FÁBIO GUSMAN A PRISÃO PREVENTIVA DE OFÍCIO: ANÁLISE ...

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FÁBIO GUSMAN A PRISÃO PREVENTIVA DE OFÍCIO: ANÁLISE CRÍTICA À LUZ DO SISTEMA CONSTITUCIONAL ACUSATÓRIO Dissertação de Mestrado Orientador: Professor Titular Dr. Antonio Magalhães Gomes Filho UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO São Paulo-SP 2015

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  • FBIO GUSMAN

    A PRISO PREVENTIVA DE OFCIO: ANLISE CRTICA

    LUZ DO SISTEMA CONSTITUCIONAL ACUSATRIO

    Dissertao de Mestrado

    Orientador: Professor Titular Dr. Antonio Magalhes Gomes Filho

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE DIREITO

    So Paulo-SP

    2015

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    FBIO GUSMAN

    A PRISO PREVENTIVA DE OFCIO: ANLISE CRTICA

    LUZ DO SISTEMA CONSTITUCIONAL ACUSATRIO

    Dissertao apresentada Banca Examinadora do

    Programa de Ps-Graduao em Direito, da Faculdade

    de Direito da Universidade de So Paulo, como

    exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em

    Direito, na rea de concentrao Direito Processual sob

    orientao do Professor Titualr Dr. Antonio Magalhes

    Gomes Filho.

    Verso corrigida em 8 de junho de 2015.

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE DIREITO

    So Paulo-SP

    2015

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    Para minha querida me.

    Para minha amada esposa.

    Para meu saudoso av.

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    AGRADECIMENTOS

    O presente trabalho no poderia ser realizado sem a concorrncia de

    algumas pessoas especiais.

    Minha querida esposa Carolina Oliboni Bastos e meu grande amigo

    Fbio Cordeiro Villar deram-me a oportunidade de ler os rascunhos e opinarem sobre o

    contedo de forma melhorar sensivelmente o texto.

    Agradeo Luiza Cristina Fonseca Frischeisen que me introduziu ao

    mundo do processo penal e incentivou minha matrcula do Centro de Estudios de Justicia

    de las Amricas. Da mesma forma, agradeo Mnica Nicida Garcia e ao Pedro Barbosa

    Pereira Neto, pela oportunidade que me concederam de continuar aprendendo junto a esta

    magnfica instituio que o Ministrio Pblico Federal.

    Foram de grande valia as consultas que me concedeu meu amigo Paulo

    Thadeu Gomes da Silva, cujo acervo intelectual (tanto em sua mente quanto em sua

    biblioteca) parece inesgotvel. Tambm auxiliou a encaminhar as ideias iniciais da

    dissertao a professora de processo penal Paula Bajer Martins da Costa.

    Ao Professor Aury Lopes Jr. agradeo pela aula que me concedeu na

    discusso sobre meu tema em seu escritrio de Porto Alegre. Suas observaes foram de

    imensa importncia para a estrutura da dissertao.

    Agradeo ao Professor Antonio Magalhes Gomes Filho pela valiosa

    oportunidade de poder elaborar uma dissertao de mestrado sob sua orientao. Foram de

    grande valia, tambm, as observaes do Professor Associado Gustavo Henrique Righi

    Ivahy Badar e da Professora Doutora Marta Cristina Cury Saad Gimenes por ocasio da

    banca de qualificao do trabalho.

    Sem a formao que tive no Centro de Estudios de Justicia de las

    Americas este trabalho nunca poderia ser levado a cabo. Dos meus companheiros de curso

    recebi aportes importantes. Agradeo, a Javier Gmez Cervantes, Juiz de Impugnao em

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    Guanajuato, Hugo Antolin Almirn, Promotor e Professor da Universidad de Crdoba e

    Roberto Adrin Barrios, Juiz na Provincia de Chubut. Tambm ofereceram grande

    contribuio meus amigos Guillermo Nicora, promotor de Mar del Plata, Eduardo

    Gallardo, juiz em Santiago, Javier Ignacio Reyes Lopes, juiz em Valencia e a pesquisadora

    Letcia Lorenzo.

    Agradeo aos meus amigos de trabalho no Ministrio Pblico Federal

    que tornam prazeroso trabalhar todos os dias.

    Obrigado a todos.

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    RESUMO

    GUSMAN, Fbio. A priso preventiva de ofcio: anlise crtica luz do sistema

    constitucional acusatrio. 2015. Dissertao de Mestrado. Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo.

    O presente trabalho tem como objetivo a anlise da validade das normas

    infraconstitucionais que possibilitam ao julgador penal a decretao da priso preventiva

    sem o requerimento do Ministrio Pblico ou do querelante. O maior ou menor grau de

    atribuies de ofcio ao juiz est diretamente ligado ao sistema processual penal vigente

    em cada jurisdio. Desta forma, importa definir os sistemas processuais penais

    acusatrio, inquisitrio e misto, os princpios que os regem, e identificar qual deles foi o

    escolhido pela Constituio Federal de 1988 e pelas normas supralegais. A partir da

    concluso de que a Constituio Federal institui o princpio acusatrio que condiciona

    todas as normas infraconstitucionais, identificamos as normas que no encontram sua

    fundamentao neste princpio e, por isso, destoam do sistema. A norma que d ao juiz o

    poder de decretar de ofcio a priso preventiva uma delas. O trabalho, ento, analisa

    criticamente alguns dos argumentos que comumente so utilizados para fundamentar a

    posio da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma, concluindo que as bases

    que sustentam o poder de ofcio do juiz o ideal inquisitrio de um sistema de justia que

    implementa polticas pblicas em que a imparcialidade do juiz um atributo de somenos

    importncia. Por fim, colacionam-se algumas notas de direito comparado a respeito de

    como a questo tratada em diferentes jurisdies. O trabalho conclui que o poder de

    decretar a priso preventiva de ofcio est em contradio com os valores processuais

    acusatrios tpicos dos Estados Democrticos de Direito. Indica-se uma possvel soluo

    para a modernizao do mtodo de tomada de deciso de medidas cautelares consistente

    nas audincias prvias que oferecem um ambiente mais propcio ao exerccio das garantias

    processuais.

    Palavras-chave: Processo penal, sistemas processuais penais, sistema inquisitrio, sistema

    acusatrio, priso preventiva, poderes de ofcio do juiz.

  • 7

    ABSTRACT

    This study aims to analyze the validity of the infra-constitutional norms that allow the

    criminal judge to issue a remand without the request of the prosecutor or the plaintiff. The

    greater or lesser degree of power assigned to the judge is directly connected to the current

    actual justice system in each jurisdiction. Thus, it is relevant to define the criminal

    procedural systems accusatorial, inquisitorial and mixed, their governing principles, and

    identify which one was chosen by the Federal Constitution of 1988 and the rules that are

    higher in hierarchy. From the assumption that the Brazilian Constitution establishes the

    adversarial principle which determines norms in our law systems, the study identifies rules

    that do not find their justification in this principle and, therefore, diverge from the system.

    The rule that gives the judge the power to issue a preventive detention order is one of them.

    The work then critically examines some of the arguments that are commonly used to

    support the position of the constitutionality or unconstitutionality of this rule, concluding

    that the basis supporting the judge's power is the inquisitorial ideal of a policy

    implementing justice system in which the judge's impartiality is a minor attribute. Finally,

    some notes of comparative law are collected in regard to how the issue is assessed in

    different jurisdictions. The paper concludes that the power to issue the order is contrary to

    the typical values of the accusatory procedural law of Democratic States. At the end, the

    study indicates a possible solution to the modernization of the decision-making method for

    precautionary measures consistent in previous hearings that offer an environment more

    conducive to the exercise of procedural safeguards.

    Key words: Criminal procedure, criminal procedure systems, inquisitorial system,

    accusatorial system, remand, preventive detention order, ex officio powers of the judge.

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    SUMRIO

    INTRODUO

    1. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

    1.1. Modelo acusatrio

    1.1.1. Delieneamento histrico

    1.1.2. Caractersticas definidoras do sistema acusatrio

    1.1.2.1. A imparcialidade do juiz

    1.1.2.2. A relevncia do contraditrio

    1.1.2.3. Correlao entre acusao e deciso

    1.1.2.4. Priso preventiva como medida cautelar

    1.1.2.5. Oralidade e simplificao dos ritos processuais

    1.1.3. O sistema acusatrio puro e o sistema do common Law

    1.2. Modelo inquisitrio

    1.2.1. Delineamento histrico

    1.2.2. O papel do juiz no sistema inquisitrio

    1.2.3. A importncia da custdia cautelar processual e o processo como incio de aplicao

    da pena

    1.2.4. A noo de expediente escrito, burocrtico, hierarquizado e secreto como

    caractaersticas do sistema inquisitrio

    1.3. O modelo misto

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    2. A PRISO PREVENTIVA DE OFCIO NO BRASIL

    2.1. Breve delineamento histrico do processo penal brasileiro e da priso preventiva

    2.2. Plano da Constituio Federal de 1988

    2.3. Plano atual das normas internacionais

    2.4. Sentido das reformas das leis processuais penais: o reflexo do mandamento

    constitucional acusatrio no plano infraconstitucional

    3. ANLISE DOS ARGUMENTOS SOBRE A VALIDADE OU INVALIDADE DA

    DECRETAO DA PRISO PREVENTIVA DE OFCIO

    3.1. Avano e retrocesso

    3.2. Argumento do interesse pblico e sua refutao

    3.2.1. O impulso oficial

    3.2.2. Poder geral de cautela do juiz penal

    3.2.3. O princpio da obrigatoriedade

    3.2.4. O requerimento implcito

    3.3. A representao da polcia como uma provocao suficiente da jurisdio

    3.4. A separao entre as fases inquisitria e acusatria

    3.5. A inrcia da jurisdio

    3.6. O reflexo da priso preventiva decretada de ofcio na imparcialidade do julgador

    3.7. Argumento do esvaziamento do contraditrio

    4. NOTAS SOBRE A PRISO CAUTELAR DE OFCIO NO DIREITO

    COMPARADO

    4.1. Itlia

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    4.2. Espanha

    4.3. Portugal

    4.4. Chile

    5. CONCLUSES

    5.1. Inconstitucionalidade das normas que dispe sobre a possibilidade de decretao de

    priso preventiva de ofcio por parte do juiz

    5.2. Soluo possvel de acordo com o sistema acusatrio

    BIBLIOGRAFIA

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    La mayor virtud de un saber sobre el proceso penal

    debe consistir en la capacidad de orientar nuevas

    prcticas y ello solo lo logra si tiene, a su vez,

    capacidad de desplazar a los saberes anteriores.

