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TRAGÉDIAS TRAGÉDIAS I EURÍPIDES EURÍPIDES

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EURÍPID

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TRAGÉD

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ÉDIAS

Juntamente com os dois nomes mais destaca-dos da tragédia grega que, em geração, o prece-diam, Eurípides vinha completar uma tríade de glória, em que lhe cabia um lugar próprio: o de remodelar um género que, por suas mãos, avançou para ousadias surpreendentes, em consonância com uma Atenas igualmente insaciável de mudança e novidade.Da permanente actualidade da tragédia de Eurípides, fruto da perspicácia e actualização de um espírito aberto e atento, resultou, no imediato, uma oscilação do sentir do poeta perante a cidade dos contrastes em que Atenas se tinha transformado. Capaz ainda de se deixar seduzir pelo fascínio de uma comunidade, que os deuses agraciaram com a suavidade de uma paisagem doce e de uma luz brilhante, anima-da pela elevação dos ideais e pela superioridade do espírito, Eurípides sofreu, como os melho-res Atenienses do seu tempo, o golpe pungen-te da decadência. Por isso partiu, incapaz de aguardar aquele dia em que Atenas, como outrora Tróia no seu paradigma predilecto, se cobriu do fumo das ruínas, que obscureceu os tons doirados da pujança de outrora, fugaz, mas nem por isso menos fulgurante.

TRAGÉDIASTRAGÉDIASI

EURÍPIDESEURÍPIDES

As versões aqui apresentadas assentam nos textos estabelecidos por J. Diggle, Euripides Fabulae, I-III, Oxford, 1994.

FLUC

I

9 7 8 9 7 2 2 7 1 6 3 3 8

ISBN 978-972-27-1633-8

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Título: TragédiasVol. I

Autor: Eurípides

Edição: Imprensa Nacional-Casa da Moeda

Concepção gráfica: DED/INCM

Tiragem: 800 exemplares

Data de impressão: Junho de 2009

ISBN: 978-972-27-1633-8

Depósito legal: 272 446/08

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Edição realizada no âmbito do protocoloentre a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

(Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos e Instituto de Estudos Clássicos)e a Imprensa Nacional-Casa da Moeda

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INTRODUÇÃO GERAL

UM POETA CHAMADO EURÍPIDES

Oriundo de Salamina (Vita 1-3), não há sobre as datas quebalizam a vida de Eurípides uma informação rigorosa. Umatradição, expressa também pela Vita, congrega o ano do nasci-mento de um génio de livre pensador com o da batalha deSalamina — 480 a. C. —, simbolicamente uma data que lavra-va, para a Grécia, o início de uma era de progresso, de liberda-de e de um tremendo êxito intelectual e cívico, de que o poetade Salamina seria também um baluarte. A mesma tradição, comfragilidades evidentes, mas na defesa intransigente do simbo-lismo, estabelecia, entre o poeta que via a luz e os seus rivais,laços sugestivos: nesse mesmo dia, Ésquilo associava-se, comocombatente, ao sucesso de Salamina, que Sófocles, adolescenteainda, celebrava com um hino de vitória. Construía-se, em tor-no de uma Atenas que renascia, uma moldura de excelência,de que as Musas encarnavam a autoria. Eurípides vinha assimcompletar uma tríade de glória, em que lhe cabia um lugarpróprio: o de remodelar um género que, por suas mãos, avan-çou para ousadias surpreendentes, em consonância com umaAtenas igualmente insaciável de mudança e novidade, numarota que se traçou, com brilhantismo, até ao esgotamento e àdecadência. Já se percebia, à distância, o estertor da derrota,que o desfecho da Guerra do Peloponeso, em 404 a. C., consu-mou, quando um Eurípides em desespero perante as sombras

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que ocultavam a luz fulgurante de Atenas partiu para aMacedónia (407 a. C.), a refugiar-se na corte de Arquelau. Paralá terminar os seus dias, desiludido com os homens e com avida, mas capaz ainda de exprimir, na pujança desafiadora dassuas últimas criações, a interrogação entre todas pungente paraqualquer ser humano, dentro de uma Atenas em crise: «Quemsou eu?»

