Fausto e religioes, artigo de gilbraz

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Fausto e Religiões: questões para uma atitude transdisciplinar em Ciências da Religião. Gilbraz Aragão 1 Resumo: Tanto Goethe quanto Eliade, referência teórica clássica da nossa área de Ciências da Religião, com a sua teoria sobre o "sagrado", participaram do mesmo Círculo de Eranos, onde se desenvolveu uma hermenêutica simbólica do sentido. Fausto é um personagem sobre o qual apenas supõe-se que tenha existido. Contudo, tornou-se história ao ter se tornado inspiração para a ficção a maior delas, justamente a de Goethe. O Fausto de Goethe transmite uma sensação de claustrofobia, como no quarto baixo e apertado do protagonista ou na sua aldeia, aprisionada entre as colinas o que, em certa medida, se contrapõe às ambições cósmicas do personagem de abarcar todo o conhecimento. Essa condição paradoxal do ser humano, solitário e frágil, mas almejando a totalidade oximoro divino, inacessível sem Mefisto , remete a uma possível influência na concepção de Eliade sobre o sagrado, mistério de “coincidentia oppositorum”, que se vislumbra entre e além da sua relação com o profano – opostos unidos por um Ente Supremo, transcendente, porém assimilável através dos símbolos. Que consequências a compreensão dessas conexões traz para o estudante de Ciências da Religião? Como a literatura pode inspirar a ciência?! A resposta a tais perguntas é o objetivo desta reflexão. Palavras-chave: Ciências da Religião, Transdisciplinaridade e Religião, Literatura e Teologia. No que diz respeito a essa ciência, é muito difícil evitar o caminho errado; ela contém tanto veneno oculto, que praticamente não se distingue do remédio (Fausto, de Goethe, sobre a teologia). 1 Doutor em teologia, trabalha na Universidade Católica de Pernambuco, onde coordena o Mestrado em Ciências da Religião. E-mail: [email protected]

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Fausto e Religiões: questões para uma atitude transdisciplinar em Ciências da Religião.

Gilbraz Aragão1

Resumo: Tanto Goethe quanto Eliade, referência teórica clássica da nossa área de

Ciências da Religião, com a sua teoria sobre o "sagrado", participaram do mesmo

Círculo de Eranos, onde se desenvolveu uma hermenêutica simbólica do sentido. Fausto

é um personagem sobre o qual apenas supõe-se que tenha existido. Contudo, tornou-se

história ao ter se tornado inspiração para a ficção – a maior delas, justamente a de

Goethe. O Fausto de Goethe transmite uma sensação de claustrofobia, como no quarto

baixo e apertado do protagonista ou na sua aldeia, aprisionada entre as colinas – o que,

em certa medida, se contrapõe às ambições cósmicas do personagem de abarcar todo o

conhecimento. Essa condição paradoxal do ser humano, solitário e frágil, mas

almejando a totalidade – oximoro divino, inacessível sem Mefisto –, remete a uma

possível influência na concepção de Eliade sobre o sagrado, mistério de “coincidentia

oppositorum”, que se vislumbra entre e além da sua relação com o profano – opostos

unidos por um Ente Supremo, transcendente, porém assimilável através dos símbolos.

Que consequências a compreensão dessas conexões traz para o estudante de Ciências da

Religião? Como a literatura pode inspirar a ciência?! A resposta a tais perguntas é o

objetivo desta reflexão.

Palavras-chave: Ciências da Religião, Transdisciplinaridade e Religião, Literatura e

Teologia.

“No que diz respeito a essa ciência,

é muito difícil evitar o caminho errado;

ela contém tanto veneno oculto,

que praticamente não se distingue do remédio”

(Fausto, de Goethe, sobre a teologia).

