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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Gustavo Garcia da Palma Estados alterados de consciência em Artemídia: o papel do corpo no trabalho do ator MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA São Paulo 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Gustavo Garcia da Palma

Estados alterados de consciência em Artemídia:

o papel do corpo no trabalho do ator

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo

2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Gustavo Garcia da Palma

Estados alterados de consciência em Artemídia:

o papel do corpo no trabalho do ator

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Professora Doutora Helena Katz.

São Paulo

2008

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Banca Examinadora

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À minha família

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AGRADECIMENTOS

Para ser simples, e não chorar demais, agradeço ao meu pai João Augusto pela estranha

destreza de tornar as coisas mais simples em cruéis desafios da vida, tornando as coisas mais difíceis em simples afazeres fortuitos, banhados de compromisso e responsabilidade. Minha mãe Liana, pela insistência na crença de que o amor e a paciência são as curas daquilo que nos parece impossível e distante. Ao meu irmão André pela simplicidade de ser na medida das coisas do mundo, sendo ele próprio, nosso mundo de amor e carinhos eternos. Meus tios e minhas avós Lídia e Cila, amadas, que sempre me ensinam a fé e o amor à família inteira. Aos meus avôs, pelo que representam suas ausências.

Agradeço a todos da ACP Cultural, particularmente à equipe de “After Darwin”: Raquel

Araújo, Oswaldo Mendes, Vera Kowalska e, em especial, ao carinho peculiar de Carlos Palma.

Agradeço a CAPES, pela bolsa recebida. Agradeço à Helena Katz, pela atenção, pelas críticas, pela credulidade com que recebeu

minhas confusões sabendo o indefinível papel que representaria. Obrigado, querida Helena!

À professora Rosa e ao professor Gardin, pelo carinho na qualificação... Aos professores e funcionários da PUC/SP, que ensinaram, sobretudo, dedicação e

respeito aos alunos. Em especial à Cida Bueno, que aturou minhas dúvidas até o último instante!

A todos do “Jogo Coreográfico”, pela confiança depositada no trabalho. Em especial, à

Lígia Tourinho, amiga, diretora, atriz, coreógrafa e professora da UFRJ. Agradeço também a todos do Departamento de Arte Corporal da UFRJ.

A CIAO, pela confiança e carinho com que receberam as idéias aqui propostas... Em especial, a Ruy Filho, por tantas parcerias infindáveis, tanta confiança e respeito... A Eusébio Lobo, e toda sua família, pelas pessoas que são... A todos do Grupo Carranca, em especial a Luis Monteiro Jr. – Palhaço Girassol, Amanda

Paixão, Lígia Tourinho, Letícia Ramos, Mariana Saviolli, Gustavo Xella, Alexandre Caetano, Thomás Decina, Laura Lídia, por tudo que fizemos, sem saber que era impossível, e que agora faz parte de nossos corpos e de nossa vida mais íntima. Talvez eu nunca tenha agradecido a cada um de vocês...

Aos membros do CENIDI Danza – José Limón, Cidade do México, MX, em especial à

Citlali, Paola e Fidel e à todos de Ruta SUR, Santiago do Chile, CH, Débora Ruiz, Maria Eugênia e Geraldo, pelo carinho latino-americano!

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À D. Robertina, sua família, seus netinhos amados e aos nossos amigos em comum, cujas

palavras são guias ao coração, à retidão de caráter e à esperança... A cara irmãzinha Srta. Leila e seu digníssimo esposo Sr. Taves, pelas traduções e pela

força de sempre. Ao Élcio e à Helena, por terem permitido que isso tudo um dia se iniciasse. Ao querido Quinteto Fantástico: Paula Elias, Ricardo Porto, Patrícia Cividanes e Ruy

Filho, pela eternidade que nossa amizade representa. Ao Fel Mogli Piolho Boy e à nossa amiga invisível Mia. Aos meus ex-alunos da faculdade Barão de Mauá, turmas de 2005 e 2006, em especial ao

nosso coordenador Amilton Monteiro. Aos meus ex-alunos de Campinas: Cantemos sempre, pois a presença será sempre

insuficiente pra dizer o que fizemos com tão pouco em nossas mãos... A Deus...

E ao Patolino, claro!

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RESUMO

Estados alterados de consciência em Artemídia: o papel do corpo no trabalho do ator

É cada vez mais comum a utilização de tecnologias nos processos comunicacionais em

arte. Acoplamentos de próteses ao corpo e hibridização de linguagens cênicas se sucedem. Tais

processos, em sua maioria, são realizados sob a perspectiva do diretor, do coreógrafo ou do

crítico de arte. Aqui é proposta uma análise pelo corpo em ação no meio. O objetivo é a

investigação da alteração de consciência para o ator, com base na “técnica de transe”, proposta

por Jerzy Grotowski (1979, 2007), para um teatro “pobre” em tecnologia. A hipótese é a

aplicação deste conceito em uma arte “rica” em tecnologia: a Artemída (MACHADO, 2002).

Utilizou-se de metodologia indisciplinar e teórico-prática. Autores como M. McLuhan (1969,

1972), S. Pinker (1998, 2002), Y. R. G. Araújo (2005) e P. M. Aguiar (2006) possibilitaram

conceber a tecnologia como processo organismo/meio, e superar a dualidade “rico-pobre”

inerente em Grotowski. O conceito “corposintético”, criado a partir do conceito “corpomídia”

(KATZ & GREINER, 2005), representa a recusa em alterar-se. T. Richards (2001), R. Cohen

(2004, 2003), M. Bonfitto (2002), R. Ferracini (2003), E. Barba (2006), R. Demarcy (in

GUINSBURG, 2003) e outros permitiram a releitura de importantes autores da área teatral

como Aristóteles (1966), C. Stanislávski (1979) e J. Grotowski (op. cit.). A. Damásio (2000,

2004), S. Pinker (1998), D. C. Dennett (1997, 2006), Lakoff & Johnson (2002), R. Dawkins

(2001a, 2001b), e outros permitiram conceber os conceitos de consciência para ser possível

identificar e criar estados alterados, entendidos sistemicamente a partir de J. Vieira (2006,

2007). Os princípios de treinamento do ator são tratados como Procedimentos de Alteração, e a

leitura da técnica de transe de Jerzy Grotowski pôde ser revista e ampliada para o corpo em

ambientes com altos índices de tecnologia nos processos comunicacionais.

Palavras-chave: Corpomídia – corposintético – Artemídia – Jerzy Grotowski – transe – estados

alterados de consciência.

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ABSTRACT

Altered states of consciousness in Art Media: the role of the body in the actor’s work

It’s very common Nowadays the use of technologies in communication processes in art.

The coupling of prosthesis to the body and the cross-breeding of scenic languages happen. The

analysis of these processes, most of them at least, is done under the director’s, the

choreographer’s or the critic’s perspective. The objective is the investigation of consciousness

alteration for the actor based on the “trance technique” proposed by Jerzy Grotowski (1979,

2007), for a theater “poor” in technology”. The hypothesis is the application of this concept in

an art “rich” in technology: the Artmedia (MACHADO, 2002). An undisciplined and

theoretical-practical methodology was used. M. McLuhan (1969, 1972), S. Pinker (1998, 2002),

Y. R. G. Araújo (2005) e de P. M. Aguiar (2006) made it possible to conceive the technology as

an organic/environmental process and overcome the dualism “rich-poor” inherent in Grotowski.

The concept “syntheticbody”, created from the concept “corpomídia” (KATZ & GREINER,

2005), represents the refusal in altering itself. T. Richards (2001), R. Cohen (2004, 2003), M.

Bonfitto (2002), R. Ferracini (2003), E. Barba (2006), R. Demarcy (in GUINSBURG, 2003)

and others allowed a new interpretation of important theater authors like Aristóteles (1966), C.

Stanislávski (1979) e J. Grotowski (op. cit.). A. Damásio (2000, 2004), S. Pinker (1998), D. C.

Dennett (1997, 2006), Lakoff & Johnson (2002), R. Dawkins (2001a, 2001b), and others

allowed the conception of consciousness in a healthy state, here, a parameter to identify and

create altered states, which can be systemically understood from J. Vieira (2006, 2007).

Consequently the actor’s training system was called “Alteration Procedures”, and Jerry

Grotowski’s interpretation of the trance technique for the body could be reviewed and enlarged

in high levels of technology in communication processes.

Key-words: Corpomídia – synthetic body – trance – altered estates of consciousness –

Artmedia – Jerzy Grotowski.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1 – Smiley, símbolo da cultura rave ..................................................................1

Ilustração 2 – Área de controle da prótese “Diagrama do controlador fisiológico”......121

Ilustração 3 – “Projeto eletrônico do Sistema de Controle Sensorial” ..........................123

Ilustração 4 – Posição desestabilizadora “Avião” .........................................................153

Ilustração 5 – Variação da posição 4 com indicação de impulso do abdômen

“serpentear a coluna”.....................................................................................................153

Ilustração 6 – Posições desestabilizadoras “bola”.........................................................153

Ilustração 7 – Mecânica de impulsos, oposições e vetores que geram a fibrilação.......155

Ilustração 8 – “Fole” natural do corpo...........................................................................156

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SUMÁRIO

1. CORPOSINTÉTICO ..................................................................................................1

1.1 O corpo que reflete a luz congelada: apresentação da idéia de corposintético....1

1.2 A eficiência da luz sob a luz da eficiência: corpo e arte em paisagens

tecnológicas ....................................................................................................................10

1.2.1 Luminescências ........................................................................................13

1.2.2 Incandescências ........................................................................................32

2. CORPOMÍDIA X CORPOSINTÉTICO ................................................................41

2.1 A luminosidade pálida do trabalho: corposintético e o trabalho do ator na era

da Artemídia ..................................................................................................................41

2.1.1 O que se entende por “trabalho do ator”?.................................................42

2.1.2 O ator, segundo a perspectiva de Stanislávski .........................................45

2.1.3 O ator, segundo Grotowski.......................................................................54

2.1.4 O que é o foco de atenção para o ator e como ele se concentra ...............62

2.2 A representação e a encenação: as circunstâncias dadas

e os environments criativos............................................................................................71

2.2.1 Onde o enredo se sustenta: espaço e tempo para Aristóteles ...................72

2.2.2 Espaço e tempo nos environments contemporâneos ................................74

2.2.3 Onde o enredo foi quebrado: espaço e tempo para a Artemídia ..............76

2.2.3.1 Questões para o conceito de ação.................................................80

2.3 Mente/corpo: o transe em Grotowski e as descrições dualistas...........................82

2.3.1 Leitura dualista de Grotowski ..................................................................82

2.3.2 Conseqüências para o entendimento de transe .........................................84

2.4 Contaminações: o impulso de acordo com as informações do ambiente............86

2.4.1 Segundo a vivência...................................................................................88

2.4.2 Segundo as imagens e conexões...............................................................91

2.4.3 O Jogo: o impulso de acordo com as informações do ambiente ..............96

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3. ESTADOS ALTERADOS DE CONSCIÊNCIA PARA

O TRABALHO DO ATOR...........................................................................................99

3.1 Apontamentos iniciais .............................................................................................99

3.2 O que é consciência: estudo da mente sob novas tecnologias ............................101

3.3 Consciência: sob a luz da filosofia........................................................................103

3.3.1 Dennet e seu modelo ..............................................................................111

3.4 Corpo-máquina: a leitura dualista dos processamentos de informação ..........119

3.4.1 Consciência: a mente modular ...............................................................124

3.5 Estabilidades e instabilidades no funcionamento da estrutura

corpo/mente/meio ........................................................................................................135

3.5.1 Consciência emergindo das entranhas moleculares ...............................135

3.5.1.1 O que são alterações: uma leitura sistêmica da consciência ......140

3.6 Como alterar a consciência...................................................................................149

3.6.1 Estabilizações e desestabilizações..........................................................149

3.6.2 Procedimentos de alteração ....................................................................150

3.7 Princípios gerais para um treinamento sobre alterações:

treinamento gravitacional...........................................................................................151

3.7.1 Seqüências de estudos ............................................................................152

3.7.2 Posições desestabilizadoras....................................................................153

3.7.2.1 Exemplos de seqüências.............................................................154

3.7.3 Respiração e canto..................................................................................156

3.7.3.1 Cantos indígenas brasileiros.......................................................157

3.7.4 Alterações diferentes para diferentes tipos de ator.................................157

3.7.5 Alterações diferentes para diferentes tipos de cena................................157

3.7.6 Alterações diferentes para a mesma cena...............................................158

3.7.7 Alterações diferentes para o mesmo ator ...............................................158

3.8 Alteração específica: ação fibrilar........................................................................158

3.9 Narrativa de estados..............................................................................................159

CONSIDERAÇÕES FINAIS: Carta aos flutuantes .................................................160

CONCLUSÕES............................................................................................................161

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................168

APÊNDICES ................................................................................................................179

ANEXOS .....................................................................................................................180

OBSERVAÇÃO: Este volume inclui um DVD, anexado na contracapa, no qual

constam os apêndices e anexos em formato de videoclipe (vide pág. 181 e 182)

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1. CORPOSINTÉTICO1

1.1 O corpo que reflete a luz congelada: apresentação da idéia de corposintético

Ilustração 1 – Smyle, símbolo da cultura rave

São Roque, 27 de maio de 2006. Neblina para deixar qualquer um cego e muito

frio. Expectativa. Comemoração de aniversário. Mais expectativa ainda por que nunca

tinha ido a uma rave2. Já fui a várias festas de multidão... Na Unicamp, no período de

minha graduação3, chegaram a proibir as festas... Porque Barão Geraldo, o bairro em

torno do campus, não dormia.

1 A idéia do corposintético desenvolvida por esta pesquisa, foi apresentada no Encuentro Internacional sobre Investigación de la Danza, “El legado artístico de José Limón - comemoración por el centenario de su natalicio y 25 el aniversario del CENIDI-DANZA José Limón”, organizado pelo Centro Nacional de Investigación, Documentación e Información de la Danza CENIDI-Danza José Limón, entre 14 e 20 de janeiro de 2008, na Cidade do México, México. 2 Rave é um tipo de festa muito conhecida entre jovens que acontece em lugares como sítios, galpões, fazendas ou praias, com música eletrônica variando entre os estilos Acid, Acid House, House, Techno, Trance, Psy, Psy Transe e Drum´n Bass. É um evento de longa duração, acima de 12 horas, em que DJ´s e outros artistas da cena eletrônica se apresentam. O termo “rave” parece não ter uma origem exata, sendo às vezes atribuído aos caribenhos de Londres em 1960 que o usavam para denominar sua festa local. Outras fontes informam que surgiu junto com o estilo de música Acid House, em 1980, em Chicago e evoluiu para o Reino Unido, onde as festas eram chamadas de Acid Parties. O fato é que a música eletrônica aparece como desdobramento da música concreta na França em decorrência da invenção de aparelhos eletrônicos, os chamados sintetizadores. Esses aparelhos de alta tecnologia misturam e criam poderosas freqüências sonoras cujas qualidades de tessitura musical dificilmente são encontradas na natureza. Além das qualidades rítmicas repetitivas, frenéticas e sincopadas, esse é um dos principais motivos para a música eletrônica ser vista como uma referência sonora da vida nas grandes cidades. No Brasil essas festas começaram por volta dos anos de 1970 com Jorge Antunes, Lelo Nazário, Conrado Silva e Florivaldo Menezes, para alcançarem seu ápice como eventos na década dos anos de 1990. Hoje são freqüentadas por diversos grupos distintos que se organizam de modo independente, formando o que se costuma chamar por “cultura da música eletrônica”. Atualmente já existem bibliografias especializadas no assunto e uma das principais fontes de pesquisa é a internet, mídia cuja natureza fluídica consegue absorver com rapidez, e uma abrangência um tanto quanto democrática, as publicações de cada grupo em blogs e grupos de discussões específicas. 3 A formação em Bacharel em Artes Cênicas se deu no período entre 1996 e 2000, embora ainda em 2006 persistiam vínculos intelectuais e profissionais com a universidade através do Museu de Ciência do Instituto de Física. Cursada no Departamento de Artes Cênicas da Unicamp, durante a graduação deu-se a oportunidade de coordenar um grupo de pesquisa chamado Grupo Carranca – Grupo Interdisciplinar de Produção e Pesquisa em Artes – Carranca. Fundado em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, em 1995, no ambiente de teatro estudantil e amador. Suas pesquisas sempre buscaram compreender o trabalho do ator e a constituição da cena levando em consideração a relação com a platéia em diferentes modos de construção da linguagem cênica. Sejam com propostas de espetáculos mais interativos ou no tradicional palco italiano, o ator era visto como a célula propulsora da relação com a platéia em ambientes de criação

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Enfim, um frio quente por dentro!

Eu e uma amiga. Saímos de São Paulo aproximadamente uma hora da manhã!

Marginal. Radares, estrada vazia, conversa animada no carro. Saudades de amigos de

tempos longos e muita ansiedade de saber como anda a vida um do outro. Casos,

namoros, trabalho, família, sonhos, estrada, mestrado, enfim, “enfins” que se constroem

em quinze anos de picuinhas – pois claro, amizade é quase isso: duas gentes fazendo

picuinha uma para outra só para depois sentir saudades de novo! Amizade é quase o

afeto da picuinha, seguido de um abraço forte quase demorado. Nesses termos,

“intimidade é um risco”, pois num olhar entre uma picuinha e outra, sabemos mais da

vida um do outro do que sobre nossas ambições na vida. Isso significa conexão.

Ingresso na mão. Revista na porta, no bolso, bolsa, capuz, jaqueta: “Bem vindo!

Pode entrar!”.

Anuncia com o olho vidrado em mim o segurança da portaria improvisada –

cortando seca a estrada de terra mal iluminada.

No meio da madrugada, com a ponta do nariz quase congelada, uma linha

confusa de pequenos grupos falantes e eufóricos sobe abduzida a montanha, em direção

a um imenso palco que ainda não se vê. Seguindo o som marcado, compassado, preciso,

sincopado, que fala alto à distância de quase três quilômetros de diâmetro morro abaixo.

Entramos na noite que não terá fim. Hora piadas e risos, hora respirar ofegante e olhares

mudos sob a escuridão da noite. Alguém vai insistir em acender a luz quando a manhã

chegar, mas ninguém vai ligar. Outras luzes já terão sido acesas...

estética que transgrediam as áreas artísticas estabelecidas historicamente, como a dança, pintura, teatro, música, e etc. Os processos de treinamento, criação de cenas e espetáculos compreendiam profunda dinâmica de relação coletiva através de um método próprio de trabalho intitulado “Teia-Tribo – Karutana”. Karutana significa “bastão de ritmo” (CASCUDO, 1988: 423), instrumento em torno do qual uma comunidade se orienta durante as caçadas e rituais, conduzido pelo bayá, pajé, ou chefe guerreiro. Em diferentes nações indígenas, Karutana recebe diferentes nomes. Muitos aspectos da pesquisa e das técnicas criadas pelo grupo surgiram de vivências relacionadas à cultura brasileira, a partir de situações de transe, em aldeias indígenas, terreiros de umbanda e candomblé, ou em comunidades que passaram a ser entendidas como “grupos sociais tradicionais ou característicos”, como o Hospital Professor Cândido Ferreira, Campinas, SP, conhecido pelo tratamento de pacientes psiquiátricos através de métodos de arte-terapia. Em 2000, o Grupo Carranca, através de suas oficinas “Teia-Tribo – Karutana” e do espetáculo “Versus Uno”, dirigido por Eusébio Lobo, com coordenação de pesquisa de Luis Monteiro Jr., teve a oportunidade de representar o Brasil no “VI Festival de Teatro da Universidade de Santiago de Compostella e Lugo”, Espanha, e na “Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo”, na Cidade do Porto, Portugal. O Grupo encerrou suas atividades em 2004, embora suas inquietações ainda estejam latentes em muitos dos artistas que passaram por ele, como é o caso desta dissertação de mestrado.

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A estrada treme, e treme mais, quanto mais se encurta a distância. Pedras

tremem, o ar treme... E no fundo, um estranho silêncio de gente falando ao mesmo

tempo.

A neblina do pasto molhado de sereno toma todo o caminho, mas se deixa

perceber somente quando os fachos de luzes do palco de lonas e telas de plasma riscam

o céu profundo e avermelhado. Parece que ainda não há ninguém na festa, e que sendo

nós os primeiros convidados, seremos também privilegiados pelo espaço que se nos

apresentará vazio e ainda confortável. Como escutar o sangue correndo nas veias

quando se tampa os ouvidos. Quase como um segredo de si mesmo.

Caminhamos mais um pouco. Os olhos são agora preenchidos pela porca

estrutura de tendas e peruas kombis, vans e pequenas mesinhas de plástico, dando a

impressão de que há ali algum tipo de realidade além de brilhos intermitentes.

Muitas luzes. Luzes no chão, multiplicadas nas poças de água turva dos buracos

de cascalho grosso, acumulada pelo trabalho das máquinas de uma pedreira moribunda,

que agora dorme como se estivesse à espreita. Luzes desconexas, disformes, piscantes,

mas nenhuma delas, (ou pelo menos quase nenhuma) ligadas de fato na eletricidade.

Um ambiente que mais parecia o cenário do Diabo de Três Chifres, do Kurosawa4, que

uma festa animada. Ali o mundo era fluorescente... Como uma criança ganhando camisa

de botão na festa de natal. E simplesmente suspensão de si.

Um mundo formado de paisagens convergentes. Paisagens auto-referentes.

Como receber um e-mail de si mesmo. Um paradoxo estranho e curioso.

Com o desembaralhar dos olhos, uma paisagem ainda tímida e nebulosa, sem

definições... Ainda uma festa vazia e sem muita graça.

Compro uma cerveja, duas, e me embrenho na mata de arbustos humanos que

sacoleja sob o acid house. Embrenho-me no meio de corpos. Muitos. E aos poucos a

música me leva a sacolejar também. Repetições. Olhos fechados. Óculos escuros de

noite, no meio do mato e da fumaça. Ainda com algum espaço para dançar, sem

perceber que dançávamos todos juntos, eu dançava alegre. E a noite assim se fez:

4 “O Diabo de Três Chifres” é uma parte do filme “Sonhos”, 1990, do cineasta Japonês Akira Kurosawa (1910–1998).

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borbulhante de narrativas acústico-luminosas que entrecortavam o ar em sentidos

diversos, fazendo a imaginação visualizar formas e cores vivas, fluorescentes.

Fractando os sentidos, meus olhos pouco distinguiam instâncias que não fossem

sinais brilhantes, sonoros, impulsos5 de movimentos provocados pela pressão dos

timbres mais baixos vindos dos imensos amplificadores posicionados aos pés do palco

cinematográfico. Como uma montanha dançando o Toré6.

Exausto e com sede, compro uma garrafa de água e tomo o rumo de uma picada

de terra que se estreita à beira do mato, buscando conforto para os pés e para o sacro

cansado. Encontro acima da montanha um segundo palco, sob uma tenda mal iluminada

e musicada de maneira mais suave, destinada a um leve recobrar de forças. Praia

rochosa como abrigo de imensos leões-marinhos e focas que descansam e procriam. A

diferença é que ali não havia as batalhas sangrentas que estes bichos magníficos travam,

esmagando seus filhotes contra as pedras arredondadas pelas ondas. Os corpos humanos

que dormiam eram inertes no placebo de suas companhias. Boiavam sobre as esteiras de

palha organizadas previamente ao longo do chão, como um mercado de carnes

semiconscientes.

Muitos, nem a força para fechar os olhos tinham. Eu mesmo era um deles. No

entanto, já desesperançado por encontrar um lugar realmente silencioso para dormir um

pouco, detive-me diante de uma performance em curso. Lindas garotas, que apesar do

frio, dançavam com pouca roupa mostrando seus pêssegos arrepiados e duros, quase

5 Do Latim impulsu: ímpeto; “esforço, estímulo; ato de impelir; empurrão; força que atua durante um intervalo de tempo muito curto; Fisiol., sinal conduzido ao longo de uma fibra nervosa na forma de uma onda móvel de natureza eléctrica; Psic., força de origem biológica que provoca a actividade psicomotora do Homem e dos animais.” Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx> Dicionário da Língua Portuguesa On-Line (DLPO) Priberam Informática. Acesso em: novembro de 2007. 6 Cerimonial de origem indígena brasileira, sendo executada por diversas nações. Etimologicamente, de Toré deriva-se Torém, que são cerimoniais distintos, mas guardam relações de proximidade no que tange à qualidade comemorativa, sobretudo e não estritamente religiosa, evocando a memória de guerreiros ancestrais, ou até mesmo, a comunicação com espíritos que ensinam remédios. O Toré é dançado em círculo, em cujo centro, um mestre de cerimônias executa movimentos inspirados em animais conduzindo a celebração (CASCUDO, 1988: 757). Muitas das danças indígenas brasileiras possuem uma matriz corporal caracterizada pelo bater dos pés no chão. Nas comunidades Tupis, que hoje vivem na região de Ubatuba, SP, aparece principalmente como um chamado dos ancestrais guerreiros nos ritos Xandoroí (guerreiro), em outras comunidades do Alto Rio Negro, AM, aparece nas danças Karissu (tipo de flauta feita de bambu ou taquaras em posição vertical, também encontrada em outras regiões da Amazônia, não só a brasileira, sob o nome de Kenna, ou Keña), que reinterpretam os mitos cosmogônicos de criação das quase vinte e nove diferentes etnias da região. Sob o prisma de diversos objetivos, o Toré tem acompanhado a presente pesquisa desde 1997, sendo, hoje, base para um tipo específico de procedimento de alteração, tratado no terceiro capítulo.

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inocentes, como numa peça de Nelson Rodrigues. E minha atenção, desdobrada na

relutância entre o desejo da língua no bico e a contemplação cafona do olhar fora de

tom, acordava ao som de vozes ao redor, quase gemidos/risadas, entre confusas e

envergonhadas, que deixavam escapar adjetivos como se apreciassem saborosas

feijoadas. O público ali, como gregos ou romanos deitados nas esteiras e apoiando o

peso do corpo no braço dobrado entre o chão e a cabeça, dormia com um olho enquanto

o outro lambia a saliva que escorria pelo canto da boca, observando lindas trufas

arrepiadas a dançarem no meio da tenda fria.

E no resto do corpo, na barriga fina, no culote gostoso, e nas costas delineadas,

outras acemiras7 escreviam em tinta branca, frases de ordem pacífica: paz na terra e

outras pieguices. Duvido que alguém, naquele estado de conforto contra o frio pela

palha aconchegante, estivesse interessado em alguma proposta estética mais profunda e

contestadora. Sem pudores, os açaís8 eram mais saborosos ao olhar.

Tentei dormir, mas parece que este texto que escrevo agora já estava a caminho.

Enfim, depois de algumas horas fora da multidão, pude retornar em direção ao palco

principal motivado pela manhã que surgia.

Observador e ainda sonolento, o sol principiava por detrás das árvores, fazendo

com que as copas parecessem revestidas por coroas negras intumescidas pelo orvalho,

tal a força de sua luz em contraste, cercando de novas novidades, o vale pulsante de São

Roque. E devagar, como quem olha os vizinhos da cidade grande a invadirem seu

quintal, também os assustados morros de pedra e mato ralo pareciam descobrir aos

poucos o motivo de tanto barulho no tranqüilo distrito. A fumaça, antes de cores escuras

e densas, era agora fina e gelada neblina cinza que sutilmente cintilava, como uma

adolescente com brincos novos, balançando os cabelos ao vento da manhã, pedindo

atenção e reparo em suas belas orelhas delicadas. Severa, a noite desgostosa e cansada

dava lugar aos guardas vigilantes espalhados pelas colinas em torno da lona do circo

eletrônico. Como quem vai dormir depois da festa, olhando a bagunça de latas de

cerveja sobre a pia, pensando no cansaço do corpo e no trabalho que terão para limpar a

casa quando acordarem ainda moídos de cigarro. 7 Do Tupi acemira; acir: o que faz doer, o que é doloroso (moacir). Retirado de “Pequeno dicionário Tupi-Guarani de um Manezinho”: <http://www.ufsc.br/~esilva/Dcindio.html#indice> 8 Do Tupi açaí: fruta que chora, fruta de onde sai líquido. Retirado de “Pequeno dicionário Tupi-Guarani de um Manezinho”: <http://www.ufsc.br/~esilva/Dcindio.html#indice>

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E como conscientes e vigilantes entram as nuvens mais altas, paisageando

suaves no céu que se abre aos poucos, conforme a manhã se estica no calor. Já de dia, a

claridade fazia diferença definindo outras situações, formas, cores, brilhos...

Ao olhar descortinado pela luz do dia, de cima da montanha orvalhada, pude ver

uma massa de gente como um mar de ondas agitadas, de ressaca, que te implica cuidado

e atenção. Respeito. O som ainda pulsava frenético e tão fortemente marcado, decidido

em si mesmo, que em movimentos repetitivos, como galinhas que ciscam no vazio da

gaiola de lata, o público imenso socava o ar com seus braços descamisados e nervosos,

como se protegendo de um enxame de abelhas enfurecidas e invisíveis. O enxame

parecia preencher o ar sobre as cabeças de maneira coreografada, fazendo a multidão,

ao se proteger e lutar, desenhar narrativas visuais numa imensa improvisação matinal.

Uma improvisação precisa e enfurecida.

Um corpo único e absolutamente gigante. Ordenado. Um exército de formigas

venenosas que se preparavam para a batalha contra a invasão de um monstruoso

tamanduá Gulliver. Vista de cima, a multidão tinha a cor do tom de pele com corretivo.

Na cena agitada sob a luz difusa da manhã embaçada, o imenso palco parecia um atrator

sonoro. Um pisca alerta numa estrada escura. Todos voltados para ele. Multidão.

Gentes, quais vermes que se aninham ao sol. Cupinzeiro cortado ao meio. Uma colméia

inteira enfurecida e em câmera lenta.

Suspensão...

Resolvo mergulhar no cupinzeiro, tornar-me verme. Aninhar-me também,

agitando meu sangue e cheirando meus iguais insones... Adentro a paisagem

submergindo nesta bolha de música/corpos outros. E, de perto, o olho descobre

detalhes... Luminescências.

De dentro para fora da multidão, o que se via eram corpos vestidos de

shoppings. Óculos escuros, tênis, calça jeans, botas de camurça com fivelas

sofisticadíssimas, camisetas com desenhos coloridos e brilhantes. Gel no cabelo, topes e

batons, em contraste com uma paisagem bucólica de campo. Árvores densas, vegetação

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de mata fechada e perigosa, sob um imenso céu azul claro, pedras e uma distância

imensa entre os olhos e o horizonte. Era Jurema9 de plástico...

O que vi foram corpos de felicidade eufórica, anestesiados de tudo que não

fossem eles mesmos. Plástico não sua, não desmancha. Derrete com o calor. Plástico

não cheira a nada, a não ser a plástico, vitrine, supermercado. Corpos/shoppings de

superfície intacta e impermeável, brilhante. Tactilidade superficial de um orgânico

anfetaminado, ansioso, de presença ligada na presença de si mesma. Afetada. Como

uma fonte constante, jorrando para cima em contínua inalação de sua própria respiração.

Corpos de óculos escuro-espelhados. Impenetráveis. O que vi foram

CORPOSINTÉTICOS.

Corpos tão cansados, estendendo-se nas passagens improvisadas entre uma trilha

e outra do mato seco-esverdeado. Pequenos tapetes entediados de exaustão e exaustos

de tédio. Mas com um sorriso estreito no canto da boca, de olhos fechados.

Absolutamente contemplativos. Como se mesmo na completa fadiga, houvesse muito

ainda o que se testemunhar no orgânico das veias-polímero.

Quase ninguém cambaleava. Não era álcool. Quase não existia o trançar de

pernas de um carnaval fora de época. Os olhares eram quase severos, de uma alegria

compromissada com si mesma. Era euforia. Completa transcendência das luzes

noturnas, dos pequenos faróis que se abrilhantavam diante dos olhos secos, rápidos e

frenéticos.

Saber-que-está-olhando-o mundo-pela-ampliação-de-si-mesmo-nesse-mundo.

Idéias-separadas-com-comportamentos-ífens-de-dualidades-e-não-com-

sinais/barra-de-ambivalência.

É impossível, embora tentador, tocar em algo. Tudo brilha demasiado e é quase

perigoso. Não há sexo, sequer sexualidade. Há sexualismo. A invenção do sexo pela

9 Jurema é uma planta da família das leguminosas (Acácia jurema, Mart), a comum jurema-branca, e (Mimosa nigra, Hub) a jurema-preta. Usada a jurema-branca tradicionalmente pelos índios Tupis do Norte e Nordeste brasileiro em ritos sagrados, e seu efeito é considerado o causador de sonhos afrodisíacos. “Das raízes e raspas dos galhos, os feiticeiros, babalorixás pernambucanos, os mestres do catimbó, os pais de terreiro dos candomblés da Bahia fazem uso abundante” (CASCUDO, 1988: 419). Considerado seu uso como feitiçaria até o século XIX, hoje é prática de algumas Umbandas e alguns Candomblés da Bahia. Deriva o termo Juremal, que significa reino, local sagrado.

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imagem: a minha imagem que diz a quem me vê, a beleza do meu sexo. O discurso

fetichista da forma com que me mostro: me mostro pelo corpo que construo comigo,

imobilizando e congelando no ar, os feixes de desejos dos outros por mim. A intenção

de sexo no mostrar a si. O sexo-discurso como se o outro fosse antes um espelho, para

quem me mostro e me vejo antes do toque.

Não se toca um espelho. Ele mancha, e um espelho manchado ruidifica o que

nele é projetado.

Havia projeções infinitas nas superfícies dos corposintéticos que borbulhavam

de longe. O chão-pasto da pedreira era uma ampla e densa chapa quente cercada por

morros e neblina colorida.

Enfim, mais de duas mil e quinhentas pessoas dançando e ninguém se tocando,

se beijando. Mas todos em seus universos particulares de sensações brilhantes à flor da

pele. Quase todos, evidentemente, fritando o cérebro na chapa quente da pedreira, que, a

seu modo, borbulhava de um corpo coletivo.

Contrastes. Magníficas operações de deslocamentos, intensos fluxos que se

recombinam a todo instante. A magia do contemporâneo. Quase uma máquina do

tempo, que traz para o agora/já do corpo coletivo e guerreiro, a carnavalização

medieval, as dionisíacas urbanas, as sociedades matriarcais, os encontros de star-wars,

os campeonatos de futebol de robôs, a parada gay da Avenida Paulista ou o banheiro

apertado e pré-fabricado de uma aeronave gigante. E para os restos dejetos dos

corposintéticos, minúsculos banheiros químicos. Fétidos. Caixas acústicas inversas, de

sons amplificadamente abafados nos pulmões arqueados sobre a genitália impotente.

É incrível imaginar como alguns cabelos permanecem imóveis, arrumados e

brilhantes, depois de tantas horas num ambiente tão severo e agitado. A química do gel

tem que ser muito eficiente!

Numa paisagem tão cheia de gente, num evento tão grande como esse, é de se

esperar que fiquemos horas para conseguir uma garrafa de água. E se por um infeliz

acaso, fosse preciso de sal para a pressão que caiu, é de se esperar que fiquemos

gelados...

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Que nada! Tudo funciona pensado previamente, programado para cada momento

da festa, numa organização calejada que conhece o tempo de transformação da multidão

e de suas particularidades. Sabe-se que horas o público se cansa e deita, e por isso, as

esteiras de palha. Sabe-se que se consome muita água e, por isso, ela chega a custar o

preço da cerveja. Sabe-se de tudo, não há imprevisibilidade...

O bar é gerido por jovens ativas, espertas e, principalmente, rápidas, assim como

a sede do público e as luzes do palco. Os seguranças, à paisana, conhecem as correrias

de balas e os lugares na cerca e no pasto que podem servir de ponte para o mundo

exterior.

Eles sabem de tudo. Podem te ver. Reconhecem na multidão de pessoas não tão

distintas assim, quem entrou sem pagar... Como? Não sei! Mas como flashes

inesperados eram inúmeras e organizadas as perseguições mato adentro e morro acima,

monitorado por rádios e motos ligeiras buscando no meio da escuridão profunda,

pessoas que simplesmente surgiam de algum portal dimensional por entre as árvores.

Não será difícil imaginar, daqui a alguns bons pares de anos, cambistas/hackers

vendendo passagens clandestinas entre portais de plasma para shows interestelares. Eles

não ficarão mais na porta do estádio ou do parque, mas há centenas de distâncias/luz

dali, talvez em módulos de países emergentes.

Por enquanto, a única nave é um helicóptero pousando junto a um caminhão

vazio, que deveria ter sido usado para recolher e estocar as muitas toneladas de

alimentos não perecíveis, trazidas pela multidão de pessoas caridosas e conscientes,

politicamente corretas interessadas no mundo sustentável, em performances e na luta

contra a violência...

...Silêncio no momento em que escrevo10...

10 Ver Anexos de A – G: vídeos feitos pelos próprios freqüentadores das raves, que ilustram a idéia de corposintético. Os vídeos não foram editados por esta pesquisa, a fim de manter as características que trazem as edições originais. Assim, é possível observar a maneira pela qual interpretam a realidade em que vivem.

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1.2 A eficiência da luz sob a luz da eficiência: corpo e arte em paisagens tecnológicas

Com base nessas paisagens11 em contraste, desses comportamentos observados

primeiramente sem muita expectativa e parâmetros, descritos anteriormente de forma

quase caricatural, poderíamos pensar na coexistência de dois tipos de discursos

corporais simultâneos, co-habitantes e relacionados com dois tipos de atenção por parte

dos indivíduos.

Um discurso é construído pelas pessoas que trabalham na estruturação do

evento12, enquanto espaço de funcionalidade como os organizadores, seguranças,

enfermeiros de plantão ou o corpo de bombeiro. Outro discurso é construído pelo

público a que o evento se destina: jovens urbanos com relativo poder aquisitivo, em

geral, jovens universitários e pós-universitários13. Co-existem posturas corporais

11 O termo “paisagens” refere-se à conceituação de Arjun Appadurai, cuja transcrição se segue: “Um marco elementar de partida para explorar tais deslocamentos consiste em focar a atenção na relação entre cinco planos ou dimensões de fluxos culturais globais, que poderíamos denominar: a) paisagem étnica, b) paisagem midiática, c) paisagem tecnológica, d) paisagem financeira e e) paisagem ideológica”. A palavra ‘paisagem’ faz alusão à forma irregular e fluida destas cinco dimensões, formas que caracterizam tanto o capital internacional quanto os estilos internacionais de vestimenta. Todos estes conceitos, que têm em comum a palavra ‘paisagem’, também tentam fazer notar que não se trata de ralações construídas objetivamente, que se mantêm fixas independentemente do ângulo por onde são observadas. Ao contrário, tentam chamar a atenção sobre o jeito de ser, fundamentalmente, construtos que são resultados de uma perspectiva e que, portanto, vão expressar as inflexões provocadas pela situação histórica, lingüística e política das diferentes classes de atores envolvidos: Estados-nação, corporações multinacionais, comunidades em diáspora, assim como também grupos e movimentos contidos na nação (sejam de índole religiosa, política ou econômica) e até pequenos grupos caracterizados por natureza íntima e uma forma de relacionar-se face a face, como seria o caso de pequenos povos, bairros e famílias. De fato, o lócus final deste conjunto de paisagens perspectivas é o próprio sujeito individual, posto que estas paisagens são eventualmente recorridas por agentes que vivem e configuram formações maiores, em parte como resultado de sua própria interpretação e sentido do que estas paisagens têm para oferecer”. “Estas paisagens vêm a ser algo assim como os blocos elementares (dos jogos infantis de montar) com os quais se constroem o que eu gostaria de chamar (ampliando a idéia de Benedict Anderson) os mundos imaginários, ou seja, os múltiplos mundos que são produtos da imaginação historicamente situada de pessoas e grupos dispersos por todo o globo [...]. Um feito fundamental da atualidade é que muitas pessoas do globo vivem em tais mundos imaginários (não somente em comunidades imaginadas), e por isto são capazes de responder, e às vezes até de subverter, os mundos imaginários produzidos pela mentalidade oficial e pela mentalidade empresarial que os rodeia” (APPADURAI, 2001: 08-09, tradução nossa). 12 A festa foi extraída de seu contexto para fins comparativos, não sendo possível caracterizar a complexidade dos ambientes ciberculturais como um todo, apenas a partir desse único exemplo. Outras festas, mais amplamente divulgadas e organizadas na forma de festivais, podem sinalizar exemplos até mais completos da diversidade de comportamentos humanos na cibercultura. Para esta pesquisa, a leitura do fenômeno rave é de fato, arbitrária, pois serve apenas como uma metáfora metodológica para o estudo de estados alterados de consciência para o trabalho do ator. 13 Em sua grande maioria estas festas se dirigem a jovens entre os 20 e os 35 anos. O valor gasto em uma festa dessas pode variar entre R$ 50, 00 - preço médio dos ingressos, até R$ 500,00 – com bebidas, comidas estacionamento, gasolina, e as drogas consumidas, em geral a maconha, cocaína, êxtase e LSD principalmente, sendo os dois últimos os mais usados. Cálculo médio baseado em 14 horas de festa. Evidentemente a cibercultura se estende muito além da fronteira econômica, embora não possamos deixar

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distintas com relação aos acontecimentos do evento como fenômeno imediato, calcadas

em distintas formas de representarem a si mesmas em suas relações com o meio.

Diferenças apresentadas no modo como se vestem, andam, pelos diferentes modos

como organizam seus discursos verbais e não verbais. Pelas maneiras profundas como

se descortinam suas intenções e desejos, pelas maneiras com as quais sustentam seus

comportamentos. Por sua vez, são comportamentos definidos por suas funções no

ambiente, definidos por questões sociais, de poder aquisitivo, de poder de consumo, de

compra e venda dos mesmos discursos corporais alimentados pelo imaginário capitalista

midiatizado.

Os garçons de uma festa dessas, ou os seguranças, enfim o pessoal responsável

pelo bastidor, pela realização do evento, é obrigado a manter o foco na eficiência, sendo

que o público tem o foco no discurso sobre si. A eficiência destes discursos está também

na própria construção do discurso.

O plano dos garçons, e seus focos no plano da funcionalidade referente ao real14,

sustentam a possibilidade do imaginário aparecer, mas o que, de fato, torna-o existente é

a pré-concepção de um estado corporal, cujo foco está no próprio imaginário capitalista.

Porque este corpo já está pronto na mídia, na televisão, nas revistas, no cinema, nos

meios de comunicação de massa e incutido no hábito da população.

O “parecer autêntico” é o fator estimulante e propulsor, sendo justamente o que

valida a eficiência de tais discursos. A eficiência de cada um está sujeita ao nível de

de lado o fato de que o consumo de tecnologia é relativo ao poder de consumo das populações, como é o consumo de qualquer outro bem no mundo capitalista. A questão econômica, no caso da cibercultura, por exemplo, gera a proliferação de metáforas associadas à periferia das cidades como a metáfora, “cibermano”. No entanto, essas fronteiras e nomenclaturas não são de todo precisas, do ponto de vista científico, já que a identificação ideológica e comportamental transpassa as barreiras das construções e delimitações de bairros e guetos. 14 O conceito de “real”, é evidentemente, um problema filosófico que certamente ultrapassa as fronteiras de nosso objeto, embora estabeleça com ele fortes ligações ontológicas, assim como o conceito de mímese. Abordaremos mais adiante, algumas noções de tempo e espaço que caracterizam transformações substanciais na noção de “real”, provocadas pela história das tecnologias e das artes e que motivam esta pesquisa. Por hora usamos o conceito de “real” partindo da noção mais aceita como o espaço/tempo onde podemos compartilhar ações e informações: realidade objetiva, mensurável, mundo fenomênico – noção de real fortemente associada ao senso comum de realidade, portanto associada também à “definição das coisas, e não de seus nomes” (ABBAGNANO, 2000: 831). Essa noção de real traz um sentido dualista da experiência do corpo no mundo, diferenciando a existência da coisa em si, da existência da mente, responsável por criar os nomes das coisas. Ela marca, portanto, de modo razoável a definição de “real” aceita pelo senso comum, definição que será posta em discussão na medida em que esta pesquisa avançará.

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12

espontaneidade com que são construídos tais discursos, fazendo-os parecer parte do

plano do real.

O discurso corporal das pessoas que são responsáveis pela estruturação do

evento foi comentado na introdução, e aqui se tratará do comportamento dos que estão

na festa na qualidade de público, baseando-se na hipótese do corposintético, um

conceito que também pode dizer respeito ao corpo do intérprete no teatro dos dias

atuais.

Assim como se optou em falar de Grotowski e não de Artaud, para o estudo de

estados alterados de consciência para o ator. Talvez, Artaud fosse uma teoria de base

ainda melhor para relacionar o teatro e o uso de substâncias psicoativas, em razão de

suas incursões ao universo dos Taraumaras, ou Rarámuris, no México. Além disso, sua

concepção de “corpo sem órgãos”, sua intensa vida transtornada em hospitais

psiquiátricos onde eram comuns o tratamento via eletrochoque e fortes substâncias

químicas contribuem com a intenção de colocar em cheque o sentido ocidental de

espiritualidade e de Deus. Esse desafio estético se reflete em suas propostas de

transformação em todo o teatro baseado na linguagem verbal e de tradição francesa e

aristotélica. Assim, Artaud propõe um ataque aos sentidos do espectador incluindo

propositadamente as tecnologias, de um modo muito diferente de Grotowski. Para

Artaud, a relação entre público e obra se dá também pela relação espetacular da

encenação, enquanto Grotowski busca redefinir tecnicamente o trabalho do ator em

razão da precisão por trás do contato entre ator e público. Através do Living Theatre, o

Brasil foi fortemente influenciado por suas idéias que tiveram no Teatro Oficina, ao

longo da década de 1970, campo fértil de criação artística. Muito embora, antes disso,

por volta de 1971, o Teatro Oficina tenha traduzido do italiano a apostila sobre o

trabalho de Grotowski, escrita por Barba “Em busca de um Teatro Perdido”. Mais tarde,

depois de revisões feitas pelo próprio Grotowski e por Barba, essa apostila deu origem

ao clássico “Em busca do Teatro Pobre”. O teatro Oficina, nesta fase, parece ter

encontrado nas propostas de Grotowski o impulso para se embrenhar em uma intensa

jornada investigativa, de treinamento e criação artística durante 12 horas por dia,

incluindo “aulas de lutas, caratê, capoeira e psicofísica em geral”. Grotowski, dessa

forma, ofereceu ao Teatro Oficina, sua visão de que os personagens deveriam ser “uma

espécie de bisturi para o ator ao se autopenetrar, se conhecer como homem” (SILVA,

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13

1981: 67-76). A escolha feita por esta pesquisa em se trabalhar com Grotowski respeita

a noção de sua proposição de uma “técnica de transe” na busca de um teatro baseado no

ator em oposição ao teatro tecnologizado. Tratar-se-á aqui da possibilidade em se falar

em alteração de consciência em ambientes com altos índices de tecnologia, como uma

maneira de superação de diversos tipos de dualidades por trás dos discursos sobre o

trabalho do ator. Os paralelos entre estes dois impressionantes artistas seriam muitos, de

modo a comporem assunto para estudo específico.

1.2.1 Luminescências15

“Agora somos conscientes de que, com a chegada desses meios de comunicação, cada vez mais que nos sentimos tentados a falar da aldeia global, devemos recordar que os meios de comunicação de massas produzem comunidades ‘sem sentido de lugar’ (MEYROWITZ, 1995). O mundo em que hoje vivemos se nos apresenta rizonômico (DELEUZE y GUATTARI, 1985) e até esquizofrênico, e reclama, por um lado, novas teorias sobre o desenraizamento, a alienação e a distância psicológica entre os indivíduos e grupos, e, por outro, fantasias (ou pesadelos) de proximidade eletrônica. Aqui já cercamos a problemática central dos processos culturais no mundo atual” (APPADURAI, 2001: 03, tradução nossa) 16.

De fato, parece ser esta a questão que persiste hoje, aquém das referências de

sujeito no mundo, em que a tecnologia encontra-se praticamente em todos os setores de

produção de bens, informações, políticas, educações, artes, corpos e linguagens.

Inúmeros autores de peso já discutem estas problemáticas de “desarraigo” há mais de

meio século, e a cada leitura uma procura diferente por encontrar instrumentos teóricos

e epistemológicos mais adequados às noções como comunidade, de consciência e

presença (ARAÚJO, 2005: 23-112).

15 Luminescências: “Todos os termos estão relacionados com a produção de luz por substâncias químicas. A Fluorescência é uma forma de fotoluminescência em que a emissão de luz desaparece tão logo cessa a absorção da radiação excitadora. Fosforescência é semelhante à fluorescência sendo que o produto excitado é mais estável, de forma a demorar mais tempo (de um microsegundo até minutos) até que a energia seja liberada totalmente... Quimioluminescência é um termo geral para produção de luz quando a energia de excitação é proveniente de uma reação química (ao invés da absorção de fótons, em fluorescência). Bioluminescência é a denominação de um fenômeno de quimioluminescência onde a reação química é realizada em um organismo, como o vaga-lume, por exemplo”.Disponível em: <http://www.ucs.br/ccet/defq/naeq/material_didatico/textos_interativos_26.htm> Acesso: agosto de 2007. 16“Ahora somos conscientes de que, con la llegada de estos medios de comunicación, cada vez que nos sentimos tentados a hablar de la aldea global, debemos recordar que los medios de comunicación de masas producen comunidades ‘sin sentido de lugar’ (Meyrowitz 1985). El mundo en que hoy vivimos se nos presenta rizómico (Deleuze y Guattari 1987) y hasta esquizofrénico, y reclama, por un lado, nuevas teorías sobre el desarraigo, la alienación y la distancia psicológica entre individuos y grupos, y, por otro, fantasías (o pesadillas) de proximidad electrónica. Aquí ya nos vamos acercando a la problemática central de los procesos culturales en el mundo actual”. Disponível em: <http://www.cholonautas.edu.pe/modulo/upload/A%20Appaduraicap2.pdf > Acesso em: abril de 2006.

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Não obstante o falar trivial sobre realidade virtual, vídeoconferências, implantes

e próteses corporais ter se tornado comum em determinados segmentos sociais, como

bancos, internet e na própria televisão. Intelectuais, cientistas, artistas e pensadores de

diversas áreas debatem seus esforços para encontrar noções conceituais mais

amplamente aceitas e mais condizentes com as experiências cotidianas de imbricação

entre o homem e a tecnologia.

A noção de que os processos industriais de produção de bens e informações

iniciaram certa ruptura entre o homem e a natureza já é comum e pressuposto para

inúmeras pesquisas.

Todavia, deve-se lembrar, como sugeriu McLuhan (1972), que a tecnologia pode

ser um conceito mais amplo do que uma máquina de processamento e transformação do

natural para o fabricado. A importância desse entendimento está vinculada à

possibilidade de abandonar as dicotomias, que parecem ter sido reforçadas pelo próprio

processo de industrialização e secularização do mundo.

Pertencem hoje ao nosso imaginário, os cruzamentos entre homem e máquina

explorados intensamente pelo cinema norte-americano há mais de trinta anos, por

exemplo a memorável obra de Fritz Lang (1890–1976)17, Metrópolis (1926) e tantos

outros filmes produzidos no início do século XX que expressam a preocupação com a

relação entre criador e criatura. Essa temática já estava presente no mito grego de

Dédalo e Ícaro18. Dédalo alcança a liberdade do céu com o vôo tecnologizado, mediado

por asas de penas e ceras. É a liberdade que surge em razão do domínio humano sobre a

natureza, ilusão estraçalhada pelo vertiginoso mergulho do próprio Ícaro no mar, após o

derretimento da cera na luz do sol.

Nossa cultura ocidental, nos últimos séculos, criou metáforas poderosas da

imagem de liberdade enfatizando esta relação homem-máquina, ocupando instâncias do

imaginário que tendem a embaçar as referências de poder, de indivíduo e coletivo.

Tecnologias digitais que se assemelham aos processos cognitivos do corpo geram outras

noções de realidade e, por conseqüência, outras noções de liberdade e coerção

(ARAÚJO, 2005: 23-40).

17 < http://www.arqnet.pt/portal/biografias/fritz_lang.html> Acesso em: agosto de 2007. 18 CIVITA, Victor. Mitologia. Abril S.A.Cultural e Industrial, São Paulo, 1973.

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Ou como nas palavras de Appadurai:

“A imagem, o imaginado, o imaginário: estas são terminologias que apontam algo verdadeiramente crítico e novo nos processos culturais globais: me refiro à imaginação como prática social. Já não estaríamos falando nem de mera fantasia (ópio das massas cujo trabalho real se passaria em outra parte) nem de um simples escape (de um mundo definido, sobretudo por propósitos e estruturas mais concretas) nem de um passatempo de elite (irrelevante em relação à vida da gente comum) nem de mera contemplação (irrelevante em relação às novas formas de desejo e de subjetividade). A imaginação se tornou um campo organizado de práticas sociais, uma forma de trabalho (tanto no sentido de realizar uma tarefa produtiva, transformadora, quanto no sentido de ser uma prática culturalmente organizada), e uma forma de negociação entre posições de agentes (indivíduos) e espectros de possibilidades globalmente definidos. Este dar rédeas soltas à imaginação conecta o jogo de composição (em certos cenários) o terror e a coerção proveniente dos Estados e seus competidores. Agora, a imaginação é central a todas as formas de agenciamento, é um acontecimento social em si mesmo e é o componente fundamental da nova ordem global”19 (APPADURAI, 2001: 06, tradução nossa).

Como representantes de uma sociedade imersa nessas transformações, os jovens

do Brasil contemporâneo freqüentadores destas festas “raves”, assim como os jovens

atores, talvez estejam vivendo uma espécie de “esquizofrenia contemporânea”, como

sugeriu McLuhan (1969: 45), referindo-se a um sintoma da transformação perceptiva do

corpo no espaço [...] “que pode ser conseqüência inevitável da alfabetização”.

Em 1969, McLuhan chamava a atenção para os traços sociais da cultura norte-

americana da época, para a angústia detectada nas gerações de jovens, através de

sintomas como a evasão escolar, revoluções, guerras civis, imputando a

responsabilidade na inadequação metodológica da educação e na inadequação da

percepção humana com relação ao mundo que ela mesma criou, dizendo: “A nossa

‘Idade da Angústia’ é, em grande parte, o resultado de se tentar cumprir as tarefas de

hoje com as ferramentas de ontem – com os conceitos de ontem” (McLUHAN, 1969: 19“La imagen, lo imaginado, el imaginario: estos son términos que apuntan hacia algo verdaderamente crítico y nuevo en los procesos culturales globales: me refiero a la imaginación como práctica social. Ya no estaríamos hablando ni de mera fantasía (opio de las masas cuyo trabajo real se hallaría en otra parte) ni de un simple escape (de un mundo definido, sobre todo por propósitos y estructuras más concretas) ni de un pasatiempo de élite (irrelevante en relación con la vida de la gente común) ni de mera contemplación (irrelevante en relación con las nuevas formas del deseo y la subjetividad). La imaginación se volvió un campo organizado de prácticas sociales, una forma de trabajo (tanto en el sentido de realizar una tarea productiva, transformadora, como en el hecho de ser una práctica culturalmente organizada), y una forma de negociación entre posiciones de agencia (individuos) y espectros de posibilidades globalmente definidos. Este dar rienda suelta a la imaginación conecta el juego del pastiche (en ciertos escenarios) el terror y la coerción proveniente de los Estados y sus competidores. Ahora, la imaginación es central a todas las formas de agencia, es un hecho social en sí mismo y es el componente fundamental del nuevo orden global”. Disponível em: <http://www.cholonautas.edu.pe/modulo/upload/A%20Appaduraicap2.pdf> Acesso em: abril de 2006.

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36-37). No caso dos atores, a opinião de McLuhan adequada à complexidade do objeto

em foco pode funcionar como uma justificativa plausível para esta pesquisa, como será

visto ao longo do trabalho.

Para o autor, qualquer extensão do humano na lida com o ambiente pode ser

considerada como uma tecnologia. Assim, a palavra escrita entendida como tal, auxilia

os agrupamentos humanos a se organizarem em níveis de complexidade cada vez

maiores. Para o autor, paradoxalmente, esta “Idade da Angústia” iniciou-se na

transposição da oralidade para a palavra escrita, provocando o deslocamento da

percepção do organismo em relação ao mundo, do plano da oralidade e da escuta sonora

para o plano visual (McLUHAN, 1969).

Segundo o autor, antes da palavra escrita, o sentido da experiência humana no

meio ambiente era da ordem mítica, pois se tratava de uma experiência cuja imersão era

total. A escuta sonora, auditiva, provoca uma localização espacial diferente da

percepção visual. Vindos os sons por todos os lados, o corpo humano concebe espaço e

a sua própria história dentro dele, como algo multidimensional, da ordem dos sonhos.

