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Texto extraído do livro COMO ENTENDER A PINTURA MODERNA - Carlos Cavalcanti

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FORMA E CONTEUDO Carlos CavalcantiQuando contemplamos uma pintura, distinguimos ou sentimos muitas vezes sem nos dar conta, esses dois aspectos. A forma o modo pelo qual o pintor utiliza os seus elementos especficos de expresso, isto , as linhas e as cores. O contedo (, aquilo que o pintor representa, descreve ou narra - uma cena religiosa ou histrica, uma paisagem, um retrato, flores, frutas, objetos quaisquer. A forma no deve ser confundida, porm, com o pintar bem, fcil, rpido e bonito. H desenhistas e pintores que desenham e pintam com facilidade e mesmo certo gosto. Fazem retratos com desembarao, parecidos, mas destitudos de sentimento criador e de expresso. Encontramos desses artistas nas exposies e sales, entre acadmicos e modernos. Operam mais com a mo do que com o esprito. So chamados virtuoses ou maneiristas, porque repetem com facilidade maneiras de fazer, que aprenderam, decoraram ou simplesmente imitam. So vazios de originalidade e incapazes de emocionar, embora corretos tantas vezes, porque "s a linha traada segundo a emoo, s a pincelada guiada pelo instinto, no as maneiras calculadas, aprendidas, escolhidas ou imitadas, so susceptveis de comunicar-nos aquelas vibraes do sentimento pelas quais a 1 arte tem para ns um valor". (Max Friedlander) Assim que deve ser entendida a forma, em outras palavras poder de expresso que o artista confere, instintiva ou intuitivamente, s linhas e cores e no a simples destreza ou correo de desenhar, de pintar, a fidelidade com que imita a realidade. A mesma coisa ocorre com escritores que conhecem muito bem a gramtica, escrevem corretamente, os pronomes nos lugares exatos, as regncias concordncias impecveis, mas so inexpressivos, no possuem o p der de comunicar a emoo, poder este peculiar aos verdadeiros artistas. Dom artstico, por excelncia, o da comunicabilidade. Em face desses dois conceitos de forma e contedo, o problema se resume em saber onde est realmente o valor de uma obra de arte, em geral, ou de uma pintura, em particular, se na forma, se no contedo. Esse problema tanto mais importante quanto atualmente muitos quadros no possuem contedo descritivo ou representativo, das aparncias visuais da realidade, mas, simplesmente, contedo evocativo e simblico, como os dos abstratos. primeira vista, parece que o valor est no contedo. Refletindo um pouco, chegaremos concluso de que o contedo tem significao secundria, servindo apenas de suporte aos valores expressivos da forma. Muito comum nos museus e igrejas, o contedo da Santa Ceia, por exemplo. Numerosos artistas do passado o representaram, sobretudo na Idade Mdia e Renascena. No entanto, dentre todos esses contedos da Santa Ceia, por si mesmos sublimes aos olhos do crente, uma vez que representam o mistrio da Eucaristia, aquele mais conhecido, admirado e imitado, o de Leonardo da Vinci. Isso acontece justamente pela forma, isto o como Leonardo soube utilizar os elementos especficos de sua arte, as linhas e as cores, inclusive atravs da organizao, pela perspectiva, de sugestes espaciais, que concorrem como j se observou, para comunicar ao contemplador o sentimento de que algo1

FRIEDLANDER, Max J (1867/1958) Judeu, nascido em Berlin, Historiador da Arte profundo conhecedor de diversos estilos, migrou quando houve a ascenso do nazismo. Escreveu: Acadmicos entram com idias no museu, conhecedores de arte saem de l com elas."

