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1 FERRAMENTAS DE DIAGNÓSTICO E MONITORAMENTO DAS DOENÇAS METABÓLICAS Félix H. D. González Universidade Federal do Rio Grande do Sul Professor de bioquímica clínica Faculdade de Veterinária Porto Alegre, RS, Brasil www.ufrgs.br/bioquimica Introdução Os transtornos metabólicos em bovinos atacam principalmente animais que são submetidos a desafios extremos. É o caso das vacas leiteiras de alta produção, que são acometidas por doenças relacionadas com excessiva despesa de energia e/ou de minerais. A bioquímica clínica oferece uma importante ferramenta diagnóstica, pois desequilíbrios do metabolismo costumam ter repercussão na composição dos fluidos corporais, principalmente, sangue, urina e leite. Mais que detectar casos clínicos esta ferramenta, usada concomitantemente com dados de anamnese e de exame clínico, apresenta utilidade no diagnóstico de casos subclínicos, onde os sinais dos transtornos não resultam evidentes, bem como no monitoramento de pacientes em tratamento ou sob observação. A composição bioquímica do plasma sanguíneo reflete a situação metabólica dos tecidos animais, de forma a poder avaliar lesões teciduais, transtornos no funcionamento de órgãos, adaptação do animal diante de desafios nutricionais e fisiológicos e desequilíbrios metabólicos específicos ou de origem nutricional (Cote e Hoff, 1991). O estudo da composição bioquímica do sangue é de longa data, principalmente vinculada à patologia clínica em casos individuais. Na década de 1970, Payne e colaboradores em Compton (Inglaterra), ampliaram a utilização deste estudo mediante o conceito de perfil metabólico, isto é, a análise de componentes sanguíneos aplicados a populações. O trabalho de Payne, aplicado inicialmente a rebanhos leiteiros, foi ampliado a outras espécies, com aplicações práticas no manejo alimentar (Payne & Payne, 1987). A interpretação do perfil bioquímico é complexa tanto quando aplicada a rebanhos quanto a indivíduos, devido aos mecanismos que controlam a concentração sanguínea

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FERRAMENTAS DE DIAGNÓSTICO E MONITORAMENTO DAS DOENÇAS

METABÓLICAS

Félix H. D. González

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Professor de bioquímica clínica

Faculdade de Veterinária

Porto Alegre, RS, Brasil

www.ufrgs.br/bioquimica

Introdução

Os transtornos metabólicos em bovinos atacam principalmente animais que são

submetidos a desafios extremos. É o caso das vacas leiteiras de alta produção, que são

acometidas por doenças relacionadas com excessiva despesa de energia e/ou de

minerais.

A bioquímica clínica oferece uma importante ferramenta diagnóstica, pois

desequilíbrios do metabolismo costumam ter repercussão na composição dos fluidos

corporais, principalmente, sangue, urina e leite. Mais que detectar casos clínicos esta

ferramenta, usada concomitantemente com dados de anamnese e de exame clínico,

apresenta utilidade no diagnóstico de casos subclínicos, onde os sinais dos transtornos

não resultam evidentes, bem como no monitoramento de pacientes em tratamento ou

sob observação.

A composição bioquímica do plasma sanguíneo reflete a situação metabólica dos

tecidos animais, de forma a poder avaliar lesões teciduais, transtornos no funcionamento

de órgãos, adaptação do animal diante de desafios nutricionais e fisiológicos e

desequilíbrios metabólicos específicos ou de origem nutricional (Cote e Hoff, 1991).

O estudo da composição bioquímica do sangue é de longa data, principalmente

vinculada à patologia clínica em casos individuais. Na década de 1970, Payne e

colaboradores em Compton (Inglaterra), ampliaram a utilização deste estudo mediante o

conceito de perfil metabólico, isto é, a análise de componentes sanguíneos aplicados a

populações. O trabalho de Payne, aplicado inicialmente a rebanhos leiteiros, foi

ampliado a outras espécies, com aplicações práticas no manejo alimentar (Payne &

Payne, 1987).

A interpretação do perfil bioquímico é complexa tanto quando aplicada a rebanhos

quanto a indivíduos, devido aos mecanismos que controlam a concentração sanguínea

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de vários metabólitos e devido, também, à grande variação desses valores em função de

fatores como raça, idade, estresse, dieta, nível de produção leiteira, manejo, clima e

estado fisiológico, principalmente na lactação e a gestação (González, 1997). Também,

para a correta interpretação dos perfis metabólicos é indispensável contar com valores

de referência apropriados para a região e a população em particular. No caso de não

contar com esses dados, os valores referenciais a serem usados devem ser de zonas

climáticas ou de grupos de animais similares aos analisados (González, 2001).

A urina é o principal fluido de excreção de substâncias nocivas ou de produtos do

catabolismo, sendo produzida por filtração do sangue nos rins. A taxa de filtração,

reabsorção e excreção de nutrientes e catabólitos pelos rins permite a utilização deste

fluido no diagnostico de alguns transtornos metabólicos.

O leite é um importante fluido orgânico que, além de sua função como alimento,

pode informar sobre distintos eventos metabólico-nutricionais que afetam a sua

qualidade, principalmente no concernente a fatores do meio ambiente, como a

composição da dieta e o manejo e a fatores internos, como genética, sanidade, balanço

metabólico-energético e período de lactação.

O presente trabalho tem por objetivo mencionar as causas de variação de alguns

dos metabólitos mais usados no estudo do perfil bioquímico na clínica de bovinos

aplicado ao diagnóstico de transtornos metabólicos.

Indicadores sanguíneos do metabolismo nitrogenado

Proteínas totais

As principais proteínas plasmáticas são a albumina, as globulinas e o fibrinogênio.