    Alberto M. Binder

    Juez y pena se encuentran siempre juntos

    James Goldschmidt

    Cada vez que un imputado inocente tiene razn para

    temer a un juez, quiere decir que ste se halla fuera de

    la lgica del estado de derecho: el miedo, y tambin la

    sola desconfianza y la no seguridad del inocente,

    indican la quiebra de la funcin misma de la

    jurisdiccin penal y la ruptura de los valores polticos

    que la legitiman

    Luigi Ferrajoli

    Il provvedimento [cautelare] ex officio nasce nullo

    Franco Cordero

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    INTRODUO

    Ao introduzir sua obra Era dos Direitos em 1990, Norberto Bobbio

    lembra teses fundamentais do Direito enunciadas em 1951 e das quais nunca se afastou: a)

    os direitos naturais so direitos histricos; b) nascem no incio da era moderna,

    juntamente com a concepo individualista da sociedade; c) tornam-se um dos

    principais indicadores do progresso histrico1. Sob esta perspectiva de historicidade e

    conquista dos direitos e garantias individuais, a presente monografia busca analisar um

    dispositivo especfico do Cdigo de Processo Penal vigente no Brasil que consiste na

    (im)possibilidade jurdica do decreto de ofcio da priso preventiva por parte do julgador,

    ou seja, sem requerimento de qualquer das partes. Para isso, partamos de premissas

    tericas e normativas que permearo todo o estudo.

    1 BOBBIO, N. Era dos Direitos. p. 22.

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    No esteio da gradual conquista de direitos2, o movimento

    constitucionalista do ocidente partiu da ideia racional iluminista de limitao do poder, ou

    seja, de resguardo do indivduo contra o Estado3, de maneira que a Constituio norma

    hierarquicamente superior serve de parmetro de validade jurdica a todo o sistema de

    normas de um dado ordenamento jurdico. Trata-se da aplicao do princpio da

    supremacia da Constituio, diploma que incorporou os direitos e garantias de tutela das

    liberdades pblicas enunciados nos pactos internacionais de direitos humanos.

    A Constituio brasileira atualmente vigente, promulgada aps

    circunstncias polticas e jurdicas autoritrias, representou a mudana de paradigma e o

    movimento de adequao de todo o ordenamento infraconstitucional aos superiores

    princpios e regras dispostos na nova Lei Maior.

    Trabalhamos, ento, com o direito processual penal como um direito

    constitucional aplicado4. Encontramos na Constituio Federal os preceitos fundamentais

    deste ramo do direito pblico que o situam como um fator limitador do poder punitivo

    estatal5. Tais preceitos condicionam um modelo processual especfico, um modelo de

    processo legtimo, um due process of law6, em cuja arqueologia identificamos a limitao

    do poder estatal e o direito de defesa7. Por isso as leis processuais devem sempre ser

    2 A tese est ancorada na ideia kantiana da tendncia de progresso moral da humanidade expressada, dentre

    outros textos, em An old question raised again: is the human race constantly progressing? In KANT, I. The

    conflict of the faculties. p. 141. Para Kant, embora haja inegveis momentos de retrocesso, a humanidade

    como um todo (universorum) caminha para dar a si mesma uma boa constituio. Cf. BOBBIO, N. op. cit. 66

    e seguintes. 3 CANOTILHO, J.J.G. Direito Constitucional..., p. 51., define constitucionalismo como teoria (ou

    ideologia) que ergue o princpio do governo limitado indispensvel garantia dos direitos em dimenso

    estruturante da organizao poltico-social de uma comunidade. 4 HASSEMER, W. Introduo aos fundamentos do Direito Penal. p. 172.

    5 DIAS, J.F. Direito processual penal. p. 64/65. Deste modo [elevando o acusado a sujeito do processo] o

    direito processual penal torna-se em uma ordenao limitadora do poder do Estado em favor do indivduo

    acusado, numa espcie de Magna Charta dos direitos e garantias individuais do cidado. Pois o Estado,

    protegendo o indivduo, protege-se a si prprio contra a hipertrofia do poder e os abusos no seu exerccio. 6 A mudana trazida pela Constituio de 1988 passou a exigir que o processo no mais fosse conduzido

    prioritariamente, conforme OLIVEIRA, E.P. Curso de Processo Penal. p. 8/9, como mero veculo de

    aplicao da lei penal, mas, alm e mais que isso, que se transformasse em um instrumento de garantia do

    individuo em face do Estado. O devido processo penal constitucional busca, ento, realizar uma Justia

    Penal submetida exigncia de igualdade efetiva entre os litigantes. O processo justo deve atentar, sempre,

    para a desigualdade material que normalmente ocorre no curso de toda persecuo penal, em que o Estado

    ocupa posio de proeminncia, respondendo pelas funes investigatrias e acusatrias. Como regra, e

    pela atuao da jurisdio, sobre a qual exerce o monoplio. 7 CANOTILHO, op. cit. p. 496. Cita-se tambm GRINOVER, A.P. Liberdades pblicas. p. 15-21. Mas se,

    do ponto de vista da persecuo penal, os direitos do acusado se colocam como limite funo jurisdicional,

  • 14

    produzidas e aplicadas luz das normas que lhe do validade: a Constituio Federal

    (bloco constitucional) e as normas internacionais supralegais definidoras dos direitos e

    garantias fundamentais.

    Estas garantias do processo passaram a fazer parte da esfera individual ao

    longo de largo processo histrico de elaboraes tericas, lutas e conquistas que tm como

    marco o pensamento iluminista do sculo XVIII e definem, por si, o progresso das

    sociedades, como explica Bobbio na Era dos Direitos.

    Alm da observao de que algum s pode ser privado dos direitos

    fundamentais da liberdade e propriedade por meio de um processo criado por lei (process

    oriented theory), deve-se consignar que o processo deve ser justo e adequado, ou seja,

    orientado pelos princpios da justia, ostentando esta caracterstica at mesmo no momento

    da criao da norma processual (dimenso material ou substantiva do processo)8.

    Claro est que se adere neste trabalho ao que se chama de escola da

    orientao constitucional do processo penal, que supera o mrito do saber prtico das

    formas e trmites do processo penal para adequar as normas processuais penais aos

    sistemas de garantias enunciados na Constituio e nos pactos internacionais de direitos

    humanos. A Constituio de 1988 superou a concepo processual que animou a produo

    do Cdigo de Processo Penal de 1941 e j no se pode pensar o direito processual penal

    com objetivo de maior eficincia e energia da ao repressiva do Estado contra os que

    delinquem, como propunha Francisco Campos na exposio de motivos do Cdigo ainda

    vigente9. Pelo contrrio, adotaremos nesta anlise o garantismo penal como modelo

    de outro lado o prprio processo penal que se constitui em instrumento de tutela da liberdade jurdica do

    ru. () A lei do processo o prolongamento e a efetivao do captulo constitucional sobre os direitos

    fundamentais e suas garantias. 8 De acordo com CANOTILHO, op. cit. p. 494, o problema nuclear da exigncia de um due process no

    estaria tanto ou pelo menos no estaria exclusivamente no procedimento legal mediante o qual algum

    declarado culpado e castigado (privado da vida, da liberdade e da propriedade) por haver violado a lei,

    mas sim no facto de a lei poder ela prpria transportar a injustia privando uma pessoa de direitos

    fundamentais. s autoridades legiferantes deve ser vedado o direito de disporem arbitrariamente da vida, da

    liberdade e da propriedade das pessoas, isto , sem razes materialmente fundadas para o fazerem. 9 Prelecionava o idealizador do Cdigo de Processo Penal de 1941 em suas exposies de motivos: as

    nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos rus, ainda que colhidos em flagrantes ou confundidos

    pela evidncia das provas, um to extenso catlogo de garantias e favores, que a represso se torna,

    necessariamente, defeituosa e retardatria, decorrendo da um indireto estmulo expanso da

    criminalidade. Urge que seja abolida a injustificvel primazia do interesse do indivduo sobre o da tutela

    social. No se pode continuar a contemporizar com pseudo-direitos individuais em prejuzo do bem comum.

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    terico de um processo penal constitucional que enseja um sistema de limites da autoridade

    punitiva10

    .

    Diante do quadro constitucional do processo penal, para a anlise da

    priso preventiva decretada de ofcio, alm da clusula do devido processo legal j citada,

    partiremos da premissa do direito liberdade (enunciada no caput do artigo 5 da

    Constituio) e da presuno de inocncia (produto das conquistas do pensamento liberal

    no sistema punitivo no sculo XVIII11

    j presente na Declarao dos Direitos do Homem e

    do Cidado de 179812

    e disposta no inciso LVII do artigo 5 da Constituio brasileira de

    1988). Por fim, no possvel discutir poderes ex officio do juiz sem se falar no princpio

    acusatrio, opo inequvoca13

    da Constituio Federal de 1988, cujo estudo forma a

    base desta monografia e sobre o qual nos debruaremos com mais vagar. Estudar a priso

    preventiva de ofcio significa estudar como a Constituio vai delinear ou demarcar de

    maneira exata as condies e o procedimento sob os quais estes direitos fundamentais

    podero ser excepcionados: atravs de um sistema acusatrio autntico.

    Neste contexto de recepo das normas pela nova ordem constitucional, o

    processo penal encontra vrios pontos de choque entre a antiga tradio da estrutura

    processual de corte fascista e inquisitria do Estado Novo (que si encontrar sectrios at

    hoje e que deriva da concepo do delito como infrao) com um novo processo penal

    garantista e acusatrio (que deriva da tradio de concepo do delito como conflito).

    Dentre estes pontos de choque temos a priso preventiva de ofcio.

    A importncia do estudo e delimitao da priso provisria cautelar,

    gnero do qual a preventiva a principal espcie, releva-se pelas preocupaes mais

    O indivduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde disciplina jurdico-penal da vida em

    sociedade no pode invocar, em face do Estado, outras franquias e imunidades alm daquelas que o

    assegurem contra o exerccio do poder pblico fora da medida reclamada fora do interesse social. Este o

    critrio que presidiu elaborao do presente projeto de cdigo. Destaca-se do trecho, alm da

    caracterstica marcante autoritria e repressiva que informava a criao do Cdigo, a regresso, o passo

    atrs, que a nova lei representava em relao aos diplomas anteriores. 10

    Ver FERRAJOLI, L. Derecho y razn. p. 851 e seguintes. 11

    GOMES Filho, A.M. Presuno de inocncia e priso cautelar. p. 9. 12

    Art. 9. Tout homme tant prsum innocent jusqu' ce qu'il ait t dclar coupable, s'il est jug

    indispensable de l'arrter, toute rigueur qui ne serait pas ncessaire pour s'assurer de sa personne doit tre

    svrement rprime par la loi. 13

    Supremo Tribunal Federal, ADI 5104 MC, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno,

    julgado em 21/05/2014, PROCESSO ELETRNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014.

