Fracionamento de Comprimidos

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ARTIGO DE REVISÃO O FRACCIONAMENTO DE COMPRIMIDOS NO AMBULATÓRIO: IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA CLÍNICA Resumo A divisão de comprimidos é uma prática frequente para obter a dose prescrita, titular os regimes posológi- cos, facilitar a deglutição ou reduzir custos. No entanto, esta prática pode ter impacto clínico, afectando a efectividade e segurança do medicamento. Com esta revisão pretendemos abordar problemáticas da divisão de comprimidos no ambulatório, bem como sugerir recomendações para os profissionais de saúde. Antes de se proceder ao fraccionamento de comprimidos devem ser considerados factores relacionados com o medicamento, como características do sistema farmacêutico e do fármaco, e factores relacionados com o doente, como aceitabilidade e possível impacto na adesão à terapêutica. A análise global da literatura indica que a decisão de fraccionar um comprimido deve ser tomada caso a caso, após consulta do resumo das características do medicamento e/ou o laboratório produtor e avaliação do doente. Após recomendar este processo, importa monitorizar aspectos como a segurança e efectividade do medicamento e a experiên- cia do doente com o procedimento. Finalmente, e apesar do número relativamente elevado de referências encontradas, a nossa revisão sugere que as implicações clínicas da divisão de comprimidos se encontram insuficientemente estudadas. Parece ser necessária mais investigação, especialmente se esta contemplar, por exemplo, estudos com delineamento mais robusto e fármacos de margem terapêutica estreita. João Filipe Martinho Ordem dos Farmacêuticos Rua da Sociedade Farmacêutica, 18 1169-075 Lisboa e-mail: [email protected] Mara Pereira Guerreiro Professora Associada Convidada (ISCSEM) e Honorary Research Associate (Universidade de Manchester); Aurora Simón Centro de Informação do Medicamento da Ordem dos Farmacêuticos. Abstract Tablet splitting is a common practice when a dosage form of the required strength is unavailable, to titrate of the dosing regimen, to facilitate swallowing and to reduce cost. However, this practice is not without risks and it can affect the effectiveness and safety of drug therapy. In this review paper we discuss issues to be considered when splitting tablets in primary care and suggest recommendations for health profes- sionals. Tablet splitting should be preceded by careful consideration of product related factors, such as the characteristics of the tablet and the drug, and patient related factors, such as acceptability and adherence. Taken together the literature indicates that tablet splitting should be decided on an individual basis, after checking its technical appropriateness (via summary of product characteristics and/or contact with the manufacturer), and adequacy for the patient. Additionally, patient’s outcomes and experiences should be monitored. In spite of the relatively large body of literature found our review highlighted gaps in knowledge concerning the clinical implications of tablet splitting. This suggests the need for further research particu- larly if studies adopt a sound designs and include drugs with a narrow therapeutic index. Introdução O fraccionamento de comprimidos é uma prática fre- quentemente executada pelos doentes ou prestadores de cuidados de saúde no ambulatório para: - Obter a dose prescrita quando esta não se encontra comercializada 1,2 . Esta questão assume particular rele- vância no caso de idosos e crianças, quando não existem formas farmacêuticas alternativas com dosagens ade- quadas 3,4 , ou quando o medicamento é prescrito off-label (para indicações não aprovadas no resumo das caracte- rísticas do medicamento) 5 ; - Titular o regime posológico 3 (aumentos ou decrésci- 47 Rev Port Farmacoter | 2010;2:119-125