Elas estão envolvidas em múltiplas funções, tais como a manutenção da pressão

osmótica e da viscosidade do sangue, o transporte de nutrientes, metabólitos, hormônios

e produtos de excreção, a regulação do pH sanguíneo e a participação na coagulação

sanguínea.

As proteínas sanguíneas são sintetizadas principalmente pelo fígado, sendo que a

taxa de síntese está diretamente relacionada com o estado nutricional do animal,

especialmente com os níveis de proteína e de vitamina A, e com a funcionalidade

hepática. A hipoproteinemia pode ser indicadora de estados de subnutrição, bem como

de insuficiência ou de lesão hepática e hemorragias. Animais jovens têm valores

menores que os animais adultos (Payne e Payne, 1987). Hiperproteinemia pode ser

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observada em casos de desidratação, infecções, tumores e, artificialmente, em amostras

hemolisadas. Foram relatados valores de proteína total sérica em vacas da raça

Holandesa no sul do Brasil de 84,5 18,8 g/L (González et al., 1996).

Albumina

A albumina é a proteína mais abundante no plasma, perfazendo cerca de 50% do

total de proteínas. É sintetizada no fígado e contribui em 80% da osmolaridade do

plasma sanguíneo, constituindo também uma importante reserva protéica, bem como um

transportador de ácidos graxos livres, aminoácidos, metais, cálcio, hormônios e

bilirrubina. A albumina também tem função importante na regulação do pH sanguíneo,

atuando como ânion.

O valor de albumina pode ser indicador do conteúdo de proteína na dieta, muito

embora as mudanças ocorram lentamente, considerando que a meia-vida desta proteína

é em torno de 20 dias. Para a detecção de mudanças significativas na concentração de

albumina sérica é necessário um período de pelo menos um mês, devido à baixa

velocidade de síntese e de degradação (González et al., 2000).

Concentração de albumina diminuída, juntamente com diminuição de uréia, pode

indicar deficiência protéica na alimentação. Níveis de albumina diminuídos com níveis

de uréia normais ou elevados, acompanhados ou não de valores de enzimas altos, podem

ser indicadores de falha e/ou de lesão hepática. Outras causas de baixa na albumina

sanguínea podem ser parasitismos crônicos, doença renal que cursa com síndrome

nefrótico ou glomerulonefrite crônica e hemorragias. Pode existir uma relação direta

entre a capacidade de aumento da albuminemia das vacas leiteiras no pós-parto com o

desempenho reprodutivo (Galimberti et al., 1997) e produtivo (González e Rocha,

1998), o que, afinal, está relacionado com a funcionalidade hepática.

A hipoalbuminemia pode afetar o metabolismo e as concentrações obtidas de

outras substâncias devido ao papel da albumina como transportador, principalmente de

cálcio, fructosamina e ácidos graxos livres, além de causar queda da pressão osmótica

do plasma com probabilidade de levar a ascite, o que ocorre quando a concentração de

albumina cai para menos de 20 g/L.

Aumentos de albumina ficam praticamente restritos a situações de desidratação.

González et al. (1996) encontraram valores de albumina em rebanhos da raça Holandesa

no sul do Brasil de 32,6 5,8 g/L. Os autores encontraram valores menores de albumina

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em vacas no início da lactação e maiores durante o período de inverno, quando as

pastagens são de melhor qualidade protéica (azevém).

Globulinas

A concentração sérica de globulinas pode ser obtida pela diferença de

concentração entre as proteínas totais e a albumina. As globulinas podem ser divididas

em três tipos, , e , identificadas mediante eletroforese. Elas têm funções no

transporte de metais, lipídeos e bilirrubina, bem como papel na imunidade (fração

gama). As globulinas são indicadores limitados do metabolismo protéico, tendo mais

importância como indicadores de processos inflamatórios.

Altos níveis de globulinas estão associados a doenças infecciosas ou a vacinações

recentes. As globulinas aumentam com a idade e durante a gestação. Existe uma

correlação negativa entre a concentração de albumina e de globulinas; assim, um

aumento nas globulinas devido a estados infecciosos, inibe a síntese de albumina no

fígado como mecanismo compensatório para manter constante o nível protéico total e,

portanto, a pressão osmótica sanguínea. Por outra parte, na disfunção hepática, o nível

de albumina cai e o de globulinas aumenta.

Mudanças nos níveis das globulinas podem ser usadas para avaliar estados de

adaptação ao estresse. Animais adaptados tendem a ter níveis normais, enquanto os não

adaptados têm os níveis aumentados.

A concentração de globulinas diminui ao final da gestação devido à passagem de

gamaglobulinas para o colostro. Em bezerros, a hipoglobulinemia é indicador de que a

ingestão de colostro foi pouca, o que os predispõe a sofrer de doenças, principalmente

infecciosas. A concentração de globulinas também diminui semanas antes do parto,

recuperando seus valores até três semanas após o parto (Rossato et al., 2001). Em

rebanhos do sul do Brasil os valores médios de globulina foram de 49,3 10,5 g/L

(González et al., 1996).

Uréia

A uréia é sintetizada no fígado a partir da amônia proveniente do catabolismo dos

aminoácidos e da reciclagem de amônia do rúmen. Os níveis de uréia são analisados em

relação ao nível de proteína na dieta e ao funcionamento renal. A uréia é excretada

principalmente pela urina e, em menor grau, pelo intestino e o leite. Na maioria dos

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animais (exceto em aves, que excretam ácido úrico), o nível de uréia é indicador de

funcionamento renal. No caso dos ruminantes, o teor de uréia não resulta um adequado

indicador renal em função do alto grau de reciclagem deste metabólito entre o sangue e

o rúmen.

