Estilo e Verdade Resenha

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Resenha do livro Estilo e Verdade

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  • Resenha

    IANNINI, Gilson. Estilo e verdade em Jacques

    Lacan. Belo Horizonte: Ed. Autntica, 2012; pp.

    376.

    Rbson H. A. Batista (UFRN)

    Em Estilo e verdade em Jacques Lacan, mais novo ttulo de Gilson

    Iannini, nos deparamos com uma escrita de ritmo compassado,

    onde as consideraes tericas se sobrepem sem demasiada aridez,

    como se construsse pacientemente um monumento conceitual

    discursivo onde j se sabe de antemo o lugar de cada pea salvo os desvios que no obstante tambm parecem planejados, seguindo

    o jogo da habilidosa retrica do autor. Estranho falar do que

    prprio do estilo lacaniano quando quem fala no livro, por sua vez,

    mesmo, digamos, to prosaico, envolvente, e, at mesmo,

    didtico. Embora no seja dispensvel algum conhecimento prvio

    sobre os fundamentos da psicanlise, tanto em sua verso freudiana

    quanto em seus desdobramentos sob a alcunha de psicanlise

    lacaniana, assim como sobre o campo epistemolgico no qual se

    insere (ou funda), o texto de nosso autor faz o leitor imergir

    gradativamente numa trama conceitual complexa, cheia de

    sutilezas, sem que este se sinta barrado pela conhecida estranheza

    do vulgo lacans ou mesmo pelo hermetismo do campo conceitual da filosofia, sobretudo da filosofia contempornea.

    Trata-se nitidamente de um trabalho acadmico, tanto em

    suas virtudes quanto em seus vcios. Quando elencados os

    problemas aos quais pretende resolver com sua pesquisa, nos parece

    de uma ambio tamanha que s se d por razovel ao nos

    deixarmos seduzir pela confiana, calma e segurana transmitidas

    pelo seu estilo.

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  • Robson Batista

    Estilo e verdade um livro oriundo da pesquisa e tese

    doutoral de Iannini. Publicado em 2012 pela editora Autntica,

    presenteia o pblico interessado tanto nas questes dos

    desdobramentos do discurso psicanaltico lacaniano quanto na

    verdade, questo to central como tradicional na filosofia, como

    tambm os pontos de tenso, convergncias e divergncias com

    autores de grande influncia no cenrio de pensamento

    contemporneo.

    Debruando-se na prpria equivocidade do significado,

    enaltecendo a dimenso ontolgica do significante, Gilson Iannini

    examina minuciosamente a tese lacaniana da discordncia entre

    saber e verdade, e apresenta em toda sua integridade, fio por fio, a

    crtica metalinguagem, examina problemas que tomados em

    conjunto nos pareceriam ultrapassar a pretenso de qualquer

    volume, por exemplo, o problema das relaes entre cincia e

    psicanlise com todas suas repercusses no cenrio epistemolgico,

    analisa ainda, e principalmente, o estilo de Lacan como um esforo

    de formalizar, na escrita da psicanlise, os impasses de uma verdade

    que no se diz por inteiro.

    Ao abrir o seu texto com a afirmao de que o inconsciente freudiano um acontecimento para o pensamento, e que este acontecimento concerne no apenas ao estatuto do sujeito e

    histria do desejo, mas tambm natureza e aos contornos da

    verdade (p. 14), Iannini nos revela o teor das conjecturas que nos so apresentadas por seu livro. Empreende primeiramente uma

    breve reviso do estatuto epistemolgico do discurso freudiano ante

    a racionalidade moderna, apontando o imprescindvel lugar que a

    prxis clnica possui na elaborao terica da psicanlise, assim

    como a indissociabilidade entre teoria, tcnica e mtodo. A

    observao clnica um dos elementos que faz com que a doutrina

    do inconsciente se afaste de seus predecessores filosficos, mas no

    o suficiente para fazer dela uma legtima cincia positiva, impasse

    que se consubstancia com a natureza dos conceitos denominados

    metapsicolgicos.

    Todavia, apesar da prudncia epistemolgica adotada por

    Freud, este continuou focado, tal como o cientista em sua pesquisa,

    em elaborar sua teoria sem se ater em demasia aos problemas e

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  • Resenha

    tradies de pesquisa de outras reas de conhecimento. Nosso autor

    parece querer dizer que somente com Jacques Lacan veio se

    considerar detidamente aquilo que este chamou de razo desde Freud (p. 14).

    Depara-se, entretanto, com a questo do estatuto da verdade

    e de suas relaes como o saber; empreende uma partilha entre

    saber e verdade: o saldo dessa partilha dividido pela cincia, incapaz de economizar os impasses da formalizao, e pelo estilo,

    como estratgia de formalizao de impasses (p.15). Iannini aponta em vrios momentos a postulao freudiana de que h pensamento inconsciente (p. 15, 134, 319) como o ponto nevrlgico daquilo que Lacan chamou de subverso do sujeito; e da dinmica da vida pulsional dialtica do desejo que Lacan sustenta que o sexo impossvel enquanto tal na vida humana: no

    h autonomia da vontade nem mesmo algo semelhante unidade

    do eu, pois o desconhecimento [...] lhe constitutivo, a diviso lhe inerente (p. 15).