Mas a palavra escrita como percepção da visualidade leva a informação para a ordem da

linearidade espacial convergente com o desenvolvimento do pensamento lógico

(McLUHAN, 1969).

Vale a pena lembrar dos autores que discutem a performance do corpo como

contato e fisicalidade, inclusive com a palavra escrita (através do livro e sua

materialidade como objeto tangível, por exemplo). Esse é o caso de Paul Zumthor, que

afirma que a “reação mais natural do corpo à leitura é a dança”. (ZUMTHOR, 2000:

38). McLuhan nos permite ver uma retomada da experiência mítica do organismo no

espaço da Artemídia, na medida em que para ele o mito “é a contração ou implosão de

qualquer processo e a velocidade instantânea da eletricidade confere dimensões míticas

às ações industriais e sociais comuns de hoje" (McLUHAN, 1969: 23). O homem

experimenta hoje um fluxo constante de informações que se proliferam de modo viral

em razão de tecnologias não-mecânicas20. A noção de informação passou a ser a própria

20 Aqui este termo é utilizado referindo-se aos diversos níveis de hibridação tecnológica que transcendem as tecnologias eletrônicas a que McLuhan se referia em sua época. São, portanto, “não-mecânicas” as tecnologias digitais, nanotecnologias e biotecnologias e principalmente tecnologia como processo, como teorias, por exemplo, que estão provocando grandes transformações não somente nos meios de produção das sociedades, mas também nos entendimentos de valores ontológicos como tempo, espaço, corpo,

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imagem da luz elétrica: “a luz elétrica é informação em estado puro”. (McLUHAN,

1972: 19, grifo nosso).

Por outro lado, a dispersão da informação como luz elétrica pelos ambientes

passou a criar espaços de sombras mais definidas, na medida em que radicalizou as

demarcações dos domínios tecnológicos no sentido de suas produções econômicas, de

conhecimento e educação. Significam, assim, diferentes tipos de acesso ao

desenvolvimento de outras tecnologias decorrentes do processo de industrialização.

Essa diferença de acesso é também, sobretudo, uma marca da ação das mídias nos

corpos, já que associada aos sinais sonoros, a luz cria desdobramentos de significações

associadas ao nível da primeiridade pierceana, ativando níveis de maior complexidade

no sistema háptico do organismo humano (MARÍN, 2005)21, podendo criar

envolvimento em profundidade (McLUHAN, 1972: 19). Isso demonstra que as

transformações ocorrem nos níveis perceptivos dos corpos nos ambientes exigindo o

desenvolvimento de novas habilidades para a vida nas sociedades do século XXI.

Há uma escolha, nesta pesquisa, em se analisar o fenômeno central da alteração

de consciência para o ator tomando como ponto de partida a emergência da mente do

substrato biológico, como propõem os autores presentes na bibliografia. Isso implica

transitar por áreas de conhecimento que não são comuns à formação do ator como, por

exemplo, a área das ciências cognitivas, que certamente significa um risco

teórico/prático a ser enfrentado. Em 1997, os físicos Alan Sokal, professor da New York

University, EUA, e Jean Brickmont, da Université Catholique de Louvain, Bélgica,

lançaram um livro intitulado “Imposturas Intelectuais” (publicado primeiramente na

França, sob o titulo “Impostures Intellectuelles”, em 1997, e em 1998, nos E.U.A. sob o

título “Fashionable Nonsense”), baseado na polêmica surgida por um artigo escrito por

sujeito e realidade. Associado a esta visão não-mecânica de máquina aproxima-se o conceito de “máquinas sociais” pelo viés de Deleuze e Guattari, que, apesar de gerar questões ainda em aberto, possibilitam o entendimento de máquina - e corpo, como produtor e organizador e fluxos de informações. (apud ARAÚJO, 2005: 154-158.). 21 O conceito de primeiridade pierceana reflete o processo de contaminação das características físicas entre os signos e os organismos, onde as informações se dão em modo de impressões, sensações, impulsos pré-conscientes. Muito associada aos processos educacionais e criativos e à constituição de uma memória icônica do corpo que ocorre em níveis profundos das percepções corporais, regidas principalmente pelo chamado cérebro reptiliano, na conceituação de MacLean. Esta área do cérebro constitui o sistema háptico do corpo, responsável pela homeostase (ou homeodinâmica): regulação dos órgãos, glândulas e funções outras que mantém o equilíbrio interno do corpo. Estas informações serão analisadas com outros níveis de profundidade na medida em que se tratar do problema da consciência. Marín trata da relação entre os níveis perceptivos do corpo humano, relacionando-os com as teorias de Charles Sanders Pierce, nos processos de criação artística, durante toda sua dissertação de mestrado.

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Sokal na revista científica “Social Text”. O artigo de Sokal, “Transgredir as fronteiras:

em direção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica”, cujo título é

uma boa metáfora para o próprio objeto a que se propõe denunciar: uma crítica ácida a

diversos cientistas, entre eles, Jacques Derrida, Gilles Delleuze, Félix Guatarri, Jacques

Lacan, Jean-François Lyotard, Michel Serres e Paul Virilio, que são considerados

pilares do pensamento conhecido como “pós-moderno” ou “pós-estruturalista”. O

artigo, escrito em forma de elocubrações pseudo-científicas, foi uma maneira de

provocar a discussão em torno de uma prática comum entre esses autores: a utilização

de conceitos advindos das chamadas “ciências duras”, mais especificamente da

matemática e da física, para explicar fenômenos pertencentes às ciências humanas. Os

próprios autores criticados pelo artigo e pelo livro não se autodenominam “pós-

modernos” e, no entanto, segundo a crítica de Sokal e Bricmont, parecem compartilhar

desse método para construir seus discursos científicos – método que torna a ciência uma

leitura difícil que, por muitas vezes, além de não resultar em nenhuma explicação

baseada em dados científicos sobre os fenômenos a que se propõe analisar, não traduz a

complexidade dos conceitos migrados de outras áreas. (SANTOS, 2000) Disponível em:

<http://www.if.ufrgs.br/~cas/res_jul2000.html> Já Patrícia Churchland (2002) propõe

outra estratégia epistemológica, quando sugere que o fenômeno mente-corpo, devido à

sua complexidade e a dualidade a que está submetido por entendimentos tradicionais da

ciência, deva submeter-se à redução epistemológica para ser estudado. Isto significa a

necessidade de se entender a mente como uma emergência do sistema biológico, no

cruzamento entre natureza e cultura, ou seja, a mente não pode ter outra natureza, se não

o próprio sistema sensório-motor do organismo. Assim, a presente pesquisa busca

fundamentos nas ciências naturais que sustentam e dão origem a leis e comportamentos

humanos, signifiando o compartilhar de uma mesma realidade que se agrega e se

extende em níveis de complexidades.

Através de refletores computadorizados, de gigantescas projeções

cinematográficas, a enorme proporção e potência dos equipamentos de som, o corpo e

todas as relações humanas são afetados pela tecnologia e pelo discurso que constroem.

O excesso vence o cansaço: “Os efeitos da tecnologia não ocorrem no nível de opiniões

ou conceitos, mas alteram os índices de sensibilidade ou modos de percepção

rapidamente e sem qualquer resistência” (McLUHAN, 1969: 21).

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As tecnologias penetram no vivo recuperando uma habilidade perdida por lesão,

ampliam e criam novas condições de percepção da realidade e, dessa forma, esgarçam a

fronteira entre o dentro e o fora do corpo, de modo que a noção de localidade se

desconfigura, “dada a indistinção característica da experiência que abstrai a noção

cartesiana de espaço real” (ARAÚJO, 2005: 31-32). E aqui se amplia a noção de

experiências para ambientes midiatizados ou altamente tecnologizados.

O resultado do desarraigo, da não-localidade, da perspectiva de trespasse de

fronteiras temporais, pode ser sentido no corpo através do estreitamento com situações

alucinatórias, oníricas, místico-religiosas e de comunhão com dimensões da realidade

perceptiva em que se dão as relações cotidianas. A festa “rave” é um exemplo-metáfora

de como esse fenômeno tem se tornado comum e institucionalizado nos discursos que

circulam as propostas de arte psicodélica22 e da cibercultura em torno da tecnologia.

(NASCIMENTO, 2006: 70-89). O discurso aberto e consolidado nesses ambientes

expressa, de maneira clara, as visões de mundo e paradigmas sustentados pela estreita

relação entre homem e tecnologia23, moldando, no presente, nosso imaginário futuro.

Através da utilização de substâncias químicas, cujos processos de fabricação

guardam profundas relações com um saber científico e tecnológico ligado à

manipulação de materiais, drogas como LSD e êxtase são comuns nos festivais de

música eletrônica por causarem transformações fisiológicas no organismo capazes de

provocar alterações de consciência (Ibdem).

Trata-se de uma experiência cada vez mais complexa, de sentimentos e emoções

contraditórias, com paradoxos de percepção produzidos pela desestabilização do sistema

nervoso. A linguagem para descrever na primeira pessoa do singular estas situações

tende a ser altamente metafórica. Entendendo as metáforas como operações cognitivas 22 “O Grupo performático audiovisual procura transmitir seu conceito, através de sons e imagens, utilizando-se de uma estética moderna e psicodélica, buscado a integração entre o orgânico (tambores, didgeridoo, percussão e desenho a mão livre) e o sintético (computadores, sintetizadores, projetores, aerógrafo, tintas e etc)”. Disponível em: <http://www.zuvuya.net/sites/raveon/brasil/artists/ synthethic/synthetic_sapiens.htm> Acesso em: agosto de 2007. 23 “Através da eletrônica e da engenharia genética, os seres humanos serão capazes de aumentar em centenas de vezes o seu potencial de compreensão do universo. Com o auxílio de computadores cada vez mais rápidos em fornecer cálculos e arquivar dados, e humanos mais adaptados geneticamente, um novo tipo de inteligência surge desta simbiose e uma nova aventura pode ter início: viagens espaciais mais longas e até a colonização de outros mundos. Sem dúvida o homo-sapiens-sapiens está prestes a transcender sua forma atual e dar talvez o maior salto em sua evolução nos últimos quarenta mil anos, desde que o primeiro sapiens-sapiens ingeriu um psilocibo e começou sua jornada sintética" (SAPIEN, Synthetic apud NASCIMENTO, 2006: 63).

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fundamentais, os discursos desses ambientes, em sua grande maioria, tendem a se

preservar no interior das metáforas ontológicas como “metáfora de recipiente”, que

traduz o entendimento que as mudanças causadas pelas drogas no organismo podem

mudar o estado de algo que está no interior do corpo: a mente ou o espírito. O corpo

seria um recipiente do espírito que está incorporado nele. Essa metáfora está associada a

diversas outras expressões lingüísticas tratadas por Lakoff e Johnson, como, por

exemplo, as metáforas de espacialização: PARA CIMA – PARA BAIXO, que refletem

a crença que A VIRTUDE É PARA CIMA, MAIS É BOM e MAIS é PARA CIMA,

revelando a crença no progresso: “O futuro será melhor!”, ligadas a metáforas

orientacionais: CENTRO-PERIFERIA, DENTRO-FORA, PERTO-LONGE, assim

como metáforas de entidade e de substância, a MENTE COMO UMA MÁQUINA, a

MENTE COMO OBJETO QUEBRADIÇO. Para o caso do objeto central desta

pesquisa, é interessante notar que os estados também podem ser vistos como

recipientes: “Estou fora de mim!” (LAKOFF & JOHNSON, 2002: 71-85). Em razão

dos estudos feitos por Lakoff e Johnson, a partir dos anos de 1970, a metáfora passa a

ser vista como fundamento da experiência do corpo no mundo, pois a realidade se dá

para o sujeito como realidade representada, e não mais como uma figura de linguagem

desligada do mundo. Estes autores mostraram que a linguagem, inclusive a científica,

necessita usar das metáforas para determinar objetos complexos. A compreensão disso

também justifica a escolha da metáfora CORPOSINTÉTICO, aqui aplicada ao estudo

dos estados alterados de consciência para o trabalho do ator, como uma variação

específica da metáfora conceptual do CORPOMÍDIA (KATZ & GREINER, 2005:

125-133).

Essas substâncias não são encontradas na natureza na forma em que são

consumidas. São substâncias que são sintetizadas em laboratórios.24

O uso de plantas alucinógenas e procedimentos de alteração de consciência

através dos rituais com a intenção de comunicar e acessar o mundo dos deuses, é

comum em diversas culturas, sendo uma pulsão autêntica e de profunda importância

24 Outras substâncias também são consumidas nessas festas, como o álcool, a maconha, a cocaína, anfetamina, clorofórmio e etc.

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para o homem25, dos índios Tukano, do Alto Rio Negro no Brasil, às praias de Goa, na

Índia26.

Essa ligação já denota, ao menos historicamente, o interesse dos participantes

em compartilhar, além do uso de substâncias psicoativas, experiências limítrofes, em

que ontologias sociais são postas à prova por meio de ritos aprovados e partilhados por

toda a comunidade (NASCIMENTO, 2006: 29-30).

O indivíduo como valor isolado, durante os ritos, é elevado a vivências

substancialmente capazes de reorganizar as percepções em favor do coletivo, que se

protege das adversidades do mundo. Cada grupo religioso, portanto, forma-se em torno

dos valores que lhes fazem compartilhar alguma noção de coletivo, mesmo que seja à

margem do sistema religioso, político ou poético aceito como oficial. E os ritos sempre

reforçam esses valores, devolvendo ao indivíduo, novamente, seu valor no grupo,

tirando-o da margem e recolocando-o no centro dos valores sociais conquistados

(BRUMANA & ELDA, 1991)27.

Dessa forma, não nos surpreende encontrar tantos paralelos entre rituais de

transe28 e os festivais descendentes de Goa, espalhados nos materiais de propaganda

dessas festas ou nos depoimentos dos freqüentadores. Como “technobilder” ou

“imagens tecnicistas”, de Flusser (FLUSSER, 1998 apud ARAÚJO, 2005: 113-118), os

cartazes, flyers e panfletos de divulgação, as decorações projetadas em vídeo durante as

25 Para uma discussão mais aprofundada sobre este assunto, ver Journal of Consciousness Studies, volumes 08, 09 e 10. São apresentadas pesquisas em que diversos estados alterados de consciência são investigados. Em especial o artigo de Beny Shanon intitulado “Ayahuasca Visualisations: A Structural Typology”, num, 02, volum. 09, 2002. 26 Essas praias tornaram-se conhecidas por terem sediado as primeiras festas raves, resultantes do cruzamento entre a música eletrônica e os cenários místico-paradisíacos, organizadas pela tradição hyppie-psicodélica de seus freqüentadores nos anos de 1970. Referências diretas e indiretas à Goa, ou à relação homem/natureza paradisíaca pode ser encontrada em diversos materiais de divulgação desses festivais, sendo a escolha do local para a realização dos eventos (praias, fazendas, pedreiras) uma referência direta ao ideal essencialista que percorre submerso o discurso nesses ambientes. 27 Durante todo o livro Marginalia Sagrada (1991), os autores discorrem sobre o valor da relação entre periferia e centro na composição dos ritos em religiões brasileiras como, por exemplo, a Umbanda. Essa noção norteia a composição de práticas mítico-sociais desde as estruturas internas dos espaços sagrados onde são praticados os ritos, até a hierarquia dos indivíduos em relação a outras religiões social, econômica e politicamente dominantes. O status de cada um, e como ele é visto por indivíduos de outros grupos, depende de ações que demonstrem seus esforços em assumir os sacrifícios exigidos por sua religião, o que é interpretado como níveis de aceitação dos códigos internos e, conseqüentemente, de poder em relação a outros membros do grupo (SOSIS, Richards, 2005: 39-42). Para detalhes, ver O valor do ritual religioso, artigo de Richard Sosis em Viver Mente e Cérebro, ano XIII, nº147, 2005. 28 Estes festivais também costumam ser chamados como “festivais de trance”. Trance é o nome dado a um dos muitos estilos de música eletrônica e significa, literalmente, “transe” (NASCIMENTO, 2006: 24).

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festas, ou as estampas das roupas e tatuagens estão profundamente marcadas pela

relação entre homem-máquina-espiritualidade. Segundo Flusser, as imagens e os

gráficos técnicos que discorrem sobre o mundo fenomênico marcam nossa leitura

posterior da experiência da ação. Isso significa que quando nos referimos ao mundo e à

própria experiência, referimo-nos antes às imagens que temos do mundo, do que à

experiência vivida ou a ele próprio, ou seja, a experiência do corpo no mundo é mediada

por esses tenchnobuilders.

Este processo, segundo o autor, caracteriza a intersubjetivação e, no caso dos

participantes da festa, já não podemos mais saber a qual experiência de alteração de

consciência, de espiritualidade, de comunhão coletiva, a qual corpos dançando juntos, a

qual relação entre máquina e homem eles se referem.

Já não se pode afirmar como são divulgados estes conceitos na maioria dos

materiais de propaganda dessas festas, bem como se nesses ambientes encontraremos de

fato essa “essência do homem planetário”, não porque ela tenha se perdido, mas porque,

provavelmente, nunca existiu.

Os transes, rituais, cantos e danças de alteração de consciência são

procedimentos localizados, que dependeram de centenas de milhões de anos para se

tornarem o que parecem ser agora. E se for esticado o nível de observação para o tempo

geológico, perceber-se-á que tais procedimentos ainda se modificam, arrastando e sendo

arrastados por milhares de outros fluxos de informações simultâneos. Não se pode

precisar nem um começo e nem um fim para esses processos, apenas saltos de

complexidade, paralelismos de informações que surgem e desaparecem. Emergências

sem nexo causal imediato e sem intencionalidades aparentes. Fragmentações e

disrupções de estados de consciências coletivas. Desfuncionalizações sistemáticas da

natureza, disfarçadas de códigos coletivos, e funcionalizações agrupadas na forma de

gêneros, em imagens tecnicistas, motivadas por esse processo de intersubjetivação

incessante do qual nos fala Flusser. Antes das ciências, das igrejas, dos cortejos, antes

das cavernas, das palavras, dos sons, dos gestos.

No entanto, quando se olha para estas manifestações rituais, tende-se a usar

lentes que paralisam os objetos no tempo, procurando encontrar ali uma existência

superior e ancestral perdida sob os escombros do passado e separada dos homens de

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agora pelo buraco existencial que muitos julgam ter causado à filosofia e à ciência,

retirando do mundo os deuses e suas canções. Ao descrever dessa forma os objetos,

separa-se a mente do corpo e, geralmente, recai-se em metáforas dualistas que

configuram uma sistemática do poder na linguagem, afastando ainda sujeitos e objetos.

Da mesma forma, quando se aceita a realidade unicamente sob a perspectiva do sujeito,

numa fenomenologia de rigoroso subjetivismo, perde-se a oportunidade de compartilhar

informações preciosas. Não apenas sobre o mundo, mas também sobre o próprio sujeito,

que, assim, fica submetido ao acesso imponderável de si mesmo.

Relutar e procurar caminhos de conciliar essas questões significa aceitar, por

exemplo, que o Brasil é sim um país religioso, místico e sobrenatural. Os dados da

pesquisa do Datafolha, de maio de 2007, mostram que 97% dos brasileiros acreditam

em Deus. Seja lá o que ele for. Isso ultrapassa médias estatísticas, margens de erro e

arredondamentos matemáticos. Isso afirma não a existência de Deus, mas que os

brasileiros se importam com ele. E se importam de um modo diferente dos argelinos,

afegãos, franceses ou norte-americanos, com um sentido de religiosidade marcada pela

saudade, pelo inconformismo dos africanos e pelo silêncio dos índios, pela velocidade

dos árabes, pelo yakisoba na avenida Paulista, pelo churrasquinho na Sé... É um

sentimento de religiosidade preconceituosa e curiosa, pois, ao mesmo tempo em que

57% acreditam que Umbanda é coisa do Demônio, 17% freqüentam diferentes cultos

religiosos ao mesmo tempo, entre eles a própria Umbanda. A pesquisa também aponta

que 92% dos entrevistados acreditam que o Espírito Santo existe, independentemente de

sua religião de origem e o que ela prega oficialmente sobre o assunto.

Por outro lado, nos ambientes das festas, onde os alucinógenos se misturam

intimamente aos processos místico-religiosos, a questão pode parecer mais complexa e,

passados 25 ou 30 anos do aparecimento espontâneo desse cenário, o uso de drogas

pode estar camuflado pelo discurso da tecnologia na criação de uma aparente sociedade

alternativa.

Mesmo porque, se historicamente na parte ocidental do mundo, desde os

românticos, ou mais anteriormente, o uso de drogas está ligado ao profundo

questionamento da sociedade criadora de regras comportamentais que privam o sujeito

de viver sua autenticidade, em 2007, a situação parece ter-se invertido de tal forma que

o próprio Estado como instituição coaduna com organizações de “poderes paralelos” e

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tráfico de drogas, principalmente nos países da América Latina. “Quando imaginamos

estar zombando da ideologia dominante, estamos apenas aumentando seu controle sobre

nós” (ZIZEK, 2003: 90). Por isso aqui cabe a desconfiança. Em sua pesquisa sobre os

festivais de trance, a autora Ana Flávia Nogueira chega a citar o relato de Joana

Coccareli, uma das jornalistas brasileiras mais importantes focadas no assunto,

apontando que apesar das influências de princípios ligados a filosofias orientais e aos

movimentos anarquista, hippie, ecológico, “com todas as implicações ideológicas

inerentes”, há uma “face comercial, que muitas vezes faz tudo parecer uma farsa” (op.

cit., 2003: 61).

O que não se pode negar é, certamente, a pulsão de reencontro, de religare, de

ligar novamente, que é o sentido etimológico da palavra religião. Como em Freud,

Lacan (2005) nos explica que essa pulsão existe em nível do organismo, e recebe o

nome de libido.29 É o sentido de captura, de completude que se busca, de preenchimento

pelo prazer corporal30, e com ele romper com a razão – que é, geralmente, entendida

como oposta à emoção e à sensibilidade. Esse tipo de dualismo é muito associado aos

processos artísticos, aos quais é atribuída maior ou menor tendência de imersão do

sujeito em seu inconsciente, provocada pela tecnologia ou por estados narrativos

decorrentes da fragmentação da tríade aristotélica de tempo, espaço e ação, ou seja,

essas descrições opõem consciente e inconsciente, mente e corpo, humano e máquina,

por basearem suas análise na dicotomia entre Pathos e Logos (ANSPACH, 1998: 130).

Na tentativa de lidar com os dualismos em outra perspectiva, pode-se pensar que

todo organismo precisa resolver um problema que parece permear o desenvolvimento

de toda a vida no planeta: como sobreviver, como permanecer, como durar no ambiente.

Para ter sucesso nessa empreitada, os organismos precisam espalhar seus genes para

produzir a sua descendência e, para isso, traçam estratégias. No caso de nossa sociedade

ocidental, que se desenvolveu com a perspectiva da dominação da natureza pela criação 29 Lacan define libido como o resultado da ausência de identificação entre mundo e sujeito. Essa não compatibilidade movimenta o ser na busca da experiência unificadora. O Eu, através da libido, pulsão de reencontro, necessidade narcísica de espelhamento faz da experiência com o outro um desdobrar de fantasmas na virtualidade imaginativa do inconsciente, buscando incessantemente a reativação de sua relação primeva com a natureza. “Essa tendência à união é, em Freud de um nível organísmico, biológico, como se diz. É um modo de captura dos orifícios principais do corpo”. (LACAN, 2005: 45, grifo nosso). Aqui, a análise não parte da psicanálise, no entanto, como diversas teorias teatrais partem desse referencial teórico, não foi possível deixar ao menos, de citá-lo. 30 Ver Anexo H – Vídeo de uma jovem se masturbando na pista de dança de uma festa rave. Vídeo amador removido do youtube e de diversos locais da Internet por violação dos termos de uso. Acesso em maio de 2007.

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de tecnologias (não como objetos e máquinas, mas, sobretudo, como “imagens

tecnicistas”), essas estratégias estão intimamente associadas a comportamentos que

denotem um eficiente “domínio de si mesmo”.

“Nas identificações com suas formas imaginárias, o homem julga reconhecer o princípio de sua unidade sob a aparência de um domínio de si mesmo, da qual ele é o tolo necessário, seja ou não ela ilusória, pois essa imagem de si mesmo não o contém em nada”. (LACAN, 2005: 35, grifo nosso).

Essa “aparência” é em si mesma expressão da dualidade entre mente e corpo,

entre racional e irracional, consciente e inconsciente. É uma metáfora comportamental

que denota a intenção de controlar o incontrolável, ou de se descontrolar o controle.

Metáfora dualista que deixa de perceber que estes âmbitos de existência não se anulam

ou se aniquilam, mas são dinamicamente co-existentes em suas fronteiras inexistentes.

Uns grupos parecem dizer: “Vejam como controlo a natureza, como sou tecnologizado,

como pertenço ao futuro!” E outros parecem dizer: “Vejam como sou ancestral, como

sou essencial, primitivo, como pertenço à natureza divina das coisas, como sou mais que

a realidade mundana...”.

Tanto o público quanto os responsáveis pelo evento constroem seus discursos

sob a crença de que controlam as suas ações no mundo quando, na verdade, dominam

apenas as técnicas de construção do discurso. Para a eficiência do discurso dos

responsáveis pelo evento, é preciso que sejam visíveis no corpo códigos como: a

potência da masculinidade física, a selvageria e a malícia do olhar, a decisão de quem

sabe a que veio e, acima de tudo, a capacidade de veicular uma onipresença de alguma

instituição invisível gerando a sensação de que eles sempre estão vigilantes e cientes do

que você pode vir a fazer. Dizem não ligar, mas te miram pelo canto dos olhos.

No corpo do público, são imprescindíveis sinais de jovialidade, o vigor sexual,

as formas bem equilibradas e torneadas dos sexos, a simetria impecável das roupas bem

projetadas, a limpeza asséptica de um corpo que nunca entrará em decomposição e,

sobretudo, a sensação de que as pessoas existem realmente daquele modo, mesmo fora

dali. Essa “aparência de domínio sobre si mesmo” é, na verdade, uma imagem sintética

de si mesmo e deve parecer inata ao corpo, tornando-o um corposintético.

Não é o discurso desenraizado de lugar que fala através do corpo assumindo-o,

possuindo-o, mas o corpo que se comporta assumindo o discurso para si. O corpo

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constrói, no espaço intersubjetivo da festa, gestos, olhares, movimentos, frases inteiras

com os códigos das imagens tecnicistas advindas da mídia de massa e do imaginário que

ela produz, definindo, de modo arbitrário quem é, e quem não é, um “mochileiro

planetário” – como costumam ser chamados os freqüentadores dos festivais psicodélicos

e os adeptos da cultura da música eletrônica. E assim, abre novamente espaço para a

criação de novos discursos que reforçam os comportamentos nascidos da ação da mídia.

“O psychedelic transe é o som característico da cibercultura, pois seu desenvolvimento e expansão são frutos da revolução tecnológica, que possui novas formas de criar música, de manipulá-la e também de ouvi-la. Atualmente, a música eletrônica engloba um movimento social, com seu grupo líder – a juventude metropilitana escolarizada, principalmente de classe média alta – e com os temas: interconexão, criação de comunidades virtuais e inteligência coletiva como suas aspirações correntes ligadas à emergência do ciberespaço. Esse estilo musical alternativo, disponibilizado na rede, está simultaneamente relacionado com outros tipos de conhecimento – arte multimídia, arte psicodélica e visionária, substâncias psicodélicas, xamanismo, terapias corporais, calendário maia etc. -, os quais interligam arte, ciência, cultura e espiritualidade” (NASCIMENTO, 2006: 64).

O corpo se constitui pelo uso arbitrário, consciente ou inconsciente, dos códigos

discursivos. O corpo, no fundo, sempre fala de si mesmo, ou melhor, daquilo que está

sendo em cada momento/situação de sua vida. Está se formado por imagens tecnicistas

que pululam em seu imaginário, é disso que ele fala quando busca assumir o

comportamento mais próximo possível das imagens que consome.

É a esse corpo que se apresenta “como manda o figurino” que aqui denomina-se

de corposintético, como metáfora de todos nós na busca de algumas supostas re-

ligações, quando não nos damos conta de que compartilhamos simultaneamente, tanto

as transitórias impressões de realidade, no sentido das dobras deleuzianas31, quanto à

linearidade do espaço-tempo aristotélico. Mas é preciso observar que as próprias

intersubjetivações podem significar um reforço aos dogmas já institucionalizados e, ao

invés de libertarem e religarem como prometem essas imagens tecnicistas, apenas

tornam a aprisionar o corpo no dualismo que tentam combater com seus discursos.

31 Lúcia Santaella usa desse conceito em seu livro Corpo e comunicação: sintoma da cultura, para discutir o corpo nos trânsitos conceituais deste começo de século XXI. Negociamos com essa abordagem na apresentação da idéia de corposintético apenas para fins de estabelecer parâmetros críticos para o desdobramento do trabalho do ator nos próximos capítulos desta dissertação, já que nossa abordagem central é feita sob o viés das ciências cognitivas, principalmente com base no conceito corpomídia (KATZ & GREINER, 2005: 125-133).

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Se McLuhan afirma que o meio é a mensagem, e no caso das raves é o corpo

que se torna mensagem (e meio), pela maneira como constrói o discurso sobre si

mesmo, então a sexualidade, a libido e o desejo pelo outro se tornam o desejo de possuir

e fagocitar a própria mensagem/meio. É a antropofagia da mensagem. Pode-se brincar

de chamá-la de “antropofamídia” espiritual, entendendo-a como sendo a concretização

de um processo de “biomediunismo”.

Isso sucede sempre que o corpo consome imagens sintetizadas pela mídia, que

dizem como ele deve ser, tornando-se sintético e podendo ser consumido e devorado por

outros corposintéticos, por terem se tornado, eles próprios, “corporificações tecnicistas”.

Replicação constante de si mesmo pela fome de novos sintéticos: a intencionalidade de

Dennett expressa pelo estado assumido pelo corpo32. Daniel Dennett diz que uma das

características da consciência é ter intencionalidade. Richard Dawkins sugere a idéia de

memes33, ou seja, fragmentos, “pedaços” de informações, idéias, músicas, cantos e etc.,

disseminando-se pelos corpos qual estruturas genéticas sobrevivendo e proliferando

sentidos.

A idéia de meme foi lançada em O Gene Egoísta (1976, op. cit. 222). Trata-se de

um conceito análogo ao de gene, mas vinculado à ação das informações com capacidade

de auto-replicação. Em busca de um nome para esse novo tipo de replicador, Dawkins

escreve que meme significa basicamente [...] “uma unidade de transmissão cultural, ou uma unidade de imitação. ‘Mimeme’ provém de uma raiz grega adequada, mas quero um monossílabo que soe como ‘gene’. Espero que meus amigos helenistas me perdoem se eu abreviar mimeme para meme. Se servir de consolo, pode-se, alternativamente, pensar que a palavra está relacionada à ‘memória’, ou à palavra francesa même” (DAWKINS, 2001: 214).

32 O modelo de consciência proposto por Daniel Dennett e seu conceito de intencionalidade estão apresentados no terceiro capítulo. Basicamente a intencionalidade é característica de ações preditivas da natureza. Exemplo, há uma intencionalidade, no projeto do corpo humano, expressa na presença dos olhos na parte da frente do crânio, já que o corpo humano é um corpo de predador e deve perseguir suas presas. É característica dos seres vivos apresentarem intencionalidade, embora sistemas não-vivos complexos também possam. A intencionalidade está também na ação de compreender o outro e suas ações, bem como o objeto, como objeto intencional. 33 “A transmissão cultural é análoga à transmissão genética, no sentido de que embora seja basicamente conservadora, pode originar um tipo de evolução” (DAWKINS, 2001: 211) A teoria dos memes foi pensada por Clinton Richard Dawkins (1941), etologista nascido em Nairobi, no Quênia, biólogo evolucionista e divulgador da ciência que, através de seu livro O Gene Egoísta (1976), tornou conhecido do grande público o entendimento central do papel dos genes na evolução.

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A memética tornou-se uma área da ciência que estuda esta possibilidade. Segundo

Steven Pinker, “Richard Dawkins mostrou que um bom modo de compreender a lógica da seleção natural é imaginar que os genes são agentes com motivos egoístas [...] Os genes têm motivos metafóricos – fazer cópias de si mesmos – e os organismos que eles estruturam têm motivos reais. Mas não são os mesmos motivos. Às vezes a coisa mais egoísta que um gene pode fazer é instalar motivos altruístas em um cérebro humano – desprendimento sincero, puro, profundo” (PINKER, 2004: 265A).

Pinker crê que o senso comum científico, quando combina equivocadamente as

estruturas propostas por Freud sobre o recalque e suas influências na vida íntima e

privada da mente, ao entendimento equivocado de que os genes são um “tipo de

essência ou cerne da pessoa”, gera um panorama em que os “motivos metafóricos dos

genes são os motivos profundos, inconscientes, inconfessados da pessoa. Isso é um

erro” (PINKER, 2004: 265-266 B).

Basicamente a idéia de meme para a evolução da cultura significa que as

informações como idéias, melodias, histórias, “pedaços de cultura” disseminam-se de

cérebro para cérebro e às vezes sofrem mutações durante esse processo. As novas

características adquiridas pelas informações as tornam com maior probabilidade de

serem retidas e retransmitidas, por serem mais fáceis de serem lembradas, mais

sedutoras, engraçadas ou irrefutáveis. Os memes mais adaptados à difusão se tornarão

mais abundantes no estoque de memes das populações. “Observe que estamos falando

de idéias evoluírem para tornarem-se mais difusíveis, não de pessoas evoluindo para

tornarem-se mais instruídas” (PINKER, 2004: 224). Pinker vê a questão dos memes

com certo receio, pois entende que a evolução cultural não funciona dessa forma, já que

um “meme complexo não surge da retenção de erros de cópia”, pois a mente está

adaptada para recriar informações e não apenas replicar.

Segundo Pinker, a replicação retém o conceito de que as idéias evoluem sob a

perspectiva de aleatoriedades, erros tipográficos, equívocos de interpretação e não em

razão da especialização do cérebro e da criatividade em focar mudanças propositais nos

padrões existentes. Mas Dawkins propõe que os memes são transmitidos justamente por

meio das interpretações e não da cópia fidedigna da matriz: “Parece que a transmissão

dos memes está sujeita à mutação contínua e também à mistura” (DAWKINS, 1976:

217). E, neste sentido, Pinker acrescenta acertadamente que a metáfora de Dawkins se

refere mais a um processo epidemiológico do que evolutivo, em termos técnicos: “idéias

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como doenças contagiosas que causam epidemias e não como genes vantajosos que

causam adaptações. Eles explicam como as idéias tornam-se populares, mas não de

onde elas vêm” (PINKER, 2004: 226). Para este projeto, a idéia dos memes, ainda como

uma analogia de contágio, ajuda a tornar palpável, por exemplo, os motivos pelos quais

alguns technobuilders podem se transformar em outros com características distintas,

como a relação entre histórias mitológicas e os rituais que as encenam e as recriam, ou

vice e versa.

Helena Katz e Christine Greiner definem o conceito de corpomídia, como corpos

que são estados do que assumem ser34. Segundo a Teoria do Corpomídia, “as relações

entre corpo e ambiente se dão por processos co-evolutivos que produzem uma rede de

predisposições perceptuais, motoras, de aprendizado e emocionais” [...] criando taxas de

permanência de informações nos corpos que garantem a sobrevivência e a unidade do

organismo imerso às transformações do meio35 (KATZ & GREINER, 2005: 130) Essa

co-adaptação acontece fundamentalmente no fluxo ininterrupto de informações entre

corpo e meio em uma negociação em trânsito.

“Capturadas pelo nosso processo perceptivo, que as reconstrói com as perdas habituais a qualquer processo de transmissão, tais informações passam a fazer parte do corpo de uma maneira bastante singular: são transformadas em corpo [...] selecionadas para se organizar na forma de corpo – processo sempre condicionado pelo entendimento de que o corpo não é um recipiente, mas sim aquilo que se apronta nesse processo co-evolutivo de trocas com o ambiente. E como o fluxo não estanca, o corpo vive no estado do sempre-presente, [...] o corpo não é um lugar onde as informações que vêm do mundo são processadas para serem depois devolvidas ao mundo. O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. É com essa noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a idéia de mídia pensada como veículo de transmissão. A mídia à qual o corpomídia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo. A informação se transmite em processo de contaminação” (KATZ & GREINER, 2005: 130-131).

34 De modo geral, a teoria corpomídia permite a aproximação do objeto central desta pesquisa com a metáfora do corposintético. Primeiro, porque foi através da idéia de corpomídia que se teve contato com os autores que sustentam a argumentação teórica. Segundo, porque a idéia de que corpos sintetizam seus comportamentos, advém do entendimento de que a ação e o movimento podem ser caracterizados como trânsitos de informações entre corpo e meio e o conceito de corpomídia, trata exatamente disso. 35 Como aqui se trabalha com a possibilidade de a cultura e biologia estabelecerem um continuum entre si, geralmente as palavras meio e ambiente designam meio orgânico, físico como também cultural. Quando a especificidade do assunto exigir uma determinação mais detalhada das características de tais conceitos, estas serão feitas no decorrer do texto. Dessa forma, o humano aqui é tratado como organismo, entendendo-o como organismo complexo capaz de viver em um meio biocultural.

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30

Essa presença ativa do corpo no meio e do meio do corpo implica que o mundo

não é um objeto isolado, nem mesmo o corpo é um produtor de representações

desinteressadas do mundo. A noção de corpomídia está calcada na metáfora como

sistema de produção de ação e pensamento, no sentido de metáfora proposto por Lakoff

e Johnson, aquele que transgride a idéia de figura de linguagem. Tal entendimento

colabora com a necessidade de reflexão crítica em relação à clássica teoria da

comunicação de Shannon e Weaver, “que apostava na relação emissor-receptor e não

levava em conta as contaminações processadas pelo meio” (KATZ & GREINER,

2005: 131).

Essa mudança crítica se deve a uma transferência analógica de sentido que é

metacorporal, que a filósofa Máxime Sheets-Jhonstone também acredita acontecer no

processo da constituição de toda linguagem, ou seja, as informações estabilizadas no

organismo são transferidas para a linguagem e evoluem com ela: “A iconicidade é

processada entre gestos (tátil-cinético) da fala e o caráter cinético espacial dos processos

dos eventos a que se referem” (op. cit., 132). Isso implica que a representação corporal

simbólica, determinada pelos estados corporais do ator em cena, pode ser vista sob o

prisma de uma “semântica evolutiva”, por pertencerem a um conjunto maior de sistemas

comunicativos que podem ser vistos “como modos biológicos de significação”.

Aqui se compartilha a hipótese, presente também em Máxime Sheets-Johnstone,

que:

“(...) insiste que a semanticidade e a iconicidade vêm juntas desde o começo de todos os processos representacionais e que ambas são fundamentais para a comunicação. E que a dinâmica cinética da atividade corporal trabalha, em suma, seja qual for o contexto particular, com símbolos cinético-táteis espontaneamente formados e analogamente ancorados na percepção viva das diversas criaturas e espécies” (KATZ & GREINER, 2005: 132).

Assim, a perseguição de uma espontaneidade dos participantes da rave, assim

como a perseguida pelos atores, muitas vezes se faz como ilusão inútil, pois pertence ao

domínio das entranhas do corpo e não da vontade consciente. Segundo Helena Katz e

Christine Greiner, os símbolos obedecem a uma estruturação em “experiências pré-

corpóreas não apenas pela percepção da fala, mas analogamente à percepção do sonho.

Daí nasce a possibilidade de comunicação” (KATZ & GREINER, 2005: 132).

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O que buscava Grotowski eram corpos capazes de estar em cena como corpos

que simplesmente co-habitam, que atuam pelo estado do “sempre-presente”, eliminando

a ação como “uma série estática de representações” [...] e, nesse sentido, a comunicação

“não pode ser restrita a significados”, pois o corpo não é transparente às informações do

ambiente. O corpo é translúcido e opera trocas em muitos níveis distintos de

significação e coerência, “incluindo, por exemplo, a comunicação de estados36 e nexos

de sentido que modificam o corpo”. Grotowski queria que o sentido da ação emergisse

do corpo, em conexão estreita com o meio. Que a espontaneidade significasse

exatamente a execução do movimento como um estado preciso do corpo, e isso se dá

por meio de acordos e não com o envelopamento de significados anteriores à execução

da ação. Hoje, esta espontaneidade pode ser considerada como disponibilidade para os

acordos permitidos pelo corpo no fluxo entre ele e o meio.

“Esses processos têm lugar no tempo real de mudanças que ainda estão por vir, no ambiente, no sistema sensóriomotor e nervoso. Quem dá início ao processo é o sentido do movimento. É o movimento que faz do corpo um corpomídia” (KATZ & GREINER, 2005: 133).

Os corposintéticos são corpos que se assumem como hospedeiros de memes

altamente capacitados a sobreviver na cultura, e vertem suas intencionalidades no

projeto de guardar esses memes como preciosidades e relíquias, de modo a tornarem-se

túmulos vivos não transitórios, pois evitam a mudança dos próprios estados quando

contaminados por outros memes em circulação no espaço. Os corposintéticos são corpos

em estado de metáfora corpo-envelope, (como empregado por Lakoff e Johnson).

Corposintéticos são corpos não disponíveis, pois agem envelopando uma idéia abstrata

do transe, do corpo, da tensão entre corpo e meio. Seu desejo direciona-se ao conteúdo a

ser expresso e não às conexões que fariam o transe acontecer. Desse modo, a criação e

criatividade restringem-se à cópia fidedigna e não ao direcionamento da

intencionalidade em aprimorar os memes, como sugere Pinker. A melhor cópia

reproduzindo o padrão que trabalha com a “essência” de um homem “universal”,

desincorporado, suspenso da história do corpo no espaço.

36 Aqui o termo estado refere-se a estados do corpo como mapeamentos neuronais dos órgãos e estruturas internas. Esta idéia é proveniente dos estudos de Antônio Damásio. Segundo Damásio, esse mapeamento é feito por regulagens internas pré-conscientes e se dá à consciência como impressões, sensações indistintas que muitas das vezes não chegam a constituir conteúdo expresso da linguagem, embora a influenciem profundamente. Esse processo será analisado no terceiro capítulo, quando se tratar da consciência em nível fisiológico.

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32

Não há possibilidade de desligar a percepção do corpo para então construir uma

outra, específica para a cena, em alguma coisa que seja “extracotidiano”. O que

necessitará ser construído deve ser feito sobre o aparato que a natureza permitiu ao

corpo desenvolver. Grotowski olhava para os ritos em seus potenciais conectivos e não

semânticos, na tentativa de eliminar a espiritualidade do corpo-envelope, a

“autoascultação”, enquanto reprodutibilidade como cópia fidedigna de uma forma.

O corposintético, cruel e excepcionalmente, desloca o desejo, o foco de atenção

percepção do erotismo e da libido para a mensagem, transferindo assim a

reprodutibilidade humana para o âmbito da virtualidade. Por sua vez, a

reprodutibilidade de mensagens vai para o âmbito do orgânico. O que se reproduz

nesses ambientes são as mensagens muitas vezes marcadas previamente para acontecer,

pois elas tornaram-se vivas organicamente e o humano desmancha-se em sua instância

genética e, em tempo real, torna-se metáfora de si mesmo. Esse é o corposintético: uma

síntese das tensões contemporâneas. Um corpo que é uma boa metáfora para diversos

corpos de atores que se prendem com a intenção de realizar conceitualmente o que foi

ensaiado e se esquece que os fluxos de informação em tempo real determinam estados

de suas organicidades e marcam as ações do corpo em cena.

Tal abordagem possibilita a abertura de certas fendas conceituais que podem nos

apontar outras diretrizes para a descrição do corpo do ator em ambientes imersivos,

instalações performáticas, e espetáculos em que o espaço sobrepõe capacidades de

produção simbólica alicerçadas em tecnologias de aparecimento recente na história da

arte. Essa abordagem será importante também, mais adiante, para mostrar aspectos para

a criação poética do corpo através da idéia de estados alterados de consciência. Com ela,

espera-se fugir das descrições já conhecidas sobre a criação poética do ator, em que

consciência e inconsciência são tratadas como dualidades. Afinal, por tudo o que já foi

dito, quando se trabalha com o conceito de corpomídia, fica patente a capacidade

cognitiva do corpo de agir em diversos níveis de consciência.

1.2.2 Incandescências

Mas afinal, de que arte é essa da qual se fala aqui? É possível falar em A Arte,

ou seria mais justo dizer no plural, as artes, deixando clara uma diversidade que pode

conter divergências? Quando se fala em “presença do ator”, de qual presença se fala?

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33

Durante o século XX, as particularidades que caracterizavam e davam sentidos a

cada linguagem artística tenderam a se debruçar umas sobre as outras, esmaecendo as

fronteiras entre elas e motivando o surgimento de novos modos de criação como dança-

teatro, teatro físico, performance e etc. Um desses modos de criação vem da estreita

relação entre arte e ciência, que foi se tornando cada vez mais marcante em diversas

linguagens artísticas. A incorporação de tecnologias foi se tornando cada vez mais

presente, construindo os processos comunicacionais por meio de acoplamentos de

próteses ao corpo37.

A imbricação entre arte e tecnologia não acontece somente a partir do século

XX, pois se trata de um processo presente em toda a história do relacionamento do

homem com a natureza, a exemplo de [...] “Bach que compôs fugas para cravo porque

este era o instrumento mais avançado da sua época em termos de engenharia e acústica”

(MACHADO, 2002: 20). Segundo Arlindo Machado (In Galáxia, 2002), o que sucedeu

nas últimas décadas com o uso cada vez mais disseminado de tecnologias digitais foi o

surgimento de um segmento específico batizado de Artemídia – caracterizando

procedimentos que problematizam a vida no planeta no início do século XXI.

“Porque, então, o artista de nosso tempo recusaria o vídeo, o computador, a internet, os programas de modelação, processamento e edição de imagem? Se toda a arte é feita com os meios de seu tempo, as artes eletrônicas representam a expressão, mais avançada da criação artística atual e aquela que melhor exprime sensibilidades e saberes do homem da virada do terceiro milênio” (MACHADO, 2002: 21).

Tendo como referência esse conceito de Artemídia, vale lembrar que Grotowski

trabalhou para organizar determinados conhecimentos em torno das qualidades que

particularizam o teatro como uma área produtora de um saber próprio. Neste sentido, o

trabalho de Jerzy Grotowski (1933-1999), ator, diretor e pesquisador teatral polonês38,

funciona como um marco teórico por sinalizar uma busca das características que

particularizam o teatro como uma área de conhecimento fundada no corpo do ator.

37 Ivani Santana trata do assunto durante todo o livro Corpo aberto: Cunnigham, dança e novas tecnologias (2002), tendo como parâmetro as obras de Merce Cunnigham. 38 O pensador e artista Jerzy Grotowski, através de seu trabalho no “Teatro Laboratório”, é referência para encenadores e atores em todo o mundo. Suas idéias são difundidas no meio teatral no qual a pesquisa de linguagem e a formação do ator são prioridades. Suas criações vão muito além do recorte proposto aqui, e sabemos que outros elementos oriundos de suas concepções certamente vão aparecer no desenvolvimento deste estudo.

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Seu conceito de “teatro pobre” baseia-se na eliminação de suportes tecnológicos

mediadores da linguagem cênica, posicionando o ator no centro da criação poética como

produtor da ação como representação teatral. Para Grotowski, o teatro, considerado

como área de saber, pode ser alcançado através da “[...] eliminação gradual de tudo que

se mostrou supérfluo [...]”, abolindo suportes como cenário, luz, sonoplastia, vídeos e

outros recursos técnicos e tecnológicos. Para ele, o teatro “(...) só não pode existir sem o

relacionamento ator/espectador, de comunhão perceptiva, direta, viva”. A criação da

poética cênica do “teatro pobre” depende sobretudo do intérprete que “[...] pelo

emprego controlado do gesto, transforma o chão em mar, uma mesa em confessionário,

um pedaço de ferro em ser animado etc” (GROTOWSKI, 1971: 5-7).

Os aparatos tecnológicos montam a distinção entre o teatro “pobre” e o “rico” e,

como conseqüência, marcam uma distinção no entendimento da relação homem/homem

e homem/ambiente. Na metáfora de Grotowski, o conceito de tecnologia não

compreende a definição que traz McLuhan e que também podemos encontrar nas

“imagens tecnicistas” de Flusser. Grotowski entende a tecnologia como algo separado

do homem, e não como sua extensão. Segundo Araújo, o cérebro e as imagens por ele

produzidas, assim como nossos sentidos, podem ser considerados como tecnologias,

com interfaces cada vez mais “transparentes” (ARAÚJO, 2005: 176-177).

Embora o discurso39 de Grotowski, ao menos na tradução de Aldomar Conrado

(1971), apresenta-se dualista, separando a idéia de mente da de corpo, suas propostas de

treinamento de atores parecem justamente tentar superar essa separação. Propõe a

emergência de sentidos no ambiente da cena por impulsos físicos, em razão de intensas

transformações do corpo, provocando uma intimidade radical entre o corpo do ator e o

ambiente. “A realização do ator constitui uma superação das meias medidas da vida

cotidiana, do conflito interno entre o corpo e a alma, intelecto e sentimentos, prazeres

fisiológicos e aspirações intelectuais” (GROTOWSKI, 1971: 83-196).

Este entendimento do teatro exige grandes esforços dos intérpretes em longos

períodos de treinamento, em que exercícios acrobáticos, danças e cantos ritualizados,

impulsionam os intérpretes a vivenciarem estados não-cotidianos de relação com o

39 O discurso de Grotowski acompanha o discurso da época, que não contava com as tecnologias e informações atuais sobre o funcionamento do corpo e da mente, além de ser fortemente marcado por traços do romantismo, como a divisão entre espiritual e o material.

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ambiente e consigo mesmo, caracterizando o que Grotowski chama de “técnica de

transe” (1971: 02).

Apesar das aplicações e observações pragmáticas de Grotowski quanto aos

procedimentos ritualizados, em 1996, na ocasião da vinda de Grotowski ao Brasil, a

questão do transe em sua obra gerou diversas questões por parte da platéia do Simpósio

Internacional SESC40, fato levantado por Sandra Meyer (1999: 75) em sua dissertação

de mestrado, defendida na PUC/SP. Isso nos mostra como parte do público no Brasil

recebe a palavra “transe”, e nos aponta para a necessidade de tratar de questões como a

religiosidade e a espiritualidade, geralmente rejeitadas em estudos acadêmicos.

Se pensarmos que em algumas formas de Artemídia são procedimentos comuns

os acoplamentos de próteses e o uso de tecnologias avançadas em um processo de

dessacralização do corpo e desencantamento do mundo, como entender a idéia de transe

e o teatro pobre de Grotowski, já que essas hibridizações de linguagens se dão

justamente através das tecnologias?

Segundo Magaldi, “ao gênero dramático [...] são essenciais três elementos: ator,

texto e público” (1998: 08), estando na palavra a força do teatro como área própria de

saber. Tal concepção de teatro encontra-se em diversos autores e, de certa forma,

continua fazendo parte da caracterização da autonomia teatral em relação às outras

linguagens cênicas, pela tradição vinda do teatro realista/naturalista de Constantin

Stanislávski (1979). De fato, foi sobre a tríade literária – drama, comédia e tragédia, que

surgiram as derivações de encenações e a autonomia histórica do teatro sustentada desde

a Grécia Antiga (BRANDÃO, 1985: 11-15).

Sobre o texto dramatúrgico, Grotowski afirma que “o importante não são as

palavras, mas o que fazemos delas, o que confere vida às palavras inanimadas do texto,

o que as transforma em: ‘A Palavra’” (GROTOWSKI, 1971: 42).

Essa idéia de que a palavra pode revelar algo sobre a existência das coisas e da

natureza humana, está ligada às origens clássicas da tragédia. Com base nos

pressupostos de Aristóteles, em que a linguagem da cena está alicerçada na idéia de

40 Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Groówski and Thomas Richards. 14 a 16/10/96.

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36

mímesis da natureza, por meio da unidade entre os conceitos de tempo, espaço e ação,

formula-se o conceito conhecido como “Tríade Aristotélica” (ARISTÓTELES, 1966).

Em seus diferentes momentos na história grega, o conceito de mímesis aparece

com diferentes significações. Em Pitágoras, a “mímesis significava a expressão ou

representação de estados anímicos”, com função médica imediata, já que a encenação

das emoções permitia sua liberação pelo ator ou pela platéia. Em Gorgiano, a “mímesis

é considerada como engano criador, distinto do juízo da falsidade”, e ensaia pela

primeira vez, a mímesis fora da lógica da representação de algo existencialmente prévio

ou logicamente superior. Gorgiano não apresenta um tertium comparationis para

diferenciar o engano do falso, o que permite aproximar a mímesis da persuasão,

impedindo o advento da palavra persuasiva sobre o próprio discurso. Para Platão, há

uma subordinação da mímesis ao campo do útil e do conceitualizável “por um

pensamento que concebe o mundo sob o aspecto de uma cadeia desdenhosa do

emocional e do afetivo”. E finalmente em Aristóteles, que libera o mimético da

legislação do discurso da verdade, mas o mantém subordinado à questão da catarse: “o

prazer que aceita o jogo da imaginação desde que conduza a uma descarga

tranqüilizadora – o mundo está bem feito e a catarse confirma este caráter”. O mundo,

na interpretação de Aristóteles, desenhava-se de modo organizado, pois representava a

ação divina, de modo que deveria permanecer intocável, ainda que para ele a tragédia

melhor era a que trouxesse à baia os conflitos humanos. Na história grega, quando a

palavra do poeta possuía um caráter de palavra indiscutível, já que fundava a idéia de

realidade, a teorização e discussão da mimese não eram possíveis. Isso mudou quando a

relação entre a palavra declaradora da realidade e a realidade declarada, se tornou

possível de ser questionada. Quando o poeta passou a abordar distintas dimensões das

relações entre os deuses e os homens, entre os homens e suas paixões, a palavra perdeu

seu caráter de ensinamento. O problema mímesis/poiesis é tratado por diversos

pesquisadores e artistas contemporâneos desde de o início do século XX, e no caso

deste projeto, é tratado sob as referências advindas especialmente de Renato Cohen.

Assim, o conceito de mimese nunca se limitou ao discurso sobre ou da arte,

mesmo em Aristóteles, que o definiu como essencial à tragédia. “Na arte, a mímesis

apresenta apenas sua mais clara concretização, define apenas seu impulso básico:

experimentar-se como um outro para saber-se, nesta alteridade, a si mesmo” (LIMA,

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1980: 59-60). A tradução latina do conceito de mímesis, no entanto, foi feita sob a

perspectiva de imitatio (de imitação, cópia – em Aristóteles, uma imitação da ação

humana) e sua identificação como correspondência a um modelo. Historicamente, isso

foi observado em culminância estética no realismo/naturalismo.

Apesar de as práticas laboratoriais de Stanislávski e Grotowski buscarem a

unidade entre corpo e mente, muito do discurso romântico alicerçado sobre a procura de

um modelo idealizado ainda pode ser encontrado. Evidentemente a dimensão deste

problema transborda as páginas aqui disponíveis. Para o teatro, como área de

conhecimento, essa é uma questão com urgência de abordagem. Respinga nos

problemas que a encenação pelo environment provoca no cenário geral do teatro

contemporâneo, sendo geralmente mais abordado pela bibliografia da área sob o ponto

de vista da encenação e não do ator. No segundo capítulo, abordar-se-á o problema do

ator nesse contexto, de modo que o foco da discussão se feche em seus processos

criativos, mesmo que a idéia de alteração de estados possa ser aplicada na questão da

encenação.

Nesse caso, a linguagem cênica sustenta-se pela relação de causalidade, em

narrativas lineares, entendimento estético da linguagem cênica que atravessou a história

do mundo ocidental até final do século XIX e início do século XX, quando as artes de

vanguarda passaram a considerar a construção da linguagem por meio da idéia de

poiésis, “transporte não mimético do real” (COHEN, 2003: 9).

A construção da cena contemporânea, como uma forma de artemídia, institui a

relação espectador/obra através de recursos tecnológicos que possibilitam a instauração

de fluxos descontínuos e desterritorializações de informações e possibilita a

comunicação baseada em relações de rede, por intermédio das narrativas fragmentadas.

O enredo dramatúrgico, para Aristóteles, encerra a noção de narrativa linear

sustentando-se em sua concepção de espaço que contém algo ou é contido por algo

(ABBAGNANO, 2000: 348-349), e na idéia de tempo como fluxo contínuo que

caminha do passado ao futuro sendo ambas consoantes com a física newtoniana. Já a

física da teoria da relatividade e da mecânica quântica permite a compreensão da

existência de realidades paralelas e de dimensões espaços-temporais simultâneas. A

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construção cênica da poiésis parte dos chamados Environments Criativos, cuja

significação poética parte da signação não reflexiva do real (COHEN, 2003: 95).