O aumento plasmático da uréia pode ser por causas pré-renais, que diminuem o

fluxo sanguíneo no rim, como na hipotensão, no choque hipovolêmico, na desidratação

ou em falhas cardíacas. Aumento de uréia por causas renais ocorre por deficiência de

filtração em doença renal aguda ou crônica, enquanto que as causas pós-renais de alta

uremia incluem a obstrução urinária.

Os níveis de uréia sanguínea também estão afetados pelo nível nutricional,

particularmente em ruminantes. De modo geral, a uréia é um indicador sensível, direto e

imediato da ingestão de proteína, de forma que excedentes de proteína na dieta são

refletidos por aumentos de uréia tanto no sangue quanto no leite, muitas vezes causando

efeitos deletérios na reprodução (Rossato et al., 1999) ou na qualidade do leite

(González et al., 2001; Wittwer et al., 1993b). Por outra parte, dieta baixa em energia

pode também causar aumento da uremia em função do metabolismo ruminal que exige

uma sincronia entre a disponibilidade de compostos precursores de proteína bacteriana e

de glicídeos solúveis. Não havendo carboidratos disponíveis, aumenta a taxa de

absorção ruminal de amônia, levando ao aumento da uréia sanguínea.

Na interpretação dos valores de uréia em ruminantes deve se considerar que na

literatura muitas publicações oferecem o valor de Nitrogênio Uréico Sanguíneo (BUN

pelas siglas em inglês) e que não corresponde aos valores reais de uréia. Para converter

valor de BUN em valor de uréia deve se multiplicar pelo fator 2,14 (que corresponde ao

peso de 2N na molécula de uréia= 60/28= 2,14). Em rebanhos leiteiros com diferentes

níveis de produção no sul do Brasil, os valores médios de uréia sanguínea variaram entre

25 e 57 mg/dL (González e Rocha, 1998), mostrando uma ampla variação em função do

manejo alimentar, o estado fisiológico e o nível de produção. No caso de bovinos de

corte em pastagem nativa do sul do Brasil (González et al., 2000) a concentração sérica

de uréia foi mais baixa e com menor variação (24,7 1,7 mg/dL).

Os valores de uréia no sangue devem ser vistos em conjunto com os valores de

albumina e de creatinina, considerando o balanço protéico e energético da dieta de

acordo com as exigências nutricionais dos diferentes grupos de animais (González e

Campos, 2003).

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Creatinina

A creatinina plasmática é derivada, praticamente em sua totalidade, do

catabolismo da creatina presente no tecido muscular. A creatina é um metabólito

utilizado para armazenar energia no músculo, na forma de fosfocreatina, e sua

degradação para creatinina ocorre de maneira constante, ao redor de 2% do total de

creatina diariamente. A conversão de creatina em creatinina é uma reação não

enzimática e irreversível, dependente de fatores estequiométricos (Figura 1).

A excreção de creatinina só se realiza por via renal, uma vez que ela não é

reabsorvida nem reaproveitada pelo organismo. Os níveis de creatinina podem ser

interpretados de forma similar aos de uréia no tocante à taxa de filtração renal. Assim,

aumentos podem ser observados en casos de fluxo renal reduzido por hipotensão,

desidratação ou por doenças renais e obstrução urinária. Em bovinos, o valor máximo de

creatinina plasmática é de 2,0 mg/dL (Wittwer et al., 1993a).

Figura 1. Formação de creatinina a partir da creatina no músculo.

Bilirrubina

A maior parte da bilirrubina no plasma deriva da degradação dos eritrócitos velhos

pelo sistema retículo-endotelial, especialmente no baço. A bilirrubina restante provém

da degradação da mioglobina, dos citocromos e de eritrócitos imaturos na medula óssea.

A hemoglobina liberada dos eritrócitos se divide em porção globina e grupo heme. Após

NH2

+

C N

CH3

NHC

CH2

O

NH2

+

C N

CH3

NH2

CCH

2

OO

creatina

creatinina

2 H+

H2O

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a extração da molécula de ferro, mineral que fica armazenado ou é reutilizado, o grupo

heme é convertido em bilirrubina. A bilirrubina assim formada é chamada de

“bilirrubina livre”, que é transportada até o fígado ligada à albumina plasmática. Esta

forma, também conhecida como “bilirrubina indireta” no laboratório clínico, não é

solúvel em água. Sendo lipossolúvel, não é filtrada pelos glomérulos renais, e não é

excretada pela urina.

No fígado, a bilirrubina é desligada da albumina e conjugada com o ácido

glicurônico para formar a chamada “bilirrubina conjugada”, que corresponde à

“bilirrubina direta” no laboratório. Esta é solúvel em água e secretada ativamente pelos

canalículos biliares menores e posteriormente excretada pela bile. Alternativamente

pode ser excretada pela urina.

A bilirrubina conjugada é convertida pelas enzimas bacterianas presentes no íleo e

no cólon em urobilinogênio (estercobilinogênio), que é reabsorvido em torno de 10 a

15% pela circulação portal até o fígado. A maioria deste urobilinogênio é re-excretada

pela bile e uma parte pode ser excretada pela urina. O urobilinogênio não reabsorvido no

intestino é oxidado a estercobilina, pigmento responsável pela coloração das fezes.

Aumentos de bilirrubina podem ser causados por hemólise intravascular,

hemorragia massiva, transfusão sanguínea inadequada, lesão hepato-celular e obstrução

biliar. Os valores de bilirrubina total em bovinos não devem ultrapassar 0,5 mg/dL

(Wittwer et al., 1993a).

