Finanças Públicas - Cap. III

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Capítulo III – Sector Público, Contabilidade Pública e Contabilidade Nacional § Sector Público e as regras da contabilidade pública e da contabilidade nacional Pode entender-se por setor público todas as entidades controladas pelo poder político, onde se inclui não só a totalidade das administrações públicas, como a totalidade do setor empresarial de capitais total ou maioritariamente públicos. Assim, para além dos subsetores das administrações públicas (central, regional, local e segurança social), inclui-se entre outras, o setor público empresarial, que integra as empresas públicas, as empresas municipais, as sociedades anónimas de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos. O conceito de Administrações Públicas (AP) baseia-se numa ótica económica para caracterização das instituições que lhe pertencem, concretiza-se no Sistema Europeu de Contas (SEC 95) que fundamenta uma contabilização em termos de contabilidade nacional. O conceito de Setor Público Administrativo (SPA) assenta numa classificação jurídico-institucional dos entes públicos, cujas contas são contas do SPA na ótica da contabilidade pública. - Distinção entre contabilidade pública e contabilidade nacional Em ambos os casos se trata de sistemas contabilísticos de natureza orçamental (registo da execução orçamental, quer quanto às receitas e despesas) e de natureza patrimonial (balanço e demonstração de resultados), ainda que obedecendo a critérios e lógicas diferenciadas. A contabilidade pública baseia-se em critérios de natureza jurídico-institucional e encontra-se regulada pela Lei n.º 8/90, de 20 de Fevereiro e pelo Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho. O registo faz-se de acordo com o Plano Oficial de Contabilidade Pública (POCP), cujo regime consta do Decreto-Lei n.º 232/97, de 3 de Setembro. A ótica da contabilidade pública é uma ótica histórica, que se faz no respeito pela estrutura e organização convencionais da administração pública portuguesa. O registo é essencialmente um registo de caixa, ou seja, as receitas e despesas são registadas atendendo ao momento da sua efetividade financeira. Finalmente, a contabilidade pública tem um interesse sobretudo interno: ela orienta os serviços competentes da Administração Pública portuguesa na elaboração das respetivas contas ou demonstrações financeiras. Por sua vez, a contabilidade nacional baseia-se em critérios de natureza económica, desde logo, quando se trata de proceder à distinção entre Administrações Públicas e Setor Empresarial. O seu regime fundamental é de origem comunitária (fundamentalmente contido no SEC 95) e é bastante mais recente do que a contabilidade pública. Assim, à luz do SEC 95, fazem parte das Administrações Públicas, as entidades qualificadas como produtores não mercantis, em relação a cujos bens o consumo seja de natureza individual ou coletiva e dando azo a pagamentos obrigatórios. As suas instituições têm natureza redistributiva. Por sua vez,

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Capítulo III – Sector Público, Contabilidade Pública e Contabilidade Nacional

§ Sector Público e as regras da contabilidade pública e da contabilidade nacional

Pode entender-se por setor público todas as entidades controladas pelo poder político,

onde se inclui não só a totalidade das administrações públicas, como a totalidade do setor

empresarial de capitais total ou maioritariamente públicos. Assim, para além dos subsetores das

administrações públicas (central, regional, local e segurança social), inclui-se entre outras, o

setor público empresarial, que integra as empresas públicas, as empresas municipais, as

sociedades anónimas de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos.

O conceito de Administrações Públicas (AP) baseia-se numa ótica económica para

caracterização das instituições que lhe pertencem, concretiza-se no Sistema Europeu de Contas

(SEC 95) que fundamenta uma contabilização em termos de contabilidade nacional. O conceito

de Setor Público Administrativo (SPA) assenta numa classificação jurídico-institucional dos

entes públicos, cujas contas são contas do SPA na ótica da contabilidade pública.

- Distinção entre contabilidade pública e contabilidade nacional

Em ambos os casos se trata de sistemas contabilísticos de natureza orçamental (registo

da execução orçamental, quer quanto às receitas e despesas) e de natureza patrimonial (balanço

e demonstração de resultados), ainda que obedecendo a critérios e lógicas diferenciadas.