A Leitura Transversal, de Demarcy, propõe que os signos, no ambiente da cena,

devem ser lidos no cruzamento de questões sociais, econômicas, culturais, particulares

de cada um do público. Isso quer dizer que a linguagem cênica precisa ser vista “com o

olhar de quem decifra”, como campo aberto de leitura, e que os significados são

construídos na medida em que são relacionados com aspectos pertencentes ao ambiente

cena/mundo, com os eventos que acontecem dentro e fora do teatro. Assim, para o

autor, acompanhando as transformações na obra de arte contemporânea, a recepção, a

leitura, a participação do público no espetáculo ganha sua especificidade (sendo

possíveis muitas outras) de caráter ativo, sendo uma co-construção semiótica, uma co-

autoria intersubjetiva – como em Flusser, pois o significado final é dado pela marca do

espectador nas imagens veiculadas pela obra, desvinculada do enredo – muitas vezes

inexistente (DEMARCY in GUINSBURG, 2003: 23-38).

Isso nos ajuda a entender a questão da criação do ator em obras em que a

linearidade esgarçada desmancha as possibilidades de localização aristotélica do

personagem e a sua identificação com o contexto emocional do enredo dramático. Mas

será que a idéia de transe de Grotowski auxilia a penetrar em ambientes cênicos

profundamente midiatizados, em que os significados dependem também das marcas da

mediação tecnológica? E mais: como é possível que o teatro absorva estes

procedimentos contemporâneos sem se transformar em uma feira de ciência e

tecnologia? Será necessário abrir mão da representação como código de construção

sígnica? Existirá disposição no teatro, considerado área própria de conhecimento, para

caminhar em direção a obras cênicas em que a produção e a recepção das mensagens

sejam vistas de maneira aberta? As construções horizontais da signagem, distanciando-

se das concepções aristotélicas como linhas dramáticas e coerências de ações, de fato

ameaçam a autonomia do discurso teatral? Será preciso que se pense em uma espécie de

abandono das formalizações históricas do drama, da tragédia, da fábula41 e etc? A

dramaturgia do período em torno da Segunda Guerra Mundial, como o teatro do

41 Mesmo que fábula, drama, comédia e tragédia signifiquem gêneros distintos como escritura dramatúrgica, exigindo distinções também em seus discursos cênicos, aqui fazem parte de uma mesma linha de entendimento de fenômenos ligados à concepção teatral baseada historicamente em um desenvolvimento do conhecimento em torno das diretrizes aristotélicas em relação à unidade de tempo, espaço e ação.

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absurdo, por exemplo, já não é uma produção que toca este problema? Evidentemente,

são questões que, dada a sua abrangência, não serão resolvidas aqui, mas permeiam a

abordagem proposta.

No entendimento de que não há separação entre os conceitos de corpo e mente,

sustentado na teoria do corpomídia, a hipótese proposta aqui é a da que o impulso

corporal é que constrói a linguagem cênica, sendo uma célula mínima de ação cognitiva,

localizada no espaço/tempo do palco. Esta ação inicia-se em estruturas pré-conscientes

do corpo e pode tornar-se o que há de visível no estado alterado de consciência. Através

de um possível cruzamento com a Tríade Aristotélica e com as idéias de Stanislávski,

pode-se colocar o impulso no lugar da ação dramática e do micro objetivo. A reação

sustentará o jogo e uma narrativa capaz de superar as dicotomias entre público e obra,

como queria Grotowski.

“Por um momento, o ator encontra-se fora do semicompromisso e do conflito que caracterizam nossa vida cotidiana. Ele faz isso para o espectador? A expressão ‘para o espectador’ implica certo coquetismo, numa certa falsidade, numa barganha consigo mesmo. Devemos dizer ‘em relação ao’ espectador ou, talvez, em lugar dele. É precisamente aqui que está a provocação” (GROTOWSKI, 1971: 42).

Como é possível verificar, Grotowski quer interferir na relação entre ator e

espectador, primeiro tornando claras as implicações que existem para o primeiro, ao

saber que está sendo observado. O autor afirma que este fator acarreta implicações na

percepção do corpo sobre si mesmo gerando conseqüências cognitivas, produzindo uma

das muitas alterações de estados de consciência possíveis – chamada aqui de

corposintético. Este é o aprisionamento da percepção sob a perspectiva vouyerista do

público, que torna o ator um exibicionista de suas habilidades miméticas (no sentido de

imitatio). Para Grotowski, o importante é que o elenco desnude-se dos modelos prévios,

que norteiam a representação, assim como, analogamente, quer o público desnudando-

se em seus comportamentos sociais. Para ele, a presença do público durante o

espetáculo cria uma necessidade imperativa nos atores em assumir modelos

comportamentais.

Por outro lado, a investigação mais cuidadosa desses processos, em suas

principais estruturas, permite que se entenda a cognição do ator como presentificação do

corpo e corporificação do mundo, o que abre condições para entender diversas outras

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idéias de alteração de consciência. “O objeto nunca é ele mesmo, mas já se dá à nossa

percepção na qualidade de objeto corporificado” (GREINER, 2005: 84). Para isso foca-

se a idéia de mudanças nos estados corporais, pois estas são capazes de determinar uma

boa leitura para o corpo no contínuo fluxo de informações por seus diversos níveis de

contato com o ambiente.

“Pensar o corpo a partir de suas mudanças de estado, nas contaminações incessantes entre o dentro e o fora (o corpo e o mundo), assim como durante as predições, o fluxo inestancável de imagens, oscilações e recategorizações” (GREINER, 2005: 81).

E isso significa que a idéia de estados pode oferecer a possibilidade de lidar com

o trabalho do ator em diferentes ambientes poéticos, principalmente na qual ele se

estende entre tecnologias, próteses e etc. É nesse contexto que se investiga a idéia de

transe, ou seja, a pesquisa foca a importância da retomada de um “teatro pobre” em

plena era da Artemídia.

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2. CORPOMÍDIA X CORPOSINTÉTICO

2.1 A luminosidade pálida do trabalho: corposintético e o trabalho do ator na era da Artemídia

O trabalho do ator tem acompanhado o desenvolvimento do teatro como

linguagem e área de conhecimento. Quando pensadores como Stanislávski e Grotowski

resolvem sistematizar o que sucede a um ator quando em cena, relativizando, de certo

modo, o seu depoimento em primeira pessoa (invariavelmente imerso em alto grau de

subjetividade), ambos desenvolvem estruturas conceituais que, mais tarde, virão

possibilitar o desenvolvimento de um discurso a respeito da existência de uma imersão

subjetiva do artista em cena. Diversas pesquisas têm sido feitas, como, por exemplo, a

que parte do viés da psicanálise Junguiana, propondo o entendimento da transformação

do corpo e a possível alteração da consciência que nele ocorre com matrizes e

arquétipos42 provenientes da cultura popular brasileira.

Aqui se propõe estudar o mesmo objeto por outro ângulo teórico. Para entender

um possível estado alterado de consciência, faz-se necessário conhecer o funcionamento

cognitivo do corpo, no qual o sistema sensório-motor desempenha papel importante, ao

operar as trocas entre corpo e ambiente. Uma bibliografia com tais informações permite

abordar fenômenos-tabu do corpo em uma discussão pautada por inferências sob o

aspecto de dados provenientes de pesquisas laboratoriais e resultados práticos de sala de

ensaio. Procura-se tratar a questão do transe localizando-a no corpo de cada intérprete a

partir das habilidades que o corpo tem de produzir certos estados de consciência. O

último capítulo é destinado à discussão dessas habilidades corporais e, por hora, cabe a

apresentação de alguns conceitos sobre a prática do ator, para que se possa entender em

que contexto podem aparecer os estados alterados de consciência.

42 O próprio Grupo Carranca é um exemplo de processo criativo baseado nessa abordagem. Para maiores informações sobre essa linha de pesquisa conhecida como Antropologia Teatral e Antropologia da Dança, ver Bailarino Pesquisador e Intérprete, Rio de Janeiro, Funarte, 1997, de Graziela Rodrigues, e pesquisas de Lara Rodrigues, Luís Monteiro Jr., LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais e diversos outros pesquisadores da Unicamp – Universidade Estadual de Campinas, em seus Departamentos de Dança e Teatro, assim como na UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, e UFBA – Universidade Federal da Bahia, em seus Departamentos de Dança e Artes Corporais. Renato Cohen também contribuiu enormemente tratando sobre diversos aspectos da arte cênica quando motivada por processos de mergulhos no inconsciente, apesar de suas pesquisas trazerem outros autores comprometidos com uma leitura pós-estruturalista desse fenômeno. Para isso, ver Performance como Linguagem e Work in Progress na Cena Contemporânea, ambos da Editora Perspectiva e lançados em 2004.

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Rever, desmontar, desestabilizar o sistema de transe presente nas teorias e

práticas de Grotowski, para depois remontar, reconstruir, recriar processos outros, pode

ser uma brincadeira saborosa quando não se tem a intenção de fundar novamente algo

que já deve ter sido aquilo que pretendia ser. A idéia de transe pode ter mais a ver com a

experimentação de um laboratório teatral do Brasil, do que com um Teatro Laboratório

brasileiro.

2.1.1 O que se entende por “trabalho do ator”?

Constantin Stanislávski (1863-1938), certamente, foi o homem que tornou

pública para o ocidente a idéia de que a atividade do ator deveria ser vista como um

trabalho, ao escrever El Trabajo del Actor sobre si Mismo (STANISLÁVSKI, 1977

apud BONFITTO, 2002: 24). Embora Stanislávski também se refira ao trabalho do ator

como um ofício, para ele, a idéia de trabalho consiste em um processo de transformação

do ator em direção ao compromisso com o coletivo, com o sentido de equipe e a

responsabilidade com o próprio esforço em criar arte. Vale lembrar da passagem, logo

no início do primeiro capítulo do livro A Preparação do Ator, quando o aluno Kóstia

chega atrasado no primeiro dia de aula e recebe dura reprimenda de Rakhmanov,

assistente de Tórtsov, professor que figura as idéias do próprio Stanislávski: “Nós todos chegamos aqui cheios de entusiasmo pelo trabalho que nos aguardava e, agora, graças ao senhor, todo esse ânimo destruiu-se. É difícil despertar a vontade criadora; matá-la é facílimo. Quando interfiro no meu próprio trabalho, isso é comigo, mas que direito tenho eu de atrasar o trabalho de uma equipe inteira? O ator, como o soldado, deve submeter-se a uma disciplina férrea” (STANISLÁVSKI, 1979: 31).

Rakhmánov cancela o ensaio. Essa é, de fato, uma das primeiras lições que

atores iniciantes têm quando começam a fazer teatro: disciplina e comprometimento

com o coletivo. Em um mundo onde qualidade é medida por índices de produtividade,

perder tempo é algo inadmissível, e poderia sustentar a idéia de que suspender um

ensaio/aula em razão de um único aluno/ator seria inapropriado. Afinal, a noção

pragmática de trabalho produtivo esgueira-se por trás do incômodo em deixar a sala de

trabalho: “Já que se está aqui, o que se pode fazer?” Produções que exigem um encontro

pontual de uma equipe heterogênea são comuns, o que tem tornado importante a figura

do preparador de elenco. Costuma-se afirmar, de modo geral, que não há um costume de

preparar elencos para produções cinematográficas no Brasil, por exemplo. Mas essa

característica deve ser pensada em detrimento de um mercado ainda em consolidação e

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uma tradição de filmes ainda recente, em comparação com mercados como o dos

E.U.A. e Europa.

Esses são aspectos de uma possível Sociologia do Ator, ainda pouco discutida

em publicações, no contexto brasileiro. Há, quase sempre, uma recusa em aceitar que

fazer testes para comerciais, novelas e filmes tornou-se uma prática absolutamente

natural para muitos atores. E entre as dimensões criativas do cinema e da tv em relação

ao teatro, há poucos artistas que conseguem transpor o abismo invisível de

necessidades, técnicas e procedimentos de cada um dos distintos campos artísticos.

Abismo que, na prática, talvez seja ilusório. As linguagens são diferentes e, por isso,

exigem relações específicas do ator com seus trabalhos. E mesmo diferentes possuem

como ponto de contato o ator. Quando se diz que “o teatro é a arte do ator”, acaba-se

entendendo que ele deva ficar restrito ao teatro. E se ele vai trabalhar na televisão ou no

cinema, é pelo mérito de conseguir “sobreviver em dois ambientes ao mesmo tempo”,

como disse Timberlake (1998), nas palavras de Ian, personagem de sua peça After

Darwin.43

Por outro lado, escuta-se que o cinema é a arte do diretor, do montador, do

editor, do iluminador. E então, se não é a arte do ator, não existem mesmo motivos para

que se pense em desenvolver técnicas que lhe auxiliem? A maioria das escolas de teatro

que oferecem cursos de interpretação para televisão e cinema leva em consideração as

teorias da primeira fase dos escritos de Stanislávski, que chegou ao Ocidente por meio

do Actor´s Stúdio. Assim, se existe uma tendência, no Brasil, em se trabalhar o ator no

âmbito do cinema, ela pertence a esse entendimento. Existem profissionais

desenvolvendo métodos próprios, como é o caso de Fátima Toledo, por exemplo,

conhecida por suas intensas exigências físicas e emocionais ao ator que, sem dúvida

nenhuma, faz uma leitura contemporânea dos “movimentos internos”, partindo de um

entendimento próprio das ações físicas.

No entanto, em meio a muitos caminhos que se pode seguir, existe o ator como

uma pessoa de carne e osso. Contando, muitas vezes, com uma formação profissional

rápida, realizada em oficinas e workshops, que pouco privilegiam a importância do

treinamento e da leitura crítica, esse ator tenta entender suas funções praticando

“achismos conceituais”. Se, há quarenta anos, a relação entre o ator de teatro e o ator da 43 Espetáculo encenado pelo grupo ACP Cultural, através do Projeto Arte e Ciência no Palco, em 2007, que levanta, entre outras, a questão do trabalho do ator. Estive presente na preparação do elenco desta peça, tendo a feliz oportunidade de testar diversos aspectos aqui estudados em um ambiente específico e muito diferente dos que já havia estado.

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televisão parecia ser mais clara e mais simples, pela pouca idade do veículo no Brasil,

hoje, em 2008, tornou-se uma questão permeada por profundas implicações políticas,

econômicas, éticas e criativas. Uma história marcada unicamente na experiência de

mercado não é mais suficiente para a formação crítica e estética do artista diante da

complexidade de sua realidade profissional. Assim, quando em cena, a tendência de

grande parte dos atores é compensar pequenas dificuldades, (perfeitamente

compreensíveis do ponto de vista criativo – já que a criatividade não funciona com

rédeas curtas e cabrestos), com um esforço máximo para completar determinado objeto.

E de tanto querer, cega os olhos para os sinais da imaginação na busca de uma produção

poética idealizada. Então, todo o trabalho de concentração acaba por parecer um modo

de controle arbitrário de si próprio e a disciplina, uma tortura justificada.

Quando vemos a questão sob a luz da Teoria Geral dos Sistemas, de Karl

Ludwig von Bertalanffy (1901–1972), o problema parece ser outro. Essa metáfora do

trabalho do ator pode estar mascarando o senso de produtibilidade mecânica e utilidade

imediatista, como tem se tornado as instituições de ensino: “A necessidade de

sobreviver, de ganhar dinheiro e, na medida do possível, ganhar status social, não se

coaduna com ‘gastar’ de 6 a 8 anos estudando física, matemática, biologia” (VIEIRA,

2007: 20). Na mecânica clássica, trabalho significa gasto de energia que resulta em uma

transformação. Essa energia utilizada precisa ser acumulada, ou por uma deformação do

material, como no caso de uma mola, ou na produção externa de potencial, no caso de

um motor. Portanto, trabalho significa energia utilizada para uma transformação. Isso

parece estar de acordo com a idéia corrente de que se ensaia para, depois, apresentar o

espetáculo. Acumula-se energia para utilizá-la no momento adequado, a fim de cumprir

um objetivo específico.

Essa idéia parece funcionar bem em sistemas nos quais uma informação entra, é

processada e obtém-se uma informação de saída diferente. São sistemas de baixa

complexidade e alto grau de previsibilidade de funcionamento e que estão preparados

para trabalhar com baixo nível de entropia, como organismos unicelulares ou máquinas

simples como um liquidificador, por exemplo. O problema é que elaborar informação

complexa exige tempo e sistemas com competência para isto. No caso de sistemas

complexos, ou hipercomplexos, que envolvem diversos níveis de trocas de informação

entre diversos outros subsistemas simultaneamente como, no caso do corpo e de

sistemas psicossociais, a resposta à informação de entrada, geralmente, não pode ser

prevista como uma única seqüência de resultados. Ocorrem aleatoriedades nos

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processos de abrigo da informação que chega, impossibilitando uma previsibilidade

segura e absoluta de causas e efeitos. Ao longo da evolução os sistemas complexos

criaram memória para lidar com esse trânsito constante de informações entre eles e o

ambiente. Só assim poderiam sobreviver trocando informações complexas em diferentes

níveis de complexidade, ou seja, é necessário que exista alguma coerência entre

permanecer vivo, ter autonomia (poder agir de acordo com sua história) e o ambiente,

que são os três parâmetros fundamentais da Teoria Geral de Sistemas. Isso requer uma

atuação flexível em tempo hábil, o que é “típico dos sistemas cognitivos” (VIEIRA,

2007: 22).

O maior indicativo de que Stanislávski e Grotowski acreditavam ser possível ao

ator processar transformações em seu universo cognitivo é a expressão de suas vidas

inteiras de trabalho dedicadas ao entendimento dos problemas que se colocam entre o

homem e a expressão teatral. E a maior prova da ignorância que ainda se tem sobre

esses problemas é a tendência que temos em reduzir tais complexidades a “50 minutos

de aula de voz: o diafragma e a respiração”, ou a “técnicas de expressão corporal”, sem

entender antes como o corpo funciona ou sem uma noção clara de que o processo de

criação é extensão de um corpo treinado ou preparado para tal atividade. Muitas vezes, a

separação temporal nos ensaios, representada por momentos distintos para se treinar o

corpo e outro para criar a cena, revelam esta dualidade entre o aprender e criar. Muitos

treinamentos são elaborados sem levar em conta que a ruptura entre estes dois aspectos

do trabalho pode esvaziar o corpo e torná-lo cego para as implicações físicas durante o

processo de criação. A idéia de treinamento deveria conter a noção de criação. Sem esse

entendimento, corre-se o risco de tratar a educação do corpo como um trabalho para

uma melhor expressão braçal, facial, bocal, dedal, pezal e etc. E paradoxalmente,

persegue-se o objetivo de escapar do entendimento da atuação como uma atividade

mecânica, braçânica, bocânica...

2.1.2 O Ator, segundo a perspectiva de Stanislávski

O ator, segundo Stanislávski, depende de seu senso de investigação e sua

coragem em descobrir-se como humano, procurando as habilidades que possui e quais

podem ser desenvolvidas por meio de um treinamento próprio, de modo a torná-las

tecnicamente acessíveis à criatividade consciente. Uma espécie de conjuntos de acesso

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ao inconsciente, em que ele acreditava viver as mais ricas e sutis emoções humanas,

para que elas, em ação na cena, estivessem frescas e espontâneas, verdadeiras.

No entanto, o comportamento e a emoção correspondente, na maioria das vezes,

são entendidos como resultantes de um somatório de informações fechadas em si

mesmas em um inconsciente do tipo “armário com gaveteiro”, distante do ambiente. A

consciência vasculha o armário para encontrar as melhores adequações a um

determinado “estado de espírito”. Uma espécie de noção comum e vaga de como as

coisas devem ser, como, por exemplo, o imaginário descrito das festas raves – uma

idealização arbitrária. É uma interpretação bastante limitada de mente e dos processos

criativos, delegando ao consciente o papel de juiz, de filtro que seleciona e organiza as

emoções, os sentimentos, os impulsos e paixões do sujeito de acordo com um manual de

fabricação, a dramaturgia pobremente interpretada. O sistema de leis responsável por

organizar as emoções de acordo com cada momento da montagem cênica é lido como

uma espécie de revelação de uma alma maior, onipresente e detentora de uma verdade a

ser revelada ao público. A inspiração provém de uma voz sublime do autor e o elenco é

um messias porque sabe transmitir as verdades contidas no enredo. É um meio de

aprisionar a grandiosa imaterialidade da alma autoral e torná-la palpável ao homem

comum. Quando finda a apresentação, o elenco possui “A” grande diva, “O” grande

ator. A energia foi acumulada nos ensaios, quando se moldaram os inúmeros modos de

ser da boca, do pé esquerdo, da frase mais relevante e etc. Eles foram guardados no

armário da memória e, na presença do público, serão mostrados como lapidações de

idéias vagas ao serem representados. Essa é a leitura de um teatro de representação para

Stanislávski: “Esse tipo de arte é menos profundo que belo, e seu efeito é mais imediato que do que verdadeiramente poderoso; nela, a forma interessa mais do que o conteúdo. Atua mais sobre nosso sentido visual e auditivo do que sobre nossa alma e tem mais possibilidade de nos encantar do que nos comover. Podemos receber dessa arte impressões poderosas. Mas nunca nos aquecerão a alma, nem dentro dela penetrarão profundamente” (STANISLÁVSKI, 1979: 51).

Percebe-se que Stanislávski prefere algum outro tipo de teatro, que atinja

profundamente a “alma” do público. Ele quer sentimentos reais e não cópias, ele quer

precisamente o “original”, ele quer que o ator “viva” o papel, não apenas no “início do

trabalho de ensaios”, mas durante todo o momento em que estiverem em cena. Por falta

de um vocabulário melhor, o autor acaba adotando termos como “alma”, “espírito do

papel” ou “vida interior do personagem”. No entanto, Stanislávski propõe que os atores

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devam ter um “dispêndio de energia nervosa” ao viver o papel e que não se acomodem

em apenas acreditar que será mais seguro entregar “a atuação correta se se limitar a

recordar o que fizeram da primeira vez que conseguiram realizá-la”. O autor se refere ao

mesmo fenômeno tratado aqui por corposintético, aquele corpo que acredita que uma

memória pode ser presente sem ser reconstruída por completo. Stanislávski parece

propor um teatro de essência sem recair nos clichês, ou “carimbos”, como [...] “o

espalmar a mão no peito para exprimir amor, ou escancarar a boca para dar idéia de

morte” (1979: 49-52). Em 2008, eles ainda se fazem presentes.

Tais leituras se referem à sua primeira fase, centrada nas emoções, e são

derivadas de traduções dualistas de suas idéias. A maioria das interpretações de suas

obras, até pouco tempo, considerava que Stanislávski propunha uma abordagem

“mental” para o ator. Hoje, sabe-se que foi apenas na segunda metade do século XX,

com as aberturas políticas entre o que se acostumou chamar de oriente e ocidente, que

se pôde conhecer a brilhante trajetória desse criador teatral que possibilitou mais de um

século de pesquisa a respeito dos processos do ator (GONÇALVES, 1979: 09).

Movimentos vindos do “interior” em direção ao “exterior”, “ação psicológica”, “forma

e conteúdo”, são metáforas que pululam nas traduções de suas obras e que revelam uma

interpretação dualista em relação ao fenômeno mente/corpo. No entanto, é notório saber

que uma das grandes contribuições de Stanislávski ao teatro foi tentar compreender os

processos de criação do ator, levando em consideração os avanços da psicologia

comportamental de sua época, primeiro tocado por S. L. Rubeinstein e depois por

Pavlov (BONFITTO, 2002: 39). “Usamos a técnica consciente de criar o corpo físico de

um papel e, com seu auxílio, alcançamos a vida subconsciente do espírito do papel”

(STANISLÁVSKI, 1979: 168). Cabe lembrar que ainda não estava disponível

tecnologia suficiente para um vasculhar da mente que mostrasse, de fato, como alguns

processos fundamentais do corpo podem gerar consciência, memória, pensamento,

emoções e uma série de aspectos importantes para o ator. Por outro lado, essa questão

pode ser apenas uma expressão “ocidentalizada”, seja lá o que isso queira dizer, uma

leitura parcial de uma percepção mais complexa e não-dualista de Stanislávski.

Um bom exemplo disso é a importância que o autor delega às imagens que o ator

cria durante o processo de cena e a formalização, por fim, de seu conceito de “ação

física”, que será, mais tarde, retomado por Grotowski. Ele pede que o ator crie imagens

para os objetos dos pensamentos dos personagens dos textos; assim, a subjetividade que

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compõe as falas, as ações e reações passam a ter um sentido concreto, específico,

suscitando emoções específicas, alicerçadas no corpo como: “(...) uma série ininterrupta de imagens, parecida com um filme cinematográfico. Enquanto nossa atuação for criadora, essa fita desenrolar-se-á e projetar-se-á na tela da nossa visão interior, tornando vívidas as circunstâncias por entre as quais nos movemos. Além disso, essas imagens interiores criam um estado de espírito correspondente a elas e despertam emoções ao mesmo tempo que nos mantém dentro dos limites da peça” (STANISLÁVSKI, 1979: 90).

Ele pôde perceber que há uma íntima relação entre esse “filme interior” e as

ações que o corpo realiza no espaço e compreendeu perfeitamente que esse processo é

inseparável, como veremos no terceiro capítulo, por meio das pesquisas de Antônio

Damásio, que declara chamar de consciência esse mesmo filme ininterrupto que deriva

da ação orgânica do corpo no estado de constante ação de sobrevivência. “A ação, o

movimento, é a base da arte que o ator persegue” (STANISLÁVSKI, 1979: 64). Por

isso, criou um processo baseado nas ações do corpo para provocar as emoções e

processos internos: as “ações físicas”, pois, em cena, “é preciso agir, quer exterior, quer

interiormente” (Idem: 65).

Esse movimento interior, essa ação interna, significa um “posicionar-se”, em

relação a um objetivo externo, uma intenção de realizar algo, um desejo que se toma

para si, agindo em lugar de alguém, tornando-se assim, em grego, um “anér”, um outro,

um personagem. O ator supõe: “E se eu estivesse vendo o fantasma de meu pai morto?”

Uma pergunta que tem o poder de transpor o ator ao mundo de causalidades reais por

meio de situações fictícias, as situações em que se encontram os personagens. “O se

atua como uma alavanca que nos ajuda a sair do mundo dos fatos, erguendo-nos ao

reino da imaginação” (STANISLÁVSKI, 1979: 73). E, por outro lado, ancora a

imaginação no mundo das conseqüências orgânicas, provocando-as a reagir como se

fosse uma situação real. Não é o mimetismo da realidade, (mimese no sentido de

imitatio) que lhe interessa, se a faca realmente é feita de metal ou de papelão, mas uma

lógica de funcionamento da relação entre mente e corpo. Uma coerência orgânica que

determina uma série de transformações de estados do fenômeno mente/corpo. A

coerência entre imaginação e ação, vista dessa forma, leva a crer que Stanislávski

entendia a importância do meio, do ambiente, da situação, na constituição do humano:

“Em todo objetivo físico há uma psicologia e vice-e-versa. É impossível separá-los”

(Idem, ibidem: 146).

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Essa coerência de funcionamento já estava presente nos estudos de François

Delsarte (1811-1871), que acreditava na possibilidade do corpo como construtor de

significados (BONFITTO, 2002: 01-09). Para cumprir tal objetivo e tornar o corpo

objeto de estudo de processos comunicacionais, Delsarte propôs seu modelo da Tríplice

Natureza Divina, classificando o homem em componentes constitutivos (Vida, Alma e

Espírito), Estados Interiores correspondentes (Sensível, Moral e Intelectual) e

Modalidades Expressivas Exteriores, também correspondentes, (Voz, Gesto e Palavra),

baseado naquilo que considerava ser o regulador de todas as coisas, a Trindade Pai,

Filho e Espírito Santo. Delsarte ainda define o Gênero de cada derivação de expressão

sendo: Vital – Excêntrica, voltada para o exterior; Anímica – Normal, equilíbrio entre

interior e exterior; e a derivação Espiritual – Concêntrica, voltada para o interior. Define

ainda cada “espécie de expressão em relação à influência exercida sobre a expressão de

um estado interior”. Com o cruzamento entre gêneros e espécies de expressão, Delsarte

cria uma tabela guia que denominou de Criterium Geral – nove células conceituais por

meio das quais acreditava que “todos os movimentos ou modalidades expressivas são

definíveis” (BONFITTO, 2002: 06). Além disso, Delsarte propôs a Lei da

Correspondência, que talvez tenha sido a primeira sistematização, no âmbito do trabalho

do ator no ocidente, dessa relação entre movimentos (emocionais, intelectuais,

sensíveis) que são percebidos como internos ao ator, e uma espécie de analogia

expressiva, em que se baseia a busca de códigos de representação. Diz a Lei de

correspondência de François Delsarte que: “A cada função espiritual, corresponde uma

função do corpo; a cada grande função do corpo, corresponde um ato espiritual”

(SHAWN, 1963, apud BONFITTO, 2002: 06).

De acordo com Matteo Bonfitto, as ações físicas de Stanislávski concentram

algumas características:

1) são sempre ações psico-físicas, quer dizer, resultam e desencadeiam processos

interiores, como dito a seguir: “Resumindo: o ponto principal das ações físicas não está nelas mesmas, enquanto tais, e sim, no que elas evocam: condições, circunstâncias propostas, sentimentos. O fato de um herói de uma peça acabar se matando não é tão importante quanto as razões interiores que o levaram ao suicídio. [...] Existe uma ligação inexorável entre a ação de cena e a coisa que a precipitou” (STANISLÁVSKI, 1979 apud BONFITTO, 2002: 25).

2) são catalisadores de outros elementos técnicos do “sistema” de Stanislávski,

que com base na elaboração do método das ações físicas, passaram a ser vistos em

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relação a elas, como por exemplo, as linhas de força da ação, sensibilidade, imaginação

e etc.

Ainda um outro aspecto que o autor levanta é a relação de compromisso do ator

com um interesse na execução de ações simples, como abrir uma porta ou pegar um

copo e etc. “Com a elaboração do conceito de ação física, [...] vemos que não há mais

uma distinção funcional entre ação interna e ação externa”. E, ao invés de buscar

emocionar-se, o ator deve procurar compreender o “como” realizará as pequenas ações

de sentar-se, lavar-se e etc, variando em ritmo, intensidades, com objetivos diferentes

em relação a diferentes tipos de memórias. Este é outro aspecto que Matteo considera

que o método das ações altera o entendimento das idéias de Stanislávski. Com as ações

à disposição do ator, ele pode acessar a “memória das sensações e dos sentidos; uma

memória física, portanto” (BONFITTO, 2002: 26-27).

Um aspecto importante a ser considerado em relação às ações físicas é que, no

teatro de Stanislávski, o texto dramático determina os limites da narrativa e cerca as

relações entre os personagens, delimitando o campo da criação de ações no palco na

medida em que se desenrola o conflito. Cada personagem possui objetivos diferentes e

aponta para direções diferentes, o que determina a lógica de criação de ações dos atores,

ou seja, as ações serão interessantes, do ponto de vista estético, na medida em que

possibilitarem ao público seguir as diferentes opiniões e coerências de desejo de cada

personagem. O público fica sabendo o que os personagens pensam e sentem pelas ações

que realizam em cena. Assim como o elenco cria os personagens complementando com

suas memórias e vivências particulares as ações propostas pelo texto, o público lê o

espetáculo pressupondo certa relação entre sua vida íntima e a dos personagens.

Esses processos, chamados de identificação, de acordo com muitos pensadores

teatrais, só emergem se forem respeitados os princípios da tragédia formalizados por

Aristóteles (450 a.C), que determinam uma integralidade entre tempo espaço e ação.

Para Aristóteles, a tragédia é uma imitação de uma ação contínua que se

desenrola em um período de tempo curto, em um local específico. “Em conformidade com sua classe, é uma imitação de uma ação, da mesma forma como a epopéia e a comédia; mas em conformidade com seu gênero, é uma imitação de uma ação digna de compaixão. Destes dois conceitos, é possível derivar inteiramente todas as suas regras e mesmo a sua forma dramática pode ser daí determinada” (LESSING, 1964: 67).

Isso se deve ao fato de que Aristóteles, assim como o teatro dos séculos que se

seguiram até meados do século XX, mirava o medo e a compaixão, para fins de

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purificação desses sentimentos44 e, sendo assim, há uma função de discussão moral e

ética como vocação inerente à obra dramática. Para que isso seja possível, é preciso que

o público se identifique com os personagens, se reconheça neles. Assim, é determinante

que a elaboração dos personagens – dos heróis, no caso das tragédias – se inscreva em

um limite de coerência de atitudes críveis. Isso permite ao público acreditar

coletivamente em uma realidade compartilhável, ademais parte de uma noção

compartilhável de realidade. Os personagens precisam habitar mundos muito próximos

aos do público, que funcionem com base em leis da natureza percebidas pela maioria

das pessoas, porque o que se pretende discutir não é o mundo natural, mas os conflitos

entre os homens que se desenrolam sobre essa noção de mundo natural.

Assim, a estrutura da natureza física do mundo, a physis, no teatro aristotélico,

assume certa estabilidade de funcionamento, determinando também uma noção estável

para o conceito de corpo que a percebe, pois, para o autor, esse entrelaçamento define o

sentido de ação. É pelo corpo que se move e age em torno de algo que este algo é

definido. O mundo é definido pela ação do corpo no espaço, e essa ação se inscreve, por

sua vez, em uma noção de espaço, de acordo com a escala humana: o metro45. Aliás,

44 Albi Lessin discute o fato de que Aristóteles não sugeriu que somente essas seriam as paixões que poderiam emergir nas tragédias, mas que essas, sim, deveriam ser purificadas. Essa não é uma discussão que se levará adiante aqui, já que se trata de problema filosófico e estético cuja especificidade e envergadura é tema para outras tantas dissertações. Nesse momento, somente cabe lembrar que estas medidas e princípios nortearam a dramaturgia, um dos pilares do teatro ocidental desde Aristóteles (LESSING, 1964: 51-101). 45 Mesmo que a correspondência entre microcosmo e macrocosmo não seja uma implicação na filosofia Aristotélica, quando o autor nega o movimento autônomo do universo em sua totalidade, a noção de correspondência entre eles é assunto antigo da filosofia e encontra-se na base de diversas cosmogonias, principalmente na cosmogonia dos órficos, que julga o universo decorrente de um ovo: “nasceu de um ovo, porque é um animal” (cf .A. OLIVERI, Civiltà greca nell´Itália meridionale, Nápoles, 1931, pp23ss apud ABBAGNANO, 2000: 670) Quando se trata de estados alterados de consciência, toca-se inevitavelmente a literatura mágica, e esse princípio está nela contido pela maneira que se condicionam as relações de funcionamento dos ritos e dos trabalhos feitos para determinar acontecimentos naturais. Como Abagnano coloca, a natureza é vista como domesticável. Esta pesquisa trata também de uma correspondência inevitável entre microcosmo e macrocosmo, mas em sentido de mão dupla, pois vê a correspondência determinada pelas conexões entre sistemas complexos. Não há uma domesticação propriamente dita, mas uma co-evolução e co-dependência entre meio e corpo, natureza e cultura. “Embora a origem da palavra seja o termo grego µέτρον (metron), medida, através do francês mètre, a procura por uma unidade padrão de medição é bem mais antiga. Em 1889 um grupo de estudiosos franceses definiu que a unidade de comprimento metro deveria corresponder a uma determinada fração da circunferência da Terra (1/40.000.000) e correspondente também a um intervalo de graus do meridiano terrestre, o que resultou num protótipo internacional em platina iridiada, que ainda hoje é conservado no Bureau Internacional de Pesos e Medidas, na França, e que constitui o metro-padrão. Atualmente, a medida que foi definida por convenção com base nas dimensões da terra e que equivale a décima milionésima parte do quadrante de um meridiano terrestre, com a crescente demanda de mais precisão nesse referencial ou a possibilidade de sua reprodução mais imediata e a qualquer momento, levou os parâmetros da unidade básica para ser reproduzido em laboratório e comparado com outro constante no meio mais exato, que é a velocidade de propagação eletromagnética. Assim sendo, a décima milionésima parte do quadrante de um meridiano terrestre medido em laboratório, corresponde ao espaço linear

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metron, na tragédia antiga, tem o sentido de “a medida de cada um”, o ponto onde o

personagem encontra seu limite, separando-o das dimensões divinas. É a transgressão

do metron que define o ato trágico e desencadeia a nêmesis, a fúria dos deuses, tornando

o personagem, um êmulo deles que o fará expiar suas ações. (BRANDÃO, 1985:

11-15).

Motivado pelo cientificismo do século XIX, Stanislávski codificou essas noções

em leis de funcionamento do ator. A permanência da dualidade pode ser identificada na

compreensão de que a atenção do ator tem direções precisas em cena: os sentidos do

que ele profere revelam aspectos submersos dos personagens, da natureza humana46.

Para Stanislávski, o foco de atenção do ator em cena precisa objetivar os aspectos

técnicos que tornam possíveis ao público a visualização clara desses elementos de

funcionamento do fenômeno mente/corpo dos personagens: pessoas (com as quais se

identificar) que agem continuamente a favor de seus desejos e objetivos, em um período

de tempo definido e em espaços determinados. Tecnicamente, o ator precisa direcionar

sua atenção para as imagens que ele tem dos “conteúdos dos textos” que fala, precisa

ver “com o olho da mente” as idéias dos personagens de modo a imaginá-las como um

filme ininterrupto, com ritmos e intensidades variantes. Seu corpo deve responder a esse

processo imaginativo de modo a agir correspondentemente. Mesmo que esse processo

seja indissociável ou que, muitas vezes, seja o agir (levantar uma faca com força, por

percorrido pela luz no ‘vácuo’ durante um intervalo de tempo correspondente a 1/299792458 de segundo, e que continua sendo o metro padrão”. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Metro> Acesso em: janeiro de 2008. 46 Esse aspecto da tragédia foi reinterpretado em diversas épocas na história das artes da Europa e em conseqüência, do que se costumava chamar de Ocidente. As discussões modernas sobre a questão da purificação tornaram-se em Nietzsche (1844–1900), por exemplo, um problema de contraste entre “moral” e “metafísico”, recaindo a discussão e sua contribuição central no “mito”, sistematicamente afastado do pensamento ocidental com o avanço da dialética socrática em direção a saber científico. Segundo Nietzsche, a tragédia só poderia renascer “apenas quando a ciência tivesse sido levada aos seus limites e, confrontada com esses limites, forçada a renunciar a sua reivindicação de validade universal” (NIETZSCHE, 1872 apud WILLIAMS, 2002: 64). Segundo Raimond Williams, o pensamento de Nietzsche está amparado por imagens motivadas por um determinismo proveniente de interpretações sociais limitadas das teorias de Darwin. Embora a genética não estivesse disponível como hoje se encontra, “a sobrevivência do mais apto”, foi entendida não como a sobrevivência daquele que está mais bem adaptado, mas das formas de vida mais violentas e mais agressivas “[...] a personificação da ‘Natureza’, ‘selecionando sem piedade’, é uma sobrevivência do pensamento metafísico, que pôde passar por científico” (Ibdem). Geralmente, essas leituras das idéias de Darwin carregam uma valoração em relação à evolução e à adaptação na qual o mais evoluído é mais evoluído em relação à um suposto parâmetro universalmente aceito; e a adaptação, é uma espécie de adequação às leis culturais, políticas e econômicas impostas pelos grupos ou países mais fortes. Quando se trabalha nessa perspectiva equivocada sobre os escritos de Darwin, torna-se fácil propor teorias, por exemplo, que reforçam os paradigmas da dominação entre raças, o que se viu refletido com o Nazismo, e que subsiste em diversos tipos de imperialismos e regimes ditatoriais. Tais leituras enganosas sobre a Teoria da Evolução confundem inadvertidamente os desatentos em relação à complexidade existente entre natureza e cultura e não correspondem à seriedade da abordagem que muitos autores contemporâneos sustentam.

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exemplo) que faz emergir as emoções (a raiva, ou a vontade de matar). O dever do ator

(energia acumulada – trabalho realizado – transformação conquistada) é manter vivo,

pelo esforço em concentrar-se, uma relação ininterrupta com o contexto dramático

(fictício, imaginativo, narrativo) da peça (tempo e espaços definindo situações). O ator

usa energia acumulada e obtém resultado.

No entanto, esforço não significa tensão. O corpo necessita de um relaxamento

mediano para respirar tecnicamente, falar tecnicamente, andar e agir tecnicamente, de

modo a imitar a ação, a atuar, ou seja, um corpo que precisa realizar uma ação em pé

não pode estar relaxado a ponto de não conseguir sustentar-se ereto. A não ser que seja

uma criação específica, uma leitura do gesto diferente e justificada pelo contexto

estético da montagem, não haverá identificação por parte do público, impedindo que se

completem as vocações aristotélicas do teatro. Se a coerência da situação não pedir um

corpo deitado ou de pernas para o ar, ele não pode relaxar-se a esse ponto, isto é, é um

teatro homólogo ao real: a linguagem e o trabalho do corpo em cena, estruturam-se

sobre leis de funcionamento próximas às leis daquilo que se compartilha como

realidade, a noção coletiva que se tem ao perceber que todos habitam o mesmo nível de

descrição da natureza.

Essa noção ficou bastante misturada com a estética realista/naturalista pela

preferência cada vez maior de Stanislávski em buscar dramaturgias e espetáculos que

possibilitassem uma interpretação cada vez menos contaminada por códigos

representativos das emoções, como era a interpretação romântica. Quando se fala de

real, olhando pelo viés de Aristóteles, deve-se entender a mímesis sob a luz dos

processos naturais da physis grega. Só assim as idéias de Stanislávski ganham

novamente seu poder conceitual e deixam de parecer somente uma imitação da forma da

realidade, já que a idéia de mímese, para Aristóteles, está comprometida com uma

noção de essência, de belo, de algo que se mantém mesmo com modificações de

características do objeto.

Por tudo isso, fica o entendimento de que o fenômeno mente/corpo do teatro

aristotélico é um fenômeno definido em razão de um contexto em que a ação é

realização de algo47. Prova disso é a ampla divulgação de seus estudos e teorias e a

47 É possível pensar em um oposto também, e saber que, para Aristóteles, o mais importante era a unidade de ação, e a determinação de tempo e espaço, são conseqüências de uma economia que surge motivada pelo coro na tragédia. Mesmo que alguns considerem o coro como uma possibilidade de mudanças de lugar e saltos no tempo em que se passa o enredo. (LESSING, 1964: 45-47). No entanto, isso não elimina o fato de que tempo e espaço são delimitadores para a ação, sustentáculo para que se tenha uma coerência

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noção comum que hoje (ainda)48 se tem de que atores, em geral, aprendem como

respirar, como andar, como falar, e logicamente, em como relaxar. Não lhes é ensinado,

como não andar, não cantar, etc. Assim, quando entram em cena, a maioria pretende

realizar as coisas que, tecnicamente, foram lhes ensinadas. E aqui se inicia o paradoxo

que permeia a pesquisa: como entrar em cena e não pensar em fazer o que foi

aprendido? Como ir ao palco a “anti-apresentar” o quer foi ensaiado?

Apesar de as pesquisas de Stanislávski terem abordado diretamente com ênfase

o problema mente/corpo, utilizaram-se do material científico de sua época, que ainda

não dispunha de muitas das informações que se tem hoje a respeito da engenharia

genética, do conhecimento e do funcionamento cognitivo. Não obstante, desenvolveu

sua concepção de “trabalho sobre si mesmo” para o ator, o que possibilitou uma

pesquisa mais sistemática em torno das complexidades que o cercam em sua jornada

criativa. E, sem dúvida nenhuma, sua idéia de “ação física” constitui uma contribuição

essencial nesse sentido, pois esse conceito tenta superar as dualidades que costumam,

ainda hoje, permanecer nos discursos em torno do assunto mente/corpo, e

conseqüentemente, de uma possível alteração de consciência para o ator49.

2.1.3 O Ator, segundo Grotowski

Grotowski resolveu, em grande parte, essa questão. Sua proposta para o trabalho

de ator aponta para alternativas de entendimento sobre o fenômeno mente/corpo que

ainda não haviam sido tratadas com a clareza e a radicalidade com que ele tratou. Pelo

menos, não na tradição ocidental do teatro. Quanto ao entendimento e à importância

dada à palavra em cena, e à questão do problema mente e corpo tratado por via da ação,

Grotowski é, sem dúvida nenhuma, um sucessor de Stanislávski.

“No meu caso, não desejo nem a interpretação literária, nem o tratamento literário, pois ambos estão além da minha competência, uma vez que o meu campo de ação é o da criação teatral. Para mim,

interna e que se possa reconhecer, também do ponto de vista da recepção, certa semelhança com um sentido tácito de realidade: reconhecer nela pessoas e seus desejos, sentimentos, ações e suas conseqüências. 48 Problema pedagógico que ambos, Stanislávski e Grotowski, abordaram em suas pesquisas, cada qual a seu modo, superando, cada um, os coquetismos estéticos de suas épocas. 49 “The script is the Bible” aparece freqüentemente nas entrevistas do programa de tv “Inside de Actor´s Studio”, comandado por seu criador e entrevistador, James Lipton. No Brasil, vai ao ar aos domingos, às 20hs no GNT. Não é possível afirmar empiricamente até que ponto este programa pode influenciar diretamente as pessoas no Brasil, no entanto, podemos observar que as opiniões do entrevistador e dos atores entrevistados são condizentes com opiniões de vários atores brasileiros, e que, sim, estes sim, influenciam diretamente o público, mesmo que de maneira geral e inconsciente.

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criador de teatro, o importante não são as palavras, mas o que fazemos delas, o que confere vida às palavras inanimadas do texto, o que as transforma em ‘A Palavra’. Vou mais longe: o teatro é uma ação engendrada pelas reações e impulsos humanos, pelos contatos entre as pessoas. Trata-se de um ato tão biológico quanto espiritual” (GROTOWSKI, 1971: 42).

Um outro nível de descrição desse problema pode ser apontado quando

observada a maneira de falar sobre as questões pertinentes ao ator e sobre o teatro que

se quer fazer. Luedwik Flazen (2007) observa que: “Os jogos lingüísticos de Grotowski são ricos e – depois dos

desajeitamentos, das poeticidades e das circunvoluções chancelerescas dos anos juvenis – alcançaram a harmonia peculiar e uma beleza, por assim dizer, objetiva” (FLASZEN in GROTOWSKI et al., 2007: 21).

Alan Virmaux (2000) propõe uma interessante comparação entre Artaud e

Grotowski, em relação às suas expressões lingüísticas. Para o autor, a linguagem de

Artaud era desencadeada por, “(...) centenas de exemplos” dualistas, expressos, por exemplo, na maioria dos subtítulos do Teatro e seu Duplo, como Teatro e a Peste e etc. Um resultado direto e legítimo considera Virmax, de uma vida de sofrimento e de “um homem que confia em uma interação da vida e do teatro, e que vê no teatro uma espécie de projeção do que deveria ser a vida” (VIRMAUX, 2000: 23).

A linguagem de Artaud ataca sempre e é sempre expressão de um profundo

sentido de conflito e intensidade superando a mera dicotomia ao criar identificações,

como se aprecia em uma relação possível entre Teatro e a Anatomia. Em Artaud, a

presença da forma dramática, em seus escritos, é exemplo do quão profunda e intensa se

estende essa relação entre identidade e oposições, que por si mesma já se comporta de

modo ambíguo: oposições que surgem de identificações e identificações que surgem de

oposições. Em Grotowski, a idéia de um Teatro Laboratório é uma mostra da busca de

precisão e de procedimentos que descrevam de modo claro o objeto “fazer teatral”. Ao

mesmo tempo em que encerra também a possibilidade de tornar a ciência algo menos

“dura” e “fria”. Embora ele mesmo tenha deixado clara que a pesquisa em arte pouco

tem a ver com a pesquisa científica, fica patente que essa relação se estende além de um

formalismo semântico ou de mera curiosidade. Ainda que tenha sido considerado um

artista que concretizou muitas das idéias do teatro de Artaud, e ele mesmo aceitava isso,

procurou deixar claro as suas diferenças e suas opiniões a respeito de seu

contemporâneo. Grotowski conheceu os escritos de Artaud “tardiamente” – 1964,

posterior à formação de suas concepções cênicas (TEMKINE, 1968 apud VIRMAUX,

2000: 249). Para Grotowski, bem como para Artaud e Stanislávski, ser ator, em

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primeiro lugar, é ser investigativo, mesmo que não tenham dito isso em termos literais.

Nesse sentido cabem aqui todos os artistas e pensadores que resolveram entender os

processos de criação pela via do corpo. Cada qual desenvolvendo suas metodologias

particulares enquanto compartilhavam, em seus tempos e lugares, a vontade de abordar

a criatividade por meio da fisicalidade, fisicidade, corporeidade, ação, matéria,

organicidade e etc. Por isso, desde Delsarte, Delacroix, Copeaux e a Küperkultur, a

“Cultura do Corpo”, passando por Leving Theatre, Artaud, Grotowski, Barba, Peter

Brook, toda a tradição de teatro Oriental, e muitos outros pensadores, filósofos, atores e

encenadores teatrais do século XX têm procurado entender e contribuir de modo mais

particular as questões pedagógicas da formação do ator (BONFITTO, 2002: 10-14).

Muitos consideram que Grotowski é uma superação do teatro em relação à

palavra, mas esta frase é o melhor exemplo, talvez, que se possa trazer do fato de que as

escolhas de montagens revelam uma preferência não pela palavra do dramaturgo em si,

mas por aquilo que está por trás dela: os conflitos humanos imersos na noção de

realidade compartilhável (biológica e espiritual), vinda de Aristóteles. A noção de que

possa haver uma “A Palavra”, dita com “A” maiúsculo, em absoluto, como uma palavra

geradora, essencial, matriz, mais completa e complexa do que a palavra do dramaturgo

– idéias por meio de traços de tinta sobre o papel, cujo sentido pleno pertence à

literatura –, ou da palavra do dia-a-dia, determinada pelo imediatismo utilitário das

relações não-poéticas. Sem dúvida é uma busca por uma palavra que corresponda mais

ao ato teatral do que ao ato literário: a palavra oral, da vocalidade, da vocação – que está

ligada etimologicamente ao chamado subjetivo, de acordo com o cristianismo de Paulo:

“Quem for chamado numa vocação, nela permaneça”. Atualmente, a vocação está

associada a uma leitura pedagógica do sujeito, e significa uma “propensão para qualquer

ocupação, profissão ou atividade” (ABBAGNANO, 2000: 1006-1007). De acordo com

Abbagnano, a vocação difere da aptidão, pois é um chamado subjetivo, e não uma

capacidade de realização. O sujeito pode ser atraído para determinada função, mas não

estar apto a realizá-la. Dessa forma, a vocação pode ser um “beco sem saída”, um

conflito entre desejo e contexto, ou de acordo com as linhas de força de Stanislávski,

uma aproximação entre personagem e ator que lhe permite viver o papel, uma

associação entre ambos. Em Grotowski, essa relação de vocação se expressa no início

do capítulo que trata do treinamento do ator (relativo ao período entre 1959 e 1962), no

livro Em Busca de Um Teatro Pobre:

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“Durante esse tempo, eu estava procurando uma técnica positiva ou, em outras palavras, um determinado método de formação capaz de dar objetivamente ao ator uma técnica criativa que se enraizasse na sua imaginação e em suas associações” (GROTOWSKI, 1971: 84).

Ou seja, uma técnica de esforço em “como fazer”. O autor, em seguida, afirma

que se eliminaram todos os exercícios que ofereciam uma única resposta à essa

pergunta, tornando-os um pretexto para elaborar uma forma pessoal de treinamento. O

objetivo dos exercícios mudam e o ator passa, então, a buscar “as suas próprias

resistências e obstáculos que prendem sua forma criativa”. Os exercícios passam a

oferecer um meio de descobrir “o que não fazer, o que o impede”. É um processo de

eliminação dos “impedimentos pessoais”, uma “via negativa” (GROTOWSKI, 1971:

85).

Uma das definições encontradas de verossímil é “aquilo que é semelhante à

verdade, sem ter a pretensão de ser verdadeiro” (ABBAGNANO, 2000: 1000). Para

Aristóteles, não é função do poeta narrar fatos verdadeiros, e sim “representar o que

poderia acontecer, as coisas possíveis segundo verossimilhança ou necessidade” (Idem,

ibidem).

“A necessidade e a verossimilhança devem estar presentes na representação dos caracteres, assim como nas seqüências das ações, de maneira que seja necessário e provável, a determinado personagem, falar tais palavras e praticar tais atos; também é assim em relação ao ordenamento dos fatos” (ARISTÓTELES, Poética, 88. Trad. Baby Abrão, 1999: 49).

Resolve-se assim, no que tange as necessidades desta pesquisa, a discussão em

torno do problema forma e conteúdo, quando se trata da aproximação entre Grotowski e

Stanislávski. A questão motivadora, para a tradição aristotélica, principalmente para

Grotowski, não é a palavra escrita, mas as leis de coerência das palavras, as

circunstâncias e a lógica de funcionamento de um nível de realidade em que se

encontram pessoas, cujos carácteres (degradados ou não) são conhecidos através de

personagens agindo em situações que poderiam acontecer.

A vocação ainda persiste, mas é trabalhada de outra maneira, uma maneira que

permitirá a aproximação do interesse de artistas que não estão interessados no teatro

como verossimilhança, e sim como ações performáticas, como arte híbrida e

(ironicamente) tecnologizada. Esse desprendimento relativo da palavra do dramaturgo

permitiu a Grotowski partir de onde Stanislávski parou e tocar mais profundamente na

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presença performática do ator em cena, aproximando seus trabalhos de pesquisa a

procedimentos de happenings e linguagens perfomáticas mais comuns à segunda

metade do século XX.

Diversos trabalhos sérios já se detiveram na aproximação entre Stanisláwski e

Grotowski, tendo como ponto de estreitamento diversos fatores, mas todos são comuns

em afirmar a ação como ponto fundamental da estrutura do ator como campo próprio de

conhecimento (MEYER, 2006, BONFITTO, 2002, FERRACINI, 2003)50. E, nesse

sentido, encontram-se também Eugênio Barba, Meyerhold, Artaud, Rudolf Laban,

Delsarte, Delacrox, Delcroze, Living Theatre, Peter Brook e outros. O fato é que

Grotowski é um exemplo claro de que a tradição do teatro ocidental foi traçada sob a

perspectiva da Poética de Aristóteles, já que, mesmo muitos dos que se propuseram a

estudar o teatro do ponto de vista do ator, do corpo e da ação, se detiveram em parte nos

limites da narrativa, construídas por diversos caminhos, sem dúvida, mas sempre

mantendo uma estrutura de coesão entre tempo, espaço e ação. Isso porque...

“Como sabemos, a história do teatro no Ocidente, sobretudo a ‘oficial’, foi pontuada por tentativas de normatização as quais tiveram como referência a Poética de Aristóteles. Bastaria citar Castelvetro ou Boileau. Tal fato gerou muitas implicações, mas talvez a mais importante seja a de pensar o fenômeno teatral a partir dos elementos constitutivos do texto dramático, deixando de lado todos os aspectos performáticos, ou seja, aqueles relativos ao espetáculo. De fato se tomarmos como exames os livros de história do teatro o que veremos na grande maioria dos casos são histórias dos textos dramatúrgicos [...] Neles, o trabalho do ator e os processos de atuação, o espaço, os materiais envolvidos, bem como os diferentes conceitos de personagem não são examinados” (BONFITTO, 2002: 14)”.

E em nota de rodapé, Matteo acrescenta:

“Mesmo sabendo que a referência estética de Aristóteles é aquela da ‘forma perfeita’ que necessita de uma fixação espaço-temporal, o que faz com que o espetáculo seja considerado um epifenômeno, isso não muda o quadro das coisas” (Ibdem).

Então, podemos inverter o pensamento e mudar o foco da discussão, dizendo

claramente que: não só “não muda o quadro das coisas”, como acaba por definir sobre

qual realidade se tratará o teatro que se quer fazer. E mais: é justamente por partir dessa

50 A tese de doutorado de Sandra Meyer, defendida na PUC/SP, sob a orientação da Profa. Dra. Christine Greiner, no Programa de Estudos Pós Graduados em Comunicação e Semiótica, é um exemplo de qualidade de pesquisas em torno dessa questão. Ela oferece material suficiente para afirmações sobre as relações entre Stanislávski e Grotowski através da ação, que ajudam a entender a relação que isso possa ter com a idéia de estados alterados de consciência para o ator na era da Artemídia.

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noção de realidade que o quadro das coisas não muda. Pois, como veremos na

Artemídia, quando a tecnologia desmonta a noção cartesiana de tempo e espaço, torna-

se complicado estabelecer uma ação aristotélica, fato que permite tornar viável a busca

de Grotowski por um teatro pobre em tecnologias, ou a necessária idéia de uma ação

enquanto alteração de consciência para o trabalho de ator em obras com altos índices de

influência tecnológica.

