Estudo de Caso
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUA HEBRAICA,
LITERATURA E CULTURA JUDAICAS
O JUDASMO NO-ORTODOXO EM SO PAULO: ESTUDO DE CASO DA COMUNIDADE SHALOM
R e n e Av igd o r
SO PAULO 2004
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUA HEBRAICA,
LITERATURA E CULTURA JUDAICAS
O JUDASMO NO-ORTODOXO EM SO PAULO: ESTUDO DE CASO DA COMUNIDADE SHALOM
R e n e Av igd o r
Dissertao apresentada ao Programa de Ps -Graduao em Lngua Hebraica, Literatura e Culturas Judaicas,do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de mestre em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Marta Francisca Topel
SO PAULO 2004
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memria de
Youssef Avigdor,
meu pai.
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Agradecimentos
Durante a pesquisa e elaborao deste trabalho, recebi o apoio de vrias pessoas.
Gostaria de agradecer em especial Profa. Dra. Marta Francisca Topel, pela orientao. Aos
estimados professores Reginaldo Prandi e Jos Geraldo Paiva que me concederam a primeira
oportunidade de pesquisar na rea de estudos da religio e ao professor Sergio DellaPergola,
na rea de identidade judaica. Aos amigos da Comunidade Shalom Alain Minerbo, Alfredo
Glaser e Regina Pekelman Markus que me receberam com carinho e enriqueceram minha
observao participante com seus valiosos comentrios. Um agradecimento especial ao rabino
Adrian Gottfried e a Marlene Mangabeira Albernaz, vice- presidente da Comunidade Shalom
pelo apoio e colaborao na realizao do trabalho de campo.
A Liana Trindade e Lucia Coelho que me incentivaram a iniciar a pesquisa.
Aos meus amigos Henrique Siqueira e Wagner Lins e a minha irm, Alice, pelo total
apoio e carinho que tanto me auxiliaram nestes anos.
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Resumo
O cenrio judaico paulistano o pano de fundo sobre o qual formulei algumas
interpretaes gerais a respeito da funo social da Comunidade Shalom. A sinagoga: espao de
culto ou de construo de identidade ? Esse trabalho vem, mais do que responder a essa questo,
esclarecer qual o novo papel da sinagoga e do rabino dentro do contexto judaico atual. Partindo
do estudo de caso da Comunidade Shalom em So Paulo, mostro como a sinagoga transforma-se
para cumprir uma nova funo nesse contexto. Assim a sinagoga aparece ora como espao onde o
fenmeno do renascer da religio se manifesta, ora como local de formao da identidade
judaica onde possvel vivenciar, experimentar e expressar o judasmo como religio, de uma
maneira alternativa pois trata-se do universo judaico no-ortodoxo.
Palavras-chave:
Judasmo, Identidade tnica, Religio, Ps-modernidade, Sinagoga.
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Resum
Le scnario judaque de So Paulo est une toile de fond sur laquelle jai fait des
interpretations gnrales propos de la fonction sociale de la Comunidade Shalom
/Comunaut Shalom. La synagogue: um espace de culte ou de formation didentit? Ce
travail vient non seulement rpondre cette question, mais aussi et surtout, nous dire quel
est le nouveau rle de la synagogue et du rabin dans le contexte judaque actuel. Partant
dune tude de cas de la comunaut juive de So Paulo, je montre comment lespace o le
phnomne de renouveau de la religion se manifeste comme un lieu de formation de
lidentit judaque et o il est possible de experimenter, de pratiquer et dexprimer le
judasme en tant que religion, dune manire alternative car il sagit de lunivers judaque
non-orthodoxe.
La construction de lidentit judaque sest faite de manires diffrentes
diffrents moments de lhistoire du judasme, soit-elle dans le ghetto ou dans le foyer; et
aujourdhui dans les coles et/ou au sein des synagogues. Ne pouvant tre rduite
simplement aux aspects religieux, nationalistes et culturels, lidentit judaque est
actuellent, la relation entre ces trois lments.
Ma proposition est de montrer comment et pourquoi la synagogue, jusqu la
modernit, tant um lieu dtude et de culte, est-elle devenue aujourdhui un lieu de
formation de lidentit judaque.
Mots-cl:
Judasme,Religion, Identit Ethnique, Ps-modernit,
Synagogue.
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NDICE
I. Apresentao...................................................................................................01
II. Parte I: Referncias Histricas................................................................07
Captulo 1. O surgimento e a consolidao do judasmo no ortodoxo.....................07 1.1 Como viviam os judeus na Alemanha no sculo XIX......................................07 1.2 O iluminismo judaico a haskal....................................................................10 1.3 O judasmo reformado......................................................................................11 1.4 O judasmo americano......................................................................................12 1.5 O judasmo conservador...................................................................................14 1.6 As diferenas entre os principais movimentos religiosos.................................16
Captulo 2. O desenvolvimento do judasmo no-ortodoxo no Brasil...........................18 2.1. As sinagogas de So Paulo...............................................................................18
2.2. O judasmo liberal de Berlim para So Paulo....................................................22 2.3. Algumas referncias histricas sobre a Comunidade Shalom............................25 2.4. Reformistas e conservadores no Brasil...............................................................30
III. Parte II A Comunidade Shalom na virada do Sculo............................32
Captulo 1. O perfil do freqentador................................................................................ 32 1.1. Introduo.........................................................................................................32 1.2. A pesquisa.........................................................................................................34 1.3. Os resultados.....................................................................................................35 1.4. Concluso .........................................................................................................41
Captulo 2. As ofertas ao pblico comunitrio..................................................................42 2.1. Cursos e atividades oferecidos para o pblico infantil e adolescente.................44 2.2. Servios religiosos oferecidos para o pblico adulto..........................................46 2.3. Cursos e atividades oferecidos para o pblico adulto.........................................50
Captulo 3. O Cabalat Shabat...............................................................................................56
IV. Parte III A Sinagoga e o Rabino ....................................................................66
Captulo 1. A sinagoga..........................................................................................................67 1.1. Breve histrico da sinagoga.................................................................................67 1.2. Sinagoga : congregao e comunidade................................................................69 1.3 Sinagoga: arquitetura e significados.....................................................................71
1.4 A sinagoga da Comunidade Shalom.....................................................................73
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Captulo 2. O rabino.........................................................................................................76 2.1. A funo do rabino : um breve resumo histrico.............................................76 2.2. A Comunidade Shalom e seus rabinos... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .78 2.3 A contratao de um rabino conservador:Adrian Gottfried... . . . . .80
V. Parte IV Exemplos de construo da identidade.....................................92
Capitulo 1.Um estudo de caso de converso ao judasmo.............................................93 1.1 O caso de Laura ................................................................................................94 1.2 Porque o judasmo uma opo religiosa...........................................................96 1.3 A converso de Laura luz do mercado religioso..............................................98 1.4 Algumas consideraes finais...........................................................................101
Capitulo 2. A identidade judaica da mulher ......................................................................103
2.1. Da segregao sexual excluso espiritual.......................................................103 2.2. Igualdade de participao no minian.................................................................105
2.3. O uso do talit ...................................................................................................107 2.4. O talit na Comunidade Shalom ........................................................................108 2.5. Algumas consideraes finais ..........................................................................112
V. Concluso .................................................................................................................114
VI.Referncias Bibliogrficas VII. Anexos I - Tabelas do perfil do freqentador da Comunidade Shalom II - Fotos e imagens da Comunidade Shalom VIII. Glossrio das palavras em hebraico do texto
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SUMRIO
Apresentao.......................................................................................................................01
Parte I: Referncias Histricas.........................................................................................07 Captulo 1. O surgimento e a consolidao do judasmo no ortodoxo.........................07 1.1 Como viviam os judeus na Alemanha no sculo XIX....................................................07 1.2 O iluminismo judaico a haskal...................................................................................10 1.3 O judasmo reformado.....................................................................................................11 1.4 O judasmo americano.....................................................................................................12 1.5 O judasmo conservador..................................................................................................14 1.6 As diferenas entre os principais movimentos religiosos...............................................16
Captulo 2. O desenvolvimento do judasmo no-ortodoxo no Brasil............................18 2.1. As sinagogas de So Paulo...........................................................................................18 2.2. O judasmo liberal de Berlim para So Paulo...............................................................22 2.3. Algumas referncias histricas sobre a Comunidade Shalom.......................................25 2.4. Reformistas e conservadores no Brasil.........................................................................30
Parte II A Comunidade Shalom na virada do Sculo....................................................32 Captulo 1. O perfil do freqentador.................................................................................32 1.1. Introduo.....................................................................................................................32 1.2. A pesquisa.....................................................................................................................34 1.3. Os resultados.................................................................................................................35 1.4. Concluso .....................................................................................................................41
Captulo 2. As ofertas ao pblico comunitrio.................................................................42 2.1. Cursos e atividades oferecidos para o pblico infantil e adolescente............................44 2.2. Servios religiosos oferecidos para o pblico adulto.....................................................46 2.3. Cursos e atividades oferecidos para o pblico adulto....................................................50
Captulo 3. O Cabalat Shabat.............................................................................................56
Parte III A Sinagoga e o Rabino ....................................................................................66 Captulo 1. A sinagoga........................................................................................................67 1.1. Breve histrico da sinagoga...........................................................................................67 1.2. Sinagoga : congregao e comunidade..........................................................................69 1.3 Sinagoga: arquitetura e significados...............................................................................71 1.4 A sinagoga da Comunidade Shalom...............................................................................73
Captulo 2. O rabino..........................................................................................................76 2.1. A funo do rabino : um breve resumo histrico..........................................................76 2.2. A Comunidade Shalom e seus rabinos... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .78 2.3 A contratao de um rabino conservador:Adrian Gottfried... . . . . . . . . . . . . . . .80
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Parte IV Exemplos de construo da identidade........................................................92 Capitulo 1. Um estudo de caso de converso ao judasmo............................................93
1.1 O caso de Laura ..............................................................................................................94 1.2 Porque o judasmo uma opo religiosa.......................................................................96 1.3 A converso de Laura luz do mercado religioso..........................................................98 1.4 Algumas consideraes finais.......................................................................................101
Capitulo 2. A identidade judaica da mulher ..................................................................103 2.1. Da segregao sexual excluso espiritual.................................................................103 2.2. Igualdade de participao no minian...........................................................................105 2.3. O uso do talit .............................................................................................................107 2.4. O talit na Comunidade Shalom ..................................................................................108 2.5. Algumas consideraes finais ....................................................................................112
Concluso .......................................................................................................................114
Referncias Bibliogrficas Anexos I - Tabelas do perfil do freqentador da Comunidade Shalom II - Fotos e imagens da Comunidade Shalom
Glossrio das palavras em hebraico do texto
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1
APRESENTAO
Depois de 10 anos vivendo em Israel, regressei cidade de So Paulo em 1999, onde
meus pais viviam no bairro de Higienpolis. Estranhei os novos tipos de judeus que
circulavam pelo bairro: homens de preto, meninos de peot (cachos laterais, usados pelos
homens ultra-ortodoxos )1, mulheres de perucas ou chapu, personagens do cenrio de Bnei
Brak ou Jerusalm, cidades tradicionalmente religiosas de Israel, mas no deste bairro
paulistano que eu havia conhecido nas dcadas de 1970 e 1980.
