Evolução das relações econômicas internacionais e o Banco do Sul

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EVOLUÇÃO DAS RELAÇÕES ECONÔMICAS INTERNACIONAIS E O BANCO DO SUL por Marcus Faro de Castro Universidade de Brasília Brasília, 29 de fevereiro de 2008 1

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A preocupação principal do trabalho, portanto, diz respeito às discussões sobre a criação do chamado Banco do Sul. Trata-se de matéria que se encontra em pleno desenvolvimento, continuando como objeto de negociação corrente entre os atores relevantes, sem ter adquirido ainda uma forma definitiva, na data de confecção deste trabalho.

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EVOLUÇÃO DAS RELAÇÕES ECONÔMICAS INTERNACIONAIS

E O BANCO DO SUL

por Marcus Faro de CastroUniversidade de Brasília

Brasília, 29 de fevereiro de 2008

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ALBA - Alternativa Bolivariana para os Povos da Nossa AméricaALIDE - Associación Latinoamericana de Instituciones Financieras para el

DessarolloAMU - Asian Monetary UnitASEAN - Association of Southeast Asian Nations [Associação das Nações

do Sudeste Asiático]BAD - Banco Asiático de DesenvolvimentoBERD - Banco Europeu de Reconstrução e DesenvolvimentoBID - Banco Interamericano de DesenvolvimentoBM - Banco MundialBNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e SocialFLAR - Fondo Latinoamericano de ReservasFMI - Fundo Monetário InternacionalFSP - Folha de São PauloGATS - General Agreement on Trade in Services [Acordo Geral sobre

Comércio em Serviços]GATT - General Agreement on Tariffs and Trade [Acordo Geral sobre

Tarifas e Comércio]ICBE - Infraestrutura para o Consumo Social de Bens EssenciaisICSID - International Center for the Settlement of Investment DisputesIFMs - Instituições Financeiras MultilateraisIIRSA - Iniciativa para la Integración de la Infraestructura Regional

SuramericanaIPP - Infraestrutura para a ProduçãoOLADE - Organização Latino-Americana de EnergiaOMC - Organização Mundial do ComércioTRIMS - Trade-Related Investment MeasuresTRIPS - Trade-Related Aspects of Intellectual Property RightsUSD - Dólar Norte-Americano

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EVOLUÇÃO DAS RELAÇÕES ECONÔMICAS INTERNACIONAIS

E O BANCO DO SUL

por Marcus Faro de Castro

Universidade de Brasília

Brasília, 29 de fevereiro de 2008

1- INTRODUÇÃO

Em 08 de outubro de 2007, representantes do Brasil, Argentina, Bolívia, Equador,

Paraguai, assinaram a “Declaração do Rio de Janeiro”. Segundo este documento, os

países signatários haviam alcançado um consenso a respeito da fundação do chamado

“Banco do Sul”. A declaração registra idéias ainda genéricas a respeito da futura

instituição. Por exemplo, é declarado que o Banco do Sul contribuirá para aumentar a

liquidez, revitalizar o investimento e promover a correção de assimetrias na região.1

Este ato foi corroborado, com a assinatura do documento fundacional da nova

organização, em 09 de dezembro de 2007, na Casa Rosada, em Buenos Aires, pelos

presidentes da Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai e Venezuela e um

representante do Uruguai.2 Com isto, confirmava-se a iniciativa regional de instituir-se

uma entidade de cooperação financeira nova na América do Sul, ficando os detalhes

sobre a estrutura organizacional, propósitos específicos e instrumentos de atuação ainda

por serem definidos em negociações que ainda estão em curso.

O ato de criação do Banco do Sul, acima referido, é um sinal de que as relações

econômicas internacionais têm passado por importantes transformações nos anos

recentes. As relações comerciais evoluíram para criar novos cenários no plano

1 Ver: http://www.fazenda.gov.br/portugues/releases/2007/outubro/r081007b.pdf . Ver também http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,AA1649422-5602,00- REUNIAO+NO+RIO+DE+JANEIRO+SOBRE+BANCO+DO+SUL+TERMINA+COM+CONSENSO+POLITICO.html .2 - “Firma del Acta Constitutiva del Banco del Sur”, disponível em http://archivos.minci.gob.ve/doc/09dic2007_firma_del_acta_con.doc . Ver também http://www.policyinnovations.org/ideas/commentary/data/000033

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multilateral, bem como novas opções estratégicas de atores no âmbito regional. Por

outro lado, várias mudanças ocorreram também no campo das relações monetárias

internacionais.

O presente trabalho tem um duplo objetivo: (a) situar temas gerais relevantes e

descrever as mais importantes dessas mudanças no campo das relações monetárias

internacionais, apontando, onde necessário, conexões com questões de cooperação e

estratégias comerciais e políticas, para o fim de (b) fornecer indicações sobre algumas

possibilidades de desenvolvimento institucional do “Banco do Sul”.

A preocupação principal do trabalho, portanto, diz respeito às discussões sobre a criação

do chamado “Banco do Sul”. Trata-se de matéria que se encontra em pleno

desenvolvimento, continuando como objeto de negociação corrente entre os atores

relevantes, sem ter adquirido ainda uma forma definitiva, na data de confecção deste

trabalho.

Tendo em vista as finalidades acima referidas, serão explicitados os conceitos de

“sistema internacional” e “relações econômicas internacionais” nas suas dimensões

comercial e monetária e suas implicações mútuas. Serão situados, também, os temas da

“cooperação econômica internacional”, das transformações do sistema monetário

internacional e da coordenação macroeconômica internacional.

O papel do Fundo Monetário Internacional (FMI), outros fundos multilaterais e dos

bancos privados, bem como estatais (incluindo o Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social – BNDES) e multilaterais (incluindo o Banco Interamericano de

Desenvolvimento – BID) também serão abordados.

Serão, ainda, feitas descrições gerais sobre a integração regional e seus instrumentos

financeiros e comerciais. Os investimentos internacionais e transnacionais, os

empreendimentos privados e em bens públicos (infraestrutura) serão também objeto de

consideração.