  • 16

    latentes dos estudiosos do processo e dos defensores dos direitos humanos. Em sua feio

    prtica, a priso preventiva se mostra anloga pior sorte do ru ao final de todo o

    processo penal: o encarceramento. Trata-se da medida mais severa a ser tomada durante

    um processo14

    .

    De acordo com os dados oficiais de dezembro de 201215

    , mais de 40% da

    populao carcerria do Brasil era formada por presos provisrios. O relatrio da

    Comisso Interamericana de Direitos Humanos da OEA, editado em dezembro de 2013,

    adverte que uno de los principales desafos que enfrentan la absoluta mayora de los

    Estados de la regin es el uso excesivo de la detencin preventiva, por eso, en razn de la

    complejidad y trascendencia de esta temtica16

    .

    O poder ex officio do juiz outro dos assuntos mais debatidos na doutrina

    processual penal por representar de forma direta o sistema a qual est filiado dado

    ordenamento. Trata-se de um dos temas centrais na anlise da prpria identidade da

    administrao da justia criminal em uma dada jurisdio17

    . A doutrina revela que a

    tripartio de funes entre os atores processuais e a concentrao maior ou menor de tais

    funes na mo do julgador de extrema complexidade, pois diz respeito ao poder do

    Estado-juiz, detentor do poder de punir18

    . A histria do processo pode ser traada

    tambm em termos de quem o domina, ou seja, de quem so seus atores relevantes no seu

    14

    ... laplicazione di una misura cautelare significa che lo Stato intervenuto pesantemente, in maniera

    repressiva e in funzione di difesa, privando taluno dei suoi beni o addirittura della sua libert personale..

    BERRI, G. Formulario delle misure cautelari personali e reali. p. V. Como observa o processualista

    estadunidense Joel Samaha, embora haja riscos para a liberdade de um acusado, tambm preciso levar em

    considerao que [b]eing locked up before trial is a major loss of freedom, but its more than that.

    Temporary loss of wages and even permanent loss of a job, separation from family and friends, restrictions

    on aiding in their own defense, and loss of reputation are also possible consequences for detained

    defendants. Andall of these take place before defendants are convicted SAMAHA, J. Criminal

    Procedure. p. 399/400. 15

    Dados extrados do stio eletrnico do Ministrio da Justia

    (http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMID598A21D892E444B5943A0AEE5DB94226PTBR

    IE.htm) acessados em 15 de outubro de 2014. 16

    p. 5. 17

    The fundamental difference between the procedural models is the role of the parties and of the judges..

    CRYER, R. et alii An introdution to International Criminal Law and Procedure. p. 426. Confiram-se,

    tambm as perguntas iniciais das quais parte o jurista croata-americano, Professor da Universidade de Yale,

    Mirjan Damaka em sua clssica obra de 1986 The faces of justice: For the process to retain its legal

    nature, is it necessary that it be controlled, directly or indirectly, by a state 'judge'? What are the essential

    attributes and functions of this official? Is he primarily a conflict resolver, or an enforcer of state policy, an

    educator, and a therapeuta? (loc. 117 of 6774). 18

    GOLDSCHMIDT, J. Problemas jurdicos y polticos del proceso penal.

    http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMID598A21D892E444B5943A0AEE5DB94226PTBRIE.htmhttp://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMID598A21D892E444B5943A0AEE5DB94226PTBRIE.htm

  • 17

    desenvolvimento19

    . Como deve ser aplicado o princpio da inrcia da jurisdio (ne

    procedat judex ex officio) e como a atividade do juiz ameaa sua imparcialidade? Esta

    talvez seja uma das questes mais difceis a serem enfrentadas pelo processualista, com

    reflexos para a feio do processo em si, para a atividade probatria e para a aplicao de

    medidas cautelares.

    A natureza do cargo do julgador e seu papel na cena processual levam

    inevitavelmente ao estudo do processo de substituio do sistema inquisitivo pelo sistema

    acusatrio, tarefa que vem sendo empreendida paulatinamente, com avanos (reformas) e

    retrocessos (contrarreformas) na maioria dos pases da Europa Continental e da Amrica

    Latina desde a era do Iluminismo. Nos ordenamentos latino-americanos (assim como em

    Portugal, Espanha e Itlia) esse processo de reformas foi intensificado aps a

    redemocratizao dos regimes ao final do sculo XX. Como assumimos, no rastro do

    pensamento de Bobbio, que os direitos e garantias20

    fundamentais representam conquistas

    histricas, importa delinear o processo pelo qual o princpio do acusatrio e no temos

    dvida de afirmar que o processo acusatrio tambm representa uma garantia

    fundamental21

    passou a fazer parte dos ordenamentos ocidentais. Este trabalho parte do

    pressuposto de que a instaurao de sistemas acusatrios e a consequente superao dos

    inquisitrios um fenmeno do mundo ocidental e que o direito comparado tem muito a

    19

    LOPES, J.R.L. Uma introduo histria social e poltica do processo. In WOLKMER, A.C.

    Fundamentos de Histria do Direito. p. 352. 20

    Quanto diferena conceitual entre direito e garantia, adotamos a construda por Rui Barbosa e citada por

    Scarance FERNANDES, A. Processo penal constitucional, p. 21: os direitos so disposies meramente

    declaratrias, imprimindo existncia legal aos bens e valores por elas reconhecidos, enquanto as garantias

    so disposies assecuratrias que tm como finalidade proteger os direitos. 21

    Filiamo-nos, conforme ficar claro durante a dissertao, opinio de que o direito a um processo

    acusatrio configura uma garantia fundamental de nvel constitucional no Brasil, assim como defende, para a

    Espanha, o ex-magistrado do Tribunal Constitucional (1988-1998) Jose Vicente GIMENO Sendra. A

    Constituio espanhola de 1978, assim como a brasileira de 1988, nem sequer menciona a palavra

    acusatrio (tampouco a menciona a Conveno Europeia de Direitos Humanos a que o Reino da Espanha

    signatrio), diferente da Portuguesa de 1976, que estabelece ipsis litteris: Art. 32. 5. O processo criminal

    tem estrutura acusatria, estando a audincia de julgamento e os actos instrutrios que a lei determinar

    subordinados ao princpio do contraditrio. El Derecho Fundamental a un Proceso Acusatorio. In

    MACIEL, Adhemar Ferreira; SERRANO Gmez, Alfonso; MADLENER, Silma Marlice (coord.). Estudos

    de Direito Penal, Processual e Criminologia em homenagem ao Prof. Dr. Kurt Madlener. No Brasil, o

    Supremo Tribunal Federal, como veremos a seguir, fortaleceu a jurisprudncia segundo a qual a Constituio

    de 1988 fez uma opo inequvoca pelo sistema penal acusatrio em recente julgamento (ADI 5104 MC,

    Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2014, PROCESSO

    ELETRNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014).

  • 18

    aportar neste panorama, assim como o fez para a interpretao de outros institutos como o

    prprio devido processo legal (due process) e o garantismo.

    Na presente monografia, entenderemos o acusatrio como garantia

    fundamental, princpio ou sistema, conforme a utilizao do termo. Trata-se de um

    conceito profundamente ligado a um processo justo (due process) e a um Estado

    Democrtico de Direito22

    , e que tem como principal enunciado a diviso rgida de

    atribuies entre os atores do processo23

    .

    Neste panorama, o presente trabalho tem como objetivo analisar

    criticamente24

    a validade da norma que autoriza o juiz a decretar sponte propria a medida

    cautelar da priso preventiva. A validade ser entendida sob o ponto de vista da lgica

    jurdica, ou seja, a pertinncia da norma ao ordenamento jurdico. A norma inferior

    vlida porque seu contedo material e sua produo no entram em contradio com a

    norma de hierarquia superior. Da decorre a necessidade lgica da norma pertencer ao

    sistema condicionado por um ou alguns princpios fundamentais. nesse sentido que o

    acusatrio, como foi dito, pode ser entendido como um princpio que condiciona um

    sistema. Se esse princpio tem assento constitucional, condicionar toda a estrutura

    normativa inferior. Assim, nosso objetivo estudar a relao de adequao material da

    norma que prev a priso preventiva de ofcio com o princpio acusatrio e a relao de

    pertencimento desta norma ao sistema acusatrio. Trata-se de inserir os argumentos e o que

    22

    O processo assim, em um Estado democrtico e, principalmente, em uma sociedade tambm democrtica,

    revela-se produto da contribuio dialtica de muitos e no da ao isolada de um s, ainda que este um

    mesmo sendo o juiz atue informado pela disposio de encontrar a soluo mais justa, ou, dito com outras

    palavras, apropriando-se da expresso kelseniana, ainda que este atue para o povo. (...) Deve-se, pois,

    concepo ideolgica de um processo penal democrtico, a assertiva comum de que sua estrutura h de

    respeitar, sempre, o modelo dialtico, reservando ao juiz a funo de julgar, mas com a colaborao das

    partes, despindo-se, contudo, da iniciativa da persecuo penal. A estrutura sincrnica dialtica do processo

    penal democrtico considera, pois, metaforicamente, o conceito de relao angular ou triangular e nunca de

    relao linear, sacramentando as linhas mestras do sistema acusatrio. PRADO, G. Sistema Acusatrio p.

    33. PRADO ainda coloca que a adoo do sistema acusatrio toma o lugar das concepes tradicionalistas

    e religiosas na chamada baixa modernidade. Op. cit. p. 13. 23

    De acordo com Ferrajoli, slo un efectivo pluralismo institucional y una rgida separacin de poderes

    puede garantizar la rehabilitacin de la legalidad en la esfera pblica segn el paradigma del estado de

    democrtico de derecho. Op. cit. prlogo la edicin espaola. p. 11. 24

    A palavra crtica que aparece no ttulo desta monografia utilizada em dois sentidos: a) como uma anlise

    sistemtica ou uma apreciao minuciosa e criteriosa de um objeto; b) no sentido elaborado pelo filsofo

    alemo Max Horkheimer e pela Escola de Frankfurt. O trabalho da teoria crtica no se satisfaz com a mera

    anlise objetiva e distante da questo social, mas nela penetra e transforma. HORKHEIMER, M. Critical

    theory: selected essays. Especialmente o ensaio Traditional and critical theory, p. 188 a 243.