Esses novos elementos da paisagem do bairro de Higienpolis me eram familiares em
Israel, onde constituam um fenmeno bastante comum: judeus oriundos de famlias laicas,
que se aproximavam do estilo de vida ortodoxo judaico e o adotavam. Em Israel, o aumento
da populao ortodoxa motivado pela imigrao de judeus ortodoxos de outros pases e pela
deciso de "retorno" ao judasmo de jovens e adultos nascidos no pas.
Como esse fenmeno se manifestava no Brasil e mais especificamente na cidade de
So Paulo? A curiosidade motivou-me a fazer esta pesquisa. O retorno religio um fato
social que ultrapassa o mbito da religio judaica. Esse estudo se limita observao e
anlise do cenrio judaico paulistano.
possvel identificar um judeu ortodoxo nas ruas de So Paulo: e, no entanto, para
saber se este cresceu em um ambiente ortodoxo ou se aproximou da ortodoxia quando adulto
preciso aprofundar a pesquisa desse universo. O foco de minha curiosidade intelectual,
porm, foi compreender o processo pelo qual judeus seculares optam para tornarem-se
religiosos no-ortodoxos.
So Paulo foi a cidade brasileira que recebeu a maior quantidade de imigrantes. No
incio do sculo XX, judeus ashquenazitas2 e sefaraditas3 pertencentes a diversas ondas
1 Os significados dos termos em itlico, transliterados do hebraico, esto reunidos em glossrio no final deste trabalho. 2 Ashquenazitas: Originalmente, judeus de ascendncia alem. O complexo cultural ashquenazita envolve o uso de diferentes dialetos do idiche como lngua franca judaica, e distintos rituais, costumes e liturgia, arquitetura sinagogal, mtodos de estudo e pronncia do hebraico. Isso porque os ashquenazitas viviam em pases cristos da Europa ocidental e mantiveram identidades separadas durante cerca de quatrocentos anos. 3 Sefaraditas: em hebraico significa espanhis. Judeus de origem espanhola e portuguesa que se espalharam pelo norte da frica, Imprio Otomano, parte da Amrica do Sul, Itlia e Holanda, aps a expulso dos judeus da pennsula Ibrica no fim do sculo XV. Os sefaraditas levaram consigo uma cultura judaica e geral altamente desenvolvida, bem como seus prprios costumes, liturgia e tradies musicais, para as comunidades judaicas em que se estabeleceram. Os sefaraditas mantiveram sua identidade e alguns continuam a falar entre si o Ladino.
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2
migratrias concentravam suas residncias na Mooca, Bom Retiro e Santa Ceclia,
dispersando-se por outros bairros da cidade com a ascenso econmica das dcadas
posteriores (Rattner, 1977).
De acordo com Bernardo Sorj, a comunidade judaica aparece como mais um
componente do lado bem-sucedido e moderno do Brasil contemporneo (Sorj,2001). Segundo
o IBGE, vivem atualmente no Brasil 101 mil indivduos que se declaram judeus, dos quais,
estima-se, 80 mil residentes em So Paulo, um grupo pequeno que no chega a representar
0,1% da populao brasileira.
Compreender o judasmo, um tema to amplo e complexo, sem reduzi-lo, um
exerccio desafiador. A proposta de enquadrar minha pesquisa no campo da sociologia da
religio, tendo o judasmo como objeto de estudo, soma-se a outras pesquisas sobre as
especificidades tnicas e culturais do judasmo no Brasil.
O tpico desta dissertao explicar como se d o fenmeno de retorno ao judasmo.
Trata-se de um estudo sobre o retorno ao judasmo no universo no ortodoxo, uma chazar
biteshuv. A traduo desse termo hebraico para o portugus gera polmica na prpria
formulao: trata-se de um retorno ao judasmo ou de uma aproximao deste?
A teshuv (retorno religio) um fenmeno que ocorre em Israel e nas comunidades
da dispora. Entende-se isto, em geral, como a adoo das regras e rituais caractersticos do
mundo ortodoxo por judeus que cresceram em lares judaicos laicos. Este fenmeno, porm,
bem mais abrangente e verstil. Assim, a verificao emprica permite-nos concluir que a
transformao de judeus laicos em judeus religiosos no se restringe a adotar a ortodoxia
como sistema de vida.
A pesquisa que desenvolvo constitui um case study e procura mostrar que a busca por
valores espirituais, em um segmento significativo de judeus, expressa-se na procura por uma
vida religiosa que no passa necessariamente pela adoo de padro de vida ortodoxo.
De acordo com a Federao Israelita do Estado de So Paulo havia vinte e cinco
sinagogas em atividade na cidade de So Paulo, no ano de 2000. Dessas, apenas duas so
consideradas no-ortodoxas : a Congregao Israelita Paulista e a Comunidade Shalom .
Em So Paulo oficiam como rabinos no ortodoxos : o rabino Adrian Gottfried
frente da Comunidade Shalom e o rabino Henry I. Sobel, presidente do rabinato da
Sefaraditas e ashquenazitas representam as duas principais divises da comunidade judaica, e diferem em seus costumes, na pronuncia do hebraico, nas prticas litrgicas e nas atitudes em relao Cabala e filosofia.
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3
Congregao Israelita Paulista. No Rio de Janeiro, o rabino Nilton Bonder lidera a
Congregao Judaica do Brasil4, e o rabino Sergio Margulies est frente da Associao
Religiosa Israelita5, tendo como assistente desde setembro de 2003 a rabina Sandra Cochman.
Estas sinagogas esto possibilitando aos judeus experimentar uma vida religiosa sem abdicar
dos padres de vida modernos.
O fato de muitos judeus procurarem uma espiritualidade de cunho religioso dentro do
judasmo, porm fora da ortodoxia, levou-me a formular as seguintes questes : quais as
caractersticas do campo religioso judaico paulistano? Quais as opes religiosas dos judeus
paulistanos? Por que as sinagogas no ortodoxas so uma opo? E, mais especificamente,
por que a Comunidade Shalom um lugar onde possvel vivenciar o judasmo combinando
modernidade e tradio?
A partir dos anos 1990, so variadas as opes religiosas judaicas da cidade: da
tradicional Congregao Mekor Haim6, que nos ltimos anos se tornou uma referncia no
campo da ortodoxia, passando por centros cabalistas de caracterstica mais mstica at, no
outro extremo, uma pequena congregao, a Comunidade Shalom, com caractersticas
bastante diferentes das que eu conhecia e que, por isso, me atraiu de forma tentadora.
Quando cheguei Comunidade Shalom, deparei-me, ao entrar na sinagoga, com
muitos detalhes estranhos, pelo menos para mim que tive uma educao judaica em um lar
tradicional. Por exemplo, o fato de algumas partes da liturgia serem ditas em portugus, e o
mais importante, as mulheres usarem o talit (xale de oraes usado pelos homens durante as
oraes matinais) e fazerem a ali (quando uma pessoa chamada para recitar a bno que
precede a leitura de um trecho da Tor e sucede a ela). Tudo isso era novidade, seduziu-me e,
ao mesmo tempo, inquietou-me.
Meu primeiro servio religioso na Comunidade Shalom foi a shacharit de shabat
(servio realizado no sbado pela manh). Esse servio precedido de uma hora de estudo da
Tor. Nesse estudo, realizado na biblioteca da sinagoga, o rabino traz diferentes comentrios
sobre o trecho da Tor que ser lido no servio religioso. A cada semana l-se um trecho ou
poro do Pentateuco (em hebraico diz-se parash). No me lembro de qual foi a parash
4 CJB: Congregao Judaica do Brasil, fundada em 1989 5 ARI: Associao Religiosa Israelita, fundada em 1942 6 Congregao Mekor Haim fundada em 1959.
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4
daquela semana, mas me recordo de que fui recebida calorosamente pelo rabino e pelo grupo
de freqentadores.
Decidi estudar a Comunidade Shalom, e a melhor maneira de analisar e interpretar
essa congregao seria a opo pela etnografia. Para isso deveria ter a aprovao da
comunidade e do rabino, que no apenas aprovaram este estudo mas tambm colaboraram
com ele. O objetivo da minha pesquisa mostrar que, apesar do acentuado crescimento de
judeus ortodoxos e de sinagogas ortodoxas em So Paulo, a funo social da Comunidade
Shalom significativa, sendo uma sinagoga no-ortodoxa e a nica igualitria da cidade.
Portanto, qual a funo social que a Comunidade Shalom desempenha nesse contexto?
Veremos ao longo desta dissertao que o que acontece na Comunidade Shalom no ,
simplesmente, um fenmeno de chazar beteshuv ao judasmo no-ortodoxo, mas a
construo da identidade judaica.
Um dos aspectos que mais me chamou a ateno foi o lugar da mulher nesta sinagoga.
A Comunidade Shalom a nica sinagoga da cidade de So Paulo que, desde sua formao
como grupo, em 1949, considera as mulheres no minian (qurum de dez judeus do sexo
masculino com mais de treze anos de idade que constitui a comunidade mnima necessria
para atos pblicos de culto). No Rio de Janeiro, tanto na Congregao Judaica do Brasil
como na Associao Religiosa Israelita, as mulheres so consideradas no qurum mnimo
minian - desde a dcada de 1980. O status da mulher na Comunidade Shalom uma
caracterstica significativa no marco da realidade judaica paulistana e um captulo foi
dedicado a esse tema.