Para compreender um poeta controverso, mas de reconhe-cida criatividade, como Eurípides, talvez nos possamos valercom vantagem do testemunho de um dos maiores dos seuscríticos, que foi também um dos seus mais fervorosos especta-dores: Aristófanes. Um homem de teatro, ele também, ocomediógrafo representa para nós o testemunho contemporâ-neo mais fiel do perfil público de Eurípides. Avaliado em simesmo e nas suas opções teatrais, como também comparadocom os seus rivais de maior mérito, Sófocles, mas sobretudo ovelho Ésquilo, a produção do mais novo dos três grandes no-mes da tragédia merece do crítico uma atenção quase perma-nente. Ao observá-lo, no seu inconformismo imaginativo, ocómico tornou-se eco do retrato de um poeta que parece se-nhor de um espírito atento a todas as novidades, intelectuais eculturais, do seu tempo. Pode, por isso, na ficção cómica, assu-mir o papel de antónimo do velho Ésquilo, ou seja, o daqueleque representa o desenvolvimento do género trágico levado àssuas últimas consequências.

É, antes de mais, o espectáculo produzido por Eurípides oque fere e surpreende um público familiarizado com uma tra-dição de solenidade sacra, própria do género. A cena abre-se,com o poeta de Salamina, a um realismo inusitado, através dosseus famosos reis mendigos, inúmeros na sua produção (cf.Aristófanes, Acarnenses 407-479). Por trás dos farrapos queenvergam, estas figuras mantêm, de acordo com a tradição,uma coerência própria. Apeadas da grandeza dos heróis dopassado, inspirados no padrão épico, as personagens deEurípides conservam, dos modelos que reproduzem, essencial-mente o nome, porque enveredam por um comportamentoconforme com uma experiência de quotidiano claramente con-temporânea do criador. Uma humanidade e realismo novosfazem destes outros heróis personagens criadas de acordo comuma outra medida, bebida na experiência rica e inovadora do

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século V a. C. Ainda em nome da mesma coerência dramática,que Ésquilo defendia nas Rãs (1058-1061) como factor de vero-similhança, os novos heróis falam também uma outra lingua-gem, rendida a uma nova convenção, a que a retórica clássica,dentro de outros cânones e objectivos, os habituou. Para con-textualizar estes outros heróis, com as suas preocupações maisindividualizadas e humanas, a cena deixou-se invadir por ade-reços inúmeros que dão, a cada figura, mais do que o perfil deuma criatura humana, os múltiplos traços de uma idiossin-crasia.

É verdade que os seus heróis continuam a inspirar-se nomito, sem, no entanto, que o poeta abandone o propósito, per-manente na sua personalidade, de inovar e de divergir em re-lação aos seus modelos, e aos tratamentos consagrados já pe-los seus rivais mais distintos no género. Buscar mitos menosconhecidos ou dar aos mais famosos um tratamento peculiar,eis, em termos gerais, a estratégia usada por Eurípides. Mas,para além das fontes remotas, como o mito ou o seu tratamen-to épico, que configuraram uma substância cultural que a tra-gédia retomou sem cansaço, Eurípides foi sem dúvida tambémo espectador atento daqueles que, em sua volta, contribuírampara o sucesso da tragédia. Ainda que Aristófanes, em Rãs,através da famosa disputa entre Ésquilo e Eurípides pelo tronoda tragédia, emoldurada pelas trevas do Hades, tenha consa-grado, para a posteridade, uma espécie de eterna polémica ouassimetria entre os dois poetas, a verdade é que uma observa-ção atenta não deixará dúvidas sobre a atenção que, emEurípides, é uma constante sobre as opções do seu famoso ri-val. Sem que a diferença de gerações os colocasse lado a ladonos concursos dramáticos, o poeta mais jovem absorveu, empormenor, o seu Ésquilo; e sempre na intenção de o tomarcomo ponto de partida, para adoptar motivos e soluções diver-gentes, não me parece duvidoso, se tidos em conta, desde logo,alguns exemplos mais vistosos (o caso da Electra de Eurípidesface às Coéforas de Ésquilo; ou das Fenícias face aos Sete contraTebas), uma relação de proximidade e divergência que tornaparalela a produção dos dois poetas, sem nunca os fazer coin-cidir, e lhes não permite nem oposição, nem indiferença.

