Estética e Teoria Da Melancolia

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    Kairos. Revista de Filosofia & Cincia 4: 105-116, 2012.Centro de Filosofia das Cincias da Universidade de Lisboa

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    Esttica e teoria da melancolia:

    o caso Jackson Pollock

    Nuno Carvalho(CFCUL)

    [email protected]

    Melancolia, isto : angstia, tristeza, dvida, hesitao, abatimento, prostrao,

    tdio, spleen, desespero, acedia, lucidez, doena, terror, inquietude, runa, naufrgio,

    medo, ansiedade, depresso, queda, impotncia, tortura, esgotamento, vergonha,

    sofrimento, decepo, desiluso, catstrofe, desencantamento, misria, esterilidade,

    mas tambm gnio, furor, ostentao, entusiasmo, mania, exaltao, paixo e

    arrebatamento.

    Quando o filsofo da melancolia, talvez a disposio da alma que mais

    elucubraes suscitou ao longo da histria do Ocidente, se debrua sobre os textosque os mais variadssimos autores lhe dedicaram, de Aristteles a Freud, passando por

    Robert Burton ou Kierkgaard, no pode deixar, tambm ele, de se deixar penetrar pela

    inclinao saturnina, ao deparar-se com a impossibilidade de lhe fixar um sentido, de

    a aprisionar numa essncia. O que no ser necessariamente negativo, pois segundo

    Jlia Kristeva, Escrever sobre a melancolia no teria sentido, para aqueles que dela

    sofrem, se a escrita no encontrasse a a sua origem .1.

    Esta instabilidade semntica conduziu os psiquiatras do sculo XIX a uma

    tentativa de eliminar a noo, invocando a sua inutilidade filosfica e clnica

    2

    . interessante notar, no entanto, que como contraponto diversidade de abordagens a

    que a disposio melanclica foi sujeita em textos filosficos, mdicos,

    historiogrficos e literrios e multiplicidade de sentidos que da adveio,

    encontramos uma tradio iconogrfica, isto , um conjunto de representaes

    pictricas da melancolia, relativamente fechada, privilegiando a alegoria e a

    1. crire sur la mlancolie naurait de sens, pour ceux que la mlancolie ravage, que si lcritvenait de la mlancolie., Jlia Kristeva, Soleil Noir Dpression et mlancolie, Paris, ditionsGallimard, 1987, p. 132Cf. Marie-Claude Lambotte, Esthtique de la mlancolie, Paris: Aubier, s/d, p. 27.

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    personificao como dispositivos de traduo visual do conceito, insistindo na figura

    clssica de olhar pensativo que apoia a cabea na mo e se afunda num insondvel

    abismo interior. A exposio Mlancolie: gnie et folie en Occident3, realizada nas

    Galeries Nationales du Grand Palais, em Paris, entre 10 de Outubro de 2005 e 16 deJaneiro de 2006, e comissariada por Jean Clair, consagrou institucionalmente este

    modo tradicional de representar a melancolia, ainda que a Drer, Cranach, La Tour,

    Corot, De Chirico e Ron Mueck, exemplos paradigmticos da vertente alegrica da

    melancolia, se tenham acrescentado paisagistas, oriundos sobretudo do romantismo

    alemo, e uma ou outra obra menos provvel luz daquela tendncia.

    O objecto da presente artigo decorre portanto deste paradoxo: a uma

    constelao textual de cariz plural e rizomtico, como a das teorias da melancolia,

    corresponde uma tradio pictrica inegavelmente rica e impressionante mas que, em

    nosso entender, ganharia fora ao abrir-se a dispositivos e prticas estticas que

    colocam em obra os topoida melancolia de uma forma menos evidente.