A contabilidade pública baseia-se em critérios de natureza jurídico-institucional e

encontra-se regulada pela Lei n.º 8/90, de 20 de Fevereiro e pelo Decreto-Lei n.º 155/92, de 28

de Julho. O registo faz-se de acordo com o Plano Oficial de Contabilidade Pública (POCP), cujo

regime consta do Decreto-Lei n.º 232/97, de 3 de Setembro. A ótica da contabilidade pública é

uma ótica histórica, que se faz no respeito pela estrutura e organização convencionais da

administração pública portuguesa. O registo é essencialmente um registo de caixa, ou seja, as

receitas e despesas são registadas atendendo ao momento da sua efetividade financeira.

Finalmente, a contabilidade pública tem um interesse sobretudo interno: ela orienta os serviços

competentes da Administração Pública portuguesa na elaboração das respetivas contas ou

demonstrações financeiras.

Por sua vez, a contabilidade nacional baseia-se em critérios de natureza económica,

desde logo, quando se trata de proceder à distinção entre Administrações Públicas e Setor

Empresarial. O seu regime fundamental é de origem comunitária (fundamentalmente contido no

SEC 95) e é bastante mais recente do que a contabilidade pública. Assim, à luz do SEC 95,

fazem parte das Administrações Públicas, as entidades qualificadas como produtores não

mercantis, em relação a cujos bens o consumo seja de natureza individual ou coletiva e dando

azo a pagamentos obrigatórios. As suas instituições têm natureza redistributiva. Por sua vez,

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integram o Sector Empresarial do Estado as entidades que sejam qualificadas como produtos

mercantis. Adicionalmente, acresce a esta atuação substancialmente empresarial, a adoção de

forma jurídica empresarial e que os capitais respetivos sejam maioritária ou exclusivamente

públicos.

A estrutura genérica das administrações públicas, à luz do SEC 95, é dada por:

- Administração central;

- Administração estadual;

- Administração Local;

- Fundos da Segurança Social.

Cumpre ainda referir que a contabilidade nacional é assumidamente uma contabilidade

de compromissos (‘accrual basis’ ou acréscimo): nesta medida, registam-se receitas e despesas

atendendo ao momento do seu surgimento do ponto de vista jurídico.

Ainda, a contabilidade nacional é de interesse sobretudo externo: os seus destinatários

são as instituições comunitárias competentes (fundamentalmente, a Comissão Europeia e o

Eurostat), responsáveis pela monitorização e avaliação das finanças públicas dos Estados

membros e pela validação da informação contabilística por estes veiculada. O apuramento

definitivo do valor do défice anual só é calculado e assumido, depois de feita essa validação.

A contabilidade nacional é pois, hoje, um instrumento fundamental de uniformização da

informação contabilística produzida e prestada pelos Estados membros que procura prevenir

situações de discricionariedade contabilística e garantir uma comparabilidade fidedigna, não

apenas da situação orçamental dos Estados membros entre si, mas também da evolução

verificada, ao longo do tempo, em cada Estado membro.

- Concretização das regras do SEC 95

O Regulamento (CE) n.º 2223/96 estabeleceu uma metodologia destinada a permitir a

elaboração de contas e quadros em bases comparáveis, com o objetivo de descrever de forma

sistemática e pormenorizada o total de uma economia, seus componentes e suas relações com

outras economias. E com base neste objetivo, o sistema agrupa unidades institucionais em

sectores com base nas suas funções, comportamentos e objetivos principais.

Conceito de unidade institucional

Por unidades institucionais, o SEC 95 entende as entidades económicas com capacidade

de possuir bens e ativos, de contrair passivos e de realizar atividades e operações económicas

com outras unidades em seu próprio nome.

De acordo com esta definição, a unidade institucional é, pois, um centro elementar de

decisão económica, caracterizando-se pela unicidade de comportamento e pela autonomia de

decisão no exercício da sua função principal.