Indicadores sanguíneos energéticos

Colesterol

O colesterol nos animais pode ser tanto de origem exógena, proveniente dos

alimentos, como endógena, sendo sintetizado, a partir do acetil-CoA no fígado, nas

gônadas, no intestino, na glândula adrenal e na pele. A biossíntese de colesterol no

organismo é inibida com a ingestão de colesterol exógeno. O colesterol circula no

plasma ligado às lipoproteínas (HDL, LDL e VLDL). Os níveis de colesterol plasmático

são indicadores adequados do total de lipídeos no plasma, pois corresponde a

aproximadamente 30% do total. O colesterol é necessário como precursor dos ácidos

biliares, os quais fazem parte da bile, e dos hormônios esteróides (adrenais e gonadais).

É excretado pela bile, na forma de ácidos biliares, ou na urina, na forma de hormônios

esteróides.

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Aumentos do colesterol sanguíneo podem ser observados em casos de

hipotireoidismo, diabetes mellitus, obstrução biliar, síndrome nefrótico, dieta rica em

gorduras, gestação e início da lactação. Os animais mais jovens, em geral, têm menor

teor de colesterol que os mais velhos. Diminuição de colesterol sanguíneo pode ser

observada em casos de insuficiência hepática, dieta baixa em energia, hipertireoidismo e

no pré-parto.

Os valores de colesterol relatados em vacas leiteiras do sul do Brasil variam entre

106 e 149 mg/dL (González et al., 1996). Vacas em lactação têm valores de colesterol

sanguíneo significativamente maiores que vacas secas (147 vs. 102 mg/dL; González e

Rocha, 1998).

Corpos cetônicos

Os corpos cetônicos, produto do metabolismo dos ácidos graxos, são o

β-hidroxibutirato (BHB), o acetoacetato e a acetona. Os métodos analíticos disponíveis

dosam o BHB sanguíneo, que corresponde ao corpo cetônico produzido em maior

quantidade. Em situações normais os corpos cetônicos estão em baixas quantidades no

plasma (máximo 10 mg/dL), mas em situações onde há deficiência de energia somado à

existência de uma boa reserva de lipídeos, ocorre o processo conhecido como

lipomobilização que corresponde à hidrólise dos triglicerídeos nos depósitos de gordura

endógenos. Este processo libera uma grande quantidade de ácidos graxos livres (AGL)

para o sangue, que devem ser oxidados. Quando esta liberação ocorre em excesso, a

oxidação dos AGL gera muitos corpos cetônicos, os quais acima de 15 mg/dL

configuram a doença metabólica denominada cetose espontânea. Tipicamente ocorre

acúmulo de corpos cetônicos na cetose das vacas leiteiras e em situações de diabetes

mellitus, jejum prolongado, subnutrição e deficiência de cobalto em ruminantes, todas

elas obedecendo à resposta metabólica de lipomobilização decorrente de um balanço

energético negativo. Esta situação é normal de acontecer no início da lactação e a

maioria das vacas consegue contornar esse desafio. Uma condição de cetose clínica

pode ser diagnosticada quando coincidem sinais clínicos com os seguintes valores de

indicadores bioquímicos: BHB> 12 mg/dL, glicose< 45 mg/dL e triglicerídeos< 10,6

mg/dL (Mutlu e Abdullah, 1998).

Glicose

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Entre vários metabólitos usados como combustível para a oxidação respiratória, a

glicose é considerada o mais importante, sendo vital para funções como o metabolismo

do cérebro e na lactação. O nível de glicose sanguínea pode indicar falhas na

homeostase, como ocorre em doenças tais como a cetose.

Na digestão dos ruminantes, praticamente nenhuma glicose proveniente do trato

alimentar entra na corrente sanguínea, sendo oxidada pelas bactérias ruminais até a

produção de ácidos graxos voláteis (acético, propiônico e butírico). O fígado é o órgão

responsável pela síntese de glicose a partir de moléculas precursoras na via da

gliconeogênese. No caso dos ruminantes, o ácido propiônico é substrato de 50% dos

requerimentos de glicose, os aminoácidos gliconeogênicos contribuem com 25% e o

ácido láctico com 15%. Outro precursor importante é o glicerol.

O teor de glicose sanguíneo tem poucas variações, em função dos mecanismos

homeostáticos bastante eficientes do organismo, os quais envolvem o controle

endócrino por parte da insulina e do glucagon sobre o glicogênio e dos glicocorticóides

sobre a gliconeogênese. A dieta tampouco tem grande efeito sobre a glicemia dos

ruminantes, em função desses mecanismos homeostáticos, exceto em animais com

severa desnutrição. Sob condições de campo, em ocasiões ocorre hipoglicemia, e seja

qual for a sua causa, ela indica um estado patológico com importantes implicações na

saúde e na produção.

O nível de glicose nos ruminantes tende a ser menor no terço final da gestação do

que nos períodos anteriores, isto é, os níveis tendem a diminuir à medida que a gestação

avança. Sabe-se que o feto in utero demanda glicose como maior fonte de energia.

Entretanto, no momento do parto, a glicemia tem um aumento agudo, devido ao

estresse. No período posterior ao parto os níveis caem de novo, especialmente na

primeira semana e em vacas de alta produção. A glicemia de vacas da raça Holandesa

proposta para a região sul do Brasil é de 65,4 5,3 mg/dL (González et al., 1996).

Lactato

O lactato é um produto intermediário do metabolismo dos glicídeos, sendo o

produto final da glicose anaeróbica. Na presença suficiente de oxigênio, o ácido

pirúvico produto da glicólise, entra no ciclo de Krebs, para a geração de energia. Em

condições em que ocorre condição de anaerobiose (anoxia, hipoxia), o ácido pirúvico é

convertido em ácido láctico como mecanismo para não interromper a glicólise.

