildeo-o-Moccedilo depois da morte do consular23 Mesmo que esses produtos fossem destinados em primeiro lugar ao consumo proacuteprio eacute importante ter tambeacutem em consideraccedilatildeo esse aspecto de utilitas econoacutemica24

Em siacutentese parece claro que a imagem de Luculo como hedonista retirado da vida puacuteblica representa uma interpretaccedilatildeo incompleta e tendenciosa dos uacuteltimos anos da sua carreira De facto o estadista experimentado continuou a ser activo na arena poliacutetica lutando contra o seu inimigo Pompeu e tentando ganhar o apoio tanto dos senadores quanto do povo reunido no espaccedilo puacuteblico da capital Como se procurou demonstrar na presente comunicaccedilatildeo os domiciacutelios de Luculo por muito sumptuosos que fossem serviram neste contexto de local de encontro com amigos estrangeiros bem como poliacuteticos e cidadatildeos romanos

Este facto natildeo implica evidentemente que as actividades puacuteblicas do consular constituiacutessem a funccedilatildeo primordial das suas villae magnificentes Sem duacutevida ele gostava de viver em habitaccedilotildees luxuosas mas isto vale tambeacutem para numerosos outros proprietaacuterios de villae elegantes da sua eacutepoca inclusive para os natildeo poucos que pretenderam apresentar-se como exemplos de temperanccedila25 Dado que o tema da luxuria de Luculo foi acentuado e manipulado pelos seus adversaacuterios com muito sucesso as respectivas notiacutecias natildeo devem ser lidas como expressotildees autecircnticas das suas atitudes e ambiccedilotildees Apesar da ampla divulgaccedilatildeo das anedotas sobre a sua extravagacircncia ele natildeo escolheu ser um outsider da aristocracia romana26 Pelo contraacuterio natildeo deixou de ser um membro activo da nobreza tanto no campo poliacutetico quanto na vida social econoacutemica e cultural

Bibliografia

L Ballesteros Pastor (1999) ldquoAspectos contrastantes en la tradicioacuten sobre L Licinio Luacuteculordquo Gerioacuten 17 331-343

22 Cf as referecircncias recolhidas por W Rinkewitz 1984 81 s23 Cf Varr R 3217 Plin Nat 9170 Col 8165 Macr 315624 Cf as observaccedilotildees de Jolivet 1987 902-90425 Cf DrsquoArms 1970 39-45 a respeito das vilas no Golfo de Naacutepoles26 Pace L Landolfi 1990 103-106 DrsquoArms 1999 312 s E W Leach 2004 87 s

Manuel Troumlster

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119119

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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121121

A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

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of Carolina PressS Viarre (1976) Ovide Essai de lecture poeacutetique Paris Belles Lettres

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 25: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

119119

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Entre vida puacuteblica e luxuria privada a propoacutesito das villae de Luculo

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A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

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Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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175175

O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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176176

as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 26: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

121121

A SICIacuteLIA E A CILIacuteCIA NA VIDA DE CIacuteCERO

Virgiacutenia Soares Pereirauniversidade do Minho

AbstractRome has always been Cicerorsquos land of election He used to believe it was the only possible

place where he could feel accomplished as a politician However apart from the time dedicated to his studies and his exile there were two moments when he had to leave the city for more than a year first as a questor in Sicily later as the governor of Cilicia The present study revisits these two places through the eyes of ArpinateKeywords Caelius Rufus exploitation of the provinces Sicily Cilicia theft of works of art VerrinesPalavra-chave Ceacutelio Rufo Ciacutecero Ciliacutecia exploraccedilatildeo das proviacutencias roubo de obras de arte Siciacutelia Verrinas

1 Introduccedilatildeo

Ciacutecero natildeo nasceu em Roma mas Roma foi o centro da sua vida Com reconhecida clarividecircncia ou puro instinto sentia que soacute na capital do mundo podia desenvolver plenamente a sua actividade poliacutetica pois soacute aiacute lhe era possiacutevel ver e acima de tudo ser visto E na verdade agrave parte o tempo em que ainda jovem viajou ateacute Atenas e Rodes para completar a sua formaccedilatildeo e ainda agrave parte o tempo em que foi forccedilado a seguir o caminho do exiacutelio apenas por duas vezes a vida lhe ditou a necessidade de deixar a Cidade primeiramente quando exerceu o cargo de questor na Siciacutelia e depois quando se viu obrigado a partir como prococircnsul para a distante proviacutencia romana da Ciliacutecia na Aacutesia Menor

A presente comunicaccedilatildeo pretende revisitar atraveacutes das impressotildees do Arpinate estes dois espaccedilos tatildeo ligados agrave sua vida

2 Ciacutecero e a Siciacutelia

O primeiro cargo desempenhado fora de Roma por Ciacutecero foi o de questor no ano de 75 em Lilibeu (na Siciacutelia) Esta proviacutencia ficara desde o final da primeira guerra puacutenica sujeita ao pagamento de um tributo uma espeacutecie de diacutezima estabelecida de acordo com a lex Hieronica que a obrigava a enviar anualmente para Roma 10 da sua produccedilatildeo agriacutecola e a vender ainda mais

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quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

1 FontesOviacutedio Les Meacutetamorphoses (trad Gustave Lafaye) Paris Belles Lettres 1985-

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2 EstudosA Crabbe (1981) ldquoStructure and Content in Ovidrsquos lsquoMetamorphosesrsquordquo in

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of Carolina PressS Viarre (1976) Ovide Essai de lecture poeacutetique Paris Belles Lettres

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 27: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

122122

quando fosse necessaacuterio Ao questor em exerciacutecio competia fixar o preccedilo dos produtos1 No exerciacutecio do seu cargo Ciacutecero aleacutem de assegurar o fornecimento e o transporte do cereal para a capital negociou um preccedilo justo e os Sicilianos agradeceram reconhecidos Por outro lado fez chegar a Roma num momento de grave crise de abastecimento grandes quantidades de trigo conseguindo com esta medida fazer baixar os preccedilos A sua actuaccedilatildeo considerada em ambos os casos meritoacuteria acabaria por ter efeitos beneacuteficos no seu prestiacutegio posterior

