Finanças Públicas - Cap. III
-
Upload
liliana-pereira -
Category
Documents
-
view
220 -
download
0
description
Transcript of Finanças Públicas - Cap. III
Capítulo III – Sector Público, Contabilidade Pública e Contabilidade Nacional
§ Sector Público e as regras da contabilidade pública e da contabilidade nacional
Pode entender-se por setor público todas as entidades controladas pelo poder político,
onde se inclui não só a totalidade das administrações públicas, como a totalidade do setor
empresarial de capitais total ou maioritariamente públicos. Assim, para além dos subsetores das
administrações públicas (central, regional, local e segurança social), inclui-se entre outras, o
setor público empresarial, que integra as empresas públicas, as empresas municipais, as
sociedades anónimas de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos.
O conceito de Administrações Públicas (AP) baseia-se numa ótica económica para
caracterização das instituições que lhe pertencem, concretiza-se no Sistema Europeu de Contas
(SEC 95) que fundamenta uma contabilização em termos de contabilidade nacional. O conceito
de Setor Público Administrativo (SPA) assenta numa classificação jurídico-institucional dos
entes públicos, cujas contas são contas do SPA na ótica da contabilidade pública.
- Distinção entre contabilidade pública e contabilidade nacional
Em ambos os casos se trata de sistemas contabilísticos de natureza orçamental (registo
da execução orçamental, quer quanto às receitas e despesas) e de natureza patrimonial (balanço
e demonstração de resultados), ainda que obedecendo a critérios e lógicas diferenciadas.
A contabilidade pública baseia-se em critérios de natureza jurídico-institucional e
encontra-se regulada pela Lei n.º 8/90, de 20 de Fevereiro e pelo Decreto-Lei n.º 155/92, de 28
de Julho. O registo faz-se de acordo com o Plano Oficial de Contabilidade Pública (POCP), cujo
regime consta do Decreto-Lei n.º 232/97, de 3 de Setembro. A ótica da contabilidade pública é
uma ótica histórica, que se faz no respeito pela estrutura e organização convencionais da
administração pública portuguesa. O registo é essencialmente um registo de caixa, ou seja, as
receitas e despesas são registadas atendendo ao momento da sua efetividade financeira.
Finalmente, a contabilidade pública tem um interesse sobretudo interno: ela orienta os serviços
competentes da Administração Pública portuguesa na elaboração das respetivas contas ou
demonstrações financeiras.
Por sua vez, a contabilidade nacional baseia-se em critérios de natureza económica,
desde logo, quando se trata de proceder à distinção entre Administrações Públicas e Setor
Empresarial. O seu regime fundamental é de origem comunitária (fundamentalmente contido no
SEC 95) e é bastante mais recente do que a contabilidade pública. Assim, à luz do SEC 95,
fazem parte das Administrações Públicas, as entidades qualificadas como produtores não
mercantis, em relação a cujos bens o consumo seja de natureza individual ou coletiva e dando
azo a pagamentos obrigatórios. As suas instituições têm natureza redistributiva. Por sua vez,
integram o Sector Empresarial do Estado as entidades que sejam qualificadas como produtos
mercantis. Adicionalmente, acresce a esta atuação substancialmente empresarial, a adoção de
forma jurídica empresarial e que os capitais respetivos sejam maioritária ou exclusivamente
públicos.
A estrutura genérica das administrações públicas, à luz do SEC 95, é dada por:
- Administração central;
- Administração estadual;
- Administração Local;
- Fundos da Segurança Social.
Cumpre ainda referir que a contabilidade nacional é assumidamente uma contabilidade
de compromissos (‘accrual basis’ ou acréscimo): nesta medida, registam-se receitas e despesas
atendendo ao momento do seu surgimento do ponto de vista jurídico.
Ainda, a contabilidade nacional é de interesse sobretudo externo: os seus destinatários
são as instituições comunitárias competentes (fundamentalmente, a Comissão Europeia e o
Eurostat), responsáveis pela monitorização e avaliação das finanças públicas dos Estados
membros e pela validação da informação contabilística por estes veiculada. O apuramento
definitivo do valor do défice anual só é calculado e assumido, depois de feita essa validação.
