Etnografia e Comunicao

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1 Fazendo etnografia no mundo da comunicação Isabel Travancas 1 Ref. bibliográfica: TRAVANCAS, Isabel. Fazendo etnografia no mundo da comunicação. In BARROS, A. e DUARTE, J. (orgs.), Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 98-109. A etnografia para a antropologia Há muitas maneiras de se fazer pesquisa no âmbito das ciências sociais e humanas. Este livro apresenta um amplo leque de possibilidades e usos dentro do universo da comunicação. Meu trabalho busca trazer uma contribuição muito específica e particular da antropologia e de seu método de pesquisa no trabalho de campo: a etnografia. Mas o que é exatamente uma etnografia? O velho e bom Aurélio (Ferreira, 1999, p. 849) define etnografia de duas maneiras distintas: como " parte dos estudos antropológicos que corresponde à fase de elaboração de dados obtidos em pesquisa de campo e estudo descritivo de um ou de vários aspectos sociais ou culturais de um povo ou grupo social". Destas duas definições, uma aponta para a idéia de prática do ofício do antropólogo e a outra chama a atenção para a noção de descrição de um grupo. O antropólogo norte-americano Clifford Geertz(1978, p.15) afirma que os praticantes de antropologia social fazem etnografia e esta, a seu ver, não é apenas um método cuja pratica significa somente "estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, assim por diante." Elementos muito importantes no 1 Jornalista, bacharel em Comunicação Social pela PUC-RJ, mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ, doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Autora de O mundo dos jornalistas (SP: Summus, 1993), O livro no jornal (SP: Ateliê Editorial: 2001) e organizadora com Patrícia Farias de Antropologia e Comunicação (RJ: Garamond: 2003). Foi professora dos cursos de Comunicação Social da PUC-RJ, da UERJ e da Estácio de Sá e do Departamento de Antropologia Cultural do IFCS-UFRJ.

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Etnografia e Comunicao

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    Fazendo etnografia no mundo da comunicao Isabel Travancas1

    Ref. bibliogrfica: TRAVANCAS, Isabel. Fazendo etnografia no

    mundo da comunicao. In BARROS, A. e DUARTE, J. (orgs.),

    Mtodos e tcnicas de pesquisa em comunicao. So Paulo:

    Atlas, 2006, pp. 98-109.

    A etnografia para a antropologia

    H muitas maneiras de se fazer pesquisa no mbito das cincias sociais

    e humanas. Este livro apresenta um amplo leque de possibilidades e usos

    dentro do universo da comunicao. Meu trabalho busca trazer uma

    contribuio muito especfica e particular da antropologia e de seu mtodo de

    pesquisa no trabalho de campo: a etnografia.

    Mas o que exatamente uma etnografia? O velho e bom Aurlio

    (Ferreira, 1999, p. 849) define etnografia de duas maneiras distintas: como "

    parte dos estudos antropolgicos que corresponde fase de elaborao de

    dados obtidos em pesquisa de campo e estudo descritivo de um ou de vrios

    aspectos sociais ou culturais de um povo ou grupo social". Destas duas

    definies, uma aponta para a idia de prtica do ofcio do antroplogo e a

    outra chama a ateno para a noo de descrio de um grupo. O antroplogo

    norte-americano Clifford Geertz(1978, p.15) afirma que os praticantes de

    antropologia social fazem etnografia e esta, a seu ver, no apenas um

    mtodo cuja pratica significa somente "estabelecer relaes, selecionar

    informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos,

    manter um dirio, assim por diante." Elementos muito importantes no

    1 Jornalista, bacharel em Comunicao Social pela PUC-RJ, mestre em Antropologia Social

    pelo Museu Nacional da UFRJ, doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Autora de O

    mundo dos jornalistas (SP: Summus, 1993), O livro no jornal (SP: Ateli Editorial: 2001) e

    organizadora com Patrcia Farias de Antropologia e Comunicao (RJ: Garamond: 2003). Foi

    professora dos cursos de Comunicao Social da PUC-RJ, da UERJ e da Estcio de S e do

    Departamento de Antropologia Cultural do IFCS-UFRJ.

