Espinosa e a Afetividade Humana

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Espinosa

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  • Coleo PASSO-A-PASSO

    CINCIAS SOCIAIS PASSO-A-PASSO

    Direo: Celso Castro

    FILOSOFIA PASSO-A-PASSO

    Direo: Denis L. Rosenfield

    PSICANLISE PASSO-A-PASSO

    Direo: Marco Antonio Coutinho Jorge

    Ver lista de ttulos no final do volume

  • Marcos Andr Gleizer

    Espinosa&

    a afetividade humana

    Jorge Zahar EditorRio de Janeiro

  • Para Alfa e Julia

    Copyright 2005, Marcos Andr Gleizer

    Copyright desta edio 2005:Jorge Zahar Editor Ltda.rua Mxico 31 sobreloja

    20031-144 Rio de Janeiro, RJtel.: (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123

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    Capa: Srgio Campante

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    G468sGleizer, Marcos Andr, 1961- Espinosa & a afetividade humana / Marcos AndrGleizer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005 (Passo-a-passo; 53)

    Inclui bibliografia ISBN 85-7110-831-5

    1. Spinoza, Benedictus de, 1632-1677. 2. Teoria doconhecimento. 3. Cincia Metodologia. I. Ttulo. II.Srie.

    CDD 199.49204-3314 CDU 1(492)

  • Sumrio

    Introduo 7

    Sistema e mtodo 11

    Potncia de agir, conatus e desejo 29

    A natureza dos afetos:tipos bsicos e afetos primitivos 33

    Os afetos secundrios: amor e dio 40

    Os princpios de derivao afetiva 43

    A fora das paixes 49

    Razo e afetividade 51

    Seleo de textos 59

    Referncias e fontes 64

    Leituras recomendadas 67

    Sobre o autor 70

  • Este livro resultou de uma pesquisa que obteve o apoiofinanceiro do CNPq (bolsa de produtividade em pesquisa),da Capes (bolsa de ps-doutorado) e do Procincia (pro-grama de dedicao exclusiva dos docentes da Uerj).

  • Introduo

    O objetivo deste livro apresentar as grandes linhas da

    teoria da afetividade humana desenvolvida por Baruch Es-

    pinosa (1632-1677) em sua obra principal, a tica demons-

    trada maneira dos gemetras.

    O ttulo da obra magna de Espinosa revela o interesse

    fundamentalmente tico que norteia a totalidade de sua

    reflexo filosfica. Com efeito, em um de seus primeiros

    trabalhos, o Tratado da reforma do entendimento, Espinosa

    narra sua experincia de desiluso com a busca dos bens

    mundanos (honras, riquezas e prazeres) quando tomados

    como fins ltimos da existncia humana, e lana o projeto

    de encontrar um bem supremo, comunicvel e pelo qual a

    alma seja afetada de uma alegria eterna, contnua e supre-

    ma. Este bem supremo, nos diz Espinosa, consiste no co-

    nhecimento da unio que a alma tem com a Natureza

    inteira, isto , com Deus. esse projeto de busca da beati-

    tude pelo conhecimento no qual o verdadeiro contenta-

    mento e a autntica liberdade nascem do ato de inteleco

    que nos une a ns mesmos, a Deus e s coisas que a tica

    realiza.

    7

  • No se deve pensar, no entanto, que a desiluso com o

    valor dos bens mundanos e a busca da beatitude pelo co-

    nhecimento de Deus signifiquem a adoo de um ideal de

    vida asctica dedicada mortificao dos desejos, erradi-

    cao das paixes, denncia de sua origem em algum vcio

    da natureza humana e adorao temerosa de um Deus

    transcendente que nos recompensar no alm por nossos

    sacrifcios. exatamente contra este tipo de ideal, contra o

    imaginrio metafsico-moral a ele vinculado e a postura

    moralizadora que ele engendra em relao afetividade, que

    se levanta o espao conceitual terico e prtico construdo

    na tica.

    A identificao entre Deus e a Natureza, assinalada na

    citao do Tratado e demonstrada na primeira parte da

    tica, por si s j indica claramente que o Deus de Espinosa

    em nada se confunde com o Deus transcendente, pessoal e

    criador da tradio judaico-crist. Seu Deus imanente

    Natureza, e o conhecimento de nossa unio com ele nada

    mais do que o conhecimento intelectual de ns mesmos

    como partes da Natureza, partes integralmente submetidas,

    como todas as outras, s leis causais necessrias que regem

    o comportamento das coisas naturais. Neste espao terico

    dominado pelas idias de imanncia e necessidade, a exign-

    cia racionalista de inteligibilidade integral do real ser colo-

    cada a servio da intuio fundamental da unidade da

    Natureza e levada s suas ltimas conseqncias.

    Ora, a universalizao da necessidade causal incom-

    patvel com a crena no livre-arbtrio. esta crena em uma

    vontade livre, capaz de transcender incondicionalmente a

    8 Marcos Andr Gleizer

  • ordem preexistente, que permite que o homem acredite ter

    a faculdade de subtrair-se s leis comuns da Natureza e

    possa imaginar-se como dotado de um poder absoluto

    sobre suas aes e paixes. a crena no livre-arbtrio,

    entendido como um poder absoluto de sim e de no, que

    torna possvel que o homem imagine-se na Natureza, para

    utilizarmos a clebre expresso de Espinosa, como um

    imprio dentro de um imprio. ela, em ltima anlise,

    que explica por que a maior parte daqueles que escreveram

    sobre os afetos e a maneira de viver dos homens parecem

    ter tratado no de coisas naturais, mas de coisas que esto

    fora da Natureza.

    No entanto, para Espinosa, essa crena no passa de

    uma iluso espontnea do conhecimento imaginativo ca-

    racterstico de nossa conscincia imediata. Com efeito, os

    homens crem que so livres porque so conscientes de

    suas volies e apetites e ignoram as causas que os dispem

    a querer e a apetecer. Assim, um desejo cujo mltiplo

    condicionamento causal ignorado apreendido como um

    desejo incondicionado, o sujeito considerando-se como sua

    causa primeira e nica. A imaginao constata a presena

    irrecusvel de um efeito, mas a ignorncia das verdadeiras

    causas introduz uma falsa interpretao do mesmo, engen-

    drando a iluso do livre-arbtrio.

    A ruptura com o preconceito voluntarista, com a

    crena de que o sujeito senhor absoluto de suas deter-

    minaes, acarretar na tica a substituio da postura

    moralista pela do cientista natural e tornar possvel a

    elaborao de uma autntica cincia da afetividade huma-

    Espinosa & a afetividade humana 9

  • na. Afinal, o desejo, a alegria, a tristeza, o amor, o dio e

    toda a gama de afetos que colorem nossa existncia tm

    causas determinadas e efeitos necessrios to dignos de

    conhecimento quanto qualquer outra coisa natural. Este

    conhecimento, no entanto, no apenas uma atividade

    intelectual digna e prazerosa que viria a satisfazer uma

    curiosidade cientfica desinteressada e existencialmente

    neutra. Segundo o projeto de liberao proposto na tica,

    s o conhecimento verdadeiro das causas dos mecanismos

    afetivos aos quais estamos submetidos permite elaborar

    uma tcnica realista para moderar as paixes e reduzir os

    efeitos naturalmente obsessivos, ambivalentes e alienantes

    que explicam a experincia de desiluso de que partiu

    Espinosa. S a potncia do conhecimento racional

    enraizada, como veremos, no mesmo princpio desejante

    que se manifesta na vida passional, e, por isso mesmo,

    dotada de uma dimenso afetiva que lhe peculiar

    permite transformar gradualmente a vida do indivduo e

    conduzi-lo a gozar dos afetos ativos que constituem o

    ncleo afetivo da experincia da beatitude: o contentamen-

    to interior e o amor intelectual por Deus.

    A teoria da afetividade exerce, assim, uma funo es-

    sencial no projeto tico de Espinosa. Ela depende, contudo,

    de premissas metafsicas e epistemolgicas que a funda-

    mentam e garantem sua adequada compreenso. Por isso,

    antes de apresentarmos suas principais idias importante

    obtermos uma viso geral da natureza e da estrutura siste-

    mticas da tica, da posio que esta teoria ocupa no sistema

    e do mtodo utilizado em sua elaborao.

    10 Marcos Andr Gleizer

  • Sistema e mtodo

    O ttulo da tica revela no apenas o objetivo que a orienta,

    mas tambm o paradigma de racionalidade com o qual se

    pretende atingi-lo. Por sua forma geomtrica, a tica cons-

    titui a exemplificao mais perfeita da vontade de sistema e

    do ideal de matematizao do saber caractersticos da mo-

    dernidade. Com efeito, o sistema encadeado ao longo das

    cinco partes que a compem pode ser considerado como a

    realizao plena do projeto cartesiano de uma cincia uni-

    ficada que abrange a totalidade do real. Este projeto foi

    formulado metaforicamente na carta-prefcio da edio

    francesa dos Princpios da filosofia mediante a famosa com-

    parao da filosofia com uma rvore cujas razes so a

    metafsica, o tronco a fsica e o galho mais perfeito, a moral,

    que, na medida em que pressupe um completo conheci-

    mento das outras cincias, o mais alto grau da sabedoria.

    Embora partilhando do ideal cartesiano de uma cin-

    cia dedutiva que conduza da metafsica tica, Espinosa

    discorda no apenas do mtodo adotado por Descartes na

    construo desta cincia, mas tambm de vrias teses meta-

    fsicas cuja aceitao, no seu entender, inviabiliza por prin-

    cpio a realizao desse empreendimento. Com efeito, a

    rvore cartesiana possui trs razes principais, na seguinte

    ordem: a existncia indubitvel do sujeito pensante, ponto

    de partida da construo do sistema; a existncia de um

    Deus veraz, fundamento da verdade do sistema; a unio da

    alma e do corpo, ponto culminante da metafsica e ponto

    de partida da moral elaborada no tratado das Paixes da

    Espinosa & a afetividade humana 11

  • alma. Ora, essa pluralidade de razes, em especial a tenso

    entre o ponto de partida do sistema (cogito) e seu funda-

    mento ltimo (Deus), por si s oferece uma resistncia

    reduo sistemtica. Porm, o que torna impossvel de di-

    reito a realizao do sistema so os elementos incompreen-

    sveis contidos em cada uma dessas razes, particularmente

    aqueles envolvidos nas seguintes teses:

    1) a incompreensibilidade da onipotncia infinita de

    Deus, cuja liberdade de escolha exercida no ato indiferente

    de criao (ato que inclui, segundo Descartes, a criao das

    verdades necessrias da razo) constitui, para usarmos as

    palavras de Espinosa, um magno obstculo cincia;

    2) a afirmao do livre-arbtrio humano, cuja compa-

    tibilizao com a onipotncia divina exercida de forma

    contnua na conservao da criao (doutrina da criao con-

    tnua), por um lado, e com o reino da causalidade natural,

    por outro, incompreensvel;

    3) a incompatibilidade entre a tese do dualismo subs-

    tancial e a da unio substancial. Com efeito, aps ter procu-

    rado demonstrar que a alma e o corpo so duas substncias

    finitas realmente distintas a primeira sendo completa-

    mente definida pelo pensamento e a segunda, pela extenso

    , Descartes sustenta que, embora elas no possuam nada

    de comum entre si, esto intimamente unidas no homem,

    interagindo por intermdio da glndula pineal. Ora, essa

    interao causal entre realidades heterogneas, responsvel

    pelo movimento voluntrio quando a alma comanda o

    corpo e pelos sentimentos quando o corpo afeta a alma,

    incompreensvel. Ela tem como conseqncias tanto o fato

    12 Marcos Andr Gleizer

  • de o corpo informado pela alma no ser passvel de uma

    abordagem em termos exclusivamente fsicos quanto o fato

    de a alma humana conter um ncleo de percepes sens-

    veis, dentre as quais se incluem as paixes, irredutivelmente

    obscuras e confusas. Tais conseqncias oferecem uma re-

    sistncia ineliminvel ao conhecimento racional do ho-

    mem, colocando em xeque a elaborao de uma cincia da

    conduta da vida.