Os modelos para o Banco do Sul em discussão e suas implicações políticas (sistema de

governança) e econômicas regionais e internacionais serão analisados brevemente no

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contexto das idéias e temas já mencionados. As análises, de um modo geral, procurarão

sugerir avaliações dos fatos e contextos a partir da perspectiva dos interesses da

sociedade civil.

2 – SISTEMA INTERNACIONAL E RELAÇÕES ECONÔMICAS

INTERNACIONAIS E REGIONAIS

Para avaliar os possíveis papéis de um futuro “Banco do Sul”, é importante entender

que a nova entidade estará em operação como novo ator no “sistema internacional”.

Esta última expressão (“sistema internacional”) tem um significado específico. Designa

o conjunto dos estados territoriais soberanos de todo o planeta e suas interrrelações.

Tal sistema de estados territoriais soberanos foi formado a partir de meados do século

17, tendo existência, inicialmente, no Nordeste da Europa, mas expandiu-se

subsequentemente para abranger, hoje, praticamente, sociedades de todas as regiões do

mundo.

As relações entre os estados (territoriais soberanos) são as chamadas “relações

internacionais”. Tais relações podem existir sob de diversas modalidades. Em uma

classificação genérica, tais relações podem ser (i) de conflito violento, sendo este, em

geral, o caso das guerras; ou (ii) de cooperação. É importante ressaltar que as relações

de cooperação podem incluir formas de conflito de interesses institucionalizado (não-

violento), tais como disputas eleitorais, lobby para ocupação de cargos, articulações

políticas competitivas para a formação de maiorias nos processo de definição de regras,

etc.

Uma outra classificação das relações entre os estados aponta para as diversas áreas da

cooperação. Entre as mais importantes, encontram-se a cooperação política (por

exemplo para assuntos militares e de segurança) e a cooperação econômica. E a

cooperação econômica, por sua vez, pode ser dividida em (1) cooperação comercial; e

5

(2) cooperação monetária ou financeira.3 Portanto, a cooperação comercial e a

monetária são espécies de cooperação econômica internacional.

Ainda uma outra área genérica de cooperação internacional é a da cooperação técnica,

que pode abranger qualquer área de atividade estatal que inclua, por necessidade ou

conveniência, a troca ou transmissão internacional de conhecimentos ou competências

técnicas. Isto pode ocorrer, em princípio, em qualquer área de política pública ou

cooperação.

As divisões mencionadas estão representadas na Figura 1 abaixo.

Figura 1 – Análise das Relações Internacionais

O “Banco do Sul” será uma entidade que atuará no campo da cooperação monetária

internacional – mais especificamente, na cooperação monetária regional. As relações

internacionais chamam-se regionais quando abrangem estados de uma mesma região.

No caso, o Banco do Sul atuará como entidade de cooperação monetária na região da

América do Sul. 4

3 - Neste texto, as expressões “cooperação monetária” e “cooperação financeira” são usadas como sinônimas.4 - Há um debate sobre a possibilidade de se estender o apoio financeiro a países da América Central. Segundo notícias, o Brasil é contra. Nesse sentido, o jornal Folha de São Paulo, na matéria “Ministros fecham proposta para criação do Banco do Sul”, de 09.10.07, registra: “Segundo Mantega, o banco não poderá, a princípio, emprestar recursos para outros países, como Cuba e Nicarágua,

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Ao mesmo tempo, contudo, a entidade poderá ser orientada por seus dirigentes para

tornar-se um ator estratégico nas relações econômicas entre a região e outros países ou

coalizões de países. Em tais coalizões, os países não-regionais (isto é, neste caso, os que

são de fora da América do Sul) podem agir por meio de sua política externa imediata ou

mediata. Neste último caso (política externa mediata), trata-se da ação por meio de

políticas imprimidas às organizações internacionais. Portanto, o Banco do Sul, enquanto

ator regional, poderá ser orientado para interagir competitivamente com a política

externa imediata ou mediata de países não-regionais. A política externa mediata de

atores não-regionais inclui a que é levada a cabo por meio de organizações como o

Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BID), entre outros.

Além disso, O Banco do Sul poderá agir em parcerias estratégicas com bancos

controlados por estados da região – tais como o Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social (BNDES), O Banco da Amazônia (BASA) e outros no Brasil.

Poderá, também desenvolver parcerias estratégicas, ou atuar em competição (conforme

o caso), com bancos controlados por outros estados da região5 e com outro órgão

multilateral de cooperação monetária regional, conhecido como Corporación Andina de

Fomento (CAF).6

3 – RELAÇÕES MONETÁRIAS E COMERCIAIS E

SUAS IMPLICAÇÕES MÚTUAS

conforme queria a Venezuela. O ministro ressaltou ainda que o banco privilegiará projetos de integração da América do Sul, mas que também poderá emprestar recursos para empresas da região.”5 - Exemplos incluem: Banco Ciudad de Buenos Aires (Argentina), Banco de Crédito y Comércio (Cuba), Banco Multisectorial de Inversiones (El Salvador) etc. Tais bancos (e diversos outros) estão frouxamente articulados por meio da Associación Latinoamericana de Instituciones Financieras para el Dessarollo (ALIDE). Ver http://www.alide.org.pe/ . Contudo, a ALIDE tem como membros também bancos controlados por países extra-regionais (Alemanha, Canadá e Espanha) e bancos multilaterais, inclusive o BID.6 A CAF foi criada em 1968 e iniciou a operar em 1970. Tem como sócios: Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Venezuela, Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Jamaica, México, Panamá, Paraguai, República Dominicana, Trinidad & Tobago e Uruguai. Além, disso, a entidade tem um país de fora do continente (Espanha) e bancos comerciais que são também sócios. Ver: http://www.caf.com/view/index.asp?ms=17 .

7

É útil delinear as relações monetárias e comerciais, bem como suas implicações mútuas,

para o fim de contextualizar as possibilidades de atuação do Banco do Sul como

instrumento de cooperação monetária regional.

Tendo em vista as necessidades de pagamento das despesas com as importações, cada

país necessita ter reservas de moedas estrangeiras para a efetuação desses pagamentos.