Mas, antes disso, é imprescindível estender a discussão até se encontrar as ações

físicas em Grotowski. Como já foi dito, Grotowski considera o teatro, em primeiro

lugar, como campo do ator. A idéia de pré-expressividade51 determina o nível de

energia empregada nas ações do ator em cena, e parece estar alicerçada num contínuo

escalonar de tensão e resistências aos fluxos de movimento e aos impulsos emocionais.

Seja no naturalismo televisivo ou do corpo no butô em cena, seja na comédia Dell´Arte

ou no realismo de Stanislávski, a ampliação do gesto é inerente à construção do corpo

em cena. Um dos sintomas disso é o próprio termo usado para se referir à postura do

intérprete: o trabalho do ator, que se refere também ao esforço exercido pelo ator no

diálogo com a realidade.

Grotowski propunha longas horas de treinamento, executando exercícios de

acrobacias e exercícios que pudessem alterar de tal forma as dinâmicas corporais dos

atores que só lhes restasse o que era de criativo. Eliminando as tensões, os vícios, os

coquetismos, os hábitos de andar conquistados por um corpo funcional – que sabe fazer

coisas no cotidiano como pegar uma colher, comer, andar e etc – mas que em cena nada

tem de especial, nada pode contar ou comunicar, porque é um corpo morto para a

percepção de si mesmo e do outro, do espaço, do tempo, dos sons e da materialidade

física na qual vive. Buscou no Oriente, em culturas tradicionais, cantos e danças rituais

que pudessem oferecer algum subsídio ao processo de formação do ator. Seu trabalho

tornou-se amplamente conhecido pelo rigor técnico e pelo altíssimo nível de entrega

corporal que exigia. De modo pragmático, tocou em procedimentos religiosos de

alteração do fenômeno mente/corpo, absorvendo destes, os modos de funcionamento e 51 No Brasil, um dos melhores exemplos de que se poderia lançar mão é o trabalho do Lume, Unicamp, em Campinas, Barão Geraldo. Com longa tradição de pesquisas nessa área, inspirados por seu fundador Luis Otávio Burnier, o Lume é referência teatral quando se tratam de processo de construção de personagens, de cena, de espetáculos, técnica e treinamento do ator a partir do corpo. Um de seus fundamentos técnicos é a idéia de “pré-expressividade”, amplamente discutida por Eugênio Barba. O livro de Renato Ferracini sintetiza os trabalhos do Lume, e para uma idéia de estados alterados de consciência, pode servir de referencial.

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transformando-os em estruturas de treinamento, pesquisa e formação de um corpo apto

para o trabalho de criação cênica. Uma criação que resultou de sua intensa afeição pela

precisão das idéias, emoções, e claro, por uma estética corporal. Em resposta às intensas

misturas de linguagens estéticas e à crescente influência da tecnologia no teatro,

Grotowski posiciona-se de frente e propõe um “teatro pobre” em tecnologia, calcado no

ator e em seus poderes de comunicação corporal através da ação física. E, como vimos,

esta idéia pertence a uma linha de entendimento da cena que é apoiado em Aristóteles.

Em Grotowski, no entanto, ganha engendramento ritualístico, em busca de um contato

entre humanos, como disse:

“A força das grandes obras reside no seu efeito catalítico: abrem portas para nós, coloca em movimento a maquinaria de nossa auto-suficiência. Meu encontro com o texto lembra o meu encontro com o ator, e o dele comigo. Para o ator e o diretor, o texto do autor é uma espécie de bisturi que nos possibilita uma abertura, uma autotranscendência, ou seja encontrar o que está escondido dentro de nós e realizar o ato de encontrar os outros: em outras palavras, transcender nossa solidão. No teatro, se me permite, o texto tem a mesma função que o mito tinha para os poetas antigos” (GROTOWSKI, 1971: 41).

Não somente pela abordagem do texto, mas, sobretudo pela relação de encontro

com uma noção de coletivo que tem a capacidade de transformar a experiência do

indivíduo em relação à sua própria existência, superando a solidão, um aparente

desligar-se primordial. “A essência do teatro é um encontro. O homem que realiza um ato de auto-revelação é, por assim dizer, o que estabelece contato consigo mesmo. Quer dizer, um extremo confronto com seus pensamentos, sincero, disciplinado, preciso e total – não apenas com seus pensamentos, mas um encontro que envolve todo o seu ser, desde seus instintos e seu inconsciente até seu estado mais lúcido” (GROTOWSKI, 1971: 41).

E isto acaba sendo o mesmo que falar na tensão performática que Richard

Schechner (1934) destaca em Performance Theory: “A Performance se origina de impulsos para fazer as coisas acontecerem e para entreter; para obter resultados e para divertir; para colher significados e passar o tempo; para ser transformado em outro e para celebrar o ser você mesmo; para desaparecer e para aparecer; para trazer a um lugar especial um Outro transcendente que existe aqui e agora e depois; para estar em transe e para estar consciente; para focar em um grupo seleto que compartilha uma linguagem secreta e para transmitir para o maior número possível de estranhos; para jogar com o objetivo de satisfazer uma obrigação pessoal; para jogar somente sob um contrato justo por dinheiro. Essas oposições e outras originadas por elas compreendem/englobam a Performance: uma situação ativa, um processo contínuo e turbulento de transformação. A

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mudança de ritual para teatro acontece quando um público participativo se fragmenta em uma coleção de pessoas que pagam ingresso, que avaliam o que irão ver antes, durante e depois de ver o espetáculo. A mudança de teatro para ritual se dá quando o público é transformado de uma coleção de indivíduos separados em um grupo ou conjunto de participantes” (SCHECHNER, 1988: 141-142, tradução de Leila Guaracy Taves a pedido desta pesquisa)52.

Grotowski se interessa pela experiência teatral como um “encontro”, um

encontro que se define por um sentido de rito, e embora isso tenha tido implicações,

como veremos mais adiante, é um encontro, pois se dá na inter-relação entre ator e

público, um algo que exige de ambos a máxima entrega em um ato de troca constante

que não tem sentido dentro de uma lógica econômica de esforço e preservação da

aventura de aprofundar-se nas informações em fluxo, em “com o outro”.

Inter-relação que se estende também ao ator em seus treinamentos, e que está

presente em diversos sistemas de ritos, transes e curas, por sugestionamentos dos “se”

mágicos e imaginários, próprios da seriedade com que brincam as crianças em seus

mergulhos mágicos em terras distantes. E ao fazerem, sabem como sobreviver na tênue

linha da dissociação e contaminação entre realidades de potenciais distintos, ingênuos e

crédulos, despojados... “Para usarmos fórmulas científicas, podemos dizer que se trata de um emprego particular da sugestão, tendo como objetivo uma realização ideoplástica. Pessoalmente, devo admitir que nunca recuamos no uso dessas fórmulas de ‘charlatães’. Tudo que tenha um halo fora do comum e mágico estimula a imaginação, tanto do ator quanto do produtor” (GROTOWSKI, 1971: 23).

Nus, portanto, ao convite irresistível da transformação, elenco e platéia assumem

seus estados participativos e já se mesclam nas funções de agir e perceber. O Ator

Santo, para Grotowski, é aquele que se entrega incondicionalmente às regras desse jogo

de máxima percepção de si, do outro e das coisas que são produzidas nesse encontro. “Temos que recorrer a uma linguagem metafórica para dizer que o fator decisivo neste processo é a humildade, uma predisposição espiritual: não para fazer algo, mas para impedir-se de fazer algo, senão o excesso se torna uma imprudência, em vez de sacrifício. Isto

52 “Performance originates in impulses to makes things happen and to entertein; to get results and to full around; to colect meanings and to pass the time; to be transformed into another and to celebrate being onself; to desapper and to show off; to bring into a special place a transcendent other whose exists then-and-now and later-and-now; to be in a trance and to be conscious; to focus on a select group sharing a secret language and to broadcast to the larges possible audience of strangers; to play in order to satisfy a felt obligation and to play only under an equity contract for cash. These oppositions, and others generated by them, comprise performance: an active situation, a continious turbulent process of transformation. The move from ritual to theater happen when a participating audience fragments into of a collection of people who pay admission, who evaluate what they are going to see before, during, and after seeing it. The move from theater to ritual happens when the audience is transformed from acollection of separate individuals into a group or congregation of participants” (SCHECHNER, 1988: 141-142).

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significa que o ator tem de representar num estado de transe. O transe como eu entendo, é a possibilidade de concentrar-se numa forma teatral particular, e pode ser obtido com um mínimo de boa vontade. [...] Se eu tivesse de expressar tudo isso numa só frase, diria que se trata do problema de dar-se. Devemos nos dar totalmente, em nossa mais profunda intimidade, com confiança, como nos damos no amor. Aí está a chave. A autopenetração, o transe, o excesso, a disciplina formal – tudo isto pode ser realizado, desde que nos tenhamos entregue totalmente, humildemente, sem defesas. Este ato culmina num clímax. Traz alívio. Nenhum desses exercícios nos vários campos do treinamento do ator deve ser de superfície. Deve desenvolver um sistema de alusões que conduzam a um alusivo e indescritível processo de autodoação” (GROTOWSKI, 1971: 23).

No entanto, o que mais chama a atenção em seu trabalho, é o fato de que ele

propõe precisamente, aspectos para a atenção do ator durante essa comunhão. Ela não se

dá aleatoriamente, parte da ação, do corpo e de suas conexões com o meio, o que

justifica seu conceito de transe e nos possibilita uma leitura própria da noção de estados

alterados de consciência.

“Acredito que devemos desenvolver uma anatomia especial do ator; por exemplo, encontrar os vários centros de concentração do corpo, para as diferentes formas de representar, procurar as áreas do corpo que o ator sente, algumas vezes, como suas fontes de energia. A região lombar, o abdome e a área em volta do plexus solar muitas vezes funcionam como uma fonte” (GROTOWSKI, 1971: 23).

2.1.4 O que é o foco de atenção para o ator e como ele se concentra

Muitas pessoas perguntam para atores como é que eles fazem para se lembrar de

tanto texto, e como fazem para não sentirem vergonha da platéia. As respostas mais

comuns é que “era o personagem”, por isso não sente vergonha e “na hora sai”. E

muitos não sabem explicar os motivos. Não só porque é difícil mesmo explicar, mas

porque é difícil lembrar o que se faz em cena, sem estar em cena. Mas se o ator estava

em cena, por que não descreve o que fez lá? Por que é tão difícil para o ator descrever o

seu estar em cena? Onde se concentra a memória do ator? Onde ele “estava com a

cabeça?” Em que prestava a atenção? Vale lembrar que o próprio Stanislávski cogitou

de que o ator age em cena em uma espécie de transe nas palavras de um aluno ao

descrever uma improvisação no capítulo XVI de A preparação do ator, capítulo

intitulado, não por acaso de No limiar do subconsciente: “O tempo todo eu sentia que,

se de fato eu fosse operado, passaria justamente pelos transes que passei durante essa

operação de caçoada” (STANISLÁVSKI, 1979: 298). Mas o autor não aprofundou o

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assunto nesses termos, diferente de Grotowski, que chegou a propor a sua “técnica de

transe”.

O conceito de corposintético que se propõe aqui como um parâmetro

metodológico para a identificação e o estudo de estados alterados de consciência, pede

pelo entendimento da atenção. Para Stanislávski, o “estado criativo do ator” pressupõe

um “estado interno” que se compõe das circunstâncias determinadas pelo enredo

(circunstâncias dadas), imaginação, memórias, objetivos e unidades (os desejos dos

personagens e os verbos demarcadores de ação), a adaptação (uma aproximação entre

ator e personagem) a comunhão, a fé, o sentimento de verdade (elementos que dizem

sobre a crença do próprio ator em relação ao que ele realiza, a entrega, o mergulho

lúdico no universo da peça) e, finalmente, a concentração da atenção.

Este estado interno compõe-se de uma percepção de si e do mundo muito

distinta da percepção do corpo no dia a dia, e o autor exemplifica isso partindo de uma

metáfora muito apropriada à idéia de consciência que é a da iluminação teatral

determinando o foco de atenção do ator. O autor chega a dedicar, em A Preparação do

Ator, um capítulo inteiro ao tema. Traça uma analogia muito interessante entre a

iluminação elétrica e o campo de visão, e define que o ator pode incluir em seu universo

criativo durante a cena, diferentes tipos de ambientes, de objetos (no sentido

epistemológico), realidades distintas e diferentes níveis de descrição da natureza, das

linhas de força entre os personagens à materialidade dos móveis em cena. O ator deve

saber organizar os fluxos informacionais que estão no espaço, do contrário, seria

“engolido” pelo “buraco negro para além da ribalta”53 desenvolvendo um modo de

“olhar as coisas, no palco, e vê-las”, de fato (STANISLÁVSKI, 1979: 102). Do

contrário, pode ser engolido pela escuridão para além da ribalta, e esse é um dos

grandes problemas para o ator, ou para qualquer pessoa que já precisou falar em

público: a sensação de que a “audiência quer alguma coisa de você” gera uma

desconfortável sensação de que é preciso que se faça algo para acalmar a platéia.

53 As aulas de teatro na história de A preparação do ator são contadas do ponto de vista de um aluno fictício de Stanislávski. Elas acontecem, em sua maioria, em um teatro de modelo elisabetano, que valoriza, pelas características arquitetônicas da caixa preta, o ilusionismo realista e, conseqüentemente, a distância entre público e espetáculo. Diferentemente de Grotowski, que propôs distintas relações entre palco e platéia em suas montagens, por exemplo, em O príncipe constante, de (1965 e 1968) em que a platéia distribuía-se em torno da área de encenação.

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Quando emoldurado pelo palco, principalmente no de modelo italiano, o ator tem o foco

da atenção do público sobre si de modo indubitável...

“O cenário encerra o ator. Isola-o do fundo do palco. Acima dele há grandes espaços escuros; de cada lado os bastidores, delineando a sala. Esse semi-isolamento é agradável, mas tem a desvantagem de projetar a atenção [do ator] sobre o público [...] meus temores me faziam sentir a obrigação de interessar a platéia. Esse sentimento de obrigação interferia, impedindo-me de atirar-me totalmente no que fazia” (STANILÁVSKI, 1979: 35).

Para isso, o teatro vem desenvolvendo técnicas de concentração, para que se

domestique o medo do escuro e do silêncio e para que além deles, possam emergir

linguagens complexas, e não apenas choros desesperados de sufocamento. O

corposintético é um resultado do sufocamento, de uma domesticação excessiva que

impede o corpo de superar-se a si mesmo enquanto treinamento perceptivo de atenção.

Stanislávski dá exemplo da atenção exterior para objetos e para a realidade

material da cena, mas é para a “atenção interior” que pareceram convergir as leituras de

suas obras, pois, para o autor “a ‘concentração interior’ focaliza coisas que vemos,

ouvimos, tocamos e sentimos, em circunstâncias imaginárias” (STANILÁVSKI, 1979:

113). Estas circunstâncias imaginárias são justamente as linhas de força da narrativa,

determinadas pelos objetivos dos personagens imersos nos limites de uma concepção de

realidade compartilhável. Ou seja, fluxos informacionais que mantêm uma relação

próxima à concepção de realidade que se tem no dia a dia, e que, no entanto, pode ter

pouco a ver com a realidade imediata do palco onde é representada. Diferenciando

objetos da atenção interior e exterior o autor relata:

“As coisas materiais que nos cercam em cena requerem uma atenção bem exercitada, mas os objetos imaginários exigem um poder de concentração muitíssimo mais disciplinado ainda [...] A atenção interior tem importância especial para o ator porque uma grande parte de sua vida se desenvolve no reino das circunstâncias imaginárias” (STANILÁVSKI, 1979: 114).

Stanislávski vê uma relação entre esses aspectos internos e externos em um tipo

de atenção que busca nos objetos da observação um “interesse” para o ator. Sobre os

modos de funcionamento, de estímulo, de detalhamento e concretude dos objetos

imaginados e vivenciados na “atenção exterior”, o autor afirma servirem em mesmo

grau para os objetos da “atenção interior”. No entanto, é possível perceber que uma

dualidade persiste sobre o entendimento de foco de atenção, muito em função do tipo de

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teatro que se pretendia fazer, e não apenas pelo entendimento limitado sobre os

processos cognitivos, em relação aos conhecimentos disponibilizados hoje em torno do

fenômeno mente/corpo. Assim, Stanislávski divide aspectos internos e externos porque

seu interesse recai sobre as linhas de força dramatúrgicas, expressas em desejos dos

personagens em circunstâncias imaginárias, e não em fluxos simultâneos e em

aleatoriedades de significações propostas pela estrutura não-linear do discurso cênico

visto enquanto artemídia54. O melhor exemplo disso, talvez, seja o seguinte:

“Lidamos com uma atenção arbitrária, de origem intelectual. Os atores precisam dela, mas não com muita freqüência. É, sobretudo útil para recuperar a atenção dispersa. A simples contemplação de um objeto ajuda-nos a endireitá-la. Mas não pode prender muito tempo. Para agarrar firmemente nosso objetivo quando representamos, é preciso um outro tipo de atenção, que provoque uma reação emocional. Temos de ter alguma coisa que nos interesse no objeto de nossa atenção, algo que sirva para por em movimento toda nossa aparelhagem criadora. Está claro que não é preciso dotar cada objeto de uma vida imaginária, mas devemos ser sensíveis à sua influência sobre nós. Como exemplo da diferença entre a atenção baseada no intelecto e a que se baseia no sentimento, disse-nos Tórtsov [...] (o personagem que representa Stanislávski): Vejam este candelabro antigo. Remonta aos tempos do imperador. Quantos braços têm? Qual é a sua forma, o seu desenho? Ao examinar este candelabro, vocês têm usado a sua atenção exterior intelectual. Agora quero que me digam: gostam dele? Se gostam, o que é que os atrai especialmente? Para que pode servir? Vocês podem dizer-se interiormente: é possível que este lustre estivesse em casa de algum Marechal de Campo quando recebeu Napoleão. Pode até ter pendido no teto da sala do próprio Imperador Francês quando assinou a lei histórica referente aos regulamentos de Thèâtre Français, de Paris. Neste caso, o objeto ainda é o mesmo. Mas agora vocês sabem que as circunstâncias imaginadas podem transformar o próprio objeto, acentuando a reação que ele provoca nas suas emoções” (STANISLÁVSKI, 1979: 115).

O autor sabe que a percepção e a atenção são sistemas complexos e que

funcionam em ligação, mas sabe também que, tecnicamente, suas propostas de

treinamento apresentam limites bastante claros... “Muitas vezes não podemos, por meio de dados definidos, chegar a conhecer a vida interior da pessoa que estudamos e só podemos sondá-la através do sentimento intuitivo. Aí estamos tratando com um tipo

54 O entrelaçar entre o discurso cênico e artemídia se dá através de Renato Cohen, que possibilita a leitura do fenômeno da tecnologia no teatro desconfigurando o topos cênico do enredo aristotélico e aproximando a signagem teatral à práticas performáticas. Não é só a questão da linearidade espaço/tempo que interessa, é também a possibilidade de conceber a relação entre público e obra através da mediação tecnológica, de modo que a própria tecnologia seja desfuncionalizada enquanto aparelhagem. Um projetor de vídeo pode ser usado para se obter uma iluminação dinâmica da área de encenação, por exemplo, uma intencionalidade presente no projeto de engenharia do projetor que é reconfigurada sob nova perspectiva. A consciência, enquanto tecnologia que pressupõe uma intencionalidade genética (e sua alteração sob este entendimento), será analisada no terceiro capítulo. Agora, é mister afirmar que a artemídia se define pela descaracterização da intencionalidade objetiva e funcional da tecnologia, e este aspecto está presente em práticas performáticas, marcando o teatro contemporâneo por estas experimentações.

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ainda mais delicado de concentração de atenção e com poderes de observação cuja origem é subconsciente. O nosso tipo comum de atenção não tem bastante alcance para efetuar o processo de penetração na alma de outra pessoa [...] Se eu lhes assegurasse que a sua técnica pode ir tão longe, eu os estaria enganando” (STANILÁVSKI, 1979: 119).

Em Grotowski, a superação desses limites parece ruir as dualidades e o

inconsciente parece ser o ponto em que se encontram espectadores e atores. Com o

aprofundamento do trabalho, com as ações físicas a ponto de formalizar uma “técnica de

transe”, seu caminho pode ter-se tornado algo ainda mais particular. Além de vislumbrar

“A palavra”, como visto anteriormente, pretendia uma arte cênica pobre em tecnologia.

Para ele, o foco de atenção do ator deixa de ser interior ou exterior e passa a ser a

conexão entre ambos. Uma conexão que se estabiliza no corpo com movimentos tão

arraigados no organismo, tão precisos, que tornam os aspectos externos do espaço, dos

objetos ao redor do corpo, extensões do corpo e este, extensão do espaço.

Em Stanislávski, o cenário e os objetos de cena servem para impressionar os

atores, para lhes estimular as imaginações para provocar sua atenção para que ela esteja

no palco: “Tentamos por todos os meios facilitar que concentrem a atenção no palco”

(STANILÁVSKI, 1979: 202). Para Grotowski, teatro é um encontro, e por isso o foco

de atenção deve estar nos fluxos de informações entre palco e platéia. Nas palavras de

Eugênio Barba, sua técnica...

“(...) não se refere à manipulação de objetos e máquinas, mas à investigação empírica da ação humana, do ser humano em sua totalidade e integridade. A técnica era premissa para uma união difícil, às vezes precária, daquilo que na vida cotidiana é dividido: o corpo e a mente, a palavra e o pensamento, a intenção e a ação. O totem era a técnica do ator, ou seja a relação entre um ser humano e outro. ‘Ator’ é uma palavra dita no singular, mas subentende-se sempre duas pessoas: sem expectador não há ator – e nem mesmo Performer, ainda que escrito com letra maiúscula. Qualquer que seja a maneira pela qual a noção de ‘espectador’ seja por nós interpretada, definida encarnada ou imaginada” (BARBA, 2006: 191).

Nos processos de investigação de Grotowski, a importância ao foco de atenção

não era menor ou maior, mas diferente. Ele também falava sobre as “experiências

interiores”, “anatomia do subconsciente”, em “exercícios psíquicos”, em psicanálise

“não-privada” e em percepção. Mas trata o assunto com um direcionamento prático (a

partir da cultura oriental em que a prática corporal tem papel fundamental na

experiência do sujeito), em busca de “uma experiência fora do comum, na qual é preciso

entregar-se até que o próprio limite seja alcançado” (BARBA, 2006: 128). Segundo

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Barba, para quem Grotowski foi reconhecidamente um mestre, “percepção é uma

maneira para indicar a experiência interior”. Em 1963, o termo subconsciente já era

aceito na Polônia, embora não contivesse associações “ao significado idealista que os

soviéticos atribuíam a Freud e Jung”. Seu entendimento e seu uso, nos escritos de

Grotowski dessa época, devem ser vistos à luz das culturas orientais, nas quais o teatro é

tratado com dimensões espirituais através de percursos físicos, “através de um trabalho

nos centros energéticos do organismo (chakra)” (BARBA, 2006: 128)55.

Como essa conexão se dá veremos no próximo capítulo; por hora, é importante

entender que para o foco de atenção do ator em cena, Grotowski busca, no oriente,

simetria com as práticas de conscientização dos processos de cognição promovidos

pelos exercícios milenares de respiração e meditação. Com o passar do tempo, adota

também cantos e danças que tornassem a percepção de si mesmo e do outro, aberta aos

fluxos de informações emergentes no contato teatral. A superação, em relação a

Stanislávski, se inicia, do ponto de vista estético, no abandono da linguagem realista, já

que este corpo perceptivo permite encenar as mesmas estruturas de enredo,

reconstruindo o entendimento da linguagem teatral, sugere-se aqui, pela mudança no

foco de atenção dos atores. E assim, em 1964, Grotowski escreve a Barba comentando a

transformação de seus conceitos:

“Minha tendência à individuação56 aumenta, quase todas as semanas me traz uma nova iluminação sobre o ofício. Estranhas experiências: mudei os exercícios e, se devo ser sincero, fiz uma revisão de todo o método. Não tem nada de diferente nele, nem existem novas letras para este alfabeto, mas agora defino como orgânico tanto aquilo que antes era ‘orgânico’ (para mim), como aquilo que eu considerava dependente do intelecto. E tudo me aparece sob uma nova luz. Como

55 Esta diferença do entendimento psicanalítico implica inúmeros detalhes e uma detenção nessa análise seria demasiada extensa. O que interessa aqui é saber que, mais tarde, mesmo que não propositadamente, Grotowski abriu a possibilidade para inúmeros processos de estreitamento entre Jung e suas estruturas teatrais, estreitamento do qual se derivou a conhecida linha “Antropologia Teatral”, da qual Eugênio Barba é, sem dúvida, um dos maiores representantes. E é justamente através dessa relação que se encontram a maior parte das pesquisas ligadas ao transe do ator. No entanto, aqui se propõe uma abordagem desvinculada de aspectos psicanalíticos, assumindo metodologicamente uma região de controle representada pelo sistema sensório motor. A pesquisa se desvincula até mesmo da Ioga, trabalhando com uma análise do corpo em processo co-adaptativo. Mesmo assim, ao longo do projeto, atores que contribuíram para esta pesquisa usaram de suas práticas particulares de Ioga, experiências terapêuticas em consultórios médicos ou em templos religiosos com uso de chás, ervas e substâncias alucinógenas, como parâmetro para descrever suas vivências particulares com os processos propostos aqui. 56 Em nota de rodapé sobre esse termo Barba define: “Termo de Jung que define o desenvolvimento mental”. No entanto, com as correntes pesquisas na linha de Antropologia Teatral, esse conceito pode ser visto de modo mais complexo se for levada em consideração a corporeidade como plano da experiência, assim, o desenvolvimento mental não se dissocia do desenvolvimento corporal.

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isso pode acontecer? Parece-me uma tal mudança que provavelmente terei que reaprender todo o ofício, quer dizer, estudar tendo como base esta nova ‘consciência orgânica’ dos elementos” (BARBA, 2006: 139).

Em nota de rodapé, Barba esclarece esta passagem, que expressa a preocupação

de Grotowski em definir a relação entre os elementos de seu método. Barba explica que

para os interessados em investigar os problemas dos treinamentos e da presença

orgânica dos atores em cena, existe um momento em que as categorias que antes

auxiliavam a entender as complexidades do objeto, se desestruturam,

“(...) parecem retirar-se, sem desaparecer, mas deixando o espaço livre para uma visão reativa dos processos pré-expressivos. Esta visão se deixa guiar pelos impulsos da ação do ator, sem se preocupar nesta fase, em defini-los” (BARBA, 2006: 139).

Isto significa que temos aqui o primeiro aspecto de alteração de consciência na

obra de Grotowski, um primeiro nível, histórico/pedagógico e não menos importante, e

que pode ser identificado no fato de que o próprio autor se deparou com uma alteração

de sua percepção em relação ao objeto que, como visto em Barba, é uma característica

do próprio estar em cena enquanto objeto de pesquisa. Talvez, de todo o processo

investigativo, seja o momento em que as categorias antigas se esfacelam diante de novas

descobertas e colocam em risco as ontologias do objeto.

Deste ponto de vista, a mudança de concepção do que é “orgânico” e do que é

“mental”, traz um avanço metodológico para o conceito de ação física e também para o

conceito de transe, permitindo que na alteração de consciência para a criação do ator,

cruzem conhecimentos existentes hoje, em 2008, sobre o funcionamento do fenômeno

mente/corpo. Evidentemente, sugere também uma alteração no padrão de análise

antropológico, habitualmente empregado.

Na prática do trabalho do ator, um problema que agora parece fácil de resolver

ainda representa uma questão árdua. Primeiro, como já dito, pela urgência cada vez

maior do mercado de trabalho, que produz o domínio de uma funcionalidade objetiva

nos processos de criação – poucos meses para se levantar um espetáculo exige ensaios

rápidos, focados na construção das cenas e em explorações superficiais das habilidades

criativas. Recursos parcos para as produções dificilmente contemplam o

desenvolvimento de grupos que privilegiem pesquisa e treinamentos e, como dito por

Thomas Richards, “Stanislávski e Grotowski trabalharam sobre a destreza”. Está na

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base das idéias de Grotowski o desenvolvimento dessa destreza, que é uma técnica

capaz de tornar o corpo do ator um corpo criativo para a cena:

“Essa é a nossa técnica como artistas e não importa o quão criativos nos sintamos, nós não temos uma ligação com nossa força criativa sem técnica. Técnica significa artesanato/habilidade, um conhecimento ténico da nossa arte. Quanto mais forte é a sua criatividade, mais forte deve ser a sua arte para que se possa chegar ao equilíbrio necessário que permitirá que seus recursos fluam plenamente. Se nos falta tal base, claramente acabaremos na lama” (RICHARDS, 2001: 07, tradução de Leila Guaracy Taves a pedido desta pesquisa).57

Destreza como um sentido de técnica que se retro-alimenta com a percepção de

si mesma enquanto processo de cognição, ou seja, de desenvolvimento de habilidades

específicas. Um pensamento que significou um avanço no trabalho do ator como

processos criativos e também como campo próprio de conhecimento, no qual a

percepção dos processos sob os quais está sujeita a criatividade, exige invariavelmente,

tornar-se sujeito e objeto de si mesmo. Não é a toa que Grotowski entende que o estar

em cena é antes de tudo, para o ator, um ato de “autopenetração” e “doação”.

Paradoxalmente à sua proposta de um teatro sem tecnologia, é possível perceber

que suas concepções de técnica e destreza vão além de mero instrumental positivista,

funcionalista, de manipulação e domesticação da realidade como minúsculos blocos de

montagem sem caráter. Era contra isto que o autor parece lutar. Grotowski parece

entender a técnica como algo que define a leitura que se tem sobre a realidade. Para ele,

a estrutura de um instrumento define o caráter de seus objetivos, ou seja, trata-se de

tecnologia como processo, e não como aparelho. Não é uma questão de se pensar a

técnica como instrumento do corpo do ator, mas pensar corpo e técnica como

correlações de si mesmos. Como os technobuilders de Flusser, contrações de processos

entre corpo e meio que são técnicas de representação constituindo a linguagem do

imaginário, ou seja, as intersubjetivações que definem a cultura nas quais os corpos se

co-adaptam.

“Mas a definição deve também mostrar que a especificidade das ‘imagens tecnicistas’ não deve ser buscada no método, pelo qual são processadas (pelo aparato), nem no material, com o qual são

57 “This is our technique as artists and no matter how creative we feel ourselves to be, we have no channel for our creative force without technique. Technique means craftsmanship, a technical knolowledge of our craft. The stronger your creativity is, the stronger your craft must be, in order to arrive at the needed equilibrium which will let your resources flow fully. If we lack this ground level, we surely land in the mud” (RICHARDS, 2001: 07).

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produzidas (por exemplo, por ondas eletromagnéticas), nem em sua estrutura (por exemplo, como são transportadas), mas em seu significado” (FLUSSER, 1998: 139-140 apud ARAUJO, 2005: 113).

Segundo Araújo, Flusser usa a fotografia para melhor exemplificar, mostrando

que ela se refere antes à cena que contém em suas margens, aos conceitos que nortearam

o olhar que através da relação “aparelho-operador”,

“(...) busca a posição através da qual o observador poderá ver na foto a mesma coisa a que ele, o fotógrafo está vendo naquele momento. A posição por ele tomada não é objetiva, nem é subjetiva, mas sim intersubjetiva (ou intra-subjetiva). Através da fotografia, percebemos essas duas coordenadas em ação: a da objetividade projetada da câmera e a da subjetividade daquele que observa, resultando no processo de intersubjetivação” (ARAÚJO, 2005: 115).

A intersubjetivação é um reforço aos processos de contração imaginativa, em

que cada um, em particular, se coloca na posição de um outro, imaginando o que será

visto por ele se observasse a natureza pelo ângulo que agora a vê. É o impulso/ação do

ator em cena, que sempre é feito em relação ao objeto exterior a ele próprio. É como a

idéia de tecnologia de McLuhan apresentada no primeiro capítulo, que permite também

uma ponte com os ritos, como tecnobuilders, mitos, contrações de processos entre corpo

e meio. Não se pode saber exatamente se essa seria a melhor abordagem, como

pretendia Grotowski, se ele tivesse tido contato com a bibliografia desta pesquisa. Mas é

possível perceber que existe uma outra leitura possível para o que ele entendia ser uma

leitura “pragmática” dos ritos e dos processos de transe.

No que consiste o esforço e a atenção do ator em cena, seu trabalho torna-se

sintético quando se direciona para além de sua estrutura conectiva, tentando dar conta

de tecnobuilders que, por exemplo, concebidos como existentes na dualidade entre

“atenção interior” ou na “atenção exterior”, e não na conexão entre as duas, geralmente

um curto-circuito de entendimento provocado pelo esforço constante da “mente

discursiva”, como diz Thomas Richard:

“Vivemos em uma época na qual nossa vida interior é dominada pela mente discursiva. Essa fração da mente divide, segmenta, rotula. Ela empacota o mundo e o embrulha como ‘compreendido’ (...) Existe um filtro entre o individual e a vida.” (RICHARDS, 2001: 05, tradução de Leila Guaracy Taves a pedido desta pesquisa)58.

58 “We live in an epoch in which our inner lives are dominated by the discoursive mind. This fraction of the mind divides, sections off, labels – it packages the world and wraps it up as ‘understood’ [...] A filter stands between the individual and life” (RICHARDS, 2001: 05).

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A técnica de transe de Grotowski pretende eliminar exatamente essa “mente

discursiva”, eliminando o “intelecto consciente do indivíduo”, que focaliza

techonobuilders arbitrários, criando “filtros” entre as pessoas e a vida. Arbitrários por

terem sido entendidos à priori da estrutura conectiva em tempo-real da presentificação

corpo/cena, pertencentes ao enredo, ao texto dramatúrgico. Sua proposta é relativizar na

mente discursiva, uma implicação equivocada com a realidade “externa” enquanto

forma, sendo o texto escrito algo para se memorizar e acessar. É um problema comum e

muito trabalhado nas escolas de teatro, por diversas abordagens. O trabalho de

Grotowski serviu para que se projetassem sobre os tempos atuais saídas para este

enforcamento natural do ator em cena. A proposta de um corposintético, no drama, não

é nenhuma novidade, apenas uma realidade de difícil contorno. O que interessa a essa

pesquisa é o fato de que com a tecnologia, na artemídia, em diversas obras não se tem

mais o limite da realidade aristotélica do drama, da fábula e destes technobuilders

dramatúrgicos. No entanto, ainda assim, os corpos continuam sintetizando seus

comportamentos de modo a tornar o trabalho de percepção do ator em cena, além de

empobrecido em relação ao drama tradicional, um completo vazio angustiante de

significados, pois, a despeito de suas mentes discursivas saberem de tais diferenças, elas

ainda buscam as estruturas de identificação propostas pelos treinamentos de atores

dramáticos, impedindo os corpos de executarem ações no nível da conexão que propôs

Grotowski – mesmo considerando que tenha sido proposto para uma arte sem

tecnologia. Esse é o ponto principal em que se deve deter a atenção na análise da

alteração de consciência: o fato de que a atenção consciente do intérprete, do ator, do

“Performer” – com letra maiúscula, como sugeriu Barba –, interfere no processo do

“estar em cena” de modo tão determinante que é preciso tornar sua ação um parâmetro

metodológico. E é quando sua ação excede aos fluxos informacionais em tempo real na

cena que chamamos de corposintético.

Diante disso, como encontrar soluções viáveis para a co-existência de tantos

opostos?

2.2 A representação e a encenação: as circunstâncias dadas e os environments

criativos

Observa-se, na história das artes cênicas durante o século XX, uma relativização

constante do conceito de realidade, seja por conta das teorias psicanalíticas, das

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descobertas da física de partículas, da geometria não-euclidiana, ou das crescentes

experiências humanas da vida nos centros urbanos, cada vez mais populosos, que

exigem o desenvolvimento constante de novas habilidades cognitivas, como

simplesmente atravessar uma rua cheia de automóveis, por exemplo. O sentido clássico

de enredo e narrativa, como causalidade de objetivos e desejos, vem de uma noção de

desenvolvimento e construção linear de significados calcada em Aristóteles.

Gradualmente, foi cedendo lugar ao acaso, aleatoriedade, simultaneidade,

desmembramento de sentidos e cruzamentos não-lineares de semioses.

Os cruzamentos entre linguagens artísticas são experiências cada vez mais

comuns na busca de novas epistemologias, expressões e objetos de estudos poéticos.

Um sentido coletivo de arte torna-se algo de difícil tangência, e o discurso da não-

linearidade ganha espaço, no ambiente da criação. A abordagem dualista não tem

condições de descrever a percepção poética, a fruição estética, a criação artística, a

intuição, a criatividade e os processos comunicacionais na era da artemídia com a

complexidade que eles exigem.

2.2.1 Onde o enredo se sustenta: espaço e tempo para Aristóteles

Para as concepções cênicas alçadas em Aristóteles, o espaço e o tempo se tocam

na experiência do corpo medido pelo consciente que sabe que anda em torno de algo, ou

que é contido em algo mais amplo. Tempo e espaço são medidas da experiência da

consciência em estado de vigília e não em situações anômalas, de alucinações, de transe,

em situações limítrofes ou de quase morte. Em situações anômalas a mente consciente

ou “mente discursiva”, como chamou Thomas Richard, encontra-se, de certo modo,

desestabilizada de suas funções saudáveis, como veremos no terceiro capítulo, e

geralmente oferece uma percepção de seus objetos que desestabiliza os parâmetros de

tempo e espaço que definem a realidade percebida em estado de vigília.

A funcionalidade está na maneira em que é vista a própria experiência,

concebendo um aspecto de normalidade para as situações que são aparentemente

regulares, como a percepção do dia-a-dia, de incidência repetitiva e freqüência

constante, que se pode reduzir a um sistema de normas. Por outro lado, isso não implica

que em experiências limítrofes não possam existir padrões de percepção que se repitam,

e que, ao se tornarem acessíveis do ponto de vista do discurso racional, não possam

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ajudar a fundamentar uma estrutura de funcionamento da percepção capaz de orientar

outras maneiras de conceber a realidade. A maior prova disso é o fato de que a mente

tem sido cada vez mais estudada sob estes estados e as conclusões são um número cada

vez maior de diagnósticos de “seminormalidades”, se é que se pode falar nestes termos.

Ao menos do ponto de vista psiquiátrico, a definição da normalidade tem sido uma

tarefa cada vez mais complicada, não por falta de instrumentos, mas por falta da própria

“normalidade” (McDOUGALL, 1983: 172-182).

Outra prova interessante e irrefutável é o fato de que estados limítrofes têm

gerado códigos comunicacionais interpretados de diversas maneiras pelas religiões,

desde que o primeiro hominídeo acendeu a primeira pira e gritou o mesmo grito duas

vezes. A geração de códigos depende, em grande medida, da repetição de padrões, e

nisso se baseiam todos os estudos de comunicação, até mesmo as formas e criações do

inconsciente a partir de usos de substâncias alucinógenas (SHANON, 2002: 3-30).

Aqui, a tendência é outra. É a de alicerçar as normas gramaticais a partir de uma

regressão estrutural, o que Steven Pinker chama de “Engenharia Reversa” da natureza

da percepção, e entender como “situações anômalas”, aquelas em que as regras e os

padrões perceptivos são quebrados, podem auxiliar na concepção de uma alteração de

consciência para o trabalho do ator.

“Na engenharia ‘para frente’, projeta-se uma máquina para fazer alguma coisa; na engenharia reversa descobre-se para que finalidade uma máquina foi projetada. (...) O fundamento lógico para a engenharia reversa para as coisas vivas provém, obviamente, de Charles Darwin. À medida que os replicadores se replicam, erros aleatórios de cópias às vezes emergem, e os que por acaso melhoram a taxa de sobrevivência e replicação do replicador tende a cumular-se no decorrer das gerações. Plantas e animais são replicadores, e seu mecanismo complexo, portanto, parece ter sido projetado para permitir-lhes sobreviver e reproduzir-se” (PINKER, 1998: 32-34; 48-50).

Portanto, o estudo do funcionamento da consciência, de sua alteração e as

possíveis implicações para o trabalho do ator na construção de semioses, precisa

respeitar a complexidade inerente à essa intencionalidade da natureza, inerente no

projeto de corpo de onde a mente emerge.

“(...) Assim que relacionamos as especificações para uma mente bem projetada, podemos verificar se o Homo sapiens possui ou não esse tipo de mente. Fazemos os experimentos ou levantamentos para esclarecer os fatos concernentes a uma faculdade mental e depois verificamos se essa faculdade atende às especificações: se apresentam

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sinais de precisão, complexidade, eficiência, confiabilidade e especialização na resolução do problema que foi apresentado, especialmente em comparação com o grande número de designs alternativos biologicamente passíveis de se desenvolver” (PINKER, 1998: 32-34; 48-50).

Superando a discussão dualista “linear X não-linear”, “normal X anormal”,

propõe-se uma teoria dos estados, para que se possa lidar com os fluxos de informações

como estados de mudança das coisas, e com a consciência como uma constante

mudança de estados nos processos que a constituem. Aquilo que não chega a se

estabilizar no corpo, oferece a chance de uma percepção alterada, e quando a tensão

entre estabilidade e instabilidade impede a constituição de códigos comunicacionais

eficientes, temos a principal implicação para o conceito de ação: o que chamamos de

“ação fibrilar”.

2.2.2 Espaço e tempo nos environments contemporâneos

Na segunda metade do século XX, a linguagem cênica da performance produziu

possibilidades de construção da semiose cênica com base em outras referências

estéticas, que não o teatro como é conhecido tradicionalmente. E é justamente neste

imbricamento de linguagens que surgem as questões motivadoras para esse trabalho.

Hoje, além da idéia de representação, para designar o resultado estético do

chamado “trabalho do ator”, temos um corpo que não representa, mas antes, se

“apresenta”. Esta diferença se dá não somente na desconstrução da idéia de personagem

em ação aristotélica, mas também, no sentido do trabalho do ator enquanto o trabalho

sobre si mesmo. Este trabalho sobre si mesmo significa transformações profundas na

pessoa do ator. Além disso, o trabalho do ator, ou o trabalho sobre si mesmo, requer em

parte que sua atenção deva ser direcionada aos fluxos e aos impulsos sobre os quais está

sujeito durante sua performance. É justamente a diferença entre aquilo que “brota no

interior do ator’, e aquilo que a platéia percebe como expressão de um ser autônomo (o

personagem do teatro realista), que causa a impressão de que aquele personagem era

real.

De qualquer maneira, existe um nível de construção corporal que se dá por meio

do confronto entre nível de força – fisicamente sempre medido em deslocamento para a

realização da ação –, versus nível de resistência a essa mesma realização, ou seja, as

oposições definem os estados dos corpos em cena como corpos pré-expressivos,

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prontos, determinados a agir, uma expansão em suas dimensões e atenções sobre si e

sobre o mundo.

Este aspecto parece ainda estar presente no entendimento do corpo na era da

artemídia, e sua persistência talvez se deva simplesmente ao fato de que é mesmo um

corpo mais interessante de se ver. E o interessante é que se pode ver, na cena

performática, uma incrível variedade de corpos, igualmente capazes de criarem

significados em suas atuações. Isso porque contam com outras informações em fluxo

que não as linhas de força das obras dramáticas, e sobre isso muito já se discutiu. Basta

lembrarmos que as projeções, os sensores de movimento, os refletores imbuídos de

movimento e percepção autônoma do espaço e dos fluxos sonoros, e os próprios efeitos

sonoros gerados pelos sintetizadores eletrônicos são capazes de criar áreas específicas e

ambientes inteiros de significações sem a necessidade da presença humana, ou sem

simularem uma realidade virtual com as mesmas características do mundo tal qual a

percepção consciente configura.

Existem ambientes chamados de caves (em português, “cavernas”), espaços

imersivos que promovem uma mudança nos aspectos cognitivos do participante na

medida em que estimulam diversas áreas sensórias ao mesmo tempo em uma estrutura

espacial e excitatória muito diversa da experiência ordinária.

Quando estes recursos se dão em cena, no entrecruzar de ações humanas pré-

estabelecidas por um roteiro, por exemplo, ou por jogos de estímulos e respostas, esses

procedimentos cênicos podem ser chamados de “construção pelo environment”,

segundo Renato Cohen, em Work in Progress na Cena Contemporânea (2003: 25-27).

Além de meras ambientações, estes recursos oferecem a possibilidade de signagem a

partir de períodos de tendências distintas entre estabilizações e desestabilizações de

informações, “permitindo maior liberdade e incremento do nível de entropia”,

caracterizando um dos fortes aspectos presentes nas cenas midiatizadas: o work in

progress. Estes trabalhos estão quase sempre relacionados aos conceitos de leitmotiv,

“o discurso da mise-en-scène” e a “construção pelo environment”. Por “leitmotiv”

Cohen define como termo derivado da literatura e da música, que teria uma “primeira

tradução possível como vetor, dando conta dos diversos impulsos e tracejamentos que

compõem a narrativa” (COHEN, 2004: 25). Por “discurso da mise-en-scène”, o autor

define como uma “signagem que tem dimensão literal, simbólica e mitológica” e a cena

“persegue uma imagem/texto sintética, emocional, conotativa, próxima do conceito de

gestus brechtiano ou do signo/dança, mãe do teatro, imaginado por Artaud”. Em tais

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formulações se percebe ainda uma possível aproximação também com as intenções

corporais de Grotowski, em que o corpo encontra lugar privilegiado na elaboração do

processo de treinamento para a cognição do ator. O discurso da mise-en-scène significa

que se “privilegia a encenação – o texto cênico – em detrimento da dramaturgia, com o

texto literário passando a ocupar hierarquia subliminar” (COHEN, 2004: 27). A

construção pelo environment/espacialização, também caracteriza esses processos de

cenas midiáticas e significa “a organização espacial por territórios literais, imaginários”

e “substitui a organização tradicional – de narrativas temporais e causalidades. Opera-

se, dessa forma, o paradigma contemporâneo em substituir o tempo pelo espaço como

dimensão encadeadora” (Idem: 26). Esses processos caracterizam estruturas opositoras,

“antagônicas às transposições dramaturgia/cena, sistematizadas e exacerbadas no

naturalismo” (Idem: 27).

2.2.3 Onde o enredo foi quebrado: espaço e tempo para a Artemídia

A partir de outros procedimentos criativos, a cena contemporânea da era da

artemídia comprometeu-se, ao longo do século XX, portanto, com a transformação

profunda, como coloca Cohen, em noções tradicionais da relação entre objeto e

representação, desconstruindo noções paradigmáticas que “remontam a Aristóteles e

Platão”, [...] elegendo [...] “o campo ‘irracionalista’ como campo de tráfego desses

procedimentos que operam narrativas subliminares e outros níveis de captação da

realidade”.

“Nesse abandono tardio do cartesianismo, o Ocidente tem uma via de nutrimento nas práticas do Oriente, que por tradição, lidam com a noção de paradoxos e operam em pensar/devir sincrônico, muito mais apropriado às novas realidades – da simultaneidade e multiplici- dade de eventos – do que o olhar diacrônico ocidental” (COHEN, 2004: 24).

A discussão se concentra na ruptura com a representação enquanto código

cênico de ilusionismo e na valoração do sentido ‘atuação’. Segundo Cohen, o que dá a

característica da representação a um espetáculo é o caráter ficcional. Espaço, tempo e

atores remetem a outros tempos, espaço e pessoas, eles “representam algo” que de fato

não são. Aqui um paradoxo interessante se coloca: na medida em que o ator se aproxima

do personagem, mais se assemelha a ela reforçando cada vez menos a ficção e, portanto,

a ilusão. Quanto mais se distancia, e “representa” a personagem, sem tentar vivê-la,

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mais esgarça a “ilusão cômica”59. Essa quebra com a representação permite o acesso a

outros espaços em que a cena e os atores não mais representam algo, mas significam em

si mesmos, “como um rito, uma demonstração e etc”. Arte e vida se aproximam. “À

medida que se quebra com a representação, com a ficção, abre-se espaço para o

imprevisto, e portanto para o vivo, pois a vida é sinônimo de imprevisto, de risco”

(COHEN, 2004: 97). Na performance, o sentido de presente, da ação em tempo real, se

torna acentuado – “Isso cria a característica de rito, com o público não sendo mais só

espectador, e sim, estando numa espécie de comunhão” (COHEN, 2004: 97).

Suprimindo-se a dicotomia entre palco platéia, os limites se estreitam e o convite à

participação, é um convite sensório. Nessa exacerbação contrária à representação pela

abolição da ilusão de realidade, o estranho paradoxo em relação à Grotowski se coloca:

ao propor um teatro pobre em tecnologia, pretende devolver certo poder ilusionista do

teatro aos atores e acaba por desenvolver um entendimento de uma espécie de

teatralidade da presentificação que hoje, permite ao ator ter acesso a cenas midiáticas

enquanto campo próprio da ação de um corpo criativo. Aparentemente sim, se a questão

for colocada apenas em relação ao ilusionismo, porém teria que se reduzir Stanislávski à

um artista realista/naturalista, e as ações físicas, a uma técnica de ilusionismo. Mas,

como vimos, este não era o interesse de Stanislávski nem de Grotowski. Seus intentos

se edificam em uma arte que dê conta das conexões entre o humano e a natureza –

natureza entendida como processos de desenvolvimento da vida.60 No caso das artes

performáticas, e a artemídia é também uma arte performática, o sentido de atuação

reforça essa conexão, embora em um nível de realidade mais largo em relação à

realidade Aristotélica. Portanto, ator, performer, intérprete, jogador, de modo geral é

aquele que age em tempo real imbuído do sentido de transformar-se, e segundo

Grotowski, de “doar-se”. Em suas próprias palavras: 59 Cohen utiliza o termo “cômico” aludindo ao uso da palavra comediante, para designar aquele que atua, em referência ao artigo de Manonni, intitulado A Ilusão Cômica, ou o Teatro do Ponto de Vista do Imaginário. 60 Segundo Theodore Shank, citado por Cohen, “à medida que o teatro entre pelo lado ilusionista, em detrimento de sua característica mais forte que é o aqui-agora, não reforçar a representação, vai estar sempre perdendo para o cinema ou para a televisão, onde os efeitos ilusionistas criados serão sempre mais verossímeis do que no teatro” (COHEN, 2004: 97). É por esse motivo que as leituras ilusionistas do cinema não provocam muita pesquisa em relação ao trabalho do ator, pois para elas, os métodos de Stanislávski dão conta de resolver as questões, já que ambos são vistos pelo prisma da linguagem realista/naturalista. Por outro lado, o problema do ilusionismo resolvido em grande parte pelos aparatos tecnológicos de edição virtual dos cenários, ou pela possibilidade de se gravar uma em um deserto de verdade, implica ao ator uma aproximação com o personagem de tal ordem que se lhe impõe as questões de adequação do biotipo. Essa é uma outra aproximação entre arte e vida que parece paradoxal e que precisa ser levada em consideração ao mostrar a falência das abordagens dualistas para o entendimento do trabalho do ator.

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“O ator faz total doação de si mesmo. Essa é uma técnica de ‘transe’ e da integração de todos os poderes psíquicos e físicos do ator que emergem dos estratos mais íntimos do seu ser e do seu instinto, irrompendo em uma espécie de ‘transiluminação’” (GROTOWSKI, 2007: 106).

A formação do ator em Grotowski permite perceber que sua técnica de transe

mira a eliminação da representação enquanto atitude consciente do corpo em procurar

esses technobuilders definidos a priori do instante presente, derramando sobre a idéia de

ação, a idéia de reação.

“O resultado é a liberdade do intervalo de tempo entre o impulso interior e a reação externa em modo tal que o impulso é já uma reação externa. O impulso e a ação são coexistentes: o corpo se esvai, queima, e o expectador vê somente uma série de impulsos visíveis. O nosso, portanto, é um caminho negativo, não um acúmulo de habilidades mas uma eliminação de bloqueios” (Ibdem).

Cohen levanta artistas implicados em processos criativos que levem em

consideração estas mudanças de paradigmas, e entre eles aparece Grotowski, aliado à

idéia de parateatralidade. Parateatralidade refere-se, segundo Cohen, à instauração de

procedimentos de investigações que implicam paralelismo: “Deslocamento, no percurso

ordinário, habitual, para a amplificação da consciência, recepção dos fenômenos e

vivência de experiências de maior substancialidade” (COHEN, 2003: 61). A

“autopenetração” de Grotowski? Parece que sim, ou, ao menos, uma leitura importante

dela.

E aqui talvez se encerre a noção de identificação no teatro performático,

midiático. Mesmo que a noção de identificação aristotélica não se desmanche por

completo em obras de narrativas e linguagens híbridas, a percepção de sujeito (ator ou

público), é forçada a repensar os limiares que definem as noções de humano. Essa

transformação perceptiva/conceitual se dá pelo reconhecimento de outras capacidades

cognitivas que permitem o humano saber-se pertencente a uma mesma espécie no

sentido de sua fisicalidade subatômica, de sua instabilidade sob a perspectiva geológica,

de suas funções de replicação genética e tantos outros níveis de descrição da vida no

planeta que geralmente, encontram-se fora das margens definidas pelos objetivos sócio-

políticos do métrom trágico. As noções de tempo, espaço, dentro, fora e etc, são

desestabilizadas em linguagens híbridas de forma a tornar os limites do corpo baseado

no metro, (como tamanho médio do humano; como algo posicionado ‘no meio’, entre

um começo e um fim; e também mídium, enquanto suporte paralisado e desconectado

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entre o emissor e o receptor), inviáveis para se entender o trabalho do ator na era da

artemídia.

A artemídia enquanto performance está implicada em explorar e imaginar o

funcionamento de outros níveis de descrição da realidade, não mais as causalidades

mecanicistas, mas as órbitas das partículas; não mais as linhas de força dramatúrgicas,

mas os leitmotives de tendências informacionais do espaço virtual; não mais os desejos

dos personagens, mas as signagens aleatórias; não mais o tempo cronológico, mas o

tempo da percepção inconsciente... É este o convite que sugere Grotowski à platéia, um

convite à identificação com corpos que têm habilidades de perceberem-se imersos

nesses diversos fluxos de uma realidade complexa – com ou sem tecnologias.

Sob este aspecto, do ponto de vista do encenador, num exercício imaginário de

radicalização, o ator é mais um dos diversos elementos de sua grande orquestração,

tendo o mesmo status de uma cadeira ou de um refletor, por exemplo. Na pós-

modernidade, a identificação não está alicerçada no plano da catarse, como em

Aristóteles, mas no fato de que o humano pode agir fora daquilo que foi programado. O

intérprete, que é quase sempre humano61, tem a capacidade de tomar decisões e fazer

opções, agir por conta própria e conhecer a si mesmo, observar a si no processo de

autopenetração. Nesse sentido, o encontro de Grotowski torna-se viável na artemídia,

não pela relação aristotélica nem pela presença ou ausência de tecnologias, mas pela

implicação do autoconhecimento em situações limítrofes, onde o refazimento das

noções de tempo e espaço permite um novo environment criativo para a co-habitação de

consciências interessadas em outras noções de realidade. Na identificação aristotélica,

este poder de decisão está implícito nos desejos dos personagens, mas em artemídia,

organizações não-lineares tomam o primeiro plano no processo de mediação.

O problema para o trabalho do ator se coloca de forma drástico: como a maioria

das escolas de teatro no Brasil, embasa seus currículos e metodologias na tríade

aristotélica, os intérpretes tentam resolver os “problemas de hoje com um instrumental

61 As experiências de cena com robôs e cachorro, realizadas pela cia. de dança Cena 11 representam um questionamento desse paradigma relativizando a necessidade de ser somente e sempre um humano o intérprete responsável pela ação espontânea. Embora o robô atue sempre dentro dos padrões programados e o cachorro, dentro daquilo que compreende seu adestramento, a mesma expectativa, por parte da platéia, parece surgir quando deparados com estes elementos em cena. Mas tende a desaparecer quando o jogo entre humano/robôs/cachorro é revelado e a platéia descobre as relações de ação e reação, estímulos e respostas.

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do passado”, como lembra Mc Luhan. E tentando superar as dificuldades que aparecem,

dentro de uma percepção dualista dos fenômenos, os corpos sintetizam

comportamentos... Eis, portanto, o ângulo pelo qual esta pesquisa observa o problema

do ator na pós-modernidade: a ausência do drama e de procedimentos que permitam o

ator, melhor entender e lidar de forma criativa com os fluxos de informações que

circulam no ambiente da cena.

2.2.3.1 Questões para o conceito de ação

Vimos que Grotowski e Stanislávski descendem de Aristóteles em função da

idéia de realidade, calcada em suas concepções de espaço, tempo, corpo, movimento e

ação. Vimos também que a costumeira abordagem dessa descendência teatral é vista sob

o prisma da ação física, de Stanislávski para Grotowski. A idéia de ação, por sua vez,

está intimamente ligada ao conceito de realidade. Mudando-se esse conceito, mudar-se-

á a noção de ação, pois, sem isso, deixam de corresponder ao mesmo nível de descrição

da realidade. Tanto para Aristóteles quando para Stanislávski e Grotowski, a ação é algo

que surge em relação a um objeto externo (BONFITTO, FERRACINI e

ABBAGNANO). Mudando-se a noção de dentro e fora, de interno e externo, torna-se

difícil continuar pensando a ação nos termos anteriores.