    Ora, a presena dessas zonas de incompreensibilidade

    no apenas inviabiliza o sistema, mas contraria frontalmen-

    te a primeira regra do mtodo de Descartes, segundo a qual

    devemos evitar a precipitao e a preveno e s afirmar

    como verdadeiro aquilo que percebemos clara e distinta-

    mente. A contradio to violenta que suscita uma reao

    indignada por parte de Espinosa:

    Por certo, eu no posso admirar-me suficientemente queum filsofo, que tinha determinado firmemente nadadeduzir seno de princpios evidentes e de nada afirmarseno aquilo que percebesse clara e distintamente, e quetantas vezes censurara os escolsticos por eles terem que-rido explicar as coisas obscuras por qualidades ocultas,admita uma hiptese mais oculta que todas as qualidadesocultas. Que entende ele por favor pela unio daalma e do corpo? Que conceito claro e distinto tem ele pergunto de um pensamento estreitissimamente uni-do a uma determinada parcelazinha de quantidade? Que-ria muito que ele tivesse explicado pela sua causa prximaesta unio. Mas ele tinha concebido a alma de tal formadistinta do corpo que no podia apresentar nenhuma

    Espinosa & a afetividade humana 13

  • causa singular nem desta unio nem da prpria alma, masfoi-lhe necessrio recorrer causa de todo o Universo, isto, a Deus.

    A indignao compreensvel. Afinal, Espinosa reco-

    nhece em Descartes um precursor quando este, na carta-

    prefcio das Paixes da alma, expressa sua inteno de ex-

    plicar as paixes no como um orador, nem mesmo como

    um moralista, mas en physicien, isto , de explic-las por

    suas causas primeiras como um filsofo natural. Porm, a

    falta de rigor na aplicao da regra da evidncia e a adeso

    s teses metafsicas acima mencionadas fazem com que a

    cincia das paixes e a tcnica proposta para control-las

    sejam falsas e ilusrias, de modo que o galho supremo da

    rvore do saber no pode dar os frutos esperados.

    Para evitar esse resultado na construo de seu sistema,

    Espinosa comea por recusar toda e qualquer zona de mis-

    trio e incompreensibilidade, adotando de forma absoluta

    o princpio da inteligibilidade integral do real e aplicando

    de maneira irrestrita o princpio de razo suficiente: tudo

    tem uma causa ou razo. A inteligibilidade integral, por sua

    vez, se realiza segundo um nico modelo de racionalidade,

    aquele exemplificado pelo mtodo sinttico da geometria

    euclidiana, reformado de modo a lhe conferir um carter

    gentico.

    A escolha do mtodo sinttico no gratuita. Ela se

    ope preferncia cartesiana pelo mtodo analtico que

    parte do conhecimento do efeito e regride em direo ao

    conhecimento da causa. este o mtodo adotado por Des-

    14 Marcos Andr Gleizer

  • cartes em suas Meditaes metafsicas, por considerar que a

    anlise mostra o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa

    foi metodicamente descoberta. Ora, segundo Espinosa,

    conhecer verdadeiramente conhecer pelas causas. Por

    essa razo ele considera que o mtodo sinttico, que progri-

    de do conhecimento da causa em direo ao conhecimento

    do efeito, o verdadeiro mtodo de inveno. Nele ns

    partimos de definies para, em conjunto com os axiomas,

    deduzirmos paulatinamente as diversas propriedades dos

    objetos. Ora, a definio perfeita deve ser gentica, isto ,

    deve descrever o modo de produo do objeto definido, pois

    s assim podemos deduzir a priori todas as suas proprieda-

    des. Por exemplo, o crculo deve ser definido como a figura

    descrita por uma linha, da qual uma extremidade fixa e a

    outra, mvel. Da se pode facilmente inferir que todas as

    linhas que vo do centro circunferncia so iguais. este

    modelo de geometria gentica, elaborado no Tratado a par-

    tir da influncia de Hobbes, que Espinosa aplicar totali-

    dade do real.

    Ora, se conhecer conhecer pela causa, preciso que

    nosso esprito deduza todas as suas idias a partir daquela

    que representa a origem da Natureza inteira, isto , neces-

    srio que a idia da causa primeira de todas as coisas seja a

    causa de todas as idias, de modo que a ordem e conexo

    das idias reproduza a ordem e conexo das coisas. Visto ser

    Deus a causa primeira de todas as coisas, Espinosa sustenta

    que, segundo a verdadeira ordem do filosofar, preciso

    partir do conhecimento da essncia de Deus para dele de-

    duzir o conhecimento do Universo tanto sob seus aspectos

    Espinosa & a afetividade humana 15

  • materiais quanto sob seus aspectos mentais. Evidentemente,

    para que se possa proceder a essa deduo de forma cont-

    nua e necessria preciso que a crena imaginativa em um

    Deus transcendente, pessoal e criador seja substituda pelo

    conhecimento adequado de um Deus imanente Natureza,

    do qual todas as coisas so modificaes particulares pro-

    duzidas no por um ato contingente de escolha, mas pelo

    exerccio necessrio de uma potncia causal desprovida de

    qualquer finalidade. Assim, racionalismo absoluto, deter-

    minismo causal, imanncia divina e naturalismo integral

    fornecem o horizonte terico onde o sistema dedutivo uni-

    ficado pode ser enfim construdo. Com isso, tudo pode ser

    explicado a partir de uma nica raiz.

    Essa raiz metafsica nica precisamente o objeto da

    primeira parte da tica, cujo ttulo De Deus. Nela Espi-

    nosa demonstra a tese central do monismo. Vejamos alguns

    aspectos bsicos dessa tese necessrios para a compreenso

    de nosso tema.

    Na tica I Espinosa demonstra que a metafsica carte-

    siana dominada por obscuridades, confuses e mesmo

    contradies. Segundo essa metafsica, o Universo consti-

    tudo por uma multiplicidade de substncias finitas classi-

    ficadas, em funo de seus atributos essenciais, em duas

    categorias: os corpos (substncias materiais definidas pela

    extenso tridimensional) e os espritos (substncias imate-

    riais definidas pelo pensamento). Mas o que Descartes en-

    tende por substncia? Uma das definies que ele oferece

    a de uma coisa que necessita apenas de si para existir, isto

    , de algo que possui auto-suficincia existencial. Evidente-

    16 Marcos Andr Gleizer

  • mente, Descartes se d conta de que essa definio no pode

    ser aplicada univocamente a Deus e s criaturas. Estas lti-

    mas no podem subsistir sequer um momento sem serem

    conservadas na existncia por Deus, de modo que apenas

    Deus, em um sentido estrito, necessita apenas de si para

    existir. Porm, ainda que as coisas criadas no sejam abso-

    lutamente independentes, Descartes utiliza o termo subs-

    tncia para designar, de forma anloga, aquelas criaturas

    que podem existir sem a ajuda de outras, enquanto as que

    dependem de Deus e de outras criaturas para existir rece-

    bem o nome de modos.

    Ora, Espinosa recusa submeter a definio de substn-

    cia ao tratamento analgico que permitiria aplic-la a Deus

    e s criaturas. Para ele, o mtodo analgico incapaz de

    evitar o antropomorfismo e acaba atribuindo a Deus o que

    caracteriza as criaturas e vice-versa. Assim, adotando o

    termo substncia no sentido unvoco em que ele se aplica

    apenas a Deus, e acrescentando auto-suficincia exis-

    tencial a auto-suficincia conceitual, Espinosa define a subs-

    tncia como aquilo que existe em si e por si concebido,

    isto , aquilo cujo conceito no carece do conceito de outra

    coisa para ser formado. Partindo dessa definio, ele de-

    monstra, em conjunto com as outras definies e axiomas

    do sistema, que uma investigao rigorosa de suas conse-

    qncias lgicas exibe a incompatibilidade radical entre

    substancialidade e finitude, e conduz tese monista, isto ,

    afirmao de que na realidade h uma nica substncia

    absolutamente infinita. essa substncia absoluta, consti-

    tuda por infinitos atributos (entendidos como formas ati-

    Espinosa & a afetividade humana 17

  • vas de ser), cada um dos quais infinito no seu gnero, que

    ser identificada a Deus ou Natureza. Assim, o pensamen-

    to e a extenso (os dois nicos atributos conhecidos por

    ns) no caracterizam substncias finitas distintas, mas

    constituem expresses heterogneas e infinitas de uma ni-

    ca realidade substancial. Ou seja, o universo material infi-

    nito e o universo mental infinito so duas expresses dife-

    rentes de uma mesma realidade. A substncia divina, por-

    tanto, um ser nico que se expressa em diversas formas,

    ser infragmentvel porm matizado, infinitamente diferen-

    ciado sem ser descontnuo, e produzindo necessariamente

    em si uma infinidade de coisas naturais finitas que nada

    mais so do que seus modos.

    O que explica a passagem da substncia absoluta aos

    modos finitos o fato de a essncia da substncia ser uma

    potncia. O conceito de potncia no designa em Espinosa

    uma virtualidade cuja atualizao seria contingente, mas

    sim uma atividade causal inesgotvel na qual a substncia

    determinada exclusivamente por sua prpria essncia a

    produzir nela mesma infinitas coisas em infinitos modos,

    isto , tudo o que concebvel. Como Espinosa assimila a

    relao de causalidade eficiente relao de implicao

    lgico-matemtica, os efeitos imanentes assim produzidos

    so to necessrios quanto as propriedades derivadas de

    uma figura geomtrica, sendo, tambm como estas, despro-

    vidos de qualquer finalidade. Portanto, Deus, ou seja, a

    Natureza, no age em vista de nenhum fim.