    Assim, pretendemos mostrar como a obra de um dos mais importantes pintores

    modernistas, Jackson Pollock, poder ser includa no corpuspictrico da melancolia,

    atravs de um comentrio sua obra que recolhe nalguns textos fundamentais sobre a

    disposio melanclica (Aristteles, Benjamin sobre a tradio medieval, Freud) os

    elementos que, justificando essa inscrio, iluminam simultaneamente prtica artista

    do pintor americano. Com este objectivo em mente, estudaremos a obra de Jackson

    Pollock por intermdio de um duplo confronto, a um tempo crtico e clnico4. Por um

    lado momento crtico , com o que consideramos ser a esttica da melancolia

    dominante, tal como a tradio a consagrou e como a exposio mencionada acima

    confirma, onde se privilegia a representao, a alegoria e organizao harmoniosa das

    formas artsticas como via de sublimao do melanclico. Por outro lado momento

    clnico , com o modo como esta tradio privilegia o lado nocturno e depressivo da

    melancolia. Com base na releitura de algumas teorias da melancolia e da anlise da

    prtica artstica de Pollock, defenderemos ento uma concepo de melancolia como

    arrebatamento, entusiasmo, devir, e que se actualizar numa poiesis artstica querecusa a simples representao ou alegorizao pictrica do conceito.

    *

    3Recomendamos o cotejo atento com o catlogo da exposio, Jean Clair (dir.), Mlancolie Gnie et Folie en Occident, Paris: Runion des muses nationaux/Gallimard, 2005.4 Aludimos evidentemente ao derradeiro conjunto de textos de Deleuze sobre a literatura,Critique et Clinique, Paris: Les ditions de Minuit, 1993.

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    Jackson Pollock (1912-1956) habitualmente considerado um dos pintores

    mais importantes do sculo XX e aquele que operou a substituio de Paris por Nova

    Iorque como centro artstico dominante na rea das artes plsticas. A sua imagem de

    rebelde sem causa, forjada no mesmo molde das figuras que o star-system de

    Hollywood consagrou nos anos 50, como James Dean ou Marlon Brando,

    rapidamente o catapultaram para as capas de revista e o tornaram famoso a nvel

    mundial. So frequentes os clichs biogrficos e mediatizados que giram em torno de

    Pollock: bbado, mentalmente desequilibrado, egocntrico, em suma, o esteretipo

    sem mcula do artista maldito, que a trgica morte num acidente de carro no fez se

    no reforar. Ora, ao abordarmos a sua obra luz das teorias da melancolia teremos

    de escapar tendncia romntica de encontrar na obra o reflexo directo da vida, de

    equacionar sem mediao um temperamento melanclico e uma obra

    melanclica. Cremos, por conseguinte, que a relao entre Pollock e a melancolia mais funda, radicando mais nos processos, dispositivos e resultados da sua criao

    artstica do que nos traos da sua personalidade.

    O percurso artstico de Jackson Pollock denota uma diversidade que as suas

    obras mais conhecidas e tardias, obtidas por intermdio do dripping, tcnica em que a

    tinta lanada directamente sobre a superfcie da tela, fazem obnubilar. At cerca de

    meados dos anos 40 as suas telas apresentam ainda um pendor figurativo, onde

    ressaltam as influncias dos muralistas mexicanos, do seu mestre Thomas Hard

    Benton, de Orozco e de Picasso, a par de uma abordagem temtica impregnada de umprimitivismo de teor marcadamente sexual, que no est longe de uma ateno aos

    mecanismos do inconsciente que caracterizaram o movimento surrealista. No

    errado, alis, interpretar esta fase da sua obra recorrendo ao aparelho terico da

    psicanlise, pois foi inteno expressa do pintor explorar pictoricamente o

    inconsciente, como demonstram as obrasWoman(1930-33) ouNaked Man with Knife

    (1938-41) e como confirmam os crculos sociais em que se movimentava, a

    conflituosa relao com a me, os textos que lia, ou o facto de, ao longo da sua vida,

    ter recorrido a terapias com psicanalistas prximos ou discpulos de Jung5

    .Por volta de 1947, no entanto, ocorre uma mudana de paradigma, no s no

    contedo temtico das suas telas como no modo de as conceber, e a partir daqui que

    entra em jogo a questo melanclica. A utilizao da tcnica do dripping, at a

    espordica, torna-se o eixo central da sua prtica artstica, assim como do all over,

    onde o artista abandona a pintura de cavalete e, com a tela no cho, circula por todos

    5Para uma abordagem rigorosa da vida de Jackson Pollock, a par de uma interpretao da suaobra enquadrada no registo disciplinar da histria de arte, cf. Hellen Landau, Jackson Pollock,London: Thames and Hudson, 1989.