A presença divina e a sua intervenção reguladora, tãodeterminante em Ésquilo e Sófocles como um factor de equilí-

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brio e de justiça universal, dilui-se em Eurípides, para dar lu-gar a tyche, o destino, como uma abstracção de força superior,cujo poder extremo se oculta sob a estranheza das ocorrências,sujeitando o ser humano a uma existência de sofrimentosimprevisíveis, mas profundos, que nenhum critério claro pare-ce justificar. Não que um sentido religioso seja alheio ao pen-samento de Eurípides. Mas, em coerência com a sua atitudegeral de inconformismo, também esta perspectiva é nele sujei-ta ao crivo da especulação e da intelectualidade. Vemo-la, nassuas criações, amplamente questionada e testada, para final-mente se penetrar de ideias novas e do cepticismo tão em vogana época. Também neste plano do divino, o poeta se aposta nabusca de uma pureza e de um ideal ético, a que o Olimpo tra-dicional não corresponde. Como bem sintetiza J. de Romilly (Latragédie grecque, 144): «A religião do poeta parece, tal como asmotivações das suas personagens, ter-se interiorizado e radicarno mais íntimo da sua sensibilidade.» O arredar dos deuses,que parecem ter perdido o controlo dos acontecimentos e acapacidade de assegurar uma verdadeira ordem universal— mau grado as aparições que fazem, ex machina, no termo devárias tragédias, para garantir o remate de uma acção que seseguiu sem uma intromissão clara da sua parte —, deixa os ho-mens entregues a um destino, que prima pela surpresa e pelodesconcerto. Não se sabe quando ou como ocorre, mas reco-nhece-se-lhe uma autoridade soberana. Talvez por isso Eurípi-des tenha adoptado, com ligeiras variantes, uma espécie defórmula de encerramento que, de modo expressivo, rematavárias das suas peças (Alceste 1159-1163, Medeia 1415-1419,Andrómaca 1284-1288, Helena 1688-1692): «Muitas são as formasque o destino adopta, e muitas as ocorrências inesperadas queos deuses operam. O espectável finalmente não acontece, en-quanto ao inesperado a divindade abre acesso. Tal é o sentidodesta intriga.» Tanto mais entregues a si mesmos, e a umapossível coesão social e humana, se encontram os indivíduos.Cada homem não tem agora de se defrontar sobretudo comforças que o transcendem e lhe ditam o curso da vida, de umplano distante e superior; o dia-a-dia obriga-o a um convíviodifícil com aqueles que o cercam, na família e em sociedade,entidades tendencialmente adversas entre si, de interesses epropósitos em conflito, numa comunidade que consolidava um

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modelo de organização participado e democrático. Princípioscomo philia ou dikê, a solidariedade humana e a justiça, de quenão está ausente a tolerância, poderiam constituir traves mes-tras na felicidade de um ser humano que está agora mais dis-tante dos deuses. Mas estes, que são bens essenciais num mun-do novo, dão, na perspectiva de Eurípides, a imagem deprincípios inalcançáveis por uma sociedade onde o peso dosinteresses vem fragilizar a resistência humana, na confrontação,sempre dolorosa, com tyche. É como se o suporte de princípiose de ordem social que, nas últimas décadas, sustentara a expe-riência grega se desmoronasse, para deixar cada cidadão en-tregue a uma anarquia cósmica e cívica.