    Sendo a potncia o aspecto dinmico da essncia de

    Deus, e sendo esta essncia constituda pelos diversos atri-

    18 Marcos Andr Gleizer

  • butos, cada um deles efetua essa potncia segundo seu

    gnero. Como os atributos so conceitualmente heterog-

    neos, Espinosa mostra que no pode haver nenhuma inte-

    rao causal entre eles, de forma que cada um produz a srie

    dos seus modos de maneira completamente autnoma.

    Assim, o atributo extenso produzir corpos e o atributo

    pensamento, idias.

    Porm, se a produo dos modos remete exclusiva-

    mente a seus respectivos atributos, e se estes so heterog-

    neos e autnomos em suas atividades, como explicar que

    exista alguma relao entre eles? Aqui entra em cena a

    famosa tese espinosista do paralelismo. Esta tese consiste em

    sustentar que os atributos, embora autnomos, so isno-

    mos, isto , que embora produzam seus modos em completa

    independncia, eles agem segundo um mesmo princpio

    causal, uma mesma lei de produo. Por isso, Espinosa pode

    afirmar que quer concebamos a Natureza sob o atributo da

    extenso, quer sob outro atributo qualquer, encontraremos

    sempre uma s e mesma ordem, em outras palavras, uma

    s e mesma conexo de causas, isto , encontraremos sem-

    pre as mesmas coisas seguindo-se umas das outras. Assim

    como a extenso e o pensamento so expresses distintas da

    mesma substncia, assim tambm um modo da extenso e

    a idia deste modo so uma e a mesma coisa, mas expressa

    de duas maneiras diferentes.

    Mas o que significa exatamente afirmar que os entes

    finitos so modos da substncia absoluta? O conceito de

    modo define-se por oposio ao de substncia como aquilo

    que existe em outro e concebido por outro, ou seja, aquilo

    Espinosa & a afetividade humana 19

  • que possui dependncia existencial e conceitual. Por sua vez,

    afirmar que um ente finito significa afirmar que ele

    limitado por outra coisa do mesmo gnero (s corpos limi-

    tam corpos, e s idias limitam idias). Assim, caracterizar

    algo como um modo finito equivale a mostrar que ele no

    dispe de nenhuma auto-suficincia absoluta, que ele s

    pode ser compreendido a partir de sua relao com a subs-

    tncia e com os outros modos da substncia, isto , com as

    outras coisas naturais finitas contidas no mesmo atributo.

    Exibir o status modal de um ente demonstrar sua depen-

    dncia existencial, conceitual e tambm causal, sua dupla

    determinao causal pela substncia absoluta e por um nexo

    infinito de causas finitas. Em suma, o conceito de modo

    indica a abertura constitutiva do ser finito. Com ele as coisas

    finitas deixam de ser pensadas como objetos fechados e

    auto-suficientes para abrirem-se no seu processo de consti-

    tuio.

    Na produo de um ente finito, dois aspectos distintos

    devem ser considerados. Por um lado, as essncias desses

    entes so produzidas de maneira direta e incondicional pela

    substncia divina. Assim, essas essncias dependem da subs-

    tncia, mas independem umas das outras. Como os entes

    finitos so modificaes certas e determinadas da essncia

    de Deus, e como esta essncia uma potncia causal ines-

    gotvel, Espinosa demonstra que as essncias dos modos

    finitos so expresses certas e determinadas da potncia de

    Deus, de forma que no existe coisa alguma de cuja natu-

    reza no resulte qualquer efeito. Assim, por meio de suas

    essncias, todas as coisas finitas participam em graus diver-

    20 Marcos Andr Gleizer

  • sos do dinamismo causal da Natureza, e tal participao,

    como veremos, que fornecer o fundamento de toda a teoria

    da afetividade. Por outro lado, a produo da existncia

    espao-temporal dos modos finitos condicionada por um

    nexo infinito de causas finitas. Assim, a existncia dos mo-

    dos est necessariamente entrelaada com a dos outros

    modos, e portanto o exerccio de sua potncia ser em

    grande parte condicionado pelos encontros oriundos desse

    entrelaamento.

    A partir da segunda parte da tica, intitulada Da

    natureza e origem da alma, essas teses metafsicas gerais

    sero aplicadas ao caso particular do homem. Se tomarmos

    o termo fsica em um sentido amplo, como designando a

    teoria das coisas naturais finitas, podemos dizer que com

    essa parte de sua obra Espinosa inicia o exame do tronco

    fsico do sistema, mediante a deduo gentica da alma

    humana como idia do corpo.

    Com efeito, tendo excludo a substancialidade do fini-

    to, Espinosa demonstra que a alma humana no uma

    substncia pensante finita, mas um modo finito do pensa-

    mento infinito, determinado exclusivamente pelas leis lgi-

    cas e psicolgicas que regem este atributo. Ou seja, a alma

    humana uma idia, a saber, idia do corpo humano. Este,

    por sua vez, um modo finito da extenso infinita, isto ,

    uma poro finita de matria submetida s leis do movi-

    mento e do repouso que regem o mundo fsico. E a unio

    da alma e do corpo no a mistura incompreensvel de duas

    substncias metafisicamente independentes, mas a dupla

    expresso de uma nica realidade, de uma nica modifica-

    Espinosa & a afetividade humana 21

  • o da substncia absoluta, pois, segundo a tese do parale-

    lismo, a alma e o corpo so uma s e mesma coisa expressa

    de duas maneiras diferentes no pensamento e na extenso.

    Ao demonstrar que a alma a idia do corpo, Espinosa

    subverte a tese cartesiana segundo a qual o conhecimento

    do esprito precede o do corpo, pois conhecer verdadeira-

    mente a alma conhec-la exatamente como sendo a idia

    do corpo. Alm disso, o conhecimento distinto da alma deve

    acompanhar o conhecimento distinto do corpo. Com efeito,

    ao introduzir a tese do pan-psiquismo, segundo a qual

    todos os seres so animados em diversos graus, Espinosa

    afirma que para determinar em que a alma humana difere

    das outras e as supera, precisamos conhecer a natureza do

    seu objeto, isto , do corpo humano, visto que em virtude

    do paralelismo, sua complexidade ser proporcional de

    seu objeto. Por isso, encontramos tambm na segunda parte

    da tica um esboo de fsica, entendida agora no sentido

    estrito da cincia geral dos corpos, e alguns postulados

    referentes fisiologia do corpo humano em particular.

    O corpo humano, segundo a fsica de Espinosa, um

    indivduo extremamente complexo, sendo composto de v-

    rios corpos, cada um dos quais tambm muito composto.

    Graas a essa complexidade, ele apto a afetar e a ser afetado

    de diversas maneiras pelos corpos exteriores, sendo capaz

    de reter essas afeces, isto , as modificaes nele causadas

    por essas interaes. A expresso mental da composio

    corporal, exigida pelo paralelismo, implica a excluso da

    tese clssica da simplicidade da alma, pois a idia que cons-

    titui a alma humana ser, necessariamente, composta de

    22 Marcos Andr Gleizer

  • vrias idias. Assim, a alma apta a perceber um grande

    nmero de coisas, numa aptido proporcional de seu

    corpo a afetar e ser afetado pelos outros corpos, pois suas

    percepes sero constitudas a partir das idias das afeces

    do corpo. Ora, embora a alma e o corpo sejam totalidades

    compostas, eles no so meros agregados, mas totalidades

    estruturadas e auto-reguladas. O todo no se reduz mera

    justaposio das partes, mas define-se por uma lei que

    organiza as relaes entre elas, uma estrutura que confere

    unidade e individualidade ao todo. Assim, o que define a

    individualidade de um corpo composto qualquer (seja ele

    humano ou no) a relao constante segundo a qual suas

    partes comunicam seus movimentos entre si, de tal forma

    que qualquer variao nos seus componentes que no des-

    trua esta relao preserva a identidade do indivduo. Assim,

    um indivduo composto pode sofrer mltiplas variaes,

    afetar e ser afetado de vrias maneiras pelos corpos exterio-

    res, conservando sua individualidade atravs das trocas com

    o meio circundante. Ora, um indivduo uma totalidade

    em relao s suas partes, mas ele mesmo uma parte em

    relao a totalidades mais abrangentes, num processo que

    remonta ao infinito. A concepo espinosista do indivduo,

    compatibilizando a variabilidade com a permanncia, per-

    mite conceber a Natureza inteira como um nico indiv-

    duo, cujas partes, isto , todos os corpos, variam de infinitas

    maneiras, sem mudana do indivduo total.

    A alma tampouco um mero agregado de idias. Para-

    lelamente ao que ocorre com o corpo, ela tambm se define

    por uma lei que organiza seus componentes, a lei que funda

    Espinosa & a afetividade humana 23

  • a unidade da conscincia sendo a rplica da lei que funda a

    unidade corporal. E assim como o corpo uma totalidade

    contida em totalidades mais abrangentes, assim tambm a

    alma uma totalidade mental contida em um sistema de

    representaes mais abrangente, constituindo junto com as

    outras idias o que Espinosa chama de entendimento infinito

    de Deus, isto , o conjunto infinitamente complexo de idias

    que representam a essncia de Deus (estrutura fundamental

    da realidade) e tudo o que se segue necessariamente dessa

    essncia (totalidade dos objetos e acontecimentos por ela

    engendrados).

    A segunda parte da tica explica ainda a gnese dos

    contedos cognitivos da alma humana a partir das idias

    das afeces do corpo. Nessa explicao epistemolgica

    Espinosa apresenta sua diviso tripartite dos gneros de

    conhecimento e sua distino das idias em adequadas e

    inadequadas. Trata-se de uma explicao fundamental para

    o projeto de Espinosa, pois, como veremos, toda a vida

    afetiva e tica do homem depende da natureza do seu

    conhecimento.

    O primeiro gnero de conhecimento, denominado de

    opinio ou imaginao, inclui a percepo sensvel e a ima-

    ginao propriamente dita, isto , a representao das coisas

    exteriores como presentes a partir das idias de suas ima-

    gens formadas no corpo humano. Estas imagens so afec-

    es do nosso corpo, efeitos resultantes de sua interao

    com os corpos exteriores. Em virtude disso, elas dependem

    tanto da natureza dos corpos que nos afetam, quanto da

    natureza e da situao do nosso corpo (por exemplo, da

    24 Marcos Andr Gleizer

  • natureza de nossos rgos sensoriais e de nossa posio

    espao-temporal). Porm, essas naturezas no so conheci-

    das verdadeiramente pela imaginao, pois elas so a per-

    cebidas apenas a partir da maneira como afetam nosso

    corpo, isto , tal como nos aparecem. Por isso, Espinosa

    afirma que as idias imaginativas indicam antes o estado do

    corpo humano do que a natureza dos corpos exteriores. Por

    exemplo, quando percebemos o Sol como um pequeno

    disco prximo da Terra, essa percepo indica a maneira

    como nosso rgo visual de fato afetado pelo Sol, mas no

    representa a sua verdadeira dimenso nem a sua verdadeira

    distncia.