1 Doutor em teologia, trabalha na Universidade Católica de Pernambuco, onde coordena o Mestrado em

Ciências da Religião. E-mail: [email protected]

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O campo de conhecimento das Ciências da Religião é mais do que interdisciplinar e

recebe colaborações teóricas (e estudantes) das áreas de História e de Humanidades, das

disciplinas de Sociologia, Antropologia e Psicologia, bem como de Filosofia,

Linguística e Teologia – exigindo, contudo, que tais aportes metodológicos sejam

redimensionados epistemologicamente com base na comparação empírica dos fatos e na

busca hermenêutica de significados, através de uma lógica dialogal (as Ciências da

Religião se articulam em torno da cultura epistemológica das controvérsias). De modo

que pesquisadores daquelas diversas áreas são bem-vindos às Ciências da Religião e

podem produzir trabalhos com enfoques desde as suas graduações, bastando que se

coloquem questões atingíveis fenomenologicamente e trabalháveis hermeneuticamente.

O conceito de Ciências da Religião, cunhado por Max Müller (1823-1900) e

desenvolvido por Mircea Eliade (1907-1986), deu origem a uma área acadêmica que

busca esclarecer a experiência humana do sagrado. Sobre a base da história geral das

religiões ergue-se o estudo comparativo das religiões, que aborda as religiões e seus

fenômenos com questionamentos sistemáticos. Ele forma categorias genéricas e se

esforça para apreender o mundo dos fenômenos religiosos de tal modo que

transpareçam linhas fundamentais, sobretudo fazendo uso da fenomenologia. Enquanto

a história das religiões constitui a base das Ciências da Religião, a pesquisa sistemática

das religiões deve mostrar semelhanças e diferenças de fenômenos análogos (sobre o

sagrado) em diversas religiões e apresentar a hermenêutica dos “textos” sacros em seus

contextos.

As relações entre religião e suas condições contextuais são então aclaradas por distintas

disciplinas. Assim, por exemplo, a sociologia da religião ocupa-se das relações

recíprocas entre religião e sociedade, incluindo também a dimensão política. A

psicologia da religião dedica-se a processos religiosos que devem ser compreendidos a

partir da peculiaridade do elemento psíquico. A geografia das religiões investiga as

relações entre religião e espaço, sendo que este se entende não apenas em sentido físico,

mas também cultural. Assim também, a filosofia participa do campo epistemológico das

Ciências da Religião desde que não reduza teoricamente o religioso a mero

epifenômeno e busque sistematizar os fatos religiosos com maiores preocupações de

objetividade; e a teologia, desde que se redefina metodologicamente como uma

interpretação das tradições de fé e não se limite a expor uma doutrina religiosa.

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Faz-se necessário, portanto, uma ressignificação da teologia enquanto ciência que

desenvolve a interpretação de mitos, ritos e símbolos de tradições de fé – o que implica

tanto a caracterização dos conceitos teológicos como símbolos, quanto a redescoberta de

conteúdos racionais em narrativas míticas. No caso do cristianismo, majoritário entre

nós, isso implica em uma nova hermenêutica dos símbolos da tradição cristã, pelo

realismo que se impõe a quem participa em um campo transdisciplinarmente aberto à

história comparada das religiões e à crítica psicossocial do fenômeno religioso. Desse

modo, com as questões certas e os procedimentos adequados, podemos construir juntos

a sinfonia polifônica do esclarecimento possível sobre as experiências religiosas.

Mas, na prática, a teoria é mais complicada. Por exemplo, perguntamos no blog2 do

nosso Mestrado qual destas questões é própria das Ciências da Religião (e não da

Teologia, Filosofia ou História): A Bíblia tem razão? Os espíritos incorporam de

verdade? Qual o sentido deste fato religioso? Deus existe mesmo? Esta é uma

experiência religiosa verdadeira? Que estruturas de produção explicam tal

religiosidade? Então, cinquenta e cinco por cento das pessoas que participaram da

enquete votaram acertadamente na pergunta “Qual o sentido deste fato religioso”.

Questões como “A Bíblia tem razão” ou “Esta é uma experiência religiosa verdadeira”

são mais restritamente teológicas. “Deus existe mesmo” é um problema filosófico. “Que

estruturas de produção explicam tal religiosidade” e “Os espíritos incorporam de

verdade” correspondem a certas linhas de pesquisa da sociologia e da psicologia,

historicamente datadas. Quer dizer, praticamente a metade do pessoal que circula na

área é que está de acordo sobre o objetivo mesmo dos estudos da religião, e a

problemática se complica quando tentamos acertar balizas metodológicas para as nossas

pesquisas. Nem sempre é fácil fecharmos o consenso sobre o campo epistemológico

apropriado das Ciências da Religião3 e, por isso, vamos recorrer a uma analogia literária

provocativa.