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Em condições normais, a maioria do lactato é produzido pelos eritrócitos, mas

durante exercício ou atividade física intensa, o músculo produz grandes quantidades de

lactato, devido à condição de insuficiente oxigenação. Outras situações de baixa

oxigenação aos tecidos causam aumento de lactato, como no caso de anemia,

insuficiência cardíaca ou problemas respiratórios.

É frequente também em bovinos de alta produção a acidose láctica de origem

ruminal como consequência de excesso de alimentação com concentrado que baixa o pH

ruminal e favorece a produção de lactato. Recentemente tem sido dada importância à

dosagem de D-lactato, característico do metabolismo bacteriano e sua relação com L-

lactato, produzido pelos tecidos dos bovinos, para diferenciar a origem da lactacidemia

(Russell e Roussel, 2007). O valor de referência relatado em bovinos para L-lactato está

entre 5 a 20 mg/dL (Kaneko et al., 1997).

Triglicerídeos e ácidos graxos livres

Existem métodos disponíveis para dosar triglicerídeos (TG) e AGL. Contudo, o

método para determinar AGL continua sem uso generalizado em razão do alto custo. A

utilidade de dosar TG é questionada, o que não acontece com os AGL, os quais são os

melhores indicadores de lipomobilização (Russell & Roussel, 2007).

Dokovic et al. (2005) mostraram que em vacas cetósicas a concentração sérica de

TG é menor que em vacas sadias porque os TG podem estar se acumulando no tecido

hepático e não saem para a circulação. González et al. (2009) relatam que 52% de vacas

com alta lipomobilização no primeiro mês de lactação e 43% de vacas com baixa

lipomobilização no terceiro mês de lactação, tiveram valores de TG <10,6 mg/dL. Os

autores não acharam correlação significativa entre valores sanguíneos de TG e AGL

nem entre TG e BHB, sugerindo que valores isolados de TG não podem ser

considerados como indicadores de lipomobilização. Contudo, todas as vacas com cetose

subclínica e 61% de vacas com alta lipomobilização (AGL> 400 μmol/L) tiveram

valores de TG menores de 8,8 mg/dL. Esses resultados merecem ver com mais atenção

o significado dos TG em vacas no início da lactação.

Indicadores sanguíneos minerais

Cálcio

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No plasma, o cálcio (Ca) existe em duas formas, a forma livre ou ionizada (cerca

de 45%) e a forma associada a moléculas orgânicas, tais como proteínas, principalmente

albumina (cerca de 45%) ou ácidos orgânicos (cerca de 10%). O cálcio total, forma

como é medido rotineiramente no sangue, contém a forma ionizada que é

biologicamente ativa, e a forma não ionizada. Estas duas formas estão em equilíbrio e

sua distribuição final depende do pH, da concentração de albumina e da relação ácido-

base. Uma queda na concentração de albumina causa diminuição do valor de cálcio

sanguíneo, o que não deve ser interpretado como hipocalcemia.

O sistema endócrino envolvendo a vitamina D3, o paratormônio (PTH) e a

calcitonina, responsáveis pela manutenção dos níveis sanguíneos de cálcio, atua de

forma bastante eficiente para ajustar-se à quantidade de cálcio disponível no alimento e

às perdas que acontecem, principalmente na gestação e na lactação. O firme controle

endócrino do Ca faz com que seus níveis variem muito pouco (17%) comparado com o

fósforo (variação de 40%) e o magnésio (variação de 57%). Portanto, o nível sanguíneo

de cálcio não é um bom indicador do estado nutricional, enquanto que os níveis de

fósforo e magnésio refletem diretamente o estado nutricional com relação a estes

minerais. Os valores de referência da calcemia situam-se entre 8 a 12 mg/dL (Wittwer et

al., 1993a).

Em vacas leiteiras é freqüente a hipocalcemia que pode causar febre do leite ou

paresia do parto, principalmente nas primeiras semanas de lactação. A fonte primária de

Ca nesses animais é o esqueleto e a taxa de reposição deve ser rápida o suficiente para

cobrir a demanda e evitar a hipocalcemia. Considera-se que em concentrações séricas de

Ca abaixo de 6 mg/L, já devem começar a aparecer sinais clínicos de febre do leite e

abaixo de 5 mg/L deve ocorrer o decúbito, o qual deve ser evitado a qualquer custo.

Magnésio

Não existe um controle homeostático rigoroso do magnésio (Mg) e, portanto, sua

concentração sanguínea reflete diretamente o nível da dieta. O controle renal de Mg está

mais direcionado para prevenir a hipermagnesemia, mediante a excreção do excesso de

Mg pela urina. Diante de uma deficiência de Mg, seus níveis na urina caem a

praticamente zero. Assim, os níveis de Mg na urina também podem ser indicadores da

ingestão do mineral.

A hipomagnesemia tem sérias consequências para os ruminantes podendo levar

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até a morte, enquanto que a hipermagnesemia não causa maior transtorno. A

hipomagnesemia pode levar à tetania hipomagnesêmica, doença causada pela baixa

ingestão de Mg na dieta ou pelo consumo aumentado de compostos que causam

interferência com o Mg, tais como potássio e proteínas. A hipomagnesemia pode causar,

além da tetania, retenção de placenta, anormalidade da digestão ruminal e diminuição da

produção de leite. Também predispõe à apresentação de febre do leite em vacas após o

parto, devido a que níveis baixos de Mg (< 2 mg/dL) reduzem drasticamente a

capacidade de mobilização das reservas de Ca dos ossos.

O Mg está mais disponível em forragens secas e em concentrados do que em

pastos frescos. Pastagens jovens com altos níveis de proteína e K inibem a absorção de

Mg. O Mg é absorvido no intestino mediante um sistema de transporte ativo que pode

ser interferido pela relação Na:K e ainda pela quantidade de energia, de Ca e de P

presentes no alimento. A hipomagnesemia também pode ser consequência de uma

excessiva lipólise em decorrência de uma deficiência de energia.