  • 19

    subjaz em cada uma das teses opostas nas grandes dualidades do processo penal moderno:

    a dualidade entre poltica criminal e o sistema de garantias25

    e a dualidade entre reforma e

    contrarreforma. Esta , em sntese, a difcil convivncia dos dois objetivos do direito

    processual penal: a realizao punitiva do direito penal material (eficcia punitiva) e a

    garantia dos direitos individuais26

    . O processo histrico que determina a dualidade pode ser

    entendido como um movimento pendular, ligada a uma concepo cclica da histria,

    com sugere o Professor Antonio Scarance Fernandes27

    , ou, maneira bobbio-kantiana,

    pode ser entendido como um gradual processo de positivao de direitos fundamentais.

    A priso preventiva de ofcio tem origem e implicaes na histria do

    ordenamento jurdico brasileiro. O estudo de tal instituto no pode ocorrer sem uma crtica

    ao atual procedimento de tomada de deciso da medida cautelar, extremamente vinculado

    ao sistema inquisitrio (i.e. centrado no julgador, autoritrio, anti-garantista, burocrtico e

    escritural). Como ser visto, a divergncia aqui analisada no se esgota simplesmente em

    uma questo tcnico-jurdica, mas perpassa questes ideolgicas e histricas que sero

    mencionadas no decorrer do trabalho.

    Por fim, ao lado do objetivo primrio de estabelecer a (in)validade da

    disposio da priso preventiva de ofcio, um objetivo lateral da monografia, para

    orientar nuevas prcticas e para desplazar a los saberes anteriores, seria indicar uma

    ideia geral de como a ordem infraconstitucional poderia dispor acerca da forma da tomada

    de deciso da priso preventiva, de tal maneira que os resqucios inquisitrios sejam

    neutralizados, substituindo-se o procedimento atual por um mais consentneo com o

    princpio e o sistema acusatrios. Seria apenas uma continuao das modificaes

    transformativas28

    de reforma do processo penal brasileiro na mesma linha da implantao

    do cross-examination em 2008.

    Para alcanar estes objetivos, a dissertao ser dividida em cinco

    captulos principais. O primeiro captulo tratar da formao, distino e definio dos

    25

    BINDER, A. M. Derecho procesal penal. p. 21. 26

    Da forma enunciada por GRINOVER, A.P. op. cit. p. 22: preciso manter a ordem, mas isso deve

    ocorrer com o mximo respeito pela Justia.p. 9. de se consignar tambm a pureza terica de

    Goldschmidt para que o fim do processo penal o alcance de uma deciso de mrito transitada em julgado. 27

    FERNANDES, A. S. Teoria geral do procedimento. p. 61. 28

    Expresso utilizada por DAMAKA, M. Aspectos globales de la reforma del proceso penal. Reformas a

    la Justicia Penal en las Americas. p. 38.

  • 20

    sistemas processuais penais: o inquisitivo, o acusatrio e o misto. Como a definio exata

    de cada tipo de sistema escapa da proposta do trabalho, ser dada prevalncia para os

    aspectos relevantes para a questo em tela: o papel do juiz, o papel que a priso cautelar

    representa em cada sistema, e a burocratizao/oralizao dos procedimentos. O segundo

    captulo ser dedicado ao sistema processual penal brasileiro, seu delineamento histrico e

    as normas constitucionais, supralegais e infraconstitucionais que o determinam. neste

    captulo que ser derivado o princpio que determina um sistema constitucional acusatrio

    no Brasil e os novos diplomas que adaptam o sistema brasileiro ao aludido princpio.

    Tambm aqui sero expostas as normas que determinam o decreto da priso preventiva. A

    partir das definies dadas nos dois primeiros captulos, o terceiro captulo trar um rol de

    argumentos favorveis e contrrios validade da priso preventiva de ofcio, expostos

    criticamente, depurando-se os conceitos gerais dados anteriormente. O quarto captulo trar

    informaes acerca da priso preventiva de ofcio recolhidas do direito comparado, mais

    especificamente dos ordenamentos espanhol, portugus, italiano, mexicano e chileno.

    Oportunamente se justificar a escolha de cada um destes pases. A concluso vir no

    ltimo captulo, com objetivo de fazer um balano dos argumentos e expor a forma da

    tomada de deciso pode ser adaptada ao modelo constitucional brasileiro de 1988.

    Duas observaes restam para um melhor entendimento da monografia.

    Toma-se o cuidado de separar o ativismo judicial no campo processual penal, daquele

    em voga no campo do processo constitucional e civi,l em que se busca a judicializao das

    polticas pblicas. O ativismo do juiz nos dois casos guarda diferenas. Quando se busca a

    efetivao de direitos sociais (de terceira gerao), o sopesamento de bens constitucionais

    repousa na separao dos poderes. No caso do ativismo judicial no processo penal, trata-se

    de uma ponderao entre a efetividade da jurisdio e os direitos individuais (de primeira

    gerao). No primeiro caso, no h dvida que o juiz no age de ofcio e, sim provocado

    pela parte, como a regra no processo civil29

    . O caso que circunscrevemos nesse trabalho

    trata essencialmente da ponderao do direito fundamental liberdade e a garantia do

    devido processo legal, de um lado, e o direito punitivo do Estado-juiz, de outro.

    29

    Art. 797 do Cdigo de Processo Civil.

  • 21

    A ltima observao diz respeito falaciosa expresso do ativismo pr-

    ru do juiz. No processo penal vige o princpio do in dubio pro reo, i.e. o Estado,

    atravs de seu rgo acusador, que deve cumprir um standard probatrio de tal forma que

    licitamente se possa vulnerar o direito individual de liberdade tanto para a pena definitiva

    quanto para as medidas cautelares pessoais30

    . Quando o julgador imparcial revoga uma

    medida cautelar pessoal de ofcio, em realidade est-se a dizer que o rgo acusador no

    logrou atingir o standard necessrio para se quebrar o default da liberdade do indivduo.

    Como o que se discute o direito fundamental de liberdade e como a lei determina suas

    excees, no se cogita o contrrio, ou seja, no se discute se o juiz pode extinguir uma

    medida cautelar de ofcio e, por este motivo, falar em ativismo judicial pr-ru constitui

    uma falcia. Usando as palavras da Corte Europeia de Direitos Humanos, a presuno

    em favor da liberdade31

    . No mais, de acordo com a Constituio Federal de 1988, a

    priso ilegal ser imediatamente relaxada pela autoridade judiciria (art. 5, inciso LXV).

    Desta forma, como mostra o caso espanhol32

    , por exemplo, no h uma incongruncia

    lgica alguma em tolher o poder punitivo ou cautelar de ofcio do juiz e ampliar sua

    atividade na defesa dos direitos fundamentais individuais.

    30

    Quanto s medidas cautelares reais, o raciocnio o mesmo, tendo o direito de propriedade como

    parmetro. 31

    The presumption is in favour of release. Caso Margareti vs. Crocia. Julgado em 13 de outubro de

    2014. Disponvel em http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-144367. 32

    Na Espanha, por exemplo, em que a reforma veio limitar o poder de ofcio do juiz e o requerimento da

    parte um pressuposto da priso cautelar, o juiz pode decidir pela liberdade provisria sem fiana do ru sem

    audincia das partes. O item final do art. 528 da Lei de Enjuiciamento prev que todas las Autoridades que

    intervengan en un proceso estarn obligadas a dilatar lo menos posible la detencin y la prisin provisional

    de los inculpados o procesados. O art. 539, 4 dispe que siempre que el Juez o Tribunal entienda que

    procede la libertad o la modificacin de la libertad provisional en trminos ms favorables al sometido a la

    medida, podr acordarla, en cualquier momento, de oficio y sin someterse a la peticin de parte.

    http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-144367

  • 22

    1. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

    Os argumentos contrrios e favorveis ao instituto da priso preventiva

    de ofcio giram em torno do eixo do sistema processual penal, de maneira que sem o

    estudo dos modelos processuais que vicejaram nos Estados do ocidente, no intelecto dos

    processualistas, e particularmente no Brasil, no possvel especular sobre a validade da

    norma objeto deste trabalho.

    De plano, fixaremos os conceitos de duas categorias do direito: princpio

    e sistema. Utiliza-se aqui o conceito de princpio desenvolvido por Alexy, para quem

    princpios so normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possvel

    dentro das possibilidades jurdicas e fticas existentes. Princpios so, por conseguinte,

    mandamentos de otimizao, que so caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus

    variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfao no depende somente das

    possibilidades fticas, mas tambm das possibilidades jurdicas33

    . Seguindo o conceito do

    Professor alemo, podemos extrair das normas constitucionais e supralegais um

    mandamento de otimizao de um processo penal que seja o mais acusatrio possvel,

    conforme se ver no captulo seguinte. Entenderemos o acusatrio como um princpio

    implcito na Constituio Federal de 1988, decorrente de vrias de suas disposies34

    .

    Vem da filosofia a definio de sistema. Kant entendia sistema como a

    unidade de mltiplas cognies sob uma nica ideia, ou seja, uma unidade finalstica qual

    todas as partes so ligadas e pela qual so relacionadas entre si35

    . Em outra passagem, Kant

    define sistema como um conjunto de conhecimentos ordenados de acordo com um

    princpio36

    . Mais precisamente no campo do direito, Canaris define o sistema jurdico

    como uma ordem teleolgica de princpios gerais de direito37

    , apresentando dois

    conceitos fundamentais que o compem: a ordenao e a unidade38

    . Especificamente

    33

    ALEXY, R. Teoria dos Direitos Fundamentais. p. 90. 34

    de se consignar que Jacinto Nelson de Miranda COUTINHO, O papel do novo juiz no processo penal.

    Crtica Teoria Geral do Direito Processual Penal. p. 17, entende que o princpio dispositivo o que

    condiciona o sistema acusatrio enquanto o princpio inquisitivo d sustentao ao sistema inquisitrio. A

    posio defendida no texto foi extrada de PRADO, G. op. cit. p. 60, para quem o sistema acusatrio seria

    mais amplo, sendo condicionado por outros princpios como a publicidade e a oralidade, por exemplo. 35

    KANT, I. Critique of Pure Reason. p. 691. I understand by a system, however, the unity of the manifold

    cognitions under one idea. 36

    KANT, I. Metaphysical foundations of natural science. Theoretical philosophy after 1781. p. 183. 37

    CANARIS, C.W. Pensamento sistemtico e conceito de sistema na Cincia do Direito. p. 103. 38

    Op. cit. p. 12.

