Fogo Cruel Em Lua de Mel

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PERFIL BIOGRÁFICO Nazareno Tourinho, que ainda é autor de uma obra didática editada pela IBRASA, de São Paulo, na coleção Livros que Constroem (Chefia, Liderança e Relações Humanas) e de outra com poesia de crítica social dada a lume pela Prefeitura Municipal de Belém em 2004 (Versos para Pobres e Oprimidos), nasceu em Belém no dia 06 de dezembro de 1934, filho do bombeiro Aristóbulo da Costa Tourinho com Jarina Bastos Tourinho. Foi aprendiz de marceneiro, cobrador de ônibus, balconista de loja de ferragens, marítimo, professor autodidata de cursos livres e jornalista profissional. Seu nome completo é Nazareno Bastos Tourinho. Casado com a funcionária federal Miryam Zagury Tourinho, possui três filhos, todos já com livros de sua autoria publicados: Helena Lúcia Zagury Tourinho, arquiteta, professora universitária com doutoramento, Emmanuel Zagury Tourinho, psicólogo, também professor universitário doutorado e Tânia Regina Zagury Tourinho, igualmente psicóloga, pós-graduada em administração recursos humanos. Nazareno Tourinho conquistou diversas premiações em concursos

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PERFIL BIOGRÁFICO

Nazareno Tourinho, que ainda é autor de uma obra didática editada pela IBRASA, de São

Paulo, na coleção Livros que Constroem (Chefia, Liderança e Relações Humanas) e de outra com

poesia de crítica social dada a lume pela Prefeitura Municipal de Belém em 2004 (Versos para

Pobres e Oprimidos), nasceu em Belém no dia 06 de dezembro de 1934, filho do bombeiro

Aristóbulo da Costa Tourinho com Jarina Bastos Tourinho. Foi aprendiz de marceneiro, cobrador

de ônibus, balconista de loja de ferragens, marítimo, professor autodidata de cursos livres e

jornalista profissional. Seu nome completo é Nazareno Bastos Tourinho. Casado com a funcionária

federal Miryam Zagury Tourinho, possui três filhos, todos já com livros de sua autoria publicados:

Helena Lúcia Zagury Tourinho, arquiteta, professora universitária com doutoramento, Emmanuel

Zagury Tourinho, psicólogo, também professor universitário doutorado e Tânia Regina Zagury

Tourinho, igualmente psicóloga, pós-graduada em administração recursos humanos.

Nazareno Tourinho conquistou diversas premiações em concursos de dramaturgia, uma delas

fora do Brasil: sua peça Pai Antônio obteve a primeira Mención del Concurso Latinoamericano de

Dramaturgia “Andres Bello’ realizado em 1985 emCaracas, na Venezuela, pelo C.E.L.C.I.T.

(Centro Latinoamericano de Creacione e Inverstigación Teatral);

Foi citado em livro por gente importante como Zora Seljan, a esposa de Antônio Olinto, que

fez crítica de teatro e o colocou, na década de sessenta, ente os novos autores teatrais brasileiros, ao

lado de Ariano Suassuna, Dias Gomes e outros (volume Teatro Vivo, p.36 1, Ed. Fundo de Cultura

S.A., Rio de Janeiro, 1962); Teve peças de sua autoria encenadas por Companhias de teatro

profissionais, sob a direção de figuras de renome no cenário teatral brasileiro (Cláudio Correa e

Castro dirigiu a peça Nó de 4 Pernas no Rio de Janeiro e Wolff Maia dirigiu Fogo Cruel em Lua de

Mel, em São Paulo tendo no elenco Vic Militelo, a “Dakinha” na novela Estúpido Cupido);

Foi consagrado em sua terra como escritor teatral, tendo sido eleito, com menos de trinta e

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cinco anos, membro efetivo e perpétuo da Academia Paraense de Letras;

Pagou o preço da dignidade como escritor de arte cênica: na época da ditadura o ministro

Alfredo Buzaid proibiu a circulação em todo o território nacional do livro contendo sua peça Lei é

Lei e Está Acabado, mandando a polícia federal apreender os exemplares, fato noticiado em

manchete de primeira página do jornal O Liberal, de Belém do Pará, edição de 26/06/1971;

Teve 12 peças teatrais de sua autoria divulgadas em livro (5 pela UFPA, em volume de mais

de 400 páginas editado em 1976);

Teve uma peça — Nó de 4 Pernas — sua publicada pela Sociedade Brasileira de Autores

Teatrais — SBAT (Revista de Teatro, edição n° 457, janeiro/fevereiro/março de 1986) e pela

Secretaria de Cultura do Governo do Estado de São Paulo (Caderno Teatro da Juventude, ano 2, n°

3, agosto de 1997);

Recebeu de instituições respeitáveis na capital paraense reconhecimento público pela

importância da sua obra dramática: o TAP — Instituto de Artes do Pará denominou Prêmio

Nazareno Tourinho, o prêmio de seu concurso literário anual; a TV CULTURA fez todo seu

programa REGATÃO CULTURAL do dia 14/04/2009 sobre as peças teatrais do autor em foco, e a

UNAMA tem no seu Projeto Memória um vídeo de uma hora de duração sobre a vida e obra de

Nazareno Tourinho;

Em 2010 o Primeiro Seminário de Dramaturgia Amazônica, organizado na ETDUFPA pela

Profa. Dra. Bene Martins – ação do Projeto de Pesquisa: Memória da dramaturgia amazônida:

construção de acervo dramatúrgico – escolheu Nazareno como autor homenageado;

Através do decreto n° 16 de 27/07/2012 a Assembleia Legislativa do Estado do Pará criou a

Comenda do Teatro Paraense Nazareno Tourinho.

Fogo Cruel em Lua de Mel

PRIMEIRO ATO

GIL, de camisa social e gravata desatada, mexe em uma maleta, no divã; para, examina o guarda-roupa vazio onde somente o paletó aparece; coloca o rádio-eletrola em funcionamento com um disco de música popular; começa então a retirar peças de homem da maleta e arrumá-las em uma das filas de gavetas do guarda-roupa; durante esta operação tem o cuidado de esconder uma garrafa embrulhada; quando acaba não resiste a tentação de olhar o conteúdo da outra maleta que se

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encontra em cima da cama, semiaberta, mas, tão logo abre a tampa da mesma, ouve-se o ranger de um trinco; ele afasta-se disfarçando. ELZA sai do banheiro ostentando uma camisola de cetim branco, extremamente sóbria; seus gestos são retraídos e cerimoniosos.

ELZAEnfim...GILEm fim não, em começo...ELZAEstou bem?GILEstá linda, meu amor. Exuberante. Esplendorosa como diria Olavo Bilac...ELZAObrigada. Pena é que nunca saiba quando fala sério ou quando faz troça. Você vive rindo, Gil.GILAté disso me acusa?ELZANão estou acusando.GILNem pode, hein? A partir de hoje acabaram-se as "retaliações mútuas, só haverá lugar para união e afeto". Foi você quem fez a proposta, tem de cumprir a sua parte.ELZAÉ claro que cumprirei.GILFaço votos de que assim seja, "pelos séculos e séculos, amém"...ELZA(Repreensiva) Gil!GILO que foi, eu disse algo errado?ELZANós combinamos que você terminaria, de uma vez por todas, com as suas indiretas à religião.GILEu pixei a tua religião.ELZAEsta expressão "pelos séculos e séculos, amém" é católica e você empregou por ironia.GILBobagem, eu nem pensei em catolicismo.ELZAA gente pode ser irônico sem ter consciência disso. É o seu caso, você é instintivamente irônico, precisa superar esta tendência e isto me prometeu, fora outras coisas. Não esqueça que, além de ter prometido solenemente — até jurou em nome de DEUS, apesar de ser ateu...GILNaquele dia eu estava bêbado.

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ELZAAlém de ter prometido solenemente levar avante um trabalho de reforma do seu caráter, precisa mesmo disso para o seu próprio bem, inclusive para o bem da sua obra literária.GILElza, meu amor, espera aí, sinal fechado. Para espinafrar o meu caráter você tem competência, mas de literatura não entende patavina. Aliás ficou acertado em nosso acordo que você respeitaria os meus versos como eu vou respeitar as suas rezas; amor, amor, manias à parte...ELZANotou uma coisa?GILNotei que você está linda.ELZAE eu notei que até no dia de hoje estamos discutindo.GILDiscutindo não, papeando, dialogando. Comecei elogiando a tua beleza, você achou que eu queria fazer troça, desviou ao assunto. Ponto final no mal entendido. Já bastam as sete discussões por semana em cinco anos de namoro e quatro por dia em seis anos de noivado...ELZAEsta é outra característica da sua personalidade: gostar de discutir. No fundo. sabe o que é isto? Necessidade de afirmação, necessidade de contradizer os outros para se mostrar superior. Falta de maturidade, de amadurecimento do Ego. GILFalta de amadurecimento, ou excesso de apodrecimento, quem tem é aquele teu professor. Aquele cara ou é muito infantil ou já está gagá; é por isso que não embarco na canoa furada da Psicologia de vocês. Imagina que hoje, depois de comer oito empadas e beber uns oitenta copos de vinho, durante a recepção, ele quis me convencer de que o Diabo existe...ELZAGil, você discutiu com o padre Florêncio???GILQue jeito? Ele me encheu o saco...ELZAGil, que termos são esses?!GILDesculpa o "encheu o saco".ELZAAinda repete.GILMas que ele foi um chato, foi. Está certo que na cerimônia da Igreja eu ouvisse com paciência todo aquele sermão quadrado sobre Adão e Eva para justificar o casamento. Está certo. O outro estava na função de padre, tinha o direito de doutrinar a moda da casa. O teu professor porém não estava na função de padre, nem de batina estava, foi na recepção apenas para comer empada e beber vinho...ELZAQue injustiça! Ele não foi lá para isto.GIL

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Ah, não? Então foi para me converter? Você mandou? Que ingenuidade!... Já se ver que ele pode ser muito bom como padre, mas como professor de Psicologia é um debilóide. Bem que eu te aconselhei a estudar na capital.ELZAÉ, se houve ingenuidade não foi dele, foi minha.GILPositivo. Sabe, meu amor, você também pode ser espetacular como filha de Maria, mas como Assistente Social não vai conseguir recuperar ninguém. Eu, pelo menos, vai ser difícil...ELZAGil, você pretende me desgostar até neste dia? Pois eu vou arrumar as minhas coisas, dormir, e não falo mais uma palavra.GILDuvido...ELZAPois vamos ver.GILNão vamos ver não. Desta vez eu prometo, não só solenemente, sacramente, que não discutiremos mais esta noite. Contudo não vamos dormir... Afinal, esperamos, quase uma dúzia de anos por esta noite.ELZAQuase doze anos... Não se envergonha disso?GILNão. Até achei gozado quando tua vizinha disse que o nosso namoro tinha "encroado". Também se deve dar um bom desconto nesses anos todos de romance: tirando o tempo que passamos brigados não sobra nem dois anos. Cada pileque que eu pegava você lizava uns oito meses sem falar comigo. Somente porque publiquei aquele poema sobre a beleza do sexo amarrou a cara dez semanas. Os dois anos que durou o rompimento do primeiro noivado foi a maior bobeira tua; eu me envolvi naquela arruaça na asna por mero acaso: um amigo me levou até lá a fim de que desse uns conselhos para a irmã dele...ELZAEu sei!GILSabe nada, meu amor, você vê pecado em tudo com essa sua mania de religião.ELZAVai começar de novo? A única coisa que eu não admito é que espezinhe a minha fé. E você...GILEu prometi, sei, e não estou espezinhando. Só acho que não havia necessidade de exagerar tanto.ELZANão exagero Apenas...GILNão exagera? Sempre ameaçou entrar para um convento se eu não me regenerasse. Esta expressão, regenerar, é tua: eu nunca entendi exatamente o que ela significa no meu caso; afinal de contas não sou nenhum degenerado, sou simplesmente um sujeito que se mistura com os outros e faz o que os outros fazem porque não se julga melhor do que ninguém. Escuta,