Entre janeiro de 2000 e dezembro 2002, desenvolvi uma contnua observao
participante, freqentando servios religiosos, grupos de estudos e outras atividades
informais, visando a criar uma empatia com os entrevistados e captar as constantes
transformaes da Comunidade Shalom. Estas informaes fazem parte de um dirio de
campo que serviu como referncia na redao deste trabalho.
Na primeira parte desta dissertao, sero apresentadas algumas referncias histricas
sobre a reforma judaica na Alemanha e sua cristalizao nos Estados Unidos, e sobre como
esses movimentos esto representados no Brasil. A seguir, farei um breve histrico do
estabelecimento do judasmo no ortodoxo em So Paulo. No Brasil, at a dcada de 1990,
havia uma certa confuso quanto ao significado e uso dos termos reformista e conservador.
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Faz parte deste trabalho esclarecer esses conceitos a fim de melhor compreender a realidade
judaica brasileira.
O histrico da Comunidade Shalom permite perceber trs momentos importantes na
histria dessa congregao, momentos esses que caracterizam uma transformao em seu
desenvolvimento e papel social na comunidade judaica de So Paulo. Procurei concentrar-me
nos detalhes que diferenciaram esses momentos.
Dedico a segunda parte desta dissertao a uma descrio da Comunidade Shalom na
virada do sculo XXI: quem a freqenta, qual o diferencial desta sinagoga e o que esta
instituio oferece aos seus fieis. Um dos grandes diferenciais da Comunidade Shalom a
forma como se celebram os servios religiosos e os rituais. O cabalat shabat tem sido o
principal servio religioso da Comunidade Shalom. Tomei esse servio religioso como
referncia para destacar algumas das caractersticas mais significativas e especficas da
Comunidade Shalom e do judasmo no-ortodoxo.
De acordo com o rabino Adrian Gottfried, a Comunidade Shalom se coloca no marco
da comunidade judaica como um lugar de crescimento espiritual e um centro de estudos, j
que, como define o rabino, pelo conhecimento do judasmo que h um desenvolvimento da
vida espiritual. Por isso me dediquei a descrever as atividades e servios oferecidos aos
associados e ao pblico em geral. O tema da construo da identidade judaica no marco da
Comunidade Shalom o tpico central deste trabalho, que ser abordado na terceira parte
respondendo s seguintes questes : Por que a construo da identidade judaica ocorre em
uma sinagoga? Como e por que esse espao a sinagoga fornece instrumentos de formao
de identidade judaica? Qual o papel do rabino nesse processo?
A construo da identidade judaica envolve valores como a cultura, a religio e o
nacionalismo. Ao longo desta dissertao identificaremos qual o lugar desses valores na
Comunidade Shalom e na vida de seus freqentadores.
Na quarta parte, dividida em dois captulos, veremos, como se d a construo da
identidade judaica em dois casos bem distintos primeiro analisando um caso de converso ao
judasmo e em seguida explorando o status e o universo feminino judaico na Comunidade
Shalom.
Na concluso fao uma anlise do fenmeno do renascimento da religio dentro do
universo judaico no-ortodoxo distanciando-me um pouco do foco deste estudo que
esclarecer qual a funo social da Comunidade Shalom tanto em seu momento de fundao
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6
como na atualidade. As diferenas teolgicas entre reformismo e conservadorismo que sero
expostas nesse trabalho serviro de base para entender os dois momentos distintos da
Comunidade Shalom resultado da realidade sociolgica do judasmo, em particular, mas da
religio como um todo.
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PARTE I : REFERNCIAS HISTRICAS
I - SURGIMENTO E CONSOLIDAO DO JUDASMO
NO-ORTODOXO
1.1 COMO VIVIAM OS JUDEUS NA ALEMANHA DO SCULO XIX
No sculo XIX na Alemanha, os judeus viviam nos grandes centros urbanos, aps
terem migrado do meio rural para as cidades nos sculos XVII e XVIII, participando da
crescente urbanizao da Europa. Os judeus mais ricos participaram do desenvolvimento
capitalista e da Revoluo Industrial, atuaram nos setores financeiros e industriais,
distanciando-se das massas proletrias judaicas que mantiveram aspectos culturais e religiosos
tradicionais, inclusive o idiche como idioma. A maioria dos judeus alemes iniciou um
processo de distanciamento da tradio e da cultura prpria, assimilando-se ao meio ao qual
pertencia. Cada camada social buscava mtodos prprios para satisfazer suas aspiraes e as
polarizaes sociais levaram a diferenas ideolgicas extremas. Durante o sculo XIX,
formou-se tambm um proletariado judeu e uma intelectualidade, atuando na rea cultural e
nas profisses liberais, principalmente no universo gentio. Durante a segunda metade do
sculo XIX, a maioria das famlias proprietrias de bancos privados de Viena, Paris e Berlim,
exceto os Rothchild, afastou-se do judasmo assimilando-se nobreza europia. (Ben Sasson,
1988)
Todo judeu que vivia na Europa no sculo XIX teve de se defrontar com o problema:
que atitude tomar diante de seu povo e diante a sociedade maior. Houve diversas formas de se
resolver o problema, desde a indiscutvel lealdade tradio judaica mediante uma formal
oposio a toda possvel influncia vinda do mundo gentio, at a completa assimilao ao
meio e a total desvinculao dos laos histricos. Porm, a maioria no estava em nenhum
desses extremos, preferindo diversos e variados intentos de lealdade simultnea aos dois
esquemas, aspirando a integrar-se a ambos. Esta integrao significava a aceitao das idias
da sociedade crist e de sua cultura. As converses ao cristianismo que ocorreram no sculo
XIX foram por questes jurdicas e sociais, uns se convertiam para obter cargos
governamentais e acadmicos, ou para se casar com mulheres crists, outros visavam
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8
carreira poltica. A converso era o bilhete de entrada na sociedade europia, pois mesmo nos
pases onde havia sido decretada a lei de igualdade de todos os cidados perante a lei, havia
uma discriminao dissimulada. O apstata se desenraizava de uma sociedade, mas no lhe
era permitido enraizar-se em outra. Havia, tambm, conversos que optaram pelo cristianismo
e se identificavam com seus princpios e se convertiam nos maiores defensores do estado
cristo e da sociedade crist, afirmando que no havia lugar para os judeus na Europa.
(Ben Sasson, 1988).
Na segunda metade do sculo XIX, a converso ao cristianismo deixou de ser o
principal procedimento de integrao na sociedade europia e foi substituda pela assimilao
cultural e pela identificao espiritual e ideolgica com o Estado Nacional. Essa
transformao o resultado de um longo processo em que judeus foram adquirindo o
conhecimento das lnguas e das culturas vernculas; de modo geral, o judeu que ingressava no
mundo da cultura europia devia deixar de lado o idiche e o hebraico. O pouco do hebraico
que continuava sendo empregado entre os judeus do oeste ao centro da Europa ficou limitado
ao mbito da religio. Foi na Europa central que os judeus puderam se aproximar mais da
cultura e do idioma de seu entorno. Nesse contexto, encontrava-se grande parte da
intelectualidade judaica, e por meio da imprensa exercia grande influncia na vida cultural e
na opinio pblica.
Na Alemanha, os judeus encontraram obstculos na luta pela emancipao. Aps a
dominao napolenica, os jovens intelectuais alemes defendiam idias romnticas e
buscavam razes histricas, idealizavam a Idade Mdia e criaram o esprito alemo que
tinha grandes diferenas dos valores iluministas do esprito francs. Oposto ao iluminismo
francs, de carter universalista, o Romantismo alemo defendia idias nacionalistas,
valorizando um passado germnico considerado genuno. Diante dessa realidade, a integrao
dos judeus na vida social e cultural da Alemanha no agradava a todos os setores da sociedade
alem. Para os adeptos da Wissenchaft des Judentums, movimento que dominou a vida
intelectual judaica na Europa por mais de um sculo, os judeus no eram apenas uma
comunidade religiosa, mas tambm um povo. Os eruditos deste movimento tinham como
objetivo convencer a si mesmos e ao resto do mundo que o judasmo, em todas as etapas da
histria, no foi apenas uma crena mas que foi e ainda uma cultura (Cohen, 1987). Esse
grupo se propunha a estudar o judasmo de forma objetiva e cientifica, da o nome de
Wissenchaft des Judentums - cincia do judasmo . Esse estudo no seguia a linha da
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9
venerao sem nenhuma crtica, como faziam os ortodoxos. Mas esse movimento teve duas
grandes falhas: ter renegado o nacionalismo judaico e ter excludo a Cabala do campo de
estudos judaicos. (Goldberg. Rayner, 1989)
Frieduch Fris Ruhs, intelectual judeu-alemo integrante da Wissenchaft des
Judentums, defendia que os judeus seguindo sua religio no poderiam ser cidados alemes
porque constituam um estado dentro de um estado. O destaque do carter nacionalista da
religio judaica havia conduzido separao dos judeus do resto da sociedade. Outros
tericos consideravam um erro exigir a converso dos judeus ao cristianismo como condio
para a implantao da igualdade de direito. Podia-se no mnimo esperar que os judeus
modificassem sua religio para adapt-la aos requisitos da sociedade e opunham-se reforma
da religio judaica como condio concesso dos direitos de igualdade aos judeus (Ben
Sasson, 1988). A emancipao jurdica dos judeus da Alemanha foi lenta e gradual. Os judeus
desempenharam papel de destaque na revoluo de 1848, mas mesmo assim houve oposio
emancipao dos judeus, e os direitos de igualdade foram negados sob o argumento de que
os judeus no pertenciam ao corpo da nao. O processo de integrao dos judeus na vida
europia constituiu uma intrincada dialtica composta de aceitao e rechao: um desejo de
assimilar-se e de consolidao da conscincia judaica (Laqueur, 1988)
Na Constituio de 1867, Bismark unificou a Alemanha e rescindiu todas as
restries existentes, que haviam sido impostas sobre os direitos civis e polticos por
diferenas religiosas (Laqueur, 1988).