A experiência do sagrado, seja em que religião for, condensa-se em uma literatura

humana. Para o nosso Ariano Suassuna, por exemplo, o mundo é um “pasto incendiado”

e a função da arte e, mais especificamente, da literatura, é “salvar do incêndio e deixar

alguma coisa de permanente e belo, que escapasse das chamas e das cinzas”. A

2 Disponível em http://crunicap.blogspot.com, acesso em 08/10/12.

3 Para uma exploração sobre os novos métodos em ciências da religião, ver o meu artigo disponível em http://crunicap.blogspot.com.br/2011/10/novos-metodos-em-ciencias-da-religiao.html, acesso em 08/10/12.

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literatura, de fato, tem a missão de aprofundar, no que tem de mais profundo, o mistério

do humano. Brota, como arrebatamento do imo das pessoas, naquilo que têm de mais

irredutível, em seu mistério envolto por silêncio e solidão, antes de abrir-se aos outros

com a mediação da linguagem. É a vida que toma consciência de si mesma, quando

atinge a plenitude de expressão, valendo-se de conceitos, imagens, símbolos.

Qual seria nosso conhecimento do que é o humano, se não fosse Adélia Prado e

Guimarães Rosa, Patativa do Assaré e Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto e

Ariano Suassuna? Esses grandes nomes da literatura captam uma palavra diferente e

criativa, que causa diferença em nossas vidas. Por trás das suas palavras aparece uma

humanidade tão humana, que acaba transparecendo o divino. Se a gente fosse ousado

para tentar uma edição revista e inculturada dos nossos livros sagrados, teria de incluir

muitas passagens inspiradas desses mestres e profetas que, mesmo sem “pertencer a

Israel”, ajudam na compreensão do fato religioso e até na fé das pessoas. Afinal, quando

a bíblia foi sendo escrita, por exemplo, muita coisa foi como literatura e não

imediatamente sagrada, e outros textos inspirados também recorrem a estilos e fatos

profanos para nos trazer um toque do divino.

Até pouco tempo atrás a literatura ocupou nos estudos da religião, na reflexão sobre o

sagrado e o divino, apenas um lugar suspeitoso. Mas os cientistas da religião atuais vão

à literatura como a uma fonte insubstituível: às vezes a literatura veicula ao mesmo

tempo uma mensagem religiosa, que se tornou vida na vida do autor. Mas há também

um tipo de literatura que, embora não sendo explicitamente religiosa, chega a tal

conhecimento do ser humano e de seus problemas e esperanças, que constitui uma fonte

fecunda de questões e que estimula a reflexão sobre o sagrado. O drama Fausto, do

alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), é uma dessas fontes, e dela

queremos aqui tomar lições4, tanto porque esboça o drama da ciência moderna que se

pergunta o que dizer, agora, da religião, quanto pela influência que certamente exerceu

sobre Mircea Eliade, um dos fundadores da nossa área de conhecimento – com o seu

conceito de sagrado e a sua meta-história, idealista ou romântica, das religiões5.

4 Tomo emprestados os comentários do professor Georg OTTE em Teoria cinzenta e vida verde (Magis,

nº 46, set. 2004, 13-28), e aproveito suas críticas à busca de Fausto pelo conhecimento, para provocar nos estudantes de ciências da religião, a partir de uma aula inaugural do seu curso, a ampliação nas expectativas do que e de como conhecer nesse campo. 5 Para uma reflexão bibliográfica sobre a história das religiões, ver meu artigo disponível em

http://crunicap.blogspot.com.br/2011/02/historia-das-religioes.html, acesso em 08/10/12.