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    chamado "trabalho de campo". O que define a sua prtica o tipo de esforo

    intelectual que ela representa e que seria elaborar uma "descrio densa".

    Esta sim a "sua" definio de etnografia.

    Mas o que Geertz entende como descrio densa? Ele a compreende

    como um processo de interpretao que pretende, e espera-se consiga, dar

    conta das estruturas significantes que esto por trs e dentro do menor gesto

    humano. O exemplo que ele escolhe para explicar sua viso da antropologia

    como uma cincia interpretativa que est preocupada em buscar o significado

    o das piscadelas. Uma simples piscadela pode ter significados distintos.

    Pode ser um tique nervoso, pode ser um cdigo de comunicao entre

    pessoas, pode ser um sinal de "paquera", entre outros. E o papel do

    antroplogo ao realizar uma etnografia ser sair da descrio superficial dos

    fatos e compreender como as piscadelas so produzidas, percebidas e

    interpretadas pelos "nativos" daquela sociedade. E esta interpretao pode ser

    completamente diversa daquela do grupo a que pertence o pesquisador.

    Muitas vezes quando se fala em antropologia, seja ela social ou

    cultural, pensa-se sempre em sociedades exticas, distantes, primitivas, e os

    nativos so os habitantes destas mesmas sociedades. E faz sentido. A

    antropologia se caracteriza por ser uma disciplina que tem como eixo central

    a diferena, e sua histria foi escrita por viajantes que pesquisaram

    sociedades exticas, distantes e primitivas; como Bronislaw Malinowski,

    conhecido como o "pai da antropologia" exatamente por ter sido o pioneiro na

    construo de um mtodo de pesquisa inovador: o trabalho de campo. Sua

    primeira experincia de campo aconteceu na Melansia, entre os mailu em

    1914. Malinowski (Durham, 1986) conviveu com os habitantes das ilhas

    Trobriand durante anos, por longos perodos e escreveu um livro, que se

    tornou um clssico da antropologia - Argonautas do Pacfico Ocidental - no

    qual desenvolve quase uma teoria sobre o que o trabalho de campo e como

    este deve ser realizado. Malinowski enfatizar que a convivncia ntima e por

    perodos extensos - o mergulho na cultura do outro - ser a nica maneira de

    o antroplogo conhecer profundamente uma cultura especfica e entender o

    significado de suas lgicas muitas vezes particulares.

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    Mas tudo isso pode soar muito estranho e muito distante das nossas

    sociedades complexas contemporneas. Nem tanto. Depois da chamada Escola

    de Chicago, a antropologia no ser mais a mesma. Esta expresso, mais do

    que um local universitrio, denomina um grupo de cientistas sociais que no

    incio do sculo XX vai direcionar suas pesquisas de perspectiva

    multidisciplinar para os grandes centros urbanos- a antropologia no ser mais

    a mesma. Antroplogos no estudaro exclusivamente sociedades indgenas ou

    distintas e distantes do pesquisador. Comearo a desenvolver trabalhos sobre

    a sua cidade, os seus bairros, os seus habitantes e as suas profisses. Um de

    seus principais expoentes, Robert Park(1990), socilogo que antes de entrar

    para a carreira acadmica trabalhou como jornalista, vai entender e definir a

    cidade como um laboratrio social.

    A partir de ento o trabalho de campo ser realizado de outra forma, e

    exigir do pesquisador diferentes atributos. Os temas se ampliaro e as

    dificuldades sero outras. No ser mais preciso viajar longas distncias para

    se aproximar dos "nativos", no ser necessrio aprender uma nova lngua para

    se comunicar com estes "nativos". Muitos significados da vida cotidiana, de

    rituais e de sistemas de parentesco o pesquisador partilhar com seus

    informantes. Mas a "viagem" ser outra. Roberto DaMatta(1978) em artigo que

    se tornou uma referncia na antropologia brasileira - "O ofcio do etnlogo, ou

    como ter anthropological blues"- afirma que a experincia do trabalho de

    campo se d a partir do movimento, do deslocamento do pesquisador em

    relao sua prpria sociedade. Quando parte para pesquisar outra

    sociedade, longe da sua muitas vezes, preciso que o antroplogo vivencie o

    que DaMatta chamou de "anthropological blues". Estes blues, esta tristeza,

    o resultado da sua tentativa de transformar o "extico em familiar" e "o

    familiar em extico". O primeiro diz respeito ao encontro do pesquisador com

    a sociedade do "outro", do diferente. seu confronto pessoal, no apenas com

    o isolamento e a "saudade", mas com um universo diverso do seu, com outros

    cdigos, outras lgicas, outra maneira de viver e pensar. O segundo

    movimento o que envolve o antroplogo que decide pesquisar a sua prpria

    sociedade, procurando encar-la de uma nova forma, experimentando o

    "estranhamento" dentro da sua prpria cultura.