Uma das caractersticas da transformao que se produziu na estrutura social da
populao judaica a grande procura pelas profisses liberais; esse fenmeno era
conseqncia da emancipao jurdica que habilitava judeus a atuarem como advogados e
professores universitrios, dando nova importncia ao grupo no interior da populao judia.
Apesar da emancipao jurdica, somente em alguns pases como a Holanda e a Frana os
judeus tiveram acesso a cargos oficiais (Ben Sasson, 1988).
1.2 O ILUMINISMO JUDAICO A HASKAL
O judasmo reformista se desenvolveu com base em um movimento maior, iniciado na
Alemanha no final do sculo XVIII a haskal ou Iluminismo Judaico. As teorias
filosficas de Moiss Mendelsohn (1729-1786) estabeleceram no pensamento judaico um lao
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de unio entre a filosofia racionalista medieval e as idias iluministas do sculo XVIII. Em
termos gerais, Mendelsohn aceitava as idias de Espinoza de que a religio judaica era a
constituio poltica dos hebreus, mas no via nesta constituio um fator limitativo, nem um
defeito; ao contrrio, procurava destacar o significado universal dessa constituio social
(Laqueur,1988). O iluminismo judaico acompanhava o racionalismo francs e alemo. Essa
nova filosofia judaica tinha duas frentes: opunha-se ortodoxia judaica, ao dar um contedo
mais moderno s interpretaes dos escritos judaicos e almejava uma assimilao maior dos
judeus na sociedade alem. Mendelshon se esforou para combinar a fiel observncia dos
mandamentos religiosos com a tolerncia e a mais ampla liberdade de expresso
(Laqueur,1988). Um dos principais aspectos do iluminismo judaico a separao entre Estado
e Religio, discutido na obra de Mendelsohn. Em Jerusalm, ele declara que o estado a
nica instituio que pode exercer a coero; a religio a Igreja , ao contrrio, deve basear-
se na persuaso. Essa teoria implicava o enfraquecimento da organizao autnoma interna
das comunidades judaicas. Mendelsohn no encontrou grande oposio por parte dos
dirigentes e rabinos, devido ao fato de ele cumprir com suas obrigaes religiosas, e tambm
pela posio que gozava na sociedade alem onde defendia os direitos dos judeus contra
diversos elementos hostis (Ben Sasson, 1988). Aps a morte de Mendenlsohn, os maskilim,
iluministas judaicos, adotaram uma posio mais radical; negando o Talmude e os
mandamentos religiosos afirmavam que a tradio talmdica e a observncia dos
mandamentos separavam os judeus de seus vizinhos, impedindo-os de cumprirem com suas
obrigaes de cidados do Estado. Alguns defendiam at a converso em grupo para assim
cumprir com essas obrigaes. Mas a grande maioria dos maskilim se manteve unida
herana espiritual de Mendelsohn, considerando o judasmo puro prefervel ao cristianismo.
Os maskilim publicavam crticas sociedade judaica e, ao mesmo tempo, propunham
reformas, acreditavam que podiam influenciar os judeus desde o interior da coletividade,
defendiam o despotismo iluminista e apelavam s autoridades para modificarem o status
dos judeus. Tudo isso, porm, ia contra a vontade das comunidades judaicas que defendiam
sua autonomia, condenando qualquer interveno externa (Chouraqui,1986).
Os maskilim declaravam que seu judasmo no tinha absolutamente nenhum carter
poltico ou nacional. Como afirmao da sinceridade de suas crenas, propuseram que fossem
eliminadas de seus devocionrios todas as menes ao Messias e ao Retorno a Sion
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(Chouraqui,1986). O primeiro templo reformista foi fundado em Hamburgo, no ano de 1818.
(Glazer,1957).
Em sua Histoire du Judaisme, Chouraqui resume as mudanas que se deram,
principalmente, no mbito teolgico: os telogos alemes negavam o fidesmo habitual, isto ,
toda palavra da tradio escrita e de tradio oral fora revelada por Deus a Moiss no Sinai e
torna-se obrigatria a toda Israel. Esses no se cansavam de definir o judasmo como uma
religio sem dogma, em oposio ao cristianismo. Os telogos alemes defendiam a Tor
como uma legislao inspirada onde todos podem encontrar livremente os alimentos de sua
moral (Chouraqui, 1986).
1.3 O JUDASMO REFORMADO
Os tericos alemes marcaram profundamente os primeiros anos do judasmo
reformado. Samuel Holdstein (1806-1860) destacou as contradies no Talmude e defendeu a
primazia da lei de Estado sob a jurisdio dos rabinos no mbito do status pessoal: Holdstein
foi o primeiro rabino a celebrar casamentos mistos. Nesse sentido, a Sociedade Reformista de
Frankfurt foi ainda mais longe em sua declarao publicada em 1843, em que renegou o
Talmude como a autoridade dogmtica ou prtica, e renunciava restaurao messinica do
povo judeu na Terra Santa. Deixou de considerar a circunciso como obrigatria, por causa do
carter nacionalista desse rito; o mesmo aconteceu com o hebraico, idioma litrgico da
sinagoga, que cedeu lugar ao idioma alemo (Chouraqui, 1986).
Abraham Geiger (1810 1874) foi o mais importante terico da segunda gerao da
haskal e pai espiritual do reformismo. A questo primordial do pensamento de Geiger era o
conceito de dinamismo na tradio. Para Geiger, o judasmo era uma f em constante
evoluo. Sendo o Talmude uma interpretao, esse podia e deveria ser interpretado e
aplicado conforme as caractersticas de cada poca. Essa questo causou grande conflito
dentro do judasmo alemo; de um lado os ortodoxos, para quem o Talmude e a halach so
verdades inquestionveis e imutveis; do outro, rabinos doutores formados nas academias
rabnicas e nas universidades alems. As academias alems formavam rabinos doutores,
cumprindo uma lei alem que obrigava todo sacerdote religioso a ter um ttulo acadmico. Na
Prssia, no ano de 1758, inicia-se a transformao da instituio rabnica limitando os
poderes dos rabinos ao mbito religioso (Hayoun, 1989).
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A partir de 1815, o movimento reformista se expandiu rapidamente na Alemanha, pela
realizao de importantes conferncias rabnicas (Brunswick, 1844; Frankfurt, 1845; Breslau,
1846), onde se confirmaram as intenes e se definiu a prtica do judasmo reformista. A
reforma judaica propunha uma mudana no modo de celebrar os cultos e rituais religiosos.
Nas sinagogas, o idioma alemo verncula- fora substitudo pelo hebraico, introduziu-se a
msica instrumental fazendo uso de rgo, formaram-se coros sinagogais, um culto dominical
foi estabelecido alm do culto sabtico. Em suas prdicas, os rabinos insistiam, com
veemncia, nos valores espirituais e morais dos profetas bblicos o que acreditavam ser a
autntica tradio no judasmo (Glazer, 1957).
Os reformistas eram judeus de classe mdia e mdia-alta, gerao que teve acesso ao
ensino superior e conseqentemente fazia parte da burgeoisie alem. Glazer (1957) esclarece
alguns aspectos deste movimento, destacando que o objetivo desses judeus, no incio do
sculo XIX, era transformar o servio religioso judaico em algo digno e apropriado aos
padres burgueses da Alemanha. Essa burguesia judaica discordava do servio tradicional
judaico celebrado num hebraico cacofnico, o que no condizia com estilo ocidental e
germnico de canto e oraes.
At meados do sculo XX, o movimento reformista defendia, principalmente, a
inspirao da moral individual da Tor e exclua o carter nacionalista do judasmo,
entretanto, importante salientar que a oposio ao sionismo foi revista aps a Sho e a
fundao do Estado de Israel em 1948 (Chouraqui, 1986).
1.4 - O JUDASMO AMERICANO NO SCULO XIX
A partir de 1840, o movimento reformista ultrapassou as fronteiras da Alemanha e
uma congregao reformista foi criada em Londres. No entanto, foi nos Estados Unidos que o
judasmo reformista pde desenvolver-se, longe da resistncia e da oposio que enfrentava
das correntes ortodoxas na Europa. Com a imigrao hngara, primeira onda de imigrao
ashkenatiza, o reformismo foi instaurado nas sinagogas do continente americano. At ento,
as congregaes judaicas americanas eram de origem sefaradita e tradicional.
Ansiosos por serem aceitos no mundo no judaico, esses novos imigrantes que se
transformaram rapidamente em burgueses, introduziram mudanas nos rituais e nos servios,
aproximando o judasmo do protestantismo da classe mdia americana. Ao contrrio do que
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acontecia na Europa, a reforma judaica no teve de enfrentar a resistncia de setores
ortodoxos e tradicionais nos Estados Unidos.
Em 1824, em Charleston, foi fundada a primeira comunidade reformada americana
(Chouraqui,1986). O uso de adereos - talit e kip - foi eliminado; rgo e coral foram
adotados; sendo o coral formado por homens e mulheres, diferente do tradicional ortodoxo,
formado apenas por homens e garotos. Homens e mulheres passaram a sentar-se juntos,
eliminando-se a tradicional separao que exclua as mulheres do campo de viso dos homens
(Glazer, 1957).
Mesmo sem a oposio dos ortodoxos, caracterstica da Alemanha, muitas das
alteraes das comunidades do novo continente foram consideradas radicais e foram
questionadas por um grupo de rabinos que considerava essas mudanas imprprias estrutura
do judasmo. Esses rabinos, favorveis s transformaes sem descaracterizar o judasmo,
foram chamados de conservadores, mas mantinham diferenas e distncias da tradicional
ortodoxia religiosa, a principal opositora dessas transformaes.
Em 1883, a frgil e ilusria coeso dos rabinos reformistas deu oportunidade reao
conservadora de se organizar. Essa reao foi liderada por Sbato Morais, rabino desde 1851
da antiga sinagoga sefaradita7 da Filadlfia, com o apoio de vrios rabinos de uma dezena de
congregaes da Filadlfia e de Nova York.
Em 1885, o movimento conservador, sob a liderana do rabino Sbato Morais, fundou
o Jewish Teological Seminar Association. A partir de 1887, as aulas eram dadas nas
dependncias da Congregation Shearit Israel em Nova York. Desde ento, esses dois
movimentos: reformista e conservador, so totalmente separados e independentes. Cada um
segue seu caminho com plataformas deliberadas em assemblias rabnicas regulares. O
seminrio reformista Hebrew Union College foi fundado em Cincinnati no ano 1875 por
Isaac-Mayer Wise (1819-1900) (Glazer, 1957).