Ao longo dessa pesquisa, questões interessantes foram propostas para cercar esse

problema. Muitas delas não foram respondidas, simplesmente porque eram muitas

perguntas, outras mudaram de tessitura à medida que a pesquisa caminhava. Outras se

mostravam supérfluas ou até mesmo impossíveis de serem respondidas em tão pouco

tempo. Outras ainda foram esquecidas e hoje fazem parte de pilhas de cadernos de

anotações e arquivos em Word. Mas algumas emergiram de leituras e de observações de

sala de ensaio, discussões com a orientação, em treinamento, cursos, criação de ator,

enfim, do processo criativo e investigativo distante das possibilidades de descrição

imediata, exigindo a utilização de metáforas para conceituá-las, como é o caso do

corposintético.

A seguir, algumas dessas companheiras inquietas que urge serem

compartilhadas:

i.É possível uma abordagem biológica para a complexidade da criação poética do ator?

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ii.Será possível, como método de pesquisa, criar exercícios para vivenciar os estados alterados de

consciência a partir das descrições dos exercícios do livro Em busca de um teatro pobre

(1981) e do entendimento de estabilização e desestabilização?

iii.É possível a existência de processos de treinamento que prevejam a ação enquanto resposta e não

enquanto realização de algo?

iv.É possível que se possa conceber um corpo que age pela queda como uma opção ao tratamento

do trabalho do ator na era da artemídia?

v.É possível conceber um trabalho em vários níveis para dar conta da simultaneidade de

informações a que o ator está sujeito enquanto está em cena, e assim, ser mais capaz de

abordar a complexidade do fenômeno que se conhece por “estados alterados de consciência”?

vi.Como resolver a dificuldade que consiste na superação da idéia de causa e efeito para o trabalho

do ator, já que se pode conceber a consciência não como efeito de algo, mas o próprio “algo

em estado”?

vii.Será que situações como ataques de labirintite, demência, doença de Parkinson, convulsões e etc,

podem oferecer pistas para uma outra concepção de ação?

viii.Visando uma outra concepção de ação para o trabalho do ator, como se pode conceber a

participação das imagens produzidas pelo mapeamento profundo do corpo?

ix.Como entender a questão da espiritualidade levantada por Grotowski?

x.Poderíamos levantar diferenças entre as idéias de “desvendar” e “revelar” e suas possíveis

aproximações com o trabalho do intérprete?

Se for possível de pensar na idéia de desvendar, no lugar da idéia de revelar,

podemos entender que entre a cena artemídia e a tradição aristotélica pode existir um

entremeio curioso.

Desvendar significa tirar a venda e está ligado à ação de descobrir aspectos da

natureza que não eram possíveis de serem percebidos por não estarem evidentes, ou

melhor, que se apresentavam à consciência apenas como evidências isoladas, sem

nenhum significado em comum ou nexo causal evidente. Quando se pensa no ato de

desvendar, estamos implicados em uma “atitude investigativa”. É um tornar consciente

pelas perguntas que se faz, e não pelas respostas que são sugeridas. A partir das

evidências, se questiona sobre a relevância de cada aspecto isolado e suas

potencialidades de relação, criando o máximo de conexões possíveis numa rede

temporal de supostos significados, escolhendo entre todas as conexões aquelas que

oferecem mais coerências. E isso se mostra muito próximo do processo de antevisão

descrito por Antônio Damásio, que é, sem dúvida, uma ação de questionamento, embora

à procura de riscos e possibilidades de sobrevivência do organismo. Mas isso será visto

no próximo capítulo.

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Na presente proposta, o ator não entra em cena para revelar algo à platéia, mas

para desvendar algo dela, pois ela, e todo o meio, trazem informações preciosas ao

intérprete. São essas mesmas informações que lhe produzem transformações de estados

corporais. Da mesma forma, a própria platéia deve encarar o espetáculo com uma

atitude investigativa, atitude essa que Richard Demarcy chamou de “Leitura

Transversal” (In GUINSBURG et al 2003: 23-38).

Essa atitude de desvendamento por parte do ator pressupõe, em termos de

treinamento, um processo em que lhe sejam arrancadas as vendas, para que seu corpo

aprenda a ver as coisas como elas são em suas complexidades. Isso implica que a mente

consciente deve aprender a dar passagem ao fluxo de informações emergentes no

organismo que, ordinariamente, não seria capaz de criar significados, por se apresentar

de forma sutil demais, apenas como impressões fugazes e aparentemente distantes das

experiências imediatas nas situações cotidianas. Isso exige uma ampliação significativa

da percepção e um aumento da instabilidade no organismo, para que a mente consciente

possa perceber a natureza transitória dessas informações.

2.3 Mente/corpo: o transe em Grotowski e as descrições dualistas

2.3.1 Leitura dualista de Grotowski

Ao ler Grotowski, percebe-se que o que ele chama de “poético” é a própria

tensão entre dois aspectos da existência da cena. Um é a partitura psicofísica, outro é

aquilo que surge como variação dessa partitura, mesmo que seja quase imperceptível.

No livro Em Busca de um Teatro Pobre, nas entrevistas, nas aulas do mestrado, na fala

do autor, inclusive nos textos de Ludwik Flaszen, crítico que acompanhava o trabalho

do Teatro Laboratório, parece haver uma instância dualista inevitável no trabalho do

intérprete. Mas em outros momentos, isso parece ser um detalhe de nomenclatura, ou

até mesmo uma falta de clareza conceitual no momento de descrever um fenômeno que

não é dualista, e sim, ambivalente.

“A realização do ator constitui uma superação das meias medidas da vida cotidiana, do conflito interno entre o corpo e a alma, intelecto e sentimentos, prazeres fisiológicos e aspirações intelectuais. Por um momento, o ator encontra-se fora do semicompromisso e do conflito que caracterizam nossa vida cotidiana. Ele faz isso para o espectador? A expressão ‘para o espectador’ implica em certo coquetismo, numa certa falsidade, numa barganha consigo mesmo. Devemos dizer ‘em

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relação ao’ espectador ou, talvez, em lugar dele. É precisamente aqui que está a provocação” (GROTOWSKI, 1971: 83-196).

Não existe aí uma relação dualista? Ou podemos pensar em ambivalência, já que

o poético não é um algo que surge da tensão, mas a própria tensão? Pensando desse

modo, algumas coisas parecem fazer sentido e o problema parece se ancorar no plano da

observação direta na sala de ensaio e treinamento.

“Era óbvio que as prioridades de Grotowski tinham mudado. Em Opole a sua atenção estava concentrada no espetáculo como um ritual ‘laico’ e nas conseqüências psíquicas ou emotivas que devia ter no espectador. Orientava-se pelo arquétipo como um substrato comum e um ponto de encontro entre atores e espectadores, e pela dialética de apoteose e derrisão como um instrumento para revitalizar um concentrado de experiências. Falava de ‘magia teatral’, do ‘ator-xamã’ capaz de executar ações extraordinárias. A supremacia do ator tinha sido acentuada com a introdução do treinamento” (BARBA, 2006: 100).

Apesar de Grotowski iniciar seu pensamento teatral a partir de uma relação com

os arquétipos, como um substrato de contato de uma possibilidade de compartilhar

aspectos comuns entre a realidade humana e sua técnica de transe, a rigor, não exige

nada de arquetípico para a representação do signo teatral. Prova disso são as palavras de

Barba quando trata da segunda parte do trabalho de Grotowski e da busca do nome para

o livro que se tornou central para o entendimento da obra do autor:

“Neste período, Grotowski falava menos de arquétipos e de dialética de apoteose e derrisão, e mais sobre teatro pobre e de ‘via negativa’. Além do mais, era preciso acentuar de que não se tratava de uma estética, de uma técnica, de um sistema, mas de alguma coisa em aberto, em movimento: um processo. Chamá-lo de ‘O Teatro Pobre?’ Não, muito estático, parecia um manifesto” (BARBA, 2006: 100).

Esse aspecto foi um significado dado às suas teorias pela linha da antropologia

estética, calcada na tradição teórica francesa, cujo limiar semiótico é definido, em

grande parte, pela linguagem escrita e oral. Como o entendimento de comunicação aqui

proposto é alargado a partir dos escritos de C. S. Pierce e dos autores que investigam a

mente computacional, torna-se possível aproximar as idéias de Grotowski a processos

comunicacionais transversais, que tratam os fluxos de informação também entre

espécies diferentes. A estética fertilizada nesse contexto não restringe o olhar sobre

conflitos humanos, mas estende-se sobre conflitos entre espécies, por exemplo, ou como

dito anteriormente, sobre diferenças entre níveis distintos de signagem no espaço.

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O transe, para Grotowski, significa o “estado relacional” do ator em cena a partir

da não dualidade entre corpo e mente, em função das conexões estabilizadoras entre

organismo e meio, e isso é o que pode dar uma primeira abertura para lidarmos com a

idéia de estados alterados de consciência no trabalho do ator.

2.3.2 Conseqüências para o entendimento de transe

O entendimento mais comum de transe para o ator é o de que a mente, a

consciência, o sujeito ou espírito – algo que controla o corpo não mais consegue fazê-lo

levando-o a contorcer-se assumindo posturas e movimentos distintos de certo

comportamento cotidiano e “normal”. Ou, como Thomas Richard descreve, “pessoas se

jogam ao chão, gritam muito, e têm experiências pseudo-catárticas” (RICHARDS,

2001: 04, tradução livre)62 No Brasil, quando a abordagem é antropológica, a

sintetização desses processos tende a promover pseudo-transes em uma indefinição

estranha entre arquétipos e espíritos de velhos, guerreiros e etc. Trata-se de uma infeliz

tentativa de entendimento racional de processos inconscientes pela mente discursiva,

gerando insatisfação estética e descrédito nos processos laboratoriais, segundo Richard.

Quando bem conduzidos e aproveitados com intensa participação dos atores, esses

processos são capazes de acessar informações profundas da história pessoal de cada um

e abrir a possibilidade para a construção da mise-en-scène em situações de caráter

mítico e simbólico, alcançando um estado de comunicação sutil e profundo entre os

participantes.

Um corpo que sintetiza esses movimentos geralmente tem a cabeça estática

durante os exercícios, como se observasse o corpo agindo de fora do movimento. Outro

aspecto é a participação inativa dos olhos no movimento. A impressão é que os olhos

não são extensões da coluna, e estão sempre à procura de um foco externo, como um

outro corpo no espaço. Assim, o foco de atenção identifica technobuilders realizados

corporalmente por outros atores e sintetiza suas execuções. São corpos que respondem

aos estímulos do ambiente sempre mais lentamente que os outros, pois precisam antes

avaliar a situação para sintetizar a reação. Os ombros geralmente apresentam tensões

localizadas e os braços tendem ao movimento arbitrário, bloqueando o fluxo de

impulsos vindos dos pés e da pélvis através da coluna vertebral. São alguns dados

62 “people throw themselves on the floor, scream a lot, and have pseudo-cathartic experiences” (RICHARDS, 2001: 04).

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laboratoriais que pode ser parâmetro para identificar o corposintético em processos de

alteração da consciência.

Até mesmo Grotowski observou reações sintéticas por parte dos espectadores

em seus espetáculos quando acreditava ter chegado em uma relação de participação

entre ator-espectador através de uma aproximação com o espaço ritualizado:

“Certamente os espectadores tomavam parte direta na ação, mas para a maior parte deles era uma participação mais cerebral. Os espectadores reagiam de vários modos: para alguns era divertido ou estranho, procuravam, portanto uma resposta irônica, desejavam demonstrar o próprio senso de humor, o que não era mal, se a estrutura do espetáculo não tendesse quase sempre, no final, para uma contradição trágica na impostação do papel principal; e isso começava a colocá-los pouco à vontade. Outros, ao contrário, tinham uma reação histérica: os espectadores começavam a fazer barulho, a soluçar, a tremer a mostrar os signos63 como de uma queda em um estado de reação elementar. Não era, porém, um estado de espontaneidade original, talvez, às vezes, se prendia unicamente ao estereotipo, à imagem do selvagem: vale dizer, àquele que é o comportamento do selvagem que participa de um rito de preparação para a caça ou para a guerra, ou para algo do tipo; como devem ser emitidos os gritos, como executar gestos desordenados, como induzir-se à excitação. Outros queriam ser inteligentes [...] Procuravam, portanto isso para obter uma resposta discursiva, uma resposta possível de ser adivinhada por meio de um gesto, ou de uma palavra, ou de alguma frase” (GROTOWSKI, 2007: 122, grifo nosso).

Como resultado, Grotowski volta a discutir os princípios de suas propostas

estéticas e entende que o problema se encontra, como dito acima, na questão da

identificação aristotélica, emocional, trágica, e torna a separar espacialmente o

espectador dos atores no espaço. Para ele, a vocação do espectador é a de observador

enquanto testemunha.

“A testemunha não é quem enfia por toda a parte o nariz, quem se esforça por ficar o mais próximo possível, ou por intrometer-se nas ações dos outros. A testemunha mantém-se levemente à parte, não quer se misturar, deseja estar consciente e ver o que acontece, do início ao fim, e guardar na memória; a imagem dos eventos deveria permanecer dentro dela” (GROTOWSKI, 2007: 122-123).

Isso permitiu com que ele propusesse a cada espetáculo uma relação diferente

com seu público, oferecendo diferentes propostas espaciais como ponto de contato

ritualístico.

63 Aqui leia-se technobuilders.

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Outro perigo de uma leitura dualista dos processos de Grotowski é a sintetização

do mito, já que ele considerava ser esta uma das principais linhas condutoras do teatro

enquanto rito. A sintetização do mito é a sua imitação simplória posta em cena como

uma representação religiosa superficial, desprovida de transformações inerentes aos

processos religiosos, é uma “realização passiva das imagens míticas, de maneira que no

fundo, [...] o resultado tenda à estilização” (GROTOWSKI, 2007: 126). A eficácia dos

mitos nesses processos autênticos é o choque entre gerações, que norteiam seus

comportamentos gerais a partir de paradigmas expressos em representações coletivas.

Como Grotowski julgava que seu tempo era desprovido de noções de crenças

“professadas universalmente”, em função de uma forte noção de indivíduo em que

“coexistem diversas crenças”, abandonou essa linha, por acreditar não ser possível

ressuscitar no teatro o ritual, em função da ausência generalizada de uma fé exclusiva

em um sistema único de signos míticos baseado nas mesmas “imagens primárias”

(GROTOWSKI, 2007: 126-127). Como nas raves e em espetáculos “ecumênicos” que

olham para a cultura popular com instintos museológicos, em que vemos exatamente...

“[...] alusões, referências, fragmentos de todas as religiões possíveis (um pouco de hinduísmo, algo da China, aqui Cristo, lá Buda, ou ainda alguma outra coisa, algum Shiva Krishna), de religiões que não são exatamente as nossas religiões, das quais nos afastamos, como aquelas da nossa parte do mundo, ou de outras às quais nada nunca nos ligou, como aquelas de continentes longínquos; e tudo isso cuidadosamente construído, acertado, ideado64 e coroado por algo do tipo de uma grande teosofia, de uma civilização à la Planète, como naquela revista que sai em Paris. Uma grande mixórdia” (GROTOWSKI, 2007: 127).

Inúmeros exemplos se pode encontrar das leituras dualistas desses fenômenos

em jogo. Por ora, basta a clareza sobre a ação sintetizadora que permeia o assunto como

um parâmetro metodológico para a identificação de corpos (cênicos ou não, humanos,

objetos coisas e objetos de pesquisa, cenários, figurinos, informações, imagens mentais,

corpus teóricos e etc.) que não se alteram em seus estados.

2.4 Contaminações: o impulso de acordo com as informações do ambiente

No início do capítulo, levantou-se a possibilidade de leitura desses fenômenos

cênicos a partir da teoria da complexidade. Isso nos permite propor que o jogo cênico,

tradicionalmente entendido como escuta, ação e reação dos personagens inseridos na

64 Aqui se lê “sintetizado”.

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noção de realidade aristotélica, pode ser reinterpretado do ponto de vista informacional.

Há muito, Stanislávski percebeu a importância do jogo e levantou a atitude de muitos

atores que reagem somente depois de ouvirem do parceiro a sua “deixa”, como se

costuma dizer no ambiente teatral. Isso é justamente o que Grotowski pretende eliminar,

como vimos, com sua técnica de transe, na medida em que a ação, já é em si mesma,

uma reação, ou seja, um impulso.

Mas, para entender o mesmo fenômeno em linguagens híbridas, deve-se

expandir a idéia de jogo para a idéia de contaminação, e pensar que os atores podem ser

vistos como sistemas complexos, sistemas cognitivos, que são capazes, entre muitas

outras coisas, de gerar informações. Se, na artemídia é possível encontrar diversos

níveis distintos de descrição e noção de realidade, não se deve esperar por personagens

no sentido tradicional do termo, ligados ao teatro aristotélico trágico. Já que é um

ambiente discursivo, onde as emanações de significados encontram-se arquitetadas pelo

espaço, a signagem não se dá aleatoriamente o tempo todo, e o ator pode se nortear

pelos fluxos de informação deixando-se contaminar por eles.

Bem, dizer isso é fácil. Mas o fazer implica em que se recorra à técnica de transe

de Grotowski para uma atuação que seja, fundamentalmente, uma alteração de estados.

O ator assumiria que o jogo cênico pode ser visto como uma questão de sobrevivência e

foca a sua atenção na...

“[...] sensibilidade, no sentido de reagir adequadamente e a tempo às variações ou diferenças que ocorrem nele mesmo ou no ambiente. Essas cadeias de eventos, geradoras de processos, se manifestam para o sistema como sinais ou simplesmente fluxos de informação” (VIEIRA, 2006: 21).

Ou seja, contaminar-se das informações do ambiente e tornar-se outro. Em

grego, uma palavra ligada ao trabalho do ator na tragédia, é “anér”, ou, em português,

um outro (BRANDÃO, 1985, 11-15). Um outro que é o personagem, que é a própria

identificação entre público/personagem, processo inerente e cabal para a realização do

trágico, segundo Aristóteles (ARISTÓTELES, 450ac.). “Tornar-me” algo é a própria

capacidade do corpo de estar em escuta, é o desejo primeiro de tornar-se “corpo-outro”.

Parte-se do pressuposto de que para o ator em cena, esta capacidade de tornar-se corpo-

outro, de conectar-se ao meio ambiente, ao entorno, é aquilo que garante a vivacidade

da construção poética.

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O poético se dá não somente por aquilo que garante o espetáculo e seu

imaginário como acordo coletivo, determinado muitas vezes pela simples dicotomia

espacial e arquitetônica do edifício teatral, separando, de um lado, a presença do

público, e de outro a do elenco (MAGALDI, 1998: 43-51). Não o ritual comunitário

que, em si mesmo, é tradição de tornar-se outro. Mas, sim, o jogo cênico, o jogo

dramático, de ação e reação, como uma contaminação inequívoca, indiscriminada e

perigosa, inevitável e sinestésica, tridimensional, de partículas subatômicas em

completa transmutação de imagens, de funções, de lugares, de fluxos, direções enfim,

de estados. Não seria este o estado próprio da cena? Seria esta uma maneira de melhor

entender o jogo dramático? Entendendo que a vida do poético, sua força, se dá com as

transformações dos estados físicos dos corpos em cena? Humanos ou não, estes corpos

precisam ser contaminados, embora o que nos interesse aqui seja a contaminação

humana.

Como se dá este processo de contaminações? Como se organizam essas

transformações? O que isso tem a ver com a idéia de escuta? Seria essa escuta somente

auditiva? De que modo se pode entender os processos de construção do poético em

cena, tendo como ponto de partida a idéia de materialidade do ambiente e do corpo

humano?

Para lidar com essas questões vale recorrer à idéia de performance de Paul

Zumthor, que a trata como a presentificação do corpo em cena, em ação, em

experiência, como um desempenho de percepção, e não como sendo a linguagem

performática da construção estética.

2.4.1 Segundo a vivência

“Meu corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina a minha relação com o mundo” (Zumthor, 2000:27).

Grotowski afirma que:

“Pela eliminação gradual de tudo que se mostrou supérfluo, percebemos que o teatro pode existir sem maquiagem, sem figurino especial, sem cenografia, sem espaço isolado para a representação (palco), sem efeitos sonoros e luminosos, etc. Só não pode existir sem o relacionamento ator-espectador, de comunhão perceptiva, direta, viva” (GROTOWSKI, 1971: 5).

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Se a especificidade do fenômeno cênico está na presença viva entre humanos,

como define Grotowski, podemos pensar que esta presença viva é a própria ação

cognitiva dos intérpretes. O poético se dá aqui, portanto, não pelo uso de técnicas de

construção cenográfica, não pela dramaturgia que desvenda a realidade, não pelo

mimetismo do corpo reproduzindo algo que não está em cena, mas pela ação viva e

cognitiva do corpo como organismo em constante conectar-se com o ambiente da cena,

no seu contaminar-se dos fluxos informacionais.

Para Grotowski, os intérpretes são como arquitetos físicos de todas as imagens

de contextualização espacial, temporal, emocional, enfim, das ações dos personagens,

empregando, de forma controlada, “(...) o gesto, o ator transforma o chão em mar, uma

mesa em confessionário, um pedaço de ferro em ser animado etc.” (GROTOWSKI,

1971: 19). É sobre a materialidade física do ator que a linguagem poética da cena se

apóia.

Para Zumthor, o fator definidor da performance é o corpo, a fisicalidade do

humano na experiência com o mundo, mesmo quando se trata de uma experiência

textual e literária com a dramaturgia escrita.

“O corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Dotado de uma significação incomparável, ele existe a imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou, para melhor e para pior. Conjunto de tecidos e de órgãos, suporte da vida psíquica, sofrendo também as pressões do social, institucional, do jurídico, os quais, sem dúvida, pervertem nele seu impulso primeiro (...) eu me esforço, menos para apreendê-lo do que para escutá-lo, no nível do texto, da percepção cotidiana, ao som de seus apetites, de suas penas e alegrias: contração e descontração dos músculos; tensões e relaxamento internos, sensações de vazio, de pleno, de urgência, mas também um ator com sua queda, o sentimento de uma ameaça ou, ao contrário, de segurança íntima, a abertura ou dobra afetiva, opacidade ou transparência, a alegria ou pena provindas de uma difusa representação de si próprio” (ZUMTHOR, 2000: 28).

A performance, para ele, é o próprio vivenciar literário do corpo, ser

literatura/corpo, corporificar o mundo e a si mesmo.

“Considero, com efeito, a voz, não somente nela mesma, mas (mais ainda) em sua qualidade de emanação do corpo e que, em um nível sonoro o representa plenamente. Um certo número de realidades e de valores, assim revelados, aparecem identicamente envolvidos na prática da leitura literária. Daí o lugar central que dou a idéia de Performance. [...] Nesse sentido, a performance é uma noção central no estudo da comunicação oral. [...] As regras da performance – com efeito, regendo simultaneamente o tempo, o lugar, a finalidade da

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transmissão, a ação do locutor e, em ampla medida, a resposta do público – importam para comunicação tanto ou ainda mais do que as regras textuais postas na obra na seqüência das frases: destas, elas engendram o contexto real e determinam finalmente o alcance” (ZUMTHOR, 2000: 31-35).

Este trecho de Zumthor, permite falar da comunicação oral no ambiente da cena

por levantar a noção de que, mesmo o texto dramatúrgico não dispensa – antes, se apóia,

surge e torna-se corpo enquanto possibilidade factual de existência espacial. Essa

existência espacial é recriação ativa do corpo.

“A performance e o conhecimento daquilo que se transmite estão ligados, naquilo que a natureza da performance afeta o que é conhecido. A performance de qualquer jeito, modifica o conhecimento. Ela não é simplesmente um meio de comunicação: comunicando ela o marca” (HYMES apud ZUMTHOR, 2000: 37).

Pode-se, então, pensar a escuta como além do auditivo. Uma escuta, sobretudo,

tátil: uma leitura do meio ambiente, em uma insaciável clareza, em edificação de uma

constante presentificação.

“Assim, quando eu digo: ler possui uma reiterabilidade própria, remetendo a um hábito de leitura, entendo não apenas a repetição de uma certa ação visual, mas um conjunto de disposições fisiológicas, psíquicas e exigências de ambiente (como uma boa cadeira, o silêncio...) ligadas de maneira original para cada um dentre nós, não a um ‘ler’ geral e abstrato mas à leitura do jornal, de um romance ou de um poema. A posição de seu corpo no ato da leitura é determinada, em grande medida, pela pesquisa de uma capacidade máxima de percepção. Você pode ler não importa o que, em que posição, e os ritmos sanguíneos são afetados. É verdade que lendo em seu quarto, você se ponha a dançar e no entanto, a dança é o resultado normal da audição poética!” (ZUMTHOR, 2000: 37-38).

O corpo em performance, ou em estado de escuta, pode ser tratado através da sua

posição de percepção ativa, pré-reflexiva. O corpo como um “querer um outro corpo.”

Ou, como sugere Zumthor:

“Entre o sufixo designando uma ação em curso mas que jamais será dada por acabada e o prefixo globalizante, que remete a uma totalidade inacessível, se não inexistente, performance coloca a ‘forma’, improvável. Palavra admirável por sua riqueza e implicação, por que ela se refere menos a uma completude do que a um desejo de realização” (ZUMTHOR, 2000: 38).

Mais adiante, justifica dizendo: “é que a performance é o único modo vivo de

comunicação poética” (Zumthor, 2000: 38). E aqui se arrisca, sugerindo que: é poético

por que é vivo, porque sua vida descende do perigo que exige permanência: a própria

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possibilidade de não se encontrar em outros corpos. Ao estabelecer os contatos físicos, o

corpo do outro, assim como qualquer outra informação, torna-se corpo, pois se

transforma em uma imagem mental, como será visto adiante. Assim, produzem

mudanças e implicações fisiológicas no estado de presença no ambiente.

2.4.2 Segundo as imagens e conexões

O corpo rege seu funcionamento e suas relações internas/externas

independentemente de nossa consciência sobre elas. Algumas dessas relações foram

adquiridas ao longo do tempo e das infinitas trocas em situações com outros objetos

exteriores ao organismo e pertencentes ao meio.

Por exemplo: quando colocamos a mão perto de algo muito quente, o corpo

reage muito rapidamente para não ser afetado. Isso só é possível porque o corpo possui

determinados grupos nervosos que funcionam como um atalho mais eficiente e mais

rápido entre a superfície cutânea e o grupo muscular controlador daquela região. A

informação de entrada torna-se uma imagem (dor - está sendo queimada parte do

organismo) não precisa chegar até o cérebro para produzir uma reação. Em determinado

ponto do caminho, a informação se divide em duas, uma diretamente para o músculo

fazendo-o mover-se, enquanto a outra avisa o cérebro que algo parecido com uma ferida

aconteceu no braço. Este “algo parecido com uma ferida” é imediatamente identificado

com alguma experiência passada, corpo/memória, tornando o organismo consciente da

situação em que se insere. Como a circunstância passada de ferida prejudicou sua

integridade física, o organismo sabe, agora por analogia, que deve modificar a situação

em que se encontra o mais rápido possível. Dessa maneira, o indivíduo consegue traçar,

dentre todas as possibilidades de reação, a melhor saída para garantir sua integridade.

Esse intrincado processo pode ser conhecido pelo próprio organismo, em termos de um

relato sobre si mesmo, na forma de imagens mais complexas e correlatas. Há, portanto,

uma leitura da realidade circundante, do entorno, baseada em uma análise de

possibilidades que geram aquilo que Damásio chamou de “antevisão” no intrincado

processo de emergência da mente e da consciência.

“A sobrevivência depende de encontrar e incorporar fontes de energias e de prevenir todos os tipos de situações que ameaçam a integridade dos tecidos vivos. Por certo é verdade que, sem ações, organismos como os nossos não sobreviveriam, pois as fontes de energia necessárias para renovar a estrutura do organismo e manter a vida não

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seriam encontradas e postas a serviço do organismo, e muito menos seriam evitados os perigos do ambiente” (DAMÁSIO, 2000: 43).

A “antevisão” é a capacidade que o organismo tem de se projetar em uma série

de possíveis situações futuras e escolher a melhor para a sua sobrevivência. Este

processo não implica, necessariamente, que as áreas do cérebro responsáveis pelo

raciocínio lógico sejam dominantes nestas decisões, mas estrutura-se sobre áreas

específicas do sistema nervoso, que funciona como um todo. A ‘antevisão’ é um

processo que vai muito além do funcionamento consciente da mente e encontra eco no

que sugere Flusser com o processo de intersubjetivação, ou McLuhan com as contrações

e implosões, ou Zumthor com a presentificação, ou Grotowski com o transe, ou Jorge

Vieira com o papel da sensibilidade em relação à contaminação informacional. Trata-se

de processos que, ao invés de envolver a decisão, a causa e o efeito, envolvem a

sensação, a ação e a reação.

Quanto mais aptos a construir a antevisão, mais condições tiveram os

organismos de sobreviver, ao longo do tempo. Organismos que se concentram

absolutamente nas funções reguladoras do próprio corpo (excreções, digestão, enzimas e

etc), não conseguem prestar atenção em nada além. Foi preciso que o cérebro se

subdividisse e responsabilizasse algumas de suas áreas com funções específicas, para

que outras partes pudessem se tornar capazes de se relacionar de maneira menos direta

com o todo do organismo. No cérebro de espécies menos complexas, só se forma o

modelo do organismo como um todo, e quanto mais complexas as espécies, mais

profundamente se dá a individuação do organismo. É na medida da co-existência, da co-

evolução, que meio e organismos tornam-se mais ou menos complexos. A maneira com

que o organismo vivencia, lê e reconstrói o ambiente, o tempo, o estar no mundo é, sem

dúvida, um processo biológico em que a idéia de escuta como tactilidade é trazida à

tona e se justapõe à idéia de visão, de imaginação e de sobrevivência, por dois fatores.

1) Estes padrões são vivenciados no cérebro tornando-se corpo na forma de

imagens mentais. Um toque em uma cadeira, uma queda de temperatura, e mesmo um

ruído sonoro, ou uma opereta, qualquer informação, quando entra em contato com o

corpo, faz via sistema sensório-motor. A imagem que será produzida pela mudança de

freqüência elétrica no centro nervoso, etc. As imagens são os códigos básicos da

linguagem mental, são as letras que formarão as palavras do texto mudo, que não serve

para ser lido, mas para ser usado.

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2) A melhor saída para uma circunstância de risco vai depender da maneira

como esses códigos são construídos na mente. Quanto mais específica for a projeção

futura dos códigos aplicados à situação presente, mais garantias de integridade o

organismo tem, e assim, maior a capacidade de sobrevivência.

A antevisão, preceito básico para a sobrevivência, depende da manipulação dos

códigos mentais, das imagens detalhadamente construídas na projeção das

possibilidades do organismo em circunstâncias futuras. Quanto mais elaboradas forem

as criações do organismo, mais complexidade ele pode enfrentar. Ou seja, a leitura do

mundo como sobrevivência depende de uma incessante busca de sentidos para as

experiências, mas a maneira pela qual essa busca se dá é em rede, em processos de

cascatas elétricas não-lineares.

Como, de fato, o corpo produz essas imagens ainda não se sabe, mas é

consensual que este é o modo pelo qual o cérebro consegue identificar e se relacionar

com aquilo que lhe chega através dos nervos, da pele, dos olhos, enfim, dos sentidos

(sejam cinco ou mais...). Sabe-se hoje, que esta é a maneira com a qual o organismo

identifica a si e ao mundo.

“Refiro-me ao termo imagens como padrões mentais com uma estrutura construída com vários sinais provenientes de cada uma das modalidades sensoriais – visual, auditiva, olfativa, gustatória e sômato-sensitiva. A modalidade sômato-sensitiva (a palavra provém do grego soma, que significa ‘corpo’) inclui várias formas de percepção: tato, temperatura, dor, e muscular, visceral e vestibular. A palavra imagem não se refere apenas a imagem ‘visual’, e também não há nada de estático nas imagens. A palavra também se refere a imagens sonoras, como as causadas pela música e pelo vento, e às imagens sômato-sensitivas [...] As imagens de todas as modalidades ‘retratam’ processos e entidades de todos os tipos, concretos e abstratos. As imagens também ‘retratam’ as propriedades físicas das entidades e, às vezes imprecisamente, às vezes não, as relações espaciais e temporais entre as entidades, bem como as ações destas. Em suma, o processo que chegamos a conhecer como mente quando imagens mentais se tornam nossas, como resultado da consciência, é um fluxo contínuo de imagens, e muitas delas se revelam logicamente inter-relacionadas. O fluxo avança no tempo, rápido ou lento, ordenadamente ou aos trambolhões, e às vezes segue não uma, mas várias seqüências. Às vezes as seqüências são concorrentes, outras vezes convergentes e divergentes, ou ainda sobrepostas. Pensamento é uma palavra aceitável para denominar esse fluxo de imagens” (DAMÁSIO, 2000: 402 – 403).

A teoria Corpomídia (KATZ & GREINER) propõe que o corpo (humano e não-

humano) como o estado da coleção de informações que o compõe, e que essa coleção é

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sempre transitória, pois muda de acordo com os fluxos de informação trocados entre

corpo e ambiente. Greiner e Katz afirmam que graças ao avanço e “à ampliação dos

dados disponíveis sobre a vida e a morte dos animais tornou-se possível entender que a

evolução não ocorreu somente no passado, mas que é um processo em andamento”

(2005: 128). O processo evolutivo, portanto, se dá através de relações de percepção do

meio ambiente sempre em tempo real. Pelas redes neuronais circula um fluxo

ininterrupto de imagens coerentes com os movimentos elétricos no sistema nervoso, que

se espalha por todo o corpo. Essas imagens mentais são mapeamentos do organismo em

seus diversos níveis de atividades.

O corpo, portanto, pode ser entendido como sistema e não como produto de uma

mente que está fora dele, ou que o ocupa, fazendo-o de embalagem ou recipiente. O

corpo e suas ações no mundo, em co-evolução constante e ininterrupta – em tempo real,

produz uma memória que pode ser vista, Segundo Edelman65, como “uma capacidade

de categorização pré-estabelecida, mas ao mesmo tempo passível de modificações

dinâmicas” (GREINER, 2005: 41). Uma relação de estabilidade e instabilidade entre

redes neuronais temporárias, que só existem como informação acessível à mente

consciente, na medida em que são requisitadas por processos de ativação eletroquímica.

Esta ativação pode ser provocada por uma informação entrante vinda do meio externo

ao corpo, ou por uma informação periférica proveniente do próprio corpo, como uma

contração controlada de um grupo muscular, por exemplo, ao querer “relembrar”

determinada seqüência de passos de dança refazendo alguns trechos da coreografia. A

introspecção como atividade espontânea ou controlada da mente consciente, também

tem a capacidade de requisitar as cascatas químicas provocando o aparecimento e as

reentradas de informação fortalecendo as redes neuronais. Por exemplo, quando se deita

na cama para recordar as experiências que se teve durante o dia. A grande contribuição

da memória como reentrada e reorganização constante de informações é mostrar que as

lembranças se agrupam temporariamente no corpo, provocando-o em suas mudanças de

estados.

“Sob a influência de contextos que se modificam constantemente, ela muda na medida em que a estrutura e a dinâmica das populações neuronais implicadas nas categorizações originais também se

65 Em sua teoria, a “Teoria da Seleção de Grupo Neuronal” (TNGS) baseada no que ele mesmo chamou de “neurodarwinismo”, esse Prêmio Nobel de Medicina de 1972 explica a memória por reentradas de informações fortalecendo o elo químico entre as ligações sinápticas das redes neuronais.

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transformam. A rememoração diz respeito à ativação de certas porções de cartografias globais estabelecidas antes, mas não necessariamente a totalidade delas. Como as categorias perceptivas não são imutáveis e se modificam sob o efeito do comportamento do animal, a memória, vista por este ângulo, resulta de um processo de recategorização contínua [...] Não há estoque, apenas percursos de transcorridos e conexões já experimentadas. [...] a idéia de ‘reentrada’ que seria um processo através do qual sinais paralelos vão de um lado para o outro no cérebro, passando entre mapas. Estes mapas são feixes de neurônios com alguns pontos relacionados a células receptoras (na pele, na retina, e assim por diante). Por isso a ‘reentrada’ não é uma operação de feedback (uma simples relação de emissão-recepção). Existem muitas trilhas paralelas, trabalhando simultaneamente” (GREINER, 2005: 43).

De acordo com Uyemov, citado por Vieira, para sobreviver é preciso que o

sistema seja apto em reter parte do fluxo de informações do ambiente, ou seja, seja apto

a desenvolver a memória:

“(...) sob a forma de um colapso relacional, a partir da progressiva internalização de relações nascidas de sua atividade interna e do contato com o ambiente (UYEMOV, 1975: 93-102 apud VIEIRA, 2006: 21) [...] O sistema passa a adquirir não só a capacidade de perceber a informação, mas também de percebê-la de uma certa maneira. [...] ganha grande flexibilidade na medida em que o sistema evolui para níveis mais altos de complexidade. É a partir da memória, aqui generalizada, que um sistema consegue conectar seu passado, na forma de uma história, com o presente transiente e com possíveis futuros. Os três parâmetros fundamentais da Teoria Geral de Sistemas, ou seja Permanência, Autonomia e Meio Ambiente, manifestam-se assim com coerência” (VIEIRA, 2006: 21 – 22).

Essas imagens mentais, produzidas por setores que se formam de maneira

organizada no cérebro a cada ocorrência, são capazes de descrever a existência até de si

mesmas, como um fenômeno que se dá no próprio organismo. E o desenvolvimento

dessa capacidade de representar a si mesmo como organismo atuante, com história em

diálogo com o meio, é, para Damásio, o desenvolvimento do sentido de si, o Self, ou

Proto-Self, para organismos menos complexos. Desse modo,

“(...) pensar o corpo a partir de suas mudanças de estado, nas contaminações incessantes entre o dentro e o fora (o corpo e o mundo), assim como o durante as predições, o fluxo inestancável de imagens, oscilações e recategorizações” (GREINER, 2005: 81).

E mais claramente, em se tratando de escuta e presentificação, adiante a autora

coloca:

“Isso porque, toda vez que achamos que estamos, de fato, ouvindo o outro, ‘deixando o texto falar por si mesmo’, o outro já faz parte de

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nós. O objeto nunca é ele mesmo, mas já se dá à nossa percepção na qualidade de objeto corporificado” (GREINER, 2005: 84, op. cit.).

Pode-se, agora, conceber a idéia de escuta abrangendo também a percepção de si

mesmo como processo de construção do entorno, pois o corpo escuta algo vindo do

ambiente, mas também escuta a si mesmo escutando. Portanto, nossa idéia de escuta não

se limita à escuta de uma sonoridade exclusivamente auditiva. Antes, é um modo de

percepção ativa do corpo como parte de suas ações de sobrevivência. Mirando as

imagens mentais de Damásio, pode-se pensar que é a necessidade de “estarmos em um

outro que nos faz colocar um outro em nós”. A sobrevivência mais íntima tende a

funcionar como uma percepção ativa, que faz mover um organismo em direção a outro,

no intuito de conhecê-lo, não por mera curiosidade, mas por necessidade absoluta de o

encontrar para poder se reencontrar.

2.4.3 O Jogo: o impulso de acordo com as informações do ambiente

Como entender e conceituar esses fluxos de informações que interessam à

pesquisa? E o que este entendimento de fluxos informacionais mudaria na idéia de jogo

cênico, principalmente no que tange à atenção do ator em cena? Será que as

informações provenientes do organismo como resposta ao ambiente, e as informações

provenientes do ambiente como resposta ao organismo, teriam naturezas sígnicas

diferentes, caracterizando semioses distintas? Será que é possível identificar estes dois

fluxos de informação desintegrados um do outro? É viável, enquanto treinamento para o

intérprete, pensar sua relação criativa, separando estas duas instâncias de semioses?

Será possível identificá-las separadamente ou o que se tem é somente a tensão resultante

deste processo natural e ininterrupto da relação entre corpo e ambiente? Não seria esta

tensão o próprio jogo cênico? Se for possível entender o jogo cênico como o próprio

processo de relação entre estes diferentes fluxos de informações, será possível conceber

um treinamento que amplie a percepção do organismo em relação a eles? Poderia este

treinamento, servir como formação e ampliação de habilidades criativas ao ator, sem se

caracterizar como um adestramento do corpo em códigos de uma linguagem estética

específica? Ou seja, poderia este treinamento ampliar a verticalização do artista com

relação a outras linguagens cênicas, como no caso do teatro aristotélico ligado à palavra

e à ação enquanto representação? Se estes diferentes fluxos de informação estão

presentes no cotidiano, por que não os percebemos? Por outro lado, se os percebemos,

em que nível de nossa consciência essa percepção ocorre? Nesse sentido, o que difere

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nossa percepção cotidiana, da percepção do intérprete em cena? Será lícito então,

pensando no intérprete em cena, chamar de estado alterado de consciência, um estado

em que seja possível perceber estes fluxos de informações de forma mais radical? Se

McLuhan define a luz como informação em estado puro, e sendo a palavra escrita um

código visual, ela pode ser vista como luz, ou seja, informação pura? A partir de

Zumthor, que entende a leitura como impulso dançante do corpo, então, seria viável

querer que uma técnica de transe para o ator ampliasse sua percepção com relação à sua

condição de um “dançante luminescente”? Ou seja, nem a abordagem da palavra pelo

sentido aristotélico, nem pela via da oralidade, mas a partir daquilo que a palavra

provoca no corpo em sua condição visual. Seria esta, uma alteração de consciência

específica, baseada em procedimento que privilegie o acoplamento do corpo no

ambiente pela via do sistema óptico e sensório motor? Ou os sentidos trabalham de

modo integrado e a percepção é uma ação do corpo que tende à unificação das

informações em fluxo? Uma possibilidade seria pensar na “Leitura Transversal”,

proposta por Richard Demarcy (In GUINSBURG et al, 2003: 23-38), que trata a

questão da recepção das informações propondo uma atitude ativa do público, em

atividade constante de significação a partir das relações sócio-culturais entre a realidade

e a obra. “Isso consiste, assim, em encontrar a dimensão profunda do signo, ir à sua

reserva cultural, à sua ‘memória’, ao seu peso histórico” (DEMARCY in GUINSBURG,

2003: 32).

Como proposta dramatúrgica então, temos o que poderíamos chamar de uma

“dramaturgia da luz”, em que tanto público, quanto atores estão fisicamente conectados

uns aos outros através de seus sistemas ópticos e sensório-motores. Não é que isto não

ocorra em um espetáculo de teatro chamado clássico, pelo contrário, isto se dá

inevitavelmente, em qualquer situação em que haja um organismo humano. A diferença

que nos interessa é apenas a de mudança de foco de atenção em acoplamentos distintos

e específicos desses organismos na construção dos signos. Sustenta-se, assim, um

processo de alteração de consciência nos intérpretes e mesmo no público, enquanto

elementos fundantes dessas relações estético/ambientais.

O jogo cênico passa para o primeiro plano no processo de formação do

intérprete, pois ele não se preocupa mais em representar um tecnobuilder, mas em

trabalhar com o fluxo de informações no qual está inserido. No próximo capítulo serão

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tratados alguns parâmetros básicos que definem biologicamente a percepção e a sua

atuação no processo de alteração de consciência. No momento, vale sublinhar que o

interesse, até aqui, foi o de estabelecer o parâmetro metodológico do corposintético –

um corpo que, ao invés de tornar-se outro, sintetiza seus comportamentos baseando-se

em hábitos de percepção pautados pela tradição, que não sustentam a fruição e o jogo da

cena na era da artemídia. Tornou-se claro, também que em contraposição ao

corposintético, existe um outro corpo que cambia-se constantemente em fluxos

informacionais, o corpomídia.

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3. Estados alterados de consciência para o trabalho do ator

3.1 Apontamentos iniciais

Este capítulo é destinado a discutir o entendimento de consciência e a possível

alteração de seu funcionamento no caso do trabalho do ator. Evidentemente, será

trabalho inútil, se não forem levados em consideração alguns aspectos. O primeiro deles

é que definir consciência é um problema delicado. É como tentar definir o cheiro do ar,

ou o gosto da água (para reduzirmos a angústia em imagens viáveis...). Sem o intuito de

se furtar à complexidade de tal assunto, e das responsabilidades implicadas em trabalhar

nas fronteiras, o que se pretende aqui é estabelecer alguns parâmetros para o

entendimento de alteração de consciência para o trabalho do ator.

Serão discutidas experiências, do ponto de vista teórico/prático, mas sem

entender que o trabalho do ator cabe em um manual de instruções do tipo que

acompanha, por exemplo, uma batedeira elétrica. Propondo que o trabalho do ator não

constitui um sistema fechado, aqui se apontam princípios, e não uma técnica específica.

Um segundo aspecto a ser considerado é que este tema se encontra em uma fronteira

onde o conhecimento avança em progressão geométrica, e a isso se soma o fato de que

muitas das inferências propostas trazem conhecimentos que, tradicionalmente, parecem

estar à margem da formação de ator ensinada na maioria das escolas de teatro, mesmo

as maiores e mais reconhecidas do Brasil.

Há que salientar ainda que, se estas mesmas áreas que aqui se projetam sobre

suas fronteiras, forem dispostas na bancada de outro laboratório, e iluminadas de outro

ponto de vista, talvez não façam sentido algum e se pareçam mais com um embuste mal

engendrado. E que se a bibliografia aqui adotada for substituída por outra, os níveis de

descrição que definem tecnologia, trabalho do ator ou consciência serão outros, bem

como as suas formas de alteração. Outros parâmetros metodológicos promovem outros

entendimentos para transe, comunicação ou corpo...

Aqui se discutem necessidades que perambulam no dia a dia profissional,

criativo e investigativo do ator. Amanhã, quando este estudo já fizer parte das estantes

da biblioteca, talvez suas conclusões e apontamentos possam perder seu “prazo de

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validade”. Por último, deve-se levar em consideração que aqui interessa como

parâmetro metodológico uma noção de estabilidade no funcionamento da relação

corpo/mente/meio que torna possível consciência e comunicação. Todavia, não se elege

um entendimento definitivo do que pode ser consciência para o ator em todos os níveis

de sua atividade, e em todas as linguagens estéticas.

Dadas as noções de entendimento sobre “trabalho do ator”, “tecnologia” e

“transe”, cabe agora instaurar a área teórica do que se pretende como consciência, que

será proposta em quatro níveis distintos. Níveis estes que hora podem se cruzar em

relações ortogonais de conhecimento, e mostrar as fundações para determinados

entendimentos comuns na ciência de hoje, ou apenas descrever estados históricos que a

consciência assumiu em distintas maneiras de se ver o conhecimento, o corpo e etc.

Estes níveis podem revelar cruzamentos específicos que apóiam a discussão proposta

desde o primeiro capítulo. Os quatro níveis, dispostos aqui sem nenhuma hierarquização

de importância, a não ser a de determinar para este discurso alguma lógica consciente,

são:

• O primeiro deles é um panorama geral do problema via filosofia. Não será feita uma

discussão profunda, na medida em que esta não se qualifica como foco desta pesquisa, mas

será apontada a noção presente no senso-comum, e de certo modo no consenso científico,

que acaba penetrando o trabalho do ator;

• O segundo deles é no nível de processamento de informação, através da Psicologia

Evolutiva, sob o viés de Steven Pinker. Este nível compromete-se com a identificação de

processos da natureza evolutivamente alicerçados no corpo e em suas relações com o meio.

Permitirá uma leitura do corpo como processador de informação, paradoxalmente,

superando a metáfora do corpo-máquina;

• O terceiro é condizente com o nível fisiológico, onde serão utilizados os estudos de Antônio

Damásio, como já apontados anteriormente. Este aspecto da discussão implica em montar a

opção de descrição que mais se acerta à noção de transe aqui proposta, já que será a partir da

desestruturação dos funcionamentos cognitivos do corpo que será sistematizada a idéia de

estados alterados de consciência para o trabalho do ator;

• E finalmente o quarto nível se dará por um entendimento sistêmico através da contribuição

de Jorge de Albuquerque Vieira. Esse nível permitirá uma leitura ampla para o trabalho de

treinamento do ator no que tange o conceito de alteração de consciência, de modo que,

interligado aos fundamentos de processamento de dados e a noção fisiológica, o

entendimento sistêmico permite desestabilizar a hierarquização de certas funções

características que fazem a consciência emergir.

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3.2 O que é consciência: estudo da mente sob novas tecnologias

Em função de ser objeto de muitas áreas distintas, não seria arriscado afirmar

que a consciência não possui uma leitura única. Muito embora cada área tenha se

debruçado sobre o assunto à sua maneira, algumas fizeram dela um de seus temas

preferidos, como é o caso da psicologia, da filosofia e, mais recentemente, das ciências

cognitivas. Nesse assunto, o uso de tecnologias de imageamento cerebral em terceira

dimensão vem permitindo novos conhecimentos na área da cognição, e muitos

resultados daí originados irrigam outras áreas. Embora ainda haja muita discussão sobre

os detalhes de funcionamento dessas tecnologias, porque toda tecnologia interfere na

objetividade e na precisão dos resultados, sem dúvida nenhuma elas representam um

avanço incontestável no estudo de um objeto tão fascinante como a consciência66.

A história das mudanças conceituais relacionadas com a tecnologia acompanha o

desenvolvimento técnico do homem neste último século, e hoje já é possível observar

um pouco do funcionamento da mente, na qual alguns milímetros cúbicos de imagem67,

em termos de fisiologia, significam centenas de milhões de neurônios em processos

extremamente complexos.

O método do início do século XX que deu origem ao mapeamento cerebral é a

pneumoencefalografia – procedimento em que o fluido cérebro-espinhal era substituído

por ar para que o cérebro fosse observado com maior precisão nos exames de Raios X.

Nos anos 20, o exame chamado Angiografia, possibilitou o melhoramento da captação

de imagens por contrastes injetados na corrente sanguínea do paciente. Hoje, ainda é

usada para detectar defeitos nos vasos sanguíneos e alguns tumores. A grande diferença

é que estes métodos iniciais mostravam apenas o cérebro estático e não em desempenho

de suas funções. Na década de 70, a Tomografia Axial Computadorizada (TAC ou TC)

foi desenvolvida explorando a tecnologia do raio X e, embora ainda com imagens

66 Esta discussão é analisada por David Dobbs no artigo Limites do Mapeamento Cerebral, traduzido por Frances Jones e publicado no Brasil na revista Viver Mente&Cérebro (Setembro de 2005: 84-90). 67 Um argumento que pede cuidado com a fé nessas tecnologias é levantado por Abigail A. Baird, psicóloga da Faculdade de Dartmouth, cientista que usa a fMRI em estudos sobre a adolescência. Baird, fala sobre a necessidade de se ter consciência de que as unidades de medida usadas pela mediação tecnológica no estudo da consciência (voxels - que unem volume e pixel), geralmente captam informações entre regiões recortadas de 2 a 3 milímetros cúbicos, mas que, na prática, "cada voxel encerra milhares de neurônios”, assim uma função registrada na imagem computadorizada do sistema nervoso pode ser resultado da atividade de alguns entre milhões deles. Esse argumento sedimenta o cuidado em relação à precisão das pesquisas quando se pretende superar a dualidade entre função mental e região do cérebro onde tais fatores da consciência ocorrem.

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estáticas, oferecia uma precisão muito maior em relação as técnicas anteriores. Ainda

nos anos 70, foi desenvolvida a técnica de imageamento funcional, que são scans que

mostram o cérebro tanto como estrutura estática quanto suas áreas específicas em

funcionamento. São chamadas técnicas funcionais, pois mostram as áreas do cérebro

respondendo a estímulos quase que em tempo real. Isso permite que os cientistas saibam

que estrutura, ou conjunto de estruturas, é responsável pela função cognitiva específica

que investigam. A PET, por exemplo, (Tomografia por Emissão de Pósitrons), “mede o

aumento do fluxo sanguíneo associado à atividade neuronal, dando uma idéia de quais

neurônios podem estar processando informação” (DOOBS, 2005: 86). Elementos

radioativos são injetados em voluntários e marcam moléculas como a glicose e sua

presença no cérebro, conduzidas pelo sangue. Estes marcadores moleculares emitem

pósitrons, partículas subatômicas, e podem ser captados pelos aparelhos que estimam a

"velocidade relativa de consumo de glicose pelas células, identificando quais delas estão

ativas durante processos mentais". Os dados aparecem em imagens fatiadas e coloridas

que permitem pela interpretação das cores e suas ocorrência nas áreas, especificar o

desempenho das funções cognitivas. Outro exame baseado em fluxo sanguíneo e

ativação neuronal é o a Ressonância Magnética Funcional (fMRI), que acabou por

responder diversas questões colocadas a respeito da precisão dos imageamentos

cerebrais (Ibdem).

O sangue é um grande aliado nesses métodos, por oferecer caminho até regiões

que não se pode atingir de outras formas, levando até elas, marcadores químicos que

podem ser captados por suas radiações. Mesmo com a diferença entre o tempo de ação

neuronal, de apenas alguns milionésimos de segundos, e a captação do afluxo

sanguíneo, que pode demorar até 3 segundos, cientistas consideram poder observar o

funcionamento de processos cognitivos quase que em tempo real.

Não é a importância das técnicas que está em jogo aqui, pois o que se questiona

é a utilização e a interpretação isolada dos dados obtidos sem levar em consideração os

diversos fatores que podem influenciá-los, inclusive falhas de projetos68. De qualquer

68 Uma crítica séria que é feita em torno das interpretações superficiais dos resultados e dados das pesquisas é que elas podem reforçar uma ciência baseada numa nova frenologia (atividade do século XIX que associa aspectos do crânio com aspectos da personalidade), o que pode gerar subsídios para preconceitos e generalizações perigosas... Segundo Dobbs, esta acusação é exagerada, já que “a maioria dos cientistas não tentam localizar a função cerebral, mas mapear as partes do sistema que agem em combinações diferentes para tarefas variadas”.

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forma, essas técnicas estão produzindo um tipo de conhecimento importantíssimo sobre

o funcionamento complexo do sistema mente/corpo. Mesmo sendo a definição de

consciência um problema posto desde muito tempo, estes aparelhos tecnológicos

permitem investigações menos invasivas da mente, e representam avanço recente para

todas as áreas que têm o corpo como interesse.

Teorias estruturadas para descrever o complexo corpo/mente/consciência/meio

ainda não se popularizaram em algumas áreas onde o corpo representa o próprio

conhecimento em ação, como é o caso da dança e do teatro, por exemplo. Lembrando de

Grotowski e Stanislávski, que propuseram respostas práticas baseadas na co-

dependência entre corpo e mente, artistas já podem saber que muitas de suas idéias a

respeito das experiências criativas, estéticas, cognitivas, não são meras ilusões, mas

metáforas poderosas dos processos de criação de um conhecimento específico: a tensão

entre a percepção individual e coletiva do mundo. De modo que, ainda de forma inicial,

e, sobretudo, como sistema aberto, é imprescindível investigar esses processos no

trabalho do ator sob a perspectiva dessas novas tecnologias.

3.3 Consciência: sob a luz da filosofia

Para o senso comum, consciência significa “a possibilidade de dar atenção aos

próprios modos de ser e às próprias ações, bem como de exprimi-los com a linguagem”.

Significa “estar ciente dos próprios estados, percepções, idéias, sentimentos, volições e

etc.” (ABBAGNANO, 2000: 185). Alguém consciente, é alguém desperto, acordado.

Assim, uma alteração da consciência poderia significar simplesmente que se está

dormindo, ou desmaiado, ou em coma, ou seja, “afastado, por outros acontecimentos, da

atenção a seus modos de ser e suas ações” (ABBAGNANO, 2000: 185).

No discurso corriqueiro, a idéia de consciência é associada a uma figura de

linguagem69 do tipo “pare e pense!”, como se o movimento impedisse a percepção das

próprias ações. Esta leitura do fenômeno é muito comum no trabalho do ator no Brasil,

especialmente para a maioria das discussões sobre o trabalho do ator nas linguagens de

bases aristotélicas e, na maioria quase absoluta das situações em que se deparam os

professores em sala de aula. No entanto, quando se trata da Antropologia Teatral e 69 Para estas metáforas no discurso sobre as ações físicas e o trabalho do ator, ver “As metáforas do corpomídia em cena: repensando as ações físicas no trabalho do ator”, doutorado de Sandra Meyer Nunes, na PUC/SP.

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processos de criação dos personagens a partir de procedimentos de provocação do

inconsciente em linguagens performáticas, como definidas por Cohen no segundo

capítulo de seu livro (2004), esta noção parece se tornar sequiosa de outros parâmetros

conceituais.