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meu amor, me explica agora uma coisa. Nunca entendi porque toda vez que a gente terminava o namoro, e depois o noivado, você se preparava para entrar no convento. No princípio eu pensava que era uma espécie de chantagem sentimental. Raciocinava: assim como algumas dizem "vou me suicidar", ela diz "vou ser feira", que é muito pior... depois pensei que, se fosse chantagem, você teria desistido do recurso ao ver que ele não dava resultado. Então cheguei à conclusão de que, no fundo, você não tinha vocação para esposa e sim para freira, que no fundo não me amava bastante.ELZAGil, você chegou a pensar um minuto sequer que eu não o amasse bastante?GILPensar, pensei.ELZAQue bobinho!GILIsto foi o que retardou a minha decisão fatal, digo, final...ELZAPois eu jamais duvidei do seu amor, apesar de todas as suas loucuras. Sempre que nós estávamos brigados eu lia antes de dormir, sem falhar uma noite, aquele poema que você fez para mim.GILQual?ELZAGil, não lembra? Mas como é leviano!GILOra, meu amor, eu fiz tantos poemas para você... Ah! Já sei. (Recita em tom pausado e meio chistoso.)"Os pássarosDescendo das árvores verdes, inocentemente verdesPousarão sem sustos, inocentemente pássarosNo teu seio...E com os pássaros também eu Sugarei em ti o leite da inocência...Foi este ou não foi?"ELZANão.GILFoi sim. Se errei diz qual foi.ELZAFoi aquele em que você descreve todas as razões pelas quais me ama e termina revelando a razão fundamental.GILQual era mesmo a razão fundamental?ELZAGil! Tem a coragem de confessar que esqueceu até este detalhe?GIL

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Não são tantas as razões que figuram no poema? Como eu não poderia esquecer uma?ELZAMas esquecer logo a fundamental?GILTodas as razões do meu amor por você são fundamentais... Agora eu devo ter escolhido uma como metáfora, compreende?ELZANão, Gil, isto eu não perdoo.GILPois vou escrever um soneto - soneto, ouviu? - somente para dizer que todas as razões do meu amor são fundamentais.ELZAQuando?GILAmanhã.ELZANão, hoje.GILHoje nós vamos fazer um programa lírico mas não na base da literatura...ELZAHoje sim. Quero rimado e metrificado. Vou até dormir logo para facilitar.GIL(Alegre, bonachão.) Está pensando que entrou para o convento? Não entrou não, ouviu? Em convento é que se dorme cedo; quem casa dorme tarde, pelo menos na primeira noite...ELZAVocê falou, falou e não recordou a razão fundamental do seu amor. Que pena!GILToda memória tem limite. Sou capaz de apostar que você também não acerta dizer a tal razão usando as mesmas palavras por mim escritas.ELZAAcerto, sim senhor.GILAcerta nada.ELZASe eu acertar você faz uma coisa para mim?GILFaço, o que é?ELZADigo depoisGILAposta fechada.ELZAVocê escreveu assim: "Amo-te sobretudo porque es o outro lado de mim mesmo".

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GIL(Batendo palmas zombeteiro.) Parabéns a você pela memória e parabéns ao poeta pela falta de talento...ELZAPerdeu a aposta e vai ter que fazer uma coisa para mim: não somente me levar à igreja domingo, mas... assistir a missa comigo.GILNegativo. Disso, meu amor, perde as esperanças. Francamente, é incrível que você se conserve tão beata numa época em que todo mundo está mandando brasa.ELZAGil, Pelo amor de DEUS, não recomeça. Bem, vou arrumar as minhas coisas e dormir. (Remexe a maleta em cima da cama, dirige-se ao guarda-roupa para alojai/- algumas peças; GIL vendo que ela vai abrir a gaveta onde ele escondeu a garrafa apressa-se em evitar isto.)GILOlha, guarda as tuas roupas na outra fila de gavetas que aqui eu pus as minhas.ELZAÉ melhor. Não quer que eu arrume as suas coisas? Não, não, pode deixar, já arrumei tudo bem arrumadinho, guarda os teus bagulhos. Quer que eu ajude?ELZANão, obrigada, uma das lições que aprendi em Psicologia é que o marido não deve tomar conhecimento dos objetos íntimos da esposa.

GIL

De acordo. Até certo ponto...

ELZA(Ao transferir as peças da maleta para o guarda-roupa passa escondido um pequeno volume, distraindo a atenção dele com a fala que segue.) Já reparou como este Quarto é interessante?GIL

Meio fajuto, não acha?

ELZADepois que você fez a reserva eu telefonei para o gerente...

GIL

Então foi isso...

ELZA

Telefonei, me identifiquei como a futura esposa e pedi que a decoração do quarto fosse toda branca, se possível.

GILE não me falou nada.

ELZA

Meu amor, não me leva a mal, mas em matéria de decoração você também anda desatua1izada, pelo menos uns duzentos anos.

ELZA

Gil, não percebe a significação?

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GILQue significação? Psicológica?

ELZAO simbolismo...

GIL

Que simbolismo? Teológico?

ELZA

Poético, Gil, onde está a sua sensibilidade? O branco não é a cor da pureza?

GILNão, não é. A pureza não tem cor. A pureza é transparente como a água. E comoo vidro, que um dia se quebra...ELZAVocê nasceu mesmo para ser do contra em tudo. Sempre ouvi dizer que o branco representa a pureza.GILE daí?ELZADaí ter sido natural que eu escolhesse para a noite nupcial uma decoração brancacomo o meu ideal.GILRimou, hem? É, o teu negócio é mesmo rima. E eu digo que isto é muito mais pouco legal. E com tanto “al” só há um jeito deu engolir este mingau: trocar de roupa para o cerimonial de nossa primeira noite como casal... Tchau. (Abre uma das gavetas, tira algo e se tranca no banheiro.)ELZAÉ um maluquinho... (Sorri, enlevada; coloca no rádio-eletrola um disco de música clássica; mira-se no espelho da penteadeira; a seguir abre a janela e se demora olhando para fora; GIL sai do banheiro sem fazer barulho, metido desajeitadamente em um pijama vermelho berrante, aproxima-se dela sorrateiro afim de assustá-la; ela vira-se.)GILQue tal eu?ELZAGil, você não tinha um pijama doutra cor?GILNão, não tinha. Infelizmente não combina muito com a tua decoração. Quem mandou fazer segredo, não me avisar.ELZATem sim outro pijama. Vou ver.GIL(Impedindo-a de abrir as gavetas.) Nada disso, meu amor. Primeiro, eu não tenho mesmo outro pijama; me perdoa a informação, mas até ontem eu sempre dormi de cueca. Segundo: este pijama foi um presente que a minha mãe me deu justamente para ser usado hoje. Ela é tua fã, no duro. Imagina o que me disse quando entregou o embrulho de manhã: meu filho, não esqueça de vestir isto hoje; agora acabou-se o costume feio de dormir nu”.ELZAGi1, tenha modos.

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GIL(Encosta-se à janela e aponta para o exterior.) A paisagem é uma curtição mas a podia ter ficado pelo menos no terceiro andar. Quando fiz a reserva pedi no indo andar. Amanhã reclamo e se troca de apartamento. Hotel mixuruca.ELZANão adianta reclamar, O gerente me explicou que dormitório com decoração branca só tinha no quinto andar, eu concordei.GILEntão não se fala mais no assunto. Você tem toda a sua razão e eu ainda lhe dou minha. Satisfeita? No último andar estamos mais perto do céu...ELZAVai começar outra vez com a ironia?GIL(Rindo) Absolutamente. As homenagens da noite pertencem à pulcra donzela e eu me ajoelho em doce submissão. Esta noite tenho o sacrossanto dever de ser gentil com você, na medida de todas as minhas possibilidades...ELZAPois não está cumprindo com esse dever.GILNão? Não estou sendo gentil? Cometi alguma falta?ELZACometeu.GILAlguma indelicadeza?ELZAVárias. Um delas imperdoável.GILUai! Nossa lua de mel ainda nem começou e será que já dei alguma mancada?ELZAGil, que linguagem!GILMancada não é palavrão, é gíria. Qual foi a indelicadeza imperdoável que eu cometi?ELZANão digo.GILDiz sim.ELZANão.GILVamos, fala senão vou ficar chateado, encabulado, complexado como você costuma dizer.ELZAÉ preferível esquecer.GILDe jeito nenhum. Fala. Estou preocupado com a monstruosidade cometida.ELZAVocê não se preocupa com nada, Gil, leva tudo na brincadeira.

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GILDesta vez não estou levando. Por favor, Elza!ELZABem, vou dizer. Quando entramos no quarto você... (O telefone toca, Gil atende.)GILAlô... é... do apartamento da Elza, sim... noivo não, marido.., é ele mesmo, está na cara, quem a senhora queria que fosse?... (Larga o fone.) Desligou. Um trote. Mulher. A voz não me é desconhecida. Vamos, continua.ELZAQuando entramos no quarto você não me carregou...GIL(Gargalhada)Está é boa!ELZAEu não digo que você faz piada de tudo?GILElza, meu amor, esta estória de noivo carregar a noiva para entrar no quarto dia do casamento é um troco ultrapassado, cocoroca, cafoníssimo, coisa do século quinze.ELZAMas me agradaria. E não teria custado tão grande esforço a você.GILComo e que eu ia adivinhar que você esperava isso de mim? Depois de onze anos de namoro...ELZAÉ no que dá o seu desprezo pela Psicologia.GILComo você é romântica, Elza. É bacana isto, sabe? Porém, se não tivesse sido educada num meio tão fechado... Escuta, meu erro será reparado automaticamente — se não carreguei você na entrada do quarto vou carregá-la, em compensação, a vida toda...ELZAOlha a ironia, Gil. Será possível que quando você não está discutindo nem fazendo troça está sempre ironizando?GILO que eu posso fazer? Nasci assim, não tenho culpa. (O telefone toca, ele atende.) Alô... é o Gil... (Larga o fone.) Desligaram novamente. Eu conheço essa voz. Da próxima vez vou mandar a...ELZADa próxima vez deixa que eu atendo.GILQuer saber duma coisa? Somos uns bobocas, estamos agindo como duas crianças. Será que todo casal, nos primeiros momentos da lua de mel, fica assim baratinado?ELZAVocê é mesmo um meninão.GILEu não, nós. Estamos agindo como duas crianças. A prova disso é que, sozinhos aqui há quase uma hora, ainda não fizemos uma coisa que somente as crianças não fazem...ELZAGil!