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    os seus lados, atirando literalmente a tinta e abandonando o pincel. Nas palavras do

    prprio artista:

    No cho estou mais vontade. Sinto-me mais prximo do quadro, mais uma parte

    dele, uma vez que assim posso andar vontade sua volta, trabalhar a partir dos quatrolados e literalmente estar [be in] no quadro.6

    O clebre video de Hans Namuth, bem como as fotografias de Rudolph

    Burckardt e Arnold Newman, permitem-nos aceder directamente ao processo de

    criao artstica do pintor americano. Deparamo-nos nestes documentos com um

    corpo em transe que devm campo de foras, atravessado por correntes, tenses e

    intensidades: corpo arrebatado, corpo em devir, que gostaramos de aproximar do

    corpo melanclico tal como toda uma tradio o conceptualizou.

    A distino entre uma melancolia de vocao ensimesmada, inclinada para otorpor e a acdia, e uma melancolia de cariz impulsivo e exaltado, encontra-se j

    presente no texto que inaugura a reflexo ocidental sobre o humor saturnino, os

    Problemata XXX de Aristteles, e constituir uma invariante nas teorias da

    melancolia, como comprova, por exemplo, a utilizao pela psiquiatria moderna do

    termo doena manaco-depressiva ou bipolar. Em Aristteles, a reflexo sobre a

    melancolia apoia-se na teoria dos humores, sendo a blis negra a origem da

    melancolia e a sua temperatura o factor que desencadear o abatimento ou a

    exaltao. Repare-se tambm que o excessode blis negra, isto , a sua abundncia,que est na origem da desordem:

    aqueles em que esta mistura abundante e fria so refns do torpor e doembrutecimento; aqueles que a tm abundante e quente so ameaados de loucura(manikoi) e talentosos por natureza, inclinados ao amor, facilmente levados pelasimpulses e os desejos ()7

    Importa notar que a vertente manaca e excessiva da melancolia foi raramente

    explorada ao longo da histria da pintura, que privilegiou sempre a sua verso suave e

    introspectiva, de Drer a Johan Peter Hasenclever, passando pela magnfica LaMadeleine la veilleuse(1640-1645) de Georges de La Tour a quem Pascal Quignard

    6On the floor I am more at ease. I feel nearer, more part of the painting, since this way I canwalk around it, work from the four sides and literally be in the painting in Landau, op. cit.,p.168.7 ceux chez qui ce mlange se trouve abondant et froid, sont en proie la torpeur etlhbtude ; ceux qui lont trop abondant et chaud, sont mnacs de folie (manikoi) et douspar nature, enclins lamour, facilment ports aux impulsions et aux dsirs () inAristteles, Lhomme de gnie et la mlancolie - Problme XXX, 1 (trad. Jackie Pigeaud),Paris : ditions Rivage, p. 95.

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    dedicou um livro admirvel8. Na exposio referida acima, o conjunto de obras

    escolhido demonstra bem esta tendncia, atenuada apenas pelo facto de na seco

    Paisagem como estado de alma se inclurem representaes da erupo de vulces

    ou de naufrgios, e de se referenciar a distino estabelecida pelo paisagista francs

    do sculo XVII, Pierre Henri de Valenciennes, entre o sentimento da melancolia

    furiosa, vivida perante o espectculo de um naufrgio num mar agitado, e a

    melancolia doce, sentida perante uma paisagem nocturna iluminada por uma lua

    solitria9.

    Enriquecer este corpus da melancolia pela introduo da obra de Jackson

    Pollock significa fazer justia a uma concepo da melancolia como entusiasmo,

    excesso e energeia, contrapondo, e citando apenas exemplos modernistas, s

    introspectivas figuras espectrais de um Edward Hopper em Uma mulher ao sol(1961)

    ou inquietante estranheza (unheimlich) daMelancolia(1912) de Giorgio de Chirico,a fora vitalista que se desprende das telas abstractas do pintor americano e,

    sobretudo, do seu processo de criao artstica, onde o artista dana volta da tela,

    investindo e implicando muscularmente o seu corpo na obra, numa tcnica que poder

    ser aproximada do stream of consciousness to valorizado pelo modernismo

    literrio e que procurou jogar com uma razo outra, uma razo excessiva e em devir, e

    que Roland Barthes sintetizou com rara felicidade: o meu corpo no tem as mesmas

    ideias do que eu10.