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    Este trabalho foca sua ateno neste segundo movimento, no

    deslocamento que o pesquisador tem que fazer dentro da sua prpria

    sociedade procurando olh-la com outros olhos, com olhos de um estrangeiro

    em busca de significados. Mais particularmente do significado do mundo da

    comunicao de massa e da indstria cultural com tudo que lhe envolve e diz

    respeito. Seus produtos, seus produtores, seus receptores, suas mensagens.

    Lembrando que no mais possvel pensar e estudar nossas sociedades

    contemporneas de maneira dicotmica em relao ao universo da

    comunicao de massa. Como se ainda fosse possvel separ-los. Nossas

    sociedades hoje se caracterizam e se definem como sociedades de

    comunicao de massa, de informao e entretenimento em escala industrial

    e destinados a um amplo pblico.

    Questes etnogrficas: tericas e prticas

    A etnografia faz parte do trabalho de campo do pesquisador. E entendida como um mtodo de pesquisa qualitativa e emprica que apresenta

    caractersticas especficas. Ela exige um "mergulho" do pesquisador, ou seja,

    no um tipo de pesquisa que pode ser realizada em um perodo muito curto

    e sem preparo. fundamental, como etapa anterior etnografia

    propriamente dita, um levantamento bibliogrfico sobre o tema, a partir da

    leitura de clssicos e de outros estudos contemporneos sobre o assunto e

    afins. Isso porque o pesquisador precisa estar minimamente "iniciado" no seu

    tema. Precisa saber o que j se disse e escreveu sobre o grupo escolhido antes

    de "entrar" nele. Saber quais as dificuldades e os riscos que vai encontrar.

    O antroplogo Gilberto Velho, autor de inmeros trabalhos na rea de

    antropologia urbana, comenta sobre as dificuldades de um a pesquisa sobre

    um grupo marginal ou desviante. Ao estudar jovens usurios de drogas

    pertencentes ao universo de camadas mdias no Rio de Janeiro na dcada de

    1970, Velho(1998, p.67) salienta que os riscos estavam sempre presentes, uma

    vez que se tratava de uma atividade definida como ilegal. E h vrios tipos de

    risco. O risco prtico de ser preso, por exemplo, e o risco de o antroplogo

    fazer julgamentos de valor a respeito da atitude dos jovens estudados. Seu

    objetivo era "registrar com a maior fidelidade possvel o discurso do grupo". E

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    como j foi dito antes, sua anlise ser uma interpretao onde a

    subjetividade do investigador interferiu.

    Outro ponto importante a ser destacado quando se trata de grupos

    desviantes a prpria divulgao do trabalho para alm do circuito

    acadmico. No caso desta pesquisa sobre jovens e drogas, o antroplogo

    resolveu adiar a sua publicao, porque acreditava que mesmo tendo

    substitudo os nomes reais por outros fictcios, havia perigo de os jovens

    serem identificados, assim como os locais que freqentavam. Este apenas

    um entre muitos exemplos.

    O caderno e o campo

    Retomando nosso caminho pela etnografia, a primeira etapa o

    levantamento bibliogrfico e a leitura do material coletado. A segunda etapa

    a elaborao de um dirio ou caderno de campo. Este caderno ter um

    papel fundamental. Nele o pesquisador anotar as questes que o levaram a

    escolher aquele grupo e aquele tema, e as perguntas que tem em mente sobre

    o assunto. Assim o caderno funcionar como um registro descritivo de tudo o

    que ele vir e presenciar, seja em uma aldeia de ndios bororo, seja em uma

    redao de um grande jornal. Na "pr-histria" da antropologia, o caderno de

    campo tinha inmeras funes. O gravador hoje exerce uma que

    anteriormente era exclusiva do caderno: registrar entrevistas, eventos,

    conversas, msicas, liberando, em muitos aspectos, o olhar do pesquisador

    para o que est acontecendo ao redor.