A hegemonia dos Estados Unidos, após a Segunda Guerra, transformou o dólar

americano (USD) em meio de pagamento para as trocas internacionais. Nesse contexto,

em princípio, a demanda e a oferta de USD, para pagamento das importações e

recebimento do pagamento de exportações de cada economia nacional, pesa

decisivamente sobre o estabelecimento das taxas de câmbio entre as diversas moedas

nacionais e o USD. A demanda e oferta do USD resultam em uma dada taxa de câmbio

para cada moeda nacional diante da moeda norte-americana.

Ao mesmo tempo, após a Segunda Guerra Mundial, organizou-se também um esforço

diplomático internacional no campo da cooperação comercial. Este esforço, em 1947,

tomou a forma do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) [Acordo Geral

sobre Tarifas e Comércio], cuja política essencial era a liberalização comercial,

incialmente por meio da redução de tarifas.

Portanto, os vínculos entre câmbio e comércio resultaram, inclusive, na introdução de

dispositivos no acordo chamado “GATT 1947”, que estruturou as negociações

comerciais após a Segunda Guerra Mundial e foi absorvido pelos acordos hoje vigentes

sob o regime da Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1995.

Por outro lado, um outro fator contribuiu também para o estabelecimento do USD como

meio de pagamento das trocas internacionais. Este outro fator foi a circunstância de que

as regras do acordo de Bretton Woods, que estabeleceu o regime de cooperação

monetária internacional vigorante entre o final da Segunda Guerra Mundial e os anos

1970 (chamado “regime de Bretton Woods”), tenham estipulado a conversibilidade das

moedas dos países membros ao USD e apenas deste ao ouro.

A cooperação monetária internacional após a Segunda Guerra Mundial visava à

estabilidade das taxas cambiais, em apoio ao esforço de redução de tarifas comerciais, a

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partir das negociações no âmbito do GATT. Dado um ambiente de estabilidade de taxas

de câmbio, a redução de tarifas, que promove uma abertura maior de mercados internos

ao comércio internacional, pode ser feita sem que haja modificações do padrão de trocas

comerciais eventualmente provocadas por instabilidades cambiais. Nesse contexto, a

coordenação cambial, promovida por meio da cooperação monetária, portanto,

estabelece condições favoráveis a que haja menores problemas (reversões inesperadas

de fluxos comerciais) para os países que engajarem em reduções de tarifas e abrirem

seus mercados à competição internacional.

4 – TRANSFORMAÇÕES DO SISTEMA MONETÁRIO INTERNACIONAL E

COORDENAÇÃO MACROECONÔMICA INTERNACIONAL

Ocorre que ao longo do tempo, até a década de 1970, os Estados Unidos desenvolveram

uma política inflacionária, decorrente em grande parte de despesas com a Guerra do

Vietnã e com políticas sociais como o chamado Great Society Program, do presidente

Lyndon Johnson (gov. 1963-1969). Os déficits gerados por tais despesas eram

financiados por governos estrangeiros.

A política de financiamento inflacionário dos Estados Unidos levou os europeus a

protestarem e tornou o USD sujeito a pressões, o que levou o presidente Richard Nixon,

em 1971, a decretar a inconversibilidade da moeda de seu país em ouro. Esta mudança

desorganizou o esquema de cooperação monetária internacional do segundo pós-guerra,

tal como fora inicialmente instituído, e ocasionou uma transição para a flutuação

cambial (equivalente à ausência de cooperação), com a subseqüente formação de “zonas

cambiais” (USD, Yen e Marco Alemão).

Paralelamente ao declínio do “regime de Bretton Woods”, desenvolveu-se uma prática

de coordenação cambial elitizada e informal, que marginalizou por completo a vontade

política dos países em desenvolvimento. De fato, os esforços de coordenação cambial

passaram a ocorrer fora do FMI, nas reuniões informais e elitistas do G3, G5 e G7 (hoje

G8). Isto, evidentemente, desinstitucionalizou a cooperação monetária para fins de

coordenação cambial. A subseqüente valorização do Euro e os acúmulos de reservas por

parte da China (um país fora da órbita de alianças tradicionais com o Ocidente)

9

mudaram completamente as perspectivas da cooperação monetária internacional e suas

vinculações com as políticas comerciais.

Por outro lado, desde 1971, com a decretação da inconversibilidade do USD em ouro,

criou-se a necessidade de serem desenvolvidas práticas de coordenação

macroeconômica internacional.

A necessidade de coordenação macroeconômica internacional se deve à liberalização

cambial (desregulamentação das contas de capital) que foi sendo pragmaticamente

implementada por diversos países, a começar pelos Estados Unidos em 1973,

permitindo operações financeiras transfronteiriças livres de controles estatais. A

competição econômica estratégica levou os diversos países a adotarem medidas de

liberalização cambial ao longo dos anos 1970-1990.

Além disso, na década de 1980, desenvolveram-se mecanismos de cooperação

“invasivos”. Com efeito, até os anos 1970, a cooperação monetária incidia sobre ajustes

no balanço de pagamentos (portanto, sobre o setor externo da economia) e a cooperação

comercial (via negociaçãoes no GATT, até a Rodada Kennedy de 1964-1965) dizia

respeito a tarifas (novamente, setor externo da economia). Contudo, os “ajustes

estruturais” do FMI e do Banco Mundial, introduzidos nos anos 1980, e também os

novos temas da pauta de negociação no GATT, tais como “subsídios” e “compras

governamentais” na Rodada Tóquio (1973-1979), recaíam sobre políticas internas das

economias nacionais.7

Com isto, passa a ser relevante o desenvolvimento de esforços no sentido da

“coordenação macroeconômica” internacional: tendências como inflação e variação

cambial ocorrem em um contexto de maior interdependência econômica e financeira

internacional.

7 - Na área comercial, esta tendência de as políticas de cooperação econômica se tornarem “invasivas” acentua-se ainda mais com a inclusão, na Rodada Uruguai do GATT (1986-1994), de temas como (a) “propriedade intelectual” (no acordo Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights – TRIPS), com reflexos sobre políticas de saúde desenvolvimento etc.; (b) “investimento” (no acordo Trade Related Investment Measures – TRIMS); entre outros.