A guerra, como pano de fundo da experiência humana aolongo de todo o século V a. C., ganha, em Eurípides, contornosmuito particulares. Um foco essencial no tratamento desta pro-blemática continua a incidir sobre os que são os grandes destemundo; mas não se trata agora sobretudo de os colocar comocondutores de homens, perante a pressão das regras que re-gem a ordem universal. Os Agamémnones, Menelaus, Aquiles,Ulisses, Etéocles ou Polinices de criação euripidiana são, paraalém de heróis — marcados pelo contorno tradicional das gran-des virtudes ancestrais —, homens autênticos, frágeis sob opeso da responsabilidade que lhes compete, condicionados pelaameaça da opinião pública, e presos em laços de parentesco oude sentimento. A sua actuação não se orienta num sentido ver-tical, que os eleve num conflito com forças superiores; as ten-sões que os afectam desenham-se na horizontal e representam--se na teia difícil que os condiciona em relação aos seus iguais.Medidos face à responsabilidade de que estão investidos, pare-cem demasiado pequenos na sua vulgaridade de criaturas co-muns. Da guerra, os novos heróis não retiram glória, como oalmejado prémio da coragem ou da morte. Porque a guerra évista como um fenómeno ilusório e inútil, os resultados queproduz, mesmo se auspiciosos, são precários e vulneráveis auma roda de imprevisto que os deixa expostos a uma inevitá-vel decadência. Escolher, solucionar dilemas permanentes tor-nou-se um desafio onde se expõe mais a fragilidade do queuma superior aretê. Sob os grandes impulsos ou as exigênciasde uma tradição de excelência, vigoram sentimentos e paixõespuramente humanos, que actualizam os heróis de antanho em

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função de uma realidade próxima e comezinha. São os famo-sos oikeia pragmata de Eurípides (cf. Aristófanes, Rãs 959), essastensões banais, que fazem do seu teatro o quadro de uma hu-manidade universal, anacrónica e eterna. O tratamento do temaguerra nesta outra perspectiva, que se afasta dos valores deexcelência consagrados pela épica para se aproximar da reali-dade do momento, corresponde à necessária adequação às cir-cunstâncias da vida de um poeta, para quem Atenas reservouanos de crise, os da Guerra do Peloponeso, após tempos glorio-sos de uma resistência triunfante, perante a arremetida bár-bara, de uma Hélade superiormente unida em nome do valorda liberdade. Na hora de reabilitar do Hades, na ficção de Rãs,um dos grandes poetas do passado, o génio nunca desmentidode Eurípides não chega para afastar dele o estigma de arauto deuma crise, facilmente ultrapassado pelo Ésquilo representantedos anos gloriosos da cidade. Não que, sobretudo nas suas pri-meiras produções, o fascínio pela grandeza da cidade não estejapresente em Eurípides, quando a guerra não tinha ainda agra-vado as condições sociais que a envolviam. Em Heraclidas ou emSuplicantes, o poeta desenha o retrato de uma Atenas superior,generosa e hospitaleira, susceptível de arriscar a segurança ime-diata em nome da defesa de ideais elevados; mas a realidade, abreve trecho, se encarregou de desmantelar este quadro de ex-celência e de o degradar ao nível de interesses pessoais, mesqui-nhos e contraditórios. É esta a cidade que finalmente se impõe eperdura ao longo da produção do poeta.