    A terceira etapa, se podemos assim nome-la, a entrada no "campo".

    Trata-se da insero do pesquisador no grupo. E a encontraremos uma

    infinidade de possibilidades e variveis que na realidade esto mais

    relacionadas ao universo pesquisado do que ao mtodo propriamente dito.

    Quando se vai estudar uma aldeia indgena h todo um processo que comea

    muito antes da chegada do investigador l. H muitas etapas e negociaes

    com os orgos envolvidos, como a Funai, por exemplo, com as lideranas

    indgenas, para o pesquisador saber se ser aceito e quais sero as condies

    e exigncias para sua entrada; em muitos casos ainda necessrio o apoio ou

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    mesmo a interferncia de um outro antroplogo que j tenha investigado a

    mesma aldeia.

    Quando decidi estudar os jornalistas em minha dissertao de

    mestrado, eu ainda era jornalista e trabalhava como tal, enquanto cursa a

    ps-graduao. Portanto, tinha bastante contato com aquele "mundo", tinha

    muitos amigos trabalhando em redao e ia as redaes com freqncia. Ou

    seja, aquele no era um universo nem novo nem desconhecido para mim.

    Entretanto, a minha entrada se deu em vrios nveis. Amigos e colegas me

    ajudaram, permitindo o meu acesso redao para conversar com eles - em

    um primeiro momento mais informalmente - e acompanhar o movimento da

    redao. Quando decidi acompanhar os reprteres em suas rotinas de

    apurao, precisei da autorizao das chefias. Ou seja, era possvel circular

    pelas redaes sem problemas, se voc tinha um "passe" - crach de visitante

    - concedido por um colega, mas no sair daquela esfera. E para a autorizao

    do chefe de redao era fundamental apresentar uma carta explicando a

    pesquisa, seus objetivos, prazos e atividades. Feito isso, obtive a autorizao,

    e foi solicitado que eu assinasse uma declarao que desobrigava a empresa

    de pagar qualquer espcie de seguro de sade ou de vida a mim, caso

    ocorresse algum acidente com o carro da reportagem em que eu estivesse.

    Os Instrumentos

    J dentro do "campo" h dois instrumentos importantes de coleta de

    dados. So eles as entrevistas abertas e em profundidade e a "observao

    participante". Como j foi dito, a etnografia implica em uma pesquisa

    qualitativa, que pode at incluir questionrios ou dados estatsticos como

    informaes complementares, mas o cerne do trabalho consiste em perceber

    o que Geertz(1997) chama "do ponto de vista dos nativos". E para isso o mais

    importante observ-los e escut-los. Ousaria afirmar que a antropologia

    uma cincia da escuta. O antroplogo no determina verdades, no aponta

    equvocos, no pergunta porque as coisas no so diferentes. Ele ouve e

    procura entender quais so as verdades para aqueles "nativos", quando e

    porque se enganam e muitas vezes se surpreende se perguntando porque as

    coisas na sua sociedade no so diferentes.

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    - As Entrevistas

    H inmeras formas de se fazer uma entrevista. Desde a definio do

    tempo, do local e das questes que sero abordadas, at como de seus usos.

    Pensemos na entrevista jornalstica. O reprter conversa com o entrevistado

    para obter informaes na maioria das vezes precisas e objetivas sobre um

    fato ou notcia. Pode ser o Presidente da Repblica, um cidado na rua ou um

    criminoso. A entrevista na pesquisa aberta, ou seja, novas questes podem

    ser levantadas na ocasio, tanto pelo entrevistado, quanto pelo entrevistador.

    A princpio tudo que est sendo dito interessa e importante, em maior ou

    menor grau. Porque? Por que estas informaes ajuda na compreenso do

    entrevistado, do grupo a que pertence e das lgicas da sua cultura. As

    entrevistas costumam ser longas, tm vrias horas de durao, podendo ser

    realizadas em vrios encontros em dias e locais diferentes e tm muitas vezes

    a funo de contar histrias de vida. E por isso geralmente comeam do

    comeo. Nascimento, data, local, dados biogrficos do entrevista e de sua

    famlia. E neste tipo de entrevista o pesquisador no inquire seu entrevistado.