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GILNão é isto que você pensou... Quero dizer que ainda não nos beijamos.ELZAGil...GILSim?ELZATenha...GILModos? Daqui em diante é proibido dizer: “Gil, tenha modos”. Já ouvi esta frase oitocentas e noventa vezes. É pecado beijar depois de casado? Ora, meu amor, tem dó.ELZAVocê fala de uma forma tão direta, tão rude... Quando o amor é espiritualizado as suas manifestações não chocam, tudo nasce naturalmente... um beijo não é um cigarro, que se queima sem qualquer finalidade, sem qualquer motivação, sem qual quer impulso da alma...GILVá lá que seja, vamos ser sutis, refinados. Mas agora eu vou ganhar um beijo, não vou? (Tenta beijá-la, ela se esquiva.)ELZAGil...GILElza, meu amor, o próprio recato tem um limite, mesmo para uma dirigente de Congregação Mariana.ELZAGil, eu...GILCompreendo o teu acanhamento, mas que diabo.ELZANão é acanhamento.GILPuxa vida! Como você é tímida. Às vezes penso que não sente atração física por mim.ELZANão é isso.GILSei o que é, você emprega muito o nome: inibição.ELZAVamos conversar.GILConversar mais do que já conversamos? Precisamos é passar da teoria para a ação...ELZAVocê viu como a sua prima estava com uma saia escandalosa, acima do joelho?GILDeixa de mão a minha prima que falar mal dos outros é que é pecado, e pecado mortal, porque quando a gente se habitua a malhar o próximo morre se intrometendo na vida alheia. No momento eu me acho interessado exclusivamente num beijo.ELZAJá viu quantos discos tem aí? Até Chopin.

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GILUm beijo, meu amor, se não for por afeição seja ao menos por compaixão.ELZAViu as revistas? Se houver alguma pornográfica joga fora.GILUm beijo, Elzinha.ELZAMais tarde, temos uma vida inteira pela frente.GILMeu amor, seja razoável. Quantas vezes nós nos beijamos nesse tempão de namoro?ELZADuas...GILDuas não, quatro. Mas também se pode reduzir este número para zero. Da primeira vez você fechou os olhos para adivinhar o título do livro, eu aproveitei, porém o teu pulo estragou a festa. Da segunda vez eu apelei para a ignorância, porém o teu grito acordou quase todos os vizinhos. Da terceira vez você ficou tão trêmula que eu desisti no meio com medo que desmaiasse. Da quarta vez, a única que deve ter sido quente, eu confesso que estava completamente embriagado...ELZAO meu soneto, começa logo a escrever, anda.GILO tema deste instante é um beijo na boca e não no papel.ELZANo dia em que nós sairmos daqui minha primeira providência será encomendar uma dúzia de pijamas para você.GILÉ... Sabe, Elza, vez por outra me ponho a refletir... como a gente pode se amar verdadeiramente sendo você tão pura e eu tão despudorado... Como podemos voltar o namoro tantas vezes, eu sempre querendo beijar, você nunca querendo beijar... Você tem alguma prevenção contra o beijo?ELZAPrevenção?GILAlgum escrúpulo?ELZANão é isso, Gil.GILSei, não é mesmo. Se fosse escrúpulo a tua recusa seria apenas em relação ao beijo. Mas você jamais deixou que eu pegasse nas suas coxas...ELZAGil!GILÉ mentira? Nos peitos eu peguei uma vez à pulso...ELZAGil, se comporte como um cavalheiro...GILÀs vezes eu penso que você não gosta de mim.

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ELZASe não gostasse me casava?GILExiste tanta gente que casa por...ELZAPor interesse?GILNão insinuei isto. Existe tanta gente que casa por...ELZACuriosidade? Solidão?GILSei lá... Por tudo isso, menos por amor... Eu quero dizer que a maioria das pessoas casam sem saber por que... Casa para não deixar de casar...ELZAGil, você percebe que está sendo grosseiro comigo?GILPercebo. O que não consigo perceber é se... (O telefone toca.)ELZADeixa que eu atendo.GIL(Antecipando-se a ela.) Alô.., é ele... tudo bem... tudo magnífico... quem fala?.., ah! É a senhora?... sim... estamos conversando.., muito... conversa agradável, deliciosa nós nos entendemos perfeitamente, maravilhosamente, a senhora sabe... pois não, boa noite... vou entregar o fone a ela... boa noite. (Larga o fone.)ELZAÉ a mamãe?GILDevia ter desconfiado.ELZA(Ao telefone.) Mamãe?... sim... ainda não... não se preocupe... não disse, não... fique tranquila.., é... um beijo. (Desliga)GILAinda não disse o quê?ELZANada.GILNão disse a quem?ELZAA ninguém, Gil, que insistência! Quando você cisma com uma coisa não larga mais. Este seu problema de fixação é uma característica de insegurança.GILBom, já que eu tenho um problema de insegurança e você tem segurança suficiente, vamos deitar...ELZAE o soneto, não escreve mesmo?

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GILAmanhã. Agora vou tratar de fazer algo mais prático: pagar a luz. (Executa)ELZAGil, está escuro.GILClaro...ELZADetesto escuridão, tenho fobia.GIL(Atirando-se na cama.) Eu já estou no meu posto de comando...ELZA(Acende a luz do abajur.) Tenha paciência, nós vamos dormir com esta luz acesa. É fraquinha, não vê?GILA luz do abajur pode ficar acesa. Porém se nós vamos dormir eu não garanto...ELZAVocê se deita como se fosse um homem primitivo, um índio, um selvagem.GILEsta censura eu não aceito. Índio deita pelado e eu, por obra e graça da minha mãe, estou vestido à rigor. Pelo menos por enquanto...ELZA(Sentando-se na beira da cama, cuidadosamente.) Gil, olha a decência.GILElza, meu amor, se não te conhecesse há mais de dez anos não acreditava. Como pode existir uma mulher cheia de...?ELZAPor favor, basta de me criticar.GIL(Tentando puxá-la.) Vem logo, deixa de charminho. Para você, neste momento, pudor não é virtude, é doença...ELZA(Retraindo-se) Você me desnorteia com esses seus gestos inconvenientes.GILOs meus gestos não são inconvenientes, eles convém, depois você me dará razão...ELZAGestos quase agressivos.GILNão exagera, Santa Terezinha dos pobres...ELZAContinua debochando, continua me ofendendo até cansar. Tudo cansa.GILÉ, tudo cansa...ELZAPor falar nisso eu estou cansada, extenuada, o dia hoje foi tão agitado, tão fatigante! Vamos repousar de vez?

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GILEu já estou repousando. E você, por que não deita?ELZAPromete ficar quietinho?GILPrometo.ELZAPromete mesmo?GILPode confiar.ELZAPromete dormir logo?GILJuro. Pela minha honra. Aliás, pela sua...ELZAEntão vamos dormir que eu estou exausta. (Demora-se ajeitando a colcha, o travesseiro; Gil ri da hesitação dela.)GILPode deitar que não corre nenhum perigo. Já jurei, torno a jurar. Juro por esta luz que me alumia... (Apaga a luz.)ELZAGil sem vergonha! (Acende o abajur.)ELZAAté amanhã, um sono luminoso. Seja feita a vossa santa vontade, assim na cama em tudo o mais. (Deita-se de costas para ela; Elza espera; Gil simula iniciar o ela então prepara-se para deitar, ele a observa veladamente com ar de satisfação; O telefone toca.)ELZAÉ mamãe.GILMas que aporrinhação!ELZAGil! O que você disse?GILDesculpa, eu ia pegando no sono, o barulho me perturbou.ELZA(Ao telefone.) Mãe?... sim... ainda não... sim... não...GILPensando bem esta velha está fazendo uma ligeira safadeza com a gente. Será que vai querer acompanhar por telefone?ELZANão se preocupe, mamãe... ele é bonzinho... insistiu.., continua insistindo... não, sim... outro para a senhora. (Desliga)GILMeu amor, você não acha que os cuidados da sua mãe estão sendo demasiados? Eu reconheço que gozo de péssima fama nesta aldeia mas não me consta que alguém tenha motivos para me julgar um tarado.

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ELZANão é isto, Gil, mãe tem dessas coisas. Vamos dormir que amanhã é outro dia. (Senta-se na cama, facha os olhos em postura de concentração interior.)GILO que foi? Está se sentindo mal?ELZAEstou rezando. Não quer rezar comigo?GILBrincadeira tem hora. O que eu quero é outra coisa.ELZAReza comigo, Gil, o que custa?GILO meu programa hoje não tem nada de místico.ELZASó uma Ave Maria.GILReza por mim que eu quebro teu galho noutro sentido...ELZADEUS tenha piedade de você. (Reza, Gil acende um cigarro; ela acaba e deita-se cautelosamente.)GILEnfim à sós e deitados...ELZAEstá fumando? Não ia dormir logo?GILO cigarro chama o sono.ELZAVamos dormir logo que estamos muito tensos, precisamos relaxar.GILEu, como você não ignora, sempre fui extraordinariamente relaxado...ELZABoa noite. (Acomoda-Se para dormir, enrolando-se no lençol. Pausa. Gil vacila, acende outro cigarro, passeia pelo quarto, vai à janela, senta no divã, levanta, pega o telefone, larga-o sem discar, folheia uma revista, bota a mão na testa em pose de ditação, dirige-se à cama. Elza começa a respirar profundamente como quem dorme; ele faz um giro, tira da gaveta do guarda-roupa a garrafa que escondera, destampa-a, bebe um trago, outro, mais outro; caminha lentamente até a penteadeira e, contemplando a sua imagem refletida no espelho que ela tem, passa a dialogar consigo mesmo, sempre intercalando as frases com mais alguns tragos de bebida.)GILGil, sujeitinho vil, que rima com imbecil... E agora?... Fala bicho, e agora?... O que é que tu vais fazer?... Sai dessa... Hem? O que é que tu vais fazer?... Agarrar a força?...Resolver a parada de qualquer maneira?... Ou dormir como um carneirinho?... Não, dormir, não dá... Esvaziar a garrafa? Beber tudo, te embriagar?... É o cúmulo, Gil, teres que encher a cara na primeira noite de casado... Bonito para ti... Ela dormindo, tu aí feito um palhaço... Sugestionado pela pureza dela... Acreditas nisso? Acreditas, sim... Acreditas, nada... Mas acreditando ou desacreditando aceitas a situação... É, aceitas e estás disposto a fugir do problema te