O Arpinate recorda esta primeira estada na Siciacutelia num conhecido passo do discurso Pro Plancio no qual relata um episoacutedio sucedido quando regressava a Roma no final do cargo Estava convencidiacutessimo de que o povo de Roma se iria desfazer em agradecimentos e louvores Todavia ao chegar agrave estacircncia balnear de Puteacuteolos no auge da eacutepoca turiacutestica ficou desconcertado quando algueacutem desejoso de novas lhe pergunta se acaba de chegar de Roma Respondeu-lhe que regressava da sua proviacutencia ldquoPois clarordquo retorquiu o interlocutor ldquoestiveste em Aacutefricardquo ldquoNatildeordquo observou Ciacutecero irritado ldquoestive na Siciacuteliardquo ldquoEntatildeo natildeo sabes que ele foi questor em Siracusardquo acrescentou ainda outro Que havia de fazer Destiti stomacharihellip

Ainda jovem e muito ufano do seu cargo de questor em Lilibeu Ciacutecero pensava que em Roma natildeo se falava de outra coisa a natildeo ser da sua questurahellip

Data igualmente desta sua primeira estada na Siciacutelia o episoacutedio bem conhecido da descoberta do tuacutemulo de Arquimedes de Siracusa o famoso geoacutemetra grego que morrera viacutetima do cerco de Marcelo agrave cidade siciliana Referindo-se a este achado no Livro V das Tusculanas Ciacutecero conclui com evidente orgulho

E assim a cidade mais ilustre da Greacutecia outrora tambeacutem a mais culta teria ignorado o tuacutemulo que conservava a memoacuteria do mais ilustre dos seus cidadatildeos se um indiviacuteduo de Arpino o natildeo tivesse dado a conhecer2

Mas a ocorrecircncia mais indelevelmente ligada agrave vida de Ciacutecero naquela proviacutencia relaciona-se com o aristocrata Verres o conhecido governador que durante os trecircs anos da sua propretura (de 73 a71 aC) roubou perseguiu torturou e assassinou grande nuacutemero de Sicilianos por ldquoamorrdquo agrave arte

Ciacutecero deixara a proviacutencia no ano de 74 Trecircs anos mais tarde os Sicilianos decidem apresentar queixa contra Verres e pedem o apoio do antigo questor como advogado de acusaccedilatildeo A forma como o orador ultrapassou as dificuldades e os impedimentos juriacutedicos que a defesa de Verres liderada por Hortecircnsio maquinou foi insuperaacutevel e digna de registo (Everitt 2004 99-104) Constituiacutedo acusador oficial de Verres regressa agrave proviacutencia nos iniacutecios

1 Veja-se H de la Ville de Mirmont 1960 VI-XI (Notice de J Martha)2 Veja-se sobre este episoacutedio V S Pereira 2005 75-84

Virgiacutenia Soares Pereira

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do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

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EdiOuro 1983_______ As Metamorfoses i - V (trad Antocircnio Feliciano de Castilho) Rio de

Janeiro Simotildees 1959_______ Extraits de Meacutetamorphoses (ed H Martin) Paris Hachette 1930_______ Metamorphoses i (ed A G Lee) Wauconda Bolchazy-Carducci

1988_______ Metamorphoses iii (ed A A Henderson) Bristol Bristol Classical

1981

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J P Mendes (1985) Construccedilatildeo e arte das lsquoBucoacutelicasrsquo de Virgiacutelio Brasiacutelia EdUnB

K S Myers (1994) Ovidrsquos causes Cosmogony and aetiology in the lsquoMetamorphosesrsquo Ann Arbor Univ of Michigan Press

B Otis (1966) Ovid as an Epic Poet Cambridge Univ Press 1966J B Solodow (1988) The world of Ovidrsquos lsquoMetamorphosesrsquo Chapel Hill Univ

of Carolina PressS Viarre (1976) Ovide Essai de lecture poeacutetique Paris Belles Lettres

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

Mariana Horta e Costa Matias

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 28: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

123123

do ano 70 para proceder a pesquisas e ao inqueacuterito judicial e reuacutene em tempo recorde as provas e os testemunhos que condenaratildeo o governador

Constituem principal fonte de referecircncia sobre o desenrolar deste caso as Verrinas nomeadamente a actio secunda organizada em cinco discursos dos quais os mais conhecidos satildeo o De signis (com importantes registos dos tesouros artiacutesticos da ilha) e o De suppliciis (sobre a crueldade desumana do pretor)3

As inquiriccedilotildees de Ciacutecero e a sua pena acusatoacuteria revelaram uma realidade difiacutecil de esquecer a Siciacutelia viu-se espoliada ao longo dos trecircs anos da propretura de Verres do seu incomparaacutevel patrimoacutenio cultural histoacuterico e religioso Para que natildeo restassem quaisquer duacutevidas o orador coloca diante do leitor de modo sistemaacutetico (e retoacuterico) duas Siciacutelias a Siciacutelia antes da pretura de Verres (ante Verrem praetorem) e a Siciacutelia depois de Verres O De sign132 eacute bastante sintomaacutetico a esse respeito Pela sua riqueza artiacutestica a Siciacutelia era um verdadeiro museu a ceacuteu aberto Ora naquele passo o orador assevera que os guias de entatildeo (os chamados mystagogoi ou periegetai) tinham alterado a sua forma de mostrar aos visitantes e turistas os objectos de arte anteriormente davam a ver o lugar de cada peccedila e a proacutepria peccedila agora assinalam o lugar donde a mesma foi levada (roubada)

Em dado passo (De sign 74) falando da Siciacutelia artistica antes de Verres Ciacutecero lembra como durante a sua questura os Sicilianos o levaram a ver em primeiro lugar por ser objecto de grande reverecircncia local a ceacutelebre estaacutetua de bronze de Diana em Segesta que roubada pelos Cartagineses fora devolvida agrave cidade no final da terceira guerra puacutenica pelo jovem Cipiatildeo Africano com grande contentamento do povo4 Quatro anos depois viu uma Siciacutelia arruinada e votada ao abandono como se tivesse sido viacutetima de uma guerra (De frum 47)