O nível de Mg no perfil metabólico pode indicar estados subclínicos antes de

surgir o problema (nível normal 2,0-3,0 mg/dL), sendo especialmente útil antes do parto

para evitar problemas de tetania no pós-parto, geralmente complicados com febre de

leite (Wittwer et al., 1993a).

A hipomagnesemia em ruminantes configura-se com níveis de Mg abaixo de 1,75

mg/dL, aparecendo sinais clínicos de tetania com concentrações abaixo de 1,0 mg/dL.

Os níveis de Mg na urina podem ser indicativos de deficiência quando estão abaixo de

0,5 mg/dL (valor de referência de Mg na urina: 10-15 mg/dL). É aconselhável fazer

monitoramento dos níveis de Mg no sangue ou na urina ao longo do ano para prevenir a

hipomagnesemia.

Fósforo

O fósforo (P) existe em combinações orgânicas dentro das células, mas o interesse

principal no perfil metabólico reside no fósforo inorgânico presente no plasma. A

manutenção do nível de P do sangue é governada pelos mesmos fatores que promovem

a assimilação do Ca. Porém, na interpretação do perfil os dois minerais indicam

diferentes problemas. Por outro lado, o controle da concentração de cálcio via endócrina

é mais rigoroso e o nível de fósforo inorgânico no plasma sanguíneo dos bovinos

geralmente oscila bem mais que o nível de cálcio.

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Os níveis de P são particularmente variáveis no ruminante em função da grande

quantidade que se recicla via saliva e sua absorção no rúmen e intestino. A interrupção

do ciclo leva a hipofosfatemia. A perda de P nas secreções digestivas no bovino chega a

10 g/dia. Por outro lado, o P no rúmen é necessário para a normal atividade da

microflora e, portanto para a normal digestão.

A disponibilidade de P alimentar diminui com a idade (90% em bezerros, 55% em

vacas adultas). Daí que os níveis sanguíneos de P sejam menores em animais mais

velhos. Deficiências no fósforo não têm efeitos imediatos, como é o caso do cálcio,

porém no longo prazo podem causar crescimento retardado, osteoporose progressiva,

infertilidade e baixa produção. A deficiência severa de fósforo manifestada por níveis

sanguíneos menores de 3,0 mg/dL leva a depravação do apetite (alotrofagia). A

hipofosfatemia é observada em dietas deficientes em P, mais comumente em solos

deficientes em fósforo, principalmente durante o outono/inverno (Valle et al., 2003) e

em vacas de alta produção.

Geralmente, as pastagens são abundantes em Ca e deficientes em P, acontecendo

uma relativa deficiência de P e um excesso de Ca (McDowell, 1999). Por outro lado, o

excesso de suplementação com Ca e P pode causar diminuição da absorção intestinal de

outros minerais, tais como Mg, Zn, Mn e Cu.

O P também é considerado um indicador da função renal, junto com uréia e

creatinina, sendo encontrados aumentos significativos na insuficiência renal. Deve-se ter

um especial cuidado no manejo pré-analítico, pois a hemólise extravascular é causa de

resultados artificialmente elevados de P sanguíneo.

Indicadores enzimáticos

A enzimologia clínica é de grande ajuda diagnóstica, principalmente em relação às

enzimas presentes na corrente sanguínea, várias das quais são incluídas no estudo do

perfil metabólito sanguíneo (Tabela 1).

14

Tabela 1. Principais enzimas usadas na clínica veterinária e interpretação do aumento da

atividade.

Enzima Órgão Interpretação do aumento

Alanina

aminotransferase

(ALT)

fígado e músculo

lesão hepática (infecciosa e tóxica, trauma,

neoplasia, amiloidose, esteatose), indução por

drogas (anticonvulsivos, glicocorticóides,

mebendazol, paracetamol), miocardite,

regeneração hepato-celular

Aspartato

aminotransferase (AST)

fígado, músculo,

eritrócitos, rins

cardiomiopatias (isquemia cardíaca, necrose,

neoplasia), lesão muscular (deficiência de

vitamina E e selênio, injeção intramuscular,

exercício excessivo), lesão hepato-celular

(infecciosa e tóxica, cirrose, obstrução do ducto

biliar, esteatose, icterícia)

Amilase pâncreas, intestino,

glândula salivar

pancreatite aguda, lesões intestinais (obstrução,

úlceras, torção, traumas), obstrução urinária,

hiperadrenocorticismo, obstrução da glândula

salivar, insuficiência renal

Creatina quinase (CK) músculo

lesão muscular (rabdomiólise, cirurgia, injeção

intramuscular, necrose, toxoplasmose,

deficiência de vitamina E e selênio, decúbito),

miocardiopatias

Fosfatase alcalina (FA)

ossos, fígado,

intestino, placenta,

rins

dano hepato-celular, indução por drogas

(barbitúricos e anticonvulsivos) ou esteróides,

animais em crescimento, doenças ósseas

(tumores, osteomalácia, consolidação de

fraturas), deficiência de vitamina D, caquexia,

septicemia, endotoxemia, pancreatite,

hiperparatireoidismo, hiperadrenocorticismo

Gama-glutamil

transferase

(GGT)

fígado, rins

dano hepático (metástase, hepatite, obstrução

biliar, aflatoxicose), indução por

glicocorticóides

Glutamato

desidrogenase (GLDH) fígado doenças hepáticas (necrose, obstrução biliar)

Lactato desidrogenase

(LDH)

Fígado, músculo,

hemácias

desordens dos músculos esqueléticos

(rabdomiólise, miodegeneração nutricional) e

cardíaco (isquemia devido à endocardite,

dirofilariose, trombose aórtica, infarto, trauma,

necrose, neoplasia), moléstias renais e hepáticas

(necrose, lesão)

Lipase pâncreas, fígado

pancreatite aguda, falha renal, doenças

hepáticas, indução por glicocorticóides e

opióides, obstrução intestinal, insuficiência

renal.