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Mais recentemente, ainda, com (a) desmutualização das bolsas de valores e de

mercadorias e futuros e (b) a sofisticação dos produtos financeiros (entre o quais o

aparecimento dos produtos de “finanças estruturadas”, que estavam na origem da

chamada “bolha” especulativa do mercado imobiliário norte-americano), não apenas a

interconectividade das políticas macroeconômicas se torna relevante, como também

múltiplos vínculos contratuais privados (inclusive contratos de financiamento) entre

empresas transnacionais. Tais vínculos não são facilmente monitoráveis, dada a

existência do direito ao sigilo, inclusive no âmbito dos “paraísos fiscais”.

A multiplicação desses vínculos contratuais privados com instrumentos e mercados

financeiros não-regulados (e.g., fundos hedge e mercados de balcão) ou

insuficientemente regulados por autoridades públicas, contaminam de instabilidade, em

qualidade e preço, a oferta bens essenciais ou de infraestrutura, o que gera impactos

sobre o exercício da cidadania (que pressupõe acesso bens essenciais como educação,

saúde, energia, água/saneamento etc.) e sobre a competitividade da economia de países

em desenvolvimento (ver mais sobre isto adiante).

5 – ESTRATÉGIAS FINANCEIRAS E DESENVOLVIMENTO

5.1 – Regramento de finalidades e modalidades contratuais de financiamento

Como ator dedicado à promoção da cooperação monetária regional, o Banco do Sul

poderá, em tese, fornecer financiamentos de vários tipos a Estados, entidades públicas e

grupos de interesse. É importante entender que os financiamentos ou aportes de capital

poderão (em tese) ser oferecidos:

(a) para diversas finalidades; e

(b) sob variadas modalidades contratuais.

As diversas finalidades e as diferentes modalidades contratuais dos aportes de capital

dependerão em grande parte das regras a serem criadas para estabelecer a estruturação

do Banco do Sul. De qualquer modo, é claro que, dependendo de quais sejam as regras e

políticas adotadas, as finalidades e modalidades contratuais podem ter conseqüências

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muito diferentes, inclusive no que diz respeito às possibilidades de desenvolvimento

econômico e social na região da América do Sul.

Além disso, também o grau de discricionariedade com que poderão agir os dirigentes do

Banco na escolha de finalidades e modalidades contratuais dependerá dos termos em

que os estatutos e outros documentos jurídicos e organizacionais da nova entidade serão

redigidos. E isto tudo depende, a seu turno, ainda de negociações entre os países

comprometidos com a criação do Banco do Sul. Sejam quais forem as decisões tomadas

nesses campos, a oferta de bens essenciais ou de infraestrutura constitui condição

estratégica para o alavancamento do desenvolvimento econômico e social.

Para entender o papel e possíveis conseqüências das diferentes finalidades dos

financiamentos, é útil atentar para as seguintes distinções, próprias do âmbito da

cooperação monetária internacional. Os financiamentos podem, em tese, servir para

cobrir, parcial ou integralmente, as necessidades de capital de:

projetos de investimento estatais produtivos;

projetos de investimento público (estatal) em infraestrutura para a produção

(água, energia, estradas, portos etc.) ;

serviços financeiros acessórios ao comércio regional e/ou internacional

(seguros, garantias, créditos à exportação etc.);

participação acionária em empresas privadas de valor estratégico;

participação acionária em outras empresas privadas;

créditos subsidiados para empresas privadas ou públicas (estatais) com valor

estratégico;

serviços financeiros (seguros, garantias) acessórios aos investimentos

privados ou de empresas do setor público;

assistência de liquidez, em casos de déficits nos balanços de pagamento de

países da região;

assistência técnica, acessória à implementação de outras formas de emprego

de capital, mencionadas acima;

projetos de construção institucional para promoção estratégica do próprio

Banco do Sul (ou de atores apoiados) no âmbito de articulações

internacionais ou regionais, tais como associações, fórums, redes etc.

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Todas essas finalidades podem ser utilizadas para apoiar estratégias de desenvolvimento

econômico não-subordinado (competitivo) e de desenvolvimento social da região da

América do Sul.

5.2 – Necessidades de capital destinado a serviços de “infraestrutura para o

consumo social de bens essenciais” (ICBE) e suas relações com a cidadania e a

competitividade

Em tese, e para fins analíticos, poderiam ser acrescentados, ainda, os aportes de capital

destinados a apoiar projetos de investimento, estatais ou privados, ou mistos, em

“infraestrutura para o consumo social de bens essenciais” (ICBE). Os projetos de ICBE

geram e fornecem bens essenciais, tais como água para consumo residencial,

saneamento básico, atenção básica à saúde, educação, energia residencial, serviços de

segurança alimentar etc.

Embora não seja usual a distinção entre “infraestrutura para a produção” (IPP) e a

“infraestrutura para o consumo social de bens essenciais” (ICBE), ela é útil do ponto de

vista das agendas de inúmeros grupos da sociedade civil e não é adequadamente

abrangida pelas categorias analíticas da economia ou do direito público.8

Grandes áreas de ICBE podem ser consideradas as seguintes:

(i) energia;

(ii) água / saneamento;

(iii) clima, atmosfera (captura, seqüestro e comércio de carbono);

(iv) biossegurança / biodiversidade / segurança alimentar / saúde pública;

(v) transporte / telecomunicações;

(vi) educação / sistemas de inovação científica e tecnológica; e

(vii) segurança internacional / segurança pública

Projetos de ICBE em diversas áreas têm sido alvos de financiamentos gerenciados por

meio cooperação financeira multilateral tradicional. Esta é constituída das práticas de

8 - Por exemplo, a distinção apontada não tem expressão (a) no conceito de “bem público” da economia, nem (b) no de “serviço público” do direito administrativo europeu continental (a que se filiam o Brasil e países da América Latina) e nem tampouco (c) na noção jurídica anglo-americana de “public utility”.