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A primeira impressão é sempre duradoura. E tenho a honra e a responsabilidade de

começar, na Universidade Católica de Pernambuco, as aulas do nosso Mestrado em

Ciências da Religião – ou seria melhor ciência das religiões?! As diferenças estão na

compreensão do nosso método: existe uma ciência da religião com método

transdisciplinar próprio ou apenas aplicações dos métodos das ciências humanas e

sociais ao tema da religiosidade?! Esconder-se-ia em todas as religiões uma essência,

ainda que fenomenológica, da religião, ou devemos nos contentar com a apreensão da

diversidade de tradições locais dos fatos religiosos?

O meu curso quer, então, justamente refletir sobre as interfaces metodológicas e as

perspectivas epistemológicas da pesquisa sapiente dos fatos religiosos. Singular na

epistemologia e plural nos métodos e objetos – esta é a minha perspectiva. E assim a

tarefa se torna bem difícil na iniciação de cada novo grupo de estudantes, porque devo

iniciá-los em um campo de estudos profundamente transdisciplinar6, muito

recentemente desenvolvido entre nós no Brasil e ainda não completamente esboçado

pelo mundo afora, mas que não tem o mesmo ponto de vista e processamento sobre o

fenômeno das religiões a que nos habituamos em nossas formações de filósofos e

teólogos, antropólogos, psicólogos e sociólogos...

Acresce a isso a minha convicção crescente de que qualquer ciência que não tiver sabor,

que não for mesmo sapiência, não deve ser buscada nem ensinada. Então, para me

apoiar nessa missão hercúlea, resolvi me socorrer nesse livro que há uns anos me

acompanha: o Fausto7. Uma tragédia que inaugura a cultura moderna e em torno da qual

eu gostaria de dissertar agora, convidando também outros estudiosos da religião quase

para um “pacto com o diabo” como o feito por Fausto, ou ao menos para um

distanciamento/esclarecimento de deus e da fé – para que consigam fazer ciência em

nossos programas de estudos da religião. Convidando-os para uma volta à natureza da

realidade e a uma mudança nos seus métodos de estudos, como fez Fausto, não apenas

para ampliar sua ciência, mas para reaprender a viver. E espero que tenham mais sorte

(viver é estender fio sobre um abismo!) ou, ao menos, sejam mais sábios e íntegros do

que o personagem de Goethe.

6 Para um aprofundamento da metodologia transdisciplinar de pesquisa e a sua aplicação aos estudos da

religião, ver ARAGÃO, Gilbraz S. Do transdisciplinar ao transreligioso. In: TEPEDINO, Ana M. ROCHA, Alessandro R. (Org.). A teia do conhecimento. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 133-148. 7 Sirvo-me de GOETHE, Johann. Fausto. São Paulo: Martin Claret, 2002.

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A tragédia alemã surgiu como adaptação da lenda do homem que acumulou os saberes

do seu mundo religioso, mas se desiludiu com o conhecimento do tempo medieval, fez

um pacto com o demônio para ter amor e poder, em troca de sua alma, tornando-se

vítima desse enredo afetivo do qual sai como criminoso. Fausto é o protótipo do homem

moderno, no seu esforço obsessivo para controlar a natureza e a história, ainda que

relutante com a ciência e desconfiado dos seus limites.

Essa obra (que tem sido livro de cabeceira, nessa altura da minha carreira de magistério,

pelos motivos óbvios que passo a apresentar) principia de fato com uma imprecação

contra o saber de então:

“FAUSTO:

Estudei com ardor tanta Filosofia,

Direito e Medicina,

E infelizmente até muita Teologia,

A tudo investiguei com esforço e disciplina,

E assim me encontro eu, qual pobre tolo, agora,

Tão sábio e tão instruído quanto fora outrora!

Primeiro fui Assistente e em seguido Doutor,

Dez anos a ensinar, autêntico impostor

A subir e a descer por todos os lados

Estudantes à volta em mim sempre grudados

E chego ao fim de tudo ignorante em tudo”

A tragédia de Fausto começa nesse desgosto com a vida de intelectual, pois percebe que

se tornaram antiquadas a Filosofia, o Direito, a Medicina e a Teologia, disciplinas

clássicas da universidade medieval e as carreiras da maioria dos alunos e professores

dos nossos programas de Ciências da Religião. O sentimento de Fausto é de que esses

conhecimentos não trouxeram felicidade à sua vida e de que a verdadeira existência

estaria ocorrendo, talvez, nos mercados e nas praças, nos êxtases amorosos e místicos,

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que ele desconhecia. Decide se entregar então a experiências esotéricas e vai acabar

encontrando-se com o diabo.