A contabilidade nacional é pois, hoje, um instrumento fundamental de uniformização da
informação contabilística produzida e prestada pelos Estados membros que procura prevenir
situações de discricionariedade contabilística e garantir uma comparabilidade fidedigna, não
apenas da situação orçamental dos Estados membros entre si, mas também da evolução
verificada, ao longo do tempo, em cada Estado membro.
- Concretização das regras do SEC 95
O Regulamento (CE) n.º 2223/96 estabeleceu uma metodologia destinada a permitir a
elaboração de contas e quadros em bases comparáveis, com o objetivo de descrever de forma
sistemática e pormenorizada o total de uma economia, seus componentes e suas relações com
outras economias. E com base neste objetivo, o sistema agrupa unidades institucionais em
sectores com base nas suas funções, comportamentos e objetivos principais.
Conceito de unidade institucional
Por unidades institucionais, o SEC 95 entende as entidades económicas com capacidade
de possuir bens e ativos, de contrair passivos e de realizar atividades e operações económicas
com outras unidades em seu próprio nome.
De acordo com esta definição, a unidade institucional é, pois, um centro elementar de
decisão económica, caracterizando-se pela unicidade de comportamento e pela autonomia de
decisão no exercício da sua função principal.
Dizer-se que uma unidade goza de autonomia de decisão no exercício da sua função
principal significa, nos termos do SEC 95, que a mesma:
- tem direito a ser proprietária de bens ou ativos e poderá, por conseguinte,
transacionar a propriedade dos mesmos com outras unidades institucionais;
- tem capacidade para tomar decisões económicas e realizar atividades
económicas pelas quais é diretamente responsável perante a lei;
- tem capacidade para contrair passivos em seu próprio nome, aceitar obrigações
ou compromissos futuros e celebrar contratos.
Por outro lado, a ideia de que uma unidade dispõe de contabilidade completa traduz-se
na circunstância de a mesma dispor de documentos contabilísticos que reflitam a totalidade das
suas operações económicas e financeiras efetuadas no decurso do período de referência das
contas e de um balanço dos seus ativos e passivos.
A integração das unidades institucionais em sectores institucionais
As unidades institucionais são agrupadas em conjuntos designados por sectores
institucionais, os quais podem ser divididos em subsectores e que agrupam as unidades
institucionais que têm um comportamento económico análogo.
Para fins do sistema institucionais encontram-se agrupadas em cinco sectores
institucionais, mutuamente exclusivos, constituídos pelos seguintes tipos de unidades: (i)
sociedades não financeiras; (ii) sociedades financeiras; (iii) administrações públicas; (iv)
famílias; (v) instituições sem fim lucrativo ao serviço das famílias. O conjunto destes cinco
sectores constitui o total da economia.
Critérios de inclusão da unidade institucional em determinado sector institucional
Quando a função principal da unidade institucional consiste na produção de bens e
serviços, é necessário primeiro distinguir o tipo de produtor. No SEC 95 distinguem-se:
- produtores mercantis privados e públicos;
- produtores privados para utilização final própria;
- outros produtores não-mercantis privados e públicos.
Conceito de produção mercantil
A produção mercantil é, segundo o SEC 95, aquela que é vendida no mercado.
Por outro lado, a produção destinada a utilização final própria consiste nos bens ou
serviços que são retidos para consumo final pela mesma unidade institucional ou para formação
bruta de capital fixo pela mesma unidade institucional.
Por fim, a outra produção não mercantil abrange a produção que é fornecida
gratuitamente, ou a preços que não são economicamente significativos, a outras unidades.
§ Noção de preço economicamente significativo
De acordo com o SEC 95, a produção apenas se considera vendida a preços
economicamente significativos se mais de 50% dos custos de produção forem cobertos pelas
vendas. Assim:
- se mais de 50% dos custos de produção forem cobertos pelas vendas, a
unidade é um produtor mercantil, sendo incluída no sector das sociedades financeiras ou não
financeiras;
- se as vendas cobrirem menos de 50% dos custos de produção, a unidade
institucional é um outro produtor não mercantil.
v. págs. 233 a 236
§ O caso particular das instituições sem fins lucrativos
No âmbito do SEC 95, uma instituição sem fim lucrativo (ISFL) define-se como uma
entidade jurídica ou social criada com o fim de produzir bens e serviços cujo estatuto não lhe
permite ser uma fonte de rendimentos, lucros ou ganhos financeiros para as unidades que a
criam, controlam ou financiam. Na prática, as suas atividades produtivas geram excedentes ou
défices, mais quaisquer excedentes que se realizem não podem passar para a posse de outras
unidades institucionais.