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  • ARTIGO DE REVISO

    O FRACCIONAMENTO DE COMPRIMIDOS NO AMBULATRIO: IMPLICAES PARA A PRTICA CLNICA

    ResumoA diviso de comprimidos uma prtica frequente para obter a dose prescrita, titular os regimes posolgi-cos, facilitar a deglutio ou reduzir custos. No entanto, esta prtica pode ter impacto clnico, afectando a efectividade e segurana do medicamento. Com esta reviso pretendemos abordar problemticas da diviso de comprimidos no ambulatrio, bem como sugerir recomendaes para os profissionais de sade.Antes de se proceder ao fraccionamento de comprimidos devem ser considerados factores relacionados com o medicamento, como caractersticas do sistema farmacutico e do frmaco, e factores relacionados com o doente, como aceitabilidade e possvel impacto na adeso teraputica. A anlise global da literatura indica que a deciso de fraccionar um comprimido deve ser tomada caso a caso, aps consulta do resumo das caractersticas do medicamento e/ou o laboratrio produtor e avaliao do doente. Aps recomendar este processo, importa monitorizar aspectos como a segurana e efectividade do medicamento e a experin-cia do doente com o procedimento. Finalmente, e apesar do nmero relativamente elevado de referncias encontradas, a nossa reviso sugere que as implicaes clnicas da diviso de comprimidos se encontram insuficientemente estudadas. Parece ser necessria mais investigao, especialmente se esta contemplar, por exemplo, estudos com delineamento mais robusto e frmacos de margem teraputica estreita.

    Joo Filipe MartinhoOrdem dos FarmacuticosRua da Sociedade Farmacutica, 181169-075 Lisboae-mail: [email protected]

    Mara Pereira GuerreiroProfessora Associada Convidada (ISCSEM) e Honorary Research Associate (Universidade de Manchester);

    Aurora SimnCentro de Informao do Medicamento da Ordem dos Farmacuticos.

    AbstractTablet splitting is a common practice when a dosage form of the required strength is unavailable, to titrate of the dosing regimen, to facilitate swallowing and to reduce cost. However, this practice is not without risks and it can affect the effectiveness and safety of drug therapy. In this review paper we discuss issues to be considered when splitting tablets in primary care and suggest recommendations for health profes-sionals. Tablet splitting should be preceded by careful consideration of product related factors, such as the characteristics of the tablet and the drug, and patient related factors, such as acceptability and adherence. Taken together the literature indicates that tablet splitting should be decided on an individual basis, after checking its technical appropriateness (via summary of product characteristics and/or contact with the manufacturer), and adequacy for the patient. Additionally, patients outcomes and experiences should be monitored. In spite of the relatively large body of literature found our review highlighted gaps in knowledge concerning the clinical implications of tablet splitting. This suggests the need for further research particu-larly if studies adopt a sound designs and include drugs with a narrow therapeutic index.

    IntroduoO fraccionamento de comprimidos uma prtica fre-quentemente executada pelos doentes ou prestadores de cuidados de sade no ambulatrio para:- Obter a dose prescrita quando esta no se encontra comercializada1,2. Esta questo assume particular rele-

    vncia no caso de idosos e crianas, quando no existem formas farmacuticas alternativas com dosagens ade-quadas3,4, ou quando o medicamento prescrito off-label (para indicaes no aprovadas no resumo das caracte-rsticas do medicamento)5;- Titular o regime posolgico3 (aumentos ou decrsci-

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  • mos graduais da dose), com vista a diminuir a incidncia de reaces adversas e/ou maximizar a efectividade;- Facilitar a deglutio, especialmente em idosos4;- Reduzir custos, especialmente em pases em que o pre-o unitrio das especialidades farmacuticas o mesmo independentemente da dose, como nos Estados Uni-dos1,6,7.Apesar de por vezes necessrio, o fraccionamento de comprimidos nem sempre recomendvel. Contudo, a nossa experincia profissional e a literatura8,9 sugerem que as decises de fraccionar comprimidos so por vezes tomadas de nimo leve por profissionais de sade e do-entes sem ponderar os riscos associados. Por exemplo, um questionrio auto-administrado a 905 doentes de 54 centros de sade alemes concluiu que cerca de um quarto dos comprimidos eram fraccionados5. Destes, os autores consideraram que 8,7 por cento no deveriam ser fraccionados por no possurem ranhura e que 3,8 por cento no podiam ser fraccionados, de acordo com informao do produtor. Existiam alternativas em 25 dos 40 medicamentos fraccionados sem ranhura (me-dicamento genrico com ranhura ou disponibilidade de medicamento com metade da dosagem). Os autores ava-liaram as implicaes econmicas de utilizar estas for-mulaes, tendo concludo que mesmo seleccionando a alternativa mais barata haveria um aumento mediano do custo de cerca de 40 por cento5.

    ObjectivoEste trabalho tem como objectivo identificar e discutir aspectos prticos a ter em considerao quando se pre-tende fraccionar comprimidos no ambulatrio e baseia--se numa ficha tcnica do Centro de Informao de Me-dicamentos da Ordem dos Farmacuticos previamente publicada10. Os termos fraccionamento e diviso so utilizados ao longo do trabalho com o mesmo significa-do.