transcendente est acontecendo entre aqueles treze homens sentados mesa. Se o contedo por si tivesse valor, evidentemente todas as Santas Ceias seriam grandes obras de arte como a de Leonardo. Por outro lado, contedos prosaicos, como uma velha cadeira ou um par de sapatos cambaios, pintados por Van Gogh, tornam-se fontes de emoo. Assim ocorre tambm em todas as artes. Os contedos ou os temas cantados pelos poetas, narrados pelos romancistas, interpretados pelos msicos, em ltima anlise, so os mesmos. A originalidade, a expresso, em suma, a beleza de suas obras resultam de como, as fizeram ou da forma. Um dos males do academismo foi conferir mais importncia ao contedo e considerar a forma simples demonstrao de habilidade tcnica, no sentido de pintar bem, com facilidade e correo, buscando-se esses requisitos na imitao das obras dos mestres clssicos do passado. Em virtude da importncia dada pela esttica acadmica ao contedo, estabeleceu-se mesmo verdadeira hierarquia nos assuntos ou temas da pintura. Em primeiro lugar, como os mais belos ou capazes de consagrar um artista, pelo que pediam tambm de erudio, colocaram os temas da histria sagrada ou profana, porque exigiam a representao da figura humana, considerada imagem suprema ou essncia da Beleza, numa sobrevivncia, atravs da Renascena, da estaturia do classicismo grego. Em segundo lugar, as cenas de costumes ou da chamada pintura de gnero; em terceiro, a paisagem e finalmente, a simples natureza morta, isto , representao de flores, frutas e objetos. No poderia haver certamente maior subverso de valores artsticos, como o leitor est percebendo. Um simples jarro com flores pode ser mais emocionante do que toda a complicada representao, em grandes dimenses, de uma batalha, que tenha decidido o destino de dois povos.

Essa idia da superioridade da forma sobre o contedo no nova, inclusive por sua evidncia. Vem dos gregos, mas fortaleceu-se a partir dos fins do sculo passado. Sabemos hoje que, quando vemos uma pintura, somos tocados primeiro pela forma, numa impresso resultante da disposio geral das linhas e cores, sombras e luzes, massas e planos, do que propriamente pelo contedo. a msica, o ritmo da pintura. "Antes de saber o que o quadro representa, escreveu Delacroix, se apodera de ns esse acorde mgico." Nesse particular, ocorreu-nos caso bem elucidativo. Num dos nossos cursos na Faculdade Nacional de Filosofia, sentava-se na primeira fila uma moa, que nos perguntou quando inciaramos projees de quadros religiosos. Sendo catlica, apreciava-os bastante. Certa vez, projetamos o Ecce Homo, de Ticiano (1477-1576), pintor da escola renascentista italiana, realmente notvel pelas suntuosas harmonias do colorido. Mal a projeo apareceu e aprumou-se, a moa exclamou: Que beleza! Terminada a aula, perguntamos-lhe como, sendo catlica, poderia achar uma beleza Cristo flagelado e exposto ao escrnio pblico. Respondeu-nos: - Ah, depois que vi que era isso ... Inicial e instantaneamente, fora tocada pela forma, por aquela msica, ritmo ou acorde mgico da pintura, pelo poder expressivo intrnseco das formas e cores de Ticiano, independente do que representavam. Imediatamente depois se deteve no contedo. Ento o choque emocional das formas e cores deve ter sido inibido ou limitado pelas consideraes morais e intelectuais despertadas pelo contedo e decorrentes de sua crena religiosa, porque "nesse prescindir do contedo, como disse Herbert, pra contemplar somente a forma, est a verdadeira catarse (purificao) que a arte produz".