    Vemos, assim, que a imaginao se caracteriza por

    constatar os efeitos ignorando suas verdadeiras causas. Por

    estar separada do conhecimento das causas, ela caracte-

    rizada como um conhecimento inadequado, parcial, mu-

    tilado e confuso. No entanto, ignorando sua prpria igno-

    rncia das causas e sua prpria parcialidade, a imaginao

    se toma espontaneamente por um autntico testemunho

    da realidade. Assim, por exemplo, quem jamais foi levado

    a questionar a validade das informaes obtidas pelos

    sentidos, cr naturalmente que o Sol tal como aparece.

    Por isso, com a imaginao produzida uma inverso

    cognitiva da ordem da Natureza, com o efeito sendo

    tomado pela causa, a parte pelo todo e nossos estados

    subjetivos sendo projetados como propriedades objetivas

    das coisas. Ora, conhecer verdadeiramente conhecer pelas

    causas. Logo, a imaginao, mesmo sendo dotada de uma

    positividade ao indicar o estado atual do nosso corpo, no

    Espinosa & a afetividade humana 25

  • satisfaz as condies do conhecimento verdadeiro e a

    nica causa da falsidade.

    H ainda dois aspectos importantes do conhecimento

    imaginativo a serem salientados. O primeiro a sua nature-

    za espontaneamente alucinatria. Com efeito, dado que as

    imagens registradas no corpo persistem mesmo quando

    suas causas exteriores no mais existem, sempre que qual-

    quer uma delas for reativada por causas internas ao corpo,

    sua idia afirmar a existncia de seu objeto exterior, pre-

    sentificando assim um objeto ausente. O segundo aspecto

    diz respeito ordem e concatenao das imagens corporais,

    ordem que fruto dos encontros com os corpos exteriores.

    Ora, estes encontros dependem da nossa posio espao-

    temporal e so determinados por uma srie infinita de

    causas finitas que escapa necessariamente aos limites de

    nosso conhecimento. Por isso, essa concatenao nos apa-

    rece como contingente e fortuita. essa concatenao va-

    rivel individualmente que reproduzida pelas idias ima-

    ginativas, estabelecendo o que Espinosa denomina de or-

    dem da memria, e que ele ope ordem do intelecto

    pela qual a mente percebe as coisas adequadamente e que

    a mesma em todos os homens. Vemos, assim, que a imagi-

    nao marcada pela diversidade e parcialidade das pers-

    pectivas individuais.

    O segundo e o terceiro gneros de conhecimento,

    denominados respectivamente de razo e cincia intuitiva,

    so constitudos apenas por idias adequadas, isto , idias

    completas, intrinsecamente verdadeiras e dotadas de uma

    certeza matemtica apreendida de imediato pela mente.

    26 Marcos Andr Gleizer

  • As idias adequadas da razo so idias das propriedades

    comuns das coisas, seja de todas as coisas, seja de um

    subconjunto delas. Por exemplo, o movimento uma

    propriedade comum de todos os corpos. Assim, o conhe-

    cimento de suas leis gerais nos permite descrever o com-

    portamento dos corpos. No se trata aqui de conhecer um

    objeto em sua singularidade, mas de apreend-lo como

    uma instncia particular de uma lei geral. Como as pro-

    priedades comuns esto igualmente presentes na parte e

    no todo, suas idias, chamadas de noes comuns, tambm

    esto presentes nas idias tanto da parte quanto do todo,

    sendo, assim, necessariamente adequadas e comuns a todos

    os homens. Assim, com a razo atingimos um conheci-

    mento universal e necessrio. Por fim, com as idias

    adequadas da cincia intuitiva o conhecimento verdadeiro

    alcana a singularidade dos objetos, pois com essas idias

    as essncias singulares das coisas so inferidas a partir da

    idia adequada da essncia de certos atributos de Deus.

    Por exemplo, as essncias singulares de nossos corpos so

    conhecidas geneticamente como expresses certas e deter-

    minadas do atributo extenso.

    Com a terceira parte da tica, intitulada Da origem e

    da natureza dos afetos, Espinosa d continuidade ao exame

    do tronco fsico do sistema, apresentando sua cincia das

    paixes e das aes. Trata-se a da constituio de uma

    verdadeira fsica geomtrica dos afetos, como ele afirma no

    final do prefcio: Tratarei, portanto, da natureza e da fora

    dos afetos, e do poder da alma sobre eles, com o mesmo

    mtodo com que nas partes precedentes tratei de Deus e da

    Espinosa & a afetividade humana 27

  • alma, e considerarei as aes e os apetites humanos como se

    tratasse de linhas, de superfcies ou de volumes. Assim, em

    conformidade com o mtodo adotado anteriormente, en-

    contramos nessa parte uma deduo gentica dos afetos que

    expe sua produo interna e necessria em graus crescen-

    tes de complexidade. No se trata, portanto, de uma mera

    descrio extrnseca de processos vividos ou observados

    empiricamente e de sua classificao em conformidade com

    os dados assim obtidos, mas de uma deduo a priori do

    conjunto dos afetos a partir de princpios independentes da

    experincia (embora, evidentemente, essa deduo deva

    reencontrar os dados da experincia). por isso que s nos

    esclios, isto , nos comentrios que se seguem s demons-

    traes, Espinosa nomeia os afetos de que est tratando.

    Como a afetividade humana fornece a matria-prima da

    vida tica, sendo o tronco comum da servido e da liberda-

    de, com essa parte da obra que o sistema inicia a transio

    para a tica propriamente dita. a partir da cincia dos

    afetos a elaborada que ser formulada na quinta parte da

    tica uma tcnica para moderar as paixes. Portanto, a

    maior parte de nossa exposio se concentrar sobre a

    tica III.

    A quarta parte (Da servido humana ou das foras dos

    afetos) tem por objetivo principal explicar as causas que

    precipitam o homem na escravido, isto , as causas da

    impotncia humana para governar e refrear as paixes, de

    modo que, subjugado por elas, o homem muitas vezes

    forado a seguir o pior, vendo muito embora o que melhor

    para si. Nela encontramos tambm uma avaliao do que

    28 Marcos Andr Gleizer

  • h de bom ou de mau nas paixes, isto , em conformidade

    com a teoria subjetivista dos valores proposta na tica, quais

    so teis e quais so prejudiciais ao projeto de alcanar uma

    natureza humana mais potente, assim como um retrato das

    caractersticas do homem racional e livre (o sbio) que

    concretiza esta natureza. Por fim, a quinta parte da tica

    (Da potncia da inteligncia ou da liberdade humana),

    explorando os conhecimentos da vida passional obtidos na

    terceira e na quarta partes, examina os remdios dos afe-

    tos, isto , demonstra em que medida e como a razo pode

    controlar as paixes, e apresenta a via que nos permite

    conquistar se tivermos potncia para tal a liberdade

    da mente e a beatitude.

    Passemos ento exposio das principais idias da

    terceira parte.

    Potncia de agir, conatus e desejo

    Toda coisa, enquanto est em si, se esfora por perseverar

    no seu ser. Sobre essa proposio, que formula o cerne da

    teoria do conatus (termo latino que significa esforo), se

    funda toda a teoria da afetividade, bem como a tica e a

    teoria poltica de Espinosa. Ela est enraizada na ontologia

    da potncia desenvolvida na primeira parte de sua obra.

    Com efeito, vimos que as essncias de todas as coisas finitas

    participam do dinamismo causal da substncia divina pro-

    duzindo efeitos em conformidade com seu grau de potn-

    cia. Isto significa que todas as coisas so dotadas de uma

    Espinosa & a afetividade humana 29

  • potncia de agir. Dada a tese da inteligibilidade integral do

    real, Espinosa sustenta que, assim como a definio gentica

    da essncia de uma coisa qualquer no pode envolver ne-

    nhuma contradio interna, assim tambm os efeitos que se

    seguem exclusivamente da essncia desta coisa no podem

    jamais conduzir sua destruio. A impossibilidade lgica

    da autodestruio exclui qualquer pulso de morte na

    explicao espinosista dos afetos. Por isso, nenhuma coisa

    pode ser destruda, a no ser por uma causa exterior.

    Tomada isoladamente, uma coisa se esfora por uma

    durao indefinida para perseverar no seu ser, e este esforo

    sua prpria essncia atual. Porm, as coisas finitas no

    existem de forma isolada. Elas esto situadas no mundo e

    s podem existir com o concurso de outras coisas finitas que

    interagem causalmente com elas favorecendo ou criando

    obstculos ao pleno exerccio de sua potncia de agir.

    precisamente em virtude desta interdependncia causal que

    a potncia das coisas finitas ao contrrio do que ocorre

    com a potncia da substncia absoluta se exerce sob a

    forma de um esforo. Este, no entanto, no deve ser pensado

    como reenviando a alguma inteno consciente, a alguma

    finalidade que a coisa procura atingir. O termo esforo,

    que se aplica indiscriminadamente s essncias de todas as

    coisas (sejam elas materiais ou mentais, simples ou comple-

    xas), indica apenas aquela produo necessria de efeitos

    num contexto de interao com o mundo circundante.

    Segundo o enunciado da proposio 6 da parte III, este

    esforo constitutivo de cada coisa para perseverar no seu

    ser e no para se manter estaticamente no mesmo estado.

    30 Marcos Andr Gleizer

  • No se trata, portanto, de uma mera universalizao do

    princpio de inrcia. Ao contrrio, tal princpio que apre-

    senta uma aplicao particular da tese universal do conatus

    ao caso dos corpos mais simples, pois o ser destes corpos se

    confunde com o estado em que se encontram. Porm, nas

    coisas complexas, dentre as quais se situa o homem, muitas

    vezes necessrio alterar dinamicamente um certo estado

    para poder perseverar no seu ser. Alm disso, quanto mais

    complexa a essncia de uma coisa, mais rico o ser no qual

    ela tende a perseverar. Assim, a preservao da existncia

    biolgica bruta apenas o contedo mnimo do conatus de

    um ser humano. O conatus humano, portanto, no apenas

    um princpio de autoconservao, mas tambm de auto-ex-

    panso e realizao de tudo o que est contido em sua

    essncia singular.

    O conatus recebe diferentes nomes quando referido

    apenas alma ou alma e ao corpo simultaneamente.

    Quando referido apenas alma, chama-se vontade. Desse

    modo, vemos que a vontade no uma faculdade de escolha,

    mas o esforo contido nas idias que constituem a alma.

    Quando referido alma e ao corpo, isto , ao homem,

    chama-se apetite. Este, por sua vez, quando acompanhado

    de conscincia de si, chama-se desejo. Assim, o desejo

    definido como a prpria essncia do homem, enquanto esta

    determinada a realizar os atos que servem sua conserva-

    o. Essa definio caracteriza o desejo tomado absoluta-

    mente, ou seja, sem referncia s excitaes que lhe ocorrem

    nas diversas circunstncias. Ela caracteriza, portanto, o de-

    sejo como um impulso originrio que antecede lgica e

    Espinosa & a afetividade humana 31

  • ontologicamente suas mltiplas manifestaes particulares.