Quando quatro anos depois regressei agrave Siciacutelia pareceu-me tatildeo afectada quanto costumam estar aquelas terras que foram viacutetimas de uma feroz e contiacutenua guerra Os campos e as colinas que eu vira antes tatildeo cuidados e verdejantes via-os agora de tal forma devastados e abandonados que o proacuteprio campo parecia sentir a falta de um cultivador e chorar o seu senhor

O passo acabado de transcrever aproxima-se de outros que representam as continuadas pilhagens de Verres atraveacutes de impressivas imagens de guerra Assim os roubos praticados em Haluntium (sectsect 51-52) satildeo retratados desta forma era tal o vaiveacutem de quantos carreavam objectos de arte que quem presenciasse a cena diria que o cavalo de Troacuteia tinha entrado na cidade e que ela fora destruiacuteda5

Ao saque somava-se o sacrileacutegio Verres natildeo recuava perante nada e decorou a sua proacutepria residecircncia com estaacutetuas retiradas dos templos Como regista

3 Recorde-se que os discursos da secunda actio natildeo chegaram a ser proferidos em tribunal dado que o reacuteu se exilou na sequecircncia da prima actio

4 Sobre a pilhagem de obras de arte gregas pelos vencedores romanos (como Marcelo ou Meacutemio) e a sua devoluccedilatildeo veja-se entre outros J-L Ferrary 1988 573-588

5 Outras imagens de guerra podem ver-se por exemplo em De suppliciis 28 a respeito dos festins e da luxuacuteria a que o propretor se entregava em Siracusa comparados agrave batalha de Canas do deboche ut quiuis cum aspexisset non ut se praetoris conuiuium sed ut Cannensem pugnam ne-

A Siciacutelia e a Ciliacutecia na vida de Ciacutecero

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Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

1 FontesOviacutedio Les Meacutetamorphoses (trad Gustave Lafaye) Paris Belles Lettres 1985-

1989_______ Metamorfosis (trad Ruben Bonifaz Nuntildeo) Mexico Universidad

Nacional Autoacutenoma de Mexico 1980_______ As Metamorfoses (trad David Gomes Jardim Jr) Rio de Janeiro

EdiOuro 1983_______ As Metamorfoses i - V (trad Antocircnio Feliciano de Castilho) Rio de

Janeiro Simotildees 1959_______ Extraits de Meacutetamorphoses (ed H Martin) Paris Hachette 1930_______ Metamorphoses i (ed A G Lee) Wauconda Bolchazy-Carducci

1988_______ Metamorphoses iii (ed A A Henderson) Bristol Bristol Classical

1981

2 EstudosA Crabbe (1981) ldquoStructure and Content in Ovidrsquos lsquoMetamorphosesrsquordquo in

Temporini Und Haase (hrsg) ANRN Geschichte und Kultur Roms im Spiegel d neueren Forschung Berlin New York Walter de Gruyter amp Co

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J P Mendes (1985) Construccedilatildeo e arte das lsquoBucoacutelicasrsquo de Virgiacutelio Brasiacutelia EdUnB

K S Myers (1994) Ovidrsquos causes Cosmogony and aetiology in the lsquoMetamorphosesrsquo Ann Arbor Univ of Michigan Press

B Otis (1966) Ovid as an Epic Poet Cambridge Univ Press 1966J B Solodow (1988) The world of Ovidrsquos lsquoMetamorphosesrsquo Chapel Hill Univ

of Carolina PressS Viarre (1976) Ovide Essai de lecture poeacutetique Paris Belles Lettres

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 29: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

124124

Pollitt (199867) Ciacutecero viu na casa do governador (na Siciacutelia) quando laacute se dirigiu a investigar o caso duas beliacutessimas estaacutetuas pertencentes ao templo de Hera em Samos e que agora ornamentavam o impluacutevio da casa as duas estaacutetuas que agora estatildeo soacutes no aacutetrio abandonadas pelas outras estaacutetuas aguardam um comprador de bens confiscados

De todos os discursos das Verrinas eacute sobretudo no De signis que a veemente denuacutencia dos roubos eacute servida por uma contundente veia iroacutenica Ficaram ceacutelebres alguns dos seus ditos espirituosos caricaturas jogos de palavras hipeacuterboles tiradas verrinosas em suma tudo quanto caracteriza o humor ciceroniano posto ao serviccedilo de uma causa mostrar a mania artiacutestica e a rapacidade de Verres Como afirma em citadiacutessimo passo (Sign 53) o que Verres fez na Siciacutelia roubando tudo e todos foi um verdadeiro euerriculum isto eacute uma autecircntica ldquovarridelardquo 6

Em boa verdade nem tudo levou o governador Numa das suas acccedilotildees invadiu o sacraacuterio de um particular (o mamertino C Heius) e de laacute retirou todas as estaacutetuas que o ornamentavam confeccionadas em maacutermore do maior valor deixando apenas uma tosca de madeira muito antiga a estaacutetua da Bona Fortuna (sect 7) Eam iste habere domi suae noluit (A essa o reacuteu natildeo a quis ter em casa) comenta o orador com estudada ironia E assim denegriu a figura do reacuteu

Agrave parte momentos como estes de sabor anedoacutetico que contribuem para aligeirar a eventual monotonia resultante do relato continuado repetitivo quase de tantos desmandos perpetrados pelo famoso propretor7 as Verrinas fornecem preciosa informaccedilatildeo sobre os abusos da administraccedilatildeo provincial de Roma ndash que tatildeo responsaacutevel foi pela imagem negativa do imperialismo romano ndash sobre a histoacuteria da arte e sobre os roubos de obras de arte na Antiguidade A peroraccedilatildeo do De suppliciis ndash que funciona igualmente como o fecho majestoso das Verrinas ndash eacute brilhante a este respeito Apostado em produzir um grande efeito pateacutetico o orador termina o seu libelo acusatoacuterio invocando a protecccedilatildeo dos deuses natildeo para proteger o reacuteu como era costume mas sim para atingir o acusado Invoca entatildeo todos os deuses que foram pilhados e ultrajados por Verres e pelos seus homens de matildeo A lista eacute quase interminaacutevelhellip