1.5 O JUDASMO CONSERVADOR
O judasmo conservador essencialmente um movimento americano cujas orientaes
religiosas tm sido determinadas pela Jewish Theological Seminary of America, instituio
que continua sendo seu centro acadmico e ideolgico. Os lderes leigos do movimento
7 Os primeiros judeus a se estabelecerem na Amrica do Norte eram sefaraditas que chegaram a Nova Amsterdam (hoje Nova York) em 1654 provenientes do Brasil.
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adotaram o termo conservador pela capacidade de reforar sua identificao e compromisso
com o judasmo tradicional rabnico, ainda que reformulando a tradio nos termos e formatos
modernos. O seminrio conservador no se limita ao ensino da Tor e do Talmude, mas
dedica-se tambm ao ensino do Midrashe, da filosofia, da liturgia, da poesia medieval, da
teologia moderna e da literatura hebraica moderna, conhecimentos indispensveis na
formao de rabinos e de judeus leigos. O judasmo conservador, em suas Assemblias
Rabnicas, vem se dedicando arduamente reflexo e aos estudos das fontes judaicas, abrindo
a possibilidade de uma nova exegese. Essas assemblias se renem, anualmente, em
congressos internacionais, e contam, atualmente, com aproximadamente 1500 rabinos
filiados8. A Assemblia Rabnica est comprometida em promulgar novas formulaes dos
preceitos ou mitsvot compatveis com uma vida judaica autntica e moderna. As mais
conhecidas modificaes nas leis halhicas estabelecidas pelo judasmo conservador so: a
permisso de dirigir no shabat para ir sinagoga, contar as mulheres como membros
legtimos no qurum - minian e, finalmente, admitir mulheres como candidatas ordenao
rabnica no seminrio. Contudo, importante assinalar que o judasmo conservador
pluralista tanto no que se refere doutrina quanto observncia (Cohen, 1987).
Hoje, na Amrica do Norte, a United Synagogue of Conservative Judaism unio das
sinagogas conservadoras - conta com 800 congregaes filiadas representando
aproximadamente 1,5 milhes de membros9. O movimento reformista passou por vrias
transformaes, e reconsiderou algumas das deliberaes dos primeiros congressos, o que o
levou, de certa forma, a uma aproximao do judasmo conservador. Em maio de 1999, na
cidade de Pittsburg, a Central Conference of American Rabbis publicou um novo estatuto de
princpios para o judasmo reformista10. Dentre as mais diversas deliberaes, est a
observncia das regras da kashrut, mesmo muito distante dos padres da observncia entre os
ortodoxos; e a retomada do hebraico, um idioma a ser estudado, o idioma da Tor e da liturgia
judaica. Muitos pontos desse estatuto so contestados internamente por aqueles rabinos e
leigos - que consideram essas mudanas um retrocesso do movimento reformista.
J no possvel distinguir, nos Estados Unidos, uma sinagoga reformista de uma
conservadora, desde meados da dcada de 1990. Por exemplo, o uso do talit e da kip, deixou
8 Site : The Rabbinical Assembly, endereo eletrnico : www.rabassembly.org 9 Site : United Synagogue of Conservative Judaism, endereo eletrnico : www.uscj.org 10 Site : Central Conference of American Rabbis, endereo eletrnico: www.ccarnet.org
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de ser um diferencial. Existem sinagogas reformistas onde os freqentadores usam a kip e
sinagogas conservadoras onde no a usam. A maioria das congregaes reformistas
americanas , atualmente, mais tradicional e mais tnica, porm, ainda vemos algumas
sinagogas que mantiveram as caractersticas da gerao anterior so os reformistas clssicos
(Meyer, 1987). No caso paulistano, comparando as duas sinagogas no-ortodoxas, a
Congregao Israelita Paulista e a Comunidade Shalom, verificamos que na Congregao
Israelita Paulista, a kip e o talit sempre foram usados, enquanto que na Comunidade
Shalom, o uso da kip foi introduzido e, de certa forma, se tornou obrigatrio, sob a liderana
dos rabinos conservadores Kreiman e Gottfried, enquanto que o talit sempre foi usado por
homens e mulheres.
Estas transformaes da corrente reformista representariam apenas uma aproximao
dos dois movimentos? Ou estamos diante da reafirmao das regras religiosas, significando
mais do que um retrocesso na histria do movimento reformista? Trata-se de uma
manifestao de retorno religioso espiritual, influenciado por tendncias externas ao
judasmo, isto , da sociedade maior?
Durante o sculo XX, a Amrica do Norte foi um terreno frtil para o
desenvolvimento de outras correntes no judasmo no-ortodoxo. A ideologia da contra-
cultura dos anos sessenta tambm contribuiu para o desenvolvimento de novas linhas do
judasmo: O movimento Reconstrucionista uma ramificao do movimento conservador,
idealizado por Mordechai Kaplan, no ano de 1922. Composta na maioria por intelectuais, essa
corrente define o judasmo como uma civilizao em evoluo, busca a justia social, no
acredita no Messias nem que os judeus sejam o povo eleito. Mordechai Kaplan, em sua obra,
Judasmo como civilizao (1934), expe a idia de que o judasmo uma soma de literatura,
cultura popular, histria, tica e idias do povo judeu. O reconstrucionismo manteve-se filiado
ao movimento conservador at 1967, ano em que Kaplan fundou seu prprio seminrio.
Mordechai Kaplan desejava construir o judasmo para o homem moderno, combinando
aspectos religiosos e no-religiosos da vida judaica (Chouraqui, 1986).
O movimento Renewal tambm surgiu na dcada de 1960, baseado na experincia de
chavurot - pequenas comunidades autogeridas que alm de adequar a tradio aos novos
tempos, desejavam imprimir-lhe um teor mais espiritualizado e criativo. Dois nomes em
particular influenciaram este movimento: os rabinos Zalman Schechter Shalomi e Shlomo
Carlebach, ambos de formao ortodoxa.
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1.6 AS DIFERENAS ENTRE OS MOVIMENTOS RELIGIOSOS
Atualmente, aps tantas transformaes nos movimentos religiosos judaicos fica
difcil discernir os aspectos centrais que os diferenciam; essa quase homogeneizao no
gratuita, e se transforma, periodicamente, para atrair novos adeptos.
As principais caractersticas dos reformistas no sculo XIX so as seguintes:
1. Oraes e prdicas em lngua verncula.
2. Uso do rgo e de coro misto.
3. Cortes drsticos na liturgia.
4. Nova redao das oraes tradicionais.
5. Substituio da doutrina tradicional da ressurreio corporal pela afirmao da
imortalidade espiritual.
6. Omisso na liturgia s referncias reunificao de Israel em Sion.
7. Abandono das regras de kashrut.
8. Abolio dos costumes de cobrir a cabea para rezar e fazer soar o shofar no dia de
ano novo.
9. Abolio do segundo dia nas Grandes Festas na dispora.
10. Reafirmao da santidade do shabat como um dia de lazer e renovao espiritual.
11. Afirmao tambm da patrilinearidade e no apenas da matrilinearidade que os
ortodoxos defendiam, na transmisso do judasmo.
12. Negao do Talmude representando autoridade dogmtica ou prtica.
Os conservadores que se mantm entre a reforma e a ortodoxia, tm uma proposta de
manter alguns aspectos do judasmo que foram abolidos ou transformados pelos reformistas:
1. Eles tm o Talmude como referncia e autoridade.
2. Observam as leis dietticas da kashrut.
3. Obrigam o uso dos aparatos litrgicos para rezar: talit, kip e tefilin.
4. O idioma dos servios essencialmente o hebraico.
5. Celebram os segundos dias das Grandes Festas.
6. Mantiveram, assim como os ortodoxos, a matrilinearidade na transmisso do
judasmo.
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7. So pluralistas no que diz respeito observncia dos preceitos.
8. Vem o estudo como uma forma de experincia espiritual.
Mantiveram, porm, algumas diferenas com relao ortodoxia:
1. As assemblias rabnicas conservadoras tm legitimidade para promulgar novas
formulaes dos preceitos compatveis com uma vida judaica autntica e moderna.
2. permitido dirigir no shabat para ir sinagoga.
3. As mulheres so contadas como membros legtimos no minian nas sinagogas
conservadoras e so admitidas como candidatas ordenao rabnica.
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II O DESENVOLVIMENTO DO JUDASMO NO ORTODOXO NO BRASIL
2.1 AS SINAGOGAS DE SO PAULO
Na cidade de So Paulo est concentrada a maior comunidade judaica no Brasil,
estimada em 80 000 membros, que compe um cenrio bastante heterogneo, formado por
imigrantes que aqui chegaram no incio do sculo XX e por seus descendentes. As primeiras
sinagogas da cidade foram fundadas por esses imigrantes vindos da Europa, da frica do
Norte e do Oriente Mdio que mantinham as mesmas tradies de suas comunidades de
origem. A primeira sinagoga de So Paulo foi fundada em 1912, por imigrantes blgaros, em
um sobrado da rua da Graa, no bairro do Bom Retiro. De acordo com dados da Federao
Israelita do Estado de So Paulo, havia em 2000 vinte e cinco sinagogas filiadas Federao e
em funcionamento.
A cada novo grupo de imigrantes que chegava ao Brasil surgia uma nova sinagoga
identificada por elementos geopolticos, tnicos e culturais. Esses fatores caracterizavam e
diferenciavam cada sinagoga que ficava conhecida como: a sinagoga dos gregos, a sinagogas
dos hngaros, dos italianos, dos alemes, dos egpcios. O desenvolvimento econmico da
cidade de So Paulo e a participao dos judeus nesse processo geram uma disperso e a
comunidade deixa os bairros dos imigrantes, Mooca, Brs, Bom Retiro para viver em regies
que ofereciam mais conforto e condiziam com o novo status da comunidade (Rattner, 1977).