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Dizer-se que uma unidade goza de autonomia de decisão no exercício da sua função

principal significa, nos termos do SEC 95, que a mesma:

- tem direito a ser proprietária de bens ou ativos e poderá, por conseguinte,

transacionar a propriedade dos mesmos com outras unidades institucionais;

- tem capacidade para tomar decisões económicas e realizar atividades

económicas pelas quais é diretamente responsável perante a lei;

- tem capacidade para contrair passivos em seu próprio nome, aceitar obrigações

ou compromissos futuros e celebrar contratos.

Por outro lado, a ideia de que uma unidade dispõe de contabilidade completa traduz-se

na circunstância de a mesma dispor de documentos contabilísticos que reflitam a totalidade das

suas operações económicas e financeiras efetuadas no decurso do período de referência das

contas e de um balanço dos seus ativos e passivos.

A integração das unidades institucionais em sectores institucionais

As unidades institucionais são agrupadas em conjuntos designados por sectores

institucionais, os quais podem ser divididos em subsectores e que agrupam as unidades

institucionais que têm um comportamento económico análogo.

Para fins do sistema institucionais encontram-se agrupadas em cinco sectores

institucionais, mutuamente exclusivos, constituídos pelos seguintes tipos de unidades: (i)

sociedades não financeiras; (ii) sociedades financeiras; (iii) administrações públicas; (iv)

famílias; (v) instituições sem fim lucrativo ao serviço das famílias. O conjunto destes cinco

sectores constitui o total da economia.

Critérios de inclusão da unidade institucional em determinado sector institucional

Quando a função principal da unidade institucional consiste na produção de bens e

serviços, é necessário primeiro distinguir o tipo de produtor. No SEC 95 distinguem-se:

- produtores mercantis privados e públicos;

- produtores privados para utilização final própria;

- outros produtores não-mercantis privados e públicos.

Conceito de produção mercantil

A produção mercantil é, segundo o SEC 95, aquela que é vendida no mercado.

Por outro lado, a produção destinada a utilização final própria consiste nos bens ou

serviços que são retidos para consumo final pela mesma unidade institucional ou para formação

bruta de capital fixo pela mesma unidade institucional.

Por fim, a outra produção não mercantil abrange a produção que é fornecida

gratuitamente, ou a preços que não são economicamente significativos, a outras unidades.

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§ Noção de preço economicamente significativo

De acordo com o SEC 95, a produção apenas se considera vendida a preços

economicamente significativos se mais de 50% dos custos de produção forem cobertos pelas

vendas. Assim:

- se mais de 50% dos custos de produção forem cobertos pelas vendas, a

unidade é um produtor mercantil, sendo incluída no sector das sociedades financeiras ou não

financeiras;

- se as vendas cobrirem menos de 50% dos custos de produção, a unidade

institucional é um outro produtor não mercantil.

v. págs. 233 a 236

§ O caso particular das instituições sem fins lucrativos

No âmbito do SEC 95, uma instituição sem fim lucrativo (ISFL) define-se como uma

entidade jurídica ou social criada com o fim de produzir bens e serviços cujo estatuto não lhe

permite ser uma fonte de rendimentos, lucros ou ganhos financeiros para as unidades que a

criam, controlam ou financiam. Na prática, as suas atividades produtivas geram excedentes ou

défices, mais quaisquer excedentes que se realizem não podem passar para a posse de outras

unidades institucionais.

Existem ISFL no sector das administrações públicas e no sector privado. Dentro deste,

as ISFL podem ainda integrar sectores diferentes conforme tenham a natureza de produtor

mercantil ou não mercantil.

§ Ilustração do setor público e perímetro orçamental

v. págs. 238 e 239

- Sector público e perímetro orçamental

Perímetro orçamental e desorçamentação: os casos especiais das empresas públicas e

das parcerias público-privadas

A desorçamentação consubstancia uma forma de fraude à lei ou de manipulação das

regras contabilísticas. Podem significar práticas de desorçamentação, por exemplo: i) retirada

artificial de uma entidade do sector público, qualificando-o como entidade privada (v.g.

fundação, associação, etc.), ainda que ela possa continuar a ser apoiada se não pelo lado do

financiamento, ao menos pela via fiscal (desagravando-a ou concedendo-lhe um regime fiscal

mais favorável); ii) retirada artificial do perímetro orçamental (entenda-se do Orçamento do

Estado) de entidades, qualificando-as já não como entidades administrativas mas sim como

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empresas públicas e mantendo embora canais de financiamento público às mesmas (v.g.

transferências orçamentais); etc.