    Sigmund Freud, no seu ensaio seminal Luto e Melancolia, recuperando umaintuio j presente nos Problemata aristotlicos, compara este lado solar da

    melancolia com aquele que provocado pela ingesto de vinho, sublinhando que os

    estados de alegria, jbilo e triunfo que assim se manifestam evidenciam a superao

    pelo manaco do impasse melanclico em que se encontrava, dominando-o, ainda que

    continuando sem saber exactamente aquilo perante o qual triunfou11. O corpo-que-

    pinta de Jackson Pollock, semelhana do corpo-que-bebe de Aristteles e de Freud

    opera portanto atravs de mecanismos de descarga e dispndio fsico e psquico.

    Todavia, e ao contrrio do que, hipoteticamente, pensaria o fundador da psicanlise apropsito do pintor americano, no cremos que a sua prtica artstica seja redutvel a

    8Pascal Quignard, Georges de la Tour, Paris : Galile, 2005.9 Cf. Vincent Pomarde, La volupt de la mlancolie (Snancour)-Le paysage comme tatdme in Jean Clair, op. cit., p. 322.10mon corps na pas les mmes ides que moi, Roland Barthes, uvres Compltes, tome II,LePlaisir du Texte, Paris : ditions Seuil, 1994, p. 1514.11Cf. Sigmund Freud, Trauer und Melancholie (trad. francesa de Laplanche e Pontalis), inMtapsychologie, Paris : ditions Gallimard, 1968, p. 163. , alis, nesta ausncia deconfigurao do objecto que provoca o mal-estar, que se encontra a grande ciso entre osestados de luto e melancolia.

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    um processo de sublimao, mas antes ao triunfo de uma vontade criadora e artista,

    tal como a concebe a esttica de Nietzsche12.

    Em Esthtique de la Mlancolie, Marie-Claude Lambotte tenta tambm fundar

    uma esttica da melancolia numa arte da compensao e da sublimao: omelanclico, atravs da criao artstica, apaziguaria a violncia dos sentimentos

    contraditrios, controlando as tenses e instaurando uma melodia dos

    acontecimentos13. A esttica lambottiana movimenta-se assim no campo do belo, da

    ordem e da harmonia: a sua funo domar a dor14, recorrendo para esse fim a

    uma estratgia de defesa e vigilncia do acontecimento, a uma arte da representao

    que organiza picturalmente as disposies passionais. O esteta procederia, de acordo

    com esta concepo, por distanciamento face ao acontecimento, reorganizando-o e

    equilibrando-o de forma a evitar o afrontamento das paixes, arte da composio

    onde o belo residir primacialmente na forma.

    Ora, a vontade criadora e artista de Jackson Pollock parece-nos situar-se nos

    antpodas da teorizada por Marie-Claude Lambotte. A principal diferena reside no

    facto da representao, isto , da colocao distncia do sentimento melanclico,

    dar lugar, no artista americano, a um processo artstico que tem por base um furioso e

    fabuloso devir. Opera-se assim o afastamento de uma concepo da arte como

    aesthesis, isto , como apreenso sensvel pelo espectador de um objecto belo, em

    direco de uma concepo de arte comopoiesis,onde o que valorizado o acto de

    criao. A obra s existe em acto ou, nas palavras de Mikel Dufrenne, a execuo

    do poema que o poema15.