Os agentes dessa disperso foram os judeus da segunda gerao, o que implica um outro fato
social bastante significativo: o distanciamento das sinagogas fundadas pelos pais. Essas
passaram por um processo de esvaziamento com o envelhecimento da primeira gerao e o
distanciamento dos filhos e netos, rompendo a continuidade e a manuteno da sinagoga
como o centro da kehil comunidade. A segunda gerao, formada nos padres culturais
brasileiros, no sente mais o mesmo vnculo da primeira com relao sinagoga que
funcionava, muitas vezes, como um centro comunitrio. A cada gerao, o distanciamento da
sinagoga fica mais evidente (Rattner, 1977).
Convm ressaltar ainda que nas primeiras dcadas do sculo XX, as sinagogas tiveram
um papel importante como centro catalisador da comunidade de imigrantes, oferecendo
abrigo e auxlio aos recm chegados. Paralelamente, a comunidade foi se adaptando nova
realidade que a acolheu a cidade de So Paulo e essa nova situao vai, no decorrer das duas
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ltimas dcadas, exigir uma transformao do papel das sinagogas em relao a seu pblico
comunitrio. Como atrair de volta os seus freqentadores? Esse foi o desafio dessas
instituies que entenderam que os fieis no estavam distantes apenas fsica mas tambm
espiritualmente. Como se adaptar a essa nova realidade? Quais as estratgias a serem usadas?
Como trazer de volta judeus que estiveram distantes e para quem, por muitos anos, a sinagoga
deixou de fazer parte do cotidiano. O ritmo da sociedade moderna e a adoo de valores
materialistas distanciaram o indivduo da sinagoga, que representa um passado, um vnculo
com a famlia e com a cultura que no condiz mais com o presente de grande parte da
coletividade judaica. At a modernidade, a identidade judaica era formada por elementos
culturais e religiosos que eram transmitidos de gerao em gerao, no lar e nas instituies
escola, cheder, sinagoga da organizao da vida comunitria, no isolamento scio-poltico e
jurdico ao qual eram submetidos os judeus na Europa. Esse isolamento era, per si s, uma
fonte geradora e transmissora de cultura judaica. Com o fim desse isolamento, na
modernidade, a raison dtre dessas instituies modificou-se. O mesmo pode ser verificado
nas instituies judaicas da comunidade paulistana, no decorrer do sculo XX, perodo de
chegada, disperso e assimilao da coletividade judaica na sociedade brasileira. As sinagogas
deixaram de ser o referencial de parte significativa desta coletividade.
O judasmo se viu diante da mesma realidade da Igreja catlica: a evaso dos fiis e,
por isso, teve de desenvolver mecanismos de atrao. No se tratava de fazer propaganda
proselitista, isto , converter novos adeptos ao judasmo. A questo era atrair aquela ovelha
desgarrada, aquele que por muito tempo esteve longe do grupo tnico e que hoje est
procura de valores espirituais, em um momento particular do ciclo da vida que o obrigou a
recorrer instituio11. Bernardo Sorj esclarece que o judeu ps-moderno lembra-se do
judasmo em contextos particulares nascimentos e mortes, casamentos e bar/bat mitsvot e
em momentos especiais da trajetria pessoal doenas, crises existenciais (Sorj, 2001), ou no
momento de deciso sobre a educao dos filhos, ou simplesmente para sua satisfao
pessoal, uma vez que se distanciou da religio porque seguia o desenvolvimento pessoal nos
estudos e carreira profissional e hoje percebeu um vazio que pode ser preenchido por
elementos espirituais. Para Sorj, o judasmo passou a ser um supermercado cultural
11 O rabino Adrian Gottfried constata que alguns acontecimentos significativos na vida do individuo podem motivar o retorno religio. O ciclo da vida: nascimento, brit mil, bar e bat mitsv, casamento e falecimento pode ser o detonador desse processo.
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existencial, no qual se entra e do qual se sai segundo as necessidades do momento. Assim o
judasmo apresenta um carter modular, construindo-se como um mix de acordo com o gosto
individual, geralmente com componentes soft, isto lembrando a tradio, mas no de forma
muito exigente (Sorj, 2001).
Na cultura ps-moderna, os valores espirituais tornam-se importantes, voltam
moda, entretanto, de forma diferente da tradicional. Hoje, elementos emocionais e espirituais
relacionados com a esfera religiosa transformam a religio em algo de fcil acesso, no
exigindo envolvimento profundo. Isto revela um novo modo de comprometimento religioso.
Ser que a religio est se simplificando a fim de atrair mais adeptos ou o frgil
comprometimento est transformando a religio em algo de fcil consumao: a fast-religio
(Pace, 1999). Vemos antigos cinemas, galpes e locais de diverso sendo transformados em
locais de culto, o fenmeno da proliferao de templos, nas grandes metrpoles e mesmo
nas pequenas cidades do interior. Chamam a ateno, ao menos, duas caractersticas desses
templos: o tamanho, - freqentemente, grandes espaos com capacidades para centenas de
fieis - e as portas de vidro abertas por onde possvel ver o que ocorre do lado de dentro. Essa
transparncia oferece ao transeunte a oportunidade de romper o primeiro estranhamento
no acontece nada de estranho l dentro - assim, esses templos convidam o passante a
experimentar uma nova experincia religiosa. Essa apenas uma das maneiras de atrair novos
fieis (Prandi, 1996).
O marketing religioso do judasmo menos agressivo comparado com a propaganda
catlica e protestante que utiliza os meios de comunicao a fim de aumentar a popularidade
ou o nmero de fiis. No caso do judasmo no se trata de atrair novos adeptos mas de fazer
com que judeus reconsiderem e recontextualizem a sinagoga em seu cotidiano, isto , um
retorno vida religiosa judaica. As sinagogas utilizam vrias estratgias para voltar a ser o
centro da comunidade: jantares de confraternizao, palestras, atividades para o pblico
infantil e adulto. Assim o que atrai e identifica o freqentador da sinagoga no so mais as
caractersticas geopolticas que identificavam o grupo fundador, mas aspectos
socioeconmicos e ideolgicos religiosos. Pois, por trs das atividades de lazer e de cultura,
as sinagogas propem um retorno prtica ou observncia dos mandamentos. Essa proposta
vem acompanhada de um contedo ideolgico, isto , aspectos prticos e tericos das
diferentes correntes religiosas judaicas. O fiel se identifica com a proposta de judasmo que a
sinagoga oferece. Essa proposta forjada pelo rabino e pela liderana laica de cada
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instituio. Os rabinos funcionrios contratados so formados em seminrios ou yeshivot
que so ligados a movimentos religiosos. Mas no apenas a linha ideolgica que atrai o fiel;
o carisma do rabino um aspecto fundamental que, combinado aos objetivos da liderana
laica da congregao, pode determinar o sucesso, isto , o aumento do nmero de fieis e
associados da congregao (Weber, 1968). O carisma, como esclarece Max Weber, uma
qualidade que para ser reconhecida e mantida depende de dois agentes: o carismtico e os
dominados, e tanto faz se o carismtico for um lder poltico, religioso ou social. Tratando-se
do carisma do lder religioso, nesse caso, do rabino, o carisma um aspecto profissional e
legtimo. No caso do lder religioso a dominao carismtica supe um processo de comunho
de carter emotivo, de reverncia e de confiana (Weber, 1968).
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2.2 JUDASMO LIBERAL: DE BERLIM PARA SO PAULO -12
A imigrao de judeus alemes intensificou-se no perodo entre a I Guerra e a
ascenso do nazismo na Alemanha. No ano de 1934 surgiu a primeira associao de judeus
alemes: a Sociedade Israelita Paulista. Na SIP eram realizados cursos e conferncias sobre
religio, tradio e histria judaica, como tambm aulas de hebraico e portugus, porm, o
idioma dessa comunidade continuava sendo o alemo (Hirshberg, 1976).
Em 1936 a Sociedade Israelita Paulista passa a ser a Congregao Israelita Paulista
sob a liderana do rabino Fritz Pinkuss.
Nascido em 1905, na Alemanha, ordenado no Seminrio Rabnico de Breslau, de
orientao ortodoxa, obteve o titulo de doutor em Filosofia pela Universidade de Breslau.
Seguiu os estudos em Berlim, foi aluno de mestres mundialmente conhecidos na Academia
Wissenchaft des Judentums - Cincias do Judasmo. De 1930 a 1936, o rabino Fritz Pinkuss
liderou a comunidade de Heidelberg, uma comunidade liberal. Entre 1934 e 1936, enviava
prdicas que eram apresentadas na SIP, onde seu irmo Kurt Pinkuss era membro (Pinkuss,
1989).
Logo aps a Olimpada de Berlim, no ano de 1936, o rabino Fritz Pinkuss deixa a
Alemanha acompanhado da me, esposa e filho recm-nascido. Vem ao Brasil onde encontra
seu irmo Kurt Pinkuss e uma comunidade alem organizada.
A convite do Doutor Luiz Lorch, presidente da Sociedade Israelita Paulista o rabino
Dr. Pinkuss liderou os servios religiosos das Grandes Festas do ano de 1936. Logo em
seguida, discutiu-se a respeito da possibilidade da comunidade se organizar em forma de
congregao. Assim, a Congregao Israelita Paulista CIP foi fundada em 1936, resultado
de um trabalho que j vinha sendo feito pela Sociedade Israelita Paulista. A consolidao da
CIP se deu em duas frentes: por um lado, como entidade envolvida no auxlio ao
estabelecimento e integrao dos imigrantes alemes; por outro, marca o estabelecimento do
judasmo liberal no Brasil, liderado pelo rabino Fritz Pinkuss (Hirsberg, 1976).
O judasmo noortodoxo estabeleceu-se no Brasil vindo diretamente da Alemanha,
onde o judasmo estava dividido entre liberais e ortodoxos. Quando o rabino Pinkuss e a
liderana laica fundaram a Congregao Israelita Paulista, essa criada nos moldes do
12 Nesse caso uso o termo judasmo liberal ao invs de no ortodoxo por ser o termo usado tanto na Alemanha como em So Paulo durante o sculo XX.
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judasmo liberal alemo, pas onde as correntes reformista e conservadora no constituam
parte do cenrio religioso, uma vez que foram desenvolvidas e consolidadas nos Estados
Unidos. Essa a razo pela qual o significado das correntes reformista e conservadora no
fez parte do contexto religioso judaico at finais dos anos 1990.