    Consideraes sobre o Fraccionamento de Comprimidos O nmero relativamente elevado de referncias encon-tradas atesta o interesse deste tema para prtica profis-sional. A literatura sugere que, antes de se proceder ao fraccionamento de um comprimido, se deve considerar factores relacionados com o medicamento e com o doen-te, uma vez que este procedimento pode comprometer a efectividade e segurana do medicamento. Explicitam--se seguidamente estes factores. Adicionalmente, as Figuras 1 e 2 sumarizam a possvel relao entre alguns destes factores e problemas de efectividade e segurana. Factores Relacionados com o Medicamento Quando se pretende fraccionar um comprimido impe-

    -se, antes de mais, analisar se este procedimento re-comendvel, em funo das caractersticas do sistema farmacutico e do frmaco. importante ponderar os seguintes factores: 1. Formulaes de libertao modificada (FLM)Estas formulaes so utilizadas para11,12,13,14,15:- Evitar flutuaes na concentrao plasmtica do fr-maco (obviando efeitos secundrios dosidependentes e melhorando a efectividade);- Reduzir a frequncia da administrao (com o intuito de promover a adeso teraputica);- Controlar o local de libertao do frmaco no tracto gastrointestinal (como no caso de substncias activas que se degradam no meio cido do estmago ou irritan-tes para a mucosa gstrica).Dependendo da formulao galnica, pode ou no ser possvel dividir FLM. No ltimo caso, a divi-so destes sistemas farmacuticos pode resultar na libertao imediata da dose, com risco de apare-cimento de acontecimentos adversos ou toxicida-de11,12.16,17. Esta sobredosagem, conhecida como do-se-dumping, particularmente perigosa em doentes naive18. O fraccionamento de FLM pode ainda levar a perda de efectividade19, uma vez que podem ocorrer al-teraes na taxa de dissoluo e nas caractersticas de absoro do frmaco. Assim, sendo tambm mais caras que as formulaes convencionais, dificilmente se justi-fica o fraccionamento de FLM.

    2. Caractersticas dos frmacosDeve evitar-se fraccionar frmacos com sabor desagra-dvel7,12,20, como a ciprofloxacina, o ibuprofeno e a me-tformina, bem como aqueles que podem corar os dentes, como o ferro. Nestas situaes, o fraccionamento pode ter implicaes negativas para a adeso teraputica.O fraccionamento de medicamentos irritantes para a mucosa da boca ou esfago, como os que contm iso-tretinona e cido valprico12, est desaconselhado por poder resultar em problemas de segurana. Tambm no recomendvel fraccionar especialidades farmacuticas com frmacos citotxicos, pelo risco as-sociado sua manipulao para indivduos saudveis, por contacto com a pele e aerossolizao do frmaco. Embora este risco seja maior no caso de triturao de comprimidos ou cpsulas12,14,15, ele no est ausente no caso de fraccionamento21.Fraccionar medicamentos cuja substncia activa lbil luz ou humidade (por exemplo, vitaminas A, B e C)7 pode levar degradao da mesma. Expor a superfcie cor-tada de um comprimido ao ar, mesmo por curtos perodos de tempo (at 24 horas), pode comprometer a sua esta-bilidade3. Esta questo torna-se especialmente relevante

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  • Figura 1 - Risco de problemas de efectividade associados ao fraccionamento de comprimidos (a sombreado indicam-se os factores relacionados com o medicamento)

    Figura 2 - Risco de problemas de segurana para o doente associados ao frac-cionamento de comprimidos (a sombreado indicam-se os factores relaciona-dos com o medicamento; FLM = Formulaes de Libertao Modificada)

    quando o doente incapaz de executar o fraccionamento e este realizado antecipadamente por um cuidador. A ar-mazenagem dos produtos da diviso est intrinsecamente relacionada com a questo da estabilidade, pois no caso de blisters ou fita termossoldada no possvel manter o acon-dicionamento primrio. No entanto, apenas encontramos referncia a esta problemtica num artigo, que concluiu que a mesma no est bem discutida na literatura3.

    3. Flutuaes da doseO fraccionamento dos comprimidos pode originar dife-renas de massa, bem como diferenas do teor de subs-tncia activa entre os produtos da diviso. Estas ltimas podem dever-se s primeiras e/ou a uma distribuio no uniforme da substncia activa nos produtos da diviso.