    Para dar conta dessas particularizaes e explicar a causa da

    conscincia de si, Espinosa complementa essa definio

    afirmando que o desejo a essncia do homem, enquanto

    ela determinada a fazer algo por uma afeco qualquer

    nela verificada. A expresso afeco qualquer introduz

    precisamente a referncia s condies relativas atualiza-

    o do desejo situado concretamente no mundo, condies

    que do conta da fixao desse impulso primordial que nos

    constitui sobre os diversos objetos particulares. Por outro

    lado, a expresso indica tambm a causa da conscincia. Se

    ns temos conscincia de tender a perseverar em nosso ser

    porque percebemos a permanncia do nosso esforo atra-

    vs das afeces que nos ocorrem. Com efeito, em virtude

    da tese do paralelismo, a toda afeco do nosso corpo, seja

    ela inata ou adquirida, corresponde necessariamente uma

    idia desta afeco na alma, e no h idia que no seja

    acompanhada de sua duplicao reflexiva em uma idia da

    idia. Da a presena da conscincia de si. Porm, essa

    conscincia nada acrescenta ao contedo particular dos

    desejos determinados pelas idias dadas: ela apenas um

    epifenmeno que constata a presena e a direo de nossos

    impulsos, sem orient-los. Como afirma Espinosa, quer o

    homem tenha ou no conscincia de seu apetite, o apetite

    sempre o mesmo.

    A escolha do desejo, orientado espontaneamente no

    sentido da autoconservao e da auto-expanso, como m-

    bil fundamental da conduta humana no gratuita, pois ela

    envolve toda uma concepo do homem e do Universo.

    32 Marcos Andr Gleizer

  • Com ela Espinosa se coloca ao lado de Hobbes (apesar das

    importantes diferenas que os separam) como terico da

    primazia da afirmao de si (tese tambm conhecida como

    egosmo universal), contra aqueles que defendem a pri-

    mazia do amor na explicao das paixes e da conduta

    humana.

    De posse da compreenso do princpio dinmico fun-

    damental que rege a vida afetiva, podemos agora examinar

    as definies de afeto e distinguir seus tipos fundamentais.

    A natureza dos afetos:tipos bsicos e afetos primitivos

    Encontramos na tica III duas definies de afeto. A primei-

    ra aparece logo no incio dessa parte, enquanto a segunda

    fecha a exposio final das definies dos tipos particulares

    de afetos nela deduzidos. Tomemos como fio condutor de

    nossa exposio a primeira definio: Por afeto (affectum)

    entendo as afeces (affectiones) do corpo, pelas quais a

    potncia de agir desse corpo aumentada ou diminuda,

    favorecida ou entravada, assim como as idias dessas afec-

    es. Quando, por conseguinte, podemos ser a causa ade-

    quada de uma dessas afeces, por afeto entendo uma ao;

    nos outros casos, uma paixo.

    Trs so os elementos importantes a serem destacados:

    Em primeiro lugar, nessa definio Espinosa atribui

    inequivocamente os afetos tanto ao corpo quanto alma.

    Tanto as afeces que alteram a potncia de agir do corpo,

    Espinosa & a afetividade humana 33

  • quanto as idias destas afeces que alteram a potncia de

    agir da alma, isto , sua potncia de pensar, so afetos. Pelo

    reconhecimento de uma dimenso afetiva prpria ao corpo

    Espinosa se ope claramente posio cartesiana, segundo

    a qual as paixes, embora causadas pela ao mecnica do

    corpo sobre a alma, so propriamente percepes, senti-

    mentos, ou emoes da alma, que referimos particularmen-

    te a ela.

    No entanto, a segunda definio proposta por Espino-

    sa, intitulada definio geral dos afetos, parece seguir Des-

    cartes ao limitar os afetos apenas alma. Com efeito, nela

    Espinosa afirma que um afeto, chamado paixo da alma

    (animi pathema), uma idia confusa pela qual a alma

    afirma a fora de existir, maior ou menor do que antes, do

    seu corpo ou de uma parte deste, e pela presena da qual a

    alma determinada a pensar tal coisa de preferncia a tal

    outra. Apesar do ttulo, essa definio na realidade dupla-

    mente restritiva em relao primeira. Em primeiro lugar,

    ela no define os afetos em geral, mas apenas uma subclasse

    dos afetos, a saber, as paixes. E estas, como veremos adian-

    te, no esgotam a totalidade da vida afetiva. No entanto, o

    predomnio que elas exercem em nossa vida predomnio

    cuja explicao ser exatamente o objeto da quarta parte da

    tica justifica a presena de uma definio geral da

    natureza das paixes no final da terceira parte. Em segundo

    lugar, esta definio restringe os afetos passivos apenas ao

    seu aspecto mental. Mas tal restrio no pretende negar a

    existncia de um aspecto afetivo prprio ao corpo, pois isto

    seria contraditrio com a definio inicial, com a tese do

    34 Marcos Andr Gleizer

  • paralelismo e com vrias passagens da tica nas quais a

    palavra afeto referida ao corpo. Ela apenas indica a

    adoo de uma estratgia explicativa dos afetos que privile-

    gia a perspectiva da alma (na qual ser ulteriormente elabo-

    rado o projeto de liberao). Essa escolha no exclui a

    legitimidade e a possibilidade de elaborar uma explicao

    da afetividade tambm da perspectiva corporal, embora, de

    fato, como Espinosa salienta no esclio da proposio 2 da

    parte III, ningum, at o presente, determinou o que pode

    o corpo, isto , ningum, at o presente, conheceu to

    acuradamente a estrutura do corpo que pudesse explicar

    todas as suas funes. Evidentemente, a inexistncia de um

    conhecimento preciso da base neurofisilogica das emoes

    num determinado momento histrico no implica na im-

    possibilidade de desenvolver tal cincia no futuro (como

    provam, alis, os recentes progressos obtidos na rea).

    Em segundo lugar, a primeira definio deixa claro que

    um afeto uma afeco que faz variar positiva ou negativa-

    mente a potncia de agir. Desta forma, uma afeco neutra,

    isto , que deixa invarivel a potncia de agir, no tem

    dimenso afetiva. Assim, se todo afeto uma afeco, nem

    toda afeco um afeto. A variao positiva da potncia de

    agir ou seja, sua passagem a uma maior perfeio ou

    fora de existir constitui a alegria, enquanto sua variao

    negativa isto , sua passagem a uma menor perfeio ou

    fora de existir constitui a tristeza. Ao definir esses dois

    afetos que, junto com o desejo, constituem os afetos primi-

    tivos, Espinosa enfatiza sua natureza transitiva, destacando

    explicitamente a diferena entre o ato de passar para uma

    Espinosa & a afetividade humana 35

  • perfeio maior ou menor e o estado final alcanado aps a

    transio. Tal diferena significa que os afetos no so o

    resultado de uma comparao intelectual entre o estado

    inicial e o final, pois, como ressalta Espinosa na explicao

    da segunda definio de afeto: Deve notar-se, todavia, que,

    quando digo fora maior ou menor do que antes, no entendo

    com isso que a alma compara o estado presente do corpo

    com o que tinha antes, mas que a idia que constitui a forma

    do afeto afirma do corpo qualquer coisa que, de fato, envolve

    mais ou menos realidade que antes. Assim, o afeto no o

    fruto de uma comparao, mas a experincia vivida de uma

    transio, de um aumento ou diminuio de nossa vitali-

    dade.

    Em terceiro lugar, a primeira definio distingue ainda

    os afetos ativos dos passivos, indicando com isso que a vida

    afetiva no se esgota na vida passional. Embora a idia de

    uma dimenso afetiva irredutvel vida passional encontre

    precedentes na noo estica das eupatheai e na noo

    cartesiana das emoes interiores, jamais ela havia atingido

    o grau de elaborao que Espinosa lhe confere em seu

    sistema. Para compreendermos essa distino, absoluta-

    mente fundamental para o projeto tico de Espinosa,

    preciso introduzir as noes de causa adequada, causa ina-

    dequada, atividade e passividade.

    Por causa adequada ou completa Espinosa entende

    aquela cujo efeito pode ser clara e distintamente com-

    preendido por ela, sendo a causa inadequada ou parcial

    aquela cujo efeito no pode ser conhecido apenas por ela,

    de modo que sua explicao remete a causas exteriores

    36 Marcos Andr Gleizer

  • complementares. Um ente finito dito ativo quando a

    causa adequada de um efeito que se produz nele ou fora

    dele, e passivo quando a causa inadequada de um efeito

    que se produz nele ou que dele se segue. Causa adequada

    ou inadequada, atividade ou passividade, remetem por-

    tanto auto-suficincia ou no de um ente finito face aos

    outros entes finitos na produo e explicao dos seus

    efeitos (esta auto-suficincia possvel em relao aos outros

    modos finitos limitada e fundada metafisicamente na

    produo incondicionada das essncias finitas e na conse-

    qente independncia entre elas). Assim, quando esses

    efeitos so as afeces que fazem variar a potncia, isto ,

    quando so afetos, eles so denominados aes quando se

    explicam exclusivamente pelas leis de nossa natureza, e

    paixes quando sua presena em ns no se explica apenas

    por ns, mas depende da existncia de causas exteriores

    complementares.

    Ora, a substituio da tese cartesiana da interao cau-

    sal entre a alma e o corpo pela tese do paralelismo leva

    Espinosa a recusar que as causas exteriores responsveis pela

    explicao das paixes da alma remetam ao do corpo

    sobre ela, bem como a recusar que a explicao dos movi-

    mentos ditos voluntrios remeta a alguma ao da alma

    sobre o corpo. Com isso, a chamada regra da relao

    inversa, segundo a qual quando o corpo age a alma padece

    e vice-versa, que excluda. Entre eles no h relao hie-

    rrquica, no h comando, no h subordinao. Em estrita

    conformidade com o paralelismo, passividade mental

    corresponde uma passividade corporal e atividade mental

    Espinosa & a afetividade humana 37

  • corresponde uma atividade corporal, sendo que tanto a

    atividade quanto a passividade se explicam em ambos os

    registros exclusivamente em funo da produo adequada

    ou inadequada de seus efeitos segundo as leis que regem seus

    respectivos atributos. Com isso, Espinosa poder demons-

    trar que a alma passiva apenas na medida em que produz

    efeitos inadequados a partir de suas idias inadequadas, e

    ativa apenas na medida em que produz efeitos adequados a

    partir de suas idias adequadas. Ora, isto equivale a demons-

    trar que toda passividade mental, tanto cognitiva quanto

    afetiva, est conectada s idias da imaginao, enquanto

    toda atividade mental se vincula s idias do intelecto.