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cooperação monetária promovidas pelas instituições financeiras multilaterais (IFMs),

criadas depois da Segunda Guerra Mundial, tais como o Fundo Monetário Internacional

(FMI), o Banco Mundial (BM) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),

criadas e mantidas sob o comando hegemônico de países do Norte global, para atender

aos seus objetivos estratégicos políticos e econômicos.9

No âmbito da cooperação monetária tradicional, os créditos multilaterais são

contratualmente estabelecidos em termos que exigem a adoção de reformas de

“privatização”, conducentes ao desaparecimento dos esquemas clássicos de ICBE, tais

como os “serviços públicos”.10 Isto significa que, em tais casos, são crescentemente

suprimidos os investimentos públicos em ICBE, e os bens essenciais passam a ser

juridicamente tratados como serviços comercialmente prestados (vendidos com intuito

de lucro) e não como direitos indisponíveis.

Dada essa mudança do regime jurídico, decorrente de reformas contratualmente

induzidas pelas IFMs por meio de “condicionalidades”, os preços (que passam a ser

preços privados, e não mais preços publicamente administrados) resultam na

segmentação dos novos mercados (dos serviços) por classes e sub-classes econômicas

de consumidores, até o ponto da formação de uma massa, indefinida e variável no

tempo, de consumidores excluídos ou condenados ao sub-consumo. Essa condição, por

sua vez, leva à precarização tanto da cidadania quanto da oferta de trabalho qualificado

nos países em desenvolvimento. Tal precarização da cidadania e do trabalho,

evidentemente, tem reflexos negativos também na formação da capacidade relativa de

inovação tecnológica nos países em desenvolvimento, e contribui para a manutenção de

desvantagens estruturais no campo da competitividade comercial, que é assim mantida

em níveis relativamente menores no Sul global do que no Norte global.

9 - No presente trabalho, a expressão “instituições financeiras multilaterais” (IFMs) será reservada para designar as organizações multilaterais de cooperação financeira criadas sob o controle hegemônico do Norte global após a Segunda Guerra Mundial, sendo os principais exemplos as entidades já citadas: FMI, Banco Mundial e BID, às quais se acrescentam, ainda, organizações como o Banco Asiático de Desenvolvimento (BAD), o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD), entre outros. 10 - O conceito jurídico de “serviço público” tem origem na obra de Léon Duguit (1858-1928), autor clássico do direito administrativo francês. Países como o Brasil têm procurado reformar os serviços públicos, substituindo o conceito pelo de “regulação” com base em “agências reguladoras independentes”, noção de origem anglo-americana.

14

Vale acrescentar, também, quanto a esse ponto, que a cooperação comercial

multilateral, crescentemente absorvida pela Organização Mundial do Comércio (OMC),

tende a promover – por meio de acordos como “General Agreement on Tariffs and

Trade” (GATT) [Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio] e o “General Agreement on

Trade in Services” (GATS) [Acordo Geral sobre Comércio em Serviços]11 –

precisamente as mesmas agendas de reformas liberalizantes apoiadas mediante a

cooperação financeira via IFMs. As políticas externas mediatas (multilaterais) dos

países desenvolvidos, nas áreas da cooperação monetária e da cooperação comercial,

portanto, convergem para a promoção da supressão dos investimentos públicos em

ICBE, nos países em desenvolvimento. Esse processo inclui, evidentemente, a

multiplicação de vínculos contratuais privados e a expansão de suas interconectividades

contratuais com mercados financeiros internacionais não regulados ou insuficientemente

regulados.

Além disso, diante de obstáculos em negociações multilaterais via OMC, trazidos pela

coalizão de países em desenvolvimento desde a V Reunião Ministerial da OMC,

ocorrida em 2003 em Cancun, México, países do Norte global têm adotado a estratégia

de impulsionar mais vigorosamente negociações de tratados bilaterais de livre

comércio com diversos países subdesenvolvidos (tratados comerciais bilaterais Norte-

Sul).12 Tais tratados estipulam a realização de reformas em políticas locais de países

subdesenvolvidos igualmente favorecedoras do desaparecimento ou da prevenção da

realização de investimentos públicos em ICBE. Um exemplo tem sido a sistemática

derrogação (contratualmente estabelecida em tratados bilaterais de investimento) da

competência do sistema judicial nacional em favor da competência do tribunal arbitral

chamado ICSID,13 montado em Washington, D.C., sob a alçada do Banco Mundial.14

Ao ocupar o espaço da cooperação monetária hoje monopolizado pelas IFMs, o Banco

do Sul poderá se constituir em um valioso instrumento para reverter esta situação de

11 - Setores de serviços relevantes em que mais de 40 países fizeram ofertas sob o GATS incluem: turismo, serviços financeiros (inclui serviços bancários e de seguros), telecomunicações, transporte, indústria da construção, meio ambiente, distribuição, saúde, educação.12 - Ver: http://www.bilaterals.org 13 - International Center for the Settlement of Investment Disputes. Ver: http://www.worldbank.org/icsid/ 14 - Um exemplo de atuação recente do ICSID pode ser encontrado no caso da re-estatização da empresa Águas Argentinas, de Buenos Aires. Ver: http://www.escr-net.org/caselaw/caselaw_show.htm?doc_id=404862

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“precarização” da cidadania e da oferta do trabalho qualificado (e suas conseqüências

em termos perda de competitividade), internacionalmente induzida pelas políticas de

cooperação monetária e comercial multilateral. Do mesmo modo, o Banco do Sul

poderá ser usado para contrabalançar e neutralizar ou mesmo reverter a precarização da

cidadania e da oferta de trabalho qualificado que decorrem de tratados comerciais

bilaterais Norte-Sul na região.