    Importa conhecer a magnitude destas diferenas de massa (e eventuais diferenas de dose), pois nem todas tm necessaria-mente significado clnico, bem como os seus determinantes. Assume particular importn-cia a presena ou ausncia de ranhura.Rosenberg e col22 estudaram o fraccionamento de 17 com-primidos diferentes, incluindo vrios psicofrmacos e anti-hipertensores. Os comprimidos tinham diversas formas, sendo que trs no apresentavam ra-nhura (donepezil 5 mg, risperi-dona 0,25 e 1 mg). Os desvios de massa dos produtos da diviso foram classificados de acordo com especificaes adapta-das da Farmacopeia Norte-Americana (US Pharmacopeia USP) para uniformidade de peso, que no permite desvios superiores a 15 por cento em relao ao peso terico nem um desvio padro relativo maior que 6 por cento. Apenas sete comprimidos cumpriram este requisito, um dos quais no era ranhurado (risperidona 0,25 mg). Os autores no analisaram a relao entre a presena de ra-nhura/forma do comprimido e a uniformidade de massa, mas os maiores desvios foram obtidos com comprimidos ranhurados

    e em forma de escudo de venlafaxina.Um outro estudo norte-americano23 incidiu sobre cinco comprimidos diferentes (paroxetina 20 e 40 mg, risperi-dona 2 e 4 mg e sertralina 100 mg), dois dos quais ranhu-rados de um s lado (sertralina 100 mg e paroxetina 20 mg) e os restantes no ranhurados. Mesmo com a ajuda de um dispositivo de corte e utilizando operadores trei-nados (tcnicos de farmcia), apenas os comprimidos de paroxetina 20 mg cumpriram as especificaes previa-mente citadas da USP.O estudo de Hill e col24 destaca-se por tambm ter de-terminado o teor de substncia activa dos produtos da diviso (e no apenas a sua massa). Foram estudados trs comprimidos ranhurados (varfarina 5 mg, tartarato de metoprolol 25 mg e citalopram 40 mg) e trs compri-

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  • midos no ranhurados (sinvastatina 80 mg, succinato de metoprolol 200 mg e lisinopril 40 mg). Em qualquer dos casos, a diviso foi efectuada com um dispositivo de cor-te por um aluno de Cincias Farmacuticas. O nmero de metades que no cumpria a especificao de unifor-midade de teor de frmaco (adaptada da USP; de 95-105 por cento para a varfarina e 90-110 por cento para os res-tantes cinco frmacos) foi sensivelmente igual para os comprimidos ranhurados e no ranhurados; no entanto, parece haver maior variao do teor de frmaco para os comprimidos no ranhurados. Na anlise ajustada s variaes de peso havia um menor nmero de metades que no cumpriam as especificaes de uniformidade do teor de frmaco. Assim, os autores concluram que a variao do teor de substncia activa pode ser prima-riamente atribuda s variaes de peso que ocorrem aquando da diviso por perdas de fragmentos ou redu-o a p. Desta forma, evitar-se-o flutuaes das doses se os doentes forem capazes de dividir os comprimidos sem problemas.Noutros trabalhos sobre esta matria25,26,27,28,29,30, a presena ou ausncia de ranhura nos comprimidos testados no especificada de forma clara. A evidncia apresentada22,23 no corrobora a ideia vulgarmente acei-te de que comprimidos no ranhurados, quando dividi-dos, originam sempre maiores desvios de massa que o ranhurados. Assim, pode-se afirmar que:- A presena de ranhura no garante necessariamente a uniformidade de peso das metades, mesmo quando em condies ideias (utilizao de um dispositivo prprio para dividir comprimidos por um operador treinado);- A ausncia de ranhura no origina necessariamente fal-ta de uniformidade de peso das metades.Este achado pode estar relacionado com a influncia simultnea de outros factores relacionados com o com-primido23,25,29 (como ranhura em apenas uma face do comprimido, forma irregular ou assimtrica e tamanho pequeno), bem como com a tcnica de diviso28 (manu-al com as mos ou uma faca/lmina versus dispositivo).A literatura publicada seria mais informativa se os auto-res reportassem claramente todos estes factores, o que nem sempre sucede. Por outro lado, parece-nos desej-vel a realizao de mais investigao com vista a deter-minar a influncia destes factores de forma mais inequ-voca, atravs de um delineamento apropriado e o uso de tcnicas estatsticas adequadas. ainda de assinalar que a diviso de comprimidos em quartos foi alvo de ensaio em apenas um dos estudos identificados30, pelo que a evidncia sobre esta prtica parece ser muito limitada.As diferenas de massa entre os produtos da diviso, e consequentemente potenciais variaes da dose de fr-maco, podem no representar um problema importante