Nos últimos anos, em Portugal, têm assumido especial relevância as implicações

financeiras e contabilísticas, por um lado, das empresas públicas e, por outro lado, das

parcerias público-privadas. O regime do Sector Empresarial do Estado encontra-se regulado no

Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro, e suas alterações, compreendendo empresas

públicas de natureza societária (a sua forma jurídica é a de sociedade anónima), cujo capital seja

maioritária ou exclusivamente público e, bem assim, empresas públicas de natureza estatutária e

a que se denominou de Entidades Públicas Empresariais (EPE). A diferença entre estas duas

modalidades de empresas públicas está na sua forma jurídica como no facto de, no primeiro

caso, predominarem elementos jus-privatísticos, ao passo que no segundo se acentuam os de

caráter juspublicístico.

Os orçamentos das empresas públicasnão figuram no Orçamento do Estado nem nos

orçamentos das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais. Todavia, as regras do SEC 95

intentaram ‘capturar’ os encargos financeiros associados a transferências financeiras entre as

administrações públicas e sector empresarial local, mormente através da consolidação de

contas. Significa isto que a contabilização de receitas e despesas deverá fazer-se, não apenas

através de valores brutos de transferências (valores não consolidados), mas também através de

valores líquidos dessas mesmas transferências (valores consolidados). A consolidação permite

assim, olhando, por exemplo, para o sector Estado verificar quais as receitas públicas que

advêm da sua relação directa com a economia e quais as receitas que resultam das intermediaões

com outros sectores públicos e privados de que o Estado recebe transferências (e, portanto, só

indirectamente se relacionando com a economia). De igual modo, no que toca à despesa, a

consolidação permite verificar quais as despesas realizadas diretamente com a economia e quais

as que supõem uma intermediação de outros sectores, para os quais o Estado realiza

transferências (só indiretamente relevando sobre a economia).

Não obstante estas preocupações, a imaginação humana é fértil e tem sido sempre

possível tornear as exigências legais: proliferam práticas na Administração Pública conhecidas

como de ‘engenharia financeira’, ‘contabilidade criativa’, etc.. Daí que, nem as exigentes e

apertadas regras da União Europeia, tenham impedido situações de mentira orçamental e

contabilística. Portugal não escapou a essa voragem criativa, e que tornou desconhecidas as

situações financeiras de muitas empresas nacionais, regionais e municipais. Não admira por isso

que uma das preocupações centrais, expressas no Memorando de Entendimento já aqui referido,

tenha sido a de “melhorar o atual reporte mensal da execução orçamental, em base de caixa para

as Administrações Públicas, incluindo em base consolidada”.

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Mas para além dos mecanismos de consolidação de contas, existe uma outra forma de

‘capturar’ a realidade orçamental de certas entidades empresariais, até aí não integradas no

perímetro orçamental das administrações públicas. Essa forma consiste na reclassificação de

entidades empresariais. Consideram-se entidades públicas reclassificadas as que

independentemente da sua natureza e forma foram incluídas no sector público administrativo no

âmbito do SEC 95. Considerando-se, por seu turno, não mercantil, a entidade que não vende a

sua produção a preços economicamente significativos, de tal modo que a principal fonte de

financiamento não é a receita associada a um preço, tarifa ou taxa pelos bens e serviços que

presta.

As preocupações com as Parcerias Público-Privadas (PPP) também já não são de

hoje. Como era referido pelo FMI (2004), inexiste um modelo uniforme e compreensivo de

reporte e contabilidade financeira das PPP. Esta insuficiência contribui claramente para que as

PPP sejam usadas para contornar os controlos financeiros a que o sector público está adstrito,

bem como para retirar o investimento público e dívida associada do balanço do Estado. Para

além disso, as garantias que o Estado geralmente concede, nas PPP, ao financiamento privado

acabam por expô-lo a custos ocultos ou implícitos mais elevados do que os resultantes do

financiamento público tradicional. A existência de um modelo, internacionalmente aceite, de

reporte e de contabilidade contribuiria certamente para promover uma maior transparência na

celebração de PPP e para um acrescido escrutínio público – temos como ponto de partida o

‘System of National Accounts – SNA’ de 1993 e o ‘Government Finance Statistics Manual –

GFSM’ de 2001.