Patente foi sobretudo aos seus contemporâneos a dimen-são que o feminino conquistou no seu teatro. A multiplicidadede heroínas fez do poeta, na versão cómica, o figadal inimigodas mulheres, tal a insistência e minúcia com que, em cena, lhesdesvendou os recessos da alma e lhes justificou os comporta-mentos, de forma insuspeitada e surpreendente. Este interessede Eurípides era também um resultado inevitável da guerraque, ao dizimar os heróis e combatentes, projectava, pelo pró-prio desequilíbrio social daí resultante, uma intervenção maisvisível das mulheres no colectivo. Catalogadas em diferentesfaixas etárias — velhas, adultas e jovens (cf. Aristófanes, Rãs948-949) —, produzem uma gama de naturezas e de atitu-des de uma variedade inesgotável. Mas à misoginia de que foiacusado sobra excesso e uma redução injusta do sentido desta

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preferência. Se para ela alguma razão existe, a crítica advémdo retrato de figuras femininas no quadro doméstico, em tem-po de paz. É aí que, sobre as mulheres casadas, impende umaculpa ou mesmo condenação que se alimenta de dois factores:por um lado, dos impulsos de uma natureza emotiva, que viveao sabor de paixões avassaladoras, que a deixam vulnerável areacções extremas e condenáveis; por outro, pela incapacidadeóbvia que a mulher evidencia de se submeter a um códigosocial estrito, que lhe exige uma discrição e pudor muito paraalém das suas fibras. A mulher constitui então, dentro da fa-mília, para quem sobre ela exerce autoridade — pai ou mari-do —, uma ameaça difícil de controlar. São assim provocado-ras as Fedras, Estenebeias ou Melanipas, paradigmas da ruínaque a insensatez e imoralidade congénita no género femininoimpõe ao nomos. São estas figuras, sobretudo protagonistas depaixões amorosas extremas, as que justificaram a fama demisoginia e de um escândalo imoral, a perseguir o poeta.

Há, porém, que reconhecer que não se fica por estes exem-plos perniciosos a visão euripidiana do feminino. Muitas ou-tras são as mulheres no seu teatro, tomadas como exemplo desofrimento, de uma bravura dolorosa, ou simplesmente de umaconformação difícil com a ruína social que as afecta. Estas sãoas vítimas da guerra que, após a morte ou afastamento dosheróis, enfrentam as dores mais pesadas do conflito ou do pós--guerra, sob a forma de exílio e servidão. É nas mulheres deTróia (Hécuba, Andrómaca), como também nas gregas (Electra,Ifigénia), que Eurípides retrata o abandono e o vazio, a que asgrandes dissensões humanas condenam o género feminino.O quadro de guerra que mais impressiona o poeta não é o dovigor e o da violência entre guerreiros, no campo de batalha.Toda a atenção de Eurípides se volta para o pós-guerra, ondeo sofrimento, perante a destruição consumada, se aprofundatambém nas almas, e onde, depois do desaparecimento dosheróis, é sobre a sociedade civil, então maioritariamente femi-nina e indefesa, que a aniquilação final se abate. É a cruezapura que se instala num mundo onde nem patriotismo, nem osentido de uma autoridade reguladora superior podem dar, aosacontecimentos, uma coerência aceitável.

No meio do descalabro da guerra, que arrasa a normali-dade da vida, pessoal e social, o poeta sonha ainda com aque-

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las heroínas, jovens e puras, intocadas por ambições ou com-promissos, e por isso capazes da generosidade máxima que adádiva da própria vida representa. Essas são as vítimas imola-das em sacrifício, as Macárias, Políxenas ou Ifigénias, que põemacima da sobrevivência a vontade maior de morrer em nomede um ideal, que é também a salvação da pátria ou dos seus,impulsionadas pelo sangue nobre que lhes corre nas veias.Assim se completa, nas suas linhas gerais, um quadro comple-xo do feminino, com uma amplitude mesclada de heroísmo ede humanidade, que só objectivos cómicos puderam reduzir auma sólida e coesa misoginia.