Fausto quer voltar à natureza das coisas, para além dos seus livros e esquemas, assim

como começam a fazê-lo muitos teólogos e filósofos e outros mais, que têm se dedicado

mais e mais ao estudo transdisciplinar das religiões, fenomenologicamente. O campo

epistemológico das "Ciências da Religião", com efeito, forma-se pela busca dos

fenômenos, das experiências, como se apresentam em sua "natureza"!

Pode-se situar a obra de Goethe em pleno Iluminismo, era cultural que promoveu a

emancipação do ser humano pela razão, razão da qual a burguesia se apropriou depois

para reprimir as tradições não produtivistas do ser humano. Fausto quer trocar seus

livros pela vivência da natureza e os estudos da religião, hoje, como querendo

emancipar-se do contexto e dos constrangimentos das igrejas, também se organizam

para voltar aos fenômenos, porque muitos discursos filosóficos e teológicos e até

mesmo ditos científicos, pela psicossociologia, tornaram-se por demais teóricos e

autocentrados. Tanto quanto na tragédia, contudo, temos de nos livrar, igualmente, das

superstições religiosas e da razão sacralizada.

Fausto vai buscar a magia para mudar sua aproximação da realidade. Será que a

epistemologia científica dos estudos da religião não deveria se tornar mais alquímica,

mais engajada não apenas em explicar os fenômenos, mas em salvar os fenômenos?! As

palavras lhe parecem mortas e os livros são cadáveres entre os esqueletos que usa para

os seus estudos. Por isso ele busca novas palavras, mágicas, na tentativa de interagir e

intervir na natureza. Ao Fausto não basta a contemplação do macrocosmo: ele tenta

invocar os espíritos da terra para se exaltar, mas não tem habilidade e é atrapalhado pela

intervenção do assistente, Wagner, que procura mais jogos de palavras para

impressionar academicamente – e uma coisa que deveríamos perguntar bem direitinho

nas entrevistas dos calouros de Ciências da Religião era: quais as suas intenções, quais

os seus desejos secretos, ao buscarem fazer ciência?! Wagner, na falta de poder político,

procura o poder da erudição, ainda que vazia e dissimulada.

“FAUSTO:

Aquilo que não sentes, não deves pleitear,

É preciso que o queiras tendo a alma em fogo;

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Com inspiração sincera o peito a te inflamar

Os corações dominas da assistência logo.

Experimentas pois! O grande tolo clama

Por fazer um ragu para o banquete, e gralha

E sopra para o alto uma franzina chama

Da cinza, no montão, que logo então se espalha!

Adoração das crianças e dos pobres símios,

A quem pode agradar uma tal comezaina?

A prender corações e corações exímios

Só com forças secretas que o teu peito amaina”.

A angústia de Fausto é com o fato das ciências terem se afastado do “coração” e da

vida. Os descomedimentos censurados por ele, e bem conhecidos em nossas

universidades, o saber requentado e a submissão dos estudantes, resultam da separação

entre saber e sabedoria. O teatro acadêmico, o saber do passado afastado da lida com a

existência, isola Fausto na solidão do seu quarto.

Então, qual é o saber que os estudantes da religião carregam das suas tradições

familiares e religiosas? Qual é o saber que teimam em carregar das suas formações

“científicas”? Como eu gostaria de mostrar – é o que eu digo aos meus estudantes – que

vocês e eu não sabemos muita coisa sobre o fenômeno religioso de verdade... Como eu

gostaria que vocês entrassem em crise, como Fausto, e começassem uma nova era de

sabedoria em suas vidas... Só se interessa mesmo por culinária quem se descobre com

fome: vocês estão com sede do sagrado? É preciso o sofrimento do desaprender, para se

atingir o conhecimento de uma realidade maior do que sonhavam nossas vãs teologias e

filosofias, sociologias e histórias...