    Veremos a seguir a importncia capital dessas conexes para

    a explicao dos afetos derivados. Antes, porm, cabe tecer

    ainda algumas breves consideraes acerca dos tipos bsicos

    de afetos (ativos e passivos) e suas relaes com os afetos

    primitivos (positivos e negativos).

    Os afetos ativos, sendo oriundos das idias adequadas,

    so aqueles que nascem do exerccio adequado de nossa

    potncia intelectual. Isto significa que a razo dotada de

    uma afetividade que lhe peculiar, no havendo, portanto,

    oposio geral entre razo e afetividade. De fato, afirma

    Espinosa: A alma, quer enquanto tem idias claras e

    distintas, quer enquanto tem idias confusas, esfora-se

    por perseverar no seu ser por uma durao indefinida e

    tem conscincia do seu esforo. Ou seja, assim como h

    desejos passionais determinados pelas idias inadequadas,

    h desejos racionais determinados pelas idias adequadas.

    Ora, uma vez que os afetos ativos se explicam exclusiva-

    38 Marcos Andr Gleizer

  • mente pela nossa natureza, fcil mostrar que eles so

    necessariamente positivos. Com efeito, segundo a doutrina

    do conatus, nada do que se explica apenas pela natureza

    de uma determinada coisa pode conduzir sua destruio

    ou diminuio. Logo, no pode conduzir tristeza. Dessa

    forma, toda a afetividade ativa ser caracterizada pela

    positividade e alegria. J os afetos passionais, por depen-

    derem do concurso de coisas exteriores a ns, podero ser

    alegres ou tristes em funo da compatibilidade ou no

    entre essas coisas e ns. Vemos, assim, que o par ativo/pas-

    sivo no recobre o par positivo/negativo, pois embora as

    aes sejam necessariamente alegres, as paixes no esto

    fadadas a serem tristes.

    H, no entanto, uma diferena de importncia tica

    fundamental entre os afetos ativos e os passivos, mesmo

    quando estes ltimos tambm so alegres. Com efeito, as

    paixes, ao resultarem naturalmente de nossa interao

    com causas exteriores sempre variveis, se caracterizam pela

    instabilidade e trazem a marca de nossa dependncia em

    relao ao outro, de nossa heteronomia e alienao. Com

    elas nosso conatus se deixa orientar do exterior pelas afec-

    es que ns sofremos, sendo as paixes eventos que nos

    ocorrem mas que escapam ao nosso poder, colocando-nos

    merc da fortuna. Por outro lado, as aes, ao resultarem

    exclusivamente de nossa natureza, se caracterizam pela

    constncia e trazem a marca da autonomia e do exerccio

    plenamente eficaz de nosso conatus. Por isso, sobre elas

    que repousar o projeto de liberao e a experincia da

    beatitude.

    Espinosa & a afetividade humana 39

  • Os afetos secundrios: amor e dio

    Desejo, alegria e tristeza constituem os afetos primitivos do

    sistema. Como, partindo dessa base exgua, Espinosa pre-

    tende dar conta das infinitas modulaes, nuances e com-

    plexidades caractersticas da vida afetiva? Para tal, preciso

    explicar como o desejo, modificado pela alegria e a tristeza,

    investe e se fixa sobre seus mltiplos objetos. O que permite

    dar conta dessa nova etapa na reconstruo gentica dos

    afetos a conexo estabelecida entre eles e as idias, pela

    presena das quais, como afirma a segunda definio, a

    alma determinada a pensar tal coisa de preferncia a tal

    outra. Com efeito, por seu contedo representacional as

    idias referem-se a objetos, o que permitir que seu aspecto

    afetivo se projete sobre eles. exatamente o elemento cog-

    nitivo presente nos afetos derivados que explica a conexo

    entre eles e seus objetos, pois o objeto sobre o qual um afeto

    investe o da crena espontaneamente envolvida em seu

    contedo cognitivo. esse contedo que abre a possibilida-

    de para uma certa forma de terapia cognitiva, proposta na

    tica V, na qual a alterao do elemento cognitivo acarretar

    a transformao do afeto derivado. Ora, toda a passividade

    mental, como vimos, est essencialmente conectada com as

    idias imaginativas. Passemos, ento, s primeiras paixes

    objetais que nascem dessa conexo.

    Na proposio 12 da parte III Espinosa demonstra que

    a alma esfora-se, tanto quanto pode, por imaginar as

    coisas que aumentam ou facilitam a potncia de agir do

    corpo. O aumento de nossa potncia, como j sabemos,

    40 Marcos Andr Gleizer

  • a alegria. Assim, a alma necessariamente se esfora por

    imaginar as coisas que nos alegram. Essa alegria acompa-

    nhada da idia imaginativa de uma causa exterior precisa-

    mente o que define a essncia do amor. Como a atenuao

    de qualquer afeto favorvel contraria o movimento natural

    de nosso conatus, ns tendemos energicamente a reviver o

    afeto com sua intensidade primeira, esforando-nos por

    representar seu objeto exterior como sempre presente. Por

    isso, o desejo, agora modificado pelo amor, investe de ma-

    neira naturalmente obsessiva sobre o objeto exterior ama-

    do. Assim, da mesma forma que a definio gentica do

    crculo exemplificada mais acima permitia deduzir sua pro-

    priedade, a definio gentica da essncia do amor permite

    deduzir a propriedade que lhe comumente atribuda (e

    erradamente tomada como sua definio essencial), a saber:

    a vontade do amante de unir-se coisa amada.

    Por sua vez, na proposio 13 de tica III Espinosa

    demonstra que quando a alma imagina coisas que dimi-

    nuem ou reduzem a potncia de agir do corpo, esfora-se,

    tanto quanto pode, por se recordar de coisas que excluem a

    existncia delas. A diminuio de nossa potncia, como

    tambm j sabemos, a tristeza. Assim, a tristeza acompa-

    nhada da idia imaginativa de uma causa exterior definir

    geneticamente o dio. A alma, no entanto, no se esfora

    por imaginar o que a entristece, pois isso contraria seu

    conatus. Ela resiste idia triste, procurando lembrar-se de

    coisas que excluem a existncia presente do objeto odiado.

    O esforo em reconstituir um campo perceptivo onde no

    h lugar para esse objeto tende a estabelecer uma ligao

    Espinosa & a afetividade humana 41

  • obsessiva com o que pode destru-lo, nosso esforo se con-

    centrando, nesse caso, inteiramente na destruio do que

    nos prejudica.

    Ora, as representaes imaginativas envolvidas no

    amor e no dio so como todas as idias imaginativas

    inadequadas, confusas e fontes de uma falsa interpre-

    tao tanto dos objetos exteriores quanto da prpria

    natureza do sujeito desejante. Como vimos, elas tendem a

    tomar a parte pelo todo e a projetar sobre a natureza do

    objeto exterior seu efeito sobre ns. Assim, na perspectiva

    invertida da imaginao, o til que necessariamente dese-

    jamos em virtude do conatus aparece como livremente

    escolhido por ns. O objeto do desejo, destacado das

    circunstncias exteriores e momentneas que o determi-

    nam como til, aparece como um fim desejvel em si, como

    um bem em si que exerce uma atrao sobre ns. Dessa

    forma, ele aparece como fundando objetivamente nossos

    juzos de valor, motivando nossas escolhas, enfim, incli-

    nando nossa vontade sem, no entanto, determin-la. Com

    isso, ns acreditamos falsamente que desejamos os objetos

    por julgarmos que eles so bons em si, quando, na reali-

    dade, porque os desejamos que julgamos que so bons

    para ns. Assim, o imaginrio voluntarista se articula

    iluso finalista influenciando parte significativa da gnese

    e do desdobramento de nossa vida passional.

    Partindo exclusivamente das leis que regem a imagina-

    o, Espinosa deduzir toda a linhagem das paixes objetais

    derivadas do amor e do dio. Haver tantos tipos de afetos

    quantos forem os tipos de objetos, e, alm disso, esses tipos

    42 Marcos Andr Gleizer

  • recebero variaes em funo das idiossincrasias de seus

    respectivos sujeitos. No cabe evidentemente nesta breve

    introduo acompanharmos os meandros dessa deduo.

    Nosso intuito ser apenas o de destacar seus princpios

    fundamentais.

    Os princpios de derivao afetiva

    As idias imaginativas se encadeiam segundo a ordem da

    memria, isto , segundo a ordem para ns fortuita das

    afeces de nosso corpo. Assim, quando nosso corpo

    afetado ao mesmo tempo por dois corpos, sempre que a

    alma imaginar um deles se lembrar imediatamente do

    outro. Suponhamos, no entanto, que o primeiro corpo

    produza em ns uma afeco afetivamente neutra, enquan-

    to o segundo produza um afeto triste. No futuro, sempre

    que a alma imaginar o primeiro corpo, ela ser automa-

    ticamente levada a imaginar o segundo, e, portanto, a se

    entristecer. Dessa forma, o primeiro corpo ser causa por

    acidente de nossa tristeza. Com efeito, as associaes esta-

    belecidas entre as idias imaginativas so desprovidas para

    ns de qualquer necessidade intrnseca, sendo derivadas da

    mera justaposio espao-temporal existente entre as ima-

    gens dos objetos que nos afetam, assim como dos diversos

    traos de semelhana sensveis existentes entre elas. isso

    que explica como pode acontecer que amemos ou odiemos

    certas coisas sem qualquer causa conhecida por ns, mas

    apenas por simpatia (como se diz) ou por antipatia.

    Espinosa & a afetividade humana 43

  • Assim, por exemplo, o simples fato de termos notado

    algum nos observando em uma situao desagradvel faz

    com que sua mera presena nos relembre aquela cena, e

    que essa pessoa nos aparea sob uma luz afetivamente

    desfavorvel; assim tambm, a mera semelhana de um

    desconhecido com algum ente querido faz com que ele

    nos aparea sob uma luz afetivamente favorvel. Essas

    associaes por contigidade e por semelhana permitem

    que qualquer coisa inicialmente indiferente possa se tornar

    por acidente objeto de amor ou de dio, e que no

    importa quem possa desejar o que quer que seja. Com isso,

    nossas paixes, submetidas ao mecanismo associativo que

    reproduz na mente a justaposio espao-temporal e a

    fuso das imagens corporais, se deslocam continuamente

    e circulam sobre um vasto campo de objetos, propiciando

    que nos tornemos escravos passionais de nossa situao

    no Universo.