    Pode at apontar contradies, ambigidades, pedir mais esclarecimentos.

    Mas ele no julga seu discurso, suas atitudes, suas escolhas. Ele escuta. Ele

    no est em busca de uma resposta verdadeira, objetiva. O prprio fato de

    um entrevistado no querer responder a uma questo, por exemplo, pode

    dizer tanto dele e de sua viso de mundo, quanto uma resposta.

    - A observao participante

    Este termo significa que antes de mais nada o cientista social no se

    coloca ingenuamente, ou pelo menos no deve se colocar, em relao a sua

    presena no grupo. Ele deve estar atento ao seu papel no grupo. Deve

    observar e saber que tambm est sendo observado e que o simples fato de

    estar presente pode alterar a rotina do grupo ou o desenrolar de um ritual.

    Isso no quer dizer que ele tambm no deva ou no possa participar. O

    antroplogo Hermano Vianna(1988) ao estudar o bailes funks cariocas comenta

    que era sempre convidado para danar nos bailes, e sempre recusava. No h

    uma regra, nem um cdigo rgido de comportamento. Depende da

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    sensibilidade do pesquisador. Vianna no sentiu vontade de danar, mas no

    deixou de registrar em seu texto a estranheza que isso causava em seus

    "nativos".

    A antroploga Ruth Cardoso(1986) discute o papel do investigador e seu

    envolvimento com o grupo pesquisado. A seu ver, h uma valorizao da

    observao participante, mas fundamental que ela no se transforme em

    "participao observante". Isso significa que o pesquisador se engaja no estudo

    e muitas vezes se coloca como "porta voz" do grupo investigado, deixando de

    lado o seu compromisso profissional e tico e esquecendo que, embora haja

    um enorme espao para a subjetividade do cientista social neste tipo de

    pesquisa, os dados so formas objetivas e tm vida prpria.

    A escritura

    A ltima etapa deste processo a elaborao do texto. Texto que

    escrito para os seus pares, para a comunidade acadmica e ao qual muitas

    vezes o nativo no ter acesso. claro que o pesquisador no apenas um

    transmissor de falas ouvidas. Para isso bastaria um gravador e algum que

    transcrevesse as fitas. Seu papel fundamental interpretar. Interpretar o que

    est sendo dito, observado e sentido. O trabalho final do antroplogo - seu

    texto - fruto de muitas vozes. Das vozes nativas, das vozes dos autores com

    quem dialoga e da sua voz. E sabe-se que o texto produzido pelo pesquisador

    no pode ser visto como algo separado da sua pesquisa de campo. A

    antroploga Mariza Peirano(1992, p.134) ao comentar o trabalho de V.

    Crapanzano sobre brancos na frica do Sul, enfatiza a relao entre os dois

    processos.

    "Chama-se a ateno para o fato de que a

    maneira como se faz etnografia/pesquisa de campo

    est intimamente ligada forma como se escreve,

    ou melhor, se constri etnografias como textos.

    Assim, esto intimamente relacionados na

    construo etnogrfica a pesquisa de campo

    (incluindo, naturalmente, a escolha do objeto), a

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    construo do texto e o papel desempenhado pelo

    leitor."

    Geertz fala em fico, Crapanzano em romance, por considerar que o

    seu texto plurivocal na sua essncia.

    Etnografias da comunicao

    At aqui conceituamos etnografia, apresentamos suas etapas e

    instrumentos de trabalho. Agora vamos discutir alguns trabalhos etnogrficos

    sobre comunicao.

    Um dos trabalhos pioneiros na rea de televiso o da antroploga

    Ondina Leal (1986). "A leitura social da novela das oito" um marco nos

    estudos de recepo. Nesta dissertao, publicada pela Vozes, a autora

    estabelece um dilogo com os pensadores da Escola de Frankfurt e com

    tericos da comunicao, para entender o lugar e o papel da televiso,

    especialmente o da novela das oito, na sociedade brasileira. Para isso

    selecionou dois grupos de famlias para juntos assistirem a novela. O primeiro

    era formado por pessoas das classes populares e o outro por pessoas de

    camadas mdias intelectualizadas. Todos os dois residentes na cidade de

    Porto Alegre.