    Em Pollock, por conseguinte, a melancolia no objecto de uma representao

    alegrica, mas de uma performatizao que a inscreve no corao da experincia

    criativa. A poiesis no se ope aesthesis apenas na inverso das categorias de

    sujeito e objecto aquando da teorizao da obra de arte. Por outro lado, no dever ser

    tambm confundida com um simples fazer ou agir, uma praxis. Apoiesis dever ser

    compreendida como produo de presena, como advento de qualquer coisa do no-

    ser ao ser, num processo que, ao trazer luz o que previamente estava ocultado,implica um artista interessado como contraponto ao espectador desinteressado

    previsto pela esttica kantiana , e que v na sua obra uma promessa de felicidade

    12 Sobre as vises divergentes do processo de criao artstica em Nietzsche e Freud veja-seGilles Deleuze,Nietzsche et la Philosophie, Paris: Presses Universitaires de France, p. 131.13mlodie des venements in Marie-Claude Lambotte, Esthtique de la mlancolie,Paris :Aubier, s/d, p. 154.14dompter la douleur, in Lambotte, op. cit., p. 152.15 Mikel Dufrenne, Lesthtique de Paul Valery in Sens et Existence Hommage PaulRicoeur, Paris : ditions du Seuil, s/d, p.38.

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    (Stendhal)16. O furor melancholicus de Pollock no a simples ilustrao da

    melancolia num objecto artstico, mas a instaurao de um estado de alegria, jbilo e

    triunfo. As entrevistas concedidas pelo artista americano, acossado frequentemente

    por crises de depresso, confirmam esta interpretao, quando por exemplo define a

    criao artstica como o espao-tempo privilegiados onde as coisas exteriores

    deixam de ter importncia17.

    O modo como Pollock preteriu no seu trabalho a aesthesisem favor dapoiesis,

    e, correlativamente, como preferiu o devir contra a mimesis, recebeu na histria de

    arte o nome de action painting. Caracterizam-no as tcnicas do dripping e do all over

    mencionadas acima, bem como um estado de agitao frentica leia-se, melanclica

    que configura uma quase-dana de matriz dionisaca18. A transformao radical do

    acto de pintar que a action paintingconsubstancia inegavelmente modernista no seu

    desejo de novo e na sua prtica de reinveno formal. No se trata, no entanto, de umformalismo vazio associado a uma arte sem contedo, acusao a que por vezes o

    modernismo sujeito. Ouamos o artista americano:

    A tcnica o produto de uma necessidade-novas necessidades exigem novas tcnicas-controlo total negaodo acidente-Estados de ordem-Intensidade orgnica-

    energia e movimentotornados visveis-memrias presas no espao,necessidades humanas e motivos-aceitao.19

    A introduo de maneiras de pintar outras, em confronto com a tradio da

    pintura de cavalete, procede de imperiosas necessidades de vida. o esprito de

    16Cf. Giorgio Agamben,Lhomme sans contenu(trad. franc. Carole Walter), Paris: Circ, p. 8,onde o autor italiano analisa a oposio Kant/Stendhal que Nietzsche estabelece. Este livroconstituiu um dos mais belos elogios dapoiesisque nos foi dado conhecer.17I have to get into the painting to relax, outside things dont matter, Hellen Landau, op.cit., p. 182.18 Sobre os aspectos dionisacos da melancolia veja-se, por exemplo, Pietro Citati, A Luz daNoite OsGrandes Mitos da Histria do Mundo(trad. port. Regina Louro), Lisboa: EditorialPresena, 2000, p. 46 e ss.19 Technic is the result of a need-/ new needs demand new technics-/total control denialof/the accident-/States of order-/organic intensity-/energy and motion/made visible-/memoriesarrested in space,/human needs and motives-/acceptance-. inH. Landau, op.cit., p. 182.

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    Rimbaud20 que Pollock persegue, ao estabelecer uma correspondncia entre

    possibilidades de arte e possibilidades de vida: contra o credo modernista da arte

    pela arte, Pollock v na pintura, antes de mais, a capacidade de libertar a vida das

    foras que a aprisionam.Esta nova tcnica, a action painting, tambm indissocivel da instaurao de

    uma nova forma de temporalidade no acto de pintar. E tambm aqui se pode esboar

    uma articulao com as teorias da melancolia pois a relao do melanclico com o

    tempo foi um dos topoimais explorados pelos filsofos ao longo dos sculos.

