Foguete Amarelo de Helena

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Na garagem, deixei para trás o foguete amarelo de Helena e fui até o carro menor, um modelo esportivo azul que estava no fim da fila. Não era um carro que gritava “cheguei” como o foguete. Ainda do lado de fora, vi um alienígena verde e felpudo pendurado no retrovisor. Não era exatamente o estilo de Helena. Provavelmente era o carro de uma neta. A chave estava pendurada em um suporte na parede, em um chaveiro com outro alienígena pendurado, mas muito menor. Entrei no carro e acionei o navegador GPS. Ele falou com a voz de um antigo personagem de desenho animado. — Para onde? — o navegador cantarolou naquela voz alegre. — Prime Destinations, em Beverly Hills. Alguns segundos se passaram antes que ele dissesse: — Não foi possível encontrar o local. É claro. A Prime não divulgaria seu endereço ao público. — Novo endereço — eu disse, preparando o aparelho para receber dados manualmente. Comecei a ditar o endereço quando a Voz retornou. Callie... não... não volte... Prime. Está me ouvindo? Você não pode voltar... É perigoso... Extremamente perigoso... Meus braços se arrepiaram. “Perigoso”, disse a Voz, igual à primeira vez. Ela era consistente. Estava me avisando claramente para não retornar à Prime Destinations.

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Page 1: Foguete Amarelo de Helena

Na garagem, deixei para trás o foguete amarelo de Helena e fui até o carro menor, um

modelo esportivo azul que estava no fim da fila. Não era um carro que gritava “cheguei” como

o foguete. Ainda do lado de fora, vi um alienígena verde e felpudo pendurado no retrovisor.

Não era exatamente o estilo de Helena. Provavelmente era o carro de uma neta.

A chave estava pendurada em um suporte na parede, em um chaveiro com outro

alienígena pendurado, mas muito menor. Entrei no carro e acionei o navegador GPS. Ele falou

com a voz de um antigo personagem de desenho animado.

— Para onde? — o navegador cantarolou naquela voz alegre.

— Prime Destinations, em Beverly Hills.

Alguns segundos se passaram antes que ele dissesse:

— Não foi possível encontrar o local.

É claro. A Prime não divulgaria seu endereço ao público.

— Novo endereço — eu disse, preparando o aparelho para receber dados manualmente.

Comecei a ditar o endereço quando a Voz retornou.

Callie... não... não volte... Prime. Está me ouvindo? Você não pode voltar... É

perigoso... Extremamente perigoso...

Meus braços se arrepiaram. “Perigoso”, disse a Voz, igual à primeira vez. Ela era

consistente. Estava me avisando claramente para não retornar à Prime Destinations.

— Por quê? — perguntei à Voz. — Pode me explicar?

Silêncio.

— Quem está falando? — perguntei. — Helena?

Nenhuma resposta.

Armas. Avisos. Perigo. Não gostei de acordar com uma arma na mão; mas, pelo menos,

eu sabia como usá-la. Não sabia o que estava esperando por mim na Prime.

Desliguei o motor e voltei para dentro da casa.

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Liguei o computador de Helena para descobrir mais a seu respeito. Se ela estivesse

realmente tomando o controle de meu corpo sempre que eu sentia minha vista escurecer, eu

precisava saber tudo que pudesse. Por que motivo ela tinha uma arma? Talvez alguém a

estivesse perseguindo e agora eu seria o alvo daquela fúria.

Quantos dentre seus amigos sabiam que ela estava alugando um corpo? Além da pessoa

que enviara o Zing em tom de reprovação. Se fosse mesmo um amigo.

Examinei os arquivos do computador de Helena. Mais de cem anos de memórias,

trabalho, cartas e fotos. Analisei todo o conteúdo e descobri que seu filho e a esposa foram

mortos na guerra, como a maioria das pessoas com idade similar. Eles tinham uma filha

chamada Emma, com a minha idade. A neta de Helena.

Naveguei pelas CamPages, portais para pessoas compartilharem o que quisessem sobre

sua vida. Os mais egocêntricos registravam tudo o que lhes acontecia durante o dia e

reproduziam diretamente nas aerotelas ou em modo holográfico. Os garotos realmente loucos

nunca as desligavam.

Helena não tinha uma página pessoal, mas isso não chegava a ser incomum. Vários

Enders apagavam suas páginas depois que completavam seu centésimo aniversário.

Provavelmente, achavam que eram maduros demais para esse tipo de bobagem.

Mas era estranho perceber que a página de Emma havia sido excluída. Fiz uma busca por

seu nome e encontrei um anúncio de seu funeral. Dois meses atrás. E não havia qualquer

menção à causa da morte.

Lembrei-me do quarto decorado para uma adolescente que vira na primeira noite em que

explorara a casa. Levantei da cadeira e atravessei o corredor, entrando no quarto de Emma.

A tristeza baixou sobre mim como uma névoa. A luz do sol entrava pela janela, filtrada

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por cortinas brancas muito finas, imóveis no ar enclausurado. Não era somente um quarto, mas

também um memorial. Alguma coisa se moveu no canto de minha visão periférica. Virei-me

em direção ao criado-mudo. Um holoálbum que exibia várias memórias, mostrando-as

ininterruptamente para ninguém.

Sentei na beirada da cama para olhar mais de perto. Senti uma pontada de dor dentro de

mim ao lembrar de nosso holoálbum, que já não existia mais. A inscrição na base daquele

aparelho dizia “Emma”. Suas feições lembravam as da avó, o mesmo queixo forte e a mesma

expressão determinada. Tinha o ar relaxado e confiante de uma garota rica, embora não tivesse

a beleza de uma doadora de corpo. Sua pele era vibrante, mas seu nariz orgulhoso era um

pouco longo demais. As imagens retratavam uma vida luxuosa e privilegiada — jogando tênis,

assistindo a uma ópera na noite de estreia e passando as férias na Grécia, com os braços ao

redor de seus pais.

Meus olhos examinaram o quarto. Ela morrera havia pouco mais de dois meses. Parecia

que Helena mantivera tudo como costumava ser. Eu teria feito o mesmo por meus pais, se

pudesse me dar ao luxo de continuar morando em nossa casa.

Mesmo assim, uma coisa estava faltando. Não havia um computador.

Fui até o guarda-roupa para procurar por algum segredo. Era ali que as pessoas

geralmente os