Nos anos 1930, mesmo gozando de certo prestgio e apoio da comunidade anfitri, o
rabino Pinkuss enfrentou uma oposio daqueles que insistiam em celebrar os servios em
alemo. No que diz respeito ao estabelecimento de uma kehil, a proposta do rabino Pinkuss
no era simplesmente transpor o modelo alemo para Brasil, mas conciliar o judasmo liberal
alemo realidade judaica brasileira, introduzindo o idioma portugus nos servios religiosos
e nas prdicas. O rabino Pinkuss criou uma liturgia prpria, de acordo com os princpios do
judasmo liberal, um rito liberal que se baseia na tradio clssica, que respeita a tradio
no que ela fixou quanto ordem e contedo.... o rito liberal aquele que permite a
adaptao e a criatividade de acordo com as exigncias da realidade, no para negar a
tradio, mas para liber-la e faz-la viva em sua historicidade, presente em contato com o
mundo humano em que ela deve habitar 13 (Pinkuss, 1989).
Entretanto a identidade ou o contedo ideolgico de uma sinagoga no determinado
apenas pelo rabino que est sua frente. A liderana laica tem um poder significativo na
constituio ideolgica da sinagoga. possvel constatar, no caso Congregao Israelita
Paulista, o poder dos lideres laicos aos quais nem o rabino Pinkuss e nem o seu sucessor
Henry I. Sobel, que assumiu a liderana nos anos 1970, conseguiram impor o modelo de
sinagoga reformista. A CIP, ainda hoje, mantm algumas caractersticas do movimento
ortodoxo: mulheres e homens sentam-se separados, as mulheres no so consideradas no
quorum mnimo minian, e no usam talit e kip (adereos litrgicos), a leitura semanal da
Tor exclusiva dos homens e o idioma do servio o hebraico.
A CIP, hoje, a maior congregao do Brasil em nmero de associados, para grande
parte da coletividade paulistana o modelo de judasmo no ortodoxo, conhecido at o final da
dcada de 1990. Isto se deve, em primeiro lugar, s atuaes histricas do rabino Dr. Fritz
Pinkuss que, sem entrar em conflito com uma parcela da congregao bastante conservadora,
formatou um modelo hbrido e nico no judasmo paulistano, e do rabino Henry I. Sobel que
13.As categorias reformista e conservadora so relativas ao judasmo que se desenvolveu nos Estados Unidos. Na Alemanha, se mantiveram as categorias liberal e ortodoxa.
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habilmente soube dar ao judasmo no-ortodoxo da CIP a categoria de judasmo oficial para
uma parcela significativa da comunidade judaica e da sociedade brasileira.
Todavia, necessrio mencionar que foi um rabino sefaradita - rabino Jacob Mazel
Tov, contemporneo do rabino Fritz Pinkuss - quem primeiro utilizou o idioma portugus em
uma sinagoga em So Paulo, A Comunidade Israelita Sephardi que em 1940 ficou conhecida
como Sinagoga Israelita Brasileira do Rito Portugus. Ainda na dcada de 1930, o rabino
Mazel Tov publicou livros de rezas em portugus. Ele tambm foi o primeiro rabino de So
Paulo a realizar uma cerimnia de bat mistv no ano de 1939 (Mizrahi, 2003).
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2.3 ALGUMAS REFERNCIAS HISTRICAS DA COMUNIDADE SHALOM14
Em 1949, um grupo de famlias associadas da Congregao Israelita Paulista,
descontentes com o padro do servio religioso celebrado em hebraico, idioma que a maioria
no dominava, iniciou o que atualmente conhecemos como Comunidade Shalom. Esse grupo
formado pelas famlias Lorch, Krauz, Mindlin, Feffer, Klabin celebrava os servios religiosos
pelo rito reformista, seguindo um rodzio nas residncias de cada famlia, adotando como base
o Hebrew Union Prayer Book, traduzido para o portugus. A razo da sada desse grupo da
Congregao Israelita Paulista foi a discordncia dos caminhos que aquela entidade estava
trilhando, no tocante ao sionismo. O grupo liderado pelo doutor Luiz Lorch, o mesmo que
fundou em 1936 a Congregao Israelita Paulista, tinha a convico filosfica de que a
religio e a poltica deveriam permanecer totalmente isoladas uma da outra.
De sua constituio como chavur grupo no ano de 1948 at o ano de 1970, o
grupo celebrava os servios de cabalat shabat nas residncias das famlias Lorch e Krauz:
a idia era proporcionar servios religiosos em portugus, para que todos os participantes
pudessem compreender o teor das diversas preces e entender o seu significado... Em 1952 foi
editado o primeiro livro reformista de rezas no Brasil.
Durante muitos anos, o Dr. Lorch e seu grupo receberam apoio e orientao do rabino
Fritz Pinkuss. O rabino Pinkuss era francamente favorvel ao pluralismo religioso,
acreditando na importncia do convvio harmonioso entre as diferentes correntes do judasmo.
Em 10 de abril de 1970, assim citado no documento de registro em cartrio, sob a
denominao de Sociedade Religiosa Brasileira de Rito Moderno Judaico Shalom, fica
fundada uma associao civil de carter religioso, apoltica e sem fins lucrativos. So
propsitos da sociedade:
a - adoo do rito moderno na celebrao de atos e cerimnias religiosas judaicas;
b - emprego, nesses atos, do idioma do pas;
c - simplificao da ritualstica tradicional, adaptando-a ao esprito e mentalidade do
mundo atual;
d - estabelecimento e colaborao com entidades similares que se dediquem s
14 As informaes histricas desta dissertao foram retiradas principalmente das entrevistas com os membros da Comunidade Shalom. Em agosto de 2002 a diretoria da Comunidade Shalom incumbiu a Comisso de Planejamento e Projetos de elaborar um documento sobre a Histria da Comunidade Shalom. Participaram desse projeto os seguintes colaboradores: Alfredo Carlos Glaser. Gina Wurzmann, Rosa Krausz, Sergio Loew e Silvano Gersztel e a autora desta dissertao.
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mesmas finalidades, como a World Union for Progressive Judaism - WUPJ (organismo
internacional do movimento reformista).
Com a criao da entidade, os servios religiosos passaram a ser comemorados com
maior freqncia. Como a Comunidade Shalom ainda no tinha uma sede, os servios de
cabalat shabat eram comemorados uma vez ao ms no Lar das Crianas da Congregao
Israelita Paulista na Rua Comendador Elias Zarzur e mais tarde no Centro Israelita de
Assistncia ao Menor CIAM, na Alameda Ja. Por ocasio da transferncia dos servios
para o CIAM, o rabino Henry I. Sobel foi convidado para celebrar o cabalat shabat da nova
entidade e o tema da prdica foi LSD Love, Sacrifice and Dedication.
Os anos 1970 foram fundamentais para a consolidao da Comunidade Shalom. A
partir desse ano os servios deixaram de ser celebrados em residncias particulares para serem
realizados em espaos pblicos. O crescimento dessa comunidade e as novas necessidades
que acompanharam esse processo levaram a Comunidade Shalom a mudar de endereo vrias
vezes. As instalaes so, sempre, casas grandes e confortveis, onde possvel acolher os
fiis para os servios religiosos, com diversas salas de aula e de reunio. As Grandes Festas
so realizadas em sales alugados a fim de acolher confortavelmente as centenas de
participantes. Atualmente na Vila Olmpia, a Comunidade Shalom mantm sua tradio de
estar situada na zona sul da cidade, analisarei essa questo no capitulo sobre o perfil do
freqentador da Comunidade Shalom.
A partir dos anos 1970, a Comunidade Shalom contou com uma contribuio
fundamental para o seu desenvolvimento, a presena do sr. Wolf Adolfo Wolf, imigrante de
origem alem, recm-chegado da Argentina, onde sua famlia se estabelecera desde a dcada
de 1930, deixando para trs a Alemanha nazista.
Em dezembro de 1971, no auditrio do Hospital Israelita Albert Einstein, foi realizado
o primeiro ritual de bat mitsv e foi oficializado pelo rabino Henry I Sobel. E em 1975, ainda
no mesmo auditrio, foi celebrado o primeiro ritual de bar mitsv, conduzido pelo rabino
Pinkuss.
Em 1972, chega Comunidade Shalom, Raul Meyer, um jovem estudante do
Seminrio Rabnico Latino-americano que abandonara seus estudos porm, no a vocao.
Raul Meyer esteve frente dessa comunidade por quase trs dcadas.
No ano de 1976, os servios religiosos de cabalat shabat passaram a ser semanais,
sempre conduzidos por Raul Meyer, sendo a maioria das oraes lidas em portugus e
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havendo sempre uma prdica. A orientao religiosa da Comunidade Shalom era a mesma,
objetivando a participao ativa e o envolvimento dos freqentadores.
No que diz respeito inspirao ideolgica a Comunidade Shalom adotou o modelo do
servio religioso reformista do Templo Emanu-El, de Nova York; no entanto, um grupo de
membros fundadores ainda hoje reivindica autonomia e independncia tanto do movimento
reformista quanto do conservador, no assumindo em nenhum momento de sua histria uma
postura ideolgica definida, mesmo depois das transformaes realizadas nos ltimos anos,
com a contratao do rabino Adrian Gottfried do movimento conservador.
Em julho de 1981 a Comunidade Shalom passou a contar com o trabalho voluntrio do
rabino Ren Werner. O rabino Werner, ainda seminarista, em 1978 atendeu a uma solicitao
do rabino Pinkuss da Congregao Israelita Paulista para ir ao Einstein (o hospital) ler a
Tor nos servios da Shalom. Com formao rabnica nos Estados Unidos, na Inglaterra e
em Israel, tendo atuado nestes pases e tambm na Colmbia, o rabino Werner aceitou o
convite feito por Raul Meyer e ambos passaram a conduzir a comunidade at 1994.
Em 16 de maro de 1982, foram recebidos os primeiros rolos da Tor doados pela
famlia Wolf.