3 Ciacutecero e a CiliacuteciaEm virtude da Lex iulia de prouinciis que para evitar situaccedilotildees de clara

corrupccedilatildeo eleitoral requeria um miacutenimo de cinco anos desde o termo do exerciacutecio de uma magistratura antes que um ex-magistrado pudesse exercer o

quitiae uidere arbitraretur6 Um outro trocadilho digno de nota no De iurisdictione Siciliae 154 Ciacutecero regista que haacute

no foacuterum de Siracusa uma estaacutetua do filho de Verres de peacute e nu e uma outra do proacuteprio Verres que ldquodo alto do seu cavalo contempla a proviacutencia que ele pocircs a nurdquo

7 O proacuteprio orador se preocupa (retoricamente) desta monotonia como se vecirc em Frum 10 e 103 (Catherine Steel 2007 37)

Virgiacutenia Soares Pereira

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cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

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Janeiro Simotildees 1959_______ Extraits de Meacutetamorphoses (ed H Martin) Paris Hachette 1930_______ Metamorphoses i (ed A G Lee) Wauconda Bolchazy-Carducci

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2 EstudosA Crabbe (1981) ldquoStructure and Content in Ovidrsquos lsquoMetamorphosesrsquordquo in

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K S Myers (1994) Ovidrsquos causes Cosmogony and aetiology in the lsquoMetamorphosesrsquo Ann Arbor Univ of Michigan Press

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of Carolina PressS Viarre (1976) Ovide Essai de lecture poeacutetique Paris Belles Lettres

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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175175

O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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176176

as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

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in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 30: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

173173

cidade urbi et orbi arremate do ciclo de narrativas cantadas pelo poeta e com a sua chancela tornadas impereciacuteveis (15871-879)

Bibliografia

1 FontesOviacutedio Les Meacutetamorphoses (trad Gustave Lafaye) Paris Belles Lettres 1985-

1989_______ Metamorfosis (trad Ruben Bonifaz Nuntildeo) Mexico Universidad

Nacional Autoacutenoma de Mexico 1980_______ As Metamorfoses (trad David Gomes Jardim Jr) Rio de Janeiro

EdiOuro 1983_______ As Metamorfoses i - V (trad Antocircnio Feliciano de Castilho) Rio de

Janeiro Simotildees 1959_______ Extraits de Meacutetamorphoses (ed H Martin) Paris Hachette 1930_______ Metamorphoses i (ed A G Lee) Wauconda Bolchazy-Carducci

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B Otis (1966) Ovid as an Epic Poet Cambridge Univ Press 1966J B Solodow (1988) The world of Ovidrsquos lsquoMetamorphosesrsquo Chapel Hill Univ

of Carolina PressS Viarre (1976) Ovide Essai de lecture poeacutetique Paris Belles Lettres

Mitos de fundaccedilatildeo de cidades e a representaccedilatildeo do espaccedilo urbano nas metamorpHoSeS de Oviacutedio

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 31: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

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O MUNDO NATURAL E O ESPAccedilO DO HUMANO NA POESIA TRAacuteGICA DE SEacuteNECA

TROADES E THyESTES

Mariana Horta e Costa Matiasuniversidade de Coimbra

CECHFCTmarianamatiassapopt

AbstractSequi naturam ndash living according to Nature ndash was to the Stoic doctrine followersrsquo one of

the most vital aphorisms and in fact the supreme and highest virtue to accomplish an ideal that Seneca poet and thinker never ceased to reiterate in his philosophical works That same notion of ldquonaturalismrdquo ndash in its most diverse semantic shades ndash manifests itself in Senecarsquos corpus tragicum namely in two of the plays concerning the mythological nucleus of Atreusrsquo house Troades and Thyestes

In his tragedies the dramatist from Corduba embraces nature not as a mere Stoic inert notion but as an aesthetic and dramatic principle of extraordinary significance Natura shines as a privileged poetic technique of expression of emotions and accurate and distinctive drawing of natural spacesKeywords cosmic sympatheia humanity humanization naturanature Roman tragedy Seneca Stoic philosophyPalavra-chave humanidade humanizaccedilatildeo naturanatureza Seneca trageacutedia romana

Finaliza Bocage o soneto intitulado ldquoDescrevendo uma noite tempestuosardquo com os seguintes versos laquoQuer no horror igualar-me a Natureza Poreacutem cansa-se em vatildeo que no meu peito haacute mais escuridade haacute mais tristezaraquo1 Julgamos em certa medida encontrar nestas breves palavras do preacute-romacircntico portuguecircs algum do sentimento poeacutetico-filosoacutefico que Seacuteneca tatildeo bem soube transpor para a sua negra tragediografia a inquebraacutevel relaccedilatildeo entre Homem e Natureza

O filoacutesofo Ernst Cassirer afirma que o estoacuteico agrave semelhanccedila do homem primitivo comunga de uma visatildeo da natureza que eacute na sua essecircncia simpaacutetica na medida em que o ser humano vivencia um profundo sentimento de harmonia com o mundo natural2 Esta convicccedilatildeo de que existe um laccedilo comum que une todas as coisas nomeadamente o homem e a natureza e que aquele eacute uma parte desse todo relaciona-se tambeacutem de forma directa com

1 Bocage 2005 652 Cf E Cassirer 1995 78

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as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 32: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

176176

as noccedilotildees de macro e microcosmos A organizaccedilatildeo do Universo ndash entendido como macrocosmos ndash serve de modelo3 ao ser humano ndash o microcosmos ndash numa visatildeo posteriormente reaproveitada pelo Humanismo e radicada no contexto da cultura renascentista