Na filosofia, o termo é um espinheiro e cada linha filosófica delimitou-o a partir

de suas próprias ontologias. Segundo Abbagnano, a primeira discussão de consciência

na filosofia está pautada por noções de interior e exterior. O “interior”, mesmo na

acepção contemporânea da consciência, quase sempre esteve vinculado à noção de

espiritualidade, e o “exterior”, vinculado à natureza do mundo e suas implicações

histórico-sociais. Contemporaneamente, a noção de consciência pressupõe uma direção

intencional de ação, de modo que alguém sensciente...

“pode conhecer-se de modo imediato e privilegiado e por isso julgar-se de forma segura e infalível. Trata-se, portanto, de uma noção em que o aspecto moral – a possibilidade de auto julgar-se – tem conexões estreitas com o aspecto teórico, a possibilidade de conhecer-se de modo direto e infalível.[...] A determinação histórica do conceito de consciência portanto é correlativa à de esfera de interioridade, como campo específico no qual seja possível realizar indagações ou buscas que digam respeito à realidade última do homem e, com muita freqüência, ao que nela revela, ou seja Deus mesmo ou um princípio divino” (ABBAGNANO, 2000: 185).

Assim, o uso de consciência, nesse sentido, vai além da qualidade de estar

cônscio de seus estados, conteúdos psíquicos do tipo “penso X”, ou “sinto Y”, mas

indica também a capacidade de dirigir-se a essa realidade. Um “retorno a si mesmo” em

uma indagação do íntimo, do particular. A vinculação entre interior e uma impressão de

certeza das coisas do mundo natural permitiu historicamente, segundo Abbagnano, que

o Cristianismo e o neoplatonismo construíssem “pari passu a noção da relação

puramente privada do homem consigo mesmo”, onde ele pode se desligar das coisas,

dos outros, do mundo, dos objetos externos e mergulhar em si mesmo, na atitude do

sábio, “testemunhando de si para si e criando uma indagação puramente interior, na qual

possa conhecer-se com absoluta verdade e certeza” (2000: 185).

Segundo o autor, na Grécia Antiga, a filosofia clássica não reconhecia a

“realidade privilegiada da interioridade espiritual”, e a noção que mais se aproxima de

um movimento privado, “da alma consigo mesma”, está em Platão em sua “definição de

opinião (ou pensamento geral) como ‘diálogo da alma consigo mesma” (Teet., 189 e

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Sof., 263 e apud ABBAGNANO, 2000: 186). Essa acepção vincula-se, em Platão à

forma de anunciação, ao diálogo, a linguagem definindo o pensamento.

“Portanto, o fato originário e privilegiado é a linguagem, não a interioridade da alma [...] o que constitui aquilo que chamamos de consciência (no sentido de conhecimento dos nossos estados) nada mais é que lembrança, opinião e raciocínio, isto é, o conjunto das faculdades cognitivas em geral” (2000: 186).

O problema que se instaurou historicamente a partir de Platão consiste no

reforço sistemático às diferenças entre corpo e mente, sendo a mente identificada pela

alma e responsável pelo juízo, pelos processos racionais, diferente, portanto, de uma

instância sujeita às sensações.

Na Grécia Antiga, o “conheça-te a ti mesmo”, (BRANDÃO, 1985: 11-15) é uma

menção à noção de consciência, que se encontra como fundamento da cultura ocidental,

pois parece que, para Platão e Aristóteles, a noção de consciência é a “consciência dos

próprios estados” (e das próprias ações deles derivados) (ABBAGNANO, 2000: 185).

De acordo com Abbagnano, em Aristóteles não se “encontra nenhuma noção de

interioridade espiritual”, de modo que a consciência também está relacionada à

experiência sensível, ligada aos órgãos do sentido, “sentir que se vê pertence ao sentido

da visão, assim como sentir que se ouve, ao sentido da audição”. De outra monta, para o

autor, “o pensamento do pensamento”, o discurso que se constrói, o saber que se é

consciente, é a vida de Deus, e “nada tem a ver com uma interioridade da consciência”,

já que, para ele, a consciência humana pode ter como objeto até mesmo as coisas piores,

e em Deus, somente o que existe de excelente, ou seja, o próprio pensamento (Met., XII,

9, 1074 b 30 e ss apud ABBAGNANO, 2000: 186).

Para as filosofias ocidentais, que partem de uma divisão entre interioridade

privilegiada do homem (na qual se entrecorta a noção de espiritualidade e de sapiência),

e o mundo das coisas externas (no qual repousa a mutabilidade e imperfeição ordinária

da natureza), a noção de consciência está associada à ação de movimento de auto-

auscultação interior. Esta noção aplica-se aos conteúdos da própria consciência, aos

pensamentos, fruições e etc, que, em geral, são os objetos dela. Nesse sentido, os

objetos do mundo representam pesos diferentes em cada corrente filosófica, delimitando

e demarcando os objetos da consciência no processo de interiorização e de aproximação

de noções como o Belo, o Bem e etc. Esses conceitos, como também se observa em toda

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a filosofia, são sempre objeto de sua discussão como instâncias “privilegiadas” de

recortes da realidade do espírito, da alma e também da consciência, como em Plotino,

por exemplo, que propõe uma estrutura para a consciência que se irradia para a

filosofia:

“Nele, aparece claramente a diferença e, às vezes, a oposição entre o estar cônscio, como certa qualidade dos conteúdos psíquicos, que Plotino chama de co-sensação [...] ou conseqüência [...], e ‘o retorno para a interioridade’ ou a ‘reflexão sobre si mesmo’, que constituem a consciência propriamente dita (Enn., V, 3, 1; IV, 7, 10 apud ABBAGNANO, 2000: 186-187).

Para Plotino, a diferença entre os dois é que um é a percepção do que se faz, e o

outro, é acesso à realidade interior do homem. Pode-se andar, e, no entanto, não estar

consciente de que se anda. Recolher-se em si mesmo é a consciência como atitude ou

condição do sábio que “prescinde do exterior e só olha para o interior” diferente,

portanto, dos estóicos, em que o recolhimento em si relaciona-se aos objetos externos

como objetos da vontade. Para Plotino, existe um “Belo inteligível, atrás do qual está o

Bem, isto é Deus”, e esse olhar para dentro de si, consiste nessa busca. É preciso

retornar a si mesmo e tornar-se aquilo que se quer olhar, ou “jamais um olho verá o sol

sem tornar-se semelhante ao sol, nem uma alma verá o Belo sem ser Bela” (Ibid., I, 6, 9

apud ABBAGNANO, 2000: 187). Consciência e condição de sábio identificam-se, pois

o sábio...

“extrai de si mesmo o que revela aos outros e olha para si mesmo, pois não somente tende a unificar-se e a isolar-se das coisas exernas, como está voltado para si mesmo e encontra em si todas as coisas” (Ibid., III, 8, 6 apud ABBAGNANO, 2000: 178).

Uma atitude de auto-auscultação interior presente nas culturas pagãs como

privilégio dos sábios. Para Santo Agostinho, que traduz a noção de consciência de

Plotino para os termos cristãos, a transcendência é a medida da espiritualidade e da

noção de consciência:

“O homem espiritual de que falava S. Paulo (I Cor., II, 16) é o verdadeiro protagonista de sua filosofia, cujo tema fundamental foi expresso pelas célebres palavras: ‘Não saias de ti, retorna para ti mesmo, no interior do homem habita a verdade e, se achares mutável a tua natureza, transcende a ti mesmo” (De Vera re., 39 apud ABBAGNANO, 2000: 187).

Esta noção de consciência se estendeu pela Idade Média, encontrou em S.Tomás

uma maneira de relacionar consciência e ciência (padrões objetivos para se estabelecer

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sentidos) e, embora essa noção ainda fosse defendia no início da idade moderna, por

Telésio e Campella, foi com René Descartes que a consciência foi formulada de modo a

permanecer durante muitos séculos na filosofia ocidental. Para o autor, diz Abbagnano,

a doutrina de Descartes pode ser organizada do seguinte modo, em relação à

consciência:

• Primeiro: consciência é toda a vida espiritual do homem e não um caráter isolado, uma

ação específica da alma ou um grupo de eventos particulares. Consciência nesse sentido

é toda a experiência humana subjetiva, “desde de sentir, raciocinar e querer”;

• Segundo: dessa forma, consciência e eu ocupam a “mesma esfera como sujeito e

substância pensante”;

• Terceiro: assim, torna-se auto-evidência existencial do eu, ou, o eu para a consciência

significa a evidência de sua própria existência.

• Quarto: ou seja, o modelo para qualquer outra evidência, ou conhecimento válido, é a

auto-evidência existencial do eu, como dizer, a consciência.

• Quinto: por fim, “a auto evidência do eu torna problemática qualquer outra evidência,

ainda que, por fim, consiga fundá-la”.

Esses pontos principais fundaram a filosofia ocidental moderna. Sua noção de

consciência está interligada à noção de substância e de corpo, que contemporaneamente

tende a ser resolvida pela aceitação da consciência como uma emergência do biológico,

como será visto mais adiante70. Segundo Ribeiro Jr (2003), a fenomenologia, criada na

França por Edmund Husserl (1859-1938), traz um avanço em direção a um

entendimento outro em torno desse problema, pois parte da idéia de retorno-às-coisas-

mesmas, e propõe que os fenômenos (reais e imaginários) “devem ser observados e

descritos com o objetivo de se aprender a essência de determinada espécie de eventos”.

A maioria dos trabalhos e estudos feitos para o ator que tratam da noção de transe ou

estados alterados de consciência tende a tê-la como princípio teórico filosófico, mesmo

70 A noção de substância, proposta por Descartes em sua dualidade de propriedades, representa problema enfrentado de perto pelas filosofias contemporâneas, principalmente a partir das investigações da consciência via imageamento cerebral de que se falou no início desse capítulo. Não se tratará de forma profunda as implicações disto, já que a filosofia não é a área desta pesquisa. No entanto, é imperioso notar que este conceito é fundamental para a discussão sobre consciência, pois ele motiva interpretações dualistas, significando que o espírito possui diferentes propriedades em relação à matéria cerebral. Em tais leituras, a aceitação da dualidade de substância significa, principalmente para o senso comum, a aceitação da consciência como prova e manifestação da existência do espírito, não só como colocado pela filosofia, na medida de uma instância particular e privilegiada de relacionamento do homem consigo mesmo, mas, sobretudo, da existência de uma alma eterna, superior ao corpo, que existe na terra com os objetivos de evoluir, aprender, redimir-se e etc, ou seja, fundamenta e prova uma visão religiosa da consciência. Aqui não se faz inquérito sobre ela.

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que indiretamente. Analisando superficialmente, a Fenomenologia vê a consciência

como intencionalidade, e o...

“dar-se conta é o elemento próprio da consciência como tal, chamando por Husserl de noesis. É a atividade da consciência. Refere-se a cada ato da consciência. É o aspecto subjetivo da experiência vivida, constituído por todos os atos de compreensão que visam aprender o objeto, como perceber, o lembrar, o imaginar” (RIBEIRO Jr, 2003: 42-43).

Esse procedimento de compreensão é animado pela intencionalidade, pois a

compreensão de um comportamento significa, por sua vez, compreender a intenção que

o anima. Significa o “pólo não-metódico, dialético, oposto à explicação”, que

desenvolve, posteriormente, o discurso analítico sobre o compreendido. Compreensão e

explicação se dão na experiência. Noema é outro conceito importante para a

compreensão de consciência na Fenomenologia, e é “a descrição das diversas maneiras

como o objeto se mostra quando intencionado. É o aspecto objetivo da experiência

vivida, isto é, o objeto considerado pela reflexão em seus diversos modos de ser, dados

pela experiência”, embora seja diferente do objeto da percepção em si, que é a coisa.

Por exemplo: “o objeto da percepção é a árvore, mas o noema desta percepção é o

complexo de predicados, dos modos de ser, dados pela experiência. Assim, árvore

verde, árvore queimada, árvore seca etc” (RIBEIRO Jr, 2003: 45). Objetos se dão à

consciência acompanhados por qualidades que lhe impregnam de uma “modalidade

característica”. Há uma relação indissociável entre sujeito e objeto, assim como entre

Noesis e Noema. Como nos coloca Ribeiro Jr, para a Fenomenologia, a consciência,

“é um recipiente que não tem interior nem exterior. Pode ser comparada, também a um raio de luz que ilumina o que não está nela, isto é, o objeto. O Objeto não é, pois, o conteúdo da consciência. A consciência não os contém nem os produz, mas se coloca frente aos objetos. Seu caráter é ter intencionalidade, ou seja, a particularidade fundamental da consciência de ser consciência de alguma coisa” (RIBEIRO Jr, 2003: 47).

O objetivismo crítico propõe ainda um passo além, afirmando que o mundo se

dá à consciência no caráter de mundo representado. A representação pode ser tomada

como objeto da própria consciência. É preciso que se tenha, primeiro, a aceitação de que

o mundo existe independente da consciência que o representará depois. O avanço

consiste exatamente, em oferecer o mesmo suporte objetivo do que são consciência e

realidade, interior e exterior, definindo-os mutuamente interdependentes, conectados a

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partir das mesmas leis de funcionamento. Assim, consciência pode ser entendida como

um sistema, do mesmo modo que a realidade.

“A realidade é formada por sistemas de coisas mutáveis no tempo em taxas de mudanças variáveis, e essas mudanças produzem perturbações nos ambientes que envolvem essas coisas/sistemas, que acarretam processos. Essas coisas, quando nosso intelecto consegue operar sobre elas, em algum nível, são chamados objetos. Esses objetos podem ser os que se encontram em nossa cabeça (objetos lógicos, matemáticos, sentimentos, emoções, e etc.) ou podem ser objetos que existem em lá fora, independente de nós...” (VIEIRA, 2007: 21).

Estes objetos se dão à consciência via percepção, que, ao reconhecer, criar e

recriar o mundo, realiza uma série de “traduções” das estruturas sistêmicas da realidade.

São representações do mundo e de suas complexidades, interfaces corpo/realidade, quer

dizer, são ponto de contato entre sistemas71, e “dependem assim, do que o ambiente

fornece e do estágio de complexidade em que se encontra o sistema cognitivo”

(VIEIRA, 2007: 22). Essas representações precisam ser complexas o suficiente para

ajudarem o organismo a resolver os problemas impostos pelos ambientes em que se

encontram, pois vimos que a tendência dos sistemas é permanecer. Ou seja, é preciso

que exista uma adequação entre complexidade da representação e complexidade das

“mudanças” e “perturbações nos ambientes que envolvem essas coisas/sistemas”.

Estas representações compõem o que o biosemioticista Jackob von Uexkül

(1864 – 1944) denominou de Umwelt, traduzido, às vezes, “como o ‘mundo subjetivo’

de uma espécie viva”, segundo Jorge Albuquerque, que não concorda com tal

abordagem, pois o mundo subjetivo requer outros processos de complexidade e o

“conceito de Uexkül implica uma ponte objetiva com a realidade” (VIEIRA, 2007: 25).

O Umwelt depende das relações fisiológicas entre as estruturas orgânicas que, em cada

espécie, desenvolvem relações próprias entre corpo e meio e suas histórias de co-

desenvolvimento.

“Assim, peixes têm uma forma de tato muito elaborada, graças a órgãos sensíveis a pequenas variações de pressão na água, dispostos nas laterais de seus corpos, que permitem que façam movimentos de profunda coerência quando em cardume72; ou ainda cobras vêem a radiação infra-vermelha que nossos olhos não percebem; morcegos

71 Como a imagem de um “tocar entre duas faces”, que aparece na leitura de interface em todo o trabalho de Yara Rondon Guasque Araújo (Educ, 2005), tratada aqui para definir tecnologia e imaginário, via Flusser, no primeiro capítulo. 72 O que os auxilia a desestabilizar o estado perceptivo de seus predadores.

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sobrevivem basicamente emitindo e captando sinais de ultra-som, como radares naturais... A Natureza encontra-se farta desses exemplos de interação com seu ambiente complexo” (VIEIRA, 2007: 24).

O Umwelt pode ser visto como um processo de filtragem e representação, uma

‘bolha’ específica onde se dão as conexões entre organismos e meios. O objetivismo

crítico acredita que mente é este processo de representação, de interfaces, e que algumas

delas podem gerar consciência de si mesmas, em função do desenvolvimento evolutivo

de sub-sistemas complexos. No caso do homem, por exemplo, a estrutura cortical no

cérebro, capaz de representar as representações, como sistemas culturais e psicossociais.

São representações complexas, relativas às perturbações e movimentações nos níveis de

descrição dos ambientes cultural, científico, religioso, e etc73. Assim, o homem é dotado

da capacidade de refinar e ampliar seu Umwelt, construindo signagens cada vez mais

complexas a partir das representações mais básicas da percepção. A tradução mais

apropriada, embora aproximada, para o conceito de Umwelt, de acordo com Vieira, é “o

mundo à volta”, o “mundo entorno” ou ainda “mundo particular” (2007: 24).

Esse processo de ampliação e refinamento do Umwelt depende do conhecimento

científico, capaz de descrever com maior precisão a realidade, e do conhecimento

artístico, capaz de imaginar possibilidades para a realidade.74 Não se sabe explicar

inteiramente como se dão estes processos, como dito no início deste terceiro capítulo.

Mas há bons indícios, sugeridos pelas teorias que aqui se inscrevem, que o homem pode

ter chegado em um tal nível de complexidade, que passou a agir sobre a realidade a

partir de representações que vão além do permitido pelo Umwelt biológico.

“Tendo em vista que, nos últimos milhares e mesmo milhões de anos, a evolução orgânica de nosso cérebro parece ter estabilizado na emergência de nosso neocórtex e que, a partir daí, a solução encontrada para o prosseguimento da complexidade tem sido extra-somatizar produtos cerebrais (o surgimento do mundo dos signos ou noosfera, o surgimento da cultura, as linguagens articuladas e todas as formas de comunicação e semiose – a chamada ação do signo -, a emergência de instrumentos, depois da tecnologia, a o advento atual dos computadores, tudo isso aponta para a extra-somatização, em nosso ambiente, de uma representação neocortical), somos levados a especular sobre a possibilidade de uma emergência de uma forma de Umwelt cognitivo e cultural, que envolve o biológico e que, para nossa

73 Uma primeira maneira de reler fisiologicamente os processos de intersubjetivação de Flusser, através dos technobuilders, discutidos no primeiro capítulo. 74 Bem lá no fundo, talvez existam poucas diferenças para enquadrar conhecimentos dessa forma, o que justifica a entrada das ciências nas artes e das artes nas ciências, exigindo metodologias particulares para objetos específicos e discutindo novas epistemologias. Por hora, é suficiente esta descrição.

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evolução, significa uma possibilidade de elaborar a realidade e com ela interagir” (VIEIRA, 2007: 29).

Começa-se a esclarecer, portanto como se concebe, sob o ponto de vista desta

pesquisa, a idéia de consciência para o trabalho do ator, já que este trabalha

inevitavelmente com representações e apresentações de signagens e narrativas, estados

de environments, e, como visto no segundo capítulo, uma dilatação da idéia de ação a

partir de sua estreita emergência no corpo, ou seja, no plano biológico. Segundo Jorge,

em Charles Sanders Pierce (1839–1914) há uma continuidade entre o domínio das leis

da física e as leis que regem o “mundo mental”. Jorge testemunha que em Pierce,

“sua discussão em Teoria do Conhecimento assume que se considerarmos as leis da Física como fundamentais e as demais como derivadas, isso é Realismo Objetivista; se considerarmos as leis da psicologia como fundamentais e as demais derivadas, inclusive as da Física, isso é Subjetivismo75; ele então pergunta (Ibri, 1992: 55): e se não houver diferença? Se existir um contínuo? Nesse caso, tudo vem do mesmo substratum, tal que podemos notar a presença do real no mental [...] mas também a presença do mental no real (VIEIRA, 2007: 31).

A proposta de Pierce é que a evolução do homem a partir da natureza implica a

herança de sua complexidade e de suas características básicas76. “Ou, seja, é o Universo

que está em nós, com suas qualidades e comportamentos”, segundo Vieira. Isso justifica

o motivo pelo qual um corpo humano pode contar com sua complexidade, adquirida ao

longo dos milhões de anos de evolução, para estar ciente de seus estados e da própria

ciência de si mesmo, ou seja, descrever e imaginar a complexidade do entorno e de si

mesmo, já que esta compreende sua própria estrutura.

3.3.1 Dennett e seu modelo

Daniel Dennett, em seu livro Brainstorms: ensaios filosóficos sobre a mente e a

psicologia (Unesp, 2006), faz uma extensa discussão sobre as teorias da consciência e

da mente. Aqui são trazidos seus aspectos gerais de modo a colaborar com uma

abordagem específica para o ator. Segundo o próprio autor, distinguindo suas idéias das

demais “teoria de identidade de tipos”77, procurava responder a duas questões:

75 Do qual já havia se contraposto Husserl com sua Fenomenologia. 76 “Cosmomorfismo”, em comparação ao termo “Antropomorfismo”, que é a implicação de qualidade e características humanas ao universo. 77 Teoria filosófica pertencente à linha conhecida como “fisicalismo”, que pretende entender a consciência a partir das leis do mundo físico, superando a dualidade de substância.

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• A primeira: “O que são eventos mentais? Que era respondida com: todo evento mental é

(idêntico a) um evento físico no cérebro”;

• A segunda: “O que duas criaturas têm em comum quando ambas acreditam que a neve é

branca (ambas sentem uma pontada de dor, imaginam um elefante, desejam um

biscoito)? Era respondida com: em cada caso no qual as criaturas têm algo mental em

comum, isso se dá em virtude de terem algo físico em comum – por exemplo, o cérebro

de ambas estar no mesmo estado físico ou ambas apresentarem a mesma característica

física”.

Assim “a teoria da identidade dos tipos cumpria duas obrigações: uma,

metafísica, e outra, científica”. Resultava em respostas contra o dualismo, na

“insistência em que não precisamos de uma categoria de coisas não-físicas para explicar

o mentalismo78”, e à ânsia de entender como compartilhar aspectos da realidade, fatos

comuns, “as coisas que são chamadas pelo mesmo nome”. Dennett afirma que a

consciência deve ser vista sob o prisma intencional e funcional do ponto de vista da

ocorrência (funcionalismo de ocorrência), na perspectiva de que os eventos mentais

devem ser entendidos como ocorrências no cérebro (superando o dualismo) e que o

compartilhar de informações só pode ocorrer quando respeitada a lógica de relação

expressa em:

“(x acredita que a neve é branca, se e somente se, pode-se fazer a predição de que x tem a crença

de que a neve é branca)” (DENNETT, 2006: 20).

Ou, como ele mesmo diz:

“Um cavalo é qualquer animal ao qual o termo ‘cavalo’ se aplica veridicamente” (Ibdem)

Dennett parte do modelo clássico de intencionalidade na psicologia, vindo de

Franz Brentano79 (1838–1917), para ampliar a discussão e superar a exigência de

redução desses eventos ao discurso sobre Máquinas de Turing80, apenas como uma

78 Em nota de rodapé, acrescenta a editora, que esta é uma tradução de mentality, “o caráter mental de alguma coisa” e que também se refere à um tipo de doutrina de filosofia da mente. 79 Filósofo alemão cuja extensa obra se dirige aos estudos dos processos psíquicos e discorre sobre como fenômenos mentais são identificados por suas intencionalidades diferentemente dos fenômenos físicos, já que os processos mentais dirigem-se sempre a um objeto. 80 Máquinas de Turing são sistemas operacionais básicos que foram usados como as primeiras metáforas computacionais para o funcionamento da mente. Nesse aumento de complexidades relativo, para os sistemas operacionais, surpreendentemente Dennett legitima, assim, o mentalismo, como sistema intencional.

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linguagem mais fundamental e geral, mas legitimando-o confere regras de atribuições e

exibição de seus poderes preditivos.

“todos os eventos mentais são, afinal, apenas eventos físicos, e os aspectos comuns entre os eventos mentais (ou entre pessoas que compartilham atributos mentais) são explicados por meio de uma descrição e sistema preditivo que é neutro em relação ao fisicalismo, e por essa razão inteiramente compatível com o fisicalismo. Sabemos que um objeto meramente físico pode ser um sistema intencional, mesmo se não pudermos demonstrar que nem todo sistema intencional é realizável em princípio, nem que todo elemento intuitivamente mentalista no mundo pode ser explicado adequadamente como um aspecto de um sistema intencional fisicamente realizável” (DENNETT, 2006: 22).

Dennett diz que a postura intencional emerge quando se supõe que outras

características estruturais do sistema são verificadas tendo seus funcionamentos normais

– postura física e de projeto, ou seja, todos os componentes necessários para tal sistema

estão organizados de maneira a possibilitar que as funções para as quais foram

projetados sejam cumpridas, e que não haja nenhum defeito físico em seu projeto, seu

desenho. O autor acredita que a única exigência para que se cumpra a postura

intencional é a necessidade e que os sistemas compartilhem entre si “categorias de

racionalidade, percepção – entrada de informação por meio de alguma modalidade de

‘sentido’ [...] e ação” (DENNETT, 2006: 40). De qualquer forma, o autor acredita que

um sistema puramente físico pode ser tão complexo, tão organizado, que o interator

humano pode lidar com ele como se tivesse uma intencionalidade própria81.

O autor constrói “um ‘eu’ completo com pedaços subpessoais”, e apresenta um

diagrama82 do funcionamento de seis áreas funcionais da consciência, que acredita ser a

base para qualquer teoria sobre ela (pág. 217 - 218). Eis a apresentação resumida da sua

proposta:

Uma área denominada “PR”83 “recebe o input para realizar atos de fala, ou

intenções semânticas, e executa essas ordens”. Esta área é composta de uma “estrutura

81 O exemplo que usa é o dos computadores que jogam xadrez, e diz que a postura intencional, ao analisá-los, exige primeiro a satisfação das posturas de projeto e física (DENNETT, 2006: 34 – 40). 82 Dennett afirma que este diagrama já é uma restrição de processos outros e mais complexos do fenômeno, que tocam inclusive em estruturas que ainda contentam discordâncias entre os cientistas cognitivistas, e restringe-se a apresentar seus dados baseando-se em noções bem aceitas por grande parte deles, e o faz somente na medida em que serve às idéias discutidas ao longo do livro, que, obviamente escapam da análise aqui proposta. 83 Recebe esse nome em seu diagrama em função do paralelismo direto com o esquema de distribuição e de acesso de informações públicas de Ron Nessen (1934), Secretário de Imprensa da Casa Branca na

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profunda”, uma “estrutura superficial” que se divide em “fonologia” e “grafologia”,

sendo que cada uma ainda se divide em suas “sub-rotinas motoras”, para o ato da fala e

da escritura. Todas essas áreas exercem profundas interações entre si. A área “PR” toma

todas as direções, a partir de um componente executivo superior ou de Controle “C”,

que lhe dá acesso à memória “M”, Memória de Curto Termo, ou buffer de memória84.

Suponha que alguma informação externa incline o “C” a uma introspecção e este

“decida” fazê-la. Os procedimentos seriam os seguintes:

• “C” dirige-se à sub-rotina de introspecção na qual envia uma questão a “M”; quando uma resposta retorna, se retornar alguma, “C” avalia a resposta e pode:

a – censurar

b – interpretá-la à luz de outra informação

c – fazer inferências da resposta, ou

d – transferir a resposta como a obteve direto a “PR”

• O resultado de quaisquer alternativa, (a – d) pode ser um comando de fala para “PR”.

A “M” pode não ser suficiente para resolver as questões, por tanto fica a

pergunta, quais informações chegam à ela e como isso se dá?

Em um nível muito baixo do sistema nervoso, dados são armazenados em uma

espécie de Memória Icônica85, “armazenamento bem pequeno de estímulos virtualmente

não-interpretados”, que “processamento em paralelos86” levam a diversos níveis

superiores e produz informação básica e específica a locais como bordas, cantos, formas

e etc. Desse ponto, dá-se início a um “processo seqüencial” de “geração e confirmação

de hipótese87” a partir de informações do mundo. O “Controle deve calcular sabiamente,

alocando os recursos cognitivos disponíveis à modalidade sensória ou tópica da maior

NBC na administração Ford entre 1974 e 1977. Aqui contém somente a estrutura por ele trazida, na medida em que sua constituição parece ser adequada à análise da alteração de consciência para o trabalho do ator, e se por ventura, outras acepções teórico/práticas forem dadas a essa área por outras pesquisas, talvez pouco interfiram neste recorte específico. 84 Esta função, ou funções muito semelhantes, podem aparecer com nomes próximos como Memória de Curto Prazo ou Memória de Acesso, em Oliver Sacks, (Alucinações Musicais, 2007), e em Steven Pinker, (Como a Mente Funciona 2002), como veremos depois. Para Dennett, “é uma localização hipotética de memória, definida funcionalmente por suas relações de acesso a PR” (N.R. pág. 222). 85 Segundo Dennett, de acordo com a denominação de Ulric Neisser (1967 e 1976), que agora pretende bani-la de “uma posição de importância das teorias da percepção”. Esta atitude está em desacordo com o que pensa Daniel Dennett. 86 Redes neuronais conectadas e agindo em paralelo, como malhas elétricas – conexionismo. 87 É possível alguma relação entre este processo e a “Antevisão” de Antônio Damásio? Esta pesquisa acredita que sim, embora sejam necessários milhões de outros dados para tal afirmação.

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importância atual. Essa alocação de recursos cognitivos é a essência da atenção” [...]

(DENNETT, 2006: 221).

O autor coloca que essa noção importante de atenção não é relacionada muito

diretamente com a consciência. A hipótese dessa pesquisa é que para o trabalho do ator,

isso significa uma descrição possível do funcionamento perceptivo de seu corpo em

relação às ações autônomas que ele realiza durante todo o processo de criação, e que,

sem dúvida, a idéia de presentificação do ator depende dela. Dennett definiu o que

chama de “atenção inconsciente”, mas não afirma que a “atenção consciente” deva

funcionar assim nem que seja incongruente.

O corpo, neste nível de consciência e atenção, de acordo com Dennett, pode ser

comparado a um sonâmbulo que, em certo sentido, dorme sem ter consciência de onde

está, e, mesmo assim, anda sem cair, pois seu corpo mantém um fluxo constante de

informações em um processo de resolver os problemas que a gravidade impõe ao

equilíbrio do tronco, da cabeça, da coluna e etc. Este é um primeiro nível da idéia de

experiência, de presentificação e é o nível em que se encontram as informações mais

básicas da cena enquanto tempo real. O encontro sugerido por Grotowski começa aqui.

Aqui o corpo constrói tecnobuilders de modo a manter-se vivo, espontaneamente, e não

dirigido pela consciência discursiva interferindo na autonomia do corpo em perceber

seu próprio estado. Os resultados dessas análises perceptivas do corpo em relação a si

mesmo, em nível ainda baixo de descrição (“pré-atentivo”), vão para a “M”,

enriquecendo-a. Outro inoculador de informações na “M” é o próprio Controle, “através

de um registro parcial de seus objetivos, planos, intenções e crenças”. Ainda outra

unidade é colocada em seu modelo de consciência – a unidade dos sonhos, que para o

corpo podem ser considerados como experiências genuínas e deve ser analisada também

sob estes processos.

Em uma experiência descrita pelo autor pessoas expostas a dois canais de áudio

ao mesmo tempo, com informações diferentes sendo produzidas simultaneamente em

ambos, deveriam prestar atenção em um único canal, e só conseguiam relatos parciais

das informações relativas ao canal oposto. Se o canal em que não prestava atenção lhes

desse uma informação falada, por exemplo, só conseguiam dizer que ouviram uma voz,

e não o significado do que proferiram. Sua hipótese é a seguinte:

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“uma decisão de controle é feita para alocar virtualmente todos os recursos cognitivos à análise do canal ao qual se prestou atenção, com apenas um processamento de baixo nível (‘pré-atentivo’) feito sobre o input provindo do canal ao qual não se prestou atenção. O processamento desse canal, no nível da análise semântica, por exemplo, segundo essa hipótese, simplesmente não é feito” (DENNETT, 2006: 223).

Ainda sobre o mesmo experimento, sentenças ambíguas eram ditas para um

grupo de pessoas em um canal em que não prestavam atenção, enquanto em outro canal

recebia inputs neutros ou irrelevantes. O resultado é uma influência do canal sem

atenção – input ambíguo, sobre o canal com atenção – input neutro/irrelevante. Segundo

Dennett, isso só pode ser explicado por um processamento completo ao nível semântico

em baixo nível do sistema nervoso, ou pré-consciente, mesmo “que os indivíduos não

tivessem nenhuma consciência disso – isto é, não pudessem relatar isso.” O que sugere

que “embora o processamento de nível mais alto do canal ao qual não se prestou

atenção continue, apenas os resultados de nível mais baixo são enviados a M”

(DENNETT, 2006: 224). Ou seja, os processamentos de baixo nível continuam mesmo

que não se dê a eles atenção consciente.

A idéia de um entendimento de consciência e sua noção de alteração para o ator

deve necessariamente levar em consideração aspectos anômalos da percepção

consciente como, por exemplo, os episódios proposicionais não planejados, pela própria

natureza de seu trabalho em obras performáticas, em artemídia ou em obras que

pretendem descrever a natureza sob uma óptica de fenômenos que transbordam os

limites aristotélicos de tempo e espaço, como dito no capítulo dois. Dennett entende por

“episódios proposicionais não planejados” (pensar que p), seguindo os termos de Ryle

(London: Hutcheson, 1949), que denomina pensamentos ou impressões cuja fonte, não

raro, é impossível de se inferir a uma ocorrência externa, tais como a certeza de ser

observado por um alguém que não está ali ou uma premonição de algo horrível na

iminência de acontecer. Esses episódios podem ou não se tornar ocorrências de fala,

gestos ou ações em nível aristotélico, ou no “discurso interior”, mas geralmente se

esmaecem para a consciência imediata e parecem retornar à escuridão de onde partiram.

O autor88 acredita que,

88 Dennett acredita que o próprio Ryle discordaria dele e trás a noção de autoconsciência para o autor, onde ela se apresenta como evidência na propensão de se fazer proferimentos não planejados [...] “auto-consciência é notar que nos damos conta de nossos próprios proferimentos não-planejados, inclusive nossos reconhecimentos explícitos, quer eles sejam ditos em voz alta, quer sejam sussurrados ou ditos em

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“longe de serem ocorrências raras ou anômalas, os episódios proposicionais, esses pensar que p, são nossa avenida normal e consciente para o autoconhecimento; que eles esgotam nossa consciência imediata e que as variedades estranhas, tais como o pressentimento de que alguém está olhando por sobre nossos ombros, são impressionantes apenas por causa de nossa inabilidade de segui-los como episódios proposicionais correlatos sobre o mesmo tópico” (DENNETT, 2006: 230).

Dennett parece fazer uma espécie de legitimação da proposição não-planejada,

evitando a necessidade de algum reducionismo, coerente com sua teoria tratada

anteriormente. Dennett, assim, explica que simplesmente fazemos, e que este é o estado

normal de funcionamento das estruturas: operar, em sua maioria, no escuro. Essa

operação no escuro, para o trabalho do ator, significa que a noção de continuidade

ininterrupta da “vida interior” do personagem, acessada pelo consciente discursivo, pela

consciência imediata, não é possível, sem a noção do corpo perceptivo e a noção de

presença em tempo real. Dennett dá a possibilidade de se argumentar isso avaliando

resultados de experimentos com a rotação mental de objetos tridimensionais89, e conclui

que a certeza de que se possa rodá-los, mesmo que em uma velocidade muito baixa, é

uma ilusão, causada por uma série de “discretos” episódios proposicionais, pequenas

frações perceptivas estáticas. Segundo Dennett, os juízos intermediários definem a

rotação:

“De fato, essas séries discretas de juízos têm uma surpreendente semelhança com as séries discretas de pequenas luzes que piscam para criar a ilusão de movimento percebido [...] O que estou sugerindo é que, assim como uma série discretas de piscadas está para aquele juízo não-verídico, do mesmo modo nossas série de juízos no caso da rotação da imagem está para o juízo de que algo está realmente rodando em nossas mentes (ou em nossos cérebros, ou em alguma outra parte)” (DENNETT, 2006: 233-234).

Ou seja, a série discreta de proposições percebida como movimento rotacional,

no caso das imagens tridimensionais, é o produto do módulo de Resolução de

Problemas, que em seu diagrama, tem acesso direto ao campo de Análise Perceptiva.

Esse campo se constitui de uma memória icônica90 diretamente ligada aos órgãos

nossas cabeças. Nós escutamos às escondidas nossos próprios proferimentos feitos em nossos próprios monólogos” (RYLE, 1949: 149 apud DENNETT, 2006: 230). 89 Experimentos desse tipo também são discutidos em Como a Mente Funciona, de Steven Pinker, que será tratado mais adiante. 90 A memória icônica é a memória de experiências engendrada pelo corpo por meio de estímulos sensoriais primários. Recebe esse nome em paralelo a primeiridade da Semiótica Pierceana, instância mais básica dos signos, ligada à percepção de sua ação pelas qualidades físicas. Atualmente, diversos trabalhos têm apontado essa relação nos processos de aprendizagem e de criação artística. Para esta pesquisa, esta noção importa na medida em que permite expandir o limiar semiológico dos processos

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sensoriais, alimentando a memória “M”, e de detectores de aspecto que, em

processamento paralelo, alimentam o processamento serial de hipóteses e testes falado

anteriormente.

[...] “embora o processo de solução de problema seja realizado, ela produz resultados, tanto finais quanto intermediários, que estão disponíveis em M para serem acessados por PR. Esses resultados, no momento em que chegam a PR, são de natureza proposicional não-controvertida; eles são intenções de dizer que p. Eles são um produto da percepção de resolver problemas [...] Esses produtos são talvez apenas produtos indiretos de processos perceptivos; o produto direto, ou imediato [...] é a própria experiência, e a questão é se a experiência é proposicional ou imagística, ou algo mais. Minha resposta, por mais contra-intuitiva que ela possa parecer à primeira vista, é que, se aquela questão possui qualquer introspecção admissível que seja, a introspecção não pode respondê-la. Não temos acesso direto pessoal à estrutura de eventos dotados de conteúdo dentro de nós” (DENNETT, 2006: 234).

Para a pesquisa do ator, isso significa que a atenção interior que sugere

Stanislávski, não pode ser norteada por uma busca das imagens, mas por uma

emergência delas. Se a rotação do objeto mental é uma ilusão perceptiva, construída

pela emergência na consciência imediata de vários resultados ocorridos em níveis mais

baixos do organismo, e se não temos acessos a esses processos e às informações de

conteúdos presentes neles, não adianta buscar uma atenção interna, um olho interno, que

aja como uma busca ativa de memória. O que interliga esses muitos resultados

emergentes são resultados intermediários provenientes dos mesmos processos

perceptivos que ocorrem nesses e em outros níveis de processamento91. Ou seja, a

“verdade cênica”, o preenchimento das ações, um olhar que transborda desejo de algo,

pensamento, seja lá como se chamará, é o resultado do encadeamento de processos

perceptivos ligados à memória icônica, de impressões, de informações provenientes dos

órgãos sensoriais, do tato, do paladar, da visão e etc, e não da memória discursiva, mas

das recategorizações anteriores das conexões entre corpo e meio. É um conhecimento

que emerge da ação de perceber o mundo pelo acoplamento sensório-motor. A enação,

segundo Varela: “a cognição não é representação, mas ação corporificada, e o mundo

que conhecemos não é pré-dado, mas emerge através de nossa história de acoplamento

estrutural” (VARELA, s/d: 233 apud MEYER, 1999: 56).

comunicacionais, entendendo o corpo como campo de signagens além da linguagem articulada da fala ou da escrita. Essa memória situa-se no conhecido cérebro reptílico, que será tratado com mais detalhes quando se abordar os processos fisiológicos da percepção. 91 Damásio acredita que a atenção e a consciência autobiográfica são constituídas por um escalonar de diversos processos.

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É exatamente essa a noção de ação física que Grotowski deu ao trabalho de

Stanislávski ao eliminar o “intelecto consciente do ator”, ao eliminar a “mente

discursiva” em sua técnica de transe. E como se pode concluir aqui, não tem nada a ver

com linhas aristotélicas de dramaturgias lineares ou não-lineares, mas liga-se com a

percepção do mundo, do entorno, com a experiência. A questão se funda na experiência

em tempo real. Ação física de contaminar-se do mundo, das informações em fluxo no

ambiente. Esta é a noção de alteração de consciência que existe em Grotowski e que

será abordada sob o ponto de vista da criação de redes neuronais como sustentáculo e

fisicalidade desses processos sub-corticais, ou seja, abaixo da linha de atenção

consciente do auto-relato, da consciência superior. É uma alteração que, vista pela

intencionalidade de Dennett, busca suprimir uma intenção discursiva que entende como

reais somente os objetos que se passam no nível de controle da atenção consciente. Por

este entendimento de alteração, esses objetos podem se tornar proposições planejadas,

que, na maioria das vezes no trabalho do ator, são ignorados como resultados normais

do corpo em nível orgânico.

3.4 Corpo-máquina: a leitura dualista dos processamentos de informação

O corposintético é essa intencionalidade insistente em ignorá-los e perseguir

uma integração perfeita entre a percepção de uma ocorrência externa de um evento e a

percepção da emergência de seu correlato como memória orgânica, enraizada no corpo

durante os ensaios. O corposintético ignora como realidade a emergência de fatores de

peso, elasticidade muscular, sensações de dores, enjôos, visão embaçada, falta de ar e

qualquer outra reação orgânica à instabilidade, inerente à experiência corpo/mundo. O

corposintético procura resultado tentando acessar diretamente o processamento que o

faz emergir, ao invés de trabalhar sob a perspectiva da engenharia reversa da percepção.

O problema é que falar em processamento de informações quando se trata de

corpo costuma gerar equívocos e uma metáfora costumou descrever esse entendimento

durante quase todo o século XX: o corpo-máquina. Baseada na idéia de que, como

Dawkins diz, um fantasma na máquina comanda seus movimentos e ações, essa idéia se

instaurou de vez com o dualismo de substância de Descartes. Com um pouco de

paciência, será apresentado como a ciência passou a tratar desse problema. Por hora, é

preciso que se diga apenas que o funcionamento neuronal é capaz de fazer emergir o

que identificamos por consciência. Coletar água quando se vive no ambiente aquático,

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exige do organismo diferentes processos e procedimentos do que se ele vivesse no

deserto. Propagar os genes na terra exige outros cuidados do que propagá-los no ar... De

modo que se torna imprescindível entender que os corpos não possuem softwares de

processamento de informações que podem ser substituídos sem modificar-lhes por

completo as estruturas em que operam.

O corpo processa informações, mas de um modo diferente do computador. A

metáfora computacional (do corpo sendo uma máquina) produz conseqüências quando

usada para o entendimento dos processamentos cognitivos. Existem dois problemas

principais:

1) o corpo não processa informação no mesmo sentido de uma máquina, ou seja,

o corpo não é um recipiente-processador, mas sim um sistema que se relaciona com a

informação da seguinte maneira: quando entra em contato com a informação, o corpo se

modifica. A informação que chega reorganiza as informações que já estavam na coleção

que se chama corpo. Ou seja, a informação não chega em um recipiente e lá fica a

espera de ser ou não ser transformada em expressão. Toda informação com a qual o

corpo entra em contato vira corpo. De um modo mais complexo do que as máquinas são

capazes de fazer, os corpos aceitam diferentes tipos de informações, (bioquímica,

elétrica, física e etc) e as trabalham em diversos níveis, inclusive transformando a

natureza dessas informações durante esse processo. Além de ter autonomias relativas, os

organismos humanos são cientes e intencionais em relação a essas autonomias.

2) o conceito de corpo-máquina está baseado em uma idéia de máquina que se

assemelha mais a um aspirador de pó do que a um Sim City92. O aspirador de pó

funciona bem com o entendimento de linearidade para os processamentos

informacionais, como falamos no início do segundo capítulo (grande previsibilidade,

input de sinal A processamento output de sinal A – Se a entrada de sinal é duplicada,

92 Sim City, é um jogo de computador baseado em princípios de Inteligência Artificial, que respondem aos comandos do jogador de modo a respeitar intencionalidades, objetivos a longo prazo, processos aleatórios e randômicos, acúmulos de funcionalidades, emergência de características em função do aumento de complexidade que o jogo vai ganhado. Como enredo o jogador passa pela experiência de administrar uma cidade, construindo redes de água, estradas, hospitais, escolas, estádios de esportes, áreas para abrigar indústrias, comércio, residências e etc. O jogo leva em consideração o desenvolvimento e planejamento de cidades reais. Foi desenvolvido pelo programador Will Right durante o final dos anos de 1980 e lançado pela Máxis, E.U.A. em 1998. Desde de então vem recebendo versões atualizadas, sendo liberado como software livre com o nome de Micropolis sob a licença GPL 3. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/SimCity> Acesso em: março de 2008.

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(sinais A e B), a saída de sinais

também ocorre duplicada (A-B).

Diferenciando-se deles, a entrada

de sinais em sistemas complexos

respeita a não-linearidade, aceita

interferências randômicas e os

processamentos de sinais

duplicados promovem saídas

sobrepostas (entrada A e entrada B

– saída AB sobrepostos). Estes

sistemas também mesclam suas

memórias durante o

processamento, de modo que a

entrada A pode resultar em uma

saída C ou Z. Há uma redução de

tempo de processamento em

sistemas complexos aos lidarem com as

informações, não porque sejam

simplesmente mais rápidos – como

a diferença entre um Fusca e uma Ferrari

–, mas porque sistemas complexos operam em redes simultâneas, agregando

procedimentos de aleatoriedades, sincronicidades, simulações e unificação de

informações de acordo com suas estruturas. Para continuar a tratar a mente como

processadora de informações, será preciso concordar com Pinker, e reafirmar o cuidado

com relação às imagens da linguagem em que a máquina aparece como metáfora do

corpo. Pois o modo pelo qual esse processamento se dá permite a concepção de uma

mente processadora sem reduzir a complexidade do corpo a uma imagem de máquina

operacionalizada por um software tipo Windows.

Aliás, as pesquisas mais avançadas sobre próteses biônicas para a substituição de

membros e funções do corpo humano estão sendo feitas sob este viés. Como é o caso da

pesquisa do engenheiro brasileiro Paulo Marcos de Aguiar (USP, 2006). Reconhecida

no mundo todo como um dos projetos mais avançados na área, leva em consideração a

percepção como simulação através de módulos perceptivos para o toque, força,

Ilustração 2 - Área de controle da prótese "Diagrama do controlador fisiológico"

(AGUIAR, 2006: 70)

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movimento e outros atributos de uma mão biológica, além de ver a tecnologia (a mão

biônica no seu caso) como processos de interação entre corpo e meio.

A Ilustração 2 mostra a área de controle metodológico do projeto, no qual três

subsistemas são trabalhados de modo integrado representados por áreas pontilhadas.

Emerge uma qualidade complexa, derivada da integração dos três subsistemas, podendo

ser identificada pela área pontilhada mais externa. Atuadores: massas vibratórias e

eletrodos, CCS: circuito de controle sensorial e Sensores: sensores de força e

temperatura – representam partes do subsistema de controle cuja saída envia

informações à entrada de outro subsistema, composto pelos “receptores naturais do coto

e do braço do usuário de prótese, do sistema nervoso (controlador) e dos músculos

atuadores” (Ibdem, 2006: 71). Da mesma forma, a saída de informações desse sistema é

a entrada de outro sistema de controle de atuação, “onde os sinais elétricos do músculo

serão captados pelo sensor de sinais mioelétricos (SME), seguindo para o circuito de

controle do SME e para o atuador, a prótese” (Ibdem).

O desenvolvimento interno do sistema de controle de informações da prótese

respeita o entendimento modular da mente, a especialização de regiões no trato com as

informações, como mostrado a seguir na Ilustração 3:

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Ilustração 3 - "Projeto eletrônico do Sistema de Controle Sensorial" (AGUIAR, 2006: 87)

De modo geral, cada “placa” eletrônica corresponde à um “modulo mental”,

sendo portanto a interface com o sistema nervoso do usuário de prótese de membro

superior. O autor afirma que este é um dos desafios de seu projeto.

Quando se pensa em uma mente computacional, ou, como prefere Steven

Pinker93, em uma mente modular, percebe-se que não é a natureza humana que está

sendo reduzida à natureza maquínica, mas que máquina e homem encontram

semelhanças por suas relações processuais com o meio. Enquanto engenheiros e físicos

procuram uma engenharia reversa para entender o funcionamento do corpo e da

percepção, psicólogos, neurocientistas e biólogos refletem seus estudos no

93 E também esta pesquisa...

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espelhamento reverso da máquina como processo de interação. Por sua vez, artistas

inspiram-se e baseiam seus olhares nestes estudos imaginando confluências oníricas

impossibilitadas pela lógica da previsão.

3.4.1 Consciência: a mente modular

A idéia de uma mente modular trabalhada pela psicologia evolucionista tem em

Steven Pinker (1954), lingüista do Departamento de Psicologia da Universidade de

Harvard, um dos seus maiores contribuintes atuais. A psicologia evolucionista, assim

batizada em anos recentes pelo antropólogo John Toby (sd.) e pela psicóloga Leda

Cosmides (1957)94, deriva de transformações e contribuições conceituais de duas áreas

das ciências.

“Uma é a revolução cognitiva das décadas de 1950 e 1960, que explica a mecânica do pensamento e emoção em termos de informação e computação. A outra é a evolução na biologia evolucionária das décadas de 1960 e 1970, que explica o complexo design95 adaptativo dos seres vivos em termos da seleção de replicadores. As duas idéias formam uma combinação poderosa. A ciência cognitiva ajuda-nos a entender como uma mente é possível e que tipo de mente possuímos. A biologia evolucionária ajuda-nos a entender por que possuímos esse tipo de mente específico” (PINKER, 1998: 34).

Para o autor e seus colegas, a mente humana está evolutivamente adaptada com

sistemas de análise da natureza96, que codifica as leis da física e do mundo em

percepções, imagens e capacidades de aprendizado. Pinker acredita que as habilidades

cognitivas estão alicerçadas em “módulos mentais” de processamento de informação

que desmontam a natureza em pequenas estruturas de orientação, e as vê em seus

diversos níveis de complexidade, assim como as qualidades que emergem das relações

entre os próprios módulos computacionais.

“Os módulos mentais não tendem a ser visíveis a olho nu como territórios circunscritos na superfície do cérebro do mesmo modo que distinguimos a barrigueira ou a traseira de um boi na vitrine do açougue. Um módulo mental provavelmente se parece mais com um bicho atropelado na estrada, espalhando-se desordenadamente pelas protuberâncias e fendas do cérebro. Ou pode ser fragmentado em

94 Ambos membros do Centro de Psicologia Evolucionista, da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara. Leda Cosmides é diretora do Departamento de Psicologia e John Toby, diretor do Departamento de Antropologia. 95 Design aqui parece seguir muito próximo do conceito de projeto, ou desenho estrutural de Daniel Dannet discutido anteriormente. 96 E isso se parece com à idéia da Teoria Geral dos Sistemas, apontada no início dos capítulos 2 e 3.

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regiões que se interligam por meio de fibras, as quais fazem a região atuar como uma unidade” (PINKER, 1998: 41).

Definidos não apenas por suas áreas físicas, mas pelas “coisas especiais que

fazem com a informação de que dispõem”, os módulos podem ser vistos como órgãos,

visão de Noam Chomsky, preferida por Pinker97 por oferecer uma idéia mais maleável

do funcionamento do corpo, uma visão menos circunscrita na idéia de área, já que

muitos órgãos não possuem uma fronteira clara que os define como tais.

“O corpo compõe-se de sistemas divididos em órgãos, construídos de tecidos feitos de células. Alguns tipos de tecido, como o epitélio, são usados, com modificações, em muitos órgãos. Alguns órgãos, como o sangue e a pele, interagem com o resto do corpo através de uma superfície comum convoluta, amplamente difundida, e não podem ser circunscritos por uma linha pontilhada. Às vezes não está claro onde um órgão termina e outro começa, ou que tamanho de um pedaço do corpo desejamos chamar de órgão” (PINKER, 1998: 42).

Baseada em um continuum entre mente e corpo, e sem negar a psicanálise

freudiana como uma contribuição de profundo impacto no conhecimento humano

(RAMACHANDRAN et al. in LLINÁS & CHURCHULAND, 1998: 29), grande parte

das pesquisas cognitivas mostra que a organização de nossas habilidades respeita a

estruturação especializada baseada em um design evolutivo determinado pelo genoma

humano98, possibilitando que a humanidade compartilhe de uma “psicologia universal

assombrosamente minuciosa” (PINKER, 1998: 43). Para um estudo de possíveis

estados alterados de consciência, essa leitura dos fenômenos mentais oferece um

caminho teórico através do qual podemos, cuidadosamente, fazer inferências sobre o

trabalho do ator e as habilidades que amparam um corpo em cena, ancoradas em leis de

funcionamento do mundo, da linguagem e em conhecimentos laboratoriais sobre as

habilidades que os organismos precisam para viver na natureza.

Outra contribuição da leitura computacional da mente é a de oferecer um

estreitamento entre corpo e tecnologia, necessário para contextualizar o corpo em

ambientes midiáticos em obras de Artemídia – como uma “interface transparente”, na 97 Esta pesquisa adota essa nomenclatura para se referir à psicologia evolucionista, mas acredita que um termo ainda melhor seria “estados de órgãos”, especialmente quando pensada do ponto de vista de quem executa uma ação: o corpo em cena. É evidente que isso também implica uma ampliação do senso comum sobre “órgão”, e a isso Pinker é favorável. 98 A idéia levanta questões óbvias sobre o conhecimento inato que o autor discute ao longo de todo o livro, inclusive em relação a crenças e preconceitos que aparecem em culturas diferentes e que se desenvolveram separadas geograficamente. Por outro lado, também levanta questões relativas ao conhecimento adquirido, que diferem em culturas distintas embora geograficamente próximas.

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sugestão de Araújo (2005: 176 – 177). Quando cientistas se debruçam em suas bancadas

em torno de um robô que pretendem animar com princípios de inteligência, a chamada

Inteligência Artificial, eles precisam que esse pequeno notável possa distinguir objetos,

reconhecer níveis e planos espaciais, direções, enfim, precisam:

“ser dotados de com uma compreensão das categorias básicas do mundo: objetos, que não podem estar em dois lugares ao mesmo tempo, animais, que vivem por um único intervalo de tempo, pessoas, que não gostam de sentir dor etc. Isso vale igualmente para a mente humana” (PINKER, 1998: 335).

Tais fatores são necessários para a emergência de consciência tanto quanto o seu

reconhecimento em humanos. Os módulos ou órgãos mentais especializaram-se em

resolver problemas de engenharia como localização espacial, tempo de trajetória de um

objeto lançado, definição de superfícies, cores, texturas, localização temporal, além de

problemas mais complexos como relações entre experiências e sensações de prazer e

dor. Essas capacidades computacionais permitem aos organismos humanos categorizar

experiências, definir a relevância das informações e decidir ações no mundo, prevendo

resultados em diversos níveis de conexão com os ambientes – o autor defende essa idéia

e apresenta argumentos em todo o livro (PINKER, 1998, op. cit.).

Experiências laboratoriais com bebês entre três e quatro meses de idade

demonstraram que eles estão perfeitamente adaptados para perceber funcionamentos

básicos da natureza como, por exemplo, esperar que superfícies com texturas e cores

diferentes pertençam a objetos diferentes, ou que partes de objetos que apresentam a

mesma forma pertençam a um único objeto, satisfazendo o princípio de “que os objetos

são coesos” em função da integridade da matéria e da sua composição, ou ainda, “de

que objetos não podem passar através de outros como um fantasma”, ou que não podem

desaparecer de um lugar e materializar-se em outro” – a tendência de bolas em

movimento é a de moverem-se em trajetórias retilíneas; tendo desaparecido por um lado

de uma superfície, tendem a reaparecer do outro lado (PINKER, 1998: 333 – 341, grifo

nosso). No entanto, como explica o autor, essas noções do funcionamento do mundo

não clareiam outros princípios da física, como a inércia, por exemplo. “A Primeira Lei

de Newton diz que um objeto em movimento continua movendo-se em linha reta a

menos que uma força atue sobre ele” (1998, op. cit.), e, no entanto, muitas pessoas

acreditam que a trajetória de uma bola lançada em velocidade por um tubo em espiral,

será espiral reproduzindo o formato do tubo, ou porque que o objeto adquiriu um

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momento angular99. Ou que quando atiramos uma bola para cima com as mãos, ela terá

sua trajetória interrompida quando as forças “momento” e a “gravidade” se igualarem

em valor, instante a partir do qual a bola inicia sua trajetória de queda em direção à mão

novamente. Na verdade, a gravidade é a única força que atua sobre a bola, em tempo

todo de seu percurso. Segundo Pinker, estas confusões se devem ao fato de que nossas

linguagens estão permeadas pela teoria do “ímpeto”.