    Walter Benjamin, por exemplo, no seu importante ensaio sobre o

    Trauerspiel21, recupera as teorias da melancolia medievais para analisar o prncipe,

    personagem do drama barroco alemo e paradigma do homem melanclico, o homem

    de excepo de que falava Aristteles22. Atravessado pela acedia, a indolncia ou

    preguia que constitui um dos sete pecados capitais, o prncipe sofre a influncia da

    lentido da rbita de Saturno e da sua tnue luz, que origina comportamentos

    apticos, indecisos, lentos. Perante um poder ilimitado, o prncipe sofre a angstia da

    escolha, das possibilidades em aberto, da inevitabilidade sempre adiada da deciso, e

    inscreve-se numa histria entendida como catstrofe, como jogo de luto.

    Para Susan Sontag, comentadora de Benjamin, tambm a lentido, enquanto

    modalidade de relao com o tempo, um trao do temperamento saturnino,

    consequncia da desorientao face a um complexo de mltiplas possibilidades como

    na deambulao errtica do flanur pela cidade: espao de posies, interseces,

    passagens, curvas, voltas em U, becos sem sadas23. Sontag defende que no espao

    pode-se ser outra pessoa, enquanto que o tempo instrumento de coaco, de

    imposio, onde se apenas aquilo que se : o que sempre se foi24. Assim, o

    20Comenta Agamben a propsito de Rimbaud: un pote () avait demand la posie non deproduire des belles uvre ou de rpondre un idal esthtique, mais de changer la vie et derouvrir lhomme les portes de l den, in op. cit., p. 14.21 Walter Benjamin, Ursprung des deutschen Trauerspiels, (trad. ing. John Osborne), TheOrigin ofGerman Tragic Drama, London/New York: Verso, 1992.22 Repare-se, a este propsito, na recorrncia com que o melanclico caracterizado comohomem de excepo. Aristteles: Pour quelle raison tous ceux qui ont t des hommesdexception, en ce qui regarde la philosophie, la science de l Etat, la posie ou les arts, sont-ils manifestement mlancoliques, et certains au point mme dtre saisis par des maux dont labile noire est lorigine, comme ce que racontent, parmi les rcits concernant les hros, ceux quisont consacrs Hracles? (op. cit, p. 83). E, para Benjamin, a melancolia seldom imprintshis marks on ordinary caracthers and ordinary destinies, but on men who are different fromothers, who are divine or bestial, happy or bowed down under the profundest misery (op.cit, p.151).23Susan Sontag, Sob o signo de Saturno in Rua de Sentido nico e Infncia em Berlim porvolta de1900(Walter Benjamin), Lisboa: Relgio dgua, 1992, p.15.24Idem, p. 14.

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    melanclico espacializaria o mundo por intermdio de um trabalho de memria, numa

    tentativa incessante de anular o tempo, encenao do passado que converteria o fluxo

    dos acontecimentos em quadros imveis e atemporais25.

    O tempo da melancolia parece ser, neste sentido, um tempo de introspeco e

    meditao, um jogo de demoras e desvios, e a iconografia que representa o conceito

    indicia isso mesmo, ao privilegiar as figuras de queixo apoiado na mo e olhar

    pensativo como em Drer ou De La Tour. No entanto, esta concepo esquece, uma

    vez mais, a face de Janus da melancolia, o seu lado exaltado e manaco, onde o tempo

    tempo de frenesim e ansiedade, de precipitao e velocidade, tempo dionisaco

    onde, segundo Pietro Citati, com terrvel rapidez, numa espcie de xtase lrico, o

    melanclico reage a todas as impresses e sensaes; da sua imaginao brotam

    fantasias sedutoras e coloridas, sonhos, alucinaes26.