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embebedando, burramente, como se um pileque a mais fosse a solução... Vais dar uma de moço educado, pela milésima vez... Que fingimento! Teu ou dela? Escuta, Gil, tu tens ou não tens tutano para resolver a parada?... Se tu tens sai para a apelação e descasca o abacaxi na base da violência... Se ela espernear que se dane... Deixa de ser besta, quem sabe não é isto que ela está querendo?... Como é, decide ou não decide?... Não, é melhor esperar... Ela é muito sensível... Pode até chorar... Fazer uma tolice... Telefonar para a mãe... A velha com certeza ainda não dormiu, está de olho em nós, grudada no telefone aguardando qualquer comunicação... Velha cínica... Gil, só há uma saída, a de sempre... Ela não tem culpa, ninguém tem culpa de ser como é... A vida é que faz cada um... A educação... O ambiente... Coitadinha, despejaram na consciência dela uma tonelada de falso pudor... (Elza vira-se na cama, ele apressa-se em esconder a garrafa e o faz sem muita firmeza: já sente os efeitos iniciais da bebedeira.)ELZAGil, por favor, não bebe mais.GILUai! Você estava acordada?ELZANão...GILE como sabe que eu bebi?ELZAVamos dormir. Amanhã nos divertiremos como você deseja.GILOuvindo tudo caladinha, hem? Traindo a minha boa fé. Enganadora. Elza, sinceramente, você me decepcionou.ELZASeja compreensivo. É natural que eu me sinta constrangida... e também decepcionada: nunca pensei que você fosse capaz de trazer uma garrafa de bebida para a nossa lua de mel...GILEu não ia beber hoje, você é que me obrigou. (Gagueja as últimas sílabas.)ELZAParece que já se encontra meio embriagado...GILÉ, parece. E uma vez que você, fingindo dormir, descobriu que tomei uns goles posso beber mais. (Volta ao guarda-roupa em busca da garrafa e, por equívoco, abre a gaveta onde Elza igualmente escondeu o seu volume; pega-o e verifica que se trata de uma imagem de santo; Elza pula da cama, acende a luz do teto.)ELZAGil! Por que mexeu nas minhas coisas?GILNão reparei que a gaveta era tua. Que troço é este?ELZAUm santo, não está vendo?GILQue santo?ELZA

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Santo Antônio.GILE você traz isso para a nossa lua de mel?ELZAQue mal faz?GILEncabula. Ora bolas, onde já se viu tamanha pieguice.ELZAHerege.GILHerege não. Afinal, isto aqui é um quarto de casal, não é um oratório. É ou não é? Responde!ELZANão precisa se exaltar.GILEstou começando a engrossar, ouviu? Vou beber mais uma dose para acalmar...ELZAGil, a bebida transtorna você.GIL(Coloca a imagem na gaveta dela e apanha a garrafa na sua.) Não é a bebida que está me transtornando, é outra coisa. Acho que o jeito é sair dando canelada...ELZAGi1, pelo amor de DEUS.GILNão mete DEUS neste negócio, já basta o Santo Antônio... (Engole mais um trago deposita a garrafa em lugar destacado na penteadeira; Elza pega a garrafa, guarda-a na gaveta dele e no lugar da garrafa coloca a sua imagem.)ELZANão se aborreça, o seu juízo está um pouco afetado pela ação do álcool, você vai dormir e neste lugar fica o Santo Antônio, já que também descobriu o que não devia.GILEsta é boa... Não quer fazer a coisa completa? Acende logo uma dúzia de velas...ELZAProssiga com a ironia, Gil, é a sua especialidade...GILVocê acende uma dúzia de velas e a gente reza uma ladainha...ELZAO melhor que eu faço é mesmo dormir. Boa noite. (Apaga a luz do teto deixando acesa a do abajur; acomoda-se na cama, cobrindo-se; Gil sorve mais bebida, detém-se diante do Santo Antonio, fitando-o.)GILEste teu Santo Antônio parece um charuto... É quase do tamanho de um charuto. Tem quase a cor de um charuto... E eu acho que a cor do pijama dele também não está de acordo com a decoração do quarto...ELZAGil, Pelo amor de DEUS, vamos dormir...

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GILVamos, só que eu vou dormir no divã. Desde que você me recusa como esposo a gente dorme separado. Pelo menos assim eu posso apagar a luz e você não fica com medo de ser comida pelo bicho-papão. (Apaga a luz do abajur, deita no divã. Pausa. Gil, começa a respirar de forma acentuada e irregular; sobre a porta branca do guarda-roupa, ao fundo da cena escura, um projetor de slides lança figuras coloridas que se sucedem acompanhadas de sons metálicos sugerindo delírio sonambúlico de Gil. Aparecem as seguintes figuras: Elza vestida de noiva com véu e grinalda, um padre abençoando, alegoria de Adão e Eva no paraíso, Elza em traje de passeio tentando afastar do seu busto as mãos de Gil, a imagem de Santo Antônio em relevo, Elza com a roupa de dormir que ora veste, Elza somente de calcinha e sutiã, Elza em pose de oração, uma senhora parecida com Gil entregando-lhe um embrulho, ele retirando do embrulho um pijama vermelho, Elza envolta no lençol, apenas a face de Santo Antônio inclinada, um padre à paisana segurando um copo de vinho e uma empada, Elza quase despida, Santo Antônio em corpo inteiro, Elza inocentemente despida. Esta última figura some como um relâmpago sob ruídos estridentes. Gil acorda assustado e acende a luz do teto; Elza senta-se na cama.)ELZAO que foi?GILPesadelo.ELZABebeu demais. Não quer deitar aqui?GILNão aguento ficar ao lado de você como uma estátua.ELZADe amanhã em diante, Gil...GILO meu caso é hoje. Estou indócil.ELZAPensa noutra coisa.GILNem dormindo eu consegui.ELZANão custa esperar um dia.GILNão custa uma ova! Eu não aguento esperar mais nem uma hora.ELZACom um pequenino esforço...GILNem meia hora. (Acerca-se dela, resoluto.)ELZAGil...GILNem dez minutos.ELZAMas...GILNem três minutos.

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ELZAPor favor...GILNem um minuto.ELZAGil, o que é isto?GILChega, meu amor, chega! Se você está apavorada pode correr e se trancar no banheiro porque eu... (Apaga a luz do teto, Elza acende imediatamente a do abajur.)ELZAGil você ficou com o pensamento conturbado?GILEu já nem tenho pensamento para ser conturbado. Eu já nem tenho cérebro, só tenho nervos, nervos excitados, compreende? É como se todo o meu sistema nervoso estivesse carregado de eletricidade, compreende? Você precisa compreender, o homem é diferente da mulher, há momentos em que não pode se conter, compreende?ELZACompreendo sim.GILEntão por que não cede?ELZAVocê está se mostrando tão áspero. Nunca pensei...GILEu é que nunca pensei, meu amor, que você levasse tão longe esta tua anormalidade?ELZAAnormalidade? O que está querendo dizer, Gil?GILEu já não sei o que estou querendo dizer, já não sei nem se estou querendo dizer. Mas que o teu comportamento não é normal, não é.ELZAAmanhã eu explico; amanhã.GILVocê tem alguma aversão física por mim?ELZAAversão?GILSó pode ser.ELZAQue absurdo!GILEntão você se sente feliz em me maltratar.ELZAGil!GILSente prazer em me torturar.

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ELZAGil, isto é sadismo.GILLógico que é sadismo.ELZAEstá me chamando de sádica?GILTalvez não seja bem sádica, seja...ELZAO que, Gil?GILMais ou menos masoquista.ELZAQuanta brutalidade.GILBrutalidade uma joça! Ou você gosta de me fazer sofrer ou gosta de fazer sofrer a si mesma. Das duas, uma, não há justificativa para a tua conduta.ELZAHá, sim. Amanhã eu explico, não disse?GILQue justificativa pode haver? Se realmente há, fala, não fica me cozinhando em caldo morno.ELZAGil, eu juro por Nosso Senhor Jesus Cristo como há uma justificativa que você amanhã entenderá.GILE por que amanhã? Estou farto de ouvir você dizer amanhã, amanhã. Eu não vivo em função do amanhã, compreende? O amanhã é um saco sem fundo que as pessoas procuram encher de fantasia para se consolar. Eu existo agora e isto é o que me interessa.ELZAVocê me desconcerta com esta impaciência.GILE você me irrita. Vamos, bota para fora a justificativa. Elza, por amor de DEUS, já que você não tem amor em mim, fala! Por acaso é algum motivo de saúde?ELZANão é isso.GILVocê tem algum defeito?ELZAGi1, não me humilha.GILElza, te coloca na minha posição. Afinal de contas eu tenho o direito de saber o que ocorre. Basta de mistério temperado com telefonemas da mamãezinha. Se me encobriu alguma coisa trágica chegou a hora de revelar.ELZANão é nada trágico, você achará até engraçado.

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GILEngraçado???ELZAAchará cômico. Vai rir com certeza.GILDuvido muito que tenha disposição para rir depois de todo esse vexame.ELZAVai rir, sim.GILElza, se você não me aceita como marido, nem me esclarece o motivo, daqui a pouco eu tenho uma crise não sei de que. Será que... será que é uma dessas mulheres geladas para homem?ELZAGil!GILSó sendo.ELZABem, não adianta discutir mais.GILCorreto. Porém uma coisa eu devo te informar neste exato momento: a minha conclusão de toda essa lenga-lenga é que, em teu próprio benefício e para o meu alívio, a solução é... (Abre a blusa do pijama, apaga a luz e parte ao encontro dela; Elza agilmente acende a luz.)ELZAVocê não tem este direito.GILComo não? Este direito, meu amor, é na realidade o único direito que o homem tem depois que casa... (Agarra os braços dela obrigando-a a deitar.)ELZAHoje não, Gil, amanhã.GILFecha os olhos e conta até dez, deixa o resto por minha conta...ELZAEu explico Gil, eu explico. Fiz uma promessa. (Desvencilha-se dele, corre para imagem na penteadeira.)GILPromessa???ELZAPara Santo Antônio.GILPromessa de quê?ELZAPara casar.GILQue estória é essa?ELZAPois é, você demorou tanto a tomar uma iniciativa... O tempo passando... Cada ano eu ficando mais velha...

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GILE daí?ELZAQuando a gente faz uma promessa oferece algo em troca da graça que pretende alcançar...GILSim?ELZAA graça foi alcançada, Gil, nós casamos e você devia estar muito agradecido a Santo Antônio.GILE então?ELZAAgora tenho de pagar a promessa. Prometi a Santo Antônio que, se nós casássemos, durante toda a minha primeira noite eu permaneceria virgem, em sinal de devoção.GIL(Entre surpreso e resignada.) Esta não!...

SEGUNDO ATO

Horas depois. Elza está dormindo na cama e Gil no divã. A respiração de Gil é ofegante; ele desperta, ergue-se com dificuldade, ensaia uns passos, junta a garrafa do chão, bebe, põe a garrafa na penteadeira ao lado da imagem de Santo Antônio; a seguir acende a luz do teto. Elza desperta.ELZAAhn!...GILAhn o quê?ELZAVocê me chamou?GILChamar para quê? Para rezar um terço no quarto do quinto andar?...ELZAQue horas são?GILInteressa a hora?ELZAJá é madrugada?GILAcha que é?ELZANão sei, estou perguntando.GILEu também.ELZAContinua bebendo?GILE você, continua com a cuca avariada?