À repartição entre homens e mulheres, como agentes reaisde uma época vivida pela sociedade grega, juntam-se, emnúmero significativo, os estrangeiros. O interesse, literário ecultural, por esse outro universo que rodeava os limites daGrécia recebeu um impulso do conflito armado que envolveua Hélade e o oriente durante o primeiro quartel do século V.Mas conhecer e desenhar o perfil do bárbaro equivale, natural-mente, a um cotejo e resultou numa consciência mais clara daprópria identidade grega. Esta reflexão, a que Eurípides — apar de historiadores, geógrafos, filósofos e dramaturgos — ade-riu com entusiasmo, envolveu uma reflexão plena de contro-vérsia sobre o que separa civilização de barbárie. Radicalizadaesta dicotomia por uma tradição que a tornava equivalente deser ou não ser grego, o conhecimento progressivo do que seencontrava dos dois lados da fronteira permitiu a relativizaçãodo conceito ou mesmo a sua subversão. Também nesta pers-pectiva, que é saliente na sua obra, Eurípides retratou umagama diversificada de padrões: o bárbaro entranhadamenteselvagem da tradição (caso de Polimestor na Hécuba), ou a na-tureza feroz de uma Medeia, que nela é sobretudo um traçopessoal mais do que a agressividade própria de uma mulherda Cólquida, a rainha de Tróia, a velha Hécuba, que pode re-cordar a generosidade hospitaleira com que protegeu, na suacorte, o inimigo, um Ulisses infiltrado como espia, nos anoscontroversos da guerra (Hécuba), ou mesmo Políxena, exemplode uma aretê superior. A par destes exemplos de cumprimentodas regras civilizadas como as entendia o mundo grego, actuamos heróis da Grécia, frequentemente em desvantagem no cum-primento dos mesmos princípios, motivados pela efemeridade

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de um estatuto que usam com arrogância. Este cotejo, no seurelativismo, fez ruir a fronteira a separar os dois mundos, obárbaro e o civilizado, a que substituiu o simplesmente huma-no. E esse elemento fulcral na realidade de ser homem nãodepende de fronteiras convencionais ou culturais; são as con-dições que cercam cada indivíduo, de paz e normalidade, deconflito ou violência, que o movem na direcção da excelênciaou da bestialidade.

Particularmente significativas, nesta perspectiva, são as pe-ças romanescas (Helena, Ifigénia entre os Tauros e a perdida An-drómeda), a que Eurípides dedicou um entusiasmo constante aolongo da década de 20 do século V. Consideradas pelos críti-cos modernos como estruturadas segundo um padrão original eestranho, têm sido apelidadas de dramas romanescos ou peçasde aventuras, e postas em causa como verdadeiras tragédias.Concebidas dentro de um movimento inverso ao que habitual-mente pauta uma tragédia, aquele que leva da mais profundadesgraça e abandono ao happy end, elas são infiltradas por aven-tura e exótico. Situadas em terra longínqua, no Egipto, na Táu-ride ou na Etiópia, envolvem a acção de uma perigosidade dig-na da selvajaria bárbara. Aí o risco que o terreno oferece exigedo grego ameaçado um esforço de valentia e de imaginação, quese opõe à violência, não isenta de ingenuidade, do bárbaro.A vitória cabe invariavelmente ao grego, que, em geral, maispor talento da perspicácia feminina, do que por valentia damasculinidade do herói, encontra o caminho da salvação e doregresso a uma tranquila e monótona normalidade. Esta é a ex-periência de um par romântico, ao fim de muitos anos reen-contrado em paragens distantes, que tyche converte em prota-gonistas dignos da odisseia vivida por um Ulisses polyméchanos.Como elos de sustentação desta nova tragédia impõem-se odolo, o acaso, o reencontro e o reconhecimento, com que seconstrói um roteiro de busca de identidade ou de reformula-ção, depois de um longo itinerário de sofrimento ou de aven-tura, do sentido da existência. Acima das grandes paixões ouda emotividade profunda da dor, pondera nelas a fantasia deum destino caprichoso. Pelos condimentos que o temperam— amor e viagem —, este inusitado padrão trágico converteuEurípides no precursor de géneros mais tardios, com particularincidência na Comédia Nova e no romance helenístico.