Existem ISFL no sector das administrações públicas e no sector privado. Dentro deste,
as ISFL podem ainda integrar sectores diferentes conforme tenham a natureza de produtor
mercantil ou não mercantil.
§ Ilustração do setor público e perímetro orçamental
v. págs. 238 e 239
- Sector público e perímetro orçamental
Perímetro orçamental e desorçamentação: os casos especiais das empresas públicas e
das parcerias público-privadas
A desorçamentação consubstancia uma forma de fraude à lei ou de manipulação das
regras contabilísticas. Podem significar práticas de desorçamentação, por exemplo: i) retirada
artificial de uma entidade do sector público, qualificando-o como entidade privada (v.g.
fundação, associação, etc.), ainda que ela possa continuar a ser apoiada se não pelo lado do
financiamento, ao menos pela via fiscal (desagravando-a ou concedendo-lhe um regime fiscal
mais favorável); ii) retirada artificial do perímetro orçamental (entenda-se do Orçamento do
Estado) de entidades, qualificando-as já não como entidades administrativas mas sim como
empresas públicas e mantendo embora canais de financiamento público às mesmas (v.g.
transferências orçamentais); etc.
Nos últimos anos, em Portugal, têm assumido especial relevância as implicações
financeiras e contabilísticas, por um lado, das empresas públicas e, por outro lado, das
parcerias público-privadas. O regime do Sector Empresarial do Estado encontra-se regulado no
Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro, e suas alterações, compreendendo empresas
públicas de natureza societária (a sua forma jurídica é a de sociedade anónima), cujo capital seja
maioritária ou exclusivamente público e, bem assim, empresas públicas de natureza estatutária e
a que se denominou de Entidades Públicas Empresariais (EPE). A diferença entre estas duas
modalidades de empresas públicas está na sua forma jurídica como no facto de, no primeiro
caso, predominarem elementos jus-privatísticos, ao passo que no segundo se acentuam os de
caráter juspublicístico.
Os orçamentos das empresas públicasnão figuram no Orçamento do Estado nem nos
orçamentos das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais. Todavia, as regras do SEC 95
intentaram ‘capturar’ os encargos financeiros associados a transferências financeiras entre as
administrações públicas e sector empresarial local, mormente através da consolidação de
contas. Significa isto que a contabilização de receitas e despesas deverá fazer-se, não apenas
através de valores brutos de transferências (valores não consolidados), mas também através de
valores líquidos dessas mesmas transferências (valores consolidados). A consolidação permite
assim, olhando, por exemplo, para o sector Estado verificar quais as receitas públicas que
advêm da sua relação directa com a economia e quais as receitas que resultam das intermediaões
com outros sectores públicos e privados de que o Estado recebe transferências (e, portanto, só
indirectamente se relacionando com a economia). De igual modo, no que toca à despesa, a
consolidação permite verificar quais as despesas realizadas diretamente com a economia e quais
as que supõem uma intermediação de outros sectores, para os quais o Estado realiza
transferências (só indiretamente relevando sobre a economia).
Não obstante estas preocupações, a imaginação humana é fértil e tem sido sempre
possível tornear as exigências legais: proliferam práticas na Administração Pública conhecidas
como de ‘engenharia financeira’, ‘contabilidade criativa’, etc.. Daí que, nem as exigentes e
apertadas regras da União Europeia, tenham impedido situações de mentira orçamental e
contabilística. Portugal não escapou a essa voragem criativa, e que tornou desconhecidas as
situações financeiras de muitas empresas nacionais, regionais e municipais. Não admira por isso
que uma das preocupações centrais, expressas no Memorando de Entendimento já aqui referido,
tenha sido a de “melhorar o atual reporte mensal da execução orçamental, em base de caixa para
as Administrações Públicas, incluindo em base consolidada”.
Mas para além dos mecanismos de consolidação de contas, existe uma outra forma de
‘capturar’ a realidade orçamental de certas entidades empresariais, até aí não integradas no
perímetro orçamental das administrações públicas. Essa forma consiste na reclassificação de
entidades empresariais. Consideram-se entidades públicas reclassificadas as que
independentemente da sua natureza e forma foram incluídas no sector público administrativo no
âmbito do SEC 95. Considerando-se, por seu turno, não mercantil, a entidade que não vende a
sua produção a preços economicamente significativos, de tal modo que a principal fonte de
financiamento não é a receita associada a um preço, tarifa ou taxa pelos bens e serviços que
presta.