Como tem sido acentuado por estudiosos, no contedo esto os valores intelectuais, condicionados pelas circunstncias histricas e sociais e no os instintivos ou vitais da criao artstica, elementares, permanentes e universais, que se encontram na forma. Quando o cristianismo ainda era uma religio das classes populares, natural que os primitivos pintores cristos representassem Cristo como simples trabalhador rural, na figura simblica do Bom Pastor, conduzindo aos ombros uma ovelha. A Virgem, por sua vez, como simblica mulher do povo. Natural, tambm, que na alta Idade Mdia, vivendo sob monarquias absolutas, como a bizantina, os artistas agora representassem Cristo como rei coroado, sentado majestaticamente no trono e organizassem a corte celeste igual corte terrena, que traziam nos olhos e no sentimento. A Virgem, ento, se transformara em rainha, os apstolos e os santos, em altos dignitrios; os anjos, em pajens. Natural, ainda, que na segunda metade do sculo passado, com as idias liberais e socialistas, Cristo passasse a ser representado sem coroa e majestade, sem divindade e com humanidade, novamente nos ares de simples homem do povo. Mas, tanto na obra medieval, como na do sculo passado, os valores permanentes no esto nesses elementos circunstanciais do contedo, que refletem contingncias histricas e sociais transitrias, mas, nas expresses de ritmos vitais contidas na forma. Um pesquisador dessas coisas, Jlio Rinaldini, observou muito bem ao dizer que "o artista extrai do contedo aquilo que o anular como tal, relegando-o, no melhor dos casos, a condies de curiosidade psicolgica ou de referncias histricas, nas quais se recriaro as naturezas estticas superficiais. Todo o fato sem valor plstico para a natureza do artista um fato inerte ou, se quiserem, todo o fato inerte enquanto sua vontade descobridora no reconhecer nele formas vitais de valor prprio". Todavia, apesar de tantas correntes modernas recusarem o contedo descritivo ou representativo, limitando-se aos contedos evocativos e simblicos, no se pode neg-lo ou dispens-lo por completo na pintura figurativa. o que acentua Franz Boas. Lembra s se autor que, na arte figurativa, a obra no nos atinge s por sua forma, seno tambm e, s vezes, principalmente, por seu contedo. Diz ainda que a combinao de forma e contedo confere arte figurativa valor e motivo separados de todo o efeito esttico puramente formal, isto , sem representao das imagens da realidade. No h dvida. A observao justa. Os fatos nos ensinam, no entanto, que mesmo nos quadros figurativos, nos quais so reproduzidas ou imitadas as aparncias visuais, com maior ou menor fidelidade, o contedo deve ficar sempre em segundo plano, porque a finalidade ltima da pintura no representar a realidade ou narrar acontecimentos, mas, a propsito ou sob o pretexto dessas representaes ou narraes, estabelecer relaes de harmonia ou de contraste entre as linhas e as cores. Quando dotado de plasticidade, mesmo ao pretender representar ou narrar, o autntico pintor ao expressar-se est na verdade estabelecendo e organizando essas relaes plsticas, quase sempre sem dar-se conta, pela natureza sensvel e no intelectual de sua criao. Ao que parece, porm, tanto na pintura figurativa como, na abstrata, contedo e forma so elementos que se completam inseparavelmente. Quando a forma est bem adequada ao contedo, podemos dizer que teremos a pintura totalmente realizada. A obra de arte plenamente realizada, a obra-prima, digamos assim, resulta da adequao ou harmonia perfeita entre esses dois elementos. A verdadeira beleza, dizia Scrates, se encontra somente quando a alma interior se harmoniza com a forma exterior, pensamento tantas vezes repetido com palavras diferentes. Muitas das tendncias contemporneas, negando ou recusando a imagem visual, negam ou recusam, conseqentemente, o contedo descritivo ou representativo, baseado nas sensaes ticas diretas das aparncias exteriores da realidade. Mas isso no quer dizer no possuam contedo. Possuem-no, porm diferente, fundando-se nos valores rtmicos, plsticos, criados pelas formas e cores sem representao e nas sugestes ou evocaes de vitalidade que despertam.

Pois o que o verdadeiro artista capta e exprime, num processo inconsciente de eleio, o ritmo universal da vida, o mesmo em todos os tempos e lugares, em todos os seres e coisas. Esse ritmo vital, o expressa no no contedo, onde se inserem os elementos histricos e sociais e, portanto, intelectuais da obra de arte, mas na forma, onde se revela e vibra o impulso vital da criao artstica. "O contedo, - disse Yves Duplesis - a roupagem da contemporaneidade com que se veste aquele impulso vital, para melhor comunicar-se e poder a arte realizar seu destino social de instrumento de expresso e comunicao".2

REFERNCIAS:

CAVALCANTI, Carlos. Forma e Contedo IN: CAVALCANTI, Carlos, Como entender a pintura moderna.Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira S.A,1966, p49-53.

2

Crtico francs.