O combate à precarização da cidadania e da oferta de trabalho qualificado (com reflexos

sobre a competitividade internacional das economias da América do Sul) é direta ou

indiretamente enfatizado em vários documentos e depoimentos de atores relevantes,

inclusive na declaração de Hugo Chávez, segundo a qual a criação do Banco do Sul,

juntamente com a de empresas regionais de cooperação em infraestrutura, como a

PetroSur, representam “a união do esforço dos países da América do Sul para derrotar a

pobreza, a miséria, a marginalidade, o analfabetismo, para assegurar ao nosso povo

educação, saúde, habitação, emprego digno”.15

Em sentido semelhante, também na reunião de 09 de dezembro de 2007, na casa

Rosada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil) sublinhou a idéia de que o banco

venha a

“financiar projetos em setores chaves de nossas economias, como infraestrutura, ciência e tecnologia, além de promover o desenvolvimento social com projetos voltados para a redução da pobreza e das assimetrias da região”. 16

A visão política de que o Banco do Sul venha desempenhar um papel estratégico na

promoção do desenvolvimento econômico e social parece, portanto, bem sedimentada.

5.3 – Câmbio, Comércio e Macroeconomia

Merece destaque, também, o possível papel do futuro Banco do Sul como agência de

cooperação monetária com atuação relevante na coordenação cambial regional e na

facilitação da estabilização macroeconômica na região.

15 - Ver “Nació Banco del Sur en Buenos Aires”, em http://www.telesurtv.net/secciones/noticias/nota/21757/nacio-banco-del-sur-en-buenos-aires/ 16 - Ver “Firma del Acta Constitutiva del Banco del Sur”, disponível em http://archivos.minci.gob.ve/doc/09dic2007_firma_del_acta_con.doc

16

Em termos gerais, a cooperação monetária estabelecida por meio do FMI, logo após a

Segunda Guerra Mundial, era centrada no esforço de criação e sustentação de um

regime cambial internacional, cujo objetivo mais amplo era favorecer a estabilidade das

taxas de câmbio para todos os países-membros, como já dito. A estabilidade cambial,

que já havia sido promovida pelo chamado “Padrão Ouro Internacional” entre o final do

século 19 e o período entre-guerras, passava a ser objeto do esquema de cooperação

monetária presidido pelo FMI a partir de 1945.

É comum que a estabilidade das taxas de câmbio seja vista como uma condição positiva

para a realização de investimentos produtivos transfronteiriços (pois em tese minimiza

ou elimina o chamado “risco cambial”) e para a incrementação do comércio

internacional. O crescimento das trocas comerciais, por sua vez, ao propiciar maior

dinamismo aos mercados em geral, deve (em tese) contribuir para o crescimento da

produção e do emprego em todo o mundo.

O esquema de cooperação monetária presidido pelo FMI previa, como instrumento

central, a concessão de empréstimos de assistência de liquidez para os países com crises

nos balanços de pagamento. Tais déficits poderiam ocorrer por motivos diversos

relacionados à administração das finanças públicas nacionais (políticas fiscais,

administração tributária, processo orçamentário etc.) e por déficits acumulados nas

trocas comerciais. Assim, o déficit no balanço de pagamentos tornava o país deficitário

elegível para receber um crédito do FMI.

Contudo, como se sabe, fortaleceu-se no FMI (que logo foi secundado nisso pelo Banco

Mundial) a prática de agregar “condicionalidades” (estipulação contratual de reformas

de políticas públicas no sentido já explicitado) para que os países deficitários

(subdesenvolvidos) tivessem acesso aos créditos. Esse tipo de prática permanece até

hoje. E, embora em anos recentes diversos países, como o Brasil, a Argentina e outros,

tenham acumulado reservas suficientes para dispensar a assistência financeira do FMI,

os empréstimos via Banco Mundial e BID continuam sendo praticados, com a

imposição de condicionalidades, conforme já explicitado.

17

O Banco do Sul pode, em tese, também ter um papel na área da cooperação monetária

regional, oferecendo empréstimos de assistência de liquidez para países da região que

experimentem dificuldades na manutenção de estabilidades cambiais relativas. Com

isso, potencialmente, o Banco do Sul pode tornar dispensável este tipo de cooperação

monetária hoje a cargo de FMI, com a colaboração do Banco Mundial e do BID.

Assim, a cooperação monetária para finalidades de apoio à administração das taxas de

câmbio corresponde à coordenação cambial, que poderia, em tese, ser exercida

regionalmente pelo Banco do Sul. É importante frisar, contudo, que tal coordenação

pode adquirir várias formas, em termos de engenharia financeira e institucional. Não

necessita reproduzir o esquema do FMI, nem dos bancos multilaterais.

Um exemplo de estrutura de cooperação financeira alternativa é a chamada “Iniciativa

Chiang Mai”, adotada pela ASEAN (Association of Southeast Asian Nations)

[Associação das Nações do Sudeste Asiático]. Sob este esquema de cooperação

monetária regional, a coordenação cambial envolve: (a) a existência de um fundo de

bônus financeiros, (b) uma unidade monetária regional – a chamada Asian Monetary

Unit (AMU) – e (c) acordos de “swap cambial”, com operações financeiras nessa

modalidade de contrato financeiro sendo acionadas no âmbito de parâmetros de

variações cambiais estipuladas entre os membros da associação. Este esquema de

cooperação cambial contribui para manutenção de níveis de estabilidade cambial

regional, a partir dos quais outras políticas macroeconômicas nacionais podem ser

projetadas.

Por semelhantes meios ou outros, a coordenação cambial regional na América do Sul

pode ser estruturada de maneira apoiada no Banco do Sul, com ou sem a criação de

fundos de estabilização, e pode ser feita inclusive em termos que favoreçam a

manutenção de patamares regionalmente negociados de equilíbrio macroeconômico.

Além disso, a coordenação cambial regional que pode ser promovida com apoio

institucional e financeiro do Banco do Sul pode visar, ainda, à sustentação de estratégias

comerciais de países-membros. Entre as estratégias comerciais podem ser incluídas

negociações na OMC e mesmo a reversão de tratados de livre comércio ou de

investimento celebrados na região. A idéia, nesses casos, seria a de utilizar os recursos

18

do Banco do Sul, inclusive mecanismos de coordenação cambial, para exercer um

contrapeso financeiro a reveses que venham a resultar de detrações ou denunciações de

tratados bilaterais ou regionais em que prevalecem os interesses hegemônicos de países

não regionais.

Na verdade, contudo, hoje parece improvável que o Banco do Sul irá não ter essa

função de auxiliar na coordenação cambial regional e na estabilização macroeconômica.