As preocupações com as Parcerias Público-Privadas (PPP) também já não são de
hoje. Como era referido pelo FMI (2004), inexiste um modelo uniforme e compreensivo de
reporte e contabilidade financeira das PPP. Esta insuficiência contribui claramente para que as
PPP sejam usadas para contornar os controlos financeiros a que o sector público está adstrito,
bem como para retirar o investimento público e dívida associada do balanço do Estado. Para
além disso, as garantias que o Estado geralmente concede, nas PPP, ao financiamento privado
acabam por expô-lo a custos ocultos ou implícitos mais elevados do que os resultantes do
financiamento público tradicional. A existência de um modelo, internacionalmente aceite, de
reporte e de contabilidade contribuiria certamente para promover uma maior transparência na
celebração de PPP e para um acrescido escrutínio público – temos como ponto de partida o
‘System of National Accounts – SNA’ de 1993 e o ‘Government Finance Statistics Manual –
GFSM’ de 2001.
Posteriormente, o EUROSTAT (2004) procurou definir alguns critérios operativos que
permitissem qualificar os ativos PPP, como públicos ou privados e proceder à respetiva previsão
dentro ou fora do balanço do Estado. E isto tanto para o modelo concessivo, como para o
modelo da Private Finance Iniciative (PFI).
Relativamente ao modelo concessivo (as concessões constituem, pelo menos em
Portugal, a forma jurídica dominante de contratualização de uma PPP), a abordagem da
EUROSTAT é relativamente simples: desde que menos de 50% das receitas do projeto sejam
provenientes de pagamentos pelo sector público (sob forma de subsídios ou outros), a
infraestrutura ficará fora do balanço do Estado. No entanto, surgem algumas questões (v. pag.
245).
Quanto ao modelo PFI britânico – v. págs. 245 e 246.
Relativamente ao modo como se procede ao tratamento orçamental das receitas e
despesas das PPP, importa distinguir consoante os investimentos das PPP sejam qualificados
como privados ou públicos. Assim:
- caso os investimentos sejam qualificados, de acordo com as regras
contabilísticas supra, como investimentos públicos, a componente corrente dos
pagamentos a efetuar pelo Estado deve ser tratada como despesa primária, ao passo que
a componente de serviço de dívida deverá ser inscrita como despesa de capital. Por
conseguinte, os encargos do Estado assim assumidos afetam, anualmente, o respetivo
défice orçamental e o seu financiamento reflete-se na dívida pública.
- caso os investimentos das PPP sejam qualificados como investimentos
privados, havendo no entanto lugar a pagamentos regulares feitos pelo Estado por
serviços resultantes dos ativos construídos e explorados pelas empresas privadas, tais
pagamentos afetarão o défice orçamental (devem ser inscritos como despesa primária),
mas o valor do investimento realizado é registado no património da empresa privada,
bem como o seu financiamento, não afetando a dívida pública.
Seguindo estas práticas e orientações internacionais, a legislação portuguesa procura
minimizar o risco financeiro em que se traduz a celebração de uma PPP. Da LEO resultam
desde logo, como limitações de natureza procedimental/institucional, a necessidade de as
despesas relativas às PPP (quando deem azo a pagamentos públicos), constarem quer dos mapas
orçamentais, quer nos elementos informativos que acompanham a proposta de lei do OE.
Para além destas limitações da LEO, cumpre mencionar a concretização de uma
cláusula ‘gateway’ no diploma regulador das PPP, no art. 18.º, n.º 3.
Conceitos relevantes: descentralização financeira; descentralização político-
administrativa; descentralização fiscal; independência orçamental; autonomia
financeira
O Estado português é um Estado unitário, parcialmente regional (cf. Art. 6.º CRP). Os
dois subsectores identificados como ‘Regiões Autónomas’ e ‘Autarquias Locais’ traduzem a
expressão máxima da descentralização: podemos assim referi-la como descentralização
político-administrativa, na medida em que elas são pessoas coletivas de população e território
distintas da pessoa Estado, representadas por órgãos diretamente eleitos pelo voto, a quem
representam.