Em 1986 Raul Meyer e Ren Werner, com a colaborao de Hugo Schlesinger e de
Mario Krausz, elaboraram um sidur organizao da liturgia para os servios dirios - e um
machzor liturgia para as Grandes Festas - adaptados orientao religiosa da Comunidade
Shalom. A maior parte dos textos e oraes foi criada pela prpria equipe, que optou por no
se limitar a traduzir ou adaptar textos de outros livros. Os livros, na realidade, eram folhas
mimeografadas e sua edio coube ao Sr. Krausz. O novo sidur e o novo machsor
substituram os livros de reza em uso, que eram os utilizados na Congregao Israelita
Paulista. Em julho de 1995, o sidur foi substitudo, novamente, obedecendo dinmica
prpria da Comunidade Shalom de transformar-se continuamente.
Foi apenas em julho de 1987 que a Comunidade Shalom contrata seu primeiro rabino,
Uri Goren, para o qual esta sinagoga foi a primeira experincia profissional. Nascido no Chile
e graduado pelo Hebrew Union College, seminrio reformista de Cincinnati, o rabino Goren,
em um contrato de dois anos e de dedicao integral, consolidou a orientao religiosa da
Comunidade Shalom e, de acordo com a evoluo mundial do movimento reformista,
introduziu maior nmero de textos e oraes em hebraico nos seus servios. Estruturou, ainda,
as reas de ensino, contratando diversos profissionais em tempo parcial, como Nelson
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Rozenchan e Miriam Markus. Criou o movimento juvenil da Comunidade Shalom, ao qual
deu o nome de Chufsh, e fundou o Hineini15. Nos quatro anos em que atuou (1987-1991) -
seu contrato foi renovado por mais dois anos - a Comunidade Shalom chegou a contar com a
participao de cerca de cento e cinqenta famlias. Terminando o seu contrato, o rabino
Goren quis retornar aos Estados Unidos, que na sua opinio era a verdadeira Terra
Prometida.
O rabino Uri Goren foi substitudo pelo rabino Angel Kreiman, que teve uma atuao
na Comunidade Shalom de apenas trs meses. Chileno, era Gro Rabino em seu pas onde
atuou por quase vinte anos. No momento de sua contratao pela Comunidade Shalom,
ocupava o cargo de presidente da Unio dos Rabinos da Amrica Latina. Tinha uma
orientao conservadora e discordava da forma como o judasmo era visto e praticado nessa
comunidade. Entrou em conflito com a liderana que no abrira mo das caractersticas
reformistas consolidadas desde 1949.
O cargo de rabino voltaria a ser preenchido em 1994, com a contratao do rabino
Leonardo Alanati, carioca, que estudou no Hebrew Union College de Cincinati,
complementando seus estudos com o rabino Roberto Graetz (da Associao Religiosa
Israelita). O rabino Alanati permaneceu na Shalom at abril de 1996, e concentrou seus
esforos em fortalecer o departamento educacional, desenvolvendo cursos e atividades para
todas as faixas etrias: infantil, juvenil e adulta. Terminado o seu contrato de dois anos, o
rabino Alanati deixa a Comunidade Shalom, apesar de, assim como o rabino Goren ter havido
uma colaborao e harmonia intensa entre eles e a liderana. No suportando mais a vida na
movimentada metrpole, preferiu transferir-se para uma kehil e uma cidade menor,
estabelecendo-se em Belo Horizonte.
A Comunidade Shalom chegou a contar por duas vezes com a colaborao de uma
seminarista, Lia Bass, na conduo dos servios das Grandes Festas, como se orgulha sua
liderana: numa clara demonstrao do pioneirismo da entidade e de sua coragem e avano
dentro do mundo judaico brasileiro.
A sada do rabino Alanati levou os membros da Comunidade Shalom a se reunirem em
assemblia geral, no ano de 1996, para definir rumos futuros. Nessa importante reunio de
planejamento estratgico houve consenso, sobre a necessidade de a congregao contratar um
15 Hineini publicao da Comunidade Shalom.
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novo rabino. At 1997 a Comunidade Shalom se preocupou em ter rabinos ordenados pelos
seminrios reformistas, mantendo coerncia ideolgica dentro da proposta inicial do grupo.
Em junho de 1997, foi empossada uma nova diretoria da Shalom, assumindo a
presidncia Marlene Mangabeira, que contou com a colaborao de Gina Wurzmann. Em
setembro desse mesmo ano foi contratado pela Comunidade Shalom o rabino Adrin
Gottfried, graduado pelo Seminrio Rabnico Latino Americano, em Buenos Aires, ligado ao
Jewish Teological Seminary do movimento conservador.
Natural da Argentina, j tinha experincia com a comunidade judaica paulistana,
exercendo a funo de rabino na Congregao Israelita Paulista durante 6 anos. Sua
contratao acarretou uma srie de mudanas estruturais na Comunidade Shalom, dentre elas,
o estabelecimento de uma cozinha kasher, a observncia do shabat nas dependncias da
sinagoga e os servios de cabalat shabat e shacharit - servio de orao da manh de sbado -
que passaram a ser celebrados totalmente em hebraico e com regularidade (em 1997 o servio
de sbado de manh foi celebrado, num primeiro momento, apenas uma vez por ms , a partir
de 1998, todos os sbados e nunca deixou de ser celebrado, mesmo na ausncia do rabino).
Recm-contratado, o rabino Adrian Gottfried se dedicou edio de um novo
machzor - livro de oraes para as Grandes Festas - numa tentativa de conciliao entre o que
j estava estabelecido pela Comunidade e os novos padres do rabino, mesmo sob o olhar
indignado da velha guarda reformista. A edio de um novo sidur mais ampla e completa
foi concluda em abril de 2004.
guisa de resumo, possvel destacar trs momentos no desenvolvimento da
Comunidade Shalom:
Primeiro perodo (1949-1970). O grupo estabelece as bases ideolgicas, inaugurando o
reformismo no cenrio judaico paulistano. Pela primeira vez, toma-se como modelo o
reformismo desenvolvido nos Estados Unidos, em uma sinagoga no Brasil, tanto do formato
quanto no contedo dos servios e rituais religiosos.
Segundo perodo (1979-1997). A Comunidade Shalom deixa de ser um grupo de
famlias para constituir-se em comunidade kehil. So duas as caractersticas deste perodo:
a celebrao de servios em um espao pblico e a contratao de rabinos em tempo integral,
trabalhando, lado a lado com a liderana laica.
Terceiro perodo, iniciado em 1997. marcado por dois fatores essenciais:
primeiramente a contratao de um rabino conservador que traz transformaes significativas
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para a Comunidade Shalom e para o cenrio judaico paulistano. Em seguida, o afastamento de
uma liderana que mantinha esta comunidade tanto ideolgica como financeiramente. Desde
1997, a Comunidade Shalom vem se modificando e desempenhando um papel cada vez mais
significativo dentro da realidade judaica paulistana. Uma outra caracterstica deste perodo a
migrao de um grande nmero de membros da Congregao Israelita Paulista que ocupa,
atualmente, cargos de diretoria e presidncia da Comunidade Shalom.
2.4 - REFORMISTAS E CONSERVADORES NO BRASIL
Como na Europa do sculo XIX, as sinagogas no ortodoxas tm em comum permitir
aos judeus o desenvolvimento de uma identidade judaica condizente com os valores da
modernidade. O objetivo que o judeu no seja diferenciado por sinais diacriticos nem no
comportamento dirio do resto da sociedade em que vive (B. Sorj 1997). Eis uma lista das
sinagogas no ortodoxas brasileiras:
1 - A Sociedade Israelita Brasileira SIBRA- fundada em Porto Alegre, em agosto de
1936 por imigrantes alemes.
2 - A Congregao Israelita Mineira, em Belo Horizonte, liderada, pelo rabino
Leonardo Alanati formado pelo Hebrew Union College - Jewish Institute of Religion
de Cincinati seminrio reformista. Ele foi rabino da Comunidade Shalom no perodo
de 1994 a 1996.
3 - A Associao Religiosa Israelita - ARI - no Rio de Janeiro, fundada em 1942, por
imigrantes alemes. Seu primeiro rabino Henrique Lemle, de origem alem, teve como
parceiro na instalao do judasmo no ortodoxo no Brasil o rabino Fritz Pinkuss. A
ARI liderada atualmente pelo rabino Srgio Margulis, natural do Rio de Janeiro,
formado pelo Hebrew Union College Jewish Institute of Religion - seminrio
reformista, e sua assistente Sandra Cochman natural do Paraguai, formada pelo
Seminrio Rabnico Latino Americano ligado ao Jewish Theological Seminary of
America - seminrio conservador.
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4 - A Congregao Judaica do Brasil CJB- no Rio de Janeiro, fundada em 1989 por
um grupo de dissidentes da Associao Religiosa Israelita, liderada pelo rabino
Nilton Bonder, natural de Porto Alegre, formado pelo Jewish Theological Seminary of
America seminrio conservador, e tambm foi aluno do rabino Zalman do
movimento Renewal.
5 - A Congregao Israelita Paulista - CIP- em So Paulo, fundada em outubro de
1936, por imigrantes alemes liderados pelo rabino Fritz Pinkuss, , desde 1970,
liderada pelo rabino Henry I. Sobel, natural dos Estados Unidos, formado pelo Hebrew
Union College Jewish Institute of Religion seminrio reformista.
6 - A Comunidade Shalom, em So Paulo, fundada em 1970, hoje liderada pelo
rabino Adrian Gottfried, argentino, formado no Seminrio Rabnico Latino Americano
de Buenos Aires ligado ao Jewish Theological Seminary of Amrica seminrio do
movimento conservador.
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Parte II : A Comunidade Shalom No Final Do Sculo XX
I - Perfil do freqentador
1.1 Introduo
Esta uma pesquisa pioneira da Comunidade Shalom, sendo poucas as pesquisas
acadmicas realizadas sobre a coletividade judaica paulistana. Henrique Rattner realizou, nos
anos sessenta, um estudo sobre a coletividade judaica em So Paulo, que a referncia
histrica e conceitual que uso a fim de relativizar os resultados.
As primeiras sinagogas da cidade foram fundadas por imigrantes, vindos da Europa,
da frica do Norte e do Oriente Mdio e mantinham as mesmas tradies das comunidades de
origem. A primeira sinagoga de So Paulo foi fundada em 1912, num sobrado da rua da
Graa, no bairro do Bom Retiro. Atualmente, so 25 sinagogas em So Paulo, dentre elas,
apenas duas se declaram no ortodoxas a Congregao Isra