De acordo com o plano original proposto pela Venezuela e pela Argentina, o banco

assumiria esta função. Mas a proposta apresentada pelo Equador posteriormente propõe

a criação em separado de um “Fondo del Sur”, “que sirva para financiar déficit de

balanza de pagos o déficit fiscales excepcionales cuando estos ocurran, sin las

condicionalidades hoy existentes en el FMI.” (trecho da proposta equatoriana). Para o

Brasil, também, o Banco do Sul deve restringir-se a oferecer créditos destinados a

apoiar o desenvolvimento regional. Sobre isto o jornal New York Times registrou que o

Brasil se recusou a apoiar abertamente a criação da nova entidade até que ficasse

esclarecido que “o papel do banco ficaria limitado a apoiar o investimento na região, e

não criaria um fundo de emergência para socorrer países em crise econômica como faz

o FMI”,17 conforme pretendia inicialmente Hugo Chávez.

A posição do Brasil – convergente com a do Equador – voltou a ser afirmada e ganhou

apoio na reunião de cúpula de 09 de dezembro de 2007, em Buenos Aires. Naquela

ocasião, considerou-se a separação da coordenação cambial regional e políticas de

estabilização, de um lado e, de outro, as atividades de financiamento de investimentos

produtivos e em ICBE. Nessa perspectiva, os seis países (Argentina, Bolívia, Brasil,

Equador, Paraguai e Venezuela) concordaram em reforçar o “Fondo Latinoamericano

de Reservas (FLAR), destinado a administrar políticas de estabilização, como um

projeto separado do Banco do Sul.18

Em sentido semelhante, a proposta do Equador, que enfatiza a necessidade de se pensar

a formação de “uma nova arquitetura financeira” para a região, calcada na criação de

um “Fundo do Sul”, explora a idéia de agregar a capacidade de poupança dos países sul-

americanos, para fins de cooperação. Rafael Correa, presidente do Equador, apontou 17 - New York Times, “Chávez’s Plan for Development Bank Moves Ahead” 22/10/07.18 - Cf. “El Banco del Sur tiene el apoyo de seis naciones” em http://www2.elcomercio.com/noticiaEC.asp?id_noticia=108378&id_seccion=6

19

que “a América Latina possui reservas de mais de USD 250 bilhões depositadas por

bancos centrais fora da região”, em especial no primeiro mundo, com o pretexto de

obter segurança e liquidez.19 A nova arquitetura financeira regional permitiria reunir

essas reservas, que seria destinadas a alimentar o “Fundo do Sul”.

O presidente Lula mencionou, também, na mesma ocasião,20 que a dependência da

região frente ao sistema financeiro internacional poderia ser diminuída com a criação

iniciativas complementares de cooperação financeira regional, tais como:

(a) a criação de um fundo de estabilização para países no balanço de pagamentos;

(b) a implantação de um sistema de pagamentos em moeda local; e

(c) a criação de um fundo sul-americano de garantias.

Portanto, embora as instituições financeiras mencionadas (Banco do Sul, fundos de

estabilização e garantias e sistema de pagamentos regional) pudessem ser formalmente

articuladas em um desenho institucional unificado, as informações existentes, indicam

que a preferência política de países de peso21, com respeito ao desenho institucional da

cooperação financeira que emerge na América do Sul, a partir da proposta da criação do

Banco do Sul, deverá ser a da divisão de tarefas. Neste modelo, que parece firmar-se

como prevalecente, o Banco do Sul deverá permanecer dedicado a financiar

investimentos em empresas publicas e/ou privadas e em cooperação para fins de

integração regional em infraestrutura, com separação administrativa em relação a

programas complementares, a serem criados nas áreas de estabilização cambial e

macroeconômica, garantias sistema de pagamentos intra-regionais.

6 – ESTRUTURAS DE GOVERNANÇA

Evidentemente, as possibilidades de se desenvolverem práticas de cooperação monetária

regional exigem também a formação de consensos sobre as formas de governança de

instituições a serem criadas. Para um Banco do Sul, independente de “fundos” (de

19 - Idem.20 - Idem.21 - Especialmente o Brasil. A posição do Brasil, neste aspecto convergente com a do Equador, é possivelmente uma estratégia diplomática que busca evitar a possibilidade de atrelamento institucional de um Banco do Sul a interesses integracionistas da Venezuela (ALBA) com características de hegemonia regional daquele país.

20

estabilização e de garantias), vários esquemas de repartição de poder de voto se

apresentam.

Há informações segundo as quais o capital a ser subscrito inicialmente para a nova

instituição será de USD 7 bilhões. As possibilidades de divisão do poder de voto

correspondem a regras diferentes de deliberação institucional, com critérios que podem

levar em consideração, ou não os aportes individuais de capital. As possibilidades de

organização deliberativa22 podem ser resumidamente representadas nas seguintes

hipóteses:

QUADRO I

POSSÍVEIS SISTEMAS GOVERNANÇA PARA O BANCO DO SUL

I. Um país, um voto – Neste caso, cada país (sócio do banco) tem direito a um

voto, independentemente do aporte de capital individual, ou de outros critérios.

II. Voto proporcional à participação no capital, sem ponderação – Nesta hipótese,

cada país (sócio do banco) tem poder de voto em proporção direta com o aporte

de capital e sem a consideração de outros critérios.

III. Voto proporcional à participação no capital, com ponderações – Cada país

(sócio do banco) tem poder de voto em proporção direta com o aporte de

capital, modificado por outros critérios. Os critérios considerados podem incluir

um ou mais dos seguintes: população absoluta; população relativa à soma da

população dos sócios; produto interno bruto, absoluto ou per capita; outros

dados ou índices econômicos ou sócio-econômicos. Este sistema pode ser usado

para gerar “quotas” de poder de voto e depende de negociações políticas

detalhadas.