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ELZAAvariada?GILClaro. Uma pessoa de juízo perfeito, uma pessoa que tivesse cinquenta gramas de bom senso não ia fazer uma promessa tão estúpida. Onde já se viu prometer a virgindade a santo sem consultar o noivo...ELZAVocê concordaria?GILConcordaria uma... (Diz um palavrão que não se ouve, percebe-se pelo movimento dos lábios.)ELZAGil! O que você disse?GILDisse que concordaria uma... (Mesmo jogo.)ELZAVocê bebeu ainda mais?GILBebi. E daí?ELZAE eu que durante onze anos suspirei por esta noite conjugal.GILIsto não é uma noite conjugal: é uma noite celestial...ELZAIroniza, Gil, ironiza.GILNão é mesmo? Você não fez da cama um altar?ELZAGi1, olha o teu rosto no espelho.GILJá olhei até demais.ELZAObserva em que estado lastimável você se encontra.GILÉ, me encontro. Mas a causa do meu estado lastimável não é a bebida...ELZAComo você se transforma quando bebe.GILTodo mundo se transforma, bebendo ou não bebendo. Você é a única pessoa na face da terra que nunca mudou. A única mulher que de livre e espontânea vontade depois de casada se conserva igualzinha, com o selo de fábrica.ELZAAmanhã, Gil, amanhã terá o que deseja.GILÉ aí que você se engana, é aí que comete um erro desastroso. Vou pegar hoje um pileque tão grande, tão grande que durante uns quinze dias não terei força nem para dar um espirro... (Aproxima-se da penteadeira onde estão a imagem e a garrafa, bebe mais.)

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ELZAChega, Gil.GILSim senhor, quem diria!ELZADe fato, quem diria, vendo você afiançar que jamais botaria na boca um pingo de álcool.GIL(Encosta a garrafa na imagem.) Eis aí dois símbolos, para você que admira simbolismos: o santo e a garrafa de uísque ... a virtude e o vício.., a pureza e o pecado... o céu e a terra... O teu santo e a minha garrafa... juntos, nos separando.ELZAGil, eu esgotei a minha capacidade de tolerância. Desta vez vou dormir um sono só. Até amanhã. (Apaga a luz do teto, deixando acesa a do abajur, toma posição definitiva para o sono; Gil permanece diante da imagem, bebendo, indiferente a Elza que logo adormece.)GILAmanhã... por que esperar o amanhã?... O amanhã é sempre duvidoso... Para você, não, Santo Antônio felizardo... Mas para nós mortais é duvidoso sim... Estou sendo roubado, Santo Antônio... E você é o culpado de todo este drama... De toda esta comédia... Por que você ajuda a mulherada, Santo Antônio, usando o prestígio que tem para fazer milagre e receber em troca bons presentes?... Isto é corrupção ativa, crime contra a administração da justiça divina... O que representa para você a virgindade dela na noite de hoje, hem, Santo Antônio?... Você está desfrutando essa virgindade?... Se está temos aí um caso de adultério... Se não está o que adianta o sacrifício dela?... E sobretudo o meu sacrifício, o sacrifício aqui do Gil, Santo Antônio do Gil que não tem nada a ver com a transação de vocês?... É por isso, Santo Antônio, que o povo diz que de tanto fazer milagre você ficou careca... Não... não... me perdoa, Santo Antônio, me perdoa... Estou falando asneira... Sou um sujeito de desregrado... Desequilibrado... Neurótico, ela já disse... Você é boa praça, Santo Antônio, me perdoa... me perdoa que eu não presto, sou igual a todo homem... Bom, Santo Antônio, como eu não acredito em você, e você certamente não acredita em mim chega de papo... (Afasta-se até a janela, olha para fora.) Ih! Que porre... (Esfrega as pálpebras e olha de novo para fora.) Já estou enxergando tudo esfumaçado... com mais duas doses só vejo fumaça... (Sai da janela, acende um cigarro; escuta-se rumor de vozes.) Uai! Barulho? Que pileque! Já estou vendo fumaça e ouvindo vozes (O telefone toca.) Chi! Até o telefone... daqui a pouco sou capaz de ouvir novamente aquele sermão sobre Adão e Eva, vai ser de roer... (Senta-se no divã, o telefone volta tocar, Elza ronca.) De novo?... É alucinação... Se não fosse ela acordava com a zuada... O jeito é tentar dormir senão acabo bilé... (Entra um pouco de fumaça pela janela ele a fecha.) Estou completamente aluado... (O telefone toca outra vez, ele arranca o fio do telefone.) Que zonzeira... (Soa forte uma sirene, Elza desperta.)ELZAQuem me chamou?GILChamaram, é?ELZANão foi você?GILNão, se alguém neste quarto te chamou deve ter sido o Santo Antônio...ELZATive a impressão de que me chamavam. Não era uma... um apito...

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GILVocê está mais embriagada do que eu. Embriagada de ilusão. É a pior embriaguez, ouviu? A tua velhice toda vai ser uma enorme ressaca...ELZAUma pena eu acordar. Estava sonhando. Um sono tão formoso. Imagina, Gil, no sonho tinha nuvens.GILNuvens cinzentas anunciando tempestade ou nuvens brancas “decorando” o firmamento? ELZANão lembro. Havia estrelas...GILEstrelas de cinco pontas ou estrelas desapontadas?...ELZAHavia flores. Rosas vermelhas que pareciam pedaços do teu pijama. Havia um coro de vozes... (Ressurge o rumor de vozes.) Que barulho é este?GILVocê ouviu?ELZAPor que não haveria de ouvir?GILEntão, eu não estou delirando... (O rumor aumenta e diminui.)ELZASerá que da janela dá para ver?GILDeve ser confusão na rua. O pau está comendo... (Os ruídos crescem.)ELZAAinda bem que não ficamos no segundo andar. (Toca a sirene.)GILOuviu?ELZAÉ uma sirene. Foi esta sirene que me acordou.GILDeve ser ambulância. Alguém pifou.ELZAGil, tive um pressentimento.GILFechou o tempo lá embaixo.ELZANão é desordem. (Vai à janela, abre-a porém logo a fecha porque a fumaça ameaça invadir.)GILVocê também?...ELZAÉ fumaça, Gil.GILSim, é fumaça, pensei que não, mas é, não viu?

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ELZADeve ser incêndio. Telefona para a portaria e indaga. (Gil coloca o fone no ouvido.)GILSe for incêndio é um incendiozinho de araque.ELZALiga, Gil.GILNão dá sinal. Mixou.ELZANão brinca com coisa séria, liga.GILÉ certo, não dá sinal.ELZAVocê me deixa nervosa.GILÉ justo. Você não me deixou nervoso todo esse tempo? (Som de sirene.)ELZAOlha a sirene, ouve. Ai! Meu DEUS, me dá este aparelho. (Toma o telefone dele.)GILDeu sinal?ELZANão, por quê?GILAh!...ELZAO que é?GILEu arranquei o fio.ELZAO fio? Você arrancou o fio do telefone?GILFoi...ELZAMas por que, Gil?GILEsta droga não parava de tocar, você não acordava, eu estou mais ou menos bêbado, pensei que fosse alucinação alcoólica.ELZAGil, você sabe o que você fez?GILE...ELZACom certeza estavam telefonando da portaria para avisar...GILDei uma mancada, já sei, não precisa me responsabilizar pela catástrofe.ELZAMinha Nossa Senhora, Gil...

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GILSou um estúpido, estou de pleno acordo.ELZAFaz alguma coisa.ELZA

Faz alguma coisa.

GIL

Faço, vou dar uma olhada lá embaixo.

ELZA

Vai e volta já-já.

GIL

(Movimentando-se) Estou indo.

ELZA

De pijama?

GIL

O que tem?

ELZA

Veste ao menos uma calça por cima. Não, vai assim mesmo.

GIL

Nesta lua de mel e de fel está acontecendo tudo. Também, começou acontecendo o impossível...

ELZA

Gil, com pressa.

GIL

Não demoro. (Sai)

ELZA

Meu DEUS... (Fica sem saber o que fazer, liga o rádio-eletrola, aumenta o volume, ouve-se uma voz de locutor á princípio confusa).

LOCUTOR

Alô estúdio... alô estúdio... alô estúdio... técnica.. alô técnica... OK... OK... Atenção, ouvintes, muita atenção... Sensacional furo de reportagem. Nossa emissora entra no ar, esta hora, numa edição extra a fim de noticiar, em absoluta primeira mão, o incêndio de proporções ainda ignoradas que irrompeu há poucos momentos no Hotel Central.

ELZA

Minha Nossa Senhora, o incêndio é aqui!

LOCUTOR

Estamos fazendo esta transmissão diretamente do local do sinistro, isto é, quer dizer, da loja que fica defronte, a tradicional Casa da Paz, aquela que vende mais barato e só vende o que é bom. O fogo, caríssimos ouvintes, lavra no quarto andar de maneira impressionante.

ELZA

Page 30: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Quarto andar? Minha Santa Mãe do Céu!

LOCUTOR

Até o presente minuto, salvo erro, lapso ou omissão, não há vítimas a registrar, entretanto a situação é caótica.

ELZA

Ai! Meu Santo Antônio, valei-me!

LOCUTOR

Existem três apartamentos no quinto andar e, segundo informações da gerência do hotel, todos estão ocupados. Os prejuízos são... já foram ou deverão ser, incalculáveis. (Breve pausa.) Atenção ouvintes, segundo dados que acabamos de colher apenas uma das famílias do quinto andar, somente uma, conseguiu descer antes do elevador enguiçar.

ELZA

Enguiçou, meu DEUS, e Gil não chega.

LOCUTOR

Os bombeiros, nossos bravos soldados do fogo, lutam heroicamente, no entanto, as chamas se alastram cada vez mais como lobas famintas.., é um espetáculo tenebroso, ouvintes, e o pior é que o carro-tanque dos bombeiros não tem capacidade para muita água. Nós bem que temos chamado atenção para o fato, nós bem que temos verberado a inoperância da Prefeitura, nós bem que temos sustentado uma campanha patriótica contra o descalabro administrativo que impera em nossa cidade, cujo atraso é fruto da incúria de seus dirigentes. (Gil invade a cena tossindo, cabelos desgrenhados; Biza desliga o rádio; clarões avermelhados surgem por trás da vidraça da janela; daqui para frente os clarões, rumores de vozes e soar da sirene quase não cessam mais, alternam-se e se misturam, ora alto, ora baixo.)

ELZA

Gil!

GIL

Elza, meu amor.

ELZA

Vamos embora.

GIL

Não se pode.

ELZA

Vamos sim.

GIL

Não se pode, está ralado.

ELZA

Vamos de qualquer maneira.

GIL

Não podemos.

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ELZA

Anda, vamos.

GIL

Não dá pé.

ELZA

Vamos, Gil.

GIL

O elevador engatou. E o fogo bloqueou inteiramente a escada.

ELZA

Não!

GIL

Infelizmente estamos de azar.

ELZA

E agora?

GIL

O incêndio é no andar abaixo do nosso.

ELZA

Sei. Ouvi pelo rádio.

GIL

Pois é.

ELZA

O rádio disse que o carro dos bombeiros não tem água.

GIL

Deve ter, você ouviu mal.

ELZA

O que a gente faz, Gil?

GIL

Confia nos bombeiros. Em cada dez incêndios eles conseguem apagar uns três.

ELZA

E se eles não conseguirem vencer o fogo?

GIL

Estamos fritos...

ELZA

Se não conseguirem apagar o incêndio, Gil?

GIL

Vai ser de morte...

ELZA

Precisamos fazer alguma coisa.

Page 32: Fogo Cruel Em Lua de Mel

GIL

Não se pode fazer nada.

ELZA

Vamos tentar descer pela escada. (Faz menção de sair, Gil a detém.)

GIL

Está louca?

ELZA

Por quê?