    Doravante, se a sexualidade ao mesmo tempo insistente e

    irrepresentvel, qual sintaxe o discurso que a se funda precisa ter para dar conta deste desejo contraditrio, opaco, insubmisso (p. 15-16)? Como falar legitimamente do real? A psicanlise rompe

    radicalmente com a racionalidade moderna, com sua pretenso de

    posse do conhecimento-verdade, sem, contudo, como constata

    Iannini, flertar com nenhuma forma de irracionalismo. Elencando as

    consequncias, demarcando o lugar, Iannini nos permite vislumbrar

    a abrangncia das ressonncias das constataes lacanianas, e diz:

    Lacan aceita o desafio pespectivista em consonncia com Nietzsche: ele recusa solues metafisicas para o problema da

    verdade, como a essncia platnica ou Deus veraz cartesiano; (...)

    rejeita pensar a verdade sob a rubrica de uma revelao originaria

    do Ser, nos quadros da hermenutica heideggeriana. (...) recusa as

    solues logicas-positivistas de cunho correspondencialista ou

    verificacionista, assim como no endossa as teorias semnticas da

    verdade advogadas pela tradio anglo-sax (p. 16). Em suma: veta a possibilidade de uma metalinguagem, de um discurso

    primeiro. O homem constitudo na linguagem e esta no

    interrompe o fluxo incessante do sentido.

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  • Robson Batista

    No obstante a aceitao do desafio perspectivista Lacan no

    cede a qualquer relativismo ps-moderno. Guiado por essa

    convico, Iannini se prope investigar os contornos da empreitada

    lacaniana e suas reverberaes no cenrio intelectual

    contemporneo acerca da natureza do estatuto e do regime da

    verdade, tendo sempre em vista que para Lacan a primazia do significante convive com a tese da incompletude do simblico (p. 17) e que, indubitavelmente, h real, ainda que dessubstancializado, ainda que opaco ao simblico (p. 17).

    Na esteira daquilo que seriam as descobertas fundamentais

    de Freud subverso do sujeito e dialtica do desejo , Lacan, segundo Iannini, elabora uma espcie de estilstica do objeto, onde

    postula que no h representao possvel para o objeto de desejo

    do sujeito, somente aproximaes, visto que a representao do sexual qua sexual da ordem do impossvel (p. 17). Em Lacan, nem mesmo h equivalncia entre linguagem e representao,

    cabendo ao estilo ser o modo pelo qual o sujeito pode criar algo em torno do vazio de referencia inerente ao desejo, interessando, pois,

    o objeto (p. 17). H uma funo do estilo, e talvez no seja demasiado dizer que h uma verdade se [des]velando nele, o que

    autoriza ao analista (ou a todo o investigador da verdade?) a se

    preocupar no apenas com o pretenso contedo, mas tambm com a forma do discurso e as estratgias de contornar os limites do

    dizer (p. 17), sobretudo, como de hbito no s na anlise psicanaltica, quando faltam palavras ao sujeito, onde,

    inegavelmente, ainda h muito o que dizer. O autor ainda alude

    relao de tudo isso com a formalizao e escritura conceitual,

    tendo o estilo como o elemento cuja funo possibilita o

    rompimento de qualquer discurso com o paradigma clssico da

    representao-palavra, com a metafsica da subjetividade, sem ceder

    pobreza confortvel do cientificismo ou s precipitadas e

    melanclicas recusas da verdade de teor relativista.

    Aonde residiria o modo singular de Lacan abordar a questo

    da verdade? Para Iannini, o que serve de base a indita relao

    entre saber e verdade que Lacan estabelece. A contundente crtica

    lacaniana metalinguagem se funda, para nosso autor, na

    formalizao e exposio de um quadro conceitual que abre espao

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  • Resenha

    para a ocorrncia do acaso, do inexprimvel, do inefvel, ao menos

    demarcando a sua ausncia, atravs de um estilo consonante

    prpria teoria, estilo marcado pela aposta na materialidade da

    linguagem, pela contingncia ontolgica do desejo que possibilita a

    autonomia, no mnimo relativa, do significante em sua relao com

    o significado, lidando, a seu modo, com a incomensurvel

    incompletude inerente prpria dimenso simblica.

    A verdade em Lacan s se d atravs do carter processual

    permeado pelo estilo (que a prpria apresentao do discurso),

    verdade que ao se apoiar na materialidade da linguagem leva nossa

    considerao dignidade ontolgica do sem-sentido, onde o estilo

    cumpre sua funo como esforo de formalizar o que se precipita como limite de literalizao do real pela cincia (p. 18). No estilo, no seu desdobramento acontecimental, no processo da verdade, se

    inscreve a singularidade irredutvel do sujeito.

    uma verdadeira odisseia discursivo-conceitual a

    empreitada percorrida por Gilson Iannini ao longo de seu livro.

    Destinado a um publico intelectual misto, ou hibrido, Estilo e

    verdade em Jacques Lacan tem seu ponto forte exatamente em

    expor o discurso lacaniano sob uma tica que manteve firme o elo

    entre suas repercusses filosficas, epistemolgicas e psicanalticas,

    seja esta em seu aspecto terico (metapsicolgico) ou clnico.

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