  • 23

    quanto unidade, Canaris a trata como um fator que impede que a multiplicidade se

    disperse numa multitude de singularidades desconexas, antes devendo deix-las

    reconduzir-se a uns quantos princpios fundamentais39

    .

    Das definies, sobressai a caracterstica mais relevante do sistema

    normativo para o presente trabalho: a coerncia interna. Conforme menciona Geraldo

    Prado40

    , de se notar no s a coerncia interna dos componentes do sistema (no caso dos

    sistemas jurdicos, as normas jurdicas), mas a compatibilidade de um sistema restrito, ou

    subsistema, com outro mais abrangente. O autor exemplifica que o sistema processual

    penal est contido no sistema judicirio, que por sua vez est contido no sistema

    constitucional. No destoante, assim, o fato de Bobbio utilizar a palavra sistema como

    sinnimo do prprio ordenamento jurdico como um todo. Para Bobbio, sistema uma

    totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem41

    .

    De acordo com Alexy, um sistema jurdico to mais coerente quanto

    melhor fundamentadas so suas determinaes42

    . Quanto melhor a estrutura da

    fundamentao de uma classe de declaraes, tanto mais coerente essa classe de

    declaraes. Uma exigncia mnima de coerncia que entre as declaraes de um

    sistema, no fundo, existam relaes de fundamentao. Uma classe de declaraes, entre

    as quais no existe nenhuma relao de fundamentao, pode, sem dvida, ser consistente,

    mas ela no coerente em nenhum sentido. Ela tanto mais coerente quanto mais

    relaes de fundamentao existirem. Alexy segue propondo vrios critrios de

    coerncia, estabelecendo que o sistema tanto mais coerente: a) quanto mais extensas as

    correntes de fundamentao; b) quanto mais correntes de fundamentao tm uma

    premissa de partida comum; c) quanto mais correntes de fundamentao tm uma

    concluso comum; d) quanto mais relaes de primazia so determinadas entre os

    princpios; e) quanto mais fundamentaes empricas e analticas mtuas um sistema

    contm. Para os objetivos deste trabalho, seria conveniente, nesta linha, analisar quais

    seriam os fundamentos da norma que prev priso preventiva de ofcio.

    39

    Op. cit. p. 13. 40

    Op. cit. p. 55. 41

    BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurdico. p. 71. 42

    ALEXY, R. Constitucionalismo discursivo. p. 117 e seguintes.

  • 24

    Para Kelsen, a unidade da pluralidade de normas o fundamento de

    validade de todas estas normas: a norma fundamental43

    . Uma norma que no tem relao

    de unidade com o todo do sistema no faz parte dele, e pode-se dizer, est em oposio a

    ele. A coerncia interna dada na forma da hierarquia que as normas inferiores guardam

    com as superiores. Ao quebrar a unidade, a norma contraria o princpio ao mesmo tempo

    em que desnatura o sistema. Se contraria o princpio e faz desativar todo o sistema, a

    norma invlida (inconstitucional, ou at mesmo ilegal, quando contrariar o sistema

    supralegal de normas oriundas de pactos internacionais sobre direitos humanos).

    desta forma que o sistema processual guarda sua relao com o sistema

    constitucional. Uma lei que proponha a iniciativa do juiz para o processo penal de cunho

    condenatrio no pode pertencer ao sistema processual acusatrio embasado em uma

    Constituio que o consagre e, portanto, tal lei no ser vlida, ainda que funcional no

    sentido utilitarista, de mera adjudicao de uma soluo ao conflito de interesses penal44

    .

    Alm disso, um sistema acusatrio que no funciona devido a sua ineficincia ou devido

    a falta de coerncia, no acusatrio45

    .

    Com este instrumental terico se pretende responder pergunta: a norma

    que prev a priso preventiva de ofcio contraria, ou seja, incoerente com o sistema

    processual penal brasileiro?

    Neste ponto do estudo da adequao s normas e da coerncia do sistema

    processual penal, surge a questo da pureza dos sistemas, que deve ser enfrentada desde

    logo. No raro, o argumento segundo o qual uma norma est em desacordo com o sistema

    rechaado com a ideia de que no existem sistemas puros46

    . De fato, possvel

    entender os sistemas processuais penais como tipos ideais, construes puramente

    racionais, hipotticas e abstratas, cujo conceito foi desenvolvido na sociologia por Max

    Weber47

    . Os sistemas processuais penais reais, em vigor nos diferentes Estados,

    representariam apenas aproximaes dos tipos ideais e poderiam ser observados ora

    43

    KELSEN, H. Teoria pura do direito. p. 228. 44

    PRADO, G. op. cit. p. 56. 45

    PANZAVOLTA, M. Reforms and counter-reforms in the Italian struggle for an accusatorial criminal

    law system. p. 623, traduo livre. 46

    SAAD, M.; MALAN, D. R. Origens histricas dos sistemas acusatrio e inquisitivo. p. 413. 47

    WEBER, M. Economy and society. p. 6.

  • 25

    aspectos inquisitrios, ora aspectos acusatrios, dependendo da norma estudada48

    . Perderia

    sentido, desta forma, a pergunta deduzida acima. Se todos os sistemas vigentes

    representam uma mistura de preceitos dos tipos ideais, de nada importa se uma norma

    especfica tem perfil inquisitrio ou acusatrio. No entanto, como foi visto, a coerncia do

    sistema advm da relao de fundamentao que suas normas especficas guardam com os

    preceitos superiores (Alexy). Dito de outra forma, a incoerncia do sistema equivale a uma

    inconstitucionalidade ou a uma ilegalidade (quando se trata das normas supralegais).

    Pode-se entender, tambm, que no h um sistema puro, mas h

    caractersticas tpicas de cada sistema. Damaka elabora a interessante comparao da

    classificao dos sistemas com a interpretao das escolas de arte. Muitas das vezes

    difcil determinar a que escola artstica a obra pertence, mas, sim, possvel isolar e

    identificar as caractersticas especficas de determinadas escolas49

    , de maneira que uma

    pintura fovista de Matisse nunca poderia ser confundida com uma gravura cubista de

    Picasso, embora os dois mestres tenham sido contemporneos50

    . Para classificar o sistema

    de um determinado ordenamento processual penal, o estudioso do direito compara as

    disposies legais reais com as caractersticas consideradas essenciais de cada um dos

    modelos51

    .

    Assim, da mesma forma que se pode dizer que no h um sistema

    acusatrio puro no mundo emprico, tambm no h (e talvez nunca tenha havido) um

    sistema inquisitrio puro, em que todas as funes do processo sejam colocadas numa s

    pessoa de forma absoluta52

    .

    Outro prisma atravs do qual se pode ver a classificao dos sistemas

    processuais penais a sua relao com a concepo filosfica de Estado, de extrema

    48

    De acordo com ILLUMINATI, G. The accusatorial process from the Italian point of view, p. 297-298,

    as noes de processo acusatrio e inquisitivo so abstraes, modelos hipotticos que resultam da

    generalizao de ordenamentos e seu conceito depende da escolha de valores ideologicamente orientada

    (traduo livre). Segundo ARMENTA Deu, T. Sistemas procesales penales, p. 11, ...ningn sistema rene

    las esencias de una concepcin ortodoxa y que todos son objeto de frecuentes y fundadas diatribas, incluso

    en torno a una misma institucin como es el caso de las soluciones negociadas.() no existen modelos que

    salvaguarden la ortodoxia de ningn sistema, ni ninguno de los vigentes satisfara hoy en da por completo

    las exigencias del proceso debido. 49

    DAMAKA, M. The faces... loc. 5355 of 6774 footnote 6. 50

    O exemplo nosso, sobre a ideia de Damaka. 51

    ILLUMINATI, G. op. cit. 298. 52

    Os tribunais eclesisticos, por exemplo, quando a pena era de sangue, passavam sua execuo para o poder

    secular.

  • 26

    relevncia para o estudo da posio cnica do juiz no processo. Neste sentido, o processo

    penal empresta conceitos e definies da cincia poltica. De acordo com Goldschmidt,

    los principios de la poltica procesal de una nacin no son otra cosa que segmentos de su

    poltica estatal en general. Se puede decir que la estructura del proceso penal de una

    nacin no es sino el termmetro de los elementos corporativos o autoritarios de su

    Constitucin. Partiendo de esta experiencia, la ciencia procesal ha desarrollado un

    nmero de principios opuestos constitutivos del proceso. La mutua lucha de los mismos, el

    triunfo ya del uno, ya del otro, o su funcin, caracterizan la historia del proceso53

    .

    Para alm de uma viso segundo a qual o Estado autoritrio demandaria

    um processo mais inquisitrio, enquanto o processo acusatrio seria mais adequado a um

    Estado liberal (inquest-contest dichotomy), Damaka sob influncia de Max Weber e

    os graus de burocratizao que influenciam a forma de administrao da justia prope

    uma classificao mais complexa, um excurso da viso tradicional. Trabalhando com a

    ideia de diferentes organizaes estatais do sistema de justia, a autoridade estatal e a

    influncia das mudanas do papel do governo a obra de Damaka separa o Estado-juiz

    reativo, focado na resoluo de conflitos (conflict-solving), do Estado-juiz intervencionista

    na ordem processual, que impe certa poltica de segurana (police implementing).

    Paralelamente, separa o sistema de justia colaborativa, de relaes horizontais, com o

    sistema de justia hierrquico, de relaes verticais. Deste modo, embora o sistema

    inquisitrio esteja mais relacionado com um Estado intervencionista de tipo hierrquico,

    enquanto o acusatrio com o Estado reativo e colaborativo, possvel combinar as

    caractersticas de diferentes formas, como um Estado reativo com uma justia hierrquica;

    ou um Estado intervencionista com uma justia colaborativa. Assim, nem o sistema anglo-

    americano teria monoplio do sistema de resoluo de conflito, nem os sistemas

    continentais teriam monoplio da implementao de poltica54

    .