Assim foi apoiado em ideais filosoacuteficos como a concepccedilatildeo da natura na sua intriacutenseca relaccedilatildeo com Razatildeo e Providecircncia e as noccedilotildees de sympatheia ton olon e de macro e microcosmos que Seacuteneca o poeta-filoacutesofo abraccedilou os ldquoensinamentosrdquo da doutrina do Poacutertico e ldquomoldourdquo uma natureza que nas suas trageacutedias se revela mais do que um mero conceito de filosofia em actuaccedilatildeo passiva e que se assume como um factor verdadeiramente esteacutetico de inigualaacutevel expressividade retoacuterica e poeacutetico-dramaacutetica Charles Segal considera mesmo a existecircncia de duas formas distintas mas complementares da afirmaccedilatildeo dramaacutetica do heroacutei senequiano que se consubstanciam no ldquoI-statementrdquo a auto-dramatizaccedilatildeo da magnitude emocional do sofrimento por outro lado na estrateacutegia dramaacutetica da projecccedilatildeo coacutesmica que significa por sua vez o envolvimento de todo o mundo na desgraccedila humana na relaccedilatildeo de base estoacuteica da sympatheia4

O Cordubense exiacutemio na construccedilatildeo de quadros vivos heranccedila de um pictorismo de que Pacuacutevio foi precursor privilegia a descriccedilatildeo de ambientes naturais e modela a natureza para que esta deixe de funcionar como simples cenografia sobre a qual se vatildeo desenrolando os acontecimentos O que Seacuteneca faz eacute conferir personalidade proacutepria agrave Natureza universal e racional de que tanto fala nos seus escritos filosoacuteficos corporalizando-a na influecircncia directa que esta exerce no comportamento das personagens por outro lado a natureza (physis) humana e particular das figuras por si criadas tambeacutem ela influi sobre os elementos fiacutesicos que a circundam numa verdadeira ligaccedilatildeo de interdependecircncia Muitas das vezes senatildeo quase sempre a paisagem natural (exterior) eacute o reflexo metafoacuterico de uma paisagem interior o espelho racional dos estados de alma das personagens intervenientes

Troades verdadeira liturgia fuacutenebre ldquotrageacutedia de lutordquo nas palavras de Florence Dupont5 abre com Troacuteia em ambiente de destruiccedilatildeo e de morte O fogo o fumo e as cinzas (vv 15-21) satildeo protagonistas e estabelecem a imagem de uma cidade arrasada de uma paacutetria vencida mas tambeacutem o espelho da alma de um povo e em especial de Heacutecuba despojada que sofre sem esperanccedila de ressurreiccedilatildeo

A natureza envolvente partilha da dor do povo troiano e assistimos a uma verdadeira sympatheia entre as duas realidades A escuridatildeo o clima de terror e o desolamento que enformam este ambiente exterior carregado de simbolismos e pressaacutegios satildeo o reflexo de uma paisagem interior conturbada ndash a do espiacuterito de Heacutecuba Falamos de uma figura que se identifica logo desde o iniacutecio da peccedila com a proacutepria cidade numa espeacutecie de simbiose emocional de relaccedilatildeo de interdependecircncia como se as duas fossem uma e a mesma entidade me uideat et te Troia (v 4)

3 Cf J ASegurado e Campos 1997 804 C P Segal 19831735 F Dupont 1985 206

Mariana Horta e Costa Matias

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Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

Mariana Horta e Costa Matias

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 33: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

177177

Ainda no mesmo drama encontramos a rhesis de Taltiacutebio a descriccedilatildeo pormenorizada do cataclismo que o espectro de Aquiles desencadeia com a sua anaacutebase (vv 170-202) Uma revoluccedilatildeo que nos mostra num primeiro momento uma natureza revoltada que prepara a chegada do fantasma do heroacutei grego verdadeiro reflexo do ethos desta personagem entidade infernal vencedora tambeacutem na morte Em seguida a natureza volta agrave sua ordem natural qual fiel serva do espectro e todos os seus elementos se mostram complacentes agora que a ira de Aquiles foi aplacada ao reclamar a morte de Poliacutexena (vv199-202)

Em Thyestes atente-se no furor que invade todo o espiacuterito de Atreu nos versos 260-266 A tremenda agitaccedilatildeo que toma conta do tirano leva a que a terra ruja desde as profundezas (imo mugit e fundo solum) o dia sereno troveje (tonat dies serenus) a casa ranja (ut fracta tectis crepuit) e os proacuteprios Lares atemorizados desviem o olhar (et moti lares uertere uultum) Mais uma vez a projecccedilatildeo da violecircncia interior na paisagem natural

Tambeacutem o desenho pormenorizado do bosque secreto onde tem lugar o assassiacutenio dos filhos de Tiestes agraves matildeos de Atreu (vv 650-682) preenche os requisitos daquela que eacute a representaccedilatildeo da natureza por excelecircncia da tragediografia senequiana ndash o locus horrendus ndash ao apresentar todos os elementos convencionais a fonte de aacuteguas estagnadas a escuridatildeo os fantasmas entre outros Seacuteneca projecta nesta paisagem todo um mundo interior vivido por Atreu e pela famiacutelia dos Peloacutepidas numa profunda e completa identificaccedilatildeo entre o furor a insania de um genus criminoso e o seu habitat natural a domus impia

Destacamos outra ldquoformardquo de natureza a exploraccedilatildeo da paisagem geograacutefica do poder designadamente atraveacutes do uso da imagem arquitectural como modo elaborado de pensar e concretizar esteticamente uma organizaccedilatildeo sociopoliacutetica Nesta medida a mansatildeo dos Peloacutepidas ocupa estrategicamente a parte mais elevada da cidade numa estrutura remota no tempo e inacessiacutevel no espaccedilo que domina e controla uma urbs aterrorizada (vv 641-645)

in arce summa Pelopiae pares est domusconuersa ad Austros cuius extremum latusaequale monti crescit atque urbem premitet contumacem regibus populum suishabet sub ictu