IV. Divisão de sócios em classes, sem ponderação – Nesta hipótese, pode ser

adotado o sistema representado no item “II” acima, mas com divisão de sócios

em “classes”, exemplificativamente as classes “A” e “B”, reservando-se o

direito de voto aos sócios da primeira classe e apenas o de voz e

22 - Ver informações relevantes em: Abin (reproduzido da gazeta Mercantil, com AFP), “Banco do Sul adotará sistema de voto unitário”, em http://www.abin.gov.br/modules/articles/article.php?id=65; Info Brief – V. McElhinny / Bank Information Center, “Bank of the South” em http://www.bicusa.org/proxy/Document.10579.aspx .

21

QUADRO I

POSSÍVEIS SISTEMAS GOVERNANÇA PARA O BANCO DO SUL

(possivelmente) à percepção de dividendos aos da segunda.

V. Divisão de sócios em classes, com ponderação – Nesta hipótese, pode ser

adotado o sistema representado no item “III” acima, mas com divisão de sócios

em “classes”, semelhantemente ao explicitado no item IV acima.

VI. Combinações do sistema do item “I” acima com ponderações derivadas dos

sistemas descritos nos demais itens.

Como se sabe, o sistema deliberativo das IFMs classicamente tem sido essencialmente o

indicado no item II acima. Este sistema tem dado tipicamente um maior poder de voto

aos Estados Unidos e membros europeus. Esta situação tem gerado críticas contínuas,

mas permanece um instrumento político utilizado para a manutenção de políticas de

cooperação monetária multilateral. O crescimento da China, Índia e outros países e seu

maior envolvimento na economia internacional desde a década de 1990 tem levado à

necessidade de se pensar em reforma do sistema de repartição de poder nas

organizações multilaterais como o FMI.

Não é realista esperar que qualquer dos futuros sócios do Banco do Sul abra mão das

chances pragmáticas que têm de adquirir a titularidade de uma proporção vantajosa do

poder de voto na nova instituição. Isto indica que os esquemas correspondentes às

hipóteses mais simples, dos itens “I” e “II” do Quadro I, na prática têm menor

probabilidade de prevalecer, pois abrem menos possibilidades de negociação.

7 – OBSERVAÇÕES FINAIS

O projeto de se criar um “Banco do Sul” e sua evolução concreta, desde os discursos

iniciais de Chávez até a assinatura da Ata Constitutiva na Casa Rosada em dezembro de

2007, representa algo novo no contexto das relações econômicas internacionais,

Representa algo novo, também, no que se refere aos instrumentos e políticas de

cooperação monetária e financeira internacional.

22

Como já explicitado, o sistema multilateral de cooperação monetária estruturado após a

Segunda Guerra Mundial, especialmente a partir da crise dos anos 1970 e seus

desdobramentos nos anos 1980, desenvolve políticas “invasivas” (ajustes estruturais)

que, aliados aos novos temas (não-tarifários) da política multilateral de comércio,

procuram modificar o sistema institucional de economias de países menos

desenvolvidos, como os da América Latina. Tal modificação incluía medidas

favorecedoras da privatização de serviços públicos, a drástica retração de investimentos

estatais e a mercantilização de bens essenciais ou de infraestrutura. A mercantilização,

associada à multiplicação de vínculos contratuais privados com mercados financeiros

internacionais não alcançados por regulação pública em medida significativa subordina

a oferta de bens essenciais a instabilidades derivadas da especulação financeira

orientada para maximizar lucros no curto prazo.

O aparecimento do Banco do Sul, embora ligado retoricamente aos interesses

integracionsitas de Hugo Chávez, com expressão no projeto da ALBA e no poder

econômico e político derivado da produção venezuelana de petróleo, hoje adquire

contornos mais complexos. A insistência do Brasil e do Equador em separar a

cooperação monetária para a estabilização (Fondo del Sur) da cooperação com vistas ao

financiamento do desenvolvimento regional, no marco de esforços de integração,

permite maior liberdade aos governos para que construam parcerias estratégicas de

diversos bancos de fomento (incluindo o BNDES e outros) da região com o futuro

Banco do Sul.

Por outro lado, dadas circunst6ancias pragmáticas, o impulso político para a criação da

nova entidade financeira certamente virá menos de posições ideológicas (como a do

Equador) ou ligadas a um projeto de hegemonia regional (Venezuela) do que de uma

composição de cálculos sobre como alavancar o financiamento de projetos de

infraestrutura, que possam fazer um contra-ponto efetivo a iniciativas como a da IIRSA

e ao do Plan Puebla-Panamá.

Nesse sentido, parece provável que a cooperação setorial regional – em setores de

infraestrutura para a produção (IPP) e para o consumo de bens essenciais (ICBE ) –

mais provavelmente indicará caminhos a seguir. A construção de instituições de

23

cooperação setorial como a Organização Latino-Americana de Energia (OLADE),23

portanto, poderão oferecer parâmetros técnicos e de políticas públicas e servir como

fóruns de articulação para fins de cooperação em setores de IPP e/ou ICBE. Neste

cenário, torna-se possível dar um sentido regionalmente contextualizado ao

pronunciamento do presidente Lula, em sua última visita a Buenos Aires, em 22 de

fevereiro de 2008, quando disse: “Nós precisamos agora (...) começar a nos endividar,

não para gastar dinheiro à toa, mas para gastar em infraestrutura para facilitar o

desenvolvimento da América do Sul”.24

Em resumo, não é o Banco do Sul em si mesmo, porém as convergências estratégicas da

cooperação setorial regional que oferecerão as oportunidades de desenvolvimento e

integração possivelmente em moldes alternativos ao que prevaleceu sob as políticas das

IFMs.

Neste campo, tem despontado o crescimento de oportunidades de cooperação

energética, inclusive com a demanda de países como a China e a Índia e com o

crescimento do mercado de biocombustíveis.

Num cenário oposto, o financiamento dos bens de infraestrutura permanecerá

dependente do capital privado e sua conexões contratuais com mercados financeiros

internacionais não regulamentados, tais como os que hoje têm interesse em índices

como o MLCX Biofuels Index e o MLCX Biofuels Plus Index.

23 - Ver http://www.olade.org.ec/ .24 - Matéria publicada em O Estado de São Paulo, disponível em; http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080223/not_imp129135,0.php .

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25