Posteriormente, o EUROSTAT (2004) procurou definir alguns critérios operativos que

permitissem qualificar os ativos PPP, como públicos ou privados e proceder à respetiva previsão

dentro ou fora do balanço do Estado. E isto tanto para o modelo concessivo, como para o

modelo da Private Finance Iniciative (PFI).

Relativamente ao modelo concessivo (as concessões constituem, pelo menos em

Portugal, a forma jurídica dominante de contratualização de uma PPP), a abordagem da

EUROSTAT é relativamente simples: desde que menos de 50% das receitas do projeto sejam

provenientes de pagamentos pelo sector público (sob forma de subsídios ou outros), a

infraestrutura ficará fora do balanço do Estado. No entanto, surgem algumas questões (v. pag.

245).

Quanto ao modelo PFI britânico – v. págs. 245 e 246.

Relativamente ao modo como se procede ao tratamento orçamental das receitas e

despesas das PPP, importa distinguir consoante os investimentos das PPP sejam qualificados

como privados ou públicos. Assim:

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- caso os investimentos sejam qualificados, de acordo com as regras

contabilísticas supra, como investimentos públicos, a componente corrente dos

pagamentos a efetuar pelo Estado deve ser tratada como despesa primária, ao passo que

a componente de serviço de dívida deverá ser inscrita como despesa de capital. Por

conseguinte, os encargos do Estado assim assumidos afetam, anualmente, o respetivo

défice orçamental e o seu financiamento reflete-se na dívida pública.

- caso os investimentos das PPP sejam qualificados como investimentos

privados, havendo no entanto lugar a pagamentos regulares feitos pelo Estado por

serviços resultantes dos ativos construídos e explorados pelas empresas privadas, tais

pagamentos afetarão o défice orçamental (devem ser inscritos como despesa primária),

mas o valor do investimento realizado é registado no património da empresa privada,

bem como o seu financiamento, não afetando a dívida pública.

Seguindo estas práticas e orientações internacionais, a legislação portuguesa procura

minimizar o risco financeiro em que se traduz a celebração de uma PPP. Da LEO resultam

desde logo, como limitações de natureza procedimental/institucional, a necessidade de as

despesas relativas às PPP (quando deem azo a pagamentos públicos), constarem quer dos mapas

orçamentais, quer nos elementos informativos que acompanham a proposta de lei do OE.

Para além destas limitações da LEO, cumpre mencionar a concretização de uma

cláusula ‘gateway’ no diploma regulador das PPP, no art. 18.º, n.º 3.

Conceitos relevantes: descentralização financeira; descentralização político-

administrativa; descentralização fiscal; independência orçamental; autonomia

financeira

O Estado português é um Estado unitário, parcialmente regional (cf. Art. 6.º CRP). Os

dois subsectores identificados como ‘Regiões Autónomas’ e ‘Autarquias Locais’ traduzem a

expressão máxima da descentralização: podemos assim referi-la como descentralização

político-administrativa, na medida em que elas são pessoas coletivas de população e território

distintas da pessoa Estado, representadas por órgãos diretamente eleitos pelo voto, a quem

representam.

Em ambos os casos, já num plano financeiro, verifica-se de igual modo uma ampla

autonomia, quer no que diz respeito à determinação das funções e do nível de despesa

(‘functions assignement’), quer no que respeita à determinação da receita, mormente da receita

fiscal própria (‘tax assignement’). A descentralização fiscal refere-se pois a este último aspeto

e ela pode desdobrar-se em planos diferentes: por um lado, traduz-se na possibilidade que estas

entidades têm de ser titulares da receita tributária (maxime fiscal), referente a tributos cobrados

nessas circunscrições; por outro lado, traduz-se na autonomia fiscal, ou seja, na possibilidade,

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constitucionalmente conferida, de as mesmas entidades exercerem poderes tributários em

relação a esses tributos/impostos.