Tripsina pâncreas pancreatite aguda

15

A medição da atividade enzimática no plasma como ajuda diagnóstica esta

fundamentada nos seguintes conceitos:

(a) No plasma sanguíneo podem ser encontradas enzimas cuja síntese e função são

exercidas em nível intracelular, mas que podem sair para a corrente circulatória, após a

morte celular. Sob condições normais, estas enzimas têm baixa atividade no plasma. (b)

Como a concentração intracelular das enzimas é bem maior que no plasma, danos

celulares relativamente pequenos podem levar a aumentos significativos da atividade

das enzimas no plasma.

(c) Aumentos da atividade enzimática no plasma permitem fazer inferência sobre o

lugar e o grau do dano celular, uma vez que muitas enzimas são específicas de órgãos. O

grau de alteração pode ser determinado pela atividade de enzimas associadas a

diferentes compartimentos celulares. Assim, em danos tissulares severos, aparece maior

atividade de enzimas mitocondriais e em danos menores aparece atividade de enzimas

citoplasmáticas ou de membrana.

(d) Os níveis enzimáticos no plasma estão influenciados pela velocidade com que

entram na corrente circulatória, o que por sua vez depende do dano celular e pela taxa de

inativação enzimática (meia-vida da enzima).

(e) O evento que interessa na determinação enzimática é o aumento da atividade, não

tendo geralmente importância a sua diminuição.

O sistema de medida mais usado da atividade enzimática é o de Unidades

Internacionais (U ou UI) por litro. Uma UI equivalente à quantidade de enzima que

catalisa a conversão de 1 mol de substrato por minuto. A amostra utilizada para a

análise de enzimas deve ser preferivelmente soro e, se usar plasma, deve evitar-se o uso

de anticoagulantes com agentes quelantes de metais, tais como EDTA, citrato ou

oxalato, para evitar a inativação das metaloenzimas. A heparina é uma boa alternativa.

A estabilidade das enzimas é diferente para cada uma sendo conveniente separar o soro

ou o plasma o mais rapidamente possível.

Indicadores urinários

Densidade específica urinária

A densidade específica urinária pode ser determinada de forma fácil e econômica

mediante refratometria, sendo uma importante ferramenta da análise física da urina.

16

Na desidratação por perda ou falta de ingestão de água diminui a produção de

urina, ficando mais concentrada e com menor valor de densidade, mas a restrição de

consumo de água só afeta o volume urinário e, portanto a densidade, após o 2o dia de

jejum hídrico, sendo compensado pela absorção de água presente no rúmen (Ortolani,

2002). Quanto maior for a ingestão de alimento, de proteína ou de nitrogênio não-

protéico dietético, maior será a produção urinária, causada por uma maior ingestão de

água. Por outro lado, quanto maior for a concentração de lactato plasmático, observado

em estados de acidose láctica ruminal, menor será o volume urinário (Osbaldiston &

Moore, 1971). Valores baixos de densidade urinária são observados em insuficiência

renal crônica e na diabetes insípida.

pH urinário

O pH urinário pode refletir o estado de acidose ou alcalose do organismo, embora

em ocasiões mecanismos compensatórios possam mascarar o desequilíbrio. O pH

urinário dos ruminantes varia de 5,5 a 8,0 conforme a alimentação. Bovinos alimentados

a pasto têm um pH urinário mais alcalino (7,5 a 8,0), enquanto que os alimentados com

concentrado apresentam um pH mais ácido (6,0 a 7,0). O pH da urina varia durante o

dia, sendo mais ácido após a alimentação. Assim recomenda-se que sua mediação seja

feita cerca de 6 horas após a alimentação (Ortolani, 2002).

O pH urinário tem sido utilizado para avaliar a eficiência da administração de sais

aniônicos, usados para prevenir a hipocalcemia em vacas leiteiras. Estes sais contêm

cloreto de amônio e sulfato de cálcio (íons aniônicos), que acidificam o pH urinário.

Vacas que estão recebendo sais aniônicos devem apresentar, cerca de 6 horas após a

alimentação, um pH urinário entre 6,0 a 7,0 (Ortolani, 2002).

Corpos cetônicos urinários

Em condições normais, pequenas quantidades dos corpos cetônicos circulantes no

sangue são excretados pela urina, mas na cetose podem ultrapassar o limiar renal, sendo

excretados abundantemente. A detecção de acetona e de acetoacetato na urina é feita por

meio da prova de Rothera, que utiliza o nitroprussiato de sódio como reativo e pode ser

realizada com fitas ou tabletes comerciais. É uma prova considerada semi-quantitativa

tendo resultado cruzes de zero a 4 (Ortolani, 2002). A prova detecta apenas grupos ceto

e, portanto, não detecta o BHB, principal corpo cetônico. Fitas urinárias mais recentes

17

incluem a enzima BHB oxidase que converte o BHB em acetoacetato, conferindo maior

sensibilidade à prova.

Indicadores lácteos

Gordura do leite

Entre os fatores que influem na quantidade de gordura do leite, se destacam os

genéticos, o nível de produção (aumento da produção diminui a gordura), os períodos de

lactação e de gestação e a alimentação. É importante que a amostra coletada não seja do

início nem do fim da ordenha.