    no caso de medicamentos com ampla margem terapu-tica e/ou semivida longa, mas podem implicar que as concentraes plasmticas atingidas no permanecem na janela teraputica, especialmente quando esta es-treita (por exemplo, ltio)3,6,31. Foram identificados v-rios estudos sobre o possvel efeito do fraccionamento de comprimidos nos resultados clnicos.Um ensaio aleatorizado e controlado, com delineamen-to cruzado, realizado em 29 doentes a fazer uma dose diria de lisinopril para a hipertenso, no encontrou diferena clnica entre a toma de comprimidos divididos ou inteiros, para dose equivalente durante duas semanas (Rindone T, et al, citado2,6).Dois estudos clnicos descreveram os efeitos do frac-cionamento de comprimidos em doentes tomando es-tatinas. Um estudo retrospectivo com base em registos clnicos avaliou os efeitos da diviso de comprimidos de sinvastatina e atorvastatina numa amostra de 109 do-entes que iniciaram esta prtica32. Foram includos do-entes com dose equivalente em miligramas, pelo menos nas 6-8 semanas antes e depois de comear a dividir o comprimido. A partir do registo clnico, os autores obti-veram os valores de colesterol total e LDL antes e depois da diviso dos comprimidos; no foram detectadas al-teraes significativas nos valores de colesterol total ou LDL. Na realidade, houve uma reduo estatisticamente (mas no clinicamente) significativa nos valores de LDL e colesterol total depois do fraccionamento e no houve alteraes nos nveis de HDL e triglicridos. Um outro estudo retrospectivo33 teve como objectivo determinar o efeito do fraccionamento de estatinas (atorvastatina, lo-vastatina e sinvastatina) nos resultados laboratoriais de 512 doentes. Os valores de colesterol obtidos aps o uso de uma dose estvel de comprimidos inteiros durante 12 ou mais semanas foram comparados com os obtidos de seis a 52 semanas aps o inicio do fraccionamento dos comprimidos. No foram encontradas alteraes signi-ficativas nos valores de colesterol total ou triglicridos. Aps o inicio do fraccionamento, houve uma diminuio estatisticamente (mas no clinicamente) significativa do LDL e um aumento do HDL, da aspartato amino-transferase (ALT) e da alanina aminotransferase (AST). O significado clnico e os motivos das alteraes no LDL e HDL so incertos. Algumas das possveis limitaes do estudo podem ser o processo de seleco dos doen-tes, uma eventual toma de comprimidos inteiros, assim como factores como a dieta e modificaes de estilo de vida.Embora a evidncia apresentada sugira que o fraccio-namento de comprimidos no afecta os resultados cl-nicos, esta deve ser interpretada com precauo, devido a limitaes dos estudos (como delineamento e medi-das de resultado utilizadas). Para se tirarem concluses

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  • mais definitivas so necessrios ensaios aleatorizados e controlados, idealmente com doentes a tomar medica-mentos com uma margem teraputica estreita, e em que se avalie tambm o possvel impacto na segurana (e no s na efectividade).