Falamos pois de uma topografia que surge como representaccedilatildeo deliberada de uma paisagem de controlo espelho fiel da natureza terriacutevel desta famiacutelia

Deste modo a natureza senequiana natildeo eacute uma natureza morta nem muda Na verdade ela fala agrave sua maneira com a galeria de figuras senequianas Assim na esteira da concepccedilatildeo providencial e racional da natura estoacuteica os elementos naturais intervecircm sempre que podem na acccedilatildeo influindo o seu poder nas personagens que o Cordubense constroacutei para as suas miacuteticas histoacuterias Em nada se mostra alheia agrave diversidade das atitudes humanas ao revelar o seu

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

Mariana Horta e Costa Matias

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

180180

(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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283

iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 34: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

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acordo ou desagrado ao manifestar o seu juacutebilo a sua tristeza ou a sua revolta perante os passos tremidos que as personagens vatildeo trilhando

A sensibilidade a humanizaccedilatildeo da natureza senequiana eacute bem patente por exemplo no relato do ritual sacrificial de Atreu (vv 696-702) todo o bosque estremeceu (lucus tremescit) a sala tremeu (tota succusso solo nutauit aula) o vinho libado escorreu sobre o fogo transformado em sangue (libata in ignes uina mutato fluunt crueenta Baccho) da fronte de Atreu tombou mais do que uma vez o diadema (regium capiti decus bis terque lapsum est) e o marfim do templo chorou o mal que era obrigado a testemunhar (fleuit in templis ebur) E quando o tirano se prepara para cozinhar os corpos dos sobrinhos os elementos rebelam-se novamente o fogo foge mas eacute forccedilado a arder e o proacuteprio fumo se evola de forma estranha (vv 767-775)

No fim do relato surge a referecircncia a uma das alteraccedilotildees naturais que domina toda a acccedilatildeo dramaacutetica de Thyestes a fuga do sol aquando do crime de Atreu O Phoebe patiens fugeris retro licet medioque ruptum merseris caelo diem sero occidisti (vv 776-778) O motivo do eclipse solar o leitmotiv do mundus inuersus vivido pelas vaacuterias personagens em diferentes perspectivas como se ocorresse uma e outra vez enforma metaforicamente toda a peccedila e inscreve-se na imageacutetica moral dos ceacuteus como reflexo da ordem ou desordem moral da vida humana siacutembolo da completa inversatildeo da harmonia coacutesmica Seacuteneca abraccedila esse motivo tradicional conferindo-lhe uma dimensatildeo bem mais alargada6 Perante as atrocidades cometidas pelo ser humano o cosmos vecirc-se obrigado a alterar o seu curso habitual e a fuga do sol revela-se a sua reacccedilatildeo mais violenta

No funesto banquete ainda em Thyestes eacute a natureza que tenta alertar o irmatildeo de Atreu para o perigo que corre e o mal que comete e eacute ele proacuteprio embriagado pelo aacutelcool e inebriado pelo cheiro e sabor das paixotildees que conta que lhe tombam da fronte as flores festivas que o seu cabelo repentinamente se ericcedila com horror que lhe caem laacutegrimas involuntariamente e que solta gemidos sem querer (vv 947-951)

Vernae capiti fluxere rosaepingui madidus crinis amomointer subitos stetit horroresimber uultu nolente cadituenit in medias uoces gemitus

Tiestes poreacutem teima em seguir o affectus natildeo dando ouvidos agrave ratio materializada aqui pela natura

No momento em que o peacuterfido Atreu oferece ao irmatildeo o copo que conteacutem o sangue dos sobrinhos a beber e este fraternalmente o aceita tambeacutem os elementos naturais se revoltam e manifestam a sua repulsa de forma vigorosa dos laacutebios lhe foge o vinho o fogo deixa de reluzir e a noite esconde-se e as proacuteprias matildeos se negam a segurar a taccedila (vv 985-995)

6 Vide W H Owen 1968 291-313

Mariana Horta e Costa Matias

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Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

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Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

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mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 35: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

179179

Note-se o interesse que a natureza humana isto eacute fiacutesica desperta em Seacuteneca nomeadamente aquando do delineamento dos caracteres das figuras num comprazimento tipicamente estoacuteico na descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo ou melhor da expressatildeo exterior dos sentimentos Falamos da exploraccedilatildeo da ldquofisicalidaderdquo do ser humano que o tragedioacutegrafo eleva agrave sua expressatildeo maacutexima numa relaccedilatildeo de (quase) interdependecircncia com o seu gosto acentuado pelo macabro e pela morbidez Eacute visiacutevel esse sentido de ldquocorporalidaderdquo por exemplo no ritual de dolor desbragado das cativas troianas que em Troades em honra de Heitor soltam os cabelos os cobrem com cinza desnudando o peito e lacerando-o com violentos golpes Um lamento e um luto que se consumam numa auto-mutilaccedilatildeo em que o corpo surge como templo da dor (vv 117-124) ou no relato pormenorizado das mortes dos jovens Astiacuteanax e de Poliacutexena autecircnticos modelos de sapientia estoacuteica (respectivamente vv 1110-1116 1157-1164)

Quando em Thyestes o mensageiro relata o assassiacutenio cruel dos filhos de Tiestes e a preparaccedilatildeo dos corpos para o banquete da pretensa reconciliaccedilatildeo entre os irmatildeos a alargada descriccedilatildeo (vv 683-738) revela bem o ldquogoucirct de lrsquohorriblerdquo que o poeta-filoacutesofo explora natildeo pelo mero gosto do macabro mas porque o pictorismo da crueza contribui de forma impressionante para a caracterizaccedilatildeo apurada das personagens e dos ambientes