    Este tempo um tempo fora do tempo cronolgico, um tempo como devir quea expresso criada para descrever a pintura de Pollock parece querer subsumir: action

    painting. O dripping, atente-se ao gerndio, no seno o modo que o artista

    americano inventou para evitar estar sempre a colocar mais tinta no pincel, o que

    interrompia o fluxo criador, o modo como o corpo ou a inteligncia que nele resiste

    organizao consciente se deixava levar pelo furor melanclico. O tempo que

    Pollock coloca em obra na action painting rompe com a continuidade passado-

    presente-futuro, funo de demarcao de homogeneidades e elemento constituinte de

    uma subjectividade totalizadora, e adere a uma concepo de tempo como devir, semprincpio nem fim, onde as potencialidades de expresso deixam de estar limitadas s

    regras da mimesis expresso que aqui no significa apenas a imitao, mas a

    correspondncia natural entre uma operao dapoiesise uma afeco da aesthesis, ou

    entre uma forma de contedo e uma forma de expresso27. A haver uma crtica

    exposio organizada por Jean Clair, inegavelmente rica e repleta de obras-primas,

    precisamente esta: ter privilegiado no cnone ocidental obras provenientes do regime

    representativo das artes, em detrimento do regime esttico. Ficaram assim de fora

    obras como as de Pollock, obras que no restringem as potencialidades de expressos estriagens normativas da representao e da mimesis, obras trabalhadas por uma

    inteligncia outra, uma inteligncia do corpo que no exceder da conscincia se

    25Idem, p.13.26Pietro Citati, op. cit., p. 46.27 desta forma que Jacques Rancire caracteriza, como alternativa dicotomia entre omoderno e o ps-moderno, o regime representativo das artes, que precedeu mas no deixa decoexistir com o actual regime esttico. Estes termos recebem no filsofo francs conotaesmuito precisas pelo que indispensvel a consulta, por exemplo, e a ttulo introdutrio, doconjunto das suas entrevistas recentemente vindas a lume, Et tant pis pour les gensfatigus.Entretiens, Paris: ditions Amsterdam, 2009, sobretudo pgs. 505 e 518.

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    manifesta por ecloso sbita, brilhos insuspeitos e percursos vertiginosos que deixam

    na tela os rastos de um corpo tomado por um fabuloso e melanclico devir.

    Para Pietro Citati, quando o melanclico tomado pelo furor um artista,

    projecta o seu eu para fora de si, transformando as energias brias e narcsicasnum magnfico universo objectivo28. Como resultado da poiesis da melancolia que

    Pollock leva a cabo, as suas telas configuram-se como espaos intensos, lisos29,

    possibilidade de irradiaes e cintilaes de luz e sentido. Em Blue Poles: Number

    Two (1952), por exemplo, a profuso de cores combina-se com manchas e linhas

    espontneas parecendo indiciar, no equilbrio formal conferido por hbeis

    contrapontos rtmicos, o poder de uma razo e lucidez outras, qualidades que as

    teorias da melancolia no deixaram de sublinhar30.

    Repare-se que no ritmo oferecido pela obra que o complexo melanclico

    encontra a sua resoluo, onde arte e vida vo finalmente coincidir. Se, como na

    expresso aforstica de Baudelaire, outro grande melanclico, a Arte longa e o

    Tempo curto31, porque a obra de arte concentra em si a precipitao do tempo,

    interrompendo a sua sucesso inelutvel. Trata-se de um processo de espacializao

    do tempo, de converso do fluxo dos acontecimentos em quadros, atitude que para

    Susan Sontag caracteriza aqueles que vivem sob a rbita de Saturno. Espacializao

    que nas telas do pintor americano no corresponde a uma simples petrificao veja-

    se ainda Number 29 (1950) ou essa maravilhosa Darstellung da melancolia que

    constituiNumber 8(1949) , mas inveno de um ritmo que, consequncia directa

    do processo de criao artstica, do modo como a vida foi investida pelo corpo criador

    action painting, deixa de ser apenas estrutura ou forma para se tornar subtraco

    ao desenrolar linear do tempo, fuga incessante dos instantes, passagem, devir,

    presena do atemporal no tempo.

    Deste modo, s necessidades da vida exigncia de sentido, real rebelde

    significao, efemeridade do tempo, abatimento sem causa aparente o corpo

    melanclico de Jackson Pollock responde com um fabuloso devir que renuncia ao

    imprio da mimesis e distncia caracterstica da representao, para instaurar, naprpria estrutura da obra de arte, mas sobretudo no movimento poitico que a

    conduziu luz, um ritmo nico que rene a arte e a vida, o corpo e a obra.