Em ambos os casos, já num plano financeiro, verifica-se de igual modo uma ampla
autonomia, quer no que diz respeito à determinação das funções e do nível de despesa
(‘functions assignement’), quer no que respeita à determinação da receita, mormente da receita
fiscal própria (‘tax assignement’). A descentralização fiscal refere-se pois a este último aspeto
e ela pode desdobrar-se em planos diferentes: por um lado, traduz-se na possibilidade que estas
entidades têm de ser titulares da receita tributária (maxime fiscal), referente a tributos cobrados
nessas circunscrições; por outro lado, traduz-se na autonomia fiscal, ou seja, na possibilidade,
constitucionalmente conferida, de as mesmas entidades exercerem poderes tributários em
relação a esses tributos/impostos.
Um outro corolário evidente e que resulta da natureza politicamente descentralizada das
Regiões Autónomas e Autarquias Locais, é o da independência orçamental destas entidades
relativamente ao Orçamento do Estado. Ou seja, os orçamentos anuais de cada uma das Regiões
Autónomas e de cada uma das autarquias locais (municípios e freguesias) não constam do OE.
Já quanto ao conceito de autonomia financeira, pode-se retirar da Lei de Bases da
Contabilidade Pública (Lei n.º 8/90, de 20 de Fevereiro) e do Regime da Administração
Financeira do Estado (Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho) e, ainda, do art. 2.º LEO. Ali
encontramos três Administrações Públicas que contêm fundamentalmente dois tipos de
serviços: serviços dotados de autonomia meramente administrativa (‘serviços integrados’) e
serviços dotados de autonomia administrativa e financeira (‘fundos e serviços autónomos’). Os
primeiros podem fundamentalmente realizar atos de gestão corrente.
O segundo tipo de serviços é marcado por uma forma mais intensa de autonomia, a
autonomia financeira. A relação que mantém com os membros do Governo competentes tende a
ser uma simples relação de tutela. A condição fundamental para atribuição do estatuto de
autonomia administrativa e financeira é a de que pelo menos dois terços das receitas respetivas
sejam receitas próprias. A autonomia financeira, teórica e tradicionalmente, desdobrava-se em
quatro dimensões principais:
- autonomia orçamental (stricto sensu) – traduz-se na possibilidade de estes
serviços elaborarem e executarem os respetivos orçamentos, com grande margem de
liberdade.
- autonomia patrimonial – significa a possibilidade e capacidade de detenção e
gestão de património próprio. Insere-se a possibilidade de aquisição, alienação, etc.
- autonomia tesouraria – implica a possibilidade de arrecadação e gestão de
fundos de forma autónoma em relação à tesouraria do Estado. Esta autonomia está hoje,
na prática, fortemente limitada, dada a concretização do princípio da tesouraria única do
Estado, nos termos da qual a gestão das entradas e saídas de fundos deve fazer-se
através da Caixa central e única do Estado, que é o Tesouro público. A única exceção a
esta regra continua a ser a Segurança Social (cf. Art. 48.º, n.º 4 LEO).
- autonomia creditícia – traduz a possibilidade de recurso ao crédito, com ampla
liberdade. Também esta forma de autonomia está hoje posta em crise devido a
sucessivas restrições que têm vindo a ser colocadas.
Em suma, verificamos que, na prática, a autonomia financeira é hoje bastante mais
reduzida do que foi no passado e do que o é na teoria. Na verdade, ela reduz-se hoje à
autonomia orçamental e patrimonial e mesmo, quanto a estas, com sucessivas restrições.
As relações financeiras entre as Administrações Públicas e os setores empresariais
respetivos, e as relações financeiras entre si
O mecanismo típico, que vem assumindo importância crescente, é o mecanismo da
consolidação de contas. Este mecanismo permite confrontar as receitas e as despesas com um
valor bruto, não consolidado, e as receitas e as despesas com o seu valor consolidado, i.e.
líquido de transferências (para outros sectores).
O Estado financia outros sectores: as Regiões Autónomas, através de uma subvenção
geral e, bem assim, através de uma subvenção específica (Fundo de Coesão para as Regiões
Ultraperiféricas); os Municípios, através de uma subvenção geral (Fundo de Equilíbrio
Financeiro) e de uma subvenção específica (Fundo Social Municipal); as Freguesias, através de
uma subvenção geral (Fundo de Financiamento das Freguesias); as empresas públicas
(nacionais), pela via de financiamentos e indemnizações compensatórias.