    Entretanto, uma vez que regimes polticos se legitimam a partir da

    administrao da justia55

    , segue possvel e til a simplificao que o prprio Damaka

    53

    GOLDSCHMIDT, J. op. Cit. 67. 54

    DAMAKA, M. The faces of justice... loc. 351 of 6774 55

    In the criminal process, it was similarly argued that ideological shifts affect the degree of protection

    accorded the defendant from the state: the comparatively peculiar position of the accused in the Anglo-

    American criminal prosecution has time and again been linked to tenets of classical liberalism DAMAKA,

    M. The faces of justice... loc. 269 of 6774.

  • 27

    consigna, de que o sistema acusatrio seria a realizao das virtudes de uma administrao

    liberal, enquanto, por contraste, o sistema processual continental pr-revoluo francesa

    serviria a um Estado autoritrio.

    Paralelamente s formulaes de Damaka, colocamos as de Alberto

    Binder e Michel Foucault, que identificam duas tradies nos sistemas punitivos ao longo

    da histria e que sero de grande utilidade no presente estudo. A uma tradio do delito

    como conflito, oriunda dos procedimentos ateniense e romano republicano, ope-se

    tradio do delito como infrao, tpica da Roma imperial, da administrao da justia

    clerical e da formao dos estados nacionais.

    Em suma, a posio mais ou menos ativa do juiz est diretamente ligada

    a um sistema processual penal que, por sua vez, responde a certa concepo de

    administrao da justia por parte do Estado. O primeiro grande exemplo da relao entre a

    estrutura do Estado e a conformao do sistema de justia a passagem da Repblica para

    o Imprio na Roma antiga. Trata-se, como diz Julio Maier, de un ejemplo valiossimo

    acerca de las transformaciones que sufre el enjuiciamiento penal a impulsos de la

    ideologa poltica imperante56

    . Quando os cnsules foram substitudos por um

    magistratus extraordinarius, o ditador perptuo Jlio Csar (44 AC), a tnica passou a ser

    a concentrao de poder. As caractersticas do processo penal da Repblica aclamada

    pelos pensadores do sculo das luzes como uma barricada das liberdades individuais dos

    cidados57

    deu paulatinamente lugar cognitio extraordinaria estruturada sobretudo para

    proteger o poder imperial absoluto58

    . Esta nova forma centralizada de processo penal foi

    ganhando terreno primeiro nos crimes mais relevantes contra o Imperador e, mais tarde,

    estendeu-se para os demais delitos. O poder ex officio (termo latino que significa em

    virtude do ofcio ou posio, em outras palavras, como um magistrado estatal, a estes

    oficiais era permitido iniciar procedimentos criminais contra cidados como parte de suas

    obrigaes59

    ) ganhava fora no ambiente autoritrio e se tornava a regra. O processo se

    tornava secreto e escrito. A tortura, abandonada durante o regime republicano, retornava

    como meio de extrair a prova do acusado. A priso processual era necessria para que tais

    instrumentos funcionassem melhor. Outro exemplo da imbricao processo/Estado o

    56

    MAIER, J.B.J. Derecho Procesal Penal. Tomo I. p. 272. 57

    ILLUMINATI, G. The accusatorial process from the Italian point of view. p. 300. 58

    ILLUMINATI. G. op. cit. p. 300. 59

    ILLUMINATI. G. op. cit. p. 300.

  • 28

    recrudescimento dos direitos individuais verificado nas legislaes nazista e fascista, com

    reflexos na elaborao do Cdigo de Processo Penal ainda em vigor no Brasil, como

    demonstra sua exposio de motivos.

    H, entretanto, vrios contraexemplos desta relao. Temos no Brasil a

    insero da defesa no inqurito policial em plena vigncia da carta de inspirao fascista de

    193760

    . Outrossim, sensvel o abrandamento de alguns aspectos do processo penal

    brasileiro em um dos perodos mais autoritrios da histria do pas (1964-1985) em

    contraste com o movimento de limitao das liberdades pblicas nas primeiras duas

    dcadas de vigncia da Constituio de 1988. Contudo, algumas observaes devem ser

    feitas. A primeira diz respeito ao descompasso entre a lei e a prtica dos pores da

    ditadura, onde os institutos mais bsicos da inquisio eram utilizados (unificao da

    figura do acusador e do juiz, tortura, priso processual automtica etc.)61

    . Paula Bajer, por

    exemplo, prope trs aspectos de anlise do processo penal entre 1964 e 1985: a) aes

    ilcitas cometidas por agentes investidos de autoridade pblica (torturas, prises, ilegais,

    desaparecimentos e mortes de pessoas consideradas subversivas); b) legalidade (atos

    institucionais e leis processuais do perodo, inclusive para crimes comuns); c)

    processualizao das condutas criminosas, polticas ou no.62

    . No mais, o suposto

    movimento progressista da poca ditatorial tambm pode ser entendido como casusmo

    legislativo, como, por exemplo, a Lei 5.941/73, apelidada de Lei Fleury em razo de ter

    sido elaborada sob medida para que o delegado Sergio Paranhos Fleury aguardasse o

    julgamento de um crime doloso contra a vida em liberdade63

    . Estas leis devem ser

    entendidas como progresso processual penal apenas no sentido figurativo da expresso, j

    que no passavam de letra morta, quando no eram utilizadas para salvaguardar certa elite.

    inadmissvel que se fale em progresso do processo penal quando as liberdades civis

    estavam suspensas, ministros do Supremo Tribunal Federal eram afastados ao talante dos

    60

    ALMEIDA, J.C.M. Princpios fundamentais do Processo Penal p. XXII. 61

    PROJETO BRASIL: NUNCA MAIS. O regime militar. 62

    BAJER, Paula. Processo Penal e cidadania. p. 37. 63

    Comeara-se transferindo aos tribunais militares o julgamentodos crimes contra a segurana do Estado,

    mas isso pareceu pouco. Suspendeu-se o habeas corpus, e transformou-se a tortura em polticade Estado,

    mas isso no era tudo. Protegendo-se das anomalias que provocara, a ditadura acobertara ladroagens de

    seus agentes, mas isso tambm no bastara. Tornara-se necessrio reformar a lei penal para assegurar a

    liberdade de um condenado. GASPARI, E. A ditadura escancarada. p. 384.

  • 29

    militares64

    , e as prises arbitrrias, a tortura e a execuo sumria de inimigos do regime

    eram toleradas pelo Judicirio.

    No mais, embora de fato tenhamos uma estrutura contitucional de Estado

    democrtico de direito aps 1988, no houve uma ruptura com o passado autoritrio65

    ,

    ou, ao menos, no houve uma ruptura completa, guardando nosso sistema de justia

    criminal forte componente inquisitivo66

    .

    Diante do quadro, fica difcil que tais contraexemplos suplantem a

    afirmao de que a concepo filosfica de Estado e processo penal esto extremamente

    ligadas e que a estrutura do processo penal contm diferentes noes de Estado como

    ele funciona na administrao da justia; como ele se relaciona com a autonomia do

    indivduo; e como ele limita tal autonomia67

    . Estabelecer este ponto de extrema

    importncia para o presente trabalho, j que um juiz que decreta uma priso preventiva

    sponte propria traz consigo uma concepo jurdica muito especfica do sistema processual

    penal no qual est inserido e do aparato estatal repressivo.

    Note-se que no se trata de maior ou menor monoplio estatal na

    persecuo penal, j que mesmo nas jurisdies adversariais do common law, a acusao

    exercida quase exclusivamente por um rgo estatal. A diferena que nos regimes mais

    marcadamente autoritrios os poderes de controle social e antecipao da pena passam da

    mo do acusador (que ainda detm a iniciativa da medida) para a mo do julgador (que,

    alm da iniciativa, detm o poder do julgamento).

    Tendo em conta as observaes sobre a pretensa pureza dos sistemas e

    sua relao estreita com a concepo de Estado, resta dizer que o isolamento terico dos

    dois grandes modelos de processo penal tarefa complexa e pode parecer, em alguns

    64

    Caso dos Ministros Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima, todos aposentados

    compulsoriamente pelo Ato Institucional n 5, de 13 de dezembro de 1968. 65

    PRADO, G. op. cit. p. 37. Neste mesmo sentido, CRUZ, R.S.M.C. Com a palavra, as partes: nosso

    sistema processual penal, em que pese caracterizado como acusatrio (com separao das funes de

    acusar, defender e julgar), nunca conseguiu livrar-se do rano inquisitorial que vem de longa data. 66

    A persistncia de caractersticas inquisitrias comum nos sistemas de justia europeus continentais e seus

    derivados, como o Brasil. Diz Ferrajoli que [s]i el modelo garantista de legalidad penal y procesal que

    hasta ahora se ha descrito sumariamente no se remonta ms all de dos siglos atrs, sus lecciones y

    refutaciones tal y como si manifiestan en las divergencias entre principios y praxis mencionadas en la

    introduccin, enlazan con una tradicin autoritaria mucho ms antigua y nunca realmente interrumpida.

    (FERRAJOLI, L. Derecho y razn. p. 40/41.) 67

    ILLUMINATI, G. op. cit. p. 299.

  • 30

    momentos, imprecisa ou subjetiva, o que levou alguns doutrinadores a conclurem que o

    estudo das diferenciaes entre os sistemas processuais penais j estivesse superado68

    .

    Como exemplo de tal impreciso, pode-se citar a divergncia na forma de se estudar o

    processo entre a doutrina anglo-americana e europeia continental. Enquanto nesta, a grande

    dicotomia dos sistemas formada pelo binmio inquisitrio/acusatrio, naquela, as

    diferenas na administrao da justia so vistas essencialmente por contraste entre

    sistemas adversariais e sistemas no adversariais ou inquisitrios. A diferenciao segue,

    porm, em voga no pensamento do processo penal atual, principalmente devido ao

    processo de reformas da justia penal por que passa grande parte dos pases adeptos do

    sistema europeu continental e que tem em sua essncia uma superao da antiga tradio

    inquisitria69

    . De acordo com Gimeno Sendra, el binomio acusatorio-inquisitivo tiene la

    virtualidad de indicarnos mediante qu distribuicin de roles y bajo qu condiciones se

    realizar el enjuiciamiento del objeto procesal penal70

    .

    A diferenciao dos sistemas remonta ao sculo XII, quando se

    separavam os processos que necessitavam de uma parte para se desenvolverem (processus

    per accusationem) e aqueles que podiam ser iniciados sem um litigante privado

    (processus per inquisitionem). Os conceitos se desenvolveram at que o Iluminismo

    concebeu dois modelos: um que prevalecia na prtica (inquisitorial) e outro teoricamente

    superior e prefervel (acusatrio)71

    . Temos, ento, a diferena fundamental entre os

    modelos: o papel das partes e, principalmente, do juiz no processo72

    .