“Quando dizemos a bola continuou rolando porque o vento a empurrou, estamos interpretando que a bola tem uma tendência inerente ao repouso. Quando dizemos a saliência segurou o lápis em cima da mesa, estamos atribuindo ao lápis a tendência ao movimento, sem mencionar a zombaria à terceira lei de Newton (ação igual reação) quando atribuímos uma força maior à saliência. [...] a maioria dos cientistas cognitivos, acredita que as concepções governam a linguagem, e não vice e versa. [...] Não surpreende descobrir que a mente não é newtoniana. No mundo real, as leis de Newton estão mascaradas pelo atrito do ar, do solo e das próprias moléculas dos objetos. Com o atrito desacelerando tudo o que se move e mantendo os objetos imóveis no lugar, é natural pensar que os objetos possuem uma tendência inerente ao repouso” (PINKER, 1998: 340, grifos do autor).

Repouso ou movimento, animado e inerte, são categorias que os humanos

possuem e utilizam para definir fronteiras entre objetos e outras categorias que podem

ser construídas sobre essas primeiras. Em se tratando do ator, uma primeira

categorização parece interessar para se pensar sobre estados de alteração de consciência,

é a relação entre coisas vivas e não vivas. Na física intuitiva das pessoas, a percepção

entende que alguns objetos têm a capacidade de subverter as leis de funcionamento da

natureza por conterem internamente alguma fonte renovável de energia, força, ímpeto

ou vigor que usam para impelir a si mesmos, em geral a serviço de um objetivo

(PINKER, 1998: 342), esses objetos são classificados como animados, e os cientistas

intuitivos precisam conceber-lhes em uma categoria especial: causadores não

99 A velocidade angular é uma quantidade da física usada para o estudo de rotação de um corpo e é definida pela expressão L = r x p. Onde L é um vetor perpendicular a r e a p.[...] “A quantidade de movimento de um corpo pode ser nula (o que significa que ele não está em movimento de translação) e ainda assim ter momento angular total diferente de zero. O momento angular total está para o movimento de rotação assim como a quantidade de movimento total está para o movimento de translação” (“e-física: ensino de física on-line” CEPA – Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada da USP). Daí conclui-se que a confusão das pessoas consiste em confundir na imaginação movimentos de rotação com translação e forças centrípeta com velocidade angular. Disponível em <http://efisica.if.usp.br/mecanica/universitario/ momento_angular/> Acesso: dezembro de 2007.

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causados100. Aos três meses de idade bebês se espantam com rostos que se paralisam

repentinamente, ficando “subitamente imóveis”, mas não exibem a mesma reação

quando um objeto qualquer pára de se mover de repente. E mais adiante, por volta dos

seis/sete meses, bebês “conseguem distinguir o modo como suas mãos atuam sobre os

objetos do modo como os objetos atuam sobre objetos” (op. cit.). Muito cedo, crianças

conseguem diferenciar “coisas que se movem por conta própria de coisas que não se

movem por conta própria, como bonecas, estátuas e estatuetas muito semelhantes a

animais de verdade” (Ibdem). Esta arquitetura perceptiva do sistema nervoso é

orquestrada pela genética cumprindo uma programação rigorosa e regular, de modo que

cada fase do desenvolvimento embrionário possa preparar o organismo para as

necessidades cognitivas que ele enfrentará no seu contato com o mundo. A formação do

sistema nervoso nos mamíferos, incluindo o homem, respeita a ativação de moléculas

que são gradativamente ativadas por mecanismos de:

[...] “indução (ativação de uma célula pela célula vizinha), proliferação (multiplicação celular), diferenciação (formação de células especializadas) e migração celular, além de formação de prolongamento e estabelecimento de sinapses (ligação entre células). As vias de sinalização envolvidas nesse processo são reguladas de tal forma que as células proliferam-se e diferenciam-se no tempo e na localização corretos para gerar uma estrutura organizada com grande capacidade de adaptação e plasticidade” (CERNACH, 2006: 08).

Repousada, portanto, na estrutura genética, a capacidade de identificar um

agente “autopropulsor” guia o organismo humano pelo mundo ao fornecer uma razão

perceptiva para classificar as coisas da natureza em outros três tipos básicos e diferentes

de conhecer o mundo: plantas, animais e minerais, que são categorias dadas pela

natureza. Artefatos, que muitas vezes parecem conter uma fonte renovável ou um

objetivo, podem ser colocados em uma categoria “fuzzy”, de fronteira embaçada,

estilhaçando algumas certezas dessa física e dessa biologia popular e essencialista

(PINKER, 1998: 344).

O “essencialismo” e suas implicações para a ciência são um problema filosófico

e epistemológico que não cabe encerrar nas discussões desta pesquisa. No entanto é

importante lembrar que as obras de arte, de um modo geral, contam com um saber

inerente ao público a que se destinam, e ainda que de um modo indireto, a opção por um

100 Todos sabem, na ciência, que esse ímpeto é o conjunto de moléculas espiraladas que se estendem no tempo multiplicando-se a si mesmas através de estratégias extremamente complexas e diversificadas. Embora isso toque profundamente a questão da substância.

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reducionismo interteórico, partindo de dados sobre o funcionamento do corpo humano,

também se estende para a questão da recepção, já que a estruturação das habilidades

perceptivas que estão sendo construídas ao longo desse trabalho, trata de organismos

humanos como espécie. Somente nas seqüências de treinamento é que esta questão

passa a ser vislumbrada do ponto de vista do corpo como particularidade, e então se

pode afirmar que a alteração precisa ser vista primeiro como uma emergência

contextualizada. Indícios ainda não testados, no entanto, apontam a possibilidade de se

entender a alteração também para formas de recepção e questões de encenação, como

cenários, iluminação, formas de narrativas e etc, o que justificaria uma teoria dos

estados. Aqui, o trabalho do ator é visto como parte integrante de um complexo sistema

de fluxos informacionais. Ou seja, tanto o trabalho de treinamento e de criação, quanto a

audiência de um espetáculo, podem ser vistos sob o prisma das conexões sistêmicas.

Tendo a capacidade de categorizar e reconhecer objetos, em relação ao

“ímpeto”, é praticamente impossível não perceber de que os corpos são capazes de

reconhecer outras mentes. Como isso é possível, já que a mente se parece com um algo

dinâmico e invisível? Através de seus estados? Segundo o autor uma consciência

reconhece a outra aplicando uma proposição à outra consciência, colocando o

pensamento em evidência: “Isso é o que pensa fulano!” Segundo Pinker,

“Nossa mente explica o comportamento das outras pessoas segundo as crenças e desejos que elas têm, pois o comportamento das outras pessoas, de fato, é causado por suas crenças e desejos [...] Os estados mentais são invisíveis e não têm peso. Os filósofos os definem como ‘uma relação entre uma pessoa e uma proposição’. Essa relação é uma atitude como ‘acredita’, ‘deseja’, ‘espera’, ‘tenciona’. A proposição é o conteúdo da crença, algo vagamente semelhante ao significado de uma sentença” [...] (1998: 350).

E de fato, sob este aspecto de observação, talvez só é possível um humano

reconhecer o outro, através dos resultados dos processamentos mentais, enquanto eles

próprios, como estados. Não se pode colocar um pedaço da consciência dentro de um

pote, como se pode fazer com um pé. Consciência, na melhor das hipóteses é sempre

um processo que se dá somente enquanto há vida no corpo que o gera. Para ele, em

geral, o termo consciência é usado quase sempre para definir vagamente inteligência,

mas pode ter três maneiras de ser visto: como conhecimento de si, ou

autoconhecimento; consciência de acesso, uma dinâmica de transferências de

informações sobre si e sobre o mundo; e consciência como sensibilidade.

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O primeiro deles, autoconhecimento, significa que entre todos os objetos

possíveis para a consciência, (de coisas, pessoas, mundos, fatos e etc.) encontra-se a

própria consciência, ou seja, um ser inteligente pode ter informações sobre diversas

coisas, incluindo si próprio. Desse modo, este “si próprio” que necessita de um

contexto, é já um objeto na consciência, de modo que a consciência de si mesmo

implica na construção de um modelo de mundo interno que contenha um eu. Esse

mesmo “eu” que irá constituir o discurso sobre si e sobre o mundo, a mente discursiva

de Richard Thomas. “A consciência é tipicamente definida como ‘construir um modelo interno do mundo que contém o eu’, ‘refletindo-se sobre o próprio modo de se entender o indivíduo’ e outros tipos de contemplação do próprio umbigo que nada têm a ver com a consciência como ela é comumente entendida: estar vivo, desperto e alerta” (PINKER, 1998, 146).

O segundo tipo de consciência a que se refere Pinker é a consciência de acesso.

Esse primeiro aspecto da consciência, a consciência discursiva, pode relatar milhares de

informações sobre seus planos para a vida, sobre os sonhos que pretende realizar, onde

vai almoçar, as cores e formas da sala onde se encontra, os sons que escuta agora ou as

roupas que veste, as dores no estômago... Mas não é capaz de relatar milhões de outras

informações, como os cálculos de seu cérebro para estimar as distâncias entre dois

pontos do papel, ou os processos por ele desencadeados na retina e sua estruturação

enquanto representação no córtex visual ou ainda quais áreas do seu sistema nervoso

sente trabalhando exatamente enquanto lê este texto. Não é possível relatar o percurso

de uma informação entrante no organismo, durante todo o processo que gera conteúdos

na primeira consciência, é possível discorrer sobre suas conseqüências somente após

resultados de sua interferência aparecerem na área discursiva da consciência.

“Isso prova que a massa de informações processadas no sistema nervoso segue para dois reservatórios. Um deles, que inclui os produtos da visão e os conteúdos da memória de curto prazo, pode ser acessado pelos sistemas que fundamentam os relatos verbais, o pensamento racional e a tomada deliberada de decisões. O outro reservatório, que inclui as reações autônomas (no nível das entranhas), os cálculos internos por trás da visão, linguagem e movimento e os desejos ou lembranças reprimidos (se houver algum), não pode ser acessados por esses sistemas. [...] Às vezes as informações podem passar do primeiro para o segundo reservatório ou vice e versa. [...] Esse sentido de consciência também abrange a distinção de Freud entre mente consciente e mente inconsciente” (PINKER, 1998, 147).

Pinker define algumas características da consciência de acesso que demonstram,

em parte, seu funcionamento ao organizar informações, reconhecer padrões, estimular

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outros órgãos, ser estimulada pelos sentidos além de desencadear funções de decisão e

estocagem.

• Entrada e saída de informações no campo perceptivo: “cores e formas do mundo à nossa frente, os sons e odores que nos envolvem, as pressões e dores em nossa pele, ossos e músculos”.

• Entrada e saída alternadas de informações na memória de curto prazo e influência no

enfoque da atenção e nas ações deliberativas • [...] “sensações e pensamentos apresentam-se com uma qualidade emocional: agradável,

desagradável, interessante e repulsivo, exitante ou tranqüilizador”. • Executivo “Eu” realiza escolhas e aciona comportamentos. • “Cada uma dessas características descarta algumas informações no sistema nervoso

definindo as vias principais da consciência de acesso. E cada uma desempenha um papel definido na organização adaptativa do pensamento e percepção para atender à tomada de decisões e ação racionais” (PINKER, 1998, 151).

Quase não é preciso dizer mais sobre a influência desse aspecto da consciência

no trabalho do ator, se for tomado como parâmetro a metáfora do Corposintético e o

transe de Grotowski. Seria bom, no entanto que ficasse mais explícita a relação entre a

consciência de acesso e o campo da percepção do tempo presente, a experiência, ou

seja, como as informações em tempo real da cena desencadeiam habilidades cognitivas

de reconhecimento do mundo.

A primeira coisa a se pensar é em uma apropriação cognitiva de aspectos mais

simples em direção à complexificação cada vez maior da informação. Essa

complexificação não se dá por soma de pedaços, mas por conexões entre estruturas,

preenchimentos de requisitos processurais, adequação e transformação de projetos

correlatos entre o corpo e o mundo. Depois que se acende um refletor, por exemplo, e

um jarro é iluminado, a informação luminosa deste chega até os olhos e o

processamento visual se inicia nos bastonetes e cones na retina, atinge níveis

intermediários sendo representado por sombras, bordas, profundidades e superfícies até

que seja possível de ser reconhecido em seu projeto, sua função, seu contexto101.

Através da consciência de acesso, que busca informações “intermediárias”, pode o

discurso perceber, elaborar, e compreender as estruturas semânticas da linguagem

falada, por exemplo, por restrições de relações, por regras de conexões, entre o “som

101 E sua intencionalidade, segundo Dennett.

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bruto a representação de sílabas, palavras e frase, chegando ao entendimento do

conteúdo da mensagem” (PINKER, 1998, 151). “O que ‘vemos’ é um produto altamente processado: as superfícies de objetos, suas cores e texturas intrínsecas e suas profundidades, obliqüidades e inclinações. Na onda sonora que chega aos nossos ouvidos, sílabas e palavras são distorcidas e fundidas, mas não ‘ouvimos’ essa fita acústica sem emendas; ‘ouvimos’ um encadeamento de sons bem demarcados. Nossa percepção imediata também não recorre exclusivamente ao nível superior de representação. Os níveis superiores – os conteúdos do mundo, a substância da mensagem – tendem a permanecer na memória de longo prazo dias e anos após uma experiência, mas enquanto ela está ocorrendo nós percebemos as visões e os sons. Não só pensamos abstratamente ‘Rosto!’ quando vemos um rosto; as áreas sombreadas e os contornos estão disponíveis para nosso exame” [...] “Os níveis inferiores não são necessários, e os superiores não são suficientes. Os dados brutos e os passos computacionais por trás dessas constâncias estão isolados de nossa percepção, sem dúvida porque usam as leis eternas da óptica e não precisam de conselhos do restante da cognição nem têm insights para oferecer-lhe. [...] enquanto estamos compreendendo uma sentença, de nada interessa perscrutar até o nível das sibilações e zumbidos da onda sonora; eles têm de ser codificados em sílabas antes de ser comparados a qualquer coisa no dicionário mental. [...] Porém, como ocorre na visão, o resto da mente também não pode satisfazer-se apenas com o produto final – neste caso, a idéia principal de quem fala. A escolha das palavras e o tom de voz contêm informações que nos permitem ouvir nas entrelinhas” (PINKER, 1998, 152, 153).

O foco de atenção vai auxiliar o corpo a produzir um significado para uma

informação, cujo processamento em nível inconsciente não foi capaz de fazê-lo, de

modo que o evento interno não obteve uma correlação satisfatória com o evento no

mundo. “Ele serve como uma demonstração perfeita de que o processamento paralelo

inconsciente (no qual muitos inputs são processados ao mesmo tempo, cada qual com

seu microprocessador) tem suas limitações” (PINKER, 1998, 153). Em Alucinações

Musicais, 2007, (138-142) Oliver Sacks conta um caso clínico exemplificando a ação e

o poder da atenção na adequação entre evento/mundo e evento/perceptivo102. Um de

seus pacientes fora perdendo a percepção auditiva aos poucos e com isso a capacidade

de tocar piano ficou prejudicada. Exames revelaram que não havia nada de errado com

seu cérebro e que a área de processamento musical, o córtex auditivo, estava intacta.

Seu problema era uma perda de sintonia coclear103 e com o uso da atenção consciente,

102 A tentativa de novas maneiras de escrever e descrever esses fenômenos corresponde à necessidade de discutir fenômenos de borda que misturam conceitos como dentro e fora, alto e baixo... 103 “Costuma-se comparar a cóclea [...] com um instrumento de corda, diferencialmente sintonizado com a freqüência das notas”. Muito generalizadamente, a cóclea encontra-se no interior do ouvido realizando esta sintonização através de milhares de minúsculos pêlos dispostos em seu interior que vibram de acordo com as ondas sonoras, transformando as diferenças de pressão do ar – ondas sonoras – em vibrações elétricas – freqüências de ativação e inibição neuronal. Estas freqüências desencadeiam conexões

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conseguiu aos poucos, sintonizá-la novamente com as notas conhecidas por sua

memória em relação às notas que eram percebidas com déficit, mudando os

mapeamentos corticais, e logo, a percepção dos sons.

“O poder da atenção – identificar um ínfimo mas significativo som em nosso ambiente, de atentar para uma única voz vindo de alguém que está falando baixo em meio à barulheira de um restaurante lotado – é impressionante e parece depender dessa capacidade de modular a função coclear, bem como mecanismos puramente mentais” [...] “Um ano depois, porém, ele informou que suas distorções estavam ‘piores, mais erráticas [...] algumas notas tem grande alteração de tom, às vezes até uma terça ou menor ou mais’. Ele disse que, se tocasse uma nota repetidamente ela podia mudar de tom, mas se ela começasse a ficar fora do tom ele às vezes conseguia ‘afiná-la’, ao menos por algum tempo. Usou o termo ‘áudio ilusão’ para as duas notas, a ‘verdadeira’ e a ‘fantasma’ ou distorcida, e contou como elas podiam entrelaçar-se e alternar-se como um padrão moiré ou como os dois aspectos de uma figura ambígua” (SACKS, 2007: 141).

O terceiro sentido é a consciência como sensibilidade: “experiência subjetiva,

percepção dos fenômenos, sentimentos brutos, primeira pessoa do presente do

indicativo, ‘como é’ ser ou fazer algo” (PINKER, 1998: 148). Pelo andar da carruagem,

já se pode perceber que a relação entre os vários sentidos de consciência é tão íntima,

que não se pode falar de uma sem tocar nas outras. Esta consciência é o nível de

funcionamento do corpo onde são organizadas as informações responsáveis pela

regulação de temperatura, batimento cardíacos, digestão alimentar, cálculos de

distâncias e etc, como dito anteriormente, e que Pinker descreve como o nível das

entranhas, reações, movimentos autônomos104 e cálculos internos do organismo.

Uma função autônoma é controlada praticamente por mecanismos que

independem da vontade consciente, pois são reguladas por áreas que se encontram no

tronco cerebral, no hipotálamo e nos músculos límbicos e não no córtex cerebral. A

pele, por exemplo, tem a capacidade de alterar o calibre de muitos vasos sanguíneos que

se entrecruzam em sua camada densa, e isso é crucial para o controle da temperatura

corporal. De maneira geral, a pele é considerada apenas por sua função no tato,

principalmente na concepção de exercícios para a estimulação da percepção do ator, no

entanto ela é mapeada, controlada, conectada diretamente com a estrutura do sistema paralelas de redes neuronais no cérebro, nas áreas de percepção sonora, o córtex auditivo, onde são interpretadas juntamente com outras informações de outros órgãos do sentido. A produção de sentidos é feita, evidentemente, por um processo muito mais complexo do que foi descrito aqui, requisitando inclusive outras áreas do sistema nervoso central, como por exemplo, a estrutura tálamo cortical. Mas assim, é possível ter ao menos uma idéia de seu funcionamento geral. 104 Quando se altera não somente a pressão exercida sobre ela, mas também a temperatura do corpo é possível causar um tipo de alteração nessa regulação homeodinâmica, logo, em um tipo de consciência.

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nervoso central responsável pelas vísceras. Antônio Damásio a considera como a maior

víscera do corpo humano, referindo-se à parte densa dela que contém essa propriedade

reguladora (DAMÁSIO, 2000: 198).

“Quando aprendemos a mudar as marchas do carro, de início cada movimento tem de ser pensado, mas com a prática a habilidade torna-se automática. Com intensa concentração e bioretroalimentação [biofeedback], podemos nos concentrar em uma sensação oculta como nossa pulsação” (PINKER, 1998, 147).

E não é exatamente nesse tempo presente das entranhas que se encontram a

chave das ações físicas? Quando as partituras de ações são treinadas de modo repetitivo,

incansavelmente por horas a fio, elas se tornam aquilo que se costuma chamar de

“orgânicas”. Orgânicas no sentido da consciência da entranha, que não tem a habilidade

de se descrever, de se representar de modo abstrato, somente de ser entranha. E como é

possível recobrá-las? Agindo pelas entranhas e não pela mente consciente, discursiva e

etc, pois, como foi mostrado, o foco de atenção não pode ter acesso a elas a não ser

como um discurso sobre.

Todos esses processamentos exigem cálculos sobre gastos, recursos como

energia, tempo e espaço de circulação/organização de informação, que são executados a

cada instante de vida de um organismo, possibilitando que ele execute funções e crie

memória. E, no caso dos organismos humanos, uma outra habilidade emerge como

resultado dessa complexa engenharia orgânica: a mente consciente – a capacidade de

elaborar sua própria história enquanto função cognitiva. Apenas organismos complexos

puderam categorizar experiências e objetos de maneiras cada vez mais complexas,

criando diferentes tipos de memórias como veremos mais adiante.

“Válida ou não, a teoria da mente modular dá margem tanto a motivos inatos que conduzem a atos perversos como a motivos inatos que podem evitá-los. Não que seja uma descoberta exclusiva da psicologia evolucionista: todas as grandes religiões observam que a vida mental é muitas vezes uma luta entre desejo e consciência” (PINKER, 1998, 62).105

105 E talvez esse seja o motivo pelo qual obras que consideram algum tipo de alteração de consciência para o ator, pautam suas propostas de encenação nas narrativas míticas e em procedimentos religiosos que, neste sentido, oferecem, de alguma forma, uma estrutura para se discutir aspectos da vida do homem que fazem parte da dramaturgia aristotélica. Sob este aspecto, corre-se o risco tanto de empobrecer os mitos e as religiões, quanto a força dramática da cena. O resultado, muitas vezes, é uma espécie de museologia da encenação, cujo termo é apenas uma brincadeira momentânea, mas o sintoma já foi sugerido por Grotowski sobre muitas obras ecumênicas. Só para estabelecer um paralelo, a museologia da encenação está para as religiões assim como a coisificação da cena está para a artemídia, assim como o corposintético para um corpo em estado alterado.

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3.5 Estabilidades e instabilidades no funcionamento da estrutura

corpo/mente/meio

3.5.1 Consciência emergindo das entranhas moleculares

O modelo de descrição geral do cérebro que ainda é bem aceito, variando as

importâncias dadas a seus subsistemas e às maneiras de como se integram, assim como

às habilidades que deles emergem agindo integradamente ou não, é o modelo triúnico

proposto por Paul MacLean durante a metade do século XX (apud VIEIRA, 2006: 67-

76). Sua proposta repousa na idéia de que o cérebro humano respeita uma estrutura

interconectada de três camadas relativas às fases de desenvolvimento da vida no

planeta, sendo a primeira camada análoga ao cérebro dos répteis (cérebro repitílico, ou

cérebro basal), a segunda camada relativa ao desenvolvimento dos mamíferos (cérebro

límbico) e a terceira relativa ao último estágio do desenvolvimento biológico humano

(cérebro neocórtex). Cada uma dessas partes pode agir independentemente ou de forma

integrada. O cérebro repitílico exerce controle gerando ativações e inibições de outros

sub-sistemas derivados para o controle da regulação interna do corpo, como funções

autônomas a exemplo da respiração e o ritmo cardíaco, a linguagem não-verbal,

condicionamentos e comportamentos repetitivos dos músculos. A vida mais íntima do

corpo depende dele e por isso está ativo durante todo o tempo. Para o cérebro dos

mamíferos: produção primeira de emoções, instintos, defesa, sensações de medo, prazer

e comportamento sexual. Seu funcionamento independe das decisões conscientes e está

ligado à sobrevivência do organismo em relação às experiências de dor e prazer. Ou

seja, é o campo básico da memória de emoções. Exerce grande influência sobre o

próximo tipo de cérebro devido as milhares de conexões nervosas, as vias entre eles,

auxiliando, e às vezes determinando, as sua funções. O próximo cérebro é o neocórtex,

ou dos novos mamíferos: composto pela região cortical e por alguns grupos

subcorticais. Ele é responsável pelo raciocínio lógico, a linguagem verbal, abstrações de

idéias complexas, decisões programadas, planejamento baseado em memória e

projeções de conjecturas. Segundo sua teoria, a diferença entre os humanos e os

primatas, se encontra na influência desta região sobre as outras, embora eles também

possuam um neocórtex relativamente pequeno. Pode ser dividido por hemisférios,

direito e esquerdo e constituem, nos humanos dois terços do total da massa encefálica.

Ambos hemisférios possuem funções prediletas, embora trabalhem em conjunto e,

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devido a plasticidade neural, podem em casos específicos, combiná-las e até mesmo

cambiá-las entre si106.

Embora funções específicas possam ser realizadas utilizando diversas áreas do

sistema nervoso central, este modelo geral permite uma idéia boa de sua arquitetura, e

aspectos da consciência que subjazem em suas respectivas vísceras serão vistos sob o

prisma das pesquisas do neurocientista Antônio Damásio, que muito tem contribuído

com pesquisas e divulgação desses novos dados sobre o funcionamento da mente e

sobre a emergência da consciência. Analisando as estruturas do sistema nervoso em

nível orgânico talvez fique mais claro o modo pelo qual o corpo produz esses

complexos processamentos de dados. Segundo Damásio, essa perspectiva já havia sido

apontada por Hipócrates há mais de dois mil anos. Esta posição também pode ser

encontrada em diversos outros filósofos da mente, a exemplo de Dennett, como vimos.

Mas é através de Espinosa que Damásio coincide a realidade teórica e a humana107. Para

Damásio, a consciência é um processo dinâmico estabelecido entre o meio e o

organismo de acordo com suas complexidades. O autor dá nomes distintos a processos

específicos da mente identificando diferentes tipos de consciências, que podem ser

conhecidas pelo cruzamento entre as funções que exercem no interior do corpo, as

estruturas neuronais das quais resultam e as habilidades que permitem o organismo

viver num meio específico108. Ele divide a consciência em tipos complexos e simples, a

dizer, Consciência Central e Consciência Ampliada:

• Consciência Central – “Possui apenas um nível de organização, é estável no decorrer da

vida do organismo, não é exclusivamente humano e não depende da memória

convencional, da memória operacional, do raciocínio e da linguagem” (DAMÁSIO,

2000: 34). Fornece ao organismo um sentido simples de si mesmo, ligado

absolutamente aos tempos e lugares presentes: o aqui e agora. O muito de passado que

ela consegue conceber é o instante imediatamente anterior ao agora. Esse sentido

imediato de si mesmo é chamado de self central: “entidade transitória, incessantemente

recriada para cada objeto com que o cérebro interage”.

106 Para esta pesquisa, quando um detalhe relativo às funções de cada hemisfério, ou mesmo de uma área específica for necessária para a explicação de um aspecto da consciência e de sua alteração para o trabalho do ator, a informação será requisitada. 107 Não será feita aqui, nenhuma menção a essa questão, pois se acredita que a relação entre Espinosa e Damásio constitui-se tema bastante abordado atualmente. 108 Os detalhes dessa rede intrincada de ativações e inibições, regulações, funções, estruturas, vias, sinalizações e etc, não serão examinados aqui. E sim, os principais elementos de suas formulações teóricas.

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• Consciência Ampliada – [...] “fenômeno biológico complexo, conta com vários níveis

de organização e evolui no decorrer da vida do organismo [...] depende da memória

convencional e da memória operacional” (Ibdem). Fornece ao corpo um sentido

ampliado de si mesmo, concebendo-se como um organismo complexo, um “Eu”, que

pode descrever-se, seus pensamentos, sua história, seus sonhos e planos para o futuro.

Esse sentido complexo de si está ligado à idéia de identidade que sobrevive ao tempo, e

Damásio a denomina de self autobiográfico. Depende por tanto de sua história, de uma

organização sistematizada de conhecimentos sobre si mesmo, invariáveis e constantes,

em certas medidas – onde nasceu e em que local, nome, quem o gerou e etc. Essas

informações são lembranças que a consciência central organizou em torno das

experiências e fazem parte do que o autor chama de memória autobiográfica. Significa

estar consciente de algo, ou consciente de que é consciente.

Os dois tipos de consciência, assim como os dois tipos de self, são conectados e

trabalham juntos na sobrevivência do organismo, trocando informações, revestindo os

fluxos informacionais com dados importantes relativos ao contexto, emoções, prazer,

sentimentos, de modo que o organismo humano possa contextualizar suas experiências e

tomar decisões, pois é capaz, por exemplo, de saber onde está, se já conhece esse lugar,

ou essa pessoa (mesmo que seja sua própria imagem no espelho), se gosta dele ou dela,

conhecer os motivos e descrevê-los em um contexto ainda mais amplo de especulações,

músicas, poesias, danças, teorias e etc. No entanto, antes que estas estruturas de

consciência e de self, possam agir, é preciso que outra estrutura esteja presente e

funcionando: o proto self.

• O proto-self, é o “precursor” do self central e self autobiográfico. Não se tem

consciência do proto self. É um estado de atividades de auto regulação do corpo,

transitório na medida em que mapeia em vários níveis do cérebro, durante cada

momento da vida do organismo, o estado de suas vísceras, dos órgãos. É simplesmente

ser algo. “O proto-self é um conjunto interligado e temporariamente coerente de

padrões neurais que representam o estado do organismo, a cada momento, em vários

níveis do cérebro” (DAMÁSIO, 2000: 225).

Esses estados atuam entre si, assim como as áreas da consciência através de

mapas neurais provocados por estímulos diversos sejam eles ativações na retina, por

exemplo, ou outros mapas desencadeados por percepções de mudanças nas vísceras ou

em áreas ativadas no próprio cérebro – mapas de segunda ordem, mapas dos estados não

modificados e dos estados modificados do proto-self juntamente com os mapas do

objeto. Esses padrões neurais, segundo Damásio, se tornam, direta ou indiretamente,

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imagens, e essas imagens constituem a linguagem interna do corpo. O autor as

denomina de imagens mentais, ou padrões mentais e as classifica de duas maneiras:

• Imagens da carne – imagens do interior do corpo baseadas “na representação da

estrutura e do estado das vísceras e do meio interior” – como a dor de estômago, por

exemplo, ou um mal estar;

• Imagens das sondas sensitivas especiais – ocorrem quando informações externas

modificam os órgãos sensitivos periféricos na conexão entre corpo e mundo. Por

exemplo, a retina é invadida por fótons que constituem um raio de luz e isto modifica os

padrões de atividade das células especializadas da retina e do fundo do globo ocular,

cones e bastonetes, que enviam essa mudança de padrão ao cérebro. No caso do tato, o

corpo e o objeto estabelecem uma conexão mecânica que ativa sensores de pressão,

terminações nervosas sob a pele... As imagens de cores, formas, texturas etc, são

resultados desse processo.

Em resumo, estas imagens são mapeamentos das modificações dos padrões de

funcionamento dos órgãos do corpo, no caso das imagens da carne, e das modificações

das atividades nas centenas de milhares de sensores especiais que existem o corpo, de

modo que a...

“gama de alterações corporais que pode ser mapeada no cérebro é muito vasta. Inclui alterações microscópicas que ocorrem em nível de fenômenos químicos e elétricos [...] e macroscópicas que podem ser apreciadas a olho nu” (DAMÁSIO, 2004: 206-207).

São mapeamentos do mundo e das conexões entre corpo/corpo/meio/idéias e etc.

Os mapeamentos que descrevem objetos complexos são também complexos, exigindo

uma conexão multidimensional com o meio, isto é, informações e alterações vindas de

diversos sensores de diversos órgãos do sentido que serão integralizados na estrutura

tálamocortical.109 Para o autor, esse mapeamento se inicia no proto-self, que não ocorre

em um único local, mas em muitos níveis simultâneos do organismo.

De acordo com os estudos, vários são os conceitos de memória que se pode ter,

assim como para a consciência. Mas para a relação entre Damásio e este estudo, que

trata do ator, basta apenas dizer que a idéia de memória que interessa para entender o

109 Alterações de processamento nessa região, estruturada na base do cérebro, seja por lesões ou por uso de LSD, por exemplo, causam a impressão de que as informações do ambiente são “feixes de lasers distintos”, desconexos, sem relações entre si, o que impede a formação de conteúdos unificados no reconhecimento do mundo. (Para mais informações ver: SACKS, 2007).

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transe de Grotowski significa “o conjunto de representações das numerosas dimensões

do estado corrente do organismo”, que foram organizadas pelo proto-self durante os

ensaios na forma de partituras de ação e que são recriadas no momento em que são

realizadas em cena, como o rememorar das experiências vivenciadas pelo proto-self. É

uma alteração de consciência, pois, o percurso dessas “re-experiências” do proto-self

caminham diretamente entre ele e a musculatura, o sistema esquelético, as cordas vocais

resultando em ações autônomas. A memória autobiográfica não é requisitada pelo self

autobiográfico. Ele participa da ação como quando se observa de mãos atadas um

bocejo profundo. O Corposintético tem vergonha de bocejar na frente dos outros e tenta

manter a discrição. Quando se repete indefinida e exaustivamente uma ação a tendência

é que ela se torne, como se diz no jargão teatral, orgânica, isso significa exatamente que

ela passa a ser comandada por regiões profundas do corpo, self central e proto-self, e

emerge na consciência autobiográfica como uma experiência cuja sensação é de

independência da vontade consciente, da mente discursiva. Esta sensação de descontrole

sobre o corpo que a consciência discursiva tem é de fato um sinal de alteração de

consciência no sentido de que no dia a dia, por mais que o corpo opere sob esse

comando, suas ações são praticamente invisíveis, pois a atenção consciente ocupa-se de

outros propósitos. Essa é a base para o entendimento do funcionamento cognitivo do

ator. As leituras iniciais e dualistas sobre o trabalho de Stanislávski acreditavam que a

simulação mental de um evento é capaz de provocar mudanças no corpo e o surgimento

de emoções reais. Isso tem comprovação científica, já que, segundo Oliver Sacks,

“Desde meados de 1990, estudos realizados por Robert Zatorre e seus colegas usando avançadas técnicas de neuroimagem demonstraram que, de fato, imaginar música pode ativar o córtex auditivo quase que com a mesma intensidade da ativação causada por ouvir música. Imaginar música também estimula o córtex motor, e inversamente, imaginar a ação de tocar música estimula o córtex auditivo” (SACKS, 2007: 42).

E isso vale para o aprendizado motor de uma ação de movimento, como um

salto, por exemplo, pois estudos sobre a circulação sanguínea em regiões do cérebro, de

acordo com Álvaro Pascual-Leone (1961), mostram que...

[...] “a simulação de movimentos ativa algumas estruturas neurais centrais requeridas para a execução dos movimentos reais. Ao fazê-lo, a prática mental por si só parece ser suficiente para promover a modulação de circuitos neurais envolvidos nas primeiras etapas do aprendizado de habilidades motoras” (apud SACKS, 2007: 43).

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O que Stanislávski percebeu é que talvez esse processo de imaginar para provocar

não seja um bom processo para o ator, e que melhor talvez seja, provocar, provocar,

provocar, provocar, provocar.... As ações físicas significam esse avanço e Grotowski

soube entender isso de modo radical, buscando novas maneiras de provocar, provocar...

O que se discute aqui, como alteração, é que as provocações propostas por

Grotowski possam ser estendidas para o ator, ou o performer, independentemente do

tipo de cena que ele irá compor, já que a provocação e a reação a ela são inerentes à

sobrevivência do organismo humano. A alteração é uma condição básica para a

adequação do organismo às influências do meio e a manutenção desse mecanismo de

ação faz emergir a consciência. Enquanto algumas estruturas se modificam como

processamento, outras, enquanto estrutura, confiam na permanência. É, pois, a

capacidade do organismo de manter a estabilidade de suas regulações internas, frente a

certas mudanças do meio, que permite a emergência da consciência autobiográfica de

Damásio, onde reside a mente discursiva, cuja ação indevida de acessar informações

que não lhe dizem respeito, produz o corposintético, que tanto incomodou Thomas

Richards. O corposintético, pois, é um corpo que está imóvel às informações cujo fluxo

descende do proto-self. O transe de Grotowski é uma expressão direta e visível dessa

homeodinâmica, e o corposintético é um corpo cujo proto-self e o self central estão

inativos, congelados, polimerizados, emplastificados, criogenados em um refrigerador

de portas transparentes. Logo, sua consciência autobiográfica não poderia deixar de ser

uma mosca que bate no vidro tentando entrar...

3.5.1.1 O que são alterações: uma leitura sistêmica da consciência

“Dado que a mente emerge num cérebro que é parte integrante de um organismo, a mente faz parte também desse organismo. Em outras palavras, corpo, cérebro e mente são manifestações de um organismo vivo. Embora seja possível dissecar esses três aspectos de um organismo sob o microscópio da biologia, a verdade é que eles são inseparáveis durante o funcionamento normal do organismo” (DAMÁSIO, 2004: 206-207, grifo nosso).

Para Damásio, consciência e mente não são sinônimos, apenas “consciência” e

“mente consciente” podem ser identificados como tal. Logo, mente é um conjunto mais

amplo de processos que geram tipos de procedimentos (processamentos e regulações), e

percepções distintas de acordo com as várias áreas onde ocorre, podendo gerar

consciência(s). A consciência, neste sentido amplo, é o resultado de uma complexidade

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especializada que emerge de inúmeros processos mentais. A idéia de alteração de

consciência parte da consciência como esse processo amplo de interação entre corpo e

meio, através de alterações nos padrões de percepção organizados e elaborados como

imagens mentais. Toda informação que alterar o funcionamento normal do organismo,

portanto, causará uma alteração de consciência. A questão principal se funda nos

parâmetros, pois normal pode ser muito relativo. Por isso, propôs-se aqui o conceito de

um corposintético como parâmetro metodológico, que para o ator significará não

alteração.

Uma boa noção de normalidade é dada pela própria idéia de consciência vista

sob o prisma do senso comum que, de certa forma, existente na primeira noção de

consciência trazida aqui à luz da filosofia. Se um corpo encontra-se desperto, alerta às

modificações do ambiente e sabe reconhecer a si e ao entorno, então ele tem grandes

chances de ser um corpo normal. Se for um ator que não pode reconhecer essas coisas,

ele provavelmente está com alguma deficiência em algum dos níveis de tratamento da

informação. Logo, é um caso clínico e não pedagógico ou artístico, e não será abordado

nessa pesquisa. Por outro lado, se apresentar emoções de fundo e ações ou emoções

específicas, relacionadas a eventos do meio, isso significa que os requisitos tratados

anteriormente estão sendo cumpridos por sua orquestra biológica, desde os níveis mais

baixos de mapeamento interno, incluindo o reconhecimento de eventos externos, até as

abstrações mais profundas sobre uma questão metafísica qualquer. Sua consciência

opera dentro dos padrões da normalidade. Com a alternação de estados perceptivos,

emerge uma noção de localidade macroscópica (metro), e de temporalidades/memórias

contínuas em uma noção estável de eu/mundo. E é possível começar a alterar esses

processos mudando seus estados de corpo. A alteração leva em conta a desestabilização

dos processos biológicos que promovem processos de consciência. Pode-se encontrar

uma boa noção de como isso ocorre na noção de integralidade de sistemas praticada

pela Teoria Geral dos Sistemas (VIEIRA, 2006: 88-96).

Para promover a alteração de consciência do ator, será necessário provocar a

desestabilização do sistema corpo/meio. Quando houver alguma modificação, em algum

dos parâmetros evolutivos a seguir descritos, poderá haver uma alteração de

consciência, pois, como vimos, ela depende de um intrincado continuum evolutivo,

funcional e estrutural para surgir e realizar suas habilidades mais marcantes. Os

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parâmetros evolutivos110, de acordo com Vieira, relacionam-se ontológica e

hierarquicamente para explicar o desenvolvimento da vida no universo. No entanto,

antes de serem parâmetros meramente teóricos, estruturam um caminho pelo qual a

realidade parece, de fato, seguir, sempre em direção a maiores níveis de complexidade:

São eles:

Composição – (m) De que é composto o sistema. Que tipo de material é feito. Compostos do agregado: o corpo saudável, por exemplo, é composto de moléculas, de células, de órgãos, de ossos e etc.

Sendo S = Sistema e m = agregados do sistema temos: S=(m) Conectividade – De que forma se conectam os agregados deste sistema? Desenvolve-se

no tempo e depende de cada componente em relação aos outros. No caso de sistemas humanos inicia-se em núcleos específicos, por exemplo, os formadores de opinião, se expandindo ao longo do tempo em direção aos núcleos complexos. A conectividade impõe restrições aos agregados, e estas restrições determinam características do sistema. Por exemplo, se as moléculas Y e Z não tiverem propriedades químicas que lhes permitirem conectarem-se entre si, pode não gerar um corpo humano saudável, embora ainda seja um sistema com as moléculas Y e Z.

Sendo S - Sistema, m - agregados e R – restrições, temos: S = [R(m)] Alguns autores usam para este parâmetro a palavra relação, no entanto essa idéia

implica em certo emparelhamento dos agregados, determinando condições de linearidade ou não. Pensar em “relação” significa levar em consideração a idéia de uma seleção que se impõe por restrição, ou seja, as conexões que são possíveis em função da composição dos agregados. Conexão significa, portanto, relação + ação possível:

1ª Possibilidade: A conecta-se com B; 2ª Possibilidade: B conecta-se com A; 3ª Possibilidade: A e B conectam-se entre si. Possibilidades diferentes significam, por tanto, características que diferenciarão sistemas

de mesmos compostos. Pela Teoria Geral dos Sistemas, ação significa transporte de informação (fluxo de

energia, matéria, signos...). Este parâmetro está associado aos graus de complexidades que o sistema pode suportar

antes de tornar-se outro sistema. Há um acúmulo de informação até que se atinja um limite crítico que força ou causa a conexão através de estruturas dissipativas que bifurcam a história do sistema no tempo. O tempo é considerado um dos principais parâmetros de conexão entre os sistemas, pois parece exercer sua força em tudo no universo. Este é um dado importante para a dramaturgia do espetáculo, por exemplo, pois determina a consciência do personagem em relação sua situação, ou no caso da artemídia, pode determinar o grau de conectividade das

110 A notação de Sistema de Uyemov (1976: 96 apud VIEIRA, 2006: 88-90) define-os como agregados de elementos que são relacionados entre si a ponto da partilha de propriedades: (m)S = df[R(m)] IP. Agregado m de qualquer natureza: idéias, notas, teorias, partículas, membros e etc. Oferece uma leitura sistêmica baseada em uma espécie de generalidade sugerindo uma “postura sistêmica”, ou de acordo com Jorge, “sistemismo”, que pode significar uma boa escolha ontológica não restritiva. Os parâmetros tratados no início do segundo capítulo fazem parte dessa mesma linha de raciocínio e são definidos parâmetros fundamentais: “Permanência”, “meio ambiente” e “autonomia”. Os tratados neste trecho podem ser chamados de parâmetros hierárquicos ou evolutivos.

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signagens em função de seus estados de mudança, e pode se conseguir isso, comparando estados em função de uma linha do tempo perceptível. Neste momento inicia-se a determinação da linguagem de um espetáculo estando a (alfabeto) no lugar de m (agregados do sistema), pois:

L = [R(a)], ou seja: L(Linguagem) é igual a R(Restrições) agindo sobre os compostos do sistema

(corpo+meio). Ou seja, a linguagem do espetáculo é determinada pelas possibilidades de relações entre

os elementos da encenação através das ações do corpo no espaço, perceptíveis à olho nu, pelas modificações dos estados do corpo. E ainda pelo oposto, a percepção da passagem de tempo, se dá pela percepção da mudança dos estados do corpo, que sugerem conexões e ações passadas...

Estrutura (coesão) – Como as conexões se comportam no tempo. Se as conexões são

duráveis a estrutura é coesa. A estrutura determina o grau, a intensidade, das possíveis relações entre os agregados. Há um intenso grau de relacionamento, uma forte coesão, entre determinados agregados da encenação, ou do corpo, que limitam, ou permitem diferentes tipos de alteração de estados do corpo, como por exemplo, ações em uma estrutura de ferro, ou uma seqüência de movimentos com uma bolha de sabão. Isso o obriga o corpo a estabelecer diferentes tipos de conexões e, por conseguinte, diferentes alterações de consciência.

Integralidade – Este parâmetro permite o surgimento de qualidades e propriedades locais

e compartilhadas. Romeu e Julieta juntos na cena da cotovia irão criar determinados estados de cena, diferentes de outros personagens em outras cenas, na praça entre as gangues inimigas, por exemplo. Ou ainda, bolha de sabão e corpo juntos poderão fazer determinados movimentos que nem um nem outro poderiam fazer sozinhos, produzindo alterações cada vez mais específicas. Essas propriedades compartilhadas, em biologia chamam-se “função”.

Funcionalidade – “Serve pra que”, um 1ª nível de pragmatismo, embora não seja apenas

isso, pois a funcionalidade surge no jogo entre o acaso e a necessidade. A relação cada vez mais específica entre corpo e meio criou um sistema (sistema corpo/meio) extremamente particular, em função das organizações hierárquicas que sofreu no decorrer de sua história e por isso pode ser chamado de organizado.

Organização –Do grego, organização advém do vocábulo órganon, instrumento,

ferramenta. Cada parte do sistema ocupa um lugar específico dentro do todo, respeitando a função para a qual foi projetada, planejada, (ou se desenvolveu para tal), de modo a garantir a coerência dentro de um projeto inicial. Exemplo: o olho humano ocupa o lugar frontal no crânio, como os olhos nos crânios de grandes felinos, por exemplo, de modo a garantir não somente a sua funcionalidade de ver o mundo, mas a coerência dentro de um projeto de um corpo predador, ver o mundo como predador. Este parâmetro é uma espécie de ápice evolutivo – desta maneira, é possível encontrar sistemas em variados níveis de evolutivos, onde certos parâmetros foram estabelecidos e outros ainda não; sistemas com um mesmo nível de organização, mas com estruturas diversas, etc. No homem pro exemplo, os pés estão apontados para frente, pois o corpo respeita um projeto genético de andar para frente, e não como siris que andam de lado, embora os dois estejam absolutamente adaptados com parâmetros evolutivos organizados de modo a surgirem membros que cumprem funções específicas relativas ao meio em que vivem. Desestabilizar o corpo humano, neste sentido pode ser tarefa simples, ao pedir que ele ande para trás. Para este sistema, um pedido desses não faz sentido em seu projeto, pois subverte sua estrutura. Por outro lado, o sistema humano/meio estará absolutamente adaptado em seu nível de complexidade evolutiva se andar para frente.

Complexidade – [...] “o mais fugidio [dos parâmetros] e sempre presente é a

complexidade que parece exprimir em a tendência evolutiva universal, característico por tanto em tudo que um ser humano faz, seja como criação artística ou científica” (pág, 90). A complexidade encontra-se na relação entre aspectos de coesão e coerência dos sistemas. Coesão está relacionada com a estrutura sistêmica, “à construção do sistema passo a passo, ao relacionamento entre as partes ou elementos” (pág, 91). A Coerência, por outro lado, relaciona-se ao sentido – Semântica. “Reflete as características do todo, possíveis relações do sistema com

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seu meio ambiente, seus níveis de integralidade e organização” (Ibdem). No caso do ator é a consciência discursiva, incluindo a atenção consciente, a introspecção, a linguagem verbal, e a consciência perceptiva de si e do mundo, (todos os selfs de Damásio, os problemas de introspecção, as memórias processurais levantadas por Sacks, memória de acesso e todos os processos inconscientes. É o nível mais complexo de consciência da natureza, no sentido de exigir o surgimento de camadas orgânicas relativas à ciência e as artes...)

No caso da alteração de consciência no trabalho do ator, a alteração significa

desestabilizar esse sistema hierárquico construído pelo projeto do corpo. Isso caracteriza

uma modificação como, por exemplo, a proposta por Grotowski, que visava um teatro

específico, sem tecnologia. A proposta aqui é mostrar a possibilidade de se entender

essa alteração no sentido biológico e, assim, trabalhar a questão junto com a definição

da estética que se quer criar. Independente de qual for a escolha do texto, do estilo da

obra, da linha de pesquisa, da proposta de encenação ou do tema, deve fazer parte da

coerência do processo de treinamento do elenco a determinação de que tipo de alteração

se trabalhará com o ator, partindo do pressuposto de que transformar é uma premissa

sua para a vida biológica. Assim, encontra-se nessa hierarquização um modo de

entender em que ponto pode-se atuar no sistema corporal para garantir, provocar ou

codificar as alterações de consciência.

Por mais que essa codificação se pareça improvável, são possíveis na medida em

que as transformações observáveis no corpo possam se transformar em qualidades de

estados. Uma vantagem da idéia de estado é não exigir do corpo uma fronteira como

contorno. Um estado é mais parecido com uma nuvem de fumaça do que com uma

partitura ou uma seqüência de movimento. As partes constituintes não são possíveis de

serem codificadas e nomeadas uma a uma, mas seu resultado geral no corpo, sim... Por

isso, é possível definir qual procedimento de alteração pode ser melhor aplicado para

determinado ator em determinada cena. Exemplo: uma cena onde se discute o

relacionamento entre namorados. Nela, determinados procedimentos de alteração

podem provocar uma movimentação suave entre os corpos, que desenvolvem fluxos

contínuos e sinuosos de movimento e respiração, de modo que certa qualidade de

relação remeta à relação de intimidade sexual entre eles... Outro exemplo: um ator que

precisa dialogar com uma câmera de vídeo e opte por trabalhar com o peso da câmera

como objeto físico, ao invés de lidar com ela como um aparelho de captação de

imagem; essa escolha oferece oportunidade de conexões entre corpo e câmera que

podem ser trabalhadas ritmicamente, conduzindo-o a um estado específico. Ao

reconstruir o ritmo e suas conexões, o corpo retoma aspectos do estado alcançado

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através da memória enquanto recategorização. É possível nomear um estado, por

exemplo, estado câmera/corpo, ou ação fibrilar, como será visto mais adiante. Isso

significa que as alterações, de algum modo, foram codificadas. Esse processo será visto

mais adiante pela idéia de procedimentos de alteração.

Como o self, a mente discursiva não pode interferir diretamente no self central,

pois isso se dá somente por mudança dos estados internos das vísceras por meio de

algumas funções autônomas como a respiração, por exemplo, ou a temperatura da pele,

Tais ações podem ser produzidas pela ação do corpo no espaço, como a movimentação

exaustiva, por exemplo. Corposintético representa a tentativa incansável e infrutífera de

acessar essas funções por via da introspecção. Dessa maneira, não é possível alterar a

consciência do ator, somente pedindo que ele a altere, e isso significa que a idéia do se

mágico pode não ser suficiente para gerar nele a sensação de mudanças emocionais.

Não se trata da retirada da atenção e da introspecção do corpo, pois isso é impossível,

mas sim da emergência das vísceras na mente consciente. É isso que fará a atenção

direcionar-se ao funcionamento alterado do organismo a ponto de provocar o

surgimento de emoções de fundo. Experimente comer três pratos de feijoada logo antes

de dormir, pra ver se sua consciência autobiográfica não é requisitada a registrar o

estado desastroso de suas vísceras...

Sobre a relação entre consciência e atenção, é importante saber que a

manutenção da atenção por longos períodos é sinal de um funcionamento normal da

mente e significa consciência presente. Por outro lado, a ausência, ou a “falha de

atenção, está associada à dissolução da consciência, como ocorre em momentos de

sonolência, em estados confusionais e no estupor” (DAMÁSIO, 2000: 123). No caso do

corposintético, ele apresenta uma consciência interna muito ativa, relacionada à

execução do processo de Controle à mando do PR, mostrado pelo esquema de Dennett.

Isso é sintoma de um estado de funcionamento normal da consciência, embora não seja

um estado desejável para o intérprete em cena, pois a ação do Controle impede a

emergência das flutuações de imagens de fundo. E é isso que se busca demonstrar aqui.

Durante os processos de alteração de estado de consciência a atenção não desaparece,

mas muda de foco pela mudança de sentido na operacionalidade. Damásio afirma que a

atenção e a consciência acontecem em gradações e se influenciam nesse processo como

uma “espiral ascendente”. O autor divide em dois os tipos de atenção, talvez duas

maneiras mais estáveis de graus de atenção e consciência.

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“A atenção básica precede a consciência central; é necessária para acionar processos que garantem essa última. Mas o processo da consciência central orienta a atenção superior para um foco. Ao atentar para uma pessoa conhecida que acaba de entrar em meu consultório, faço isso sob a influência da consciência central. Essa consciência só existe porque meu organismo havia sido dirigido pela atenção básica e automatizada para processar certas características do ambiente que são importantes para organismos como o meu, ou seja, para criaturas em movimento e com rostos humanos. Na seqüência do processo, a consciência central ajudou a enfocar a atenção no objeto específico que inicialmente acionou o organismo” (DAMÁSIO: 2000: 124).

A vantagem desses processos descritos por Damásio, é definida pelo sucesso

evolutivo da espécie humana como projeto da natureza. Essa divisão evolutiva do corpo

possibilitou o surgimento de qualidades complexas de consciência em função da

capacidade do organismo de manipular as imagens de si e do mundo em uma espécie de

semiose interna. A ameaça da integridade dos tecidos vivos empurrou o

desenvolvimento de mecanismos de defesa e sobrevivência na busca de ações

adequadas em relação às exigências do meio. Assim,

“Ações eficazes requerem a companhia de imagens eficazes. As imagens permite-nos escolher entre repertórios de padrões de ação previamente disponíveis e otimizar a execução da ação escolhida – podemos, de modo mais ou menos deliberado, mais ou menos automático, passar em revista mentalmente as imagens que representam diferentes opções envolvidas em uma ação. Podemos selecionar a mais apropriada e rejeitar as inconvenientes. As imagens Também nos permitem inventar novas ações a serem aplicadas a situações inéditas e fazer planos para ações futuras – a capacidade de transformar e combinar imagens de ações e cenários é a fonte da criatividade” (DAMÁSIO, 2000: 43).

A este processo Damásio denomina de antevisão e sustenta a idéia de constante

alteração de estados por trás da presentificação do corpo em cena: o corpo é, por

excelência, um contador de histórias. Naturalmente, uma consciência saudável está apta

a contar a própria história para si mesma o tempo todo, e, com base nela, viver. Este é o

estado paradoxal de estabilidade e instabilidade do qual o corpo parte para entender o

mundo. Este é o estado não alterado do corpo, que implica em alterar-se constantemente

em função do ambiente. Mas, então, é preciso responder o que seriam as alterações para

o ator. E, para isso, há que considerar, dentre outras, as seguintes questões:

• Alteração em relação a que? Ao funcionamento normal do organismo que faz a

consciência emergir e que significa processos de consciência das conexões entre

organismo e meio arquitetadas co-evolutivamente. Mudando-se o meio, mudar-se-á a(s)

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consciência(s) que dele emerge. Mudam-se as informações entrantes, mudam-se os

estados do corpo, pois este é o funcionamento natural do corpo.

• Como observar e reconhecer uma alteração? Observando as mudanças de

comportamento do corpo em seus níveis distintos, como a cor da pele, o foco do olhar, a

tensão na musculatura e etc. Mas lembrar sempre da contextualização em que se propõe

e se observa a alteração.

“Embora todas essas manifestações possam ser produzidas por estímulos apropriados e observadas, filmadas e medidas por vários meios, [...] [é preciso considerar que os] juízos qualitativos do observador especializado são um instrumento essencial na análise do comportamento. O que apresenta ao observador é decomponível pela análise especializada, porém é, sobretudo, uma concorrência de contribuições no tempo, executadas em um único organismo111 e ligadas, de algum modo, por um único objetivo” (DAMÁSIO, 2000: 120, grifo nosso).

• Sobre a participação do self: O sentido de self, segundo Damásio, é um componente

fundamental para qualquer noção de consciência,

[...] “que informa a mente, de um modo não verbal, sobre a própria existência do organismo individual no qual esta mente está atuando sobre o fato de que o organismo está empenhado em interagir com objetos específicos dentro de si mesmo ou em seu ambiente. Esse conhecimento altera o curso do processo mental e do comportamento externo. Sua perspectiva privada, disponível diretamente apenas para quem o possui, poder ser inferida por um observador externo a partir da influência que esta parte exerce sobre comportamentos externos, e não diretamente de seu próprio comportamento. Estado de vigília, emoção de fundo e atenção básica são, pois sinais externos de condições internas compatíveis com a ocorrência da consciência. Por outro lado, emoções específicas, atenção contínua e concentrada e comportamentos direcionados apropriados ao contexto, no decorrer de longos períodos, são bons indicadores de que de fato está ocorrendo consciência no indivíduo que observamos, mesmo que nós, como observadores externos, não possamos observá-la diretamente” (DAMÁSIO, 2000: 120-121).