    Quais os problemas com que a pesquisadora se deparou ao entrar no

    "campo"? Um deles foi assistir novela com famlias de camadas mdias.

    Porque estas desdenhavam a televiso e em especial a novela. Na opinio

    deste grupo, este produto televisivo estava associado a um repertrio

    popular. Assim, encontrar quem afirmasse que assistia novela regularmente

    no foi fcil. Porque o significado simblico da televiso era muito distinto do

    das famlias de classes populares, onde a televiso e a novela estavam

    associadas modernidade, ver novela era um ritual e a sociabilidade com a

    vizinhana passava pelos temas discutidos no folhetim da televiso.

    Ao longo da pesquisa, Leal foi percebendo que o local que a televiso

    ocupava na casa das pessoas e o lugar que a mesma ocupa na vida das pessoas

    tm uma relao estreita. Ao observar as diferentes casas foi percebendo que

    nas populares, de menor espao, a televiso tem um lugar de destaque e

    mobiliza a todos quando ligada. Nas casas das classes altas, ao contrrio, o

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    espao mais amplo e h lugar para muitas outras coisas, em geral a

    televiso nunca est na sala, mas em um recanto, menos exposta. Este tipo de

    percepo se d a partir de um acompanhamento mais prolongado, de visitas

    a muitas casas, muitas vezes, para se poder observar o grupo com mais apuro

    e escutar melhor os seus discursos.

    Dentre os poucos trabalhos etnogrficos existentes sobre grupos e

    temas ligados comunicao e que selecionei como exemplo est a minha

    dissertao de mestrado O mundo dos jornalistas, realizada em 1991 e

    publicada em 1993 pela Summus. E me justifico usando o argumento de C.

    Geertz(1997, p.89) "A seguir, para tornar tudo isto um pouco mais concreto,

    gostaria de referir-me por uns momentos ao meu prprio trabalho, que,

    sejam quais forem seus defeitos, tem pelo menos a virtude de ser meu(...)".

    Ao estudar jornalistas da imprensa carioca e paulista no incio dos anos

    90 me deparei com outras questes e problemas. Meu ponto de partida era

    pensar a identidade deste profissional e o porqu das pessoas escolherem esta

    profisso. Uma das grandes dificuldades que tive foi de realizar entrevistas

    abertas e em profundidade. Jornalista que trabalha em imprensa diria, seja

    ela impressa, radiofnica ou televisiva, vive em funo da notcia e o

    imprevisto faz parte da rotina. Levei muitos "bolos" e furos. Cheguei a marcar

    trs vezes com um profissional at conseguir entrevist-lo e vrios destes

    encontros no eram nada "tranqilos". Aconteceram em muitas ocasies na

    prpria redao e eram interrompidos constantemente. Demorei algum

    tempo para perceber que aquele empecilho no era intencional, nem estava

    ligado a mim. Os jornalistas estava realmente interessados em participar da

    minha pesquisa, como eu pude comprovar em outros momentos, mas aquela

    impossibilidade de me dar uma ateno exclusiva fazia parte da relao que

    estabeleciam com a profisso. Profisso extremamente absorvente e pela qual

    se diziam "apaixonados".

    Aqui me vi diante de uma outra dificuldade que no exclusividade da

    minha pesquisa: a relao com o discurso do entrevistado. O pesquisador,

    como j salientei antes, no um mero reprodutor de falas "nativas". Nem seu

    trabalho ser apenas expresso do grupo. O papel do investigador se

    distanciar para poder refletir sobre o significado do que dito e visto. Quando

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    meus entrevistados diziam que eram apaixonados pela profisso, apesar de

    todas as dificuldades que enfrentavam, estavam me dizendo algo mais. Fui

    percebendo que, no s este discurso era recorrente, como ele apontava para

    a prpria construo da identidade destes indivduos. Ser jornalista era sua

    identidade primeira e principal e ela determinava um estilo de vida e uma

    viso de mundo particulares.