Verificamos facilmente que uma das preocupaccedilotildees vitais do drama senequiano se centra no delineamento dos caracteres das figuras e eacute nesse desenho burilado que o Cordubense revela a sua maior mestria Concorre para o aprofundamento psicoloacutegico dos ethe o recurso a comparaccedilotildees metaacuteforas e siacutemiles com elementos do mundo natural animal e vegetal A tiacutetulo de exemplo em Troades a grandeza da physis hereditaacuteria de Astiacuteanax eacute ilustrada atraveacutes da comparaccedilatildeo com um tenro novilho que desde cedo comanda o gado agrave semelhanccedila do pai (vv 537-540) ou equiparada agrave cinza de um grande fogo que depressa recupera as suas forccedilas e se ateia novamente (vv 544-545)

Mireille Armisen-Marchetti constata que apesar de o autor enriquecer a sua tragediografia com motivos tradicionais a personalizaccedilatildeo desse legado passa por uma opccedilatildeo e selecccedilatildeo de imagens que natildeo se define somente como estrateacutegia estiliacutestica mas eacute ela tambeacutem um dos meios que Seacuteneca elegeu para nos dar a conhecer algum do seu mundo psicoloacutegico eacutetico e esteacutetico7 Nota-se assim especial predilecccedilatildeo ndash que se vem a revelar uma constante no imaginaacuterio senequiano ndash pelo movimento e pela metamorfose influecircncia porventura ovidiana Um movimento que resulta habitual e consequentemente em violecircncia e numa exacerbaccedilatildeo do pathos dramaacutetico ao servir-se de elementos ldquomoacuteveisrdquo como o mar o fogo o vento ou a natureza violenta dos animais selvagens na expressatildeo magniacutefica do furor do descontrolo humano8 Veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu primeiro com um tigre depois com um leatildeo na sua ferocidade sem limites aquando do assassiacutenio dos trecircs sobrinhos (respectivamente vv 707-713 732-738) agrave semelhanccedila de Ulisses em Troades quando se acerca de Astiacuteanax

7 M Armisen-Marchetti 1989 3748 Ibid 360

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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180180

(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 36: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

180180

(vv 796-799) A movimentaccedilatildeo irracional das feras surge como metaacutefora dos comportamentos de coacutelera furor e insania do ser humano

Natildeo podemos deixar de fazer alusatildeo agrave vertente toponiacutemica agrave geografia traacutegica que Seacuteneca abraccedila no seu drama e que natildeo deve entender-se como gratuita estrateacutegia retoacuterica pois esta alcanccedila um valor verdadeiramente metafoacuterico Por exemplo os perfumes de distacircncia exotismo e de violecircncia que alguns topoacutenimos emanam contribuem para o delineamento preciso dos caracteres ndash veja-se a comparaccedilatildeo de Atreu com um tigre das florestas do Ganges Iacutendia (vv 713-716) ou um leatildeo da Armeacutenia (vv 732-738) em referecircncias a paragens remotas entendidas como locais de costumes selvagens e de barbaacuterie9 Ou por exemplo em Troades o extenso cataacutelogo de referecircncias geograacuteficas locais para onde o coro de cativas conjectura ir parar (vv 814- -850) Tambeacutem aqui concordamos com Zeacutelia de Almeida Cardoso quando afirma que a geografia do desconhecido e do longiacutenquo simboliza o estado de alma destas mulheres perdidas no espaccedilo e no tempo10 Como defende Gianpero Rosati poder-se-aacute falar de uma espeacutecie de ldquodeterminismo do espaccedilordquo na medida em que cada personagem parece estar vinculada aos locais agraves paisagens que povoa e em que se move As figuras senequianas satildeo os lugares que habitam11

Em jeito de conclusatildeo e aceitando a premissa de Rossana Mugellesi de que os dois elementos cardeais do drama senequiano satildeo a participaccedilatildeo da natureza e o aprofundamento psicoloacutegico do pathos emocional12 julgamos poder afirmar que a natureza traacutegica senequiana eacute ela uma verdadeira natura animata paisagem que deixa de ser pura cenografia elemento unicamente descritivo para adquirir o estatuto de ldquopaisagem traacutegico-dinacircmicardquo Esta revela-se como uma personagem dramaacutetica real que se distingue acima de tudo pela sua humanizaccedilatildeo e humanidade13

Bibliografia

F-R Chaumartin (1999) Seacutenegraveque Trageacutedies T I-III ParisM Armisen-Marchetti (1989) Sapientiae Facies eacutetude sur les images de Seacutenegraveque

ParisM M B Du Bocage (2005) Obras Escolhidas I vol LisboaM Grant (2000) ldquoSenecarsquos tragic geographyrdquo Latomus 591 88-95E Cassirer (21995) Ensaio sobre o Homem Carlos Branco (trad) LisboaR Mugellesi (1973) ldquoIl senso della natura in Seneca tragicordquo in Argentea aetas

in memoriam E V Marmorale Geacutenova 29-66W H Owen (1968) ldquoCommonplace and Dramatic Symbol in Senecarsquos

9 Vide M Grant 2000 88-9510 Z A Cardoso 1997 2111 G Rosati 2002 229 12 R Mugellesi 1973 65-6613 Vide R Mugellesi 1973 56

Mariana Horta e Costa Matias

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181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

K

Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 37: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

181181

Tragediesrdquo TAPhA 99 291-313G Rosati (2002) ldquoLa scena del potere Retorica del paesaggio nel teatro di

Senecardquo in Hispania terribus omnibus felicior Premesse ed esiti di un processo di integrazione Pisa 225-239

C P Segal (1983) ldquoBoundary Violation and the Landscape of the Self in Senecan Tragedyrdquo AampA 29 172-87

J A Segurado e Campos (1997) ldquoRatio e Voluntas no Pensamento de Seacutenecardquo Classica 22 79-92

O mundo natural e o espaccedilo do humano na poesia traacutegica de Seacuteneca troadeS e tHyeSteS

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

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B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

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Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

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I

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L

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M

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287287

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N

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O

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(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

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S

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Caesarum) 231super-homem 409

T

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U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

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147 155 (Geoacutergicas) 491

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iacutendice de palavras-chave(abrange vol 1 e 2)

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A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

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J

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K

Kant 431

L

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M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

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N

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O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

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(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

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V

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147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 39: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