GIL

A escada virou um fogareiro. E o fogo já atingiu nosso corredor. Só em me aproximar meio metro quase me torno um churrasco...

ELZA

A gente tenta descer correndo.

GIL

Não dá, meu amor.

ELZA

E o que a gente faz?

GIL

Espera um pouco, os bombeiros estão trabalhando, eles tem experiência.

ELZA

Mas não tem água.

GIL

Arranjam.

ELZA

Vamos arriscar descer, Gil.

GIL

Se a gente arriscar descer chega lá embaixo como galeto de restaurante ...

ELZA

Estamos perdidos.

GIL

Os bombeiros vão nos achar...

ELZA

A gente desce ligeiro, nem que se queime as pernas é melhor.

GIL

E a fumaça, Elza, e a fumaça?

ELZA

O que é que tem a fumaça?

GIL

Page 33: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Sufoca. Mata sufocado.

ELZA

Não mata. Tapa-se o nariz.

GIL

Puxa! Como você é tola. Não sabe que a maioria das pessoas que se acabam em incêndio morrem sufocados pela fumaça?

ELZA

É?

GIL

Claro que é.

ELZA

Que horror.

GIL

Tem calma.

ELZA

Estou aflita.

GIL

Aflição não resolve.

ELZA

Não posso ficar parada.

GIL

Tenho que fazer alguma coisa.

GIL

Não adianta fazer nada.

ELZA

Mas eu preciso, Gil, eu preciso fazer alguma coisa. O que é que eu faço, Gil?

GIL

Não sei. Reza... se bem que ainda não é hora de rezar.

ELZA

Gil, eu estou nervosa demais.

GIL

Por favor, Elza.

ELZA

Eu estou uma pilha de nervos.

GIL

Não perde o controle. O negócio é se controlar. Você começou tão bem, controlando a natalidade...

ELZA

Page 34: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Acho que vou entrar em crise.

GIL

Atrapalha tudo.

ELZA

Acho que vou ter uma crise de choro.

GIL

Se perder o controle eu sou obrigado a fazer como se faz com náufrago.

ELZA

Fazer o quê?

GIL

Fazer você desmaiar para não cometer uma imprudência.

ELZA

E como você faz eu desmaiar?

GIL

Um murro na testa...

ELZA

Não, Gil, não faça isto.

GIL

Então se comporte como uma pessoa adulta.

ELZA

Ai, meu DEUS, que angústia!

GIL

É questão de mais alguns minutos e tudo terminará em paz. Em paz ou em cinzas...

ELZA

Gil, você me ama?

GIL

Claro que amo.

ELZA

Gil, você me ama mesmo?

GIL

Elza, o que é isto?

ELZA

Gil, me abraça...

GIL

Não deixa que o nervosismo te domine senão a gente vai para o beleléo mais cedo.

ELZA

Gil, a nossa vida está em perigo, não percebe? A nossa vida está em perigo!

GIL

Page 35: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Está.

ELZA

Vamos tentar sair, Gil.

GIL

Não! Não e não!!!

ELZA

A minha cabeça está rodando com este calor.

GIL

Senta um instante.

ELZA

Creio que vou ter um passamento.

GIL

Isto passa...

ELZA

Liga o rádio, Gil... Não, não liga... Liga, estão irradiando... Não, é preferível não ouvir...

GIL

Enquanto você resolve se liga ou não liga eu vou ao banheiro... (Entra no banheiro, Elza liga o rádio.)

LOCUTOR

A situação, ouvintes, é cada vez mais escabrosa... quero dizer, calamitosa. Da janela de um apartamento do quinto andar surgem jatos de fumaça preta, aliás preta não, negra. O cidadão que se jogou do quinto andar teve morte horrível.

ELZA

(Gritando) Gil, vem escutar.

LOCUTOR

O corpo ficou irreconhecível e já foi levado para o necrotério público que, os senhores e as senhoras sabem, encontra-se em péssimo estado de conservação, não oferecendo o mínimo de conforto aos seus usuários...

ELZA

(Alto) Gil, não aguento mais nem um minuto, vamos embora de qualquer maneira.

GIL

(Saindo do banheiro.) O que foi?

ELZA

Temos de sair. (Desliga o rádio, abre a porta de saída, solta um grito de terror; Gil tranca a porta por onde também penetra fumaça sob clarões vermelhos.)

GIL

Eu não disse?

ELZA

Gil, meu querido, o fogo chegou aqui.

Page 36: Fogo Cruel Em Lua de Mel

GIL

O fogo não, a fumaça, não exagera.

ELZA

O fogo vem atrás, Gil.

GIL

Calma, meu amor, calma.

ELZA

Gil eu vou chorar... Eu vou gritar... Eu preciso, eu preciso chorar e gritar.

GIL

Elza, você me contagia com este teu nervosismo.

ELZA

Você está apavorado, não está?

GIL

Não...

ELZA

Está sim, não finge.

GIL

Apavorado não é bem o termo. Estou começando a ficar meio desequilibrado...

ELZA

Gil, eu não suporto mais fazer nada... O que faço?

GIL

Vai ao banheiro...

ELZA

Gil. Tem pena de mim, me ajuda a fazer alguma coisa.

GIL

Reza... Reza, meu amor, faz uma promessa...

ELZA

É, só se for... (Segura a imagem, ajoelha-se, balbucia uma prece; Gil liga o rádio.)

LOCUTOR

Ao que tudo indica, ouvintes, são remotas as possibilidades de serem evitados maiores danos, inclusive novas vítimas. Os encurralados hóspedes, digo, infortunados hóspedes do quinto andar... Atenção, atenção... Alguém vai saltar novamente por uma das janelas do quinto andar... Uma cena dantesca, ouvintes, indescritível.

(Ouve-se uma explosão.)

ELZA

Explosão?

GIL

É... explodiu.

ELZA

Page 37: Fogo Cruel Em Lua de Mel

O que terá sido?

GIL

Como se pode saber? Vai ver que alguém pulou pela janela montado num barril de pólvora...

ELZA

Gil, é o fim, querido, você também não acha que é o fim?

GIL

Não sei, já não sei mais de nada...

ELZA

É o fim, eu sinto que é o fim. Diga que é, Gil.

GIL

Talvez.

ELZA

É o fim... é o fim... é a morte, Gil... é o fim da nossa vida...

GIL

(Começando a perder domínio dos nervos.) Meu amor, me ajuda a não desesperar. Tem fé, cadê tua fé?

ELZA

Nós vamos morrer, Gil, é o fim de tudo, é a fatalidade...

GIL

Pensa em DEUS. Pede. Suplica. Implora. Ele te atenderá.

ELZA

Não vai atender, Gil, não vai atender.

GIL

Vai sim, você merece, é devota, DEUS não abandonará você.

ELZA

Não há salvação, Gil, não vê que não há salvação?

GIL

Há, para você há, pelo menos na outra vida. Eu é que estou liquidado, definitivamente liquidado, eu e o meu livro.

ELZA

E eu, Gil? E eu? Morrer logo hoje?

GIL

Se você morrer irá para o céu, meu amor, se lembre disso, já é um consolo. E eu que irei para o nada? E o meu livro que não irá para parte alguma?...

ELZA

Gil, em uma hora como esta você tem coragem de se preocupar mais com seu livro do que comigo?

GIL

Esta é uma hora muito especial, Elza, talvez a gente esteja diante da morte.

Page 38: Fogo Cruel Em Lua de Mel

ELZA

E é hora de pensar em livro?

GIL

É hora de pensar naquilo que se ama...

ELZA

E você não me ama, Gil?

GIL

Amo, Elza, amo.

ELZA

E como não concentra em mim a sua preocupação?

GIL

Você tem DEUS por você, O meu livro só tinha eu por ele.

ELZA

Gil, deixa de dizer bobagem, isto não é hora de ficar pensando em coisas indignas. Quem sabe se o que está acontecendo não é um castigo pelas blasfêmias que você escreveu naquele livro?!

GIL

Você acha?

ELZA

Acho. Com uma literatura tão imunda, com uns poemas tão sujos, cheios de sacrilégios, você não podia esperar um futuro feliz.

GIL

É? E se você sabia disso por que amarrou o teu futuro ao meu?

ELZA

Não sei, sei que estamos sendo castigados por sua causa. Você escreveu naquele livro que uma aula podia ser mais importante que uma procissão, que um hospital podia valer mais do que uma igreja.

GIL

Elza, você me ama ou me odeia? Hem? Ama ou odeia? Você me odeia, Elza, no fundo me odeia porque ninguém acusa uma pessoa que ama diante da morte...

ELZA

E você, que prova de amor de amor me dá nesta hora esquecendo o meu destino para se preocupar com a porcaria do seu livro? Quem sabe se este incêndio não foi mandado pela Providência Divina para queimar o que você escreveu antes de ser publicado e envenenar muitos corações? A única coisa que eu lamento é não ter seguido a minha vocação.

GIL

Eu também lamento isso...

ELZA

Ironiza, você é mesquinho, mas do sentimento de culpa não se livra.

GIL

Page 39: Fogo Cruel Em Lua de Mel

(Perdendo afinal o domínio dos nervos e mergulhando, emocionalmente, na faixa histérica de Elza.) Olha, eu ia ficar calado, porém você me massacrou tanto que vou desabafar. Se alguém tem culpa desta situação trágica é você, ouviu? É você!!!

ELZA

Eu???

GIL

Sim!!! Você mesma!!! Foi você quem escolheu o quinto andar, eu queria o segundo. Pode começar a sentir arrependimento ou remorso.

ELZA

Eu não disse que você é mesquinho? Agora quer se libertar do sentimento de culpa projetando a responsabilidade para mim.

GIL

Eu não quero “projetar” coisa nenhuma, sua Assistente Social beata e pretenciosa. O fato é que tua carolice estragou por completo a nossa lua de mel, com essa besteirada de virgindade oferecida a Santo Antônio. Estragou a nossa lua de mel como estragou o nosso namoro e o nosso noivado, como estragou a minha obra poética que já podia estar sendo lida por toda a cidade se você não exigisse que eu somente a publicasse depois do casamento para não provocar escândalo na paróquia. Elza, quer saber mais o quê? Nós estamos à beira da morte, é a ocasião de lavar a alma, de mandar para o inferno o fingimento, de rasgar o manto de mentira que a vida vestiu em nós. Nem eu amo mais a você do que a minha poesia, nem você me ama mais do que a tua religião. E porque somos duas criaturas frustradas, eu porque não me realizei como escritor, você porque não se realizou como freira, e porque somos duas criaturas desencontradas consigo mesmas, estamos em contradição uma com a outra, compreende? É possível que este incêndio seja mesmo providencial. É possível que a morte seja para nós a melhor alternativa.

ELZA

Você disse tudo o que desejava? Pois então...

GIL

Não, ainda não disse tudo. Eu agora sei que você nunca me amou. Você jamais me fez um carinho, jamais teve um gesto meigo comigo, e ninguém ama sem ternura. Sempre me olhou como um transviado, um pecador necessitado de absolvição. Casou para operar a minha recuperação moral como esposa entendida em Psicologia, para fazer como leiga aquilo que gostaria de fazer como religiosa e assim se justificar perante a si própria se perdoando por não ter entrado para o convento. Porque não entrou de vez no convento, é que não consigo compreender... Eu fui o seu eleito, Elza, mas eleito não para ser amado e sim para ser purificado pelo toque mágico da sua virtude. E o triste é que isto me agradava. Agradava até a pouco, quando eu ainda tinha esperança de viver.