    A partir destas observaes, trataremos em separado dos sistemas

    inquisitrio, acusatrio e misto. Uma vez que o estudo pormenorizado de cada modelo se

    reveste de inmeros aspectos jurdicos, culturais, polticos e sociais que fogem ao escopo

    especfico deste trabalho, pretende-se realizar apenas um recorte de trs aspectos principais

    que serviro como instrumento de anlise do tema especfico da priso preventiva de

    68

    ALMEIDA, J.C.M. op. cit. p. XIX e seguintes. Neste sentido, ILLUMINATI, G. The accusatorial... p.

    298 em traduo livre: A distino entre os sistemas acusatrio e inquisitivo contm estruturas analticas

    dogmtico-tericas e histricas, que, apesar de no serem mutuamente excludentes, nem sempre coincidem. 69

    Sobre o assunto, cita-se a obra de Alberto BINDER, Derecho Procesal Penal, de 2013, principalmente o

    captulo com o sugestivo ttulo Contra la inquisicin: historia y tradiciones en la configuracin de la

    justicia penal. 70

    p. 266. 71

    DAMAKA, M. The faces of justice... loc. 162 of 6774 72

    The fundamental difference between the procedural models is the role of the parties and of the judges.

    CRYER, R. et. alii. An introdution to International Criminal Law and Procedure.p. 426.

  • 31

    ofcio. Faremos, ento, um delineamento do processo histrico de formao de cada

    modelo, fixando o papel do juiz e da priso preventiva em cada um dos modelos. Estas trs

    dimenses dos sistemas daro subsdios para que se entendam melhor as origens, os

    motivos e as implicaes da norma que prev a possibilidade de priso preventiva de

    ofcio.

    de se observar que bastariam os aspectos do papel do juiz e da priso

    preventiva em cada modelo. No entanto, voltando primeira frase da introduo deste

    trabalho, entendemos a aquisio de direitos (nos quais inclumos a instituio de um

    processo autenticamente acusatrio) como um gradual efeito de um processo histrico.

    Como diz Binder, la justicia penal, como todo campo social, ha sido configurada

    histricamente. Por ello se encuentra atravesada por relatos histricos y tradiciones.

    Dado que todo campo social ha sido gestado a lo largo de los aos, su estructura actual

    (estado del campo) es el resultado de una gnesis, que es necesario esclarecer 73

    . De

    acordo com Illuminati74

    , sob uma perspectiva histrica, relevante saber qual a parte a

    quem dado o poder de persecuo, e relevante saber se o juiz pode dar incio a

    procedimentos motu proprio75

    . A raiz histrica dos sistemas vigentes tambm uma

    forma usual de se diferenciar os grandes tipos ideais: um herdeiro das prticas inglesas

    (sistema do common law anglo-americano), e outro desenvolvido a partir das prticas da

    Europa continental (civil law). Apesar do critrio da filiao histrica tampouco ser

    perfeito j que temos casos como o Chile, que adotou, aps a reforma, um sistema muito

    semelhante ao adversarial auxilia a entender a configurao histrica dos sistemas

    atuais.

    1.1. Modelo acusatrio

    1.1.1. Delineamento histrico

    O direito grego e o romano pr-imperial pautavam-se pelo sistema

    acusatrio popular, que consistia na facultad de cualquer ciudadano de perseguir

    73

    BINDER, A.M. op. cit. 255. 74

    Op. cit. p. 298-299. 75

    Illuminati explica que a expresso latina significa por seu prprio impulso e era comumente utilizada

    para descrever um edito iniciado pelo papa sem consulta.

  • 32

    penalmente al infrator. Fundava-se na soberania cidad ateniense, ou seja, na

    participao direta dos cidados para acusar e julgar. A exceo seria formada pelos delitos

    privados, que s permitiam a persecuo pelo ofendido ou seus substitutos. De acordo com

    Julio Maier, como en todos los pueblos antiguos, el juicio era oral, pblico y

    contradictorio76

    .

    O direito processual penal ateniense, segundo Maier77

    , tinha as

    caractersticas marcantes da soberania popular, que concentrava a acusao e o julgamento.

    Havia certa paridade de armas entre acusao e defesa, que debatiam em um contraditrio

    pblico em frente a um Tribunal popular. A tortura e os juzos de deus eram admitidos, e

    as decises eram irrecorrveis.

    Conforme ensina Illuminati, na fase da Repblica Romana a natureza

    privada da persecuo penal fez emergir as caractersticas que mais tarde constituiram a

    base do sistema acusatrio, como o poder discricionrio para dar incio a uma persecuo

    penal, o nus da prova nas mos da acusao, a paridade de armas entre as partes e seu

    controle da prova, o princpio da publicidade e oralidade do julgamento e, mais relevante

    para o presente trabalho, o papel passivo do juiz como um rbitro da disputa78

    . A regra

    durante os primeiros tempos da Repblica era a liberdade do acusado durante o processo,

    desde que apresentasse fiadores idneos79

    .

    Em um movimento de concentrao e passagem do poder do senado ao

    imperador (como ser visto no captulo sobre o sistema inquisitrio), as formas populares

    76

    MAIER, J.B.J. op. cit. p. 269. I. Tribunal popular. II. Acusacin popular, por la facultad acordada a

    cualquier ciudadano para presentar querella contra la persona a quien crea autor de un delito pblico o

    partcipe en l. III. Igualdad entre acusador y acusado, quien, de ordinario, permaneca en libertad durante

    su juzgamiento. IV. Publicidad y oralidad del juicio, que se resuma en un debate contradictorio entre

    acusador y acusado, frente al tribunal y en presencia del pueblo. V. Admisin de la tortura y los juicios de

    Dios como medios de realizacin probatoria. VI. Valoracin de la prueba segn la intima conviccin de

    cada uno de los jueces, quienes votaban a favor o en contra depositando un objeto que daba a conocer el

    sentido del sufragio. VII. Decisin popular inimpugnable. 77

    Idem. Ibidem p. 272. 78

    Cf. ILLUMINATI, G. op. cit. p. 300: In this phase, features that would later be considered typical of the

    accusatorial system emerged and were associated with the private nature of the prosecution, including the

    discretionary power to start a prosecution; the burden of proof on the prosecutor; the equality of arms

    between the parties and their control of the evidence; the principle of publicity and orality of the trial; and,

    finally, the judges passive role as the arbitrator of the dispute. The private accuser was left in charge of

    gathering the evidence. The Praetor could authorize him to use coercive powers in his investigations.

    European reformist lawyers, beginning in the 18th century, viewed the criminal process of the Republican

    time of Rome as a bulwark of the citizens individual liberties and began to consider the accusatorial system

    a typical expression of a democratic regime. 79

    ALMEIDA J. J.M. op. cit. p. 319.

  • 33

    de julgamento marcadas pela resoluo do conflito gerado pelo delito foram abrindo

    caminho para uma forma de administrao da justia mais autoritria, de implementao

    da poltica imperial.

    Com o colapso do Imprio Romano do Ocidente e a pulverizao do

    poder no feudalismo, o procedimento acusatrio voltou a ganhar fora embasado no direito

    germnico antigo, mas com uma viso de combate fsico (duelos) e mstico (judicium Dei).

    O objetivo do processo era prevenir a guerra generalizada dos cls. medida que a

    burocracia continental foi se desenvolvendo, o sistema adversarial foi se transformando em

    uma disputa perante o tribunal80

    .

    As partes tinham participao ativa na cena processual, vigendo o

    princpio nemo iudex sine actore. O direito germnico antigo (sculo VII e anteriores) tem

    perfil de acusatrio privado e suas principais caractersticas, de acordo com Maier, alm

    da interao das partes no combate, eram a publicidade e a oralidade do procedimento81

    .

    Esta tradio encontrou terreno frtil nas Ilhas Britnicas, desenvolvendo-se no adversary,

    do qual trataremos oportunamente82

    .

    Temos nas civilizaes ateniense, romana republicana e feudal uma

    estrutura de delito que condicionar o processo de punio: a tradio do delito como

    conflito83

    , em oposio tradio do delito como infrao, como desobedincia norma

    estatal, que veremos com mais apuro no item acerca do processo inquisitrio84

    .

    80

    DAMAKA, M. The faces of justice... loc. 3824 of 6774. 81

    MAIER, J.B. op. cit. p. 264 e seguintes. I. Tribunal popular. II. Persecucin penal privada en manos del

    ofendido y su parentela. III. Publicidad e oralidad del juicio en que se enfrentaban el acusador y su acusado.

    IV. Sistema de prueba tendiente a dirimir subjetivamente la contienda en tanto eriga un vencedor, ya porque

    presentaba mejores testimonios de su fama u honor personal, o porque venca en el duelo o combate judicial,

    o porque pasaba con fortuna ciertas pruebas (ordalas o juicios de Dios), mtodos mediante los cuales la

    divinidad mostraba, por signos fsicos fcilmente observables, la justicia del caso. V. Decisin

    inimpugnable. 82

    Idem. Ibidem. p. 301. e PRADO, G. op. cit. p. 79 e seguintes. 83

    BINDER, A.M. op. cit. p. 273 e seguintes. 84

    Interessante passagem de Foucault que ilustra a concepo do delito como conflito e a passagem para a

    concepo do delito como infrao: Na alta Idade Mdia no havia poder judicirio. A liquidao era feita

    entre indivduos. Pedia-se ao mais poderoso ou quele que exercia a soberania no que fizesse justia, mas

    que constatasse, em funo de seus poderes polticos, mgicos e religiosos, a regularidade do procedimento.

    No havia poder judicirio autnomo, nem mesmo poder judicirio nas mos de quem detinha o poder das

    armas, o poder poltico. Na medida em que a contestao judiciria assegurava a circulao dos bens, o

    direito de ordenar e controlar essa contestao judiciria, por ser um meio de acumular riquezas, foi

    confiscado pelos mais ricos e poderosos. FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurdicas. p. 65.