285285

A

aemulatio 131Afonso Africano 337Afrodite 23aacutegora 43Agostinho 305 (Confissotildees) 305alegoria 337alimentaccedilatildeo 147Amadeu Lopes Sabino 467 (Vidas

Apoacutecrifas) 467Ameacutericas 395Anfiteatro Flaviano 199Antiguidade Tardia 313Antoacutenio Seacutergio 459Apuleio 265 (conto de Amor e Psique)

265 (O Burro de Ouro) 265aristocracia romana 113Aristoacutefanes 49arquitectutra romana 89Arteacutemis 23Atenas 43Avicena 89

B

Baacuterbaros 15 313Barroco 353Beoacutecia 459Bernardo de Gordon 89 (De ingenio

Sanitatis) 89 (De Modo Me-dendi) 89

Bernardo Soares 451biografia 223botacircnica 97branquitude 417bucolismo 459

C

cave 35Ceacutelio Rufo 121Ceacutesar 215

Ciacutecero 121 (Verrinas) 121Ciliacutecia 121Ciacutetia 459coleacutegios 369comeacutercio 43Companhia de Jesus 395Constantinopla 313contra-reforma 353coro 183

D

Della Porta 361Diogo Pires 345Dioniso 29ditadura militar 459Domiciano 207

E

Eacutedipo 409educaccedilatildeo 369Egeacuteria 327 (itinerarium) 327

(Peregrinatio) 327Egipto 15ensino 425 439epigrama 199epistemologia 417escrita feminina 353espaccedilo 337espaccedilo de exiacutelio 451espaccedilo dramaacutetico 15espaccedilo fisico 59 83espaccedilo meacutedico e social 83espaccedilo poeacutetico 155espaccedilo psicoloacutegico 59espaccedilo rural 49espaccedilos da morte 255espaccedilo urbano 169 199Espanha 459Eacutesquilo 15Estaacutecio 207 (Siluae) 207Europa 313

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286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

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jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

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L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

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(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

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V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 40: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

286286

Euriacutepides 23exploraccedilatildeo das proviacutencias 121

F

Feliciana Enriacutequez de Guzmaacuten 377Fiacutelon de Bizacircncio 73filosofia 475fisiognomonia 361Foacutecida 459fronteiras 313

G

Galeno 89Germacircnia 215Gratilde-Bretanha 247Greacutecia Antiga 49guerra 43

H

Heacuteracles 29heroacutei 409hexacircmetros leoninos 97Hipoacutelito 23Histoacuteria da Aacutefrica 425Histoacuteria da Ciecircncia 395Histoacuteria dos Jesuiacutetas 369historiografia traacutegica 255Horaacutecio 131hortus 231hospital 89humanidade 175Humanismo 369Humanismo Renascentista 345humanizaccedilatildeo 175

I

iatromea 83Idade Meacutedia 97ilusatildeo 59imaginaccedilatildeo 431imaginaacuterio 169Impeacuterio Romano 223insula 89 231

J

jardim 377jogos 199Judeus seacutec I 191

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Kant 431

L

literatura 425literatura latina 105locus amoenus 377Lucreacutecio 475Luculo 113lugares santos 327luxuacuteria 113

M

mar 23Marcial 199 345 (Liber de Spectaculis)

199medica 83medicina 97 361melancolia 361memoacuteria 305metricologia 105mineraccedilatildeo 395misticismo 353

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mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

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natureza 35 175natureza selvagem 23Neolatim 395Neo-romantismo 409Nero 223Nietzsche 409ninfa 35ninfolepsia 65

O

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P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

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(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

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T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

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147 155 (Geoacutergicas) 491

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287287

mito 409 (claacutessico) 377 (de Orfeu) 491

mitologia 169Montpellier 89mulher 35 377

N

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O

obstetrix 83Orcomeacutenia 459Orfeu da Conceiccedilatildeo 491Orfeu Negro 491Oviacutedio 451

P

paisagem 215 475paisagem bucoacutelica 65paisagens de Virgiacutelio 139palavra claacutessica 467palavra contemporanea 467panolepsia 65patrimoacutenio 73pedagogia 439periaktoi 183personagens-esteio 183Piacutendaro 131pintura romana 191plantas medicinais 97Plauto 439 (Truculentus) 439Plutarco 237 (Vidas Paralelas) 237

467poesia 169 395 475 (didaacutectica) 97

(liacuterica) 131poesia eacutepica portuguesa 337poesia novilatina 345poeacutetica da expressatildeo 105Pompeios 191populaccedilatildeo 43Portugal 459Poseacuteidon 23puacuteblico e privado 113

R

Ratio Studiorum 369realidade 59recepccedilatildeo 409reinvenccedilatildeo 417religiatildeo 431Roma 147 169 191 237 313roubo de obras de arte 121Ruacutessia 459

S

salazarismo 459scaenae ductiles 183Seacuteculo de Augusto 169Sete Maravilhas 73Siciacutelia 121Soacutefocles 459suburbanum 231Suetoacutenio 223 231 (Vitae duodecim

Caesarum) 231super-homem 409

T

Taacutecito 215 247 255 (Agricola) 247 (Annales) 255

teatro 439Tebas 29 459

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288288

tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

V

valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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Page 42: Espaços e Paisagens - CLASSICA DIGITALIAPaisagens marinhas no Hipólito de Eurípides 23 Maria do Céu Fialho Tebas: a cidade de Dioniso. O caso de Héracles de Eurípides 29 Sofia

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tempo 305Teoacutecrito 459teologia poliacutetica 431Tibeacuterio 255tirania 255traduccedilatildeo 131trageacutedia 29 409trageacutedia grega 15 417trageacutedia romana 175transgressatildeo 377trilogia 409turismo 73

U

unidade de acccedilatildeo de tempo e de espaccedilo 183

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valetudinaria 89Verfremdung 183Via Domiciana 207viagem 15villa 89 113 231Virgiacutelio 139 147 155 491 (Bucoacutelicas)

147 155 (Geoacutergicas) 491

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