    Um efeito particularmente importante do princpio de

    associao o fenmeno da flutuao do nimo, isto , da

    ambivalncia afetiva na qual ns oscilamos entre afetos

    contrrios referidos a um mesmo objeto. Essa oscilao est

    para a vida afetiva como a dvida est para a vida cognitiva,

    onde a alma oscila entre afirmaes contrrias sem ser capaz

    de chegar a concluso alguma. Com o fenmeno da flutua-

    o do nimo surge a inconstncia, a irresoluo, a diviso

    interior. Sua explicao, em conformidade com o princpio

    anterior, simples. Com efeito, uma mesma coisa pode ser

    causa por si de tristeza e, em virtude de sua semelhana com

    uma coisa que habitualmente nos causa alegria, ser causa

    44 Marcos Andr Gleizer

  • por acidente de alegria. Ela, portanto, ser ao mesmo tempo

    objeto de dio e de amor, pois estes afetos contrrios no se

    anulam mutuamente, mas coabitam de forma conflitante

    em ns. Um exemplo clssico dessas flutuaes a relao

    que as crianas mantm com seus pais, amados pelos gestos

    de carinho, mas igualmente odiados pela imposio dos

    castigos. Esse importante fenmeno recebe tambm um

    segundo tipo de explicao independente do princpio de

    associao e que repousa sobre o fato de nosso corpo ser

    composto de mltiplas partes dotadas de naturezas diversas,

    de forma que um mesmo objeto exterior pode afetar posi-

    tivamente uma ou mais partes nossas e negativamente ou-

    tras. Assim, o mesmo objeto poder ser causa eficiente em

    ns de afetos numerosos e contrrios.

    Um novo princpio surge com a introduo da dimen-

    so temporal. No apenas a idia imaginativa de uma coisa

    presente que nos afeta de alegria ou tristeza, mas tambm a

    de uma coisa passada ou futura. Com o surgimento da

    temporalidade, a representao dos objetos conectada ao

    sentimento do no mais ou do ainda no. Ora, segundo

    Espinosa, toda idia imaginativa, sendo uma representao

    do objeto exterior a partir da idia da afeco causada em

    nosso corpo, tende a afirmar a existncia presente desse

    objeto exterior mesmo quando ele no mais existe. A ima-

    ginao possui, como vimos, uma natureza alucinatria.

    Por isso, para representar um objeto como ausente preciso

    que essa representao entre em conflito com a repre-

    sentao de algo que exclua sua existncia presente. S a

    presena conflitante de outras idias pode alterar a afirma-

    Espinosa & a afetividade humana 45

  • o existencial primeira. esse conflito, maior ou menor em

    funo da quantidade de idias envolvidas, que determina

    o coeficiente de realidade com o qual o objeto imagina-

    do. Ora, esse conflito acarreta naturalmente afetos marca-

    dos pela instabilidade, incerteza e flutuao do nimo.

    Assim, por exemplo, a alegria instvel nascida da idia

    de uma coisa futura ou passada de cujo desenlace duvida-

    mos em certa medida origina a esperana. Por sua vez, a

    tristeza instvel nascida tambm da idia de uma coisa

    futura ou passada de cujo desenlace duvidamos em certa

    medida origina o medo. V-se claramente que a dvida

    acerca do objeto imaginado faz com que no haja esperana

    sem medo e vice-versa. Se se retira a dvida, da esperana

    nasce a confiana, e do medo, o desespero. Porm, esta

    estabilidade precria, pois nosso conhecimento dos acon-

    tecimentos temporais sempre inadequado, de modo que

    a mera ausncia da dvida no se confunde com a posse de

    uma certeza intelectual. A instabilidade afetiva contida no

    par esperana-medo exercer uma funo crucial na expli-

    cao da gnese da superstio e nas anlises acerca das

    instituies polticas e religiosas desenvolvidas por Espinosa

    no Tratado teolgico-poltico e no Tratado poltico.

    Um novo patamar de complexidade surge com a intro-

    duo do princpio que rege especificamente as figuras

    interpessoais da afetividade, quando o objeto de nosso afeto

    ele mesmo um sujeito desejante, capaz de alegria, tristeza,

    amor e dio, e no mais uma coisa qualquer. O princpio

    fundamental aqui o da imitao dos afetos: Se imagi-

    namos que uma coisa semelhante a ns, e pela qual no

    46 Marcos Andr Gleizer

  • experimentamos qualquer afeto, afetada por um afeto qual-

    quer, apenas por este fato somos afetados por um afeto

    semelhante. Esse mimetismo afetivo, verdadeiro fenmeno

    de contgio emocional, um mecanismo automtico, pr-

    reflexivo, que no supe nenhuma comparao entre ns e

    as coisas que imaginamos semelhantes a ns. Com esse

    princpio, nossos afetos e condutas passam a ser modifica-

    dos pela considerao dos afetos que atribumos imagina-

    riamente aos outros, afetos estes que reagem sobre os nos-

    sos, intervindo em sua constituio. esse princpio, por-

    tanto, que fornece a base afetiva das ligaes sociais e que

    funda os ciclos imaginrios da reciprocidade afetiva.

    Assim, por exemplo, na piedade ns nos entristecemos

    espontaneamente diante da tristeza de nossos semelhantes,

    e por isso nos esforamos por suprimir essa tristeza (deles,

    mas no fundo tambm nossa) atravs dos atos de benevo-

    lncia. Da mesma forma, na emulao ns tendemos a

    desejar aquilo que imaginamos ser desejado por nossos

    semelhantes, e quando este objeto no pode ser possudo

    seno por uma pessoa (o que em geral o caso com os

    objetos espao-temporais finitos da imaginao), somos

    naturalmente tomados pela inveja e nos esforamos por

    fazer com que o outro no o possua. tambm esse mesmo

    princpio que explica que nos esforcemos por fazer tudo o

    que imaginamos agradar aos homens e por evitar tudo o

    que acreditamos desagrad-los, mas igualmente que nos

    esforcemos por fazer com que eles aprovem o que amamos

    e reprovem o que odiamos. Vemos, com esses poucos exem-

    plos, que o mesmo princpio pode gerar a solidariedade,

    Espinosa & a afetividade humana 47

  • mas tambm a inveja, a ambio, a rivalidade e a guerra

    infindvel pelo reconhecimento.

    O tema do reconhecimento, alis, chama a nossa aten-

    o para algo que precisa ser salientado, a saber, que nem

    todos os nossos afetos esto voltados para os objetos exte-

    riores, mas que h afetos que se dirigem a ns mesmos. No

    caso das paixes essa relao afetiva a si mediada pela

    maneira como ns nos imaginamos, e esta, por sua vez,

    influenciada pela maneira como imaginamos que os outros

    nos vem. Assim, a alma se alegra quando imagina sua

    capacidade de agir e este contentamento especialmente

    alimentado e fortificado quando imaginamos que os outros

    nos estimam, ou seja, como diz Macherey, ns nos estima-

    mos atravs da estima dos outros. Evidentemente, esta

    relao imaginativa inadequada, de modo que fcil, por

    exemplo, a auto-satisfao transformar-se em soberba, isto

    , num amor-prprio que faz com que o homem tenha de

    si uma opinio mais vantajosa do que seria justo. Da mesma

    forma, quando o homem levado a contemplar a sua

    impotncia ele se entristece (tal contemplao o que define

    a humildade), e essa tristeza favorecida quando ele imagi-

    na ser censurado pelos outros, podendo inclusive conduzi-

    lo a ter de si uma opinio demasiado desfavorvel.

    Por fim, h um princpio relacionado introduo de

    consideraes modais (necessrio, possvel e contingente).

    Com efeito, ao imaginarmos uma coisa exterior como agin-

    do livremente, ns a representamos como a causa nica e

    contingente do que ocorre conosco, concentrando assim

    sobre este nico alvo toda a intensidade de nosso afeto. Por

    48 Marcos Andr Gleizer

  • outro lado, ao imaginarmos uma coisa exterior como agin-

    do necessariamente, ns a representamos como determina-

    da por uma multiplicidade de causas, o que acarreta uma

    diminuio da fora da ligao afetiva estabelecida com

    cada uma delas. Assim, vemos por que a iluso do livre-ar-

    btrio produz uma grande impetuosidade nas paixes inter-

    humanas. Como afirma Espinosa: Os homens, porque

    julgam que so livres, se votam entre si um amor e um dio

    maiores que s outras coisas.

    A fora das paixes

    Vimos acima os principais mecanismos responsveis pela

    gnese das paixes. Por que, no entanto, so elas inelimin-

    veis e o que explica sua enorme fora sobre ns?

    J sabemos que somos passivos na medida em que algo

    de que somos apenas a causa parcial, isto , que no se

    explica apenas pelas leis de nossa natureza, se produz em

    ns. Somos passivos, portanto, na medida em que somos

    uma parte da Natureza que no pode conceber-se por si

    mesma sem as outras, o que ocorre por sermos modos

    finitos existentes na durao. Ora, impossvel que o

    homem no seja parte da Natureza e que no possa sofrer

    outras mudanas seno aquelas que podem ser compreen-

    didas apenas pela sua natureza e das quais causa adequa-

    da. Com efeito, embora o fato de sermos partes da Natureza

    no implique que sejamos apenas passivos, pois h efeitos

    que se explicam exclusivamente por nossa essncia, im-

    Espinosa & a afetividade humana 49

  • possvel que sejamos apenas ativos, pois, neste caso, sera-

    mos dotados de uma potncia capaz de superar todos os

    obstculos exteriores e, conseqentemente, seramos imor-

    tais. No entanto, a Natureza infinita, de forma que no h

    nenhuma coisa singular tal que no exista outra mais po-

    tente, pela qual ela possa ser destruda. Assim, estamos

    continuamente expostos ao perturbadora das causas

    exteriores, e todo projeto moral que pretenda alcanar a

    imperturbabilidade mediante a supresso radical das pai-

    xes oriundas desses encontros fruto da ignorncia acerca

    de nosso ser no mundo.

    Ora, as paixes so coisas naturais e, como todas as

    coisas naturais, so dotadas de seu prprio conatus. Como

    elas so causadas em ns por coisas exteriores a ns, suas

    essncias no se explicam apenas pela nossa, mas resultam

    da conjuno de elementos derivados das essncias de suas

    causas exteriores. Como o conatus de algo nada mais que

    sua essncia atual, a mesma dependncia em relao causa

    exterior ocorrer na explicao da potncia da paixo. O que

    explica sua fora, crescimento e perseverana na existncia

    , portanto, a potncia de sua causa exterior em relao com

    a nossa. Ora, a potncia das causas externas pode superar a

    nossa. Por isso, a fora das paixes pode superar as nossas

    aes. isso o que explica que nossas paixes possam ser

    mais fortes do que ns, e que embora vejamos o melhor,

    muitas vezes faamos o pior. Com as paixes, o que ocorre

    em ns no se explica exclusivamente por ns e muitas vezes

    se impe a ns. Esta presena violenta do exterior em ns,

    da qual todos temos experincia, comumente expressa na

    50 Marcos Andr Gleizer

  • linguagem habitual quando algum afirma sinceramente

    que estava fora de si e que no se reconhece no que fez.