Um outro corolário evidente e que resulta da natureza politicamente descentralizada das

Regiões Autónomas e Autarquias Locais, é o da independência orçamental destas entidades

relativamente ao Orçamento do Estado. Ou seja, os orçamentos anuais de cada uma das Regiões

Autónomas e de cada uma das autarquias locais (municípios e freguesias) não constam do OE.

Já quanto ao conceito de autonomia financeira, pode-se retirar da Lei de Bases da

Contabilidade Pública (Lei n.º 8/90, de 20 de Fevereiro) e do Regime da Administração

Financeira do Estado (Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho) e, ainda, do art. 2.º LEO. Ali

encontramos três Administrações Públicas que contêm fundamentalmente dois tipos de

serviços: serviços dotados de autonomia meramente administrativa (‘serviços integrados’) e

serviços dotados de autonomia administrativa e financeira (‘fundos e serviços autónomos’). Os

primeiros podem fundamentalmente realizar atos de gestão corrente.

O segundo tipo de serviços é marcado por uma forma mais intensa de autonomia, a

autonomia financeira. A relação que mantém com os membros do Governo competentes tende a

ser uma simples relação de tutela. A condição fundamental para atribuição do estatuto de

autonomia administrativa e financeira é a de que pelo menos dois terços das receitas respetivas

sejam receitas próprias. A autonomia financeira, teórica e tradicionalmente, desdobrava-se em

quatro dimensões principais:

- autonomia orçamental (stricto sensu) – traduz-se na possibilidade de estes

serviços elaborarem e executarem os respetivos orçamentos, com grande margem de

liberdade.

- autonomia patrimonial – significa a possibilidade e capacidade de detenção e

gestão de património próprio. Insere-se a possibilidade de aquisição, alienação, etc.

- autonomia tesouraria – implica a possibilidade de arrecadação e gestão de

fundos de forma autónoma em relação à tesouraria do Estado. Esta autonomia está hoje,

na prática, fortemente limitada, dada a concretização do princípio da tesouraria única do

Estado, nos termos da qual a gestão das entradas e saídas de fundos deve fazer-se

através da Caixa central e única do Estado, que é o Tesouro público. A única exceção a

esta regra continua a ser a Segurança Social (cf. Art. 48.º, n.º 4 LEO).

- autonomia creditícia – traduz a possibilidade de recurso ao crédito, com ampla

liberdade. Também esta forma de autonomia está hoje posta em crise devido a

sucessivas restrições que têm vindo a ser colocadas.

Em suma, verificamos que, na prática, a autonomia financeira é hoje bastante mais

reduzida do que foi no passado e do que o é na teoria. Na verdade, ela reduz-se hoje à

autonomia orçamental e patrimonial e mesmo, quanto a estas, com sucessivas restrições.

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As relações financeiras entre as Administrações Públicas e os setores empresariais

respetivos, e as relações financeiras entre si

O mecanismo típico, que vem assumindo importância crescente, é o mecanismo da

consolidação de contas. Este mecanismo permite confrontar as receitas e as despesas com um

valor bruto, não consolidado, e as receitas e as despesas com o seu valor consolidado, i.e.

líquido de transferências (para outros sectores).

O Estado financia outros sectores: as Regiões Autónomas, através de uma subvenção

geral e, bem assim, através de uma subvenção específica (Fundo de Coesão para as Regiões

Ultraperiféricas); os Municípios, através de uma subvenção geral (Fundo de Equilíbrio

Financeiro) e de uma subvenção específica (Fundo Social Municipal); as Freguesias, através de

uma subvenção geral (Fundo de Financiamento das Freguesias); as empresas públicas

(nacionais), pela via de financiamentos e indemnizações compensatórias.

A consolidação financeira é um bom instrumento de visualização das relações

financeiras entre sectores, e permite perceber a dimensão dos fluxos financeiros entre todos eles:

os canais de transferências. A informação contabilística a enviar às instâncias comunitárias

competentes é cada vez mais completa, dificultando estratégias de desorçamentação.