    28Pietro Citati, op. cit., p.46.29Para um comentrio s telas de Pollock enquanto espaos lisos, Cf. Deleuze et Gauttari,MillePlateaux Capitalisme et Schizophrnie 2, Paris: Les ditions de Minuit, 1980, p. 624, nota 35.30 Veja-se por exemplo Christine Buci-Glucksmann, La Raison Barroque, Paris : ditionsGalile, 1984.31lArt est long et le Temps est court, Baudelaire apud Agns Verlet, Le Spleen, une vanitprofane in Le Magazine Littraire (hors-srie), Les crivains et la mlancolie : mal de vivre,spleen et dpression dHomre Philip Roth, p. 67.

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    Esttica e teoria da melancolia: o caso Jackson Pollock

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    Ao enquadrarmos e emoldurarmos sempre isso que faz a teoria,

    parergonalizar a obra, como nos ensinou Derrida em La Vrit en Peinture32 o

    trabalho de Jackson Pollock luz das teorias da melancolia ensaimos uma hipteseque visa um duplo efeito.

    Por um lado, recuperar um corpus terico diversificado e com uma

    persistncia assinalvel na histria da cultura ocidental, usando-o como caixa de

    ferramentas para dar conta da reinveno do acto de pintar que Pollock levou a cabo

    em meados do sculo XX, mostrando desta forma um dos possveis files tericos a

    partir dos quais a sua obra pode ser abordada. Por outro, evidenciar a pertinncia de

    inscrever as telas abstractas de Pollock no que designmos por tradio pictrica da

    melancolia. De facto, foi ao apercebermo-nos que determinados dispositivospoder/saber33 esse o verdadeiro significado da exposio organizada por Jean

    Clair se centram quase exclusivamente numa traduo visual do conceito de

    melancolia que privilegia a representao e a alegoria, e que enfatizam o seu lado

    nocturno, que provocou o desejo de abrir esta tradio pintura de Jackson Pollock.

    Tratou-se, por outras palavras, de construir um espao onde inscrever o desejo contra

    o exemplo da instituio, de esboar um devir contra a mimesis.

    Em sntese, esta trajectria justifica-se, em primeiro lugar, quando

    descobrimos na action paintingo entusiasmo e o arrebatamento do corpo melanclicotal como toda uma tradio o conceptualizou. Em segundo lugar, no modo original

    como a se coloca em obra a melancolia, no atravs da representao mas de um

    movimento poitico irredutvel a um qualquer mecanismo sublimatrio. Por fim, e

    tendo em considerao a relao do melanclico com o tempo, tal como proposta

    em diversas teorias da melancolia, pela forma como Pollock encontra uma nova

    modalidade temporal de relao entre o corpo a obra de arte: um tempo como devir.

    Em jeito de concluso, no poderemos deixar de notar, a ttulo de hiptese

    para um trabalho futuro, que as telas abstractas a que conduz o devir da melancolia

    em Jackson Pollock evocam, na sua ausncia de significados e referentes evidentes, a

    angstia tpica do melanclico, a ausncia de sentido quer da sua configurao

    psquica quer do mundo que o envolve. Perante as telas de Pollock estaramos assim,

    tal como o melanclico descrito por Jlia Kristeva, face a um real rebelde

    significao34, um abismo despojado de certezas e evidncias. S que aqui o abismo

    transfigurou-se por intermdio da arte em cor e ritmo, e rapidamente nos promete

    32Cf. Jacques Derrida,La Verit en Peinture, Paris : Flammarion, 1978, pp. 44-95.33Aludimos como bvio expresso de Michel Foucault34Jlia Kristeva, Soleil Noir Dpression et Mlancolie, Paris: ditions Gallimard, 1987, p. 22.

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    tambm o brilho e a fulgurao da vida, essa alegria irredutvel e meridional por onde

    facilmente imaginamos o passeio de Deuses radiantes e toscanos, de volta antes do

    orvalho ser vertido35.

    35Ezra Pound, Os Cantos(trad. port. Jos Lino Grnewald), Lisboa: Assrio e Alvim, 2005, p.27.