A consolidação financeira é um bom instrumento de visualização das relações
financeiras entre sectores, e permite perceber a dimensão dos fluxos financeiros entre todos eles:
os canais de transferências. A informação contabilística a enviar às instâncias comunitárias
competentes é cada vez mais completa, dificultando estratégias de desorçamentação.
O ‘orçamento’ da segurança social: particularismos da estrutura e gestão orçamentais
O orçamento da Segurança Social (OSS) é incorporado no Orçamento do Estado (cf. art.
105.º, n.º 1 CRP). No entanto, o setor da Segurança Social mantém uma considerável autonomia
relativamente à gestão orçamental do Estado central. Ela é a principal exceção à regra da
unidade de tesouraria do Estado. O OSS constitui também uma exceção à regra da unidade em
sentido material: assim, conquanto o orçamento seja formalmente unitário (cf. n.º 3 do art. 105.º
CRP), materialmente descortinam-se no OE ‘micro orçamentos’, de que se evidencia justamente
o OSS. Este particularismo repercute-se, depois, na regra da especificação orçamental.
Na verdade, de acordo com a atual Lei de Bases da Segurança Social (LBSS), a Lei n.º
2/2007, de 16 de Janeiro, o sistema de segurança social desdobra-se do seguinte modo:
- em primeiro lugar, surge o sistema de proteção social de cidadania (dimensão
não contributiva), o qual integra o subsistema de ação social, o subsistema de
solidariedade e o subsistema de proteção familiar;
- em segundo lugar, o sistema previdencial (dimensão contributiva);
- em terceiro lugar, o sistema complementar que integra um regime público de
capitalização, para além de regimes complementares de iniciativa coletiva e individual
(privados).
A esta estrutura particular correspondem, por sua vez, formas diferenciadas de
financiamento. Assim, enquanto o sistema de proteção social de cidadania é financiado por
transferências do OE e também através da consignação de receitas fiscais, já sistema
previdencial é financiado por quotizações dos trabalhadores e contribuições das entidades
empregadoras. O sistema previdencial é, entre nós, um sistema de repartição. No entanto,
apresenta algumas concessões à capitalização (sistema em que os trabalhadores acumulam
reservas financeiras próprias, destinadas ao pagamento da sua própria pensão uma vez atingida a
idade legal de reforma). Ver o art. 91.º LBSS.
O Decreto-Lei n.º 367/2007, de 2 de Novembro, veio regulamentar a LBSS no que diz
respeito ao financiamento do sistema de segurança social. E, assim, adapta as formas de
financiamento à estrutura do sistema dela resultante – essas formas são: para o sistema de
proteção social de cidadania, o financiamento através de transferências do OE e da consignação
de receitas fiscais; para o sistema previdencial (repartição), o financiamento através das
contribuições sociais.
Concluindo. Em primeiro lugar, o sistema ‘previdencial-repartição’ constitui o epicentro
financeiro de todo o sistema de segurança social. Ele é também a interface que faz a ligação
entre as duas outras componentes do sistema, de um lado, o sistema de proteção social de
cidadania, do outro, o sistema ‘previdencial-capitalização’.
Em segundo lugar, verifica-se que tendo em conta a estrutura atual do sistema, o sistema
de proteção social de cidadania estabelece ‘vasos comunicantes’ financeiros entre as partes que
o compõem.
Em terceiro lugar, verifica-se que o sistema de proteção social de cidadania recebe
indiferecialmente, em bloco, as transferências do OE que depois distribui pelas suas
componentes. Já no que respeita à consignação de receitas fiscais, após a alteração ocorrida em
2010, o IVA passou a ser afeto especificamente ao subsistema proteção familiar. Finalmente,
quanto ao sistema previdencial-repartição, embora as suas principais fontes de receitas sejam as
contribuições sociais, ele pode ser financiado também através de transferências do OE ou por
transferências do FEFSS, se a sua situação financeira o justificar (art. 14.º, n.º 3). Em suma, tal
significa que o princípio da adequação seletiva é unidirecional: ele visa essencialmente proibir a
utilização das contribuições sociais para financiar despesas de caráter não contributivo; mas já
não veda, pelo menos em determinadas circunstâncias, a situação inversa, ou seja, que as
trasnferências do OE possam ser utilizadas para colmatar a situação deficitária do previdencial.