O ‘orçamento’ da segurança social: particularismos da estrutura e gestão orçamentais

O orçamento da Segurança Social (OSS) é incorporado no Orçamento do Estado (cf. art.

105.º, n.º 1 CRP). No entanto, o setor da Segurança Social mantém uma considerável autonomia

relativamente à gestão orçamental do Estado central. Ela é a principal exceção à regra da

unidade de tesouraria do Estado. O OSS constitui também uma exceção à regra da unidade em

sentido material: assim, conquanto o orçamento seja formalmente unitário (cf. n.º 3 do art. 105.º

CRP), materialmente descortinam-se no OE ‘micro orçamentos’, de que se evidencia justamente

o OSS. Este particularismo repercute-se, depois, na regra da especificação orçamental.

Na verdade, de acordo com a atual Lei de Bases da Segurança Social (LBSS), a Lei n.º

2/2007, de 16 de Janeiro, o sistema de segurança social desdobra-se do seguinte modo:

- em primeiro lugar, surge o sistema de proteção social de cidadania (dimensão

não contributiva), o qual integra o subsistema de ação social, o subsistema de

solidariedade e o subsistema de proteção familiar;

- em segundo lugar, o sistema previdencial (dimensão contributiva);

- em terceiro lugar, o sistema complementar que integra um regime público de

capitalização, para além de regimes complementares de iniciativa coletiva e individual

(privados).

A esta estrutura particular correspondem, por sua vez, formas diferenciadas de

financiamento. Assim, enquanto o sistema de proteção social de cidadania é financiado por

transferências do OE e também através da consignação de receitas fiscais, já sistema

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previdencial é financiado por quotizações dos trabalhadores e contribuições das entidades

empregadoras. O sistema previdencial é, entre nós, um sistema de repartição. No entanto,

apresenta algumas concessões à capitalização (sistema em que os trabalhadores acumulam

reservas financeiras próprias, destinadas ao pagamento da sua própria pensão uma vez atingida a

idade legal de reforma). Ver o art. 91.º LBSS.

O Decreto-Lei n.º 367/2007, de 2 de Novembro, veio regulamentar a LBSS no que diz

respeito ao financiamento do sistema de segurança social. E, assim, adapta as formas de

financiamento à estrutura do sistema dela resultante – essas formas são: para o sistema de

proteção social de cidadania, o financiamento através de transferências do OE e da consignação

de receitas fiscais; para o sistema previdencial (repartição), o financiamento através das

contribuições sociais.

Concluindo. Em primeiro lugar, o sistema ‘previdencial-repartição’ constitui o epicentro

financeiro de todo o sistema de segurança social. Ele é também a interface que faz a ligação

entre as duas outras componentes do sistema, de um lado, o sistema de proteção social de

cidadania, do outro, o sistema ‘previdencial-capitalização’.

Em segundo lugar, verifica-se que tendo em conta a estrutura atual do sistema, o sistema

de proteção social de cidadania estabelece ‘vasos comunicantes’ financeiros entre as partes que

o compõem.

Em terceiro lugar, verifica-se que o sistema de proteção social de cidadania recebe

indiferecialmente, em bloco, as transferências do OE que depois distribui pelas suas

componentes. Já no que respeita à consignação de receitas fiscais, após a alteração ocorrida em

2010, o IVA passou a ser afeto especificamente ao subsistema proteção familiar. Finalmente,

quanto ao sistema previdencial-repartição, embora as suas principais fontes de receitas sejam as

contribuições sociais, ele pode ser financiado também através de transferências do OE ou por

transferências do FEFSS, se a sua situação financeira o justificar (art. 14.º, n.º 3). Em suma, tal

significa que o princípio da adequação seletiva é unidirecional: ele visa essencialmente proibir a

utilização das contribuições sociais para financiar despesas de caráter não contributivo; mas já

não veda, pelo menos em determinadas circunstâncias, a situação inversa, ou seja, que as

trasnferências do OE possam ser utilizadas para colmatar a situação deficitária do previdencial.