Se o saber não é usado a partir e em função de uma necessidade do nosso “momento”,

ele se torna uma “carga pesada”. Os livros e sites, tanto quanto os campos de pesquisa,

são uma fonte do saber, desde que nós tenhamos sede. Fausto não vive o presente e não

reconhece bem as suas ausências e carências, daí o seu vazio, que se assemelha ao do

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ignorante que, no outro lado do espectro, sobrevive no presente. E os cientistas da

religião, estão satisfeitos com a vida que levam, com o saber que trazem? Se não

estiverem dispostos a sacrificar a sua “ciência”, é melhor nem começarem os estudos...

Fausto, tomado pela falta de sentido do seu saber, é arrastado para o suicídio, sendo

salvo graças aos sinos que anunciam a Páscoa, as celebrações da ressurreição cristã e da

primavera europeia – que não lhe tocam a fé, mas criam uma relação entre presente e

passado, suas memórias de infância e o “momento”. Os cientistas da religião bem

poderiam tomar Fausto como “padroeiro” e tratarem de aguçar os sentidos para ouvir

sinos e atabaques, mas não logo com os ouvidos da fé – pois se esta é a última palavra

na vida, a penúltima ao menos deve ser da razão. E é para atingirem uma razão mais

universal que vêm a uma universidade, não é?

“FAUSTO:

Vozes vindas do céu, poderosas e amenas,

Que desejais de mim, que sou pó deste mundo?

Vibrai noutro lugar, buscai almas serenas,

Vossa mensagem sinto; em fé não sou profundo,

Da fé filho dileto é o Milagre, apenas,

Às esferas longínquas ascender não ouso

De lá baixam hosanas brandas, maviosas.

Revivo da puerícia as horas radiosas,

Esse canto da vida em mim refaz o gozo.

Do céu divino beijo, outrora, recebia

No dia de Sabbat, silente meditava;

Dos sinos o clangor a alma me inundava

E a prece nos meus lábios, férvida, surgia.

Um anseio sublime, ardente, indefinido,

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Por prados e floresta em sonhos me arrastava

E mal contendo o pranto ardente e dolorido

Em mim um novo mundo então desabrochava.

Esse canto relembra os bons divertimentos

Da juventude em festa, albor da primavera;

Escravo do lembrar, com pueris sentimentos

Entanco antes de dar o passo que espera.

Vibrai, oh! Doce coro, angelical entono!

A lágrima rebenta; o mundo não abandono!”

Fausto voltou a ter concretude, relações humanas, vivendo, ainda que por pouco, o

momento, e, através da “lembrança”, resgatando um passado concreto. As ciências das

religiões devem levar igualmente ao resgate dos fatos para uma história comparada, da

fé dos outros e das nossas próprias experiências de crença. É o verde da natureza e o

desejo das pessoas se encontrarem na páscoa que inspiram esperança a Fausto... Quando

pesquisarem o fato religioso, por favor, perguntem-se então os estudantes das religiões:

este passeio por terreiros e igrejas está aumentando a minha alegria humana? Essa

expressão religiosa está provocando mais humanidade nessa gente?!

A saída de Fausto, contudo, é muito episódica e de volta ao seu “quarto de estudos”, ele

é acompanhado por um cão que começa a rosnar. Assoma-lhe a convicção de que a

natureza, enquanto lugar do presente puro, ou do momento eterno, é consolo passageiro.

O cão preto se revela como o próprio diabo, Mefisto, e o famoso pacto que Fausto fecha

com ele é uma tentativa de viver, mais, o “momento”. A tragédia de Fausto é não saber

conviver com o tempo, saindo da descoberta de nunca ter vivido no presente com as

suas teorias, para a tentativa de sentir o momento e despertar os sentidos, a qualquer

custo.

E vocês, estudantes das religiões, o que pretendem fazer com os seus dados de pesquisa:

tentar processá-los com as folhas cinzentas das suas velhas teorias? Que metodologia

vocês pretendem re-aprender para compreender a religião e viver melhor? E como vocês

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estão dispostos a aprender? Como se “o” professor/pesquisador tivesse “a” teoria

absoluta e imutável? O que vocês sentem quando olham para coisas verdes, heim?!