    Factores Relacionados com o Doente De entre estes factores, salienta-se a aceitabilidade do fraccionamento de comprimidos para os doentes e o possvel impacto que este pode ter na adeso terapu-tica. Fawell e col34, nos Estados Unidos, investigaram a relao entre o fraccionamento de comprimidos e a ade-so teraputica, custo do medicamento e aceitabilida-de. Foram includos 105 doentes que tomavam fosino-pril 20 mg, 47 dos quais fraccionavam os comprimidos. A adeso teraputica, medida atravs da contagem de comprimidos, foi semelhante nos dois grupos. Os do-entes que fraccionavam os comprimidos reportaram, atravs de um questionrio, experincias positivas. Ou-tro estudo norte-americano33 reportou resultados igual-mente positivos em termos de satisfao dos doentes e adeso teraputica com trs estatinas (atorvastatina, lovastatina e sinvastatina); ambos os parmetros foram avaliados atravs de um questionrio.O trabalho de outros autores apresenta resultados me-nos encorajadores sobre as experincias dos doentes. Num questionrio com uma amostra de 140 doentes ho-landeses que dividiam comprimidos ranhurados, cerca de um tero (36 por cento) reportou problemas, como dificuldade em partir os comprimidos, esfarelamento e metades desiguais35; estes resultados foram corrobora-dos por um outro inqurito realizado na Alemanha36. Esta questo tambm importante quando a diviso de comprimidos determinada por aspectos econmicos, uma vez que o desperdcio pode comprometer a poten-cial poupana gerada. possvel que os resultados dos estudos norte-ameri-canos33,34 estejam enviesados pela seleco dos doentes. Ambos os estudos foram conduzidos em organizaes de gesto de cuidados de sade (managed care), onde ti-nham sido implementados programas de fraccionamen-to de comprimidos; estes excluem doentes com compro-metimento da capacidade de fraccionar os comprimidos (acuidade visual reduzida, destreza manual insuficiente e/ou dificuldades cognitivas), mediante avaliao prvia por um farmacutico. Esta no a realidade nos siste-mas de sade holands e alemo, o que pode explicar a discrepncia de resultados em termos das experincias dos doentes. Adicionalmente, estes estudos35,36 englo-baram uma maior diversidade de comprimidos.Em resumo, a evidncia proveniente de pases com um sistema de sade que se aproxima do portugus suge-re que alguns doentes podero experienciar problemas

    com a diviso de comprimidos, mesmo que estes sejam ranhurados. So necessrios mais estudos para avaliar o impacto desta prtica na adeso teraputica. Ideal-mente, esta deveria ser medida atravs de dispositivos electrnicos de monitorizao, pois estes dariam indica-o de, por exemplo, casos em que o doente toma o com-primido inteiro em dias alternados em vez de o fraccio-nar. de evitar o auto-reporte da adeso teraputica, pelas limitaes associadas a esta tcnica.A literatura alerta tambm para a possibilidade de erros de medicao. A base de dados do Centro Nacional para a Segurana dos Doentes, da Veterans Affairs (Estados Unidos), totalizou, entre Janeiro de 2001 e Abril de 2005, 442 notificaes relacionadas com fraccionamen-to de comprimidos1. Destas, 38 por cento resultaram em acontecimentos adversos, maioritariamente no ambula-trio (65 por cento). Dois teros dos doentes tomavam mais do que a dose pretendida por no dividirem os comprimidos.

    Recomendaes Prticas no Fraccionamento de ComprimidosA Tabela 1 sumariza questes prticas a considerar an-tes de recomendar o fraccionamento de comprimidos. Embora a existncia de ranhura seja geralmente tomada como indicador de que o comprimido pode ser dividido, no forosamente assim. Um trabalho recente realiza-do na Sua37 concluiu que em alguns dos comprimidos ranhurados o resumo das caractersticas do medicamen-to (RCM) continha uma frase desaconselhando a divi-so. Adicionalmente, estes autores constataram que no RCM de comprimidos ranhurados podia ser encontrada meno existncia de ranhura, mas com indicao de que o comprimido no era adequado para diviso para obteno de metade da dose (ou seja, a ranhura desti-nava-se a facilitar o fraccionamento em caso de dificul-dade de deglutio, em que os produtos da diviso so ingeridos na altura da toma). No identificmos qual-quer trabalho publicado em Portugal que discutisse este tpico. No entanto, o facto de a ranhura no parecer ser um indicador fivel da adequao para fraccionamento, aliado multiplicidade de factores relacionados com o medicamento que devem ser considerados antes de frac-cionar um comprimido, leva-nos a recomendar a consul-ta do RCM da especialidade farmacutica em causa e, se necessrio, o contacto com o laboratrio produtor.Est previsto pelas autoridades europeias a incluso no RCM de frases como A ranhura apenas para facilitar a quebra para facilitar a deglutio, e no a diviso em doses iguais ou O comprimido pode ser dividido em metades iguais38. Esta iniciativa de aplaudir, uma vez que noutros pases europeus o RCM e/ou o folheto in-formativo (FI), fontes legais de informao, respectiva-

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  • Antes de recomendar a diviso:

    Existem alternativas viveis (como formas farmacuticas

    lquidas, medicamento genrico ou marca comercial de

    menor dosagem)?