    O princpio geral da fora das paixes recebe ainda um

    complemento de anlise, pois assim como as caractersticas

    temporais (passado, presente e futuro) e modais (necess-

    rio, contingente e possvel) das representaes imaginativas

    desempenham uma funo capital na gnese das paixes,

    assim tambm essas mesmas caractersticas repercutem so-

    bre a intensidade varivel das paixes. No exame dessa

    repercusso, Espinosa demonstra a natural supremacia das

    paixes por objetos imaginados como imediatamente pre-

    sentes sobre todas as outras paixes, assim como sobre os

    afetos ativos que nascem da razo.

    Razo e afetividade

    Ora, se estamos sempre necessariamente expostos s paixes,

    cujas foras podem e tendem naturalmente a nos superar,

    como reduzi-las ou moder-las? O que pode a razo contra

    as paixes? J vimos que o racionalismo absoluto de Espi-

    nosa no conduz a uma postura intelectualista na caracte-

    rizao da natureza dos afetos, pois estes no nascem de

    comparaes intelectuais. Vimos tambm que no h opo-

    sio geral entre razo e afetividade, pois h afetos ativos que

    nascem de nossas idias adequadas. De fato, se o conheci-

    mento intelectual pode interagir com as paixes, moderan-

    do-as e transformando nossa vida afetiva exatamente

    porque ele tem a mesma raiz que as paixes, a saber, o desejo.

    Espinosa & a afetividade humana 51

  • Ora, o desejo racional, como todo desejo, um esforo para

    fazer o que serve nossa conservao e auto-realizao a

    partir de idias dadas. Mas, neste caso, as idias so adequa-

    das e, portanto, certas e verdadeiras. Assim, afirma Espinosa,

    uma vez que a razo no pede nada que seja contra a

    Natureza, ela pede, por conseguinte, que cada um ame a si

    mesmo; procure o que lhe til, mas o que lhe verdadei-

    ramente til; deseje tudo o que conduz, de fato, o homem a

    uma perfeio maior; e, de uma maneira geral, que cada um

    se esforce por conservar seu ser, tanto quanto lhe possvel.

    Isto to necessariamente verdadeiro como o todo ser

    maior que a sua parte.

    No caso da busca racional do que nos verdadeiramen-

    te til, ns compreendemos o que desejamos e desejamos

    porque compreendemos, de modo que nosso esforo para

    perseverar no ser muito mais eficaz. No entanto, ainda

    aqui o racionalismo de Espinosa no conduz a uma postura

    intelectualista, se por intelectualismo entendermos a tese

    segundo a qual o mero contedo do conhecimento verda-

    deiro enquanto tal suficiente para superar a fora das

    paixes. Afinal, nem todo o contedo das idias imaginati-

    vas envolvidas nas paixes desaparece diante da verdade,

    pois, como vimos, estas idias possuem uma positividade

    enquanto indicam o estado atual do corpo (estado este que

    envolve suas variaes de potncia). Assim, a posio de

    Espinosa a esse respeito clara: um afeto s pode ser

    reduzido ou suprimido por um afeto contrrio e mais forte,

    e o verdadeiro conhecimento do bem e do mal, enquanto

    verdadeiro, no pode refrear nenhum afeto, mas sim en-

    52 Marcos Andr Gleizer

  • quanto considerado como afeto. Desse modo, para tor-

    nar-se realmente eficaz preciso que o conhecimento ver-

    dadeiro se expresse afetivamente e que seus afetos ativos se

    tornem mais fortes do que as paixes.

    Todo o problema tico consiste, ento, em determinar

    as condies nas quais os afetos ativos podem tornar-se mais

    fortes do que as paixes, invertendo as relaes de fora que

    favorecem as ltimas em detrimento dos primeiros. No se

    trata, como j vimos, de suprimir as paixes, mas de alterar

    a dosagem entre passividade e atividade. Como se tornar

    predominantemente racional e ativo?

    Coerente com a excluso do livre-arbtrio, Espinosa

    sustenta de forma realista que para que nossa potncia

    intelectual possa se desenvolver e tornar-se afetivamente

    eficaz necessrio que as condies exteriores sejam favo-

    rveis. Com efeito, a avaliao do carter til ou prejudicial

    das paixes proposta na tica IV demonstra que as paixes

    alegres exatamente porque nascem da compatibilidade

    entre suas causas exteriores e ns aumentam nossa po-

    tncia de agir e pensar, fornecendo, dessa forma, a ocasio

    favorvel ao desenvolvimento da razo. Afinal, essa compa-

    tibilidade convida-nos a pensar o que h de comum entre

    ns e as coisas exteriores, e tais propriedades comuns so

    precisamente os objetos das noes constitutivas do conhe-

    cimento racional. Assim, as paixes alegres so diretamente

    teis ao desenvolvimento da potncia da razo. As paixes

    tristes, ao contrrio, por resultarem de nosso desacordo com

    o meio, inibem esse desenvolvimento, sendo, portanto, di-

    retamente prejudiciais. por isso que Espinosa exalta a

    Espinosa & a afetividade humana 53

  • alegria e se levanta com veemncia contra aqueles que

    exploram nossas paixes tristes, tais como o medo, a humil-

    dade, o arrependimento etc., e que travestem em pseudo-

    virtudes morais a impotncia tica nelas contida. Ora,

    medida que a razo se desenvolve, nosso crescente conheci-

    mento das propriedades comuns das coisas vai nos tornan-

    do progressivamente mais capazes de organizar nossas re-

    laes com o mundo de modo a incentivar o predomnio

    das paixes alegres sobre as tristes. Ou seja, o desenvolvi-

    mento da razo nos torna menos submissos em nossas

    interaes com o meio circundante e nos permite satisfazer

    de modo mais eficaz nossos desejos passionais.

    Mas o cultivo das paixes alegres, embora sempre im-

    portante, no o fim ltimo da vida racional e do projeto

    tico de Espinosa. Este se realiza, como dissemos, com a

    alterao das relaes de fora em proveito das aes. Ora,

    o desenvolvimento progressivo da razo, sobretudo quando

    atinge o ponto de formar as noes comuns acerca da

    prpria vida afetiva, isto , quando consegue elaborar a

    cincia da afetividade humana, acompanhado no apenas

    da formulao de tcnicas que permitem atenuar os efeitos

    nefastos dos mecanismos imaginativos que regem a vida

    passional, mas tambm necessariamente acompanhado

    do desenvolvimento progressivo dos desejos e alegrias ati-

    vos que nascem do seu exerccio. Assim, pouco a pouco,

    todas as relaes cognitivas e afetivas da vida mental vo

    sendo transformadas em proveito da atividade.

    As tcnicas acima mencionadas e os afetos ativos que

    nascem da razo constituem os remdios dos afetos, isto

    54 Marcos Andr Gleizer

  • , a teraputica espinosista elaborada nas vinte primeiras

    proposies da tica V. Para concluirmos nossa exposio,

    convm indicarmos seus elementos centrais. Para tal, segui-

    remos o resumo que Espinosa apresenta no esclio da pro-

    posio 20 da parte V, acrescentando a cada remdio um

    breve comentrio.

    O poder da alma sobre os afetos, diz ele, consiste:

    1o) no prprio conhecimento dos afetos: com efeito,

    no h paixo sobre a qual no possamos formar reflexiva-

    mente alguma noo comum, logo, alguma idia adequada.

    Ora, essas idias adequadas, e as alegrias que delas se se-

    guem, so atividades mentais que se explicam apenas por

    nossa natureza e que transformam as paixes sobre as quais

    elas se aplicam, pois um afeto que uma paixo deixa de

    ser uma paixo logo que formamos dele uma idia clara e

    distinta. Assim, quanto mais conseguirmos clarificar nossas

    paixes, menos passivos seremos em relao a elas, e mais

    os afetos ativos oriundos do conhecimento viro substi-

    tu-las;

    2o) em que ela separa o afeto do pensamento da causa

    externa, que ns imaginamos confusamente: a reflexo nos

    torna mais ativos e favorece nosso esforo intelectual para

    separar a paixo da idia confusa de sua causa exterior e

    conect-la de forma sistemtica s noes comuns. Trata-se,

    assim, de um verdadeiro esforo de reinterpretao de nossa

    vida passional, especialmente eficaz em relao s paixes

    objetais. Com efeito, ao desfazer o lao associativo que liga

    a alegria e a tristeza s idias imaginativas de seus objetos a

    alma se desfaz das paixes que nascem dessas associaes,

    Espinosa & a afetividade humana 55

  • ou seja, do amor, do dio e das flutuaes do nimo que eles

    engendram;

    3o) no tempo, graas ao qual as afeces, que se refe-

    rem s coisas que ns compreendemos, triunfam sobre as

    que se referem s coisas que concebemos confusamente: os

    afetos que nascem da razo se referem ao conhecimento das

    propriedades comuns das coisas, propriedades que, por

    serem comuns, so imutveis e sempre contempladas como

    presentes. Por isso, esses afetos so constantemente reaviva-

    dos e dotados de uma estabilidade que, ao longo do tempo,

    permite superar as paixes instveis que se referem s coisas

    mutveis que imaginamos como ausentes;

    4o) na multido das causas pelas quais as afeces que

    se referem s propriedades comuns das coisas ou a Deus,

    so alimentadas: um afeto que se refere simultaneamente

    a vrias causas exteriores ocupa com mais freqncia a

    mente, sendo ao mesmo tempo menos intenso em relao

    a cada objeto exterior em particular e, por isso mesmo,

    propiciando que a alma escape da relao passional obses-

    siva que a retm na contemplao de um nico objeto e a

    impede de pensar em outras coisas. Alm disso, a conside-

    rao racional de uma multiplicidade de causas vem acom-

    panhada da idia de necessidade, o que, como j vimos,

    atenua a fora das paixes;

    5o) na ordem em que a alma pode ordenar seus afetos

    e encade-los entre si: com efeito, enquanto no somos

    dominados por paixes tristes, temos o poder de ordenar os

    afetos segundo a ordem da inteligncia. Essa ordenao

    consiste numa espcie de exerccio de autocondicionamen-

    56 Marcos Andr Gleizer

  • to, no qual a alma conecta sistematicamente as regras de

    vida elaboradas pela razo (preceitos acerca do que nos

    verdadeiramente til) imaginao de diversas situaes

    adversas possveis, de modo a estarmos mais preparados

    para enfrent-las quando necessrio. Assim, ns nos forta-

    lecemos e diminumos nossa dependncia em relao

    fortuna, pois preciso mais fora para contrariar os afetos

    ordenados desta forma do que para contrariar afetos vagos

    e inconstantes.

    O quarto item acima introduziu, ao lado da referncia

    dos afetos ao conhecimento das propriedades comuns das

    coisas, a noo capital de uma referncia dos afetos idia

    de Deus. Essa referncia, ponto culminante do sistema,

    elaborada na teoria do amor intellectualis Dei. No possvel

    apresentar aqui as principais distines e articulaes con-

    ceituais dessa complexa teoria. Porm, cabe indicar, ainda

    que de forma nebulosa, a direo a que ela nos conduz. A

    passagem do conhecimento das coisas a partir das pro