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Desta multiplicidade de modelos humanos, que se digla-diam e se confrontam, fica patente o interesse de Eurípides peloaprofundamento das tensões e impulsos da alma humana, queparecem agora, à míngua de autoridade divina ou de princí-pios, comandar o mundo. Sem ser ainda uma tragédia verda-deiramente psicológica, a sua produção centra-se, sem sombrade dúvida, em redor do homem comum, com uma naturali-dade e realismo não explorados pelos seus adversários maisdistintos, Ésquilo e Sófocles. Novas e contrastantes, as perso-nagens tendem a multiplicar-se em número, de forma a exem-plificarem tensões e sentimentos dentro de uma acção que,através delas, ganha ritmo e complexidade. Com Eurípides, aproporção que as relaciona com a intervenção do coro reequa-ciona-se, numa clara valorização do movimento e da acção,sobre a reflexão universal e filosófica de que o coro, por tradi-ção, era o agente. Por isso é legítima a questão que Aristófanescoloca entre os dois opositores no agôn de Rãs (1008-1055), so-bre o objectivo final que move a criação dos dois poetas.Ésquilo não hesita em situar-se na linha, tradicional na litera-tura grega, do didacticismo. A sua produção obedeceu ao de-sejo de educar os cidadãos, de os elevar a padrões de excelên-cia, baseados na lucidez de espírito e na valentia. Objectivosque Eurípides não pode reivindicar como seus. Se ao poeta deSalamina cabe um mérito próprio — que não deixou de seraltamente controverso — esse chama-se realismo, e traduz-se natentativa de «imitar» a vida como ela é, com todo o jogo devirtudes e de vícios em que se funda a humana natureza. Con-denado pela imoralidade a que não resistiu, o poeta viu-se ro-deado pela surpresa, ou mesmo pelo escândalo, com que o seupúblico olhou, atónito, as provocações que lhe dirigia. Mas se,concretamente, foram escassos os prémios obtidos, a atençãonão deixou de coroar a ousadia de um homem, decerto dema-siado moderno para a sua época, e por isso detentor de umaeterna juventude.

Se atento ao mundo seu contemporâneo pelos conteúdosem que assentou a sua produção, Eurípides não o foi menossobre os métodos e princípios intelectuais que lhe orientaramo pensamento. Contemporâneo dos nomes de referência domovimento sofístico, que respondia, com a novidade e teoriza-ção dos saberes, às carências mais profundas de uma sociedade

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democrática, assente na participação activa de cada um dosseus membros, Eurípides converteu-se no sofista em cena; noseu teatro, abre-se um espaço para a discussão das polémicasem voga no momento: a importância relativa da guerra e daglória que confere, o sentido de uma nova hierarquia social, oconfronto tempestuoso de nomos e de physis, convenção sociale impulsos naturais numa sociedade que privilegiava o colecti-vo em detrimento do individual, philia e dike, solidariedade ejustiça, como novos factores de protecção social, num mundoque punha em causa a actuação dos deuses ou de forças supe-riores, aparência e realidade como um eterno desafio à posiçãodo homem em cada momento concreto, e aos limites da suaclarividência e saber. Como expressão de uma atitude crítica eeternamente polémica na avaliação de princípios ancestrais,Eurípides partilhou com a intelectualidade sua contemporâneado apreço supremo pelo poder do logos, aquela capacidadedialéctica que dita os argumentos e os critérios de análise queabrem acesso ao conhecimento, complementada pela versãooral e comunicativa do discurso. Sobre a cena, confiou às suaspersonagens a arte de expor ou confessar, em longas rheseis, osseus sentimentos, conflitos e desafios. Mas, além do discursomeramente demonstrativo, tornou-as igualmente capazes deesgrimir argumentos, de confrontar opiniões contraditórias, àsemelhança do debate político ou forense, dando recorte práti-co à convicção, consagrada pelos sofistas, de que, para cadacaso, existem dois discursos argumentativos, os dissoi logoi, si-métricos, mas antagónicos, e de resultados opostos. Os agonesmultiplicam-se no seu teatro, mobilizando, na ficção dramáti-ca, todo o tipo de personagens, desde os tradicionais peritosem argumentos, de que Ulisses sempre foi o paradigma, até aosoradores mais inconcebíveis no quotidiano de Atenas, como asmulheres que o processo educativo mantinha, em geral, arre-dadas das novidades do saber. Hécuba pode ser, na tragédiaque usa o seu nome, o exemplo extremo de uma prática que,mais do que o retrato estrito da realidade, é sobretudo umexpediente dramático para, com recurso a uma estratégia doagrado geral, aprofundar as subtilezas das questões que sus-tentam a problemática de cada peça.