A gordura é o composto mais afetado pela dieta e pelo equilíbrio energético

imposto ao animal. Dessa forma, em caso de balanço energético negativo, como o que

ocorre obrigatoriamente nas vacas de alta produção, a alta lipomobilização de gordura

endógena causa um aumento no teor de gordura do leite. Esta situação em geral é

concomitante com o aumento do teor de corpos cetônicos nos leite e perda da condição

corporal do animal.

De qualquer forma, na interpretação da variação de gordura no leite devem ser

considerados alguns elementos de decisão, tais como o conhecimento do valor de

gordura no leite do rebanho, conforme o tipo racial e as condições sazonais, a

composição da ração, principalmente a proporção de fibra, a condição corporal nos

diferentes períodos de lactação e as variações na composição de sólidos totais do leite

com relação à fase de lactação (Noro et al., 2006).

Por outra parte, alterações no pH ruminal como o que ocorre na acidose láctica por

consumo aumentado de glicídeos de fermentação rápida, tem impacto sobre a

composição do leite, diminuindo o valor de gordura. Isto ocorre pelos seguintes efeitos:

aumento do ácido propiônico (C3), efeito insulinotrópico (favorece a lipogênese com

relação à lipólise) e baixo aporte de ácido acético (C2), precursor dos ácidos graxos.

Essa diminuição da gordura do leite tem sido denominada síndrome de baixa gordura do

leite (low milk fat syndrome).

É evidente que a determinação do percentual de gordura no leite deverá ser uma

medição individualizada e se considera de utilidade nas primeiras seis semanas de

lactação. Sempre que o leite apresente aumentos na gordura, haverá redução das

proteínas nos sólidos totais ocasionando menor valor do produto.

18

Proteína no leite

É conveniente separar os diferentes compostos nitrogenados do leite denominados

genericamente de proteínas. Esta composição inclui as caseínas chamadas de “proteínas

verdadeiras”, mas também a albumina e as globulinas de origem láctea e sanguínea, bem

como enzimas, aminoácidos, peptídeos e uréia. Para efeitos produtivos devem

considerar-se diferencialmente os seguintes produtos nitrogenados: caseínas, proteínas

do soro do leite e nitrogênio não protéico.

A regulação da secreção láctea permite que a composição das proteínas permaneça

relativamente constante no leite, apesar de aumentos no consumo de proteínas pela

dieta. O aumento da proteína total do leite em resposta ao aporte da dieta se dá

fundamentalmente sobre a base do aumento de energia e de nitrogênio não protéico

(uréia). O aporte de uréia como fonte de nitrogênio está limitado em sua absorção pelo

aporte de energia para permitir a metabolização por parte dos microorganismos

ruminais, podendo passar por via sanguínea para a glândula mamária e o leite, existindo

uma forte correlação entre as concentrações de uréia no sangue e no leite.

A relação entre o conteúdo de gordura/proteína do leite é um indicador apropriado

para as mudanças na composição do leite referidas com a resposta à dieta, uma vez que,

em geral, as respostas do aumento de gordura e de proteína do leite vão em sentidos

opostos quando a dieta muda. É conhecido um efeito de depressão das caseínas no leite

pelo excesso de gordura na ração.

Diminuição na secreção de proteínas lácteas ocorre em carências alimentares

severas, em afecções graves da integridade hepática, em parasitismos ou nas afecções

inflamatórias da glândula mamária onde diminuem as caseínas e aumentam as proteínas

do soro.

Uréia no leite

A uréia é o produto final do metabolismo protéico. Quantidades apreciáveis de

uréia aparecem no sangue e no leite, fluidos nos quais pode medir-se de forma

confiável, uma vez que a uréia sanguínea passa o epitélio alveolar da glândula mamária

difundindo-se no leite. Assim, os níveis de uréia no leite têm uma alta correlação com a

concentração sérica de uréia (Rajala-Schultz et al., 2001).

A uréia pode ser usada como uma ferramenta no monitoramento do manejo

nutricional, especialmente quanto à eficiência de utilização de nitrogênio na dieta, como

19

indicador de excesso de amônia ruminal em relação à energia disponível para o

crescimento bacteriano no rúmen.

Os níveis normalmente aceitos de uréia no leite estão num intervalo entre 21,4 a

34,2 mg/dL. Quando o valor está elevado em um animal ou um rebanho, é evidente que

a proteína esta sendo utilizada de forma ineficiente e, uma vez que a proteína é um dos

componentes mais caros da dieta, ocorrem perdas econômicas, que serão somadas às

perdas por falhas reprodutivas. Butler et al. (1996) associam redução nas taxas de

gestação com valores superiores a 40,7 mg/dL de uréia no leite. No Brasil, não existem

estudos dessa dimensão que possam ser referência no tema.

Finalmente, quando os valores de uréia são baixos (menos de 19 mg/dL), a

informação permite reconhecer que os níveis de proteína na dieta são inadequados,

devendo portanto aumentar a oferta protéica.

Considerações finais

Os transtornos metabólicos em bovinos têm aumentado de forma progressiva nos

últimos anos, acompanhando o avanço da genética no sentido de obter animais mais

produtivos, uma vez que a fisiologia e o metabolismo não acompanham paralelamente a

capacidade de maior produtividade. A utilização da bioquímica clínica em fluidos

corporais, tais como sangue, urina e leite, pode ser mais explorada pelos clínicos

buiatras como ferramenta concomitante com o exame clínico e a anamnese, não

somente no diagnóstico de casos clínicos de transtornos metabólicos, mas especialmente

dos casos subclínicos e no acompanhamento, monitoramento e prevenção de condições

patológicas. Atualmente, a maioria dos laboratórios clínicos tem a sua disposição

técnicas e equipamentos que fazem mais econômicas e acuradas as análises nesses

fluidos, de forma que os veterinários devem possuir o conhecimento necessário para sua

melhor utilidade.

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