O “mundo inteligível” sempre precede o “mundo sensível” e os fenômenos empíricos,

em termos ideais, vem questionar ou “falsificar” as teorias. Lidar com teoria, ao

contrário do que ainda se pensa nas academias, não é garantia de objetividade. Todo

cientista possui limites e falhas de observação e reflexão, sendo a sedução pela teoria o

maior problema do conhecimento. Um bom profissional de ciência não apenas aplica

conceitos, mas revê conceitos, na discussão transdisciplinar com os colegas. Se

retomarmos a história do pensamento epistemológico8, incluindo Popper, Kuhn,

Feyerabend e Lakatos, veremos que as contradições precisam ser incorporadas não

como disfunções da realidade ou do discurso e sim como manifestações do seu modo

próprio de se desenvolverem e que o conhecimento se funda mesmo em comunidades

de diálogo intersubjetivo e de práticas que têm como horizonte o desabrochamento das

potencialidades da vida humana em comunidade.

Principalmente quem tem formação filosófico-teológica precisa atentar para uma

sedução “platônica” que nos persegue: a sedução pela ideia pura e pela pureza da ideia.

E a melhor maneira de assegurar a pureza da ideia é ficar longe dos dados empíricos e

sensíveis que podem “sujá-la”. Um pesquisador da religião deve se equilibrar entre o

realismo crítico e o respeito ao mistério que escapa à observação, deve se exercitar na

apreciação dialética (e sempre aberta) dos argumentos, como forma de mitigação da

nossa miséria cognitiva (que, no caso dos “ocidentais”, e mormente dos acadêmicos

modernos, manifesta-se sobretudo como uma falta de “tato religioso”).

“Identificar um fenômeno religioso novo não implica visitarmos a definição pura de

religião mas vermos em que medida ele se enquadra nos eventos empíricos que fazem

parte da família de fenômenos historicamente identificáveis como religiosos. É claro

que há aqui uma crítica ao invisível como havia no ateísmo metodológico, mas o foco

não é negar a crença revelando-a como epifenômeno de uma carência cognitiva, mas

simplesmente evitar metodologicamente o confronto com o platonismo que alimenta

8 Ver a esse respeito: CASALI, Alípio. El pensamiento complejo: el marco epistemológico. In CASALI, Alípio; LIMA, Licínio; NUNEZ, Carlos; SAUL, Ana. Propuestas de Paulo Freire para una renovación educativa. Tlaquepaque/Pátzcuaro (México)/Panamá (Panamá): Iteso/Crefal/Ceaal, 2005, p. 51-71).

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necessariamente toda a discussão religiosa/anti-religiosa, e que inviabiliza o

conhecimento metodologicamente controlável”9.

Fausto não apenas garantia a “limpeza” de suas ideias isolando-se do mundo, mas ainda

entendia que esse isolamento lhe dava uma superioridade que o aproximava da esfera

divina. Fausto era um eremita profano que, como os antigos monges, afastava-se “deste

mundo” para ficar mais perto do certo e do divino. Descobriu-se incapaz de lidar com os

espíritos, além de afastado da vida e da própria natureza de tudo. Foi Mefisto que

lembrou, então, a distância entre o conhecimento e a vida:

“MEFISTO:

Cinzenta, caro amigo, é toda teoria,

Verdejante e dourada é a árvore da Vida!”

“FAUSTO:

Entendes muito bem. Não é divertimento!

Lanço-me ao turbilhão, onde há dor e prazer.

Ódio misto de amor, agradável tormento.

Minha alma se curou da ânsia de saber,

Nem deve se fechar às desgraças futuras!

E o que é distribuído aos que habitam no mundo,

Devo agora gozar nas entranhas impuras.

Alcanço com minha alma o mais Alto e Profundo,

Acumulo prazeres, dores, desventuras,

E nesse turbilhão arrojo então meu ser

De vez, a naufragar, e como ele morrer”.