    Foi consultado o RCM e/ou o laboratrio produtor?

    O doente possui caractersticas fsicas (acuidade visual,

    fora, destreza) e cognitivas que tornem exequvel a diviso

    do comprimido?

    A diviso do comprimido aceitvel para o doente (ou

    seja, no vai contra as suas preferncias ou tem potencial

    para complicar demasiado o regime teraputico)?

    Aps recomendar a diviso:

    Existem dvidas sobre o aconselhamento prestado?

    A efectividade e segurana do medicamento esto a ser

    monitorizadas de forma mais apertada (especialmente em

    frmacos com margem teraputica estreita)?

    O doente est satisfeito com o processo?

    Tabela 1 - Itens a verificar aquando da diviso de compri- midos por um doente (baseado em1,3,31)

    mente, para os profissionais de sade e doentes so por vezes omissos ou pouco explcitos sobre o fraccionamen-to de comprimidos. Por exemplo, Quinzler e col5 con-cluram que apenas cerca de um quarto dos RCM (22,5 por cento) dos 40 medicamentos em estudo continham informao explcita sobre divisibilidade. Estes autores citam o caso de trs especialidades farmacuticas sem in-formao sobre fraccionamento no RCM cujos compri-midos eram ranhurados; o laboratrio produtor indicou que estes no podiam ser divididos. Arnet e Hersberger37 tambm concluram que as fontes de informao oficiais no continham informao explcita sobre o fracciona-mento maioria dos comprimidos ranhurados.Aps verificar se o fraccionamento vivel do ponto de vista tcnico, importa seleccionar cuidadosamente os doentes. Os idosos e indivduos com patologias como artrite ou doena de Parkinson apresentam comprome-timento da destreza manual, o que dificulta grandemen-te o processo de diviso3. Tambm problemticos so os casos em que os doentes no possuem a acuidade visual necessria para proceder diviso1. Adicionalmente, do-entes com dificuldades cognitivas podem ter dificuldade em relembrar a dose a tomar e/ou as instrues para a diviso dos comprimidos. tambm importante avaliar a aceitabilidade deste pro-cedimento para o doente. Se os doentes no tiverem a compreenso e motivao para aderir teraputica com comprimidos fraccionados aconselhvel o envolvimen-to de um cuidador3.

    Ao recomendar o fraccionamento de comprimidos deve ser proporcionado ao doente aconselhamento sobre1,3:- Higiene a observar (mos limpas; se usado um dispo-sitivo para diviso, deve ser lavado para retirar qualquer p ou partculas);- O uso de um dispositivo de diviso (este pode ser ben-fico especialmente se o comprimido no for ranhurado31, pois facilita o processo);- Os doentes devem ser alertados para dividir um com-primido de cada vez, se possvel utilizando a segunda metade na toma seguinte2. Face s limitaes da evidncia sobre o impacto deste procedimento na efectividade e segurana do medica-mento, fundamental monitorizar o doente de forma mais apertada, avaliando tambm aspectos como a sua satisfao com o processo.

    Concluso A uniformidade de peso dos produtos da diviso de comprimidos em metades parece ser influenciada por mltiplos factores, o que refora a necessidade de uma anlise caso a caso.O fraccionamento de comprimidos pode ter impacto clnico em termos de efectividade e segurana do medi-camento. O nosso trabalho sugere que existem lacunas do conhecimento a este nvel, bem como no estudo da relao entre o fraccionamento de comprimidos e pa-rmetros como uniformidade da dose nos produtos da diviso e adeso teraputica. Neste sentido, impor-tante realar a necessidade de conduzir mais estudos sobre esta matria. Assim, a diviso de comprimidos dever ser considerada quando no existem alternativas disponveis, e deve ser decidida caso a caso, com base nas propriedades galnicas do sistema farmacutico e nas caractersticas do frmaco, da sua margem terapu-tica e do doente. No que s consideraes econmicas diz respeito, estas devem ser secundrias a questes de segurana e efectividade. Referncias Bibliogrficas 1. ISMP. Tablet splitting: do it only if you half to, and then do it

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    ARTIGO DE REVISO

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    Rev Port Farmacoter | 2010;2:119-125