  • 34

    A partir do sculo XV, a formao das monarquias nacionais e a

    expanso da Santa S na Europa continental concentraram novamente o poder poltico e a

    burocracia clerical, ancorada na conveniente ressurreio da tradio romana imperial. A

    construo do processo punitivo da em diante ficar marcada pela interveno estatal

    direta, em um procedimento desenvolvido sofisticadamente para punir a heresia e que

    serviu Igreja e ao Estado para tambm punir qualquer tipo de infrao. Assistimos ao

    declnio das tradies gregas e romanas republicanas que, embora no tenham deixado de

    existir, principalmente no sistema anglo-saxo, acabam por dar lugar a uma justia que, ao

    ver o delito como infrao (Binder), implementa uma poltica de segurana do Estado

    (Damaka).

    interessante notar que, muito embora o sistema inquisitrio tenha

    dominado as formas jurdicas de persecuo penal na Europa continental desde o fim da

    Idade Mdia at nossos dias, o sistema acusatrio sempre foi visto como teoricamente

    superior, como nos explica Damaka: More interestingly, the inquisitorial process,

    although in practice dominant, was regarded as an anomaly or an aberration from regular

    forms. In its infancy, it required protection by extensive justification, even apologies: as

    departure from revered tradition, it was to be used only exceptionally a necessary evil if

    the war against crime were to be successfully fought (ne crimina maneat impunita) 85

    . Em

    outra passagem, Damaka cita que scholarly discussion of the inquisitorial procedure was

    regularly interspersed with ceremonial genuflection before an alternative design of

    criminal prosecution that always required a complainant, and readily evoked the idea of a

    dispute86

    .

    De tempos em tempos, a tradio do delito como conflito e da justia que

    prope resolv-lo sobrepe a tradio de implementao de poltica estatal. O advento do

    Iluminismo, que redescobre o indivduo e afirma seus direitos fundamentais87

    na

    formulao do conceito de dignidade humana, superou a noo da segurana do Estado

    como princpio mximo do processo penal, colocando ao seu lado (ou acima) a

    necessidade de se evitar condenaes de inocentes e a necessidade de garantir o mximo de

    85

    DAMAKA, M. The faces... loc 3863 of 6774. 86

    Idem. Loc 3867 of 6774. 87

    ILLUMINATI, G. op.cit. p. 303.

  • 35

    imparcialidade dos Tribunais88

    . O pensamento racionalista estabeleceu o sistema

    acusatrio como uma tpica expresso de um regime democrtico89

    . A ideia foi resgatar

    o Direito Romano Republicano e receber a influncia do sistema ingls (que sofreu pouca

    ou nenhuma contaminao do Direito Cannico) para um novo sistema de Justia Penal.

    Diz Julio Maier que El nuevo modelo propona, en lugar de la escritura y el secreto de

    los procedimientos, de la negacin de la defesa y de los jueces delegados del poder

    imperial, la publicidad y oralidad de los debates, la libertad de la defensa y el juzgamiento

    por jurados90

    . A priso preventiva foi especialmente criticada ou racionalizada por

    iluministas como Mostequieu, Voltaire e Baccaria. As ideias liberais racionalistas, em

    suma, pensaram um sistema de justia em que o Estado e o acusado disputavam perante

    um tomador de decises independente do governo91

    .

    A lei processual penal de 1791, primeira codificao processual penal da

    Revoluo92

    , compreendeu o antagonismo diante dos princpios inquisitrios do Ancien

    Rgime dispostos na anterior Ordenana de 1670. Existia a priso preventiva decidida pelo

    juiz de paz (que era um magistrado instrutor), mas se admitia a liberdade mediante cauo.

    Os debates tornaram-se orais e pblicos. Este Cdigo representou o primeiro passo para a

    reforma do sistema inquisitivo, mas ainda conferia bastante poder aos magistrados de

    segurana (juiz de paz), incorrendo no vcio inquisitrio da confuso entre acusao e

    defesa93

    .

    A codificao napolenica da forma ambgua que caracterizou seu

    criador embora tenha tido o intuito de restabelecer algumas das caractersticas

    acusatrias, desenvolveu-se de forma a que o inquisitorialismo tivesse proeminncia,

    situao que se conservou at o sculo XX.

    88

    MAIER, J.B. op. cit. 86. 89

    ILLUMINATI, G. op. cit. p. 300. 90

    MAIER, J.B. op. cit. p. 336. 91

    DAMAKA, M. The faces... loc 3892 of 6774. 92

    Aps os decretos de 8 e 9 de outubro de 1789 da Assembleia Constituinte que impuseram a publicidade

    dos processos e a defesa do acusado em todos os graus de jurisdio. Cf. FERRAJOLI, L. op. cit. p. 136 e

    MAIER, J.B. op. cit. 340 e seguintes. 93

    MAIER, J.B. op. cit. 137.

  • 36

    O modelo acusatrio s veio ganhar fora a partir da segunda metade do

    sculo XX, aps a Segunda Grande Guerra94

    , quando se inicia um movimento de reforma

    dos sistemas de justia penais para abrandar o modelo inquisitrio como uma resposta aos

    regimes totalitrios derrotados. A caracterstica marcante da poca foi um fortalecimento

    dos direitos de dignidade individuais e, consequentemente, uma proteo melhor ao

    acusado. Vemos o surgimento da Declarao Universal dos Direitos Humanos em 1948, o

    Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos e o Pacto Internacional dos Direitos

    Econmicos, Sociais e Culturais, em 1966, e a Conveno Americana de Direitos

    Humanos em 1969. Em 1950, a Conveno Europeia sobre Direitos Humanos introduziu

    conceitos processuais penais marcadamente anglo-saxes como o juzo equitativo e os

    direitos de oposio95

    . A Corte Europeia de Direitos Humanos, inclusive, interpreta o

    artigo 5, pargrafo 4 da Conveno96

    como o direito do acusado detido provisoriamente a

    um processo adversarial que garanta a paridade de armas do acusador e do acusado97

    .

    Seria, na expresso de Diogo Malan, um direito ao confronto98

    . Trata-se de um

    importante passo na gradual conquista histrica de direitos de que falamos na introduo

    deste trabalho. Um exemplo desse movimento a Constituio da Repblica Italiana de

    94

    de se consignar o projeto de Cdigo processual penal (Entwurf einer Strafprozessordnung

    Goldschmidt/Schiffer), elaborado pelo jurista alemo James Goldschmidt ainda antes da Primeira Guerra

    Mundial que, em 1919, foi apresentado pelo Ministro da Justia da Repblica de Weimar Eugen Schiffer ao

    Senado, que no o aprovou. De acordo com Aury Lopes, em seu Projeto, Goldschmidt previu a consequente

    efetivao do processo acusatrio por meio da eliminao dos resqucios do processo inquisitrio. Alm

    disso, o projeto previu a possibilidade de recursos a todas as instncias penais e a participao geral de

    leigos na primeira instncia, no mbito do Tribunal do Jri (tendo em vista, aqui, seu vasto conhecimento do

    modelo processual francs). Goldschmidt procurou vincular priso preventiva pressupostos muitos

    especficos para a sua decretao. O projeto inspirou substancialmente o Projeto de Lei para

    Reorganizao dos Tribunais Penais apresentado pelo Ministro de Weimer e tambm jurista Gustav

    Radbruch LOPES Jr., A.; SILVA, P. R. A. da. Breves apontamentos... p. 176. 95

    DAMAKA, M. Aspectos... p.1. 96

    4. Qualquer pessoa privada da sua liberdade por priso ou deteno tem direito a recorrer a um tribunal, a

    fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua deteno e ordene a sua

    libertao, se a deteno for ilegal. 97

    Caso Piruzyan vs. Armenia, julgado em 26 de setembro de 2012, notadamente o item 116, in verbis: 116.

    The Court reiterates that Article 5 4 requires that a court examining an appeal against detention provide

    guarantees of a judicial procedure. The proceedings must be adversarial and must always ensure equality

    of arms between the parties, the prosecutor and the detained person. Equality of arms is not ensured if

    counsel is denied access to those documents in the investigation file which are essential in order effectively to

    challenge the lawfulness of his clients detention (see Lamy v. Belgium, 30 March 1989, 29, Series A no.

    151; Nikolova v. Bulgaria [GC], no. 31195/96, 58, ECHR 1999-II; and Garcia Alva v. Germany, no.

    23541/94, 39, 13 February 2001). Disponvel em

    http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-111631. Acessado em 12 de setembro de 2014. 98

    MALAN, Diogo Rudge. Direito ao confronto no processo penal.

    http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-111631

  • 37

    1948, que j trazia o desenho de um sistema processual baseado na iniciativa das partes e

    na prova colhida pela cross examination das testemunhas perante um juiz imparcial99

    .

    Com os documentos mencionados e com as novas constituies

    europeias continentais do ps-guerra, temos a instituio de Estados Democrticos de

    Direito tendo o modelo autenticamente acusatrio de justia criminal como o adequado a

    esta formulao constitucional. Nos regimes representativos como o so todos os Estados

    Democrticos de Direito o poder do juiz no passa de uma delegao do cidado100

    , e

    limitado pelas leis promulgadas em nome do cidado.

    Na formulao de Goldschmidt, el proceso acusatorio ha configurado

    el proceso penal segn el modelo del proceso civil como un actus trium personarum.

    Como o autor da ao civil pede a adjudicao de um direito prprio, o acusador pede o

    exerccio do direito judicial de punir (direito judicial de condenao e execuo da

    pena)101

    . Goldschmidt entendia que se trata de um direito potestativo que o Estado exerce

    contra si (jurisdio) intencionando uma sentena condenatria, mas s e somente s

    atravs de um processo, cuja exigncia inerente ao Estado de Direito que correlacionou o

    princpio da nulla poena sine lege ao de nulla poena sine judicio. A ao penal deve,

    ento, ser exercida pelo prprio Estado (ou pelo querelante ou pelo povo, no caso da ao

    penal popular) em face do prprio Estado, titular da jurisdio (Estado-juiz). Esta

    formulao est na base da separao de funes entre julgador, acusao e defesa102

    .O

    processo acusatrio , por natureza e por oposio inquisio, litigioso103

    . inquisio

    99

    PANZAVOLTA, M. op. cit. p. 610. O movimento de contrarreforma empreendido pela Corte

    Constitucional fez com que a constituio tivesse que ser emendada (ver item 4.1) 100

    DAHL, Robert A. Sobre a democracia. p. 128. 101

    Op. cit. p. 28/35. 102

    Os crticos desta formulao argumentam que desta forma no haveria uma diferena clara entre processo

    penal e civil, podendo o promotor deduzir seu pedido perante um juiz cvel. Goldschmidt responde que

    depois da publicizao da pena, o processo penal passou a ter suas prprias categorias, (o direito de apenar

    pode ser exercido exclusivamente pelo processo penal, o direito privado pode se realizar por outros meios). A

    parte acusadora do processo penal no demanda um direito prprio, mas o direito do prprio Estado de punir

    (o direito de punir do Estado e s do Estado). Goldchmidt critica, inclusive, a expresso da ao penal do

    art. 100 da Ley de Enjuiciamiento Criminal espanhola de 1882 e vigente at hoje. O direito no do