• O que pode causar alteração? Cada corpo humano está evolutivamente desenhado para

funcionar a partir dos planos genéticos que garantem o desenvolvimento das qualidades

humanas como espécie e como indivíduo, além de sua relação com o meio, sua história,

memória, passado e etc., que implicam características mutáveis e imutáveis na

perspectiva de procedimentos de alteração. Por exemplo, não é possível mudar o lugar

da amídala durante um procedimento de alteração, mas é possível transformar a

percepção da luz pelas interferências na pressão sobre os olhos. Isso fará despertar uma

série de imagens e mapeamentos, relativas às mudanças nesta área específica, como

manchas coloridas e em movimento. Não é possível transformar permanentemente uma

111 Aqui, leia-se sistema.

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característica da personalidade como a timidez em apenas um único procedimento de

alteração da percepção de seu próprio corpo, mas, se aliadas a outros procedimentos

coletivos de toque, por exemplo, ao longo de um período mais contínuo de tempo, isso

pode acontecer. Não se pode fazer enxergar, alguém que tenha uma séria lesão no

córtex visual. Mas é possível gerar vontade de chorar, com um alto grau de

desestabilização da sensação de unidade corporal através de movimentações contínuas,

simultâneas, rápidas e multidirecionadas dos membros do corpo. Como ponto de partida

para o trabalho com alteração dos estados de consciência do ator, é indispensável ter em

mente essas duas instâncias básicas, como funcionam e como interagem.

• O que fazer depois de alterado? Perceber que os procedimentos de alteração podem

causar muito desconforto e que isso pode provocar o desinteresse em se trabalhar sob

esta perspectiva, de modo que é imprescindível que se leve em consideração as

necessidades das alterações nos contextos em que se trabalha o ator. Talvez, em uma

oficina para iniciantes se desinibirem (se é que é necessário e plausível tal trabalho),

não seja o caso de se usar certos procedimentos mais agressivos, como o citado

anteriormente. De qualquer forma, a alteração só tem função em comparação com a

percepção de uma estabilidade. Assim, depois de alterado o estado do corpo, perceber

até que ponto (tempo e contexto de cena, saúde do ator) é necessário mantê-la ativa, e

depois, retornar a um estado “normal” de percepção de si mesmo. Assim, as mudanças

ocorridas em seu processo criativo, seu corpo, sua voz e etc, podem ser discutidas sob

outras perspectivas. Talvez seja necessário que se passem ainda muitos dias para que se

tenha consciência da alteração ocorrida e suas mudanças em seu processo de

aprendizado e criação.

• As alterações provocam os limites do corpo, respirações fortes, aumento sensível dos

batimentos cardíacos do fluxo sanguíneo, mudanças visíveis na estrutura músculo

esquelética. É preciso cuidado, atenção e certo carinho para provocá-las, de modo que,

seja desenvolvida uma relação de extrema confiança entre ator e elenco, diretor,

professor ou preparador... Como já havia falado Grotowski. Às vezes, certos

procedimentos implicam uma atitude insistentemente provocativa, por parte do

preparador ou diretor, (gritos, provocações diretas)112, mas se a confiança é estabelecida

112 Inclui-se aqui o apontamento da necessidade para uma discussão sobre ética no trabalho do ator que, além de ser mal discutida, parece não dispor de muita bibliografia. No fim, uma postura que costuma reinar em escolas de teatro amador e profissionalizante, é que o aluno tem que ter prazer no aprendizado. Postura que deriva da pedagogia pensada no âmbito das escolas regulares que ensinam matemática, português e etc. Não é uma postura incorreta, mas, deve-se levar em conta o fato de que para o ator, enfrentar a frustração e o medo, por exemplo, é papel corriqueiro na criação artística, e uma escola que evita esses sentimentos, na maioria das vezes para garantir que o aluno volte no dia seguinte e continue pagando a mensalidade, não está apta a formar atores. É mister dizer que não se pretende justificar nenhum tipo de violência contra o ator ou contra quem quer que seja, mas procura-se legitimar uma atitude necessária contra certas reações naturais do corpo, como o medo da exposição ao ridículo, por exemplo. Alguns atores encaram o trabalho corporal como agressão (o que talvez seja uma justificativa para o medo de exposição de suas inabilidades técnicas) – o que só faz alimentar os círculos de

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em todos os segundos dessa relação, a agressividade, a dor, o incômodo, a insegurança,

são sim, bem-vindos no processo, e percebidos pelo ator como parte integrante daqueles

procedimentos específicos.

3.6 Como alterar a consciência

3.6.1 Estabilizações e desestabilizações

Será possível, como método de pesquisa, criar exercícios para vivenciar os

estados alterados de consciência a partir das descrições dos fenômenos acima?

“Os mapeamentos corticais são dinâmicos e podem mudar com a alteração das circunstâncias. Muitos de nós já vivenciamos isso ao experimentar óculos novos ou um novo aparelho auditivo. No começo, os óculos ou o aparelho auditivo novo parecem intoleráveis, distorcem as coisas, mas em poucos dias ou horas nosso cérebro adapta-se a eles e então podemos fazer pleno uso de nossos sentidos agora óptica ou acusticamente melhorados. Ocorre coisa semelhante com o mapeamento da imagem corporal, que se adapta com grande rapidez se houver mudanças na entrada de estímulos sensoriais ou no uso do corpo. Por exemplo, se um dedo for imobilizado ou perdido, sua representação cortical diminuirá ou desaparecerá totalmente; as representações de outras partes da mão se expandirão e tomarão lugar Se, inversamente, o dedo for muito usado, sua representação cortical aumentará, como ocorre com o dedo indicador de um cego que o usa para ler em Braille, ou com os dedos da mão esquerda de quem toca um instrumento de corda” (SACKS, 2007: 139).

Na presente proposta, as seqüências de movimento foram criadas sob duas

perspectivas:

1) A alteração é o comportamento natural do corpo e, nesse sentido, toda experiência do ator é

uma experiência de alteração.

2) O corposintético é uma tentativa da mente consciente (autobiográfica, simulando imagens

mentais que não existem, de fato, e ignorando as que são produzidas) de provocar alterações que são

promovidas por estruturas profundas do corpo. Como ele não possui acesso a determinados processos, é

preciso provocá-los, interferindo na lógica de seu funcionamento através da subversão dos parâmetros

evolutivos que garantem a estabilidade dos processos orgânicos de percepção do corpo.

O transe de Grotowski foi reavaliado sob a primeira perspectiva na medida em

que seus treinamentos propostos, baseados em longas horas de trabalho, repetição

exaustiva das ações físicas como partituras para o corpo no espaço/tempo provocam preconceitos e vícios do comportamento sintético. A linha é tênue, e se há sinceridade no trabalho entre as partes, trata-se o assunto com clareza e objetividade, pois o corpo não mente quando transforma seus estados, nem quando produz prazer, nem quando cria agressividade.

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uma alta coesão entre corpo e meio, esmaecendo a mente discursiva em uma mudança

da complexidade característica da consciência que emerge no sistema humano/meio.

Sem dúvida nenhuma, esse processo, por sua vez, acaba abrindo possibilidade para o

trabalho do ator sob a segunda perspectiva. E foi partindo dela que esta pesquisa

selecionou alguns estímulos para alteração de consciência, chamados aqui de

procedimentos de alteração113. Sendo assim, a idéia de procedimentos é relativa à

relação entre estabilidade e instabilidade biológica que faz processos de consciência

emergirem. Os procedimentos de alteração provocam diferentes desestabilizações da

consciência. Podem ser vistos sob o aspecto dramatúrgico, exigidos por determinado

clima de cena ou situação específica, ou em relação à signagem constituída na

encenação pelo environment. Ou ainda, e isto é fundamental, serem pensados a partir

das qualidades particulares dos corpos em questão (corpos entendidos como sistemas

complexos e autobiográficos). Desse modo, tais exercícios não podem ser constituídos

como um método, e sim como princípios metodológicos gerais.

3.6.2 Procedimentos de alteração

A descrição que se segue pratica esse entendimento e traz apenas alguns

princípios norteadores para a execução e a criação de novos procedimentos de

alteração, a fim de ilustrar as idéias aqui apresentadas. Partem do pressuposto de que é

possível entender o treinamento do ator como uma espécie de narrativa corporal, ou

uma narrativa de estados, que o auxilia a organizar noções perceptivas gerais da obra,

em termos de estados de consciência. A narrativa de estados pode significar, também,

uma abordagem específica em relação ao texto dramatúrgico, implicando que o ator

construa, para a cena, uma partitura de estados paralela à partitura de ações. Isso indica

a possibilidade de se pensar um tipo de alteração específica que aponta para a idéia de

alteração de consciência como um conceito correlato à idéia de presença cênica.

Os princípios gerais estão aqui organizados partindo de uma leitura geral em

direção a uma mais específica. Assim, se seguem: Princípios gerais para um 113 A escolha do termo procedimentos de alteração é uma tentativa de evitar a palavra processo, já impregnada de conotações generalizantes da relação entre corpo e meio. A idéia de processo é bem vinda quando designa diversos procedimentos em uma linha do tempo, considerada longa em comparação à duração média de um exercício de criação cênica em um ensaio ou em uma aula (duas a quatro horas). Além do que, a idéia de procedimento de alteração remete a uma ação laboratorial, experimentação, verificação sistemática da emergência de diversos tipos de alterações possíveis para um ou outro ator em relação à diferentes estímulos externos – respeitando e recriando o intuito de Grotowski de delimitar os conceitos por suas complexidades inerente à prática teatral em um teatro laboratorial, pragmático.

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treinamento sobre alterações; Alterações diferentes para diferentes tipos de ator;

Alterações diferentes para diferentes tipos de cena; Alterações diferentes para a mesma

cena; Alterações diferentes para o mesmo ator; Alteração Ação fibrilar.

3.7 Princípios gerais para um treinamento sobre alterações: treinamento

gravitacional

Como será possível notar, esses princípios estão implícitos no modo de

organização das idéias discutidas até aqui e muitos deles cruzam com noções bem

estabelecidas de organização de ensaio. Esses princípios congruentes são, em geral, bem

representados nos trabalhos de relação entre indivíduo e coletivo, como cantos em coral,

exercícios de reconhecimento do corpo do outro, ampliação da percepção de si e do

ambiente pela maioria dos trabalhos feitos nos primeiros anos de uma boa escola de

teatro. Outros são mais específicos para a idéia de alteração, e mesmo os primeiros,

quando vistos sob a luz dos estados, podem ganhar novos coloridos pedagógicos se

servirem para a conexão entre corpo e meio. Para os segundos, uma espécie de treinamento

foi elaborada, e tenta reunir aqui, a noção estrutural de subversão das funções orgânicas

perceptivas. Não é único, e muito menos exclusivo; trata-se apenas de uma das várias

possibilidades de se organizar um processo mais lento, gradual e complexo.

Esta proposta de treinamento inclui seqüências de movimento que se mostraram

eficientes em diversos contextos distintos, e foram capazes de desestabilizar a maioria

dos corpos que delas se utilizaram. Um dado importante é que este processo de

elaboração depende também da percepção de si mesmo como preparador no momento

dos ensaios ou aulas, percebendo suas dores no corpo, sua região de tensão, suas

imagens particulares que emergem da conexão entre o seu corpo com o de outros atores.

Isso significa que estas seqüências precisam ser modificadas segundo as percepções de

quem está propondo e fazendo.

O Planejamento Geral pode levar em consideração a seguinte seqüência de

experimentação do organismo: • Base individual • Duplas • Trios e etc., • Seguir sempre acrescentando aos poucos novos elementos • Respiração • Sons • Cantos populares e ritualísticos • Palavras cantadas

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• Textos e canto Diálogos cantados Diálogos sem canto

3.7.1 Seqüências de estudos

A idéia norteadora é sempre implicar o ator em uma situação onde haja forte

influência de paradoxos, lidos aqui como princípios de estabilidade e instabilidade. Toda

a visão de estados se funda nisso. As seqüências visam expô-lo a variações bruscas entre

estabilidade e instabilidade, inicialmente, em função de um primeiro nível de conexão entre

organismo e ambiente, o nível da força gravitacional que é percebido pelo corpo como sendo

seu peso, um dos primeiros níveis hierárquicos de conexão, pois mesmo uma simples mesa

está sujeita à força da gravidade. Variando-se as seqüências no tempo, o ator pode começar a

perceber as diferenças possíveis de densidades que o corpo pode assumir. O treinamento visa

criar relações entre estabilizações e desestabilizações da percepção de si e do espaço. Não se

trata de formar uma consciência corporal, mas antes, de não promover nela uma forma fixa.

Inserido nestas situações, o corpo é provocado a reagir em nível fisiológico, produzindo

variações de estados perceptivos.

A estabilidade dos planos do espaço, portanto, torna-se necessária para fornecer

ao preparador de elenco os parâmetros indicados para criar instabilidades. Estes

parâmetros estáveis podem ser:

1 – Plano Baixo • Arrastar e pressionar o chão em sentido radial • Rolamentos • Deslizar • “Salto leão” (Salto longo para frente com rolamento) • Quedas repentinas

2 – Plano Médio

• Sustentações e quedas • Rolamentos • Caminhadas em quatro apoios

3 – Plano Alto

• Andar de frente • Andar de costas • Quedas e sustentações

4 – Saltos

• Individuais • Duplas • Trios • Coletivos • Apoios • Rodopios

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3.7.2 Posições desestabilizadoras

As seqüências podem ser montadas através da combinação e contaminação de ações ou posições desestabilizadoras. Exemplo:

Ilustração 4 - Posição desestabilizadora "Avião" Ilustração 5 - Variação da posição 4 com indicação de impulso do abdômen "serpentear a coluna"

Ilustração 6 - Posições desestabilizadoras "bola". Ver APÊNDICE A

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3.7.2.1 Exemplos de seqüências 1ª Seqüência: • Em pé, inspira e desce enrolando a coluna, soltando som, sempre; • Abre estrela no chão, pressionando o corpo em direção às extremidades; • Fecha estrela pressionando o chão em direção ao centro do abdômen; • Segue a linha de impulso do corpo rolando sobre ele até deitar a coluna sobre os joelhos

dobrados; • Sobe desenrolando a coluna até formar a posição do avião (Ilustração 4 ou sua variação,

Ilustração 5); • “Serpenteia” a coluna usando o impulso a partir do abdômen; • Enrola e desenrola a coluna novamente passando pelo chão sobre os joelhos dobrados; • Sobe desenrolando a coluna novamente até retornar à posição inicial, em pé. 2ª Seqüência (Ilustração 7): • Sempre com som. • No chão, deitado, fazer oposições com o impulso abdominal das respirações até espreguiçar

todo o corpo; Pode se fazer com oposições em um membro de cada vez e em um aumento relativo de complexidade, incluir os outros membros;

• A cada inspiração abrir o corpo ganhando espaço em oposições e principalmente em torções dos órgãos;

• Expirar fechando, pressionando o abdômen, fazendo o impulso de volta criar novas oposições, torções e sons relativos aos movimentos de contração no abdômen;

• Deixar que isso cresça em complexidade enquanto espalha-se pelo espaço experimentando-o em diferentes planos, sempre mantendo e aumentando em volume, força e relaxamento, distância e graus de torções do corpo;

• Quando alcançar o plano mais alto do espaço, e estiver em pé, soltar o peso todo de uma vez no chão, passando por um rolamento lateral ou frontal, sempre mantendo o som ativo deixando que ele se modifique conforme o corpo muda;

• A cada queda, voltar à altura especial anterior, sempre buscando mantê-la e superá-la; • Sempre observar o aumento das oposições e as transformações dos sons; • Explorar os deslocamentos espaciais, de acordo com os impulsos do corpo em relação à

gravidade, ganhando novas áreas da sala ainda inexploradas; • Recolher aos poucos os impulsos aos poucos até que eles se concentrem em torno do osso

externo, embora todo o corpo tenha que responder livremente a eles. Se a cada passagem, não for possível ver nitidamente os reflexos dos impulsos e torções distintas nos vários órgãos do corpo, avançar mais lentamente com a seqüência, enfatizar mais as quedas e as torções até que as tensões naturais de resistência à esse processo deixem de existir. Se isso for feito, será possível concentrar os impulsos em duas regiões básicas distintas, o centro do tórax, conhecido como cintura escapular, e o abdômen, chamado de centro de gravidade.

• É possível observar os reflexos desses impulsos dissonantes em todos os órgãos do corpo, joelhos, pés, coluna inteira, pernas, pulsos... Observar principalmente as articulações do corpo, pois quando estão tensas nada disso acontece. Cada impulso é resultado de uma torção minúscula entre tronco e bacia, criando sensações profundas de desconforto, vontade de choro, angustia, medo e sensações desagradáveis.

• Nesse momento, os impulsos adquirem uma espécie de reverberação mecânica no corpo e passam a ser produzidos por retro-alimentação. Ou seja, o corpo todo parece entrar em um estado de fluxo ininterrupto de movimentos controlados por um equilíbrio dinâmico interno, de constante rearranjo, choques, torções autônomas. Às vezes, sair desse estado pode ser difícil ao ator, que deixa de conseguir se concentrar em uma parte específica do corpo. A melhor maneira é pensar que se “deixará explodir de uma vez”, relaxando-se completamente todo o corpo em um só instante.

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Ilustração 7 - Mecânica de impulsos, oposições e vetores que geram a fibrilação

Obs: É uma das seqüências mais duras ao ator, se for realizada, de fato, com muita paciência, tempo e repetição incessante de cada etapa até que o corpo passe a responder organicamente. Durante esse processo, o afluxo de imagens internas é enorme e se o ator consegue ultrapassar dessa fase, alcança um estado de tranqüilidade, de limpeza interna de imagens que seu corpo parece gerar a sensação de flutuação. Essa sensação não só é percebida por ele, mas também por quem conduz o trabalho. Provocando uma variação rítmica nas etapas, podem-se conseguir resultados diferentes. Pode levar até quatro horas ininterruptas. Geralmente, essa seqüência provoca dores no corpo, principalmente na região do pescoço, percebidas no dia seguinte ao ensaio. Essas dores são resultado do Corposintético, que tentou resistir à movimentação.

3ª Seqüência (Ilustração 7): • Sempre com som. • Andando pela sala, inicialmente,

preenchendo o espaço vazio percebido pela visão periférica;

• Explorar as mais diferentes formas de pisar no chão, deixando que isso transforme todo o resto do corpo;

• Relaxar o quadril cada vez mais para que os reflexos desses andarem contaminem o restante do corpo;

• Relaxar os joelhos de modo que, sejam ampliadas significativamente as distâncias do espaço percorridas por ele em relação aos pés. O andar se parece com o de alguém profundamente alcoolizado. Perceber esses impulsos e relaxar as articulações até que eles contaminem o resto do corpo. Neste momento pode haver a introdução de textos, lembrando que o som e a respiração já fazem parte das seqüências inevitavelmente. Mesmo que o espetáculo seja mudo;

• Podem ser introduzidos aqui também, impulsos específicos em diferentes partes do corpo, relaxando-as mais do que as outras, ou incluindo tensões e contrações e torções específicas como na 2 º seqüência;

• Perceber que os diferentes modos de pisar no chão geraram diferentes impulsos, ritmos e deslocamentos para o quadril. Concentrar aos poucos esses impulsos no quadril de modo que se mantenham os diferentes modos de andar. Isso pode ser feito, aumentando o ritmo da troca de apoios nos pés. Isso tornará o quadril um centro de propulsão de impulsos. O corpo deve estar relaxado o suficiente para que se percebam os reflexos dessa movimentação;

• Incluir nesse momento, uma respiração ofegante, com rápidas inspirações e expirações de ar pelo diafragma, e perceber que ela modificará o ritmo do centro de impulsos e poderá se relacionar com ele provocando diferentes ondas de propulsão de movimento pelo corpo, que se forem relacionados com a fala pode proporcionar diversas maneiras de soar o texto. Nesta fase, a sensação da flutuação também aparece, embora com menos rigor;

• Neste período, procurar manter essa narrativa de impulsos, por mais estranha que pareça, em deslocamentos contínuos pelo espaço, de modo que, a cada impulso possam ser exploradas diferentes áreas, planos, níveis, contatos com outros atores, objetos. Perceber que a cada contato, uma mudança será imposta ao estado de flutuação do corpo, já que um novo acoplamento foi realizado. Deixar que estas mudanças ocorram percebendo as transformações de estados por elas exigidas.

• É possível também, provocar uma continuidade dos impulsos pelos membros e direções, a fim de que o corpo percorra o espaço sem necessariamente se deslocar por ele, mas fazendo dos sons e das mudanças de estado, extensões de sua propulsão de vôo.

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Ilustração 8 - "Fole” natural do corpo

3.7.3 Respiração e canto (Ilustração 8)

As respirações e os cantos deveriam constar em um capítulo específico, dada a

importância que têm na idéia de alteração de consciência. É possível inferir que a

respiração e o canto são uma das causas

essenciais de toda alteração, e já nos últimos

trabalhos foram usados como base para a

maioria dos ensaios. Em termos conceituais, a

respiração muda diretamente o primeiro nível

do sistema corpo, modificando a composição

química do organismo com maior ou menor

quantidade de oxigênio na circulação

sanguínea. De acordo com os parâmetros

evolutivos, ela consiste na base da estrutura

evolutiva de qualquer estado. Representa,

assim, um dos princípios fundamentais da

idéia de alteração. O canto, como lida

diretamente com a vibração de ondas sonoras

pelo corpo, muda rapidamente os estados dos órgãos internos e, conseqüentemente, seus

mapeamentos produzem imagens muito distintas das produzidas no dia a dia. Inúmeras

são as formas de trabalhar a respiração e o canto. Aconselha-se incluir sempre som e

respiração em qualquer trabalho de alteração. Não existe um capítulo específico para

eles, pois, dada a sua importância, nunca tiveram um papel isolado, estando incluídos

em todas as seqüências até agora. Eis algumas formas básicas que trazem resultados em

poucos minutos:

• Com o deslocamento rápido do quadril, relaxar o músculo do diafragma de modo que ele

responda livremente a esse deslocamento. Assim, ele funcionará como um fole natural do quadril. A dificuldade aqui é justamente relaxar o diafragma, pois para a maioria dos atores, foi ensinado que este é o melhor tipo de respiração para o teatro.

Esses movimentos resultam de uma sensação de queda e recuperação do corpo.

Não é o movimento intencional de movimentar a bacia. Isto aconteceu nas seqüências

descritas acima. Aqui, significa que se experimentar um desaparecimento súbito de

energia nos joelhos, nas coxas, no tronco, na coluna, enfim, em toda a estrutura músculo

esquelética, de uma só vez, o corpo tentará recuperar a altura de modo autônomo. Isso

causa uma súbita entrada de ar. Cair significa, para o corpo, perder as expansões das

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articulações, os espaços entre os órgãos, o ar nos pulmões... Cair significa perigo e ele

tende a responder com mecanismos natos de sobrevivência. Como isso é praticamente

impossível de se conseguir simplesmente pedindo que seja feito, a seguinte seqüência

foi construída a fim de provocar, o que se determinou como ação fibrilar:

• Inicia-se parado, em pé, relaxando-se as articulações e cada parte do corpo, com muita

paciência e detalhamento; • Sempre soltando um som grave e lento. Relaxado; • Conforme o relaxamento aumenta, a necessidade é de se estender pelo chão e deitar-se; • A idéia é que o ator busque isso de uma só vez, soltando repentinamente seu corpo no

espaço, como se caísse para trás. E, na verdade, a imagem que se tem enquanto realização do exercício é muito próxima, como se o corpo fizesse uma coisa e os olhos enxergassem outra;

• A tensão existente está entre o ator relaxar ao máximo e, repentinamente, o corpo recuperar-se da queda. Queda e suspensão são feitas incansavelmente, com o aumento gradativo do risco real de um ferimento, de um choque com outros na sala, com as paredes do espaço, objetos e etc. Assim, com o aumento do ritmo, as quedas e suspensões se recolham e o ator encontra um ponto onde há sempre a iminência de queda, embora ela nunca aconteça, pois o corpo mesmo trata de encher-se de ar e sustentar-se.

• Neste momento, o que se vê é um corpo em estado de fibrilação. 3.7.3.1 Cantos indígenas brasileiros

• São excelentes em criar fortes referências entre o corpo e o chão, pois grande parte das danças exigem do corpo vetores apontados para baixo, um encaixe flexível da bacia em relação à coluna vertebral, soltura nos joelhos e nos pés114.

3.7.4 Alterações diferentes para diferentes tipos de ator

• Outro importante princípio a ser considerado é a qualidade particular de cada corpo com que se trabalha. Durante as observações, foram feitas experiências com diferentes tipos de atores, que puderam ser entendidos de acordo com o tipo de formação que tiveram. Por exemplo: atores com experiências de formação apenas em oficinas, outros formados há mais de dez anos, cujos corpos já haviam estabilizado de forma muito profunda alguns princípios de criação, dançarinos recém formados ou em fase de conclusão, atores cuja formação foi feita em escolas profissionalizantes e voltadas para interpretação de televisão, atores/amadores sem nenhum tipo de formação específica e etc. O que se pôde concluir é que cada um precisa ser visto de forma específica e entender que a idéia de alteração é sempre em relação há alguma coisa. Desse modo, nem todas alterações funcionam para todos os atores.

3.7.5 Alterações diferentes para diferentes tipos de cena

• Um princípio simples e muito proveitoso para espetáculos que utilizam base dramatúrgica convencional é a observação e transposição de posturas corporais que o corpo realiza

114 Desde 1998, há uma participação intensa de danças e cantos indígenas brasileiros, de diversas tribos, cantos e danças africanas e procedimentos vindos da Umbanda e do Candomblé, que fazem parte dessa pesquisa, construída aos poucos pelo Grupo Carranca, e que hoje recebe a leitura aqui apresentada. A descrição dessas danças seria tarefa árdua sem um sistema próprio de notação, sendo, portanto, trabalho para outra ocasião. Mas é lícito afirmar que a leitura que se tem para as seqüências acima é a mesma para esses procedimentos extraídos da cultura popular brasileira.

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naturalmente, seja em função da cultura seja em função de suas habilidades orgânicas. Exemplo: se a cena é introspectiva e requer o avanço na memória, é possível que, pedindo ao ator para sentar-se confortavelmente, sua memória surja em função do relaxamento relativo que ganhou o corpo, e o texto flua com sentidos outros. Ou ainda, colocá-lo em uma situação física análoga à da cena, pois, desse modo, se a cena requer carinho e intimidade com o outro personagem, que eles, então, se mantenham, por exemplo, muito próximos sem se tocarem, mas o suficiente para que sintam seus cheiros e suas respirações. E que isso dure horas, até que se contaminem de seus ritmos, suas freqüências cardíacas, suas pulsações e etc.

3.7.6 Alterações diferentes para a mesma cena

• Isso significa que cada cena é complexa, seja ela construída dramaturgicamente ou pela signagem do environment. Observar suas transições internas é um princípio básico para qualquer trabalho de encenação. Assim, pode-se pensar em criar diferentes situações e procedimentos de alteração para a cena como um todo, bem como para cada um de seus momentos importantes.

3.7.7 Alterações diferentes para o mesmo ator

• Levar em consideração que no processo de montagem de um espetáculo, ou mesmo em um semestre de aulas, cada ator mostra diferentes maneiras de entender o mundo e os processos criativos. Isso é básico para qualquer processo pedagógico, e permite que se observe mais claramente, a transformação particular de cada ator ao longo de um mesmo dia de trabalho. Ou seja, uma alteração que funcionou para determinada pessoa ontem, pode não funcionar para ela hoje, mesmo que estejam montando ou ensaiando a mesma cena. Ainda de outro modo, uma mesma pessoa pode ser sensível a determinados tipos de informação, em determinadas circunstâncias e em outras circunstâncias, ser absolutamente impassível diante das mesmas informações. A escolha dos Procedimentos de Alteração deve partir de uma análise que cruze dados sobre as especificidades temporal e criativa de cada corpo, levando-se em consideração a contextualização espaço-temporal de uma história particular (a do ator em processo de aprendizagem) em constante modificação. Aliás, uma maneira de atestar isso, é justamente o fato de que nem sempre um mesmo Procedimento de Alteração gera transformações mais de uma vez com uma mesma pessoa. Em suma, cada dia de trabalho trás a trajetória de aprendizagem dos dias anteriores, mas de algum modo, parece sempre começar sem que ela esteja presente.

3.8 Alteração específica: ação fibrilar

• Uma proposta específica de alteração baseada na tensão constante entre Estabilidade e Instabilidade, provocada pela respiração, como descrito acima. No entanto, uma das propostas desta pesquisa é a de que é possível construir a idéia de alteração como sendo uma idéia de ação do corpo análoga ao sentido de presença, já conhecido no meio teatral e trabalhado de modo proveitoso por diversos caminhos que não são excludentes da idéia de estados. Primeiro, porque uma das qualidades dos estados é simplesmente ser instabilidade como estado saudável do corpo no mundo. É mudando que ele se contamina das mudanças no meio e pode regular-se em função delas. Segundo, porque a ação de fibrilar se constitui como radicalização das oposições de vetores e tensões enquanto dinâmica viva da cena e princípio para qualquer corpo em cena. Terceiro, porque a diferença entre estes conceitos se assegura pelo meio como são conquistados no corpo e ambos levam em consideração a existência deste como ponto de partida para o trabalho do ator, mesmo que a linguagem cênica se aproxime da presentificação. Se assim for, a idéia do fibrilar vem auxiliar inúmeros atores que, em cena, sem disporem das linhas dramatúrgicas para orientá-los durante a cena, passam a contar com um outro campo de análise de seu trabalho de vivência cênica. Quarto, pois se entendendo, por via dos estados, a ação do corpo no meio, é possível admitir que: se uma informação alcançar mais os pés ao invés do tronco, por exemplo, mesmo que o tronco seja influenciado pelo estado dos pés, estes podem se encontrar muito

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diferentes dos estados do tronco – como quando se diz: “Tenho frio nos pés!” E não: “Tenho frio nos pés que refletem no tronco!” Embora a percepção de um estado seja sempre relativa à percepção de outro. Assim, pode se pensar, por exemplo, em estados distintos para distintas partes do corpo, ou melhor, para distintos subsistemas do sistema corpo/meio. Daí deriva-se a possibilidade da concepção de uma narrativa de estados.

3.9 Narrativa de estados

• A narrativa de estados depende fundamentalmente da abertura dos olhos da criação à capacidade de perceber o mundo através de seus estados: estados de matéria, estados de informação, estados de tensão, de discursos, de coisas e etc. Se o ator pode desenvolver essa percepção, pode observá-la impregnar seu corpo de diferentes formas, que dependem dos diferentes acoplamentos que se estabelecem simultaneamente durante o dia a dia e durante a experiência cênica. Assim, independentemente, da linguagem que se constrói para o espetáculo, pode o ator, fundar seu olhar sobre os discursos do environment cênico sob a perspectiva de diferentes fluxos de estados derivados das diferentes conexões com os elementos da montagem. Isso independe da relação entre linearidade e não-linearidade, mas parece se tornar um conforto maior quando pensada sobre a segunda.

• No caso de dramaturgias clássicas, aristotélicas, onde se pretende a fábula e as linhas de ação, os estados podem orientar o ator na direção dos acoplamentos que precisa estabelecer. Ou ainda, experiências muito recentes desta pesquisa mostraram que é possível construir uma partitura paralela de estados às partituras de ação física, baseando a ação na idéia da recuperação do corpo em relação às quedas de relaxamento, descritas quando se tratou de respiração e canto. Ao invés da intenção de agir na direção da completude de determinado desejo implícito no discurso interno do personagem, concentra-se simplesmente, em expandir ou recolher a relação entre instabilidade e estabilidade, entre recuperação e queda. Assim, o trabalho se inspira em um processo em que se deixa o corpo, motivado pela partitura física ensaiada, realizar livremente o que lhe foi pedido, enquanto a mente consciente, autobiográfica, concentra-se em relaxar. Para quem faz, a sensação é de profunda dissociação entre os sentidos de self central e self autobiográfico, mas paradoxalmente, para quem vê, de profunda organicidade e verdade cênicas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Carta aos flutuantes

Desnecessárias, inconvenientes... Mas também impacientes como um pedido

chulo de desculpas, uma culpa absolutamente introspectiva da consciência de fazer

parte de uma coisa terrível que segue seu curso inapropriadamente. Uma chata de

galochas, isso sim, essa vontade de escrever que não termina, não cessa, não pára no

pára-brisa do computador enquanto a brisa de possibilidades arrasta meu corpo sobre

as fendas da rua vazia. Um calendário de mulheres na minha oficina, um acidente na

pista que provoca, uma briga de vizinhos, uma impressão de inesperada visita do

destino na hora do jantar, como num conto de Woody Allen. Um inseto grotesco, de

pernas coloridas na hora do sexo, esticando meu olhar até o ponto de verter sobre as

costas a indefinida visão das coisas como são ao corpo. Uma sensação estranha

apodera-se dos ombros, em locais específicos de dor e tensão, pressão constante,

risadinhas no canto do ouvido, músculos involuntários em uma vontade de chorar

insistente(mente). De repente, se me viro pro lado, se me abandono estupefato,

cansado, soltando o corpo à deriva do pensamento, ao invés de cair no chão, assumo a

postura estranha de que não são minhas a voz ou as mãos batendo palmas, a vontade

de chorar sai da boca como palavras calmas e tudo parece então, fazer sentido. E a dor

torna-se calma porque sempre estarei seguro. E vejo as dores fulgurarem atrozes por

meio dos músculos como que buscando seus donos. E as palavras dançam como

gemidos e sons guturais, aspectos de sangue e dissecação de animal com uma pinça de

CSI... É preciso, apesar de tudo. Tô virado, baqueado, torto e exprimido entre mim e as

coisas que por mim fluem sem meu querer. O que fazer? Suponho que o melhor seja

assistir, de camarote, as coisas serem como querem ser... É a química de Deus que

toma seu leito corrente arrastando cidades inteiras. Este é meu domínio, este é meu

querer: araras coloridas sobre a cabeça, risadas de um corpo arqueado sobre as mãos

que batem palmas...

São Paulo, 12 de fevereiro de 2008.

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CONCLUSÕES

“A [dificuldade] mais importante, como sabem, é a circunstância anormal em que o ator efetua seu trabalho” STANISLÁVSKI, 1979: 307.

Pensar interpretação teatral como ciência tem sido um esforço de não

descaracterizar a atividade como fenômeno complexo e não transformá-la em um

manual de eletrodoméstico. Patrícia Churchland (1998) discute a possibilidade de se

relacionar fenômenos psicológicos a fenômenos bioneurológicos, no processo

conhecido por “redução interteórica”, o que permite a proposição de estudos cognitivos

para o trabalho do ator. Foi visto que o poético do corpo em cena está relacionado ao

processo de sobrevivência do organismo em seu meio, e mesmo que Grotowski, ou

antes, Stanislávski, não o tenham definido com essas palavras, previram que a

complexidade do fenômeno deveria respeitar as leis que regem o substrattum de onde se

origina: o orgânico. Assim, entende-se que o intérprete deva ser investigado, não pelas

características que lhe tornam diferentes dos outros corpos e objetos no estudo da cena,

mas também por aquilo que lhe coloca simétrico, em seu nível de complexidade, ao

meio em que se estende sua vida orgânica. Essa tensão entre simetria e assimetria,

estabilidade e instabilidade, oferece um caminho claro para que se entenda o trabalho do

ator, do performer, do artista cênico em geral, na difícil empreitada da arte

contemporânea, no crescente aumento de complexidades que representa.

Da mesma maneira que uma cadeira, o corpo humano está sujeito à ação de uma

série de forças da natureza, particularmente a gravidade, esse fluxo de informação

constante que nos coloca em simetria, em sintonia, com os demais corpos no ambiente.

À sua maneira, no entanto, o corpo humano reagirá à gravidade, assim como a outras

inúmeras forças e fluxos neste mesmo nível de descrição, e, no entanto, não deixará de

ser um corpo humano. A sua simetria com o meio deve ser identificada por aquilo que

lhe particulariza sua relação com a gravidade, ou seja: o modo pelo qual o corpo

humano reage a ela, vencendo-a para sustentar-se em pé - função que lhe coloca em

sintonia com outros processos da natureza de especialização das espécies.

Está na gravidade o princípio do impulso. O drama, por sua vez, nasce da tensão

com o ambiente, no inevitável processo de co-adaptação à vida daquele corpo humano.

O poético, ou aquilo que chamamos de orgânico em cena, não surge das ações

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(aristotélicas) humanas, são as próprias transformações nascidas da co-existência entre

meio e corpo. É o corpo como estado de escuta. O corpo não pode modificar um

ambiente, como queria Grotowski, sem que o ambiente também lhe modifique. Não

antes, nem depois, a co-transformação é a própria existência da dinâmica da vida cênica.

No mesmo sentido, o corpo não pode perceber o ambiente, sem antes pressupor que

ambos são a mesma coisa. A respiração pode diferenciar o corpo/cadeira do

corpo/homem, por ser um modo específico de reação dos humanos à presença da

gravidade, no qual o corpo humano concentra e produz a energia que vai movimentar os

músculos, nervos e sustentar os ossos, uns encaixados nos outros. Mas não diferencia o

corpo humano do corpo de um cachorro, pois ambos respiram. No entanto, ambos

respiram para satisfazerem necessidades fisiológicas diferentes, pois são corpos

diferentes. Assim, a diferenciação entre eles surge do modo como cada respiração é

realizada e o que cada uma delas produz em termos de dinâmica com o ambiente. E é

justamente isso, a diferenciação na respiracão, que pode vir a diferenciar os estados de

corpo entre os humanos.

Essa tensão está presente, não há como fugir dela. Entender esse fenômeno

através de uma idéia de estados pode significar uma superação da tensão enquanto

dualidade, e apontar uma saída metodológica para lidar com os diferentes vetores da

vida enquanto ambivalência. A ambivalência entre simetria e diferenciação, estabilidade

e instabilidade, requer considerar aparentes oposições como aspectos do mesmo

fenômeno, que no caso humano se definem por habilidades, qualidades, características,

intencionalidades (desenhos de projeto, segundo Dennett, inclusive para os sistemas não

vivos). Estes traços devem ser analisados tomando como parâmetros as diversas

influências que uns exercem sobre os outros, determinando distintas conexões entre os

sistemas gerando diferentes complexidades. Ou seja, o seu estado particular no tempo

apresenta o modo como a coexistência entre muitos opostos conseguiu emergir naquele

momento pelo modo com que tal sistema realiza conexões. Para o teatro, portanto, são

possíveis as investigações que tomam como ponto de partida o estado dos eventos

cênicos: comportamento dos mais diversos corpos em cena, nas suas diferentes

dinâmicas de co-habitação, partindo sempre das características que lhes tornam

simétricos ou assimétricos.

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A consciência e sua alteração foram trabalhadas por este prisma, no que diz

respeito ao trabalho do ator, o que permite rever outros aspectos de sua realidade

profissional e artística. Assim, talvez não seja arriscado afirmar, por mais medo que isso

implique, que é possível vislumbrar uma “Teoria dos Estados” para entender as relações

de complexidade entre os inúmeros níveis de encenação de uma obra teatral. Um modo

de ver as coisas da cena que se concentra nos processos cênicos a partir das

materialidades de seus objetos. Uma mesa tem mais estabilidade que um raio de luz,

mas o projeto de iluminação talvez possua maior estabilidade em relação ao cenário que

é feito somente a partir das ações do ator em cena. Essa idéia parece permitir verificar

os cruzamentos entre níveis muito distintos do ponto de vista da encenação aristotélica,

mas que, na encenação pelo environment, parecem co-habitar com maiores graus de

contaminação.

Ou talvez isso não signifique nada além de sombra diante das ‘coisas-como-de-

fato-são’, e isso tudo não passe de um gostoso exercício criativo. Que seja, então... As

conclusões desta pesquisa não se fecham, mas apontam... Afloraram da curiosidade, da

insistência e da molecagem... Concluir não é o bastante quando tantas coisas perturbam.

O melhor é saber que os estados mudam, por mais estáveis que pareçam. Assim, é

permitido dizer que a conclusão também não possa de um estado de ver as coisas...

O entendimento dos estados de consciência do ator na artemídia implicou na

inversão de foco de vários tópicos no meio do caminho. Tecnologia não é máquina ou

aparelho, e sim, processo. Imaginação é tecnologia como processo, porque a produção

de imagens se constitui pelas contrações de milhares de processos entre corpo e meio.

Assim, o meio se estende até se tornar corpo, e o corpo também se estende até se tornar

meio. Consciência é consciência de algo em processo, e é simultaneamente um processo

de constituição de consciência, processo esse que se estende em diversos níveis entre

estados/meio e estados/corpo. A alteração é sempre alteração em relação a algo, e esse

algo é o próprio funcionamento possível da natureza, criando consciências em

processos. Alteração de consciência é também alteração do entendimento de

consciência como processamento de dados, ou seja, da consciência como parte de uma

máquina tecnológica – propondo-a não como máquina e aparelho, mas em processos de

contração... Tecnologia como contração e extensão ao mesmo tempo. A criação artística

está envolvida nessa alternativa quando a artemídia significa subverter a funcionalidade

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das tecnologias. A alteração da consciência significa a subversão de processos habituais

adaptativos de consciência, que implica em imprimir consciências não funcionais.

“Altero, logo, insisto na vida”. Este é o sentido de presença a que se referem

Zumthor, Grotowski, Stanislávski, McLuhan, Cohen... Um sentido que se sustenta sobre

a ação enquanto auto-regulagem constante, de eferências ininterruptas, escuta como

tactilidade, vida como transporte, consciência como transmutação, arte como estado...

No momento em que as categorias antigas se esfacelam diante de novas

descobertas, colocam em risco as ontologias do objeto. De qualquer forma, para

Grotowski, para Barba e também para esta pesquisa, este dado parece ser inerente à

natureza do seu objeto, que é o trabalho do ator – já que a alteração é um estado natural

do corpo. Deste ponto de vista, a mudança de concepção do que é “orgânico” e do que é

“mental”, significa avanço metodológico para o conceito de ação física e também para o

conceito de transe no trabalho do ator, permitindo uma abordagem que traga

conhecimentos sobre o funcionamento desse orgânico, existentes hoje, 2008,

provocando uma alteração também no padrão de análise antropológica mais

habitualmente empregado nas investigações em teatro.

A ação se dá no acoplamento entre corpo e meio. Dá-se na conexão entre ambos,

e exige mudanças em ambos, corpo e meio. Destreza como um sentido de técnica que se

retro-alimenta com a percepção de si mesma enquanto processo de cognição. Um

pensamento que, em Stanislávski, e depois, mais radicalmente, em Grotowski,

significou um avanço no trabalho do ator (como processos criativos e também como

campo próprio de conhecimento). A percepção dos processos sob os quais está sujeita a

criatividade, exige, invariavelmente, tornar-se sujeito e objeto de si mesmo. Não é à toa

que Grotowski entende que o estar em cena é, antes de tudo, para o ator, um ato de

“autopenetração” e “doação”.

A técnica e a destreza não são meros instrumentais de domesticação da natureza,

e esta transcende ao imagem de um amontoado de minúsculos blocos esperando uma

ação externa. Ela, a natureza, possui intencionalidades próprias e os organismos são

emergências dessas estratégias de permanência. Para Grotowski a técnica determina a

leitura que se tem sobre a natureza. A estrutura de um instrumento define o caráter de

seus objetivos revelando suas intencionalidades e estratégias de permanência:

tecnologia como processo, e não como objeto e aparelho. A técnica não é um

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instrumento do corpo do ator, mas ambos são co-adaptações de uma mesma fisicalidade.

Assim como os technobuilders de Flusser, que são contrações de processos entre corpo

e meio: técnicas de representação que constituem a linguagem do imaginário, ou seja, as

intersubjetivações definem a cultura nos corpos que se co-adaptam. Isso é reforçado

pela leitura de tecnologia de McLuhan, abrindo conexão para se entender assim, os ritos

e mitos: contrações de processos entre corpo e meio. Mesmo que argumentem que não

se possa afirmar categoricamente que essa era a leitura de Grotowski, se acaso ele

compartilhasse da bibliografia aqui empregada, é possível inferir a existência de um

paralelismo forte entre esta pesquisa e sua leitura “pragmática” para ritos e processos de

transe.

A identificação aparece aqui como capacidade dessa categoria maravilhosa, e de

algumas coisas em uma categoria fuzzy, de se autopenetrar de acordo com as conexões

que estabelecem, já que a consciência significa não só essa mesma habilidade, mas

também a habilidade de reconhecê-la nos objetos do mundo. Corposintético é o

exemplo do corpo que se recusa a isso, ou que faz isso como uma simulação em curto-

circuito, sem destino no mundo, sem alteração de seus estados. Em processos

adaptativos, a antevisão visa sempre o meio ambiente e as conexões do corpo com o

entorno em função de sua necessidade não apenas de adequação, mas de sobrevivência.

O corposintético, conceito e metáfora ao mesmo tempo, visa a si mesmo como primeira

e última instância de suas criações, antevendo-se em um futuro maltratado por

gaveteiros e softwares piratas. Nem licenciados, nem livres, mas contrabandeados por

uma máfia da aceitação a qualquer custo. Provavelmente é na relação entre a memória

de curto prazo e a procedural (ver Sacks) que ocorre o corposintético. Quando o corpo

tenta acessar de modo voluntário informações que pertencem ao compartimento

inacessível, impedindo um funcionamento normal da antevisão. Todavia, para sustentar

tal afirmação, precisar-se-ia de exames laboratoriais e de muitas outras contribuições

teórico/práticas. Essa, de fato, é uma idéia para constituir todo um campo de pesquisa...

As imagens mentais das conexões entre corpo e meio, estudadas por Antônio

Damásio, fazem o funcionamento normal da mente. Um corpo que não cria imagens não

pode gerar uma mente com consciência de si mesma, com Self. A criação desse Self

depende da capacidade do corpo de contar sua própria história para si e para o mundo e

de fazer outras atividades em paralelo à organização glandular do corpo. A estabilidade

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vem desse funcionamento normal da mente, em seus processos de relação com o meio

na sobrevivência e co-adaptação.

Sob esse prisma, para entender o transe de Grotowski, estabilidade significa

conexões precisas entre corpo e meio, produzindo uma partitura psicofísica de

movimentos, de tal ordem estruturada no organismo, que a ação do ator em cena tende

sempre a uma reconstrução das mesmas redes neuronais. A interferência nessas redes

por informações como diferença de temperatura do ambiente, diferente textura do piso

do palco, pequenos movimentos da estrutura do cenário, distâncias mínimas de

recolocação dos objetos em cena e etc, são corrigidas pelo corpo enquanto

funcionamento orgânico de sobrevivência, e pode ser entendida como a vida poética da

cena – uma tensão natural da presentificação do corpo no espaço, algo que implica em

colorido, dinâmica de espontaneidade, sobrevivência particular de cada organismo no

meio.

O transe, assim, significa que a atenção consciente do ator não precisa estar

preocupada com esse processo, pois essas redes neuronais ocorrem em nível pré-

consciente. O sistema sensóriomotor estabilizou as ações do ator e as informações do

espetáculo em sensações precisamente recortadas e organizadas na forma de redes

neuronais específicas; as tonalidades e musicalidades das falas enquanto vibrações

sonoras no corpo; as distâncias percorridas pelo ator no espaço pela força exercida

contra o chão nos saltos, andares, volteios e etc; o tempo de duração dessas pressões

físicas, pelo tamanho da superfície de contato entre a mão e os objetos, a quantidade de

tempo que se mantém suspensa a respiração entre uma palavra e outra e a quantidade de

ar inspirado necessário para determinado movimento pela profundidade da respiração e

etc.

Quando em cena, o ator não “pensa com a cabeça” para realizar as ações, mas

com o corpo, e sob essa perspectiva ele dança, pois, como defendido por Helena Katz

(1994), “a dança é o pensamento do corpo”. O ator simplesmente percebe as ações pelo

fluxo constante de imagens derivadas das redes neuronais estáveis, ativadas pelas

conexões entre corpo e meio.

Dessa forma, podemos entender que a vida diária é dançada e repleta de ações

em transe. Caminhar, andar de bicicleta, comer, dirigir um automóvel, atender um

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telefonema, respirar, perceber o mundo, ter raciocínios criativos e etc – a vida diária é

em grande parte estável, porque só é possível criar ciência, arte e perceber essas

capacidades criativas e abstratas quando o corpo estabiliza comportamentos e

percepções do mundo. Mas todas essas ações da vida diária incluem também a

possiblidade de transe. Uma idéia nova, diante de uma experiência criativa, significa o

rompimento com os padrões perceptivos habituais, de modo que a estabilidade do

organismo é comprometida, o que pode resultar em enfermidades ou em muita alegria, e

paradoxalmente assim, a vida diária é alteração, pois temos idéias o tempo todo...

Se existe uma paridade entre a vida diária e a cena, por esta visão, é o processo

natural na qual ela se sustenta, e não sua aparente teatralidade do real. É preciso dizer

que o alterado se altera em relação às representações antecedentes, e não que ele se

altera em relação a um aparente modo de funcionamento regular e estanque da mente e

do corpo. Ou seja, esta constante reorganização, que é sempre alteração, é o próprio

estado de estabilidade do sistema. Aparenta estar alterado por deslocar a aparência do

centro de controle do campo da autobiografia para o campo dos impulsos do organismo

nas áreas mais profundas do sistema nervoso, ou da consciência primária, como

explicada em Damásio.

Talvez essas abordagens sirvam mais para que se abra espaços outros para a

emergência de pesquisas com mais sustância teórico/prática, dando conta de investigar

objetos cada vez mais complexos subvertendo diversas dualidades presentes nas práticas

e discursos artísticos. Certamente, como um ponto de luz que se inicia a brilhar numa

recente fenda aberta no cruzamento entre o tempo e o espaço, a sintetização do corpo,

como uma recusa contra a conexão transformadora entre o ‘eu’ e o ‘outro’, deixará de se

estabilizar na medida em que se navegue pelas avenidas principais das impressões e

proposições não-planejadas. Certamente, a repetição do ‘legitimar a intuição’, provoque

fissuras profundas nas margens estabilizadas do preconceito e permita com que a visão

se aclare conforme nosso corpo se conecta com o mundo, conscientemente, em uma

constante alteração de estados.

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VIVER Mente e cérebro. Anos I e II. Coleção completa. Ediouro Segmento-Duetto

Editorial Ltda., com conteúdo fornecido pela Gehirn&Geist, sob licença da

Scientific American Inc. 1. CD-ROM.

CD

COLLEGIUM Musicum de Minas – Música Antiga Colonial. A Origem. Belo

Horizonte: Sonhos e sons, 2000, 1 CD.

Vídeos:

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Mountain View, CA. Evento realizado em 24 de setembro de 2007, como parte do

Authors@Google Series. Disponível em <http://br.youtube.com/watch?v=hBpet

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PARALLEL Universes. Videoclipe. Escrito e produzido por Malcom Cark. BBC – TLC

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APÊNDICES APÊNDICE A - Vídeo Parâmetro Metodológico para o Ator

Sinopse: Cena da peça “O Gato e Uns Quebrados” com alunos do primeiro ano de graduação em teatro – curso de interpretação. Direção: Gustavo Garcia da Palma. Produção: Gustavo Garcia da Palma, alunos do primeiro ano de graduação em artes cênicas e Faculdades Barão de Mauá. Atores: Douglas Ricci, Fábio Alex e Gabriel Cavaletti. Cena do texto “Sintomas”, de Rui Filho. Ribeirão Preto: Faculdade Barão de Mauá, Departamento de Artes Cênicas, 2005. Videoclipe (7min. 13 seg.), son., color.

APÊNDICE B – Vídeo 1º Seqüência

Sinopse: Seqüência aplicada em oficina direcionada ao Projeto “Jogo Coreográfico”, de direção da Professora Lígia Tourinho. Direção: Gustavo Garcia da Palma. Produção: Gustavo Garcia da Palma e Lígia Tourinho. Atores: Ariane Cassimiro, Márcia Moreira, Carol Boa Nova, Pedro Rodrigues, Victor D´Olive, Juliana Endler, Natasha Motta, Rodrigo Fernandes, Jacqueline Barbosa, Helena Garritano, Jessyca Monteiro, Marina Pachecco. Rio de Janeiro, Departamento de Artes Corporais da UFRJ, 2007. Videoclipe (2 min. 51 seg.), son., color.

APÊNDICE C – Vídeo 2º e 3º Seqüências Sinopse: Seqüência aplicada em oficina direcionada ao Projeto “Jogo Coreográfico”, de direção da Professora Lígia Tourinho. Direção: Gustavo Garcia da Palma. Produção: Gustavo Garcia da Palma e Lígia Tourinho. Atores: Ariane Cassimiro, Márcia Moreira, Carol Boa Nova, Pedro Rodrigues, Victor D´Olive, Juliana Endler, Natasha Motta, Rodrigo Fernandes, Jacqueline Barbosa, Helena Garritano, Jessyca Monteiro, Marina Pachecco. Rio de Janeiro, Departamento de Artes Corporais da UFRJ, 2007. Videoclipe (3 min. 22 seg.), son., color.

APÊNDICE D – Vídeo Educativos

Sinopse: Seqüência aplicada em oficina direcionada ao Projeto “Jogo Coreográfico”, de direção da Professora Lígia Tourinho. Direção: Gustavo Garcia da Palma. Produção: Gustavo Garcia da Palma e Lígia Tourinho. Atores: Ariane Cassimiro, Márcia Moreira, Carol Boa Nova, Pedro Rodrigues, Victor D´Olive, Juliana Endler, Natasha Motta, Rodrigo Fernandes, Jacqueline Barbosa, Helena Garritano, Jessyca Monteiro, Marina Pachecco. Rio de Janeiro, Departamento de Artes Corporais da UFRJ, 2007. Videoclipe (3min. 22seg.), son., color.

APÊNDICE E – Vídeo Elementos Indígenas

Sinopse: Seqüência aplicada em oficina direcionada ao Projeto “Jogo Coreográfico”, de direção da Professora Lígia Tourinho. Direção: Gustavo Garcia da Palma. Produção: Gustavo Garcia da Palma e Lígia Tourinho. Atores: Ariane Cassimiro, Márcia Moreira, Carol Boa Nova, Pedro Rodrigues, Victor D´Olive, Juliana Endler, Natasha Motta, Rodrigo Fernandes, Jacqueline Barbosa, Helena Garritano, Jessyca Monteiro, Marina Pachecco e outros. Rio de Janeiro, Departamento de Artes Corporais da UFRJ, 2007. Videoclipe (2min. 24 seg.), son., color.

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ANEXOS Corposintético – Parâmetro Metodológico

Sinopse: Cenas de festas raves como metáfora metodológica para o corpo do ator. Estes vídeos foram retirados diretamente da Internet e apresentam-se na íntegra de modo a representar melhor o universo ao qual se referem. Cada vídeo reflete de uma maneira particular a idéia de Corposintético: as cores da decoração, o estilo de roupa, o comportamento geral e alguns casos interessantes de isolamento em relação ao ambiente.

Os vídeos não trazem uma boa definição de imagem e especificação a respeito de quem os montou ou dirigiu, já que, em sua maioria, são feitos com câmeras fotográficas de baixa resolução ou com câmeras de celulares e não possuem edição posterior. Em geral são postados na Internet em sites de relacionamentos, blogs e cumprem o objetivo de assegurar a recordação de determinado evento. Isso significa que não possuem uma intenção estética por trás da montagem, embora seus discursos sejam contaminados por informações subliminares.

Dados sobre os vídeos: ANEXO A – Caixa_@_Tribe_Maio_2006

Disponível em: <http://br.youtube.com/watch?v=Vw_ghmAnJTc> Postado por: <http://br.youtube.com/user/gustavocaixa> Acesso em: agosto de 2006.

ANEXO B – Entrando na Caixa de Som

Disponível em: <http://br.youtube.com/watch?v=DVRjGkEScOg> Postado por: <http://br.youtube.com/user/guibius> Acesso em: novembro de 2006.

ANEXO C – Frito!!! Acho q tava numa praia _rs_ Butterfly

Disponível em: <http://br.youtube.com/watch?v=e_5vZ19Wa9Q> Postado por: <http://br.youtube.com/user/chiquinhojapa> Acesso em: novembro de 2007.

ANEXO D – Toma Bala pra Ver

Disponível em: <http://br.youtube.com/watch?v=Jg1wgKRpuvU> Postado por: <http://br.youtube.com/watch?v=Jg1wgKRpuvU> Acesso em: fevereiro de 2008.

ANEXO E – Pelada Frita na Tribe

Disponível em: <http://br.youtube.com/watch?v=3FT5TppnAqA&feature=related> Postado por: <http://br.youtube.com/user/renansacana> Acesso em: fevereiro de 2008.

ANEXO F – Tribe pedreira – x-noise – maio 06

Disponível em: <http://br.youtube.com/watch?v=r-3WGqnbiow> Postado por: <http://br.youtube.com/user/juninhotrance> Acesso em: agosto de 2006.

ANEXO G – Wrecked Machines – Tribe 27 05 06

Disponível em: <http://br.youtube.com/watch?v=Re4zhUOV1gM> Postado por: <http://br.youtube.com/user/AndreVMM> Acesso em: agosto de 2006.

ANEXO H – Mulher Excitada na rave

Disponível em: <http://br.youtube.com/results?search_query=masturbando+na+rave&search_type=> Postado por: <http://br.youtube.com/community> Acesso em: novembro de 2007.