9 PONDÉ, Luiz. Em busca de uma cultura epistemológica. In: TEIXEIRA, Faustino (Org.). As ciências da

religião no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2001, pg. 62.

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Fausto fez um pacto com Mefisto para sentir, e de preferência prazer: a finalidade era a

sedução da bela Margarete. A experiência sensual e sexual, todavia, foi alcançada com

um preço alto: a mãe de Margarete morre da poção sonífera que Mefisto lhe preparou;

Fausto mata o irmão de Margarete durante uma luta porque Mefisto faz sua mão ficar

paralisada; Margarete mata seu filho recém-nascido para escapar da vergonha social e

acaba enlouquecida. Fausto não soube conviver com o momento, com o fenômeno, e

acabou levando em sua interpretação diabólica um saber viver das pessoas que tinha

mais valia do que a sua filosofia sem vida. Fausto passou do desequilíbrio da erudição

para o desequilíbrio da sensualidade, trocando o saber do passado pelo viver do

presente. Não aprendeu a conhecer direito, nem a viver melhor.

As ciências da religião, não se enganem, são uma sedução meio diabólica para nos

tornar mais sensuais e naturais10

, mais atentos aos fé-noumenos do que ao "noumeno"

(existe mesmo essa coisa-em-si, para além da coisa-em-relação?!), para nos soltarmos

das amarras das nossas teorias e ciências “divinas” e nos perdermos em passeios

primaveris pelos centros e terreiros, pelos pagodes e assembleias do nosso povo, para

olharmos as suas tradições de fé com um tanto de empatia e uma certa desconfiança.

Vocês estão dispostos a pagar esse preço? Vocês já imaginaram quem é que vão

encontrar em suas “casas” quando voltarem desse passeio racional inebriado pela paixão

carnavalesca do povo, pelos santos festivos da nossa gente?

Cuidado: toda religião tem um outro lado, opositor... Todo estudioso das religiões deve

re-conhecer um lado sombrio do fato religioso, notadamente quando se busca poder

(magia) não com os outros, mas à custa de outro e/ou contra um outro (transformado em

"bode expiatório"). Religião é para terapeutizar as nossas loucuras humanas, mas sói

acontecer dos nomes dos deuses servirem como travestimento precisamente pra psicose

e perversão mais vil. Inclusive essa não é uma versão restrita aos grupos religiosos

marginalizados e a casos pessoais, manifestando-se mesmo em grandes religiões – que

abençoam solenemente armas e dinheiros, instrumentos de uma "magia" social mais

complexa, mas não menos possessiva e predatória. Também é preciso considerar a

associação entre o sagrado, objeto de toda experiência religiosa, e o prazer erótico, que

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Vale a pena, para aprofundar a compreensão do “duplo” nos símbolos religiosos, ver o livro WASSERSTROM, Steven. A religião além da religião. São Paulo: Triom, 2003. Nele se explora a maneira como três conferencistas, colegas de Goethe – e de Jung – no Círculo de Eranos, Scholem, Eliade e Corbin, ultrapassaram abordagens tradicionais ao estudar religião, tirando a ênfase da lei, do ritual e da história social e exaltando o papel do mito e do misticismo.

Page 14: Fausto e religioes, artigo de gilbraz

é a primeira pulsão da nossa vida – e, nesses casos sombrios, manifesta-se numa

lascívia mórbida e perversa, potencializada e liberada pelo sentimento de poder que um

ritual qualquer proporciona.

Então, estão preparados para encontrarem, seja em que religião for, nada mais do que

experiências bem profanas e (des)humanas, ou para se defrontarem com um sagrado que

não é bem o que se espera? E vocês já pensaram, enfim, nas tragédias que podem

provocar nas “aldeias” de fé do povo? “Quem castiga nem é Deus, é os avessos”, já

dizia Guimarães Rosa. Portanto, cuidado com o pacto que vocês farão com Mesfisto no

estudo científico das religiões – porque com certeza terão de fazê-lo. Desejo que, de

todo modo, isso sirva para o maior fausto da vida e a maior “glória de Deus” – que,

segundo dizem, serve-se até das tramas do “coisa-ruim”.