    Creio que aqui aparece uma das vantagens da pesquisa qualitativa: a

    proximidade com o entrevistado. A maneira como ele se expressa; o tom de

    voz que usa; o seu entusiasmo ao falar de determinados assuntos; a relao de

    confiana que se estabelece entre pesquisador e pesquisado e que ajudar em

    outras etapas da pesquisa; a percepo das contradies no seu discurso; e

    mesmo a possibilidade de abordagem de temas mais complexos ou mesmo

    delicados. Em uma pesquisa quantitativa com aplicao de questionrios,

    ser difcil apreender dos alguns tpicos acima, ainda que ela possa ser

    realizada em um perodo menor de tempo e com um nmero mais amplo de

    pessoas

    Alis, a questo da quantidade um ponto importante e s vezes

    crtico na etnografia. Qual o nmero ideal de entrevistados? O que se entende

    como grupo em termos de quantidade? Estes dados so muito flexveis. No h

    um nmero fixo, pr determinado. Voc pode estabelecer a priori, no projeto

    de pesquisa, o seu corpus, o que no quer dizer necessariamente que v obt-

    lo. Mas a busca no pelos nmeros, mas pelos significados. E a recorrncia

    nos discursos um indicativo. Me lembro que quando comecei as entrevistas,

    achava os profissionais pesquisados muito diferentes entre si. A medida que

    me aprofundava na pesquisa, e principalmente na relao dos jornalistas com

    a profisso, as respostas comearam a se repetir, a serem quase idnticas. E

    no era um "problema" do grupo. Ao contrrio, essa recorrncia enfatizava o

    tamanho da carreira em suas vidas.

    Fazer uma etnografia dos publicitrios foi um dos objetivos do trabalho

    Magia e capitalismo - um estudo antropolgico da publicidade de Everardo

    Rocha(1985). Nele fica evidente o interesse do pesquisador pelo tema. Ele se

    formou em publicidade pela PUC-RJ e tinha uma relao estreita com este

    universo. Chamo a ateno para este dado porque muitas vezes h muitas

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    dvidas na hora da escolha de um tema. No creio que estar prximo do grupo

    investigado seja fundamental, mas acho sim que ter um enorme interesse,

    uma grande curiosidade em conhec-lo melhor so fundamentais. No se deve

    "brigar" com o objeto. Pesquisa no tarefa simples. Tem seus imprevistos,

    exige muita disciplina, um aprofundamento no tema. E se o seu objeto te

    desagrada, mude. Pode ser o "melhor tema do mundo", que dificilmente voc

    conseguir realizar um trabalho de qualidade. Porque como vimos, a

    subjetividade do pesquisador elemento importante no processo. Pode ajudar

    mas tambm atrapalhar.

    Ao estudar os publicitrios, Rocha percebeu, entre outros aspectos, o

    quanto o grupo cria uma distino entre a sua profisso e a de vendedor. Eles

    estabelecem uma hierarquia e mesmo que no consigam se desvincular

    completamente da idia de venda, buscam sempre associar o seu trabalho aos

    mitos construdos de sofisticao e riqueza como frutos do exerccio

    profissional. Assim como associam a sua prtica com a do artista e a do

    cientista, categorias mais valorizadas por estes profissionais.

    Um outro aspecto importante que est presente em Magia e

    capitalismo a utilizao de termos especficos ou de uma linguagem prpria.

    Mdia, contato, house-agencies, so alguns exemplos de um vocabulrio o qual

    nem todos compreendem. Este pode ser um elemento fundamental para a

    entrada do pesquisador no campo e pode tambm coloc-lo em uma situao

    inferior em relao aos seus informantes, por no dominar o vocabulrio que

    est sendo utilizado e ficar "por fora". Em geral, h "nativos" que se tornam

    mais prximos do pesquisador, por afinidade, simpatia ou mesmo interesse

    pessoal na pesquisa. Estes se tornam comumente informantes privilegiados e

    a eles que se recorre para tirar dvidas, para se obter mais informaes, para

    penetrarmos em universos mais fechados. E esta relao pode ser de mo

    dupla. No s o informante ajuda o pesquisador como o inverso tambm

    acontece. Novamente, recorro ao estudo de Vianna sobre o baile funk. Em um

    determinado momento da etnografia, ele empresta um aparelho de som para

    seu informante, o que no s transforma a relao dos dois, como o coloca em

    uma posio muito mais ativa em relao ao grupo.