ELZA

É bom que você desabafe porque eu...

GIL

Page 40: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Porque você também vai desabafar, eu sei. É o que nos resta: desabafar, neste terrível abafamento de calor e fumaça. Somos duas ilhas humanas: duas porções de desespero cercadas de fogo por todos os lados. Observa os clarões na vidraça: as labaredas vem se aproximando como línguas de serpente.

ELZA

Você é um ingrato. Se a gente se salvar vou desfazer o nosso casamento.

GIL

É tarde. Não haverá a menor possibilidade de termos esta satisfação...

ELZA

Você é tão indigno quanto o seu livro.

GIL

Sou. Conscientemente. E assumo a minha indignidade enquanto você não assume a sua santidade... há uma diferença básica entre nós, compreende? Uma diferença essencial.

ELZA

Eu sabia que você era um canalha. O que nunca julguei é que pudesse me maltratar em uma hora como esta. Sou uma desgraçada. (Chora sem muita disposição.)

GIL

Não adianta se derramar em lágrimas. Continua me acusando, é isto que você precisa. Berra o teu ódio, berra. Chama nome, diz palavrão, rebenta em fúria sagrada.

ELZA

Você é um cretino. Não é um homem, é um moleque.

GIL

Isto, começa a rebentar.

ELZA

É um patife!

GIL

Continua. Vomita tudo.

ELZA

Vomito, sim, porque tenho nojo de você. Nojo.

GIL

Obrigado pelo elogio.

ELZA

Você é um maluco, ouviu? Um maluco!

GIL

Sou. Mas a minha loucura é mais honesta que a tua impostura. Experimenta você também enlouquecer, experimenta. A loucura é uma revelação. Este calor não esquenta o teu cérebro, os teus miolos, o teu crânio? A minha cabeça eu já sinto como se fosse uma frigideira no fogão aceso. Enlouquece você também, enlouquecer é sublime. Enlouquece comigo, faz um esforço — rebenta! Quer que eu ajude você? Repara, o fogo vem vindo, o fogo é implacável, o fogo dilacera, o fogo consome... (Ouve-se um grito.) Ouviste? Talvez seja uma criança que está

Page 41: Fogo Cruel Em Lua de Mel

sendo assada na brasa para que eu seja castigado... Olha, os clarões do fogo, olha como o fogo é vermelho, é vivo, olha as faíscas, parecem pássaros do Inferno voando... E nós também podemos voar, podemos sair daqui voando nas asas da loucura...

ELZA

Por DEUS, você ficou mesmo louco?

GIL

Enlouquece também. Olha, louco a gente pode fazer milagre, em vez de ficar pedindo... (Ouve-se mais explosões por entre o tumulto de vozes e os clarões rubros.) Escutaste? Trovões... Gargalhadas celestes... O Santo não aceitou o pagamento da tua promessa... O céu está rindo da tua virgindade...

ELZA

Gil, você está me contaminando com essa maluquice, você está me destruindo.

GIL

Vês? Santo Antônio começa a vir em teu auxílio. A mim, que sou impuro, ele já amparou. Faz um esforço, não há outra saída — rebenta! Você sempre viveu coberta de gelo, petrificada no gelo do misticismo, do preconceito. Quebra esse gelo com o martelo da loucura, quebra que esse gelo jamais se dissolve, nem no calor de mil incêndios... Vamos, rebenta essa crosta fria que te envolve, que te aprisiona, rebenta e te liberta... Não é possível esmagarmos a própria natureza, não é possível sermos o que não somos eternamente, rebenta neste momento antes que seja tarde. Elza, rebenta como um vulcão e atira para fora de tudo o que ferve dentro de ti — rebenta!!!

ELZA

Por favor, Gil, chega! Já estou a ponto de sair correndo doida.

GIL

Se enlouqueceres não precisarás sair correndo, os loucos nunca correm... Que maravilha, Elza, os loucos nunca fogem...

ELZA

Gil, para! Para!!!

GIL

Vamos, já estás quase no ponto, acredita em mim, não resiste, não recua, vamos, um pouco mais, somente um pouco. Depois do primeiro passo tudo é fácil, basta seguir em frente de olhos fechados e imaginação aberta ... A imaginação, usa a imaginação, despreza o raciocínio, o raciocínio é traiçoeiro, só serve para enredar a gente da teia do artificial, do calculado, não conduz a nada de grande e de belo... a imaginação é diferente. Elza, a imaginação corta as correntes do impossível e nos solta no espaço azul do horizonte... Abre a porta da imaginação com chave da loucura, rebenta, Elza, rebenta!!!

ELZA

Meu DEUS eu acabo louca, não aguento mais! Não aguento mais!!! (Tenta abrir a porta de saída e outra vez a fecha para impedir a penetração da fumaça e do fogo; corre até a janela e executa o mesmo jogo.)

GIL

Page 42: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Enlouquece, te mira no meu exemplo, vê como me sinto, observa a minha lucidez. Eu ainda estou raciocinando. Mas entre as sombras de um raciocínio e outro a minha imaginação lança fagulhas resplandecentes. Eu me sinto como Gil e como Santo Antônio... Numa fração de segundo, mais do que isto, ao mesmo tempo, eu te odeio e te amo, eu estou aqui encarcerado, neste quarto, e estou lá fora flutuando, no infinito.., presta atenção para mim, me olha por dentro... Eu sou o que, um marido?... Sim e não... Eu sou um poeta?... Não e sim... (Som de sirene.)

Ouves?

Sou um mendigo vagabundo, sangrando ferido, e vão me levando para o hospital.

A sirene da ambulância soa como um gemido de dor chorando por mim.

Talvez eu não seja internado por falta de documentos.

E pela notícia de jornal ninguém saberá o meu nome.

A sirene da ambulância soa como um gemido de dor chorando por mim...

(Rumor de vozes.)

Estás ouvindo?

Sou um orador político discursando em praça pública.

Vozes estimulantes me fazem continuar.

Já sequei todas as fontes da eloquência.

Meu verbo se arrasta como vento sem direção.

Erguendo a poeira de ideais utópicos.

E vozes estimulantes me fazem continuar...

(Explosões)

Ouviste?

Sou um general de Napoleão no campo de batalha.

O troar dos canhões saúda a minha bravura.

Fazendo estremecer bandeiras e cadáveres.

O triunfo se aproxima e a glória me espera.

A morte me rodeia e o futuro me chama.

O troar dos canhões saúda minha bravura.

(Clarões avermelhados.)

Viste?

Sou um mártir que vai ser imolado em circo romano.

A fogueira está acesa e crepitante.

Fanáticos se comprimem em febril expectativa.

Do alto da tribuna oficial César me contempla.

Seus olhos brilham como duas tochas flamejantes.

A fogueira está acesa e crepitante...

ELZA

Page 43: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Gil, eu estou sentindo uma coisa estranha dentro de mim.

GIL

Rebenta, Elza!

ELZA

Eu estou sentindo vontade de chorar e de rir ao mesmo tempo.

GIL

É um bom sinal. Faz as duas coisas juntas.

ELZA

Não zomba, Gil, até em relação a você eu estou sentindo duas coisas diferentes...

GIL

Ótimo, é o princípio da tua redenção.

ELZA

Alguma coisa está acontecendo dentro de mim. Alguma coisa está se partindo dentro de mim...

GIL

Deixa partir, deixa rebentar.

ELZA

Alguma coisa está surgindo na raiz do meu íntimo...

GIL

Deixa surgir, deixa tomar conta de ti.

ELZA

(Gira os olhos.) É esquisito.

GIL

O quê?

ELZA

(Mantendo os olhos fechados.) Estou me recordando de tudo...

GIL

Tudo o quê?

ELZA

Tudo que fui...

GIL

Quando?

ELZA

Desde menina...

GIL

E?

ELZA

Não apenas recordando... Estou revivendo...

GIL

Page 44: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Como?

ELZA

Não sei... Estou revivendo o passado...

GIL

Todo o passado?

ELZA

Todo...

GIL

Duma vez?

ELZA

Mais ou menos...

GIL

De que modo?

ELZA

Não sei dizer...

GIL

Tem de saber.

ELZA

Não sei...

GIL

Continua falando.

ELZA

É difícil explicar...

GIL

Não tenta explicar nada, continua falando.

ELZA

Falando como?...

GIL

Com a boca.

ELZA

Estou indo para longe...

GIL

Vai.

ELZA

Cada vez mais distante...

GIL

Vai.

ELZA

Page 45: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Você está me ouvindo?...

GIL

Estou.

ELZA

Está me entendendo?...

GIL

Não, mas não importa. Continua falando.

ELZA

Falando o quê?...

GIL

Palavras.

ELZA

É uma espécie de viagem que estou fazendo...

GIL

Viagem?

ELZA

Uma viagem ao contrário...

GIL

Sim...

ELZA

Do avesso.

GIL

Sim.

ELZA

Você entende?

GIL

Continua.

ELZA

Você está perto de mim?...

GIL

Estou.

ELZA

Está me acompanhando?...

GIL

Estou.

ELZA

Está me protegendo?...

GIL

Page 46: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Estou.

ELZA

Não me larga?...

GIL

Não.

ELZA

Não me critica?...

GIL

Não.

ELZA

Não me força seu quiser voltar?...

GIL

Não.

ELZA

Estou revivendo...

GIL

Revivendo o quê?

ELZA

Ideias...

GIL

E o que mais?...

ELZA

Fatos... Emoções...

GIL

Desenterra do esquecimento todas as tuas lembranças. Desenterra todas as sementes.

ELZA

Estou desenterrando...

GIL

Cava o chão da memória. Cava com a enxada da loucura. Cava sofridamente. Cava fundo.

ELZA

Estou cavando...

GIL

Cava sem medo!

ELZA

O medo... o medo... eu tenho medo...

GIL

Enfrenta o medo.

ELZA

Page 47: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Não posso enfrentar...

GIL

Pode. Enfrenta.

ELZA

Não posso. Está crescendo...

GIL

O quê?

ELZA

O medo...

GIL

Medo de quê?

ELZA

Do medo...

GIL

Enfrenta, o medo é a tua algema — rompe a algema!

ELZA

Não posso.

GIL

O medo é a tua grade — arromba a grade!

ELZA

Não posso...

GIL

Pode, Elza, rebenta!

ELZA

Gil...

GIL

Fala.

ELZA

Estou me sentindo mais nova...

GIL

Sim?

ELZA

Estou me sentindo mocinha...

GIL

Segue.

ELZA

Estou me sentindo no colégio...

GIL

Page 48: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Continua.

ELZA

Fazendo um bilhete...

GIL

Para quem?

ELZA

Para você...

GIL

Obrigado. Continua.

ELZA

Estou me sentindo menor...

GIL

Segue.

ELZA

Na aula...

GIL

Sim.

ELZA

De catecismo...

GIL

Sai logo dessa aula.

ELZA

Não...

GIL

Sai!

ELZA

Eu gosto...

GIL

Por quê?

ELZA

Porque... ele me perdoa... sempre me perdoa...

GIL

Perdoa o quê?

ELZA

Uma coisa grave.., um pecado mortal...