A preocupação pelo sentido do humano e pelo relaciona-mento de cada indivíduo com o colectivo, expressa no indivi-

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ÍNDICE

Introdução geral,por MARIA DE FÁTIMA SOUSA E SILVA .......................................... 7

Um poeta chamado Eurípides ........................................... 7

Bibliografia geral ....................................................................................... 20

*

CICLOPE ..................................................................................................... 23

ALCESTE .................................................................................................... 109

MEDEIA ...................................................................................................... 201

HERACLIDAS ............................................................................................ 291

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BIBLIOTECA DE AUTORES CLÁSSICOS

TEOGONIATRABALHOS E DIASHesíodoPrefácio de Maria Helena da Rocha PereiraTradução, introdução e notas de Ana Elias Pinheiroe José Ribeiro Ferreira

FRAGMENTOS POÉTICOSArquílocoTradução, introdução e notas de Carlos A. Martins de Jesus

FRAGMENTOS CONTEXTUALIZADOSHeraclitoPrefácio, apresentação, tradução e comentários de Alexandre Costaedição bilingue

TRAGÉDIAS • IEurípidesIntrodução geral de Maria de Fátima Sousa e SilvaTradução, introdução e notas de Carmen Leal Soares, Nuno Simões Rodrigues,Maria Helena da Rocha Pereira e Cláudia Raquel Cravo da Silva

TESTEMUNHOS E FRAGMENTOSSofistasIntrodução de Maria José Vaz PintoTradução e notas de Ana Alexandre Alves de Sousae Maria José Vaz Pinto

ÊUTIFRON. APOLOGIA DE SÓCRATES. CRÍTONPlatãoTradução, introdução, notas e posfáciode José Trindade Santos5.ª edição

COMÉDIAS • IAristófanesIntrodução geral de Maria de Fátima Sousa e SilvaIntrodução, tradução e notasde Maria de Fátima Sousa e Silva e Custódio Magueijo

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RETÓRICAAristótelesPrefácio e introdução de Manuel Alexandre JúniorTradução e notas de Manuel Alexandre Júnior,Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena3.ª edição

TÓPICOSAristótelesTradução, introdução e notas de J. A. Segurado e Campos

HISTÓRIA DOS ANIMAISAristótelesTradução, introdução e notas de Maria de Fátima Sousa e SilvaConsultoria científica de Carlos Almaça2 vols.

OS ECONÓMICOSAristótelesTradução, introdução e notas de Delfim Ferreira Leão

OBRA COMPLETAMenandroTradução, introdução e notas de Maria de Fátima Sousa e Silva

COMÉDIAS • IPlautoIntrodução geral de Aires Pereira do CoutoTradução, introdução e notasde Carlos Alberto Louro Fonseca, Aires Pereira do Couto,Walter de Medeiros, Cláudia Teixeira e Helena Costa Toipa

COMÉDIASTerêncioIntrodução geral de Walter de MedeirosTradução, introdução e notasde Walter de Medeiros e Aires Pereira do Couto2 vols.

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Acabou de imprimir-seem Junho de dois mil e nove.

Edição n.o 1016621

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