  • 13

    Escolher assuntos novos, pouco estudados, pode muitas vezes parecer

    impossibilitar a pesquisa. De um lado se exige dos trabalhos acadmicos temas

    originais ou pelo menos tratados de forma original. Por outro lado, estes no

    possuem uma bibliografia consistente para dar base ao pesquisador. O

    trabalho de Patricia Coralis(2004), - uma dissertao de mestrado - sobre um

    f clube virtual um bom exemplo deste ineditismo. Os computadores e a

    comunicao virtual entraram nas sociedades modernas com uma fora e uma

    velocidade avassaladoras. Mas os estudos acadmicos sobre eles ainda so

    excassos. As etnografias mais ainda. Coralis desenvolve uma investigao

    sobre um f clube virtual da Madonnna.

    De sada se coloca a questo de como desenvolver uma etnografia j

    que esta implica em contato com o outro, proximidade, observao

    participante em um universo virtual. A pesquisadora vai entrando no "campo"

    a partir da comunicao virtual com os membros do f-clube. Ela se apresenta

    ao grupo, explica seus objetivos e prepara questionrios para serem

    respondidos atravs da internet. A medida que avana no trabalho, no qual

    busca investigar o quanto o espao virtual modificou ou no o modo de "ser

    f", ela passa a estabelecer contatos pessoais com os participantes, diga-se de

    passagem dispersos por vrias cidades do pas, at participar de um dos

    eventos organizados pelo grupo e conhecer pessoalmente vrios membros do

    f-clube.

    O que ficou evidente com seu trabalho como a condio de f se

    constri e se afirma na interao com os outros e o quanto esta interao

    pode se dar atravs de muitos canais, inclusive o virtual. Ao mesmo tempo, a

    antroploga percebeu que o contato real se faz necessrio e os eventos

    organizados pelo f-clube tambm cumprem este papel. So um espao de

    comemorao, de confraternizao, de reforo desta identidade de f, mas

    tambm de contato pessoal entre jovens que se comunicavam e se conheciam

    apenas virtualmente.

    Estes so alguns exemplos de etnografias sobre o mundo da

    comunicao. Meu intuito ao descrev-las foi aproximar o futuro pesquisador

    da realidade da pesquisa etnogrfica, com suas dificuldades, especificidades e

    atrativos. Pesquisa exige rigor, disciplina, disposio e tambm criatividade.

  • 14

    Pesquisa etnogrfica exige tudo isso e mais um pouco. Mas vale a pena. Ainda

    mais quando a alma no pequena.

    Referncias bibliogrficas CARDOSO, R.(org.) A aventura antropolgica: teoria e pesquisa. SP: Paz e Terra,

    1986.

    CORALIS, P. Nunca te vi, sempre te amei. Uma anlise antropolgica da idolatria a

    Madonna em um f clube virtual. Rio de Janeiro: PPGCS/UERJ, 2004. (dissertao de

    mestrado).

    DAMATTA, R. "O ofcio do etnlogo, ou como ter anthropological blues". Boletim do

    Museu Nacional, n. 27, maio, 1978, p.1-12

    DURHAM, E. (org.) Malinowski: Antropologia. SP: tica, 1986.(Grandes cientistas

    sociais, 55).

    FERREIRA, A. B. H. Novo Aurlio. RJ: Nova Fronteira, 1999.

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    Vozes, 1997.

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    LEAL, O. F. A leitura social da novela das oito. Petrpolis: Vozes, 1986.

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    de Chicago. Paris: Aubier, 1990.

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    ROCHA, E. Magia e capitalismo. Um estudo antropolgico da publicidade. SP:

    Brasiliense, 1985.

    TRAVANCAS, I. O mundo dos jornalistas. SP: Summus, 1993.

    VIANNA, H. O mundo funk carioca. RJ: Zahar, 1988.

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    Literatura recomendada BECKER, H. Mtodos de pesquisa em cincias sociais. SP: Hucitec, 1993.

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