GIL

Que pecado?

ELZA

Page 49: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Não sei... não posso saber... não quero saber...

GIL

Tem que saber.

ELZA

Não quero!...

GIL

Tem de querer.

ELZA

Não!...

GIL

Sim!

ELZA

É horrível!...

GIL

O quê?

ELZA

Não sei, mas é horrível...

GIL

Continua.

ELZA

Estou diminuindo...

GIL

Prossegue.

ELZA

Estou me sentindo criança...

GIL

Prossegue.

ELZA

No bosque...

GIL

Sim.

ELZA

Correndo...

GIL

Corre.

ELZA

Árvores...

GIL

Page 50: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Sim.

ELZA

Minha irmã...

GIL

Sim.

ELZA

Linda...

GIL

Sim. Você também.

ELZA

Não, ela é mais linda do que eu...

GIL

Continua.

ELZA

Ela é mais inteligente do que eu...

GIL

Continua.

ELZA

Graciosa... Ela é mais querida do que eu...

GIL

Continua.

ELZA

As pedras...

GIL

Sim.

ELZA

Estamos subindo pelas pedras...

GIL

Sobe.

ELZA

É muito alto... estamos subindo...

GIL

Sobe.

ELZA

Escorrega...

GIL

Cuidado.

ELZA

Page 51: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Tirei o sapato, está liso...

GIL

Sim.

ELZA

Ela não quer...

GIL

Deixa.

ELZA

Não deixo não... Ela tem que ir lá em cima comigo... ela não é melhor que eu...

GIL

Continua.

ELZA

Ela está indo contra a vontade...

GIL

Sim.

ELZA

Estamos bem alto...

GIL

Sim.

ELZA

Gil!!!

GIL

O que foi?

ELZA

Ela escapuliu!... Meu DEUS, ela caiu lá embaixo!...

GIL

Hein?

ELZA

Escapuliu da minha mão... Eu não empurrei!... Não empurrei!...

GIL

Que desastre.

ELZA

Gil...

GIL

Diz.

ELZA

Acabou a viagem...

GIL

Page 52: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Não acabou.

ELZA

Tenho de voltar...

GIL

Não.

ELZA

Tenho sim...

GIL

Não!

ELZA

Você prometeu não me forçar...

GIL

É para o teu bem. Prossegue. Prossegue até rebentar com o teu medo.

ELZA

Você está do meu lado?...

GIL

Estou.

ELZA

Não está, não...

GIL

Estou sim.

ELZA

Eu não sinto...

GIL

Presta atenção.

ELZA

Eu estou me sentindo ao lado do meu pai...

GIL

É?

ELZA

Estou me sentindo em companhia de minha mãe...

GIL

Sim.

ELZA

Caminhando...

GIL

Então caminha.

ELZA

Page 53: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Muita gente andando atrás de nós... devagar...

GIL

Sim.

ELZA

Todo mundo calado...

GIL

Sim.

ELZA

Não ouço nada, só passarinho cantando...

GIL

Sim.

ELZA

Tem árvores de novo... Perto tem árvores...

GIL

Sim.

ELZA

Mas vejo...

GIL

O quê?

ELZA

Um portão de ferro...

GIL

Entra.

ELZA

Não posso...

GIL

Pode.

ELZA

Não...

GIL

É uma ordem: entra!!!

ELZA

É o portão do cemitério!...

GIL

Avança. Firme.

ELZA

Gil, tem compaixão de mim!...

GIL

Page 54: Fogo Cruel Em Lua de Mel

(Pousa as mãos em cima dos olhos dela que ainda se conservam fechados.) Segue e olha tudo de frente! Sem tremer!

ELZA

Uma sepultura... para minha irmã... minha única irmã... parece uma boneca loura... sorrindo em silêncio... pálida como cera... os bracinhos cruzados sobre o peito... vestida de anjo... no caixão todo branco...

GIL

(Afasta-se, sensibilizado.) É trágico demais...

ELZA

(Abre os olhos desmesuradamente com ar de espanto, deixando transparecer que toda a estrutura do seu caráter oscila nos alicerces; por um instante ainda tenta equilibrar-se num supremos esforço mas já é tarde para recompor as bases da personalidade; afunda então em pranto compulsivo, avassalador.) Eu vou morrer... nós vamos morrer.., vamos morrer... nós vamos morrer... eu vou morrer... você vai morrer... me perdoa, Gil... me perdoa tudo o que eu fiz... me perdoa, Gil, me perdoa...

GIL

Não há nada para perdoar.

ELZA

Não, me perdoa... me perdoa por não ter deixado você publicar o livro...

GIL

Esquece isto.

ELZA

Gil, me perdoa por ter feito aquela promessa...

GIL

Calma, te acalma.

ELZA

Gil, meu amor, me perdoa por ter escolhido este apartamento no quinto andar...

GIL

Nada há para ser perdoado, você não fez por mal.

ELZA

Gil, meu querido, você tem razão... manda por mim tudo para o inferno...

GIL

Elza, o que é isto?

ELZA

Gil, me perdoa por não ter sabido te amar...

GIL

Elza...

ELZA

Acredita, Gil... eu te amo.. eu te amo...

Page 55: Fogo Cruel Em Lua de Mel

GIL

Sim.... Compreendo...

ELZA

Eu te amo mais do que tudo na vida...

GIL

Eu sei... Eu creio...

ELZA

Não sabe não, Gil, eu te amo mais do que a religião...

GIL

Meu amor, eu...

ELZA

Eu te amo mais do que todas as igrejas... Eu juro, Gil, eu juro...

GIL

Não precisa jurar.

ELZA

Gil, acredita, eu sempre fui apaixonada por você.

GIL

Sim, Elza.

ELZA

Eu sempre achei você genial, Gil... Eu adoro as poesias que você escreve, todas elas...

GIL

Obrigado, meu amor, muito obrigado.

ELZA

Gil, você me ama? Nós vamos morrer, não me engana.

GIL

Amo sim, Elza, amo.

ELZA

Gil, nós vamos morrer, não vamos?

GIL

A menos que aconteça um milagre, vamos morrer sim, meu amor.

ELZA

Se depender de milagre nós morreremos. Já não acredito em mais nada.

GIL

É preciso acreditar, é preciso...

ELZA

Não, já não acredito, já não posso acreditar.

GIL

Elza, meu amor, reúne as tuas energias e reza. Quem sabe se DEUS não existe mesmo?...

Page 56: Fogo Cruel Em Lua de Mel

ELZA

Se existisse não tinha nos abandonado... Você tem razão, Gil, a vida é um absurdo, a vida não tem sentido.

GIL

É... Talvez a vida não tenha sentido... mas a morte tem sentido... DEUS deve existir...

ELZA

Não existe, é tudo invenção.

GIL

Elza, não estou te reconhecendo. Reza, busca a tua fé e reza. Não deixa escapar a esperança, ainda estamos respirando, não deixa a esperança sumir...

ELZA

Já não há lugar para a esperança.

GIL

Então não há lugar para mais nada...

ELZA

Gil, nós vamos morrer. Nós vamos morrer!

GIL

Pelo menos vamos morrer rezando...

ELZA

É inútil.

GIL

Mas é bonito... pelo menos é bonito...

ELZA

(No auge do desespero.) É bonito para você que viveu a sua vida. Eu não vivi a minha. Você se divertiu, você bebeu, você brincou. Você fez tudo o que quis. Eu não, eu fiz mais jejuns do que passeios, eu deixei para depois as minhas alegrias, eu me mortifiquei com penitências para resistir a tentação das coisas boas, eu gastei a minha sorte sem comprar nada, eu me esqueci de mim na vida.

GIL

Vamos rezar, eu rezo com você.

ELZA

Não, eu já rezei de sobra, eu agora estou é revoltada, revoltada contra tudo!

GIL

Elza, vamos rezar... Eu confesso que... Estou sentindo uma vontade imensa... Uma necessidade imensa de rezar...

ELZA

E eu estou sentindo uma necessidade imensa de mandar tudo a... (Pelo movimento mudo dos lábios percebe-se o palavrão.)

GIL

Page 57: Fogo Cruel Em Lua de Mel

Elza! Pelo amor de DEUS!

ELZA

Gil, chegou a minha vez, você enlouqueceu de propósito mas eu estou enlouquecendo sem querer, você enlouqueceu de mentira mas eu estou enlouquecendo de verdade.

GIL

Olha, meu amor, você está perturbada, eu acho que vou começar a rezar sozinho...

ELZA

Chegou a minha vez de rebentar, Gil, de REBENTAR!!!

GIL

Elza, você...

ELZA

Gil, você me ama, não ama?

GIL

Claro, eu sempre fui também apaixonado por você, eu sempre adorei o teu espírito religioso, vamos rezar...

ELZA

Gil, me beija!!!

GIL

Sim, mas agora?...

ELZA

Gil, me beija!!!

GIL

Elza, o momento não é próprio... (Ele fica sem jeito; os rumores e clarões atingem maior intensidade.)

ELZA

É a morte. Chegou o fim.

GIL

Chegou. Já não é mais possível qualquer ilusão...

ELZA

Gil me BEIJA!!! (Gil a beija ligeiramente.)

GIL

Pronto, meu amor, agora vamos rezar.

ELZA

Assim não, Gil, me beija com fervor. Com fervor não, com instinto, com toda a força do teu instinto, com toda a brutalidade do instinto.

GIL

Elza, dessa vez você é que deve me perdoar... eu não tenho a menor condição de beijar você de outra maneira... Nós estamos diante da morte... eu só sinto o desejo de rezar...

ELZA

Page 58: Fogo Cruel Em Lua de Mel

(Puxando-o para a cama.) Vem, querido eu sou tua, me possui, eu sou tua, me possui!... (Gil livra-se dela, desloca-se para a penteadeira, imobiliza-se em frente ao espelho, num arroubo místico.)

GIL

Olha para mim, meu amor, eu estou transfigurado...

ELZA

Vem, Gil, deita comigo vem buscar o que eu guardei para ti tanto tempo. (Gil vai até ela levando a imagem.)

GIL

Toma o teu Santo Antônio, te ajoelha com ele e oferece tua alma a DEUS... eu não sei rezar ajoelhado olhando para santo, vou rezar em pé olhando para mim mesmo... (Posta-se diante do espelho, fitando a própria imagem.)

ELZA

(Arranca do corpo a camisola branca e ajoelha-se em cima da cama.) Vem, Gil, vem! Vem que eu sou tua! Vem que eu sou tua! Vem me possuir toda, inteira! Vem logo!

GIL

(Em êxtase.) Não interrompe, meu amor... Eu... Eu estou vendo DEUS em mim...

ELZA

Gil, por piedade, vem! O meu corpo está incendiado! O meu corpo está ardendo! O meu corpo está em fogo! Vem!

GIL

Não posso...

ELZA

Gil!

GIL

(Olhar fixo no espelho.) Elza, DEUS existe... Agora eu compreendo... agora eu sinto... DEUS existe.

ELZA

Vem, Gil, vem me possuir! Vem que eu não posso mais esperar, vem que eu estou desvairada! Eu estou DESVAIRADA!!!

GIL

Impossível, meu amor, já não me pertenço... (Olhando-se ainda no espelho.) DEUS existe... Por mais incrível que